representacoes da cidade antiga

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Gabriele Cornelli (Org.) Representações da Cidade Antiga categorias históricas e discursos filosóficos

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  • Gabriele Cornelli (Org.)

    Representaesda Cidade Antigacategorias histricas e discursos filosficos

  • Representaes da Cidade Antiga categorias histricas e discursos filosficos

    Gabriele Cornelli (Org.)

  • OrganizadorGabriele Cornelli

    TtuloRepresentaes da Cidade Antiga. Categorias Histricas e Discursos Filosficos

    EditorCentro de Estudos Clssicos e HumansticosClassica Digitalia Vniversitatis Conimbrigensis

    Edio1/2010

    Coordenador Cientfico do Plano de EdioMaria do Cu Fialho

    Conselho EditorialJos Ribeiro Ferreira, Maria de Ftima Silva, Francisco de Oliveira, Nair Castro Soares

    Director Tcnico da ColecoDelfim F. Leo

    Concepo Grfica e PaginaoRodolfo Lopes

    RevisoLaeticia Jensen Eble

    ApoioDecanato de Pesquisa e PsGraduao da Universidade de Braslia

    Obra Realizada no mbito das Actividades da UI&D Centro de Estudos Clssicos e HumansticosUniversidade de CoimbraFaculdade de LetrasTel.: 239 859 981 | Fax: 239 836 733ISBN: 9789898281203Depsito Legal: 305479/10 Centro de Estudos Clssicos e Humansticos da Universidade de Coimbra Classica Digitalia Vniversitatis Conimbrigensis Archai. As Origens do Pensamento Ocidental

    Reservados todos os direitos. Nos termos legais fica expressamente proibida a reproduo total ou parcial por qualquer meio, em papel ou em edio electrnica, sem autorizao expressa dos titulares dos direitos. desde j excepcionada a utilizao em circuitos acadmicos fechados para apoio a leccionao ou extenso cultural por via de elearning.

    Todos os volumes desta srie so sujeitos a arbitragem cientfica independente.

  • Sumrio

    Prefcio 7

    Parte I

    Babel e a Representao do Sagrado na Cidade Antiga 13Katia Maria Paim Pozzer

    Monumentalidade e Representaes do Poder Tirnicono Ocidente Grego 23Elaine Farias Veloso Hirata

    A Origem da Plis: os Caminhos da Arqueologia 39Maria Beatriz Borba Florenzano

    Dilogos da Vida Comum: os Espaos Funerrios e a Cidade Antiga 51Marta Mega de Andrade

    As Festas Dionisacas e a Plis: Novos Espaos 69Clara Britto da Rocha Acker

    Uma Pequena Roma no Norte da frica: uma Anlise de Leptis Magna 75Ana Teresa Marques Gonalves

    Parte II

    Santurio, Jardim e Plis: Pitagorismo, Epicurismo, Urbanidade e Poltica 89Edrisi Fernandes

    Consideraes Introdutrias sobre a Noo de Doxa no Livro II da Repblica 115Carla Francalanci

    O Logos Unificador de Protgoras 123Eliane Christina de Souza

  • 6O Papel da Mulher na Cidade: Atividades Femininas na Antiguidade e a Idia de Guardi em Plato 135Karen Franklin

    Os Fantasmas da Cidade Justa: uma Anlise do Mito da Atlntida 147Maria da Graa Gomes de Pina

    Plato: a Cidade das Leis e o Poder do Rumor 161Solange Norjosa

    Abreviaturas Utilizadas 169

    Crditos das Imagens 171

  • 7PrefcioNingum sabe melhor do que voc, sbio Kublai Khan, que no se deve

    jamais confundir a cidade com o discurso que a descreve. o que diz Marco Polo ao Imperador de todo o Oriente, ansioso por conhecer as cidades de seu prprio Imprio pelas palavras do clebre explorador, no romance Cidades invisveis de Italo Calvino.

    Este mesmo cuidado metodolgico por assim dizer , de separar o discurso sobre a cidade da prpria cidade, em sua complexidade e ambigidade real, orienta as pesquisas do Grupo Archai: as origens do pensamento ocidental, grupo de pesquisa sediado na Universidade de Braslia e cadastrado no Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq). explorao das relaes do pensamento antigo com o espao urbano, entendido como local de manifestao social de contedos ticopolticos, o grupo Archai dedicou, em Braslia, de 2 a 6 de junho de 2008, seu V Seminrio Internacional Archai: A cidade Antiga.

    Com a inteno de uma crtica historiogrfica s estratgias da construo do discurso sobre a poltica no mundo antigo, a cidade antiga resultou, assim, como um espao privilegiado de representaes sociais e, ao mesmo tempo, como indutora de modos de vida e relao caractersticos do mundo antigo. As contribuies aqui recolhidas so uma parte significativa daquelas que articularam os debates sobre o tema no referido seminrio. Filsofos, historiadores, fillogos e arquelogos reuniram, na ocasio, seus esforos exploratrios na representao interdisciplinar da cidade na Antiguidade.

    A presente obra representa bem o trabalho e ao objetivo do Grupo Archai (www.archai.unb.br), que desde 2001 desenvolve projetos de pesquisa, organiza seminrios e publicaes com a inteno de estabelecer uma prpria metodologia de trabalho e de constituir um espao interdisciplinar de reflexo sobre o pensamento ocidental em suas origens. Compreender de onde viemos para compreender nossos caminhos presentes e nossos desejos futuros o objetivo fundamental das pesquisas do grupo. O problema que orienta a pesquisa do Grupo Archai de ordem histrica, tica e poltica: nasce do malestar experimentado diante de uma maneira de contar a histria de cunho excessivamente presentista que pensa a filosofia antiga e o pensamento clssico em geral como saber estanque, independente de seu contexto, de maneira especial em seu perodo formativo. A proposta de trabalho historiogrficofilosfico do Grupo Archai entende, portanto, lanar um diferente olhar nas origens do pensamento ocidental, em busca de novos caminhos de interpretao que permitam compreender as origens ocidentais dos conceitos ticos, polticos, artsticos, culturais e religiosos como um processo enraizado no solo da cultura antiga, em contraposio s lectiones maiores de uma historiografia filosfica racionalista que se apropria da identidade cultural ocidental como algo outro ou contrrio ao complexo e variado mundo da cultura antiga em geral. A questo atualmente relevante em virtude das conseqncias que a narrativa sobre as origens do pensamento ocidental acarreta na compreenso da prpria episteme ocidental hoje: de fato, a cincia

  • 8e as culturas ocidentais lanam mo, genealogicamente e, s vezes, quase que etiologicamente, na tentativa de justificar sua pretenso de verdade absoluta e universal de cultura dos vencedores, de um mito das origens, fundamentado nesta mesma viso presentista e assptica do pensamento e das instituies clssicas em suas origens. Mito este que leva a utilizar a diversidade cultural ocidental em contraposio e no em dilogo com as outras culturas e vises do mundo que a globalizao aproximou de maneira mais forte nos ltimos anos. A abordagem em perspectiva histrica das origens (archai) das idias, dos paradigmas cientficos e culturais que orientam atualmente o pensamento ocidental tornase dramaticamente relevante num contexto intelectual e poltico internacional de crise dos paradigmas das culturas ocidentais, desafiadas a redescobrirem os tesouros em suas identidades num dilogo aberto e enriquecedor com as culturas outras. No deixa de ser significativo, nesse sentido, que o pensamento ocidental seja aqui pensado a partir de sua outra margem, aquela americana.

    No confundir a cidade real antiga com o discurso historiogrfico que dela se apropria, para nos remetermos s palavras acima de Calvino o objetivo que articula as pginas a seguir. Em sua diversidade de temas e abordagens, as contribuies aqui recolhidas desenham um discurso sobre a cidade que pretende descrevla sem se apropriar indiscriminadamente dela; compreendla em sua alteridade, sem ceder tentao de reduzila s expectativas genealgicas de nossa identidade atual.

    A Primeira Parte das contribuies aqui reunidas dedicada histria e arqueologia, como ponto de partida para uma apreenso histrica das representaes polticas no mundo antigo. Nesta seo inserese o artigo de Katia Maria P. Pozzer, que volta seu olhar para o Oriente e aborda a relao entre religio e poder em suas origens pela anlise do complexo arquitetnico do zigurate, espcie de pirmidesanturio, sntese da concepo religiosa da cidade mesopotmica. A representao do poder tirnico orienta o estudo comparado de Elaine Farias V. Hirata entre a monumentalidade poltica siciliana dos sculos VI e V a. C. e a exaltao dos governantes na poesia lrica de Pndaro: pedras e poesia se encontram para definir um momento crtico da representao do poder no mundo antigo. Com a inteno de seguir de perto os caminhos metodolgicos que a arqueologia utiliza h pelo menos trs dcadas para desvendar os elementos materiais da construo poltica antiga, Maria Beatriz B. Florenzano enfrenta os problemas da monumentalizao dos templos, da instalao de hera e do plano ortogonal nas novas apoikiai das cidades gregas antigas. A contribuio de Marta Mega de Andrade, dedicada aos espaos funerrios atenienses, procura revelar o dilogo que suas estelas e epitfios mantm com o cotidiano da cidade, contribuindo para a definio dos espaos da cidadania. Clara Britto da Rocha Acker dedica sua contribuio anlise da festa das Antestrias como lugar de transgresso urbana e afirmao cidad das mulheres, resgatando, assim, pelos textos da religiosidade dionisaca, sua voz e seus olhares. Enfim, Ana Teresa M. Gonalves estuda o caso de Leptis Magna e as estratgias de romanizao do territrio por parte de Otvio Augusto.

  • 9A Segunda Parte compreende ensaios da rea de filosofia, de maneira especial dedicandose a Plato e seus arredores, notadamente por causa da importncia do filsofo para a definio do pensamento poltico antigo. Edrisi Fernandes, analisando as tradies filosficas referentes a Delfos e seu santurio, detecta influncias inditas sobre as origens do pensamento ocidental que atravessam todo arco da Antiguidade, desde a tradio pitagrica at o epicurismo helenstico. Carla Francalanci dedicase a desvendar o sentido poltico de uma passagem central da Repblica de Plato, procurando abraar a ambigidade da relao entre opinio e verdade, no interior do esforo de definio do pensamento platnico sobre a cidade. A significativa contribuio dos sofistas para o pensamento poltico antigo, marcada, em muita parte, pela sua extraordinria modernidade, abordada por Eliane Christina de Souza, que dedica seu ensaio a Protgoras e sua tese do homemmedida: o resultado poltico da tese o do universalismo relativo e da ao argumentativa como busca do consenso ao fundamento da vida poltica. Karen Franklin nos apresenta o Plato pensador de uma teoria poltica capaz de contemplar em sua projetualidade novas funes para as mulheres, incluindo em sua arquitetura da cidade ideal a figura das Guardis. Maria da Graa G. de Pina acompanha os movimentos do Scrates da Repblica pelos mares da mitologia at o mito de Atlntida, compreendendo esse clebre mito como parte central do esforo dialtico de construo de um discurso sobre a cidade perfeita. O ltimo dilogo de Plato, as Leis, enfim objeto do ensaio de Solange Norjosa: Plato projeta neste a fundao de sua ltima plis, e dedica uma especial ateno ao poder do rumor, ligado deusa Phme (rumor), que age na educao da cidade a partir dos coros pblicos.

