representacoes do corpo feminino

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  • 7/28/2019 Representacoes Do Corpo Feminino

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    ISSN: 1983-8379

    DARANDINA revisteletrnica Programa de Ps-Graduao em Letras / UFJF volume 1 nmero 2

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    Representaes do corpo feminino na literatura

    Maria do Rosrio Alves Pereira1

    Eldia Xavier, renomada estudiosa da rea de literatura brasileira e feminina, traz a

    pblico uma obra singular acerca do corpo e suas representaes: Que corpo esse? O corpo

    no imaginrio feminino (Editora Mulheres, 2007). Sua tipologia do corpo, ousada, uma vez

    que se baseia em um estudo sociolgico, ao mesmo tempo amplia e reformula a tipologia

    criada por Arthur Frank. Romances e contos nacionais, do incio do sculo 20 at a

    atualidade, so utilizados para exemplificar tais categorias, mostrando a representao do

    corpo como local de inscries culturais, polticas e sociais, temtica muito pertinente na

    contemporaneidade.

    Em seu prefcio obra, Antonio Carlos Secchin chama a ateno para a eficcia

    operacional da categorizao temtica que, para alm de ser meramente normativa, considera

    a noo de corpo em sua concretude histrica, e no biolgica, como tradicionalmente se

    concebe. Partindo do pressuposto de que a anlise da representao dos corpos pode auxiliar

    no entendimento das prticas sociais que os rodeiam, Eldia Xavier estabelece relaes

    instigantes com a literatura e tangencia teorias consagradas, como o estudo de Pierre

    Bourdieu,A dominao masculina, e de Michel Foucault, Vigiar e punir, dentre outros.

    As dez categorias que a pesquisadora estabelece so as seguintes: corpo invisvel,

    corpo subalterno, corpo disciplinado, corpo imobilizado, corpo envelhecido, corpo refletido,

    corpo violento, corpo degradado, corpo erotizado e corpo liberado. No captulo sobre o corpo

    invisvel, so abordados o romance A intrusa, de Jlia Lopes de Almeida, no qual a

    protagonista, Alice, mesmo sendo uma presena quase imaterial, conquista Argemiro; e o

    1 Mestre em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais.

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    conto Muslim: woman, de Marilene Felinto. Neste texto, a tenso entre ser vista,

    reconhecida, e se esconder, em paralelo com as diferenas culturais que se apresentam no

    encontro da mulher ocidental com a muulmana do a tnica ao texto. A mulher ocidental em

    crise v na cultura oriental smbolo de proteo, e permane resignada, semelhana da outra.

    Quanto representao do corpo subalterno, o texto de Carolina Maria de Jesus,

    Quarto de despejo, e o conto de Wanda Fabian, Mulher debaixo do cofre, so analisados.

    As personagens so mulheres que sempre permanecem em segundo plano na sociedade, eocupam um lugar de subalternidade, seja esse lugar econmico, da indigncia social, ou no

    microcosmo familiar. Ainda que se utilizem de estratgias completamente diferentes para

    demarcar tal subalternidade, o estudo de Eldia Xavier demonstra que em ambos os textos h

    sempre um algum que empreende a espoliao desse corpo feminino. Uma das

    caractersticas que tornam a leitura de Que corpo esse? ainda mais interessante, alis, o

    fato de a pesquisadora se valer de textos literrios os mais variados, conhecidos ou no do

    grande pblico e da Academia, e que refletem nuances e contextos sociais diversificados,

    mostrando os mecanismos capazes de manter o corpo feminino em seu lugar de submisso, ou

    mostrar como ele consegue se liberar das amarras sociais empreendidas por uma sociedade

    ainda patriarcalista e falocntrica.

    No que diz respeito ao corpo disciplinado, h uma espcie de gradao nos textos

    que se apresentam: a primeira obra estudada, A hora da estrela, de Clarice Lispector, reflete

    esse corpo disciplinado em toda sua inteireza. Macaba previsvel, e sua carncia mantida

    pela disciplina, como bem o demonstra Eldia Xavier. A subordinao s regras plena, e as

    relaes de dominao so vistas como naturais. Saliento que, neste corpo disciplinado, tem-

    se um aspecto que o diferencia do corpo subalterno: no h autoconscincia em Macaba, ela

    apenas reproduz estruturas e discursos, ao passo que Carolina Maria de Jesus, por exemplo,

    questiona o sistema e sua condio subalterna. O segundo texto analisado na categoria corpo

    disciplinado I love my husband, de Nlida Pion: h toda uma disciplina a ser seguida no

    casamento, reforada pelo desfecho do conto Ah, sim, eu amo meu marido , pois amar o

    marido faz parte do automatismo da vida, constituinte desse corpo disciplinado. Porm e

