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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS – UNISINOS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS ANAPAULA RASERA REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE VIOLÊNCIA: (IN)SEGURANÇA, MEDO E VULNERABILIDADES. Estigmas de Alvorada, RS. São Leopoldo 2008

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  • UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS UNISINOS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS SOCIAIS

    ANAPAULA RASERA

    REPRESENTAES SOCIAIS DE VIOLNCIA: (IN)SEGURANA,

    MEDO E VULNERABILIDADES. Estigmas de Alvorada, RS.

    So Leopoldo

    2008

  • ANAPAULA RASERA

    REPRESENTAES SOCIAIS DE VIOLNCIA: (IN)SEGURANA,

    MEDO E VULNERABILIDADES. Estigmas de Alvorada, RS.

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps Graduao em Cincias Sociais Aplicadas da UNISINOS como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Cincias Sociais.

    Orientador: Professor Doutor Jos Rogrio Lopes

    So Leopoldo

    2008

  • FICHA CATALOGRFICA R224r Rasera, Anapaula Representaes sociais de violncia: (in)segurana, medo e

    vulnerabilidades; Estigmas de Alvorada,RS. / Anapaula Rasera. So Leopoldo, UNISINOS, 2008. 120f. Orientador: Prof. Dr. Jos Rogrio Lopes. Dissertao (Mestrado) Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais Aplicadas. So Leopoldo, BR-RS, 2008.

    1. Cincias sociais. 2. Sociologia urbana. 3. Violncia Brasil Alvorada(RS). 4. Violncia urbana. 5. Insegurana Medo. 6. Vulnerabilidade. 7. Territoriabilidade. 8. Risco social. 9. Criminalidade. I. Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais Aplicadas. II. Rasera, Anapaula. III. Ttulo. CDU 303.6

    ______________________________________________________________________ Catalogao na Publicao (Ana Lucia Wagner CRB10/1396)

  • Anapaula Rasera

    REPRESENTAES SOCIAIS DE VIOLNCIA: (IN)SEGURANA,

    MEDO E VULNERABILIDADES. Estigmas de Alvorada RS.

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps Graduao em Cincias Sociais Aplicadas da UNISINOS como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Cincias Sociais

    Aprovado em maro de 2008.

    Banca Examinadora

    Prof. Dr. Jos Rogrio Lopes UNISINOS (orientador)

    Prof. Dr. Jos Luiz Bica de Mlo (UNISINOS)

    Prof. Dr. Carlos Alberto Mximo Pimenta (Unitau-SP)

  • Dedico este estudo: Aos meus pais

    Paulo e

    Ldia.

  • AGRADECIMENTOS

    Meus sinceros agradecimentos a todos que dialogaram sobre o assunto durante

    muitas noites...

    Primeiramente ao meu orientador Prof. Dr. Rogrio, pelo apoio, pacincia e

    infindvel conhecimento;

    ... a Capes pela oportunidade da bolsa;

    ... a todos os professores do PPG da UNISINOS

    ... a Maris que sempre esteve a disposio quando eu precisei;

    ... ao meu melhor amigo Andrei Valrio;

    ... a todas as pessoas que trabalham no

    ncleo Conhecer em Alvorada porque elas realmente ACREDITAM em

    mundo melhor!!

  • Quem no senhor do prprio pensamento, no senhor das prprias aes.

    Victor Hugo

  • RESUMO

    Atravs deste estudo, pretendo contextualizar a questo da violncia na cidade de

    Alvorada, Rio Grande do Sul a partir da perspectiva de risco social, vulnerabilidade e

    territoriabilidade. Utilizei autores como Robert Castel, para a questo da insegurana social e

    Michel Wieviorka, para uma fenomenologia da violncia. Para complementar este trabalho,

    realizei pesquisa qualitativa com entrevistas semi-estruturadas devido s possibilidades que

    estas oferecem para compreenso do assunto.