    Cabe, guisa de concluso, sublinhar aqui o kairs pelo qual, com esta publicao, inaugurarmos a colaborao entre o Grupo Archai da Universidade de Braslia e o Centro de Estudos Clssicos e Humansticos da Universidade de Coimbra: colaborao que me apraz pensar como um renovado encontro entre o antigo e o novo, a metrpolis e a plis, a Europa e a Amrica, entre uma margem e outra do Ocidente. Encontro este que acontece atravs do mar, a relativizar velhas distncias transocenicas, aqui reduzidas nas instncias mnimas de uma lngua, aquela portuguesa, que soube traduzir e representar, com beleza mpar e coragem exploratria, parte significativa da tradio dos estudos clssicos na modernidade.

    Braslia, agosto de 2009.

    Gabriele Cornelli

    Coordenador do Grupo ArchaiDepartamento de Filosofia

    Universidade de Brasliawww.archai.unb.br

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    Parte I

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    Babel e a Representao do Sagrado na Cidade Antiga

    BaBel e a rePreSentao do Sagrado na cidade antigaBabel and the Representation of the Sacred in the Ancient City

    As palavras podem reconstruir a histria, pois estas so mais duradouras que o mrmore e os metais.

    Jorge Luis Borges

    Katia Maria Paim Pozzer1

    Resumo: Este artigo tem por objetivo discutir alguns aspectos da concepo religiosa da civilizao mesopotmica por meio das representaes arquitetnicas do sagrado daquela sociedade. Nosso estudo tem por base o registro em argila dos templos monumentais no interior das cidades. O presente estudo analisa as representaes arquitetnicas do sagrado na civilizao mesopotmica como um dos aspectos de sua concepo religiosa. A construo mais significativa da arquitetura mesopotmica foi o edifcio conhecido como zigurate, uma construo macia de tijolos crus, em forma de pirmide escalonada, em cujo topo era construdo um pequeno santurio. O zigurate era a ligao entre o cu e a terra, onde se reuniam todos os elementos de uma viso mtica do Universo.

    Palavraschave: Babilnia, Cidade, Mesopotmia, Religio, Representao.

    Abstract: The aim of this article is to discuss some aspects of the religious conception of the Mesopotamian civilization, through architectural representations of the sacred in that society. Our study is based on the clay record of the monumental temples in the interior of the cities. The current study analyzes the architectural representations of the sacred in the Mesopotamian civilization as one of the aspects of its religious conception. The most significant construction of the Mesopotamian architecture was the building known as ziggurat, a massive construction of raw bricks, in form of a solid pyramid, on whose top it was built a small sanctuary. Ziggurat was the linking between the sky and the earth, where all the elements of a mythical vision of the universe gathered together.

    Keywords: Babylon, City, Mesopotamia, Religion, Representation.

    Este artigo tem por objetivo discutir alguns aspectos da concepo religiosa da civilizao mesopotmica por meio das representaes arquitetnicas do sagrado daquela sociedade. Nosso estudo tem por base o registro em argila dos templos monumentais no interior das cidades. As fontes utilizadas neste estudo so exclusivamente textos cuneiformes e relatos de escavaes arqueolgicas de Babilnia.

    A Mesopotmia localizavase no vale fluvial do Eufrates e do Tigre, no territrio do atual Iraque. Foi nessa regio que surgiram as primeiras civilizaes urbanas.

    1 Professora do Curso de Histria/ULBRA, Doutora em Histria pela Universit de Paris I Panthon Sorbonne.

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    Katia Maria Paim Pozzer

    Fig. 1 Mapa do Antigo Oriente Prximo

    No incio do IV milnio a.C., diferentes grupos populacionais ocupavam a regio: eram pastores do deserto, pescadores dos pntanos e agricultores das plancies. Eles formaram um ncleo de contato com os povos de reas montanhosas distantes, em busca de matriasprimas inexistentes no sul da regio. Iniciouse, assim, um processo de diferenciao social, onde um grupo conquistou o monoplio sobre a produo da riqueza daquela sociedade. Na Antiguidade, essa regio abrigou importantes culturas, como a sumria, a babilnica e a assria, ao longo de trs milnios. Sua estrutura poltica bsica foi a da cidadeestado, marcada pela pulverizao do poder, onde cada cidadeestado disputava a hegemonia poltica sobre uma regio.

    Em 3.500 a.C. surgem centros como Uruk, com uma instituio urbana fundamental, o templo, construdo no pice de uma pirmide monumental, chamada de zigurate, que expressava simbolicamente seu poder. Os templos foram responsveis pelo desenvolvimento de vrios aspectos da sociedade, como a escrita, o Estado, o sistema jurdico, a arte e a arquitetura, entre outros (Pozzer, 2003a: 61).

    O sul mesopotmico foi palco de inmeras disputas militares entre os vrios centros urbanos pela hegemonia poltica de territrios vizinhos por volta de 2800 a.C. O resultado dessas guerras transformou o desenvolvimento dessas cidades: as revoltas no interior do pas levaram a uma migrao significativa do campo para a cidade, fazendo com que a maioria da populao se tornasse urbana; macias fortificaes foram construdas para garantir a segurana destas cidades, definindo assim a diferena entre o espao urbano

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    Babel e a Representao do Sagrado na Cidade Antiga

    e o rural e restringindo o acesso s cidades atravs dos portes das muralhas.2 As necessidades de guerra exigiram um maior desenvolvimento da autoridade poltica e militar induzindo a criao da segunda principal instituio urbana: o palcio. As cidades mesopotmicas passaram, ento, a contar com dois centros de poder: um poltico e militar o palcio , e outro econmico e religioso o templo , um espao profano, outro sagrado.

    Fig. 2 Mapa do Sul Mesopotmico

    Uma histria da cidade de BabilniaBabilnia surgiu como um pequeno estabelecimento urbano, por volta

    de 3700 a.C., com o nome de Babil, e desenvolveuse ao longo das margens ocidentais do Eufrates. No final do III milnio a.C., Babilnia3 era uma cidade modesta, submetida terceira dinastia de Ur. No sculo XVIII a.C., a primeira dinastia de Babilnia dominou a regio e tornouse uma potncia, sob o comando de Hamurabi (17921750 a.C.). Mas a unidade poltica demonstrouse frgil ao longo dos sculos e, em 1595 a.C., a cidade foi tomada pelos hititas, povos do norte da Anatlia, atual Turquia, transformandose, ento, em uma cidade de menor importncia no cenrio poltico (Saggs, 1998: 11).

    A cidade sofreu sucessivas invases, destruies e reconstrues, mas 2 As portas das cidades eram o local de encontro entre o mundo civilizado urbano e o mundo

    selvagem da estepe.3 Babilnia formada pelas palavras Bbil, cuja traduo literal a porta dos deuses.

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    Katia Maria Paim Pozzer

    manteve sua supremacia cultural e religiosa atravs dos tempos, graas ao culto do deus Marduk,4 renovado anualmente, nas festas do Aktu.5 Marduk tornouse a divindade suprema do panteo mesopotmico (Huot, 1990: 234). No Poema da Criao Enma Eli, uma composio literria datada do reinado de Nabucodonosor I (11261105 a.C.), Marduk evocado como o deus supremo do Universo, aquele que fundou Babilnia e a tornou o centro de seu poder. Esse mito contribuiu para que a cidade se tornasse referncia e pudesse atribuir legitimidade poltica aos reis que ali se sucedessem (AndrSalvini, 1995: 2835).

    Sob a dinastia neobabilnica (625539 a.C.), a cidade tornouse a capital do mundo oriental e recebeu enormes riquezas arrecadadas com os tributos pagos pelos reinos conquistados, possibilitando a construo de obras monumentais como a muralha, os palcios e os templos, que tanto encantaram os viajantes antigos ( Joanns, 2001: 111115). Sob Nabucodonosor II (604562 a.C.), Babilnia tinha cerca de mil hectares de extenso e sua muralha, com oito portas, possua 18 km de comprimento e 30 m de largura.

    Fig. 3 Reconstruo do porto de Ishtar Gate em Ur (1901)

    O sistema religioso mesopotmicoOs mitos sublinham a origem divina das cidades e, ao mesmo tempo,

    relatam que suas realizaes foram obras dos reis e seus sditos, onde cada divindade do panteo possua sua residncia principal, sua cidade predileta. Uma

    4 Marduk o deusprotetor da cidade de Babilnia.5 Festa do Ano Novo, comemorado no solstcio da primavera no hemisfrio norte.

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    Babel e a Representao do Sagrado na Cidade Antiga

    das caractersticas desta sociedade era o politesmo, onde cada cidadeestado possua seu prprio panteo (Black; Green, 1998: 14).

    Esse complexo sistema religioso traduzia as representaes coletivas do sagrado daquela comunidade formada em uma tradio imemorial. O universo mesopotmico um mundo onde tudo sagrado. Podemos observar esse fenmeno a partir do estudo das lnguas faladas pelos antigos habitantes da regio entre rios, o sumrio e o acdico. Tomemos como exemplo o substantivo sumrio DINGIR e seu correspondente em acdico, ilum, pois nos permitem melhor compreender essa concepo do sagrado. Traduzse DINGIR por deus, substantivo comum, singular, masculino, mas, ao mesmo tempo, DINGIR usado como determinativo grfico, indicando o qualificativo divino, antecedendo o nome prprio da divindade, como em dama, dItar. Mas este sinal tambm significa AN, que tanto pode ser lido como cu ou como o deus AN, uma divindade suprema. Os deuses estariam assim destinados aos cus (Pozzer, 2008: 173187).

    Fig. 4 Evoluo Grfica do Cuneiforme para o Sinal AN6

    I Forma mais antiga do sinal (pictogrfica)II Forma do sinal em sumrio clssico

    A1 paleoassrio; A2 assrio mdio; A3 neoassrioB1 paleobabilnico; B2 babilnico mdio; B3 neobabilnico

    6 Reescrito e adaptado pela autora com base em Labat e MalbranLabat (1988).

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    Katia Maria Paim Pozzer

    As divindades possuam nomes, funes, estado civil, atributos especficos e estavam vinculadas a uma cidade onde exerciam seu poder e proteo. No mundo mesopotmico existiram tantos pantees quantas mitologias e cidades. As divindades estavam organizadas em uma sociedade hierarquizada, onde cada uma tinha seu campo de atuao, suas competncias, seus privilgios, seus saberes e poderes (Glassner, 2002: 183).