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    aqui volto idia de gradao , h momentos de indisciplina, de vos de pssaro, ainda

    que ela se sinta culpada e retome a disciplina habitual, o que nunca ocorre com Macaba. Em

    A confisso de Leontina, de Lygia Fagundes Telles, no passado da protagonista encontra-se

    a aprendizagem da submisso, mas a raiva contra o sistema emerge violentamente quando

    ela, quase sem querer, mata o homem que lhe exigia sexo em troca de um vestido. Aqui no

    h meros vos de pssaro, como no texto de Nlida Pion, mas uma reao brusca contra

    essa disciplina h anos perpetrada contra este corpo. Note-se que a seleo do corpus e aseqncia como ele se apresenta no involuntria: Eldia Xavier acaba por demonstrar que

    todos os corpos so disciplinados desde a infncia/juventude, e tal disciplina reforada pelas

    instituies sociais, a famlia, a Igreja, a mdia... Em Macaba, a tia, o rdio e os anncios

    de propaganda que a conformam estrutura social; a protagonista de I love my husband tem

    um pai coercitivo que a entrega quele que deveria ser o senhor da sua vida, o marido,

    referendado pelos laos que atam um ao outro, os laos matrimoniais da Igreja; enquanto a

    me de Leontina trabalhava dia e noite, ela cuidava da casa para assegurar os estudos do

    primo. Ou seja, alm da pertinncia dos textos selecionados, Eldia estrutura uma

    argumentao que desperta reflexes no leitor, o que salienta ainda mais as qualidades de sua

    pesquisa que, ao contrrio de esgotar temas ou leituras, fornece novas bases para estudos

    futuros.

    O corpo disciplinado caminha para o corpo imobilizado, aquele no qual a disciplina se

    impe de tal modo que ele no esboa nenhuma reao, como em O Pai, de Helena Parente

    Cunha, e a alma, no ?, de Marina Colasanti. J os corpos envelhecido e refletido

    guardam relaes com a sociedade que os cerca: no corpo envelhecido a inexorvel

    passagem do tempo que deixa marcas. Eldia Xavier estuda As horas nuas, de Lygia

    Fagundes Telles, e alguns contos de Clarice Lispector. O corpo refletido, como o prprio

    nome assinala, aquele que reflete o que est ao seu redor, ou seja, o prprio consumo, e

    como exemplo a pesquisadora comenta A sombra das vossas asas, de Fernanda Young, e

    Finisterre, de Nlida Pion. Mais uma vez, a escolha dos textos bem-sucedida, pois se o

    romance mostra um corpo refletido negativo, que se vale de toda a parafernlia tecnolgica da

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    esttica para alcanar seu amor, no conto a personagem reflete o mundo que a cerca

    positivamente, ao incorporar a cultura do outro numa viagem Galcia.

    No captulo sobre o corpo violento, so estudadas as personagens Rsia, de As

    mulheres de Tijucopapo, de Marilene Felinto, e Maria Moura, do romance de Rachel de

    Queiroz. A reificao do corpo feminino tambm objeto de estudo atravs da representao

    do corpo degradado. Eldia trabalha com as personagens femininas de Mrcia Denser e com

    Ana Clara, deAs meninas, romance de Lygia Fagundes Telles.Paralelamente a esse corpo que se degrada h um outro, erotizado, ainda que este seja

    um dado recente na prosa de autoria feminina, como bem salienta a estudiosa, por uma srie

    de conjunturas histrico-sociais. O corpo erotizado que vive sua sexualidade de modo pleno

    aparece na narrativa de Helosa Seixas, e o erotismo como promessa no cumprida em O

    leopardo um animal delicado, de Marina Colasanti.

    Porm, liberar-se sexualmente no tudo. As mulheres querem tambm ser sujeitos de

    sua prpria histria, da a representao, principalmente a partir da dcada de 90, do corpo

    liberado na narrativa ficcional feminina. A sentinela, de Lya Luft, ilustra esse corpo, bem

    como o romance de Marta Medeiros,Div.

    Como se percebe, a obra estabelece um percurso pelas narrativas de autoria feminina:

    da mulher que inexiste como sujeito do prprio destino at aquela que almeja e conquista a

    liberdade em sentido amplo. Do incio do sculo 20 at a contemporaneidade, atravs dessa

    amostra com a qual nos brinda Eldia Xavier, percebem-se as transformaes por que passa

    esse corpo ou esses corpos? feminino. O leitor certamente encontrar nesta obra o prazer

    de uma leitura fluida, de uma linguagem objetiva e sucinta, capaz de ampliar o entendimento

    acerca das questes que permeiam o feminino e de fornecer subsdios para quem se aventure

    em novas pesquisas.