    A representao do sagrado na argilaO principal material utilizado nas construes no Antigo Oriente

    Prximo era a argila. O solo da Mesopotmia, com exceo de algumas jazidas de pedra ao norte e uma vasta regio de pntanos no extremo sul, quase que exclusivamente composto de uma espessa camada de argila, constituindose na mais importante matriaprima daquela civilizao (Walker, 1992: 261).

    A argila era um material de construo bastante verstil e poderia ser usada na fabricao de tijolos modelados mo ou moldado em uma forma de madeira. O tijolo era fabricado tradicionalmente no ms designado SIG, em sumrio, significando o tijolo e equivalente maiojunho, em nosso calendrio atual. Esse perodo de seca era posterior colheita e reunia as condies ideais para a fabricao do tijolo: a palha necessria sua confeco e tempo sem chuvas que favorecia a secagem. Depois de secos ao sol, tornavamse duros e poderiam ser usados com facilidade. Os tijolos de argila tambm podiam ser cozidos no forno (queimados) para se tornarem ainda mais resistentes e serem usados nas canalizaes de esgotos, nas vias pblicas ou em lugares expostos forte eroso (Gouyon, 2004: 3538).

    A construo mais significativa da arquitetura mesopotmica foi o edifcio conhecido como zigurate, o substantivo em acdico ziqquratu, o verbo zaqru, que significa construir prdio alto. Zigurate uma construo macia de tijolos crus, em forma de pirmide escalonada, em cujo topo era construdo um pequeno santurio

    Fig. 5 Zigurate de Ur

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    Babel e a Representao do Sagrado na Cidade Antiga

    O mais famoso de todos os zigurates o de Babilnia, .TEMEN.AN.KI, cuja traduo literal a casa da fundao do cu e da terra e foi o palco de um dos mitos fundantes da cultura ocidental, encontrado no Livro do Gnesis, captulo 11, versculos de 1 a 9 (A Bblia de Jerusalm):

    Todo o mundo se servia de uma mesma lngua e das mesmas palavras. Como os homens emigrassem para o oriente, encontraram um vale na terra de Senaar e a se estabeleceram. Disseram um ao outro: Vinde! Faamos tijolos e cozamolos ao fogo! O tijolo lhes serviu de pedra e o betume de argamassa. Disseram: Vinde! Construamos uma cidade e uma torre cujo pice penetre nos cus! Faamonos um nome e no sejamos dispersos sobre a terra! Ora, Iahweh desceu para ver a cidade e a torre que os homens tinham construdo. E Iahweh disse: Eis que todos constituem um s povo e falam uma s lngua. Isso o comeo de suas iniciativas! Agora, nenhum desgnio ser irrealizvel para eles. Vinde! Desamos! Confundamos a sua linguagem para que no mais se entendam uns aos outros. Iahweh os dispersou dali por toda a face da terra, e eles cessaram de construir a cidade. Deuselhe por isso o nome de Babel, pois foi l que Iahweh confundiu a linguagem de todos os habitantes da terra e foi l que ele os dispersou sobre toda a face da terra.

    A estrutura original da Torre de Babel foi construda por Hamurabi (17921750 a.C.), mais tarde destruda pelo rei assrio Senaqueribe, em 689 a.C., quando este conquistou Babilnia. Ela foi reconstruda por vrios reis, tendo sua restaurao finalizada por Nabucodonosor II (604562 a.C.), rei da dinastia caldia (Westenholz, 1995: 59).

    O zigurate de Babilnia tambm conhecido graas ao relato de Herdoto, que a descreveu como uma torre em oito andares, com uma escada externa em espiral, com bancos em cada andar para que aqueles que subiam se repousassem, com um grande templo no ltimo andar, aonde o deus em pessoa, segundo os sacerdotes caldeus, viria passar a noite com uma mulher escolhida por ele (Glassner, 2003: 171). A narrativa de Herdoto faz aluso aos rituais de hierogramia realizados durante as festividades de Aktu, onde o rei e a sacerdotisa principal, legtimos representantes dos deuses, teriam relaes sexuais dentro do templo localizado na Torre, e, assim, garantiriam prosperidade e fertilidade para todo o reino.

    Uma descrio mais precisa sobre a torre foi encontrada em um tablete de argila datado de 229 a.C. conhecido como o Tablete da Esagila que apresenta as dimenses do templo do deus Marduk e do zigurate de Babilnia (Lacambre, 1994: 70). Da Torre de Babel subsistem apenas suas fundaes construdas sob um plano quadrado de 91m de lado formando uma rea de 8.100m. O interior era de tijolos secos ao sol, enquanto as paredes externas eram de tijolos cozidos com 15m de espessura e teriam atingido uma altura de 90m. Estimase que seria necessrio cerca de 36 milhes de tijolos e trs mil homens trabalhando durante dois anos para sua construo (Pozzer, 2003b: 71).

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    Katia Maria Paim Pozzer

    Fig. 6 Tablete da Esagila

    Inferese que a Torre de Babel serviria a duas funes principais: uma de carter cientfico, outra, de cunho religioso. Os escribas realizavam observao astronmica diria e as registravam em tabletes de argila. Esses documentos atestam que os babilnicos j conheciam cinco planetas e dois satlites: Saturno, Jpiter, Marte, Vnus e Mercrio; e o Sol e a Lua (Roaf, 2000: 436). Mas eles tambm acreditavam que grande parte das divindades habitavam os cus, assim, os zigurates mais altos foram construdos para facilitar a descida dos deuses terra para que pudessem aliviar os males e os sofrimentos dos homens.

    Babilnia uma cidade emblemtica na tradio ocidental e sua torre deu lugar a inmeras representaes ao longo da histria. No Gnese bblico, Babel tornase o centro do mundo catico e da disperso. No final da Idade Mdia, as representaes da torre de Babel so marcadas por conflitos polticoreligiosos.

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    Babel e a Representao do Sagrado na Cidade Antiga

    J o Renascimento vai utilizar o mito para exaltar a conquista herica do Homem sobre a Natureza e reativar a cultura helenstica. Mas, a partir do sculo XIX, com as escavaes arqueolgicas, a arte passou a representar Babilnia com um certo rigor histrico e cientfico.

    Mas, afinal, como entender Babel? A simbologia csmica do pas entre rios dominada por uma viso bipolar do Universo: no alto o cu, embaixo a terra. Essas duas metades so habitadas por diferentes deuses: An, criador do cu e a, fundador da terra. No poema da criao, Enma Eli, dito que, quando os deuses subirem do Aps (as guas primordiais), haver um lugar de repouso para receblos e que, quando os deuses descerem do An (o cu), haver um lugar de repouso para receblos (Peinado, 1994). Esse lugar o templo no pice do zigurate. O zigurate tornase, pois, a ligao entre o cu e a terra, o lugar de encontro das duas metades do Universo.

    Todos os elementos de uma viso mtica do Universo esto reunidos na Torre de Babel, num nico sistema simblico: o templo e sua torre religando todas as partes, no centro do Universo, e o Homem, que, segundo a mitologia mesopotmica, surgiu para servir aos deuses, o colaborador desses poderes criadores divinos.

    Uma torre feita pelos homens com o desejo de, assim, se aproximarem do mundo divino, em uma cidade construda com a esperana de ali viverem uma vida sem males. Cidade habitada por muitos e sonhada por todos.

    BibliografiaAndrSalvini, B. (1995). Babylone. Les Dossiers dArchologie, Dijon, n. 202,

    2835.Bblia de Jerusalm, A. (1995). So Paulo: Paulus.Black, J.; Green, A. (1998). Gods, Demons and Symbols of Ancient Mesopotamia.

    London: British Museum Press.Glassner, JJ. (2002). La Msopotamie. Paris: Les Belles Lettres.Glassner, J.J. (2003). La Tour de Babylone. Paris: ditions du Seuil.Gouyon, J.B. (2004). La brique, llment de base. Les Cahiers de Science e Vie,

    Paris, n. 82, 1319.Huot, J.L.; Thalmann, J.P.; Valbelle, D. (1990). Naissance des cits. Paris:

    Nathan.Joanns, F. (ed.). (2001). Dictionnaire de la Civilisation Msopotamienne. Paris:

    ditions Robert Lafont.Labat, R.; MalbranLabat, F. (1988). Manuel dpigraphie Akkadienne. Paris:

    Geuthner.

  • 22

    Katia Maria Paim Pozzer

    Lacambre, D. (1994). La Tour de Babel et la recherche des cieux. Les Dossiers dArchologie. Dijon, n. 191, 6873.

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    Monumentalidade e Representaes do Poder Tirnico no Ocidente Grego

    monumentalidade e rePreSentaeS do Poder tirnico no ocidente grego

    Monumentality and Western Greeks Tyrannical Representations

    Elaine Farias Veloso Hirata1

    Resumo: Este texto tem por objetivo apresentar e discutir duas categorias de fontes que documentam as formas de representao do poder tirnico em fundaes gregas da Siclia, durante os scs. VI e V a. C. As evidncias materiais testemunham o uso da monumentalidade na construo de templos em pocas de governo tirnico e os epincios de Pndaro exaltam as vitrias destes governantes nas competies panhelnicas, constituindose, ambos, em instrumentos de propaganda e legitimao de uma forma de poder que j era objeto de crtica por pensadores da poca.

    Palavraschave: Arquitetura monumental, Siclia, Tirania e Pndaro.

    Abstract: The aim of this text is to present a picture of the two specific documental sources concerning tyrannical representations at the Sicilian Greek foundations during the VIV centuries B.C. The archaeological evidences witness the use of monumentality in the Sicilians construction of temples in times of tyrannical government and Pindars celebratory odes exalts the victories of those governors in PanHellenic competitions, which constituted, in both cases, propaganda instruments of a kind of power already criticized by contemporary thinkers.

    Keywords: Monumental architecture, Sicily, Tyranny, Pindars Odes

    Espao, sociedade e arqueologia As representaes do poder poltico em sociedades antigas e atuais so

    veiculadas por meio da palavra, escrita ou oral, da iconografia e tambm por um grande conjunto de objetos materiais. A arqueologia contempornea tem no recurso materialidade como forma de expresso de todo tipo de poder poltico, econmico, religioso uma de suas reas mais importantes de pesquisa. No caso do mundo antigo, a abordagem tradicional que via na arquitetura principalmente a originalidade e beleza da manifestao artstica cede lugar a anlises do componente ideolgico2 (Torelli, 2005: 89) que marca essas construes. O dispndio excepcional de recursos e de energia, transformada em trabalho por grandes contingentes de escravos, bem como a mobilizao de artesos altamente especializados e, por certo bem pagos, implicam uma forma de controle dessas atividades por um poder centralizador forte. , portanto, necessrio analisar as relaes entre projetos construtivos, formas de poder e ideologia para que a explanao

    1 Professora do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de So Paulo (MAE/USP). Email: ehirata@usp. br.

    2 Entendemos ideologia neste texto em uma perspectiva de anlise marxista.

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    arqueolgica tenha maior profundidade na anlise das formaes polticas do mundo antigo.

    Dentre os precursores de uma abordagem social do espao est Gordon Childe, que, j na dcada de 1950, escreveu: os homens gradualmente descobrem, por experimentao, como coisas e pessoas podem ser organizadas, definindo ento uma idia de espao. Ento isto deve encontrar um veculo simblico e ser expresso (1954: 76). Nessa perspectiva, o ambiente que nos cerca existe em funo de nossas aes e dos significados que imprimimos nele; tem, pois, a conotao de um espao existencial. J o espao arquitetnico, o ambiente construdo, nada mais do que a concretizao desse espao existencial.

    A relao espaosociedade hoje um tema prioritrio na pesquisa arqueolgica e vem sendo abordado por estudiosos de vrias correntes tericas. Dentre os de vertentes psprocessualistas, destacaremos aqui aqueles que identificam no chamado espao construdo uma via de comunicao entre grupos sociais hegemnicos ou poderes institucionalizados e os demais grupos de indivduos integrantes de uma sociedade. Pearson e Richards (1994) observam na forma e disposio das estruturas arquitetnicas na paisagem a manifestao visual da ideologia que d suporte a relaes sociais assimtricas, tpicas de sociedades rigidamente hierarquizadas. Para esses autores, portanto, a relao entre ocupao do espao e expresso de poder uma via de acesso privilegiada para o estudo da estruturao social e poltica de uma sociedade.

    Assim, na busca do entendimento das interaes entre espao, sociedade, relaes de poder, o arquelogo Bruce Trigger (1990) defende o pressuposto de que, nas construes monumentais, ou seja, naquelas que excedem tanto em escala quanto em qualidade de construo as necessidades funcionais de um edifcio, atestase o chamado consumo conspcuo, um comportamento que integra as estratgias de afirmao do poder em sociedades estratificadas. Para o autor, nas sociedades humanas, o controle de energia constitui a mais fundamental e universalmente reconhecida medida de controle de poder, e da decorre que o mais bsico meio pelo qual o poder pode ser simbolicamente reforado atravs do consumo conspcuo de energia (1990: 128).3 A arquitetura monumental uma forma de alta visibilidade e durabilidade a comunicar esse consumo extraordinrio, associandoo a um governante ou a uma camada hegemnica detentora do poder. Impe uma mensagem claramente inteligvel que sinaliza materialmente para a eternidade e imutabilidade de uma ordem social e, ao negar a possibilidade da mudana, responde ao temor e ansiedade pela passagem do tempo. As obras monumentais podem efetivamente mascarar o arbtrio com que o poder exercido clamando por representar a vontade e pensamento coletivos. So edificaes que testemunham como esses detentores do poder conseguem

    3 Para Trigger, o consumo conspcuo amplia uma perspectiva materialista do comportamento humano ao incorporar vrios aspectos significantes dos componentes ideacionais deste comportamento que aparecem no registro arqueolgico (1990: 132).

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    dispor de habilidosos artesos, uma grande monta de recursos materiais e massivas quantidades de trabalho para realizar essas obras. O princpio do consumo conspcuo seria, pois, a contrapartida oposta a outro comportamento muito observado nas sociedades humanas, o princpio do menor esforo, ou seja, o recurso a um gasto maior de energia no tempo curto para reduzir o dispndio da energia no tempo longo.

    Os templos siciliotas e ideologia tirnica A seguir, buscaremos analisar a presena de construes monumentais

    na Siclia grega sob a tica proposta por Trigger, relacionando esses projetos construtivos aos objetivos propagandsticoideolgicos dos governos tirnicos de duas plis: Siracusa e Agrigento. Entendemos aqui o conceito ideologia como definido por Knapp, ou seja, no s uma reflexo epifenomnica sobre a base polticoeconmica de uma sociedade, mas como mais um meio pelo qual grupos mantm, resistem ou mudam ativamente seu poder relativo dentro da sociedade (1988: 132, grifo nosso). Decorre da que ideologia e poder esto em contnua e ntima interao e, para que os grupos hegemnicos continuem exercendo seu domnio sobre os demais, a ideologia reiterada por meio de estratgias e smbolos que usam suportes variados e, dentre eles, os materiais que podem ser acessados pela anlise dos arquelogos. Para Knapp, certos artefatos, como as construes monumentais, como correlatos materiais da ideologia, constituemse em vestgios tangveis de um aparato ideolgico centralizado (Knapp, 1996: 16).

    Assim, na Siclia (figura 1, a seguir), rea onde os gregos fundaram plis a partir do sculo VIII a.C., constatase, entre os sculos VI e V, a introduo de projetos construtivos de escala monumental: os templos. Tais edifcios, muito maiores do que os da Grcia Balcnica, esto localizados em reas dominadas, ao momento da construo, por governos tirnicos, como o caso de Siracusa e Agrigento. Desde o final do sculo XIX, esses stios foram documentados por trabalhos arqueolgicos e, ainda hoje, so estudados tanto com vistas ao conhecimento mais aprofundado da arquitetura antiga, mas, sobretudo, com o intuito de melhor inserilos no processo histrico que se desenrolou na ilha. Ao lado dos dados oriundos das escavaes, temos, dentre as fontes escritas, especialmente Diodoro Sculo (I a.C.) que, ao relatar episdios protagonizados pelos tiranos siciliotas, faz muitas referncias a seus projetos construtivos, fornecendo, em certos casos, descries detalhadas dos trabalhos.4

    4 Por ex., Diodoro (XI. 25. 25), a propsito da construo, pelo tirano Teron de Agrigento, do Olimpiion e da Kolymbreta nessa plis.

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    Fig. 1 Localizao da Siclia

    A poesia lrica e o poder polticoA poesia lrica, especialmente os epincios,5 que eram as odes cantadas

    e danadas por um coro de homens ou meninos em honra de um vitorioso nos Jogos PanHelnicos, nos fornecem dados importantes sobre uma das principais formas utilizadas pelos tiranos para divulgar seus projetos polticos e promover sua imagem: a participao nessas competies que eram presenciadas e disputadas por cidados de todo o mundo grego (Hirata, 19967: 61). Constituem tambm uma estratgia de autorepresentao dos tiranos que envolve a sua aproximao com a figura arquetpica do vencedorheri, que traz prestgio plis de origem.6 Sabese que os Jogos PanHelnicos configuravamse em espaos de alta visibilidade onde os Estados integrantes da comunidade helnica representados por seus atletas competiam vigorosamente em busca da glria e da consagrao frente a uma audincia de grande representatividade. Os tiranos da Siclia usaram tais arenas como espaos privilegiados para disputar a admirao, o respeito e conseguir a legitimao de seu poder frente comunidade grega. A performance do epincio na plis, no momento do retorno do vitorioso, significa tambm a incorporao, pela comunidade, da glria do atleta que, ao se estender a todos, reafirmava os laos

    5 Segundo Nagy (1990: 142), o termo grego epinkion, epincio, significa literalmente alguma coisa como o que em compensao pela vitria [nik]; o epincio era composto de grupos de trs estrofes (trades) e tinha tambm trs partes: o relato da vitria, desenvolvimento mtico do assunto e por fim o elogio do vencedor e as exortaes morais.

    6 Nagy (1990: 1423) interpreta as competies panhelnicas como um programa ritual em honra de um heri que tem na apresentao do epincio o seu estgio final.

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    entre ele e a sua plis (Mc Glew, 1993: 37). Em comemorao s suas vitrias, em geral conseguidas nas modalidades de maior prestgio, como a corrida de carros, os tiranos siciliotas, como Teron de Agrigento e Hieron de Siracusa7 comissionavam epincios a poetas como Pndaro e Baqulides.

    A Siclia, vale lembrar, era clebre, j na antiguidade, pela grande quantidade de tiranos que se sucediam praticamente em todas as plis, e, em certos casos, como Agrigento, tomavam o poder pouco tempo aps a fundao.8 As pesquisas mais recentes sobre esse fenmeno tentam ultrapassar a tradicional e veemente condenao que os pensadores atenienses do perodo clssico construram sobre os tiranos e que permaneceu no pensamento poltico ocidental.9 Na contramo da maioria dos autores modernos, Sian Lewis (2006) questiona se a permanncia de governos tirnicos em vrias reas do Mediterrneo bem como a sua aprovao por contingentes expressivos da populao, como o caso da aclamao popular de Hieron de Siracusa (Diodoro 11. 26. 56; 67. 2. 3), no seriam indicativos relevantes no sentido desse tipo de governo ter vantagens a oferecer, em determinadas circunstncias. No caso da Siclia, constatase uma instabilidade polticosocial endmica gerada pelos conflitos que os gregos enfrentavam em vrias frentes: de um lado a competio entre as prprias plis pelo domnio territorial e outras tantas rivalidades trazidas das reas de origem ou iniciadas ali; a disputa com as populaes nativas que foram sendo progressivamente deslocadas para o interior diante da expanso das plis gregas; finalmente a constante ameaa das cidades pnicas que ocupavam a poro ocidental da ilha. Diante desse precrio equilbrio de foras, o poder centralizador de um tirano, aliado a uma capacidade de organizar reaes efetivas diante do perigo externo, talvez tivessem sido elementos favorveis na avaliao dos governados.

    Monumentalidade e expresso do poderA tirania na Siclia apresenta algumas particularidades que a tornaram uma

    experincia original10 no mundo grego e um dos pontos que merece destaque a postura imperialista dos seus principais tiranos que, ao assumirem o poder, logo desencadeiam uma poltica externa agressiva, tentando o domnio das plis vizinhas utilizando, inclusive, contingentes mercenrios. Essa caracterstica perceptvel mais claramente a partir, aproximadamente, dos anos 498 e 491,11

    7 Sobre os tiranos siciliotas h vrias publicaes, mas o estudo mais detalhado e com abordagens inovadoras de N. Luraghi (1994).

    8 Agrigento teria sido fundada em 580 e j entre os anos 572 e 556 o tirano Flaris seria documentado na histria da plis (Braccesi, 1998: 5).

    9 Para N. Bignotto (1998: 13), A tirania, assim como a democracia uma inveno grega; inveno cuja radicalidade e originalidade afetaram de maneira significativa a histria poltica do Ocidente.

    10 Luraghi (1994: 377) interpreta a tirania siciliota em analogia com a que se estabeleceu na sia Menor: Polcrates de Samos tambm implementou uma poltica externa agressiva e usou tropas mercenrias como seus pares da Siclia.

    11 As fontes so controversas quanto data de incio da tirania em Gela. Para esta discusso, ver Luraghi (1994: 119, n. 1).

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    com Hipcrates de Gela (Herdoto 7. 154. 1 e 7. 155. 1; Braccesi,1998: 22; Luraghi, 1994: 119 e ss.) que, ao morrer, sucedido no por um de seus dois filhos, mas por Gelon, eficiente comandante militar que d incio a um longo perodo de tirania conduzido pela famlia Deinomnida.12 Gelon domina Siracusa e a torna o centro de um imprio que, no seu pice, chega a abranger boa parte das fundaes gregas.

    Gelon tornase o primeiro tirano siciliota a participar de uma competio panhelnica: em 488 vence a corrida de quadriga nos Jogos Olmpicos, o que certamente foi capitalizado para legitimar seu acesso ao poder, realizado, na verdade, em prejuzo dos herdeiros naturais de Hipcrates (Luraghi, 1994: 2401; Van Compernolle, 1959: 316).

    Em busca de aprovao ao seu governo, Gelon promover uma remodelao urbanstica de Siracusa processo que foi qualificado por alguns autores como a refundao de Siracusa. Para Luraghi (1994: 288), De fato, a refundao geloniana de Siracusa se apresenta como o nico caso em que um tirano, alm de impor o seu prprio poder a uma cidade, constri, ele mesmo, a cidade que dominar.

    Herdoto (7. 158) descreve essa ao de Gelon destacando o uso da transferncia compulsria13 de populaes das cidades dominadas (Demand, 1999; Vattuone, 1994) para Siracusa14 como estratgia que, de um lado, amplia sobremaneira o nmero de habitantes, criando uma megalpolis, mas, ao mesmo tempo, suscitando, no futuro, a emergncia de focos de tenso social. A magnitude desses deslocamentos compulsrios de populao pode ser observada nos dados a seguir: aps se instalar em Siracusa, Gelon transfere para l, a uma distncia de 140 km, metade da populao de Gela (Herdoto, 7. 156) que, naquele momento, podia ser considerada, ao lado de Agrigento, como uma cidade rica da Siclia (Demand, 1999: 47); a seguir arrasa a plis de Camarina, que se havia rebelado contra o tirano imposto por ele, e tambm realoca a populao sobrevivente em Siracusa (Herdoto, 7. 156), distante 110 km de Camarina, escravizandoos. Nessa mesma passagem, Herdoto relata que, em Mgara Hiblia, situada a 24 km de Siracusa, Gelon promoveu tambm o deslocamento populacional, mas optando por conceder cidadania aos ricos que haviam liderado uma rebelio e escravizando os pobres, ou

    12 Gelon assume o poder em Gela por volta de 49190 e permanece na cidade at c. 4854, quando instalase em Siracusa e a permanece at a morte, em 47877; Hieron, seu irmo e por ele indicado a sucedlo, governa at 46766.

    13 O termo grego metoikesis, originalmente usado para mudana individual, aparece em alguns autores antigos referindose s cidades: Diodoro Sculo 14. 36. 4, a respeito de Magnsia; Diodoro Sculo 15. 76. 2; Estrabo 14. 2. 19, sobre Cs e Diodoro Sculo 13. 75. 1, sobre Rodes (apud Demand, 1990: 9).

    14 Senhor de Siracusa, Gelon passou a dar menos importncia a Gela, confiando o governo desta a seu irmo Hieron e reservando para si o de Siracusa, que tinha em maior conta. Siracusa desenvolveuse rapidamente, tornandose uma das mais florescentes cidades da regio. Gelon para ali transferiu todos os habitantes de Camarina, flos cidados siracusanos e destruiu sua primitiva cidade. Agiu da mesma maneira em relao maioria dos gelanos. Em seguida, cercou os megarinos da Siclia, obrigandoos a renderse.

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    seja, ampliando seus recursos em fora de trabalho e fora blica. Acreditamos que essas transferncias compulsrias de populaes possam

    ser includas no fenmeno do consumo conspcuo, pois, na essncia, mobilizam e transferem enormes contingentes de fora de trabalho que, eventualmente so utilizados em projetos construtivos na plis tirnica ou ento se transformam no exemplo vivo do poder do governante diante das plis vizinhas. Em ambos os casos, a figura do tirano aparece, aos seus subordinados, como o poder forte que d segurana aos seus cidados e projeta o nome da cidade.

    Tendo sua posio consolidada em Siracusa, Gelon retoma, por volta de 480, com maior empenho, a guerra contra os cartagineses, j em curso desde o incio de seu governo. Demand (1999: 45) assim associa dos dois movimentos polticos de Gelon de Siracusa: os tiranos Deinomnidas da Siclia usaram uma forma de metoikesis sinecismo fsico para criar instrumentos de poder formidveis que os capacitaram a enfrentar a ameaa cartaginesa e, ao mesmo tempo, criar uma base de poder para o seu prprio governo.

    Neste limiar do VI para o V sculo, alm de Siracusa, outras plis siciliotas, como Agrigento, encontravamse em uma fase de crescimento econmico e consolidao do processo de instalao na nova terra. Na esfera poltica, Agrigento tambm convivia com governos tirnicos desde os primeiros tempos de fundao, como vimos anteriormente, e, nesse momento, tinha Teron, da famlia dos Emnidas no poder. Assim, diante de uma nova investida da armada cartaginesa que, sob o comando de Amilcar, tenta apossarse de Himera, no momento sob o domnio de Teron de Agrigento, Gelon se alia ao tirano agrigentino15 no comando da reao grega ante o perigo pnico.

    Herdoto (7. 1657) relata a clebre batalha de Himera (480 a.C.) vencida pela aliana dos tiranos Teron e Hieron, aproximandoa da vitria grega ante os brbaros do Oriente: acrescentam os Siclianos que, no dia em que os gregos bateram as foras persas em Salamina, Gelon e Teron desafiaram Amlcar na Siclia.

    Diodoro Sculo (11. 2027) apresenta uma descrio mais detalhada do combate, informandonos que, aps o desembarque da frota de Amlcar em Panormo, dirigiramse os cartagineses e seus aliados para Himera, onde Teron, amedrontado, teria pedido socorro ao tirano siracusano. Gelon, j de sobreaviso, teria, com presteza, vindo em apoio dos agrigentinos e, mais que isso, tornarase o protagonista da contenda, ao impor aos inimigos a derrota, atravs de tticas blicas hbeis e de grande eficcia. Diodoro finaliza sua verso dos acontecimentos relatando o glorioso regresso de Gelon Siracusa, onde foi aclamado pelo povo com benfeitor e salvador, euerghtes e ster. O

    15 Uma caracterstica importante nessas alianas entre famlias de tiranos siciliotas o uso dos casamentos como forma de consolidao do poder: Gelon se casa com uma filha de Teron; depois da morte de Gelon, seu irmo Polizalos casase com ela; Hieron, outro irmo de Gelon se casa com a neta de Teron e Teron casase com a filha de Polizalos. Assim, no incio do sc. V, os principais poderes tirnicos da Siclia se encontram harmonizados por meio de alianas matrimoniais que tambm estabelecem relaes de dependncia entre os chefes. A respeito dessa questo e seus desdobramentos na histria poltica da ilha, ver o importante artigo de Louis Gernet (1968: 299312).

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    enaltecimento das figuras dos tiranos e, em especial, dos Deinomnidas um trao marcante nos textos de Diodoro Sculo, que reafirma o apreo do demos por Gelon relatando que, aps a morte do tirano, os siracusanos teriam construdo uma tumba monumental para ele e sua esposa Demarete (Diodoro 11. 38; 14. 63).

    Diodoro (11. 26. 2), vale lembrar, constituise na fonte mais completa sobre esses acontecimentos e no seu texto que encontramos a meno s condies que os vencedores impuseram aos cartagineses derrotados: o pagamento de uma indenizao pequena, dois mil talentos de prata e arcar com os custos da construo de dois templos onde seriam depositadas cpias do tratado de paz. No h informao no texto sobre os locais onde tais templos deveriam ser erigidos, mas, hoje, acreditase que seriam Siracusa e Himera. A grande similaridade dos princpios construtivos dos templos dedicados a Atena em Himera, o chamado Templo da Vitria (figura 2) e do Athenaion (figura 3) localizado em Ortgia, Siracusa, levou sua identificao com aqueles mencionados por Diodoro. Os arquelogos os consideram, do ponto de vista arquitetnico, templos gmeos, o que indicaria, inclusive, a contemporaneidade da construo, conduzida, talvez, at por um mesmo arquiteto (cf. Mertens, 2006: 256, figs. 464 e 465).

    Fig. 2 Templo da Vitria, em Himera

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    Fig. 3 Athenaion de Siracusa, atual Duomo da cidade

    A localizao de cada um emblemtica: o Templo da Vitria, de Himera, foi erigido possivelmente nas proximidades ou no prprio campo de batalha, e o Athenaion, na rea central de Ortgia, que se constitui na rea onde esto os vestgios dos primeiros assentamentos humanos de Siracusa. Nessa rea, a chamada Piazza del Duomo, escavada j nos primeiros decnios do sculo XX, pelo clebre arquelogo italiano Paolo Orsi, (Voza, 1999: 89; figs. 14) foram recuperadas, entre 1996 e 1998, pelos novos trabalhos arqueolgicos, as fundaes do mais antigo edifcio de carter sagrado o okos implantado no espao que constitui o corao da cidade grega, da medieval e sobretudo, da barroca (Voza, 1999: 7; fig. 9).

    O famoso Athenaion, construdo em 480 a.C., ainda hoje visvel, pois sucessivamente foi transformado em igreja crist e depois na catedral o Duomo de Siracusa.

    Bem, um templo localizase perto da cena da batalha, o outro na rea sagrada central da cidade governada pelo principal comandante da vitria, mas, e quanto a Agrigento? Diodoro (XI. 25. 14) novamente a fonte que descreve que, aos agrigentinos, coube a maior parte dos prisioneiros de guerra, disponibilizados por Gelon para que Teron pudesse embelezar a sua cidade (Mertens, 2006: 260, fig. 466, 468 e 469). E de fato, os vestgios de um templo excepcionalmente grande so datados de poucos anos aps a vitria de Himera. Dedicado a Zeus Olmpico, tratase de um Olimpiion16 (ver figura 4). A excepcionalidade do Olimpiion de Agrigento resulta, em primeiro lugar, de suas dimenses: 56,30 x 112,60/70m; perstasis com 7 x 14 semicolunas/pilastras e naos com vigorosas pilastras quadradas; as colunas possivelmente

    16 Diodoro (XIII. 82. 2), em sua posio favorvel aos Dinomnidas, descreve em detalhes o edifcio.

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    teriam medidas entre 19,20 e 21,57m de altura. (ver figuras 5, 6 e 7). Muito significativo tambm o tamanho gigantesco do altar, colocado a cerca de 50m a leste da entrada do templo e medindo 54 x 15.70m.17 Entre o templo e o altar desenhavase uma rea quadrada e ampla que poderia funcionar como uma espcie de esplanada utilizada pelos fiis quando ocorriam as festividades e sacrifcios em honra de Zeus Olmpio.

    Fig. 4 Altar do Olimpiion de Agrigento

    Fig. 5 Olimpiion de Agrigento

    17 Mertens (2006: 265) acredita que esse altar tenha sido o mais imponente do Ocidente at a construo do altar de Hieron II em Siracusa.

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    Fig. 6 Plano de Olimpiion de Agrigento

    Fig.7 Olimpiion de Agrigento

    A notcia de Diodoro que d conta da utilizao de grande nmero de prisioneiros cartagineses para a construo dos templos e principalmente daquele erigido de Agrigento corroborada por um dos primeiros estudos dessa construo, ainda no sculo XIX. Tratase da obra de R. Koldewey e O. Puchstein, Die griechischen Tempel in Unteritalien und Sicilien (1899), da qual Mertens reproduz o seguinte texto:

    Podese dizer que a sua planta inteira foi calculada de sorte a ser realizada no menor tempo possvel por uma imensa quantidade de operrios; da sua monumentalidade e o emprego de muitssimas pedras e destes dois fatores resultam a implantao pseudodptera, a linha de pilastras no interior e, enfim a ornamentao com atlantes (Koldewey; Puchstein, 1899: 165, apud Mertens, 2006: 261).

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    Mertens (2006: 265) conclui que, depois de feitas as observaes relativas ao projeto, a cada uma das formas, s suas relaes, tcnica construtiva e organizao, o templo poderia ter sido iniciado logo aps 480, com a utilizao dos meios e dos homens disponibilizados devido a vitria de Himera, para ser construdo em brevssimo tempo.

    Novamente aqui, o princpio do consumo conspcuo aparece claramente configurado: o tirano aparece aos seus governados como a figura forte e poderosa que tem sob seu domnio o trabalho de muitos homens e os recursos materiais para construir um edifcio de escala monumental que tornarse um emblema da plis agrigentina frente s demais plis siciliotas.

    A realizao sistemtica dos rituais de sacrifcio no altar monumental que poderia comportar a presena macia dos agrigentinos com certeza propiciaria a Teron novas oportunidades de reiterar seu poder frente aos cidados de sua plis.

    O princpio do consumo conspcuo tambm poder ser observado na oferenda de dons valiosos que os tiranos siciliotas faziam aos santurios panhelnicos especialmente Delfos e Olmpia. Nesse caso, o objetivo seria a afirmao do poder dos governantes e suas plis diante da audincia da Grcia balcnica e, ao mesmo tempo, reafirmar o pertencimento ao mundo grego. A vitria de Himera, inclusive, foi aproximada da vitria dos gregos ante os persas em Salamina reiteradas vezes. De um lado, propagandeavase a coincidncia das datas: em um mesmo dia, teria sido rechaado o perigo brbaro que ameaava as fronteiras do mundo grego no Oriente e no Ocidente. Gelon e Teron igualavamse aos comandantes gregos na vitria que preservava a integridade dos valores gregos nos dois lados do Mediterrneo.

    Alm dos templos monumentais erigidos na Siclia para comemorar a derrota dos cartagineses em Himera, Gelon e seu irmo Hieron se fizeram presentes, com grande destaque, no santurio panhelnico de Delfos, com a oferenda de um monumento valioso, composto de dois grandes trpodes de ouro, assentados em uma base em forma de campnula com uma inscrio epigrfica celebrando a vitria (Mertens, 2006: figura 463). O ex voto foi estrategicamente localizado em frente ao Templo de Apolo, a ser observado por todos que visitavam o famoso santurio. Os Deinomnidas buscam, assim, aproximar sua imagem da de Apolo, o Arquegueta, o Fundador, que foi o grande protetor das fundaes gregas no Mediterrneo e a quem, como indicam as fontes, era obrigatrio a consulta antes da partida para as novas terras.

    Os siracusanos tambm buscam registrar sua vitria no santurio panhelnico de Olmpia. Recolheram e dedicaram os objetos de tcnica mais sofisticada, preservados do butim cartagins e, para armazenlos, fizeram construir um thesauros, que Pausnias descreve, de forma equivocada, como cartagins (figura 8).

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    Monumentalidade e Representaes do Poder Tirnico no Ocidente Grego

    Fig. 8 Olmpia

    O impacto que tais monumentos causavam, ao testemunharem de forma concreta o poderio destes tiranos, deve ser avaliado levandose em conta que os santurios panhelnicos eram o cenrio mais importante onde as plis gregas se apresentavam e competiam pelo reconhecimento de suas realizaes esportivas, mas, tambm, e principalmente, de seus xitos polticos e econmicos.

    Discursos do poder: PndaroAo lado da construo de edifcios sagrados monumentais os testemunhos

    diretos do consumo conspcuo como estratgia de representao de poder os tiranos, como afirmamos inicialmente, se projetavam frente ao mundo grego competindo nos jogos panhelnicos, e, de preferncia, na modalidade mais valorizada: a corrida de carros, que era associada aos valores aristocrticos e hericos. Veremos agora, como essas vitrias eram amplificadas para a audincia siciliota e da Grcia Balcnica por meio dos epincios compostos, por encomenda, por poetas lricos como Pndaro18 e Baqulides. Gelon no fez uso desse recurso que, por outro lado, foi amplamente instrumentalizado por seu irmo Hieron e Teron de Agrigento.

    18 Sobre Pndaro, ver Ensaios sobre Pndaro, de F. Loureno (2006), e sua ampla bibliografia. Dentre os escritos de Pndaro, podemos citar: Olmpica 1 dedicada a Hieron I, celebrando a vitria de seu cavalo Fernicos (de Phernikos, Portador da Vitria), em 476; Olmpica 2 dedicada a Teron, por sua vitria tambm em 476 na corrida de carros; Olmpica 3 dedicada igualmente a Teron, pela mesma vitria anterior. Na Olmpica 6, dedicada a Agesias de Siracusa, vencedor da corrida de mulas, Pndaro volta a exaltar, nos vs. 936, Siracusa e Ortgia como a terra do sbio Hieron. Esses versos foram encontrados inscritos em um antigo tijolo, em Siracusa. Tambm as Pticas 1, pela vitria em corrida de cavalos, em 470, 2, a Hieron em 477, vencedor da corrida de carros, e 3, tambm dedicada a Hieron na mesma data.

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    Baqulides comps as odes 3, 4 e 5 para Hieron que tambm foi homenageado por Pndaro nas Olmpica 1 e Pticas 1, 2 e 3. Para Teron, Pndaro escreveu as Olmpicas 2 e 3 (Mc Glew, 1993: 35 e nota 1).

    O epincio era um poema de louvor cujo principal objetivo era situar aquele que o encomendara no centro de uma audincia que seria levada, pelo poeta, a admirlo com entusiasmo. A vitria em uma competio olmpica era o mote utilizado pelo autor para associar o vencedor ao universo dos homens excepcionais, capazes de proezas tais que s poderiam vir dos deuses. Na Ptica 1 (41 45), Pndaro afirma que Todas as formas de virtudes humanas vm dos deuses (Mc Glew, 1993: 36, nota 46) e assim a vitria atltica no concebida como o resultado de uma preparao fsica rigorosa, pela habilidade do condutor de carros e, sim, como prmio dos deuses a quem o merea por seu nascimento ilustre, pela sua piedade ou por suas boas realizaes. Desta feita, a vitria era uma ddiva divina:

    Isto tambm ajuda a explicar a habilidade do poeta da vitria em louvar os vitoriosos que eram s marginalmente responsveis por suas vitrias. Entre tais vitoriosos estavam os tiranos que competiam em corridas de carros em Olmpia e Delfos e colecionavam prmios sem conduzir suas prprias parelhas de cavalos e ainda em alguns casos sem deixar suas casas para testemunhar suas vitrias (Mc Glew, 1993: 36).

    O recurso ao epincio se alinha, pois, como estratgia de representao e legitimao do poder tirnico, ao lado do consumo conspcuo. A mesma audincia, a quem o poeta indica a conexo entre a vitria conquistada e o mundo dos deuses e dos heris, colocada diante da imagem do templo monumental como a construo magnfica de um homem excepcional o tirano. Para Leslie Kurke (apud Mc Glew, 1993: 37), o epincio era um instrumento finamente calibrado para registrar e acomodar o status particular do vitorioso dentro de sua comunidade, mas Mc Glew amplia essa perspectiva de anlise destacando a habilidade do poema em justificar e afirmar as aspiraes daquele que o encomendou (Mc Glew, 1993: nota 48). Tratase, enfim, de estreitar os laos entre o poder poltico e a comunidade por meio de instrumentos de comunicao que se valem de variados suportes.

    Em sntese, podemos concluir que os tiranos nas reas ditas coloniais instituram sistemas de representao e legitimao de seu poder poltico usando, de um lado, o cenrio de suas plis. Inscreveram, no espao pblico, edificaes sagradas os templos monumentais que funcionaram como claros e duradouros marcos ideolgicos, vetores da imbricao entre a religio e a poltica to caracterstica do mundo helnico. Nessa perspectiva objetivaram a comunicao com o pblico local, mais prximo, os seus governados e as plis siciliotas vizinhas com que viviam em clara competio desde as primeiras fases de implantao dos assentamentos. Esse contingente mais prximo inclua tambm as populaes nativas que, em muitos casos, haviam sido afastadas de seus espaos originais.

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    Monumentalidade e Representaes do Poder Tirnico no Ocidente Grego

    A busca de legitimao voltouse concomitantemente para o mundo grego, com os tiranos participando das competies atlticas panhelnicas e comissionando epincios, cuja audincia inclua os cidados das plis por eles governadas e as demais plis do mundo grego.

    Voltando questo da monumentalidade, podemos concluir com o que talvez seja o exemplo maior na manifestao do consumo conspcuo entre os tiranos siciliotas. O irmo de Gelon de Siracusa, Hieron, no satisfeito em criar monumentos, fundou uma nova cidade Etna, onde anteriormente estava implantada Catnia (Diodoro Sculo, 11. 49. 13). Tornouse, ento, um verdadeiro oikista e a atingiu o objetivo que provavelmente todos os demais perseguiram: foi sepultado na gora da nova plis e, de acordo com Diodoro (XI, 66, 167) recebeu as honras devidas a um heri.

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    A Origem da Plis: os Caminhos da Arqueologia

    a origem da PliS: oS caminhoS da arqueologiaArchaeology and the Origins of the Greek Polis

    Maria Beatriz Borba Florenzano1

    No quero argumentar que os objetos materiais necessariamente implicam em instituies; como disse Alceu, no so as casas ou as paredes mas sim os homens que fazem uma cidade; mas h algumas instituies que pressupem alguns traos fsicos, e as instituies por si prprias so, afinal de contas, difceis de ter seus contornos definidos.

    A. Snodgrass (2006: 203)

    Resumo: Ao reconhecermos que a definio de plis2 inclui necessariamente aspectos materiais tanto quanto aspectos institucionais, tornase relevante compreender as formas de interao entre esses tipos de realidade. Nossa inteno neste breve artigo apresentar um roteiro de alguns dos elementos materiais que emolduram o cenrio do aparecimento da plis na Grcia do sculo VIII a.C. Por outro lado, procuraremos mostrar que esse cenrio no apenas uma moldura esttica, mas trabalha no sentido de consolidar a integrao do grupo, de criar e reforar identidades. Mostraremos como elementos materiais que mais tarde foram reconhecidos como indispensveis na caracterizao da cidade grega, tais como o templo e o heron, estiveram presentes j nos primeiros momentos da plis, agindo na configurao institucional do que hoje chamamos de cidade grega antiga. O contedo desta comunicao inserese no conjunto de pesquisas do Laboratrio de Estudos sobre a Cidade Antiga Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de So Paulo (Labeca/MAE/USP).

    Palavraschave: cidade antiga, plis, arqueologia, Grcia.

    Abstract: The main goal of this article is to present some of the ways Archaeology can contribute to the knowledge of the emergence of Greek pleis. Following a concept of the Greek polis which includes not only an institutional reality but a physical one as well, we try to present concisely the results of researches that have been going on for the last three decades concerning the monumentalization of temples, the installation of heroa, and the orthogonal planning in new apoikiai.

    Keywords: the Ancient City, polis, Archaeology, Greece.

    1 Professora Titular de Arqueologia Clssica, Coordenadora Geral do Laboratrio de Estudos Sobre a Cidade Antiga/Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de So Paulo (Labeca/MAE/USP).

    2 Para a normatizao das palavras gregas em portugus seguimos o Glossrio elaborado pelo Laboratrio de Estudos Sobre a Cidade Antiga. Disponvel em pdf no site www.mae.usp.br/labeca, aba glossrio. No caso de palavras j dicionarizadas, utilizamos a forma de acordo com o que consta no Grande Dicionrio Houaiss da Lngua Portuguesa (2008).

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    Maria Beatriz Borba Florenzano

    A origem da plis: quando?A realidade que conhecemos to bem por documentos escritos antigos

    dos sculos V e IV a.C.,3 e que emoldurou a vida social e poltica da Grcia a plis teve suas bases lanadas muito antes dessa poca, em torno dos sculos IXVIII, quando a literalidade apenas se fixava nessa regio. Na verdade, os primeiros textos escritos com o alfabeto grego, como os de Homero e os de Hesodo, no se referem explicitamente plis. Portanto, nosso conhecimento sobre o aparecimento dessa formao sociopoltica depende em grande medida da Arqueologia e dos documentos materiais contemporneos aos acontecimentos e descobertos pelas pesquisas arqueolgicas. essa disciplina que pode nos elucidar um pouco a mais a respeito do processo de nascimento da plis. E as pesquisas arqueolgicas mostraram e continuam a mostrar que foi nos anos setecentos que apareceram os primeiros sinais mais claros do surgimento de um tipo de organizao social, poltica e material que passou a ser chamada pelos gregos antigos de plis.

    Pelo fato de ser a Arqueologia uma disciplina que lida com os documentos materiais, no temos como fugir de um conceito de plis que inclua aspectos materiais, fsicos, concretos dessa realidade passada. O que ocorreu no sculo VIII na Grcia, em termos de mudanas sociais, polticas e econmicas, envolveu uma materialidade difcil de ser ignorada se quisermos compreender esse mundo helnico. como nos diz o grande arquelogo ingls, Anthony Snodgrass:

    Os desenvolvimentos excepcionais do sculo VIII na Grcia verdade parecem estar centrados em torno de uma idia abstrata: a nova concepo de Estado. Mas, os avanos materiais e tcnicos associados a essa idia logo desenvolveram um momentum prprio. difcil decidir se algum deles deveria ser tratado como avano independente e necessrio sem o qual os outros teriam sido suficientes. (Snodgrass, 1980: 49)

    Assim, indispensvel esclarecer logo de incio que aderimos a um conceito de plis no restritivo, que no se limita a uma abstrao institucional. Esse conceito no restritivo de plis considera tambm a maneira como os prprios gregos usavam essa palavra. Lembro aqui as pesquisas de Mogens Herman Hansen, do Copenhagen Polis Centre, que, em levantamento exaustivo sobre a quantidade ou o contexto em que a palavra plis usada em textos gregos antigos (incluindo a documentao epigrfica), conclui que, em 98% dos casos, os gregos usavam o termo plis para se referir a um conjunto formado por um assentamento populacional mais uma comunidade poltica. Dessa maneira, podemos considerar que assentamento no sentido de uma populao assentada, ocupando um territrio , somado comunidade poltica so dois elementos inextricavelmente unidos em nossa compreenso do que

    3 Todas as datas que aparecem neste texto devem ser entendidas como antes de Cristo (a.C.).

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    A Origem da Plis: os Caminhos da Arqueologia

    fosse a plis. O referente desses dois elementos o mesmo, nico. De acordo com Hansen:

    Ento, a plis era em parte um Estado em parte uma cidade. A palavra plis tem dois significados diferentes: quando ouvimos que um rio corre atravs de uma plis, no percebemos que plis pode tambm significar um Estado e, quando uma aliana feita entre um conjunto de plis, no percebemos que a aliana entre cidades. Entretanto, os dois significados so inextricavelmente ligados, porque eles tm o mesmo referente (...) (Hansen, 2006: 59).

    Devemos considerar esse ponto fundamental se quisermos compreender que a materialidade da plis constitua uma moldura para as atividades dos seus membros. Mas, lembremos que no se trata de uma moldura esttica. Os aspectos fsicos da plis eram o reflexo daquela formao social e poltica, mas, no caminho de volta, condicionavam o comportamento humano, marcando suas aes e suas decises, criando elementos que permitiam a integrao da comunidade, instalando marcos de identidade nos quais o grupo se reconhecia.

    A origem da plis: o qu?As pesquisas arqueolgicas no mundo grego e com o uso da expresso

    mundo grego queremos nos referir no apenas Grcia balcnica, mas tambm Grcia ocidental e Grcia do leste mostramnos com alguma clareza alguns elementos materiais do surgimento de uma organizao de grupos populacionais em torno de objetivos comuns, no decorrer do sculo VIII. Para o propsito deste artigo, escolhemos dentre esses elementos alguns dos mais emblemticos: o surgimento do templo, o aumento das oferendas nesses templos em detrimento das oferendas em sepulturas, o posicionamento do templo em relao ao assentamento e a instalao de hera no centro dos assentamentos.

    O temploPodemos considerar o templo como marca registrada da civilizao grega

    at os dias de hoje. Basta ver o frisson que existe em torno do Partenon, templo da deusa Atena, em Atenas, cuja construo original data do sculo VI. O Partenon um dos pontos mais visitados pelos turistas contemporneos. Recentemente foi inaugurado um museu modernssimo para abrigar fragmentos de sua construo e para expor ao pblico em geral todas as fases de sua histria; gastouse milhes de dlares em sua restaurao; h listas e listas de assinaturas pedindo o retorno de suas famosas esculturas do Museu Britnico para Atenas. Podemos mesmo dizer que, at hoje, a Grcia moderna constri sua identidade e mobiliza a comunidade internacional usando um monumento justamente um templo fabricado h mais de dois mil anos. Outro elemento que demonstra como os templos so a marca registrada da

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    Maria Beatriz Borba Florenzano

    civilizao grega antiga o uso corrente que se faz, em qualquer parte do mundo, da coluna grega (drica ou jnica), elemento arquitetnico sobretudo dos templos antigos, como indicador visual do que grego.4

    Pois bem, a Arqueologia registra que o templo a primeirssima construo, o primeiro edifcio a ser monumentalizado na Grcia do sculo VIII. A monumentalizao do templo significa que este foi o primeiro edifcio que passou a ser construdo em material permanente a pedra o que no ocorria com nenhum outro tipo de edifcio nessa poca. Mas este no o nico elemento da monumentalizao do templo: os achados mostram a existncia de projetos arquitetnicos em que propores so planejadas e nos quais estava prevista a criao de um discurso visual por meio do posicionamento de esculturas arquitetnicas. A monumentalizao do templo grego significa ainda que havia um esforo coletivo para a sua construo, implicando em algum tipo de autoridade que gerenciasse o controle e a organizao desse esforo. E evidente que a existncia dessa autoridade implicava tambm a existncia de um Estado e a instalao de um culto promovido por esse Estado. Lembremos que o templo grego era a morada do deus; que servia de abrigo a sua esttua de culto e s oferendas que lhe eram trazidas pelos fiis. O culto em si realizavase em um altar em frente ao templo, tambm monumentalizado desde essa poca to remota.

    Entre esses primeiros templos a serem monumentalizados e a receberem oferendas, podemos citar, como exemplo, o Heraion de Samos. Templo dedicado deusa Hera na ilha de Samos, sua construo inicial data do sculo VIII, quando tinha 213 m2. A arqueologia registra que antes do final desse mesmo sculo, ele j havia passado por uma reforma que o aumentava consideravelmente.

    Outro exemplo muito citado nesse contexto o do templo de Apolo Daphnephoros de Ertria, cuja construo datada de c. 725. Ainda que esse templo, nessa data recuada, tivesse uma planta absidal e no retangular, como se tornou padro para os templos gregos posteriormente, ele tinha, como o de Samos, cem ps de comprimento, perfazendo um total de 200 m2 (Hall, 2007: 85).

    Esses dois exemplos so muito referidos pela bibliografia em geral, mas, seguindo o exemplo de Snodgrass, podemos arrolar muitos outros templos vinculados a assentamentos incipientes e cuja monumentalizao datada do sculo VIII: o grande templo de Esmirna, e ainda os de Perachora, de Argos, de Micenas, de Dreros, de Mantineia, de Esparta (2006: 211213, 283). Devemos ainda lembrar a instalao, no final do sculo VIII, de um templo na rea que viria a ser posteriormente a gora de Mgara Hibleia na Siclia (Vallet; Villard; Auberson,1976: 403428).

    4 Justamente pelo papel desempenhado na fantasia ocidental contempornea, o Partenon recebeu inmeros estudos, uns mais aprofundados, outros menos. Ver, da autora, Pricles, o Partenon e a construo da cidadania ateniense, disponvel em: . Entre as referncias mais recentes devem ser consultadas as vrias obras sobre o Partenon de Manolis Korres, professor de arquitetura e engenharia da Universidade Tcnica Nacional de Atenas.

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    A Origem da Plis: os Caminhos da Arqueologia

    A meno a esses edifcios religiosos exemplares visa a apontar um caminho de pesquisas sobre o aparecimento e consolidao da plis grega, o qual comeou a ser trilhado h duas ou trs dcadas e que vem juntando cada vez mais peas a esse enorme quebracabeas. Caminho que merece ser ainda seguido na medida em que as inmeras descobertas recentes da arqueologia venham a ser articuladas em uma interpretao mais ampla e coerente sobre o aparecimento e estruturao da plis. At onde chegam os nossos conhecimentos, o que se depreende a partir da edificao e da monumentalizao desses edifcios em poca to recuada que a religio e, sem dvida, o culto estatal comum estiveram no centro da criao institucional da plis e que tanto religio quanto culto atuaram sempre como elementos integradores da comunidade. A arqueologia, assim, demonstra a complexidade do acordo realizado entre os grupos que, a partir do sculo X ou IX, comearam a se organizar em comunidades autnomas s quais se deu o nome de plis. A arqueologia mostra tambm que, ainda que estas comunidades fossem independentes entre si, a construo de templos e santurios constituiu um trao compartilhado, pelo menos desde o sculo VIII, entre as instalaes helnicas no apenas na Pennsula Balcnica, mas tambm no Mediterrneo do Leste e do Oeste. o que tm revelado, por exemplo, as pesquisas arqueolgicas mais recentes realizadas nas plis gregas da Magna Grcia e da Siclia.5

    As oferendas no espao comum do temploUm aspecto importante do papel da religio e dos cultos religiosos a

    ser considerado na constituio da plis incipiente que, antes mesmo da edificao monumentalizada dos templos e santurios, ou seja desde fins do sculo IX, constatase um aumento considervel e repentino de pequenas oferendas dedicadas em locais pblicos que mais tarde receberiam a construo de santurios. Ao mesmo tempo, registrase a diminuio dessas oferendas nos tmulos individuais. Fatos, estes, constatados por achados realizados em inmeros santurios escavados: como em Delfos, em Delos, em Olmpia, no Monte Ptoon (Becia); em Philia (Tesslia), em Perachora, em Argos, em Lindos, na regio tica. Em todos esses santurios, marcante o aumento de oferendas de bronze fbulas, alfinetes, trpodes e figurinhas , no incio do sculo VIII, enquanto, nas sepulturas, registrase, ao final desse mesmo sculo, a sua diminuio e at mesmo o seu desaparecimento (Snodgrass, 1981: 5354; 2006: 15). A interpretao aceita sobre esses achados que, entre o final do sculo IX e o VIII, ocorreu um favorecimento do culto comum em detrimento do culto individualizado a um morto especfico. Interessanos constatar que uma oferenda consiste de uma imobilizao de riqueza, sobretudo se lembrarmos que so, quase todas nestes casos , pequenos objetos de metal, matriaprima que vinha de longe, fundamental naquela poca para a fabricao de armas e

    5 Para uma bibliografia atualizada sobre estas pesquisas, recomendamos consultar os textos disponveis no site do Laboratrio de Estudos Sobre a Cidade Antiga, www.mae.usp.br/labeca, na aba textos.

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    Maria Beatriz Borba Florenzano

    de ferramentas e, conseqentemente, um importante marcador de valor e de prestgio. O seu aumento nos santurios comuns implica que a comunidade como um todo estava disposta e tinha recursos suficientes para valorizar mais a atividade religiosa de todos do que aquela individualizada.

    Articulada construo monumentalizada dos templos e santurios, a freqncia aumentada de ricas oferendas nesses mesmos edifcios aponta para a organizao da comunidade em torno da religio: o culto a uma divindade comum integra a comunidade, conferelhe uma identidade e promove a consolidao dos laos e compromissos negociados.

    O templo na organizao do espao Como mencionamos anteriormente, nossa definio de plis passa

    pelo espao territorial ocupado pela comunidade polade. Espao que inclui todo o terreno ocupado, usado e organizado pela comunidade. A realidade territorial da plis inclui no apenas a sty, mais urbanizada e muitas vezes amuralhada, mas tambm a khra, terreno aproveitvel do ponto de vista da agricultura e ainda a eskhati, rea perifrica, limtrofe, de bosques e terrenos menos aproveitveis sobretudo devido distncia que os separava da rea mais central. A Arqueologia mostra como, desde o sculo VIII, a edificao dos templos no estava limitada s reas urbanas e centrais do assentamento, mas estes foram tambm construdos no territrio, em meio khra. H, com efeito, registros claros do posicionamento de templos no que seria a rea central do assentamento, enquanto h tambm descobertas significativas de templos instalados em localidades distantes desse centro, longe da rea mais densamente ocupada, no que chamaramos propriamente de territrio. Na classificao mais recente elaborada pelos estudiosos, esses seriam os templos ou os santurios extraurbanos (Marinatos, 1993: 230).

    Mas, notese que no apenas templos foram descobertos no territrio das plis: outros edifcios religiosos, pequenos locais de culto, pequenos santurios, locais de grandes quantidades de oferendas religiosas, so escavados com freqncia na khra de inmeras cidades gregas. O conjunto dessas descobertas comea a mostrar a composio intencional de uma paisagem religiosa ao que tudo indica com a finalidade de marcao de fronteira ou mesmo de posse do territrio de uma plis. A religio ento, de forma pervasiva, mostrase como um elemento indispensvel na prpria consolidao da realidade material da cidade grega no momento mais recuado de sua formao.

    A questo do posicionamento de edifcios religiosos no territrio da cidade grega como marcadores de posse e como articuladores do espao central com o espao mais perifrico foi pela primeira vez levantada pelo arquelogo francs G. Vallet (1967). Retomada mais tarde por Fr. De Polignac (1984), essa hiptese tem sido discutida e complementada a cada nova descoberta. O contorno dado por Polignac interpretao do posicionamento dos templos na origem da plis grega prev que um grande templo na rea central da plis se articularia com outros edifcios sagrados monumentalizados no territrio (Polignac, 1985 e 1995).

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    A Origem da Plis: os Caminhos da Arqueologia

    Assim, por exemplo, podemos considerar como centrais o templo da deusa Atena localizado desde poca arcaica na acrpole de Atenas, em uma posio privilegiada, com vista para todas as direes da tica; ou o templo dedicado deusa Hera, em Samos, posicionado no ncleo central do assentamento; ou, ainda, o templo descoberto no espao central de Mgara Hiblia, mencionado acima. Estes seriam exemplos de templos polades, centrais.

    Por outro lado, templos como o Heraion, na Foz do Rio Sele, a 8 km do centro de Poseidnia (Greco, 2008: 1315); o Heraion do Cabo Lacnio, localizado a 11 km do centro de Crotona; o templo conhecido pelo nome de Tavole Palatine, localizado nas aforas da cidade de Metaponto (4 km); ou, ainda, o Heraion argivo, tambm distante de Argos 13 km ao nordeste, so exemplos de templos extraurbanos, territoriais, de fronteiras (Hall, 2007: 8687). O Heraion na foz do rio Sele, ao norte de Poseidnia e datado do sculo VI, por exemplo, no apenas marcava o territrio at onde devia ir a jurisdio da cidade, mas era um centro importante de culto, no apenas dos gregos, como da populao interiorana no grega, que tambm por ali aparecia para deixar suas oferendas. Alm disso, o fato de estar localizado na foz de um rio, facilitava a comunicao do interior com a cidade e viceversa, ao mesmo tempo que controlava todo o movimento. No caso do Heraion de Argos, situado na plancie argiva entre Argos, Micenas, Tirinto e Midea, a documentao arqueolgica parece indicar que este foi sempre um local sagrado disputado por estas plis, que o tomavam como marco de fronteiras, at finalmente ser controlado por Argos em 460 (Hall, 2007: 87). De toda forma, podemos considerar que sua posio no territrio marcava a posse da plancie por Argos e por essas outras plis diante das pretenses territoriais de Mgara e de Corinto (Polignac, 1995: 32 ss.).

    O fato de se encontrarem tantos templos nas periferias dos ncleos urbanos, fora mesmo das muralhas, e o estabelecimento de elos espaciais (relao direta com as portas nos muros, por exemplo) entre esses e o assentamento demonstra como a definio de um territrio preciso estava na agenda dessas comunidades que comeavam a se estruturar no que mais tarde foi conhecido pelo nome de plis. A definio de um territrio implicava no estabelecimento de fronteiras que deviam ser reconhecidas por todos, membros da comunidade e vizinhos, e na reserva de terreno passvel de emprego para a prpria sustentao do grupo. Os dados arqueolgicos nos permitem afirmar que este um trao que, j no sculo VIII, despontava na primeira organizao das plis, e que, no sculo VII, estar plenamente consolidado.

    Podemos concluir, assim, com bastante segurana, que e esta uma das opinies mais aceitas atualmente entre os pesquisadores estrategicamente situados nos confins dos assentamentos, esses templos tinham a funo de marcar o territrio sob jurisdio de uma plis emergente, como se fossem um marcador de posse; deviam tambm desempenhar a funo de proteger esse territrio comum em relao aos outros, fossem eles gregos ou brbaros. Em contrapartida, aceitase hoje que o posicionamento desses templos nas fronteiras permitia a realizao de uma passagem simblica da plis com o

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    Maria Beatriz Borba Florenzano

    exterior (Polignac, 1995: 32 e ss.). Podemos dizer ainda que os membros da comunidade, ao percorrerem o trajeto entre um templo central e um templo extraurbano, durante as festividades ou durante os rituais de culto divindade, experimentavam o espao de sua cidade, apossavamse dele, e integravamse com o conjunto dos demais membros da comunidade nessa posse sobre um terreno definido. Sentiamse parte de um mesmo todo, a plis.

    A instalao dos heraH ainda um outro elemento material vinculado aos aspectos simblicos

    elaborados pela religio que marca a plis incipiente: tratase de uma estrutura construda denominada pelos gregos de heron. Por definio, o heron um local de culto a um heri, ancestral, ou de algum assumido por aqueles que o cultuam como um ancestral. Boa parte das vezes, essa estrutura se associa ao tmulo desse ancestral, tmulo verdadeiro ou representado. A ancestralidade do heri cultuado nesses locais relacionase quase sempre ao seu papel de fundador da plis (Snodgrass, 1980: 3840).

    Um exemplo bem conhecido pelo documento textual e que pode ser elucidativo nesse contexto o episdio narrado por Plutarco (sc. I d.C.), no qual Kimon, na Atenas