    O pblico direcionado foram idosos e jovens que participam de programas

    governamentais dirigidos a pessoas vulnerveis violncia. Atravs das entrevistas

    recolhemos informaes concernentes ao estudo, e consegui que os entrevistados

    transcendessem s questes colocadas e levantassem novos questionamentos ao roteiro

    inicial. Assim, mesmo que tivssemos um roteiro de questes que orientasse as entrevistas, a

    tcnica utilizada possibilitou a ampliao da participao de entrevistador e entrevistado na

    abordagem das questes propostas.

    Palavras-chave:

    Violncia insegurana vulnerabilidade territoriabilidade risco social

  • ABSTRACT

    Through this study, I wish to contextualize the issue of violence in the city of Alvorada,

    Rio Grande do Sul from the perspective of social risk, vulnerability and territoriability. Used

    authors as Robert Castel, to the issue of social insecurity and Michel Wieviorka, to

    phenomenology of violence. To complement this work, performed qualitative research

    interviews semi-structured due to the possibilities it offers to understanding the subject.

    The public were directed elderly and young people who participate in government

    programs aimed at vulnerable to violence. Through interviews collect information concerning the

    study, and achieve that interviewed through questions and raised new questions from the

    original script. Therefore, even if we had a roadmap of issues geared interviews, a technique

    used enabled the expansion of the participation interviewer and interviewee in addressing the

    issues.

    Keywords:

    Violence - insecurity - vulnerability - territoriability - social risk

  • LISTA DE FIGURAS

    QUADRO 1 - Populao total 1997 2003.................................................................22

    MAPA 1 - Localizao de Alvorada no Mapa do RS.........................................23

    MAPA 2 - Indicao dos Municpios do Corede do Delta do Jacu .................24

    QUADRO 2 - ndice de desenvolvimento socioeconmico................................27

    QUADRO 3 - Taxas de homicdios 11 maiores municpios em n de hab. do RS

    1997-2004 ....................................................................................................................29

    QUADRO 4 - Os 11 maiores municpios em populao e seus IDH, taxas de

    homicdio, roubo e furto 2000.........................................................................30

  • SUMRIO 1. INTRODUO...............................................................................................12

    1.1 REPRESENTAES SOCIAIS...................................................................13

    1.2 VULNERABILIDADE SOCIAL....................................................................14

    1.3 METODOLOGIA DE PESQUISA.................................................................16

    2. ALVORADA..................................................................................................21

    2.1 CARACTERSTICAS HISTRICAS DO MUNICPIO..................................21

    2.2 A VIOLNCIA NO MUNICPIO........................................................................28

    2.3 PERFIL DO UNIVERSO EMPRICO SELECIONADO................................31

    3. MARCO TERICO DA VIOLNCIA............................................................36

    3.1 VIOLNCIA: UMA CLASSE DE RELAO................................................36

    3.2. VIOLNCIA E VULNERABILIDADE SOCIAL.............................................38

    3.3. VIOLNCIA POLICIAL................................................................................40

    3.4. VIOLNCIA E PODER................................................................................42

    4. (IN)SEGURANA E LIBERDADE: DIREITOS EM FALTA..........................50

    4.1. SEGURANA E INSEGURANA NA SOCIEDADE MODERNA...............50

    4.2 SEGURANA E DEMOCRACIA.................................................................54

    4.3. COMUNIDADE, SEGURANA E LIBERDADE..........................................56

    4.4. CONCEITO DE LIBERDADE......................................................................59

    4.5. GORA: ENTRE O PBLICO E O PRIVADO............................................66

    4.6. ESFERA PBLICA.....................................................................................69

    5. INSEGURANA E MEDO.............................................................................72

    5.1. APATIA POLTICA E SOFRIMENTO.........................................................73

    5.2. CONCEITO DE INSEGURANA................................................................74

    5.3. LIBERDADE E INSEGURANA.................................................................80

    5.4. INSEGURANA E AMBIGIDADE NA ESCOLHA INDIVIDUAL OU COLETIVA.........................................................................................................82

    6. REPRESENTAES SOCIAIS DE VIOLNCIA DE ALVORADA..............85

    6.1. DESTERRITORIALIZAO DA VIOLNCIA.............................................86

    6.2. VIOLNCIA NO TERRITRIO DOS OUTROS..........................................88

    6.3 ASSASSINATO............................................................................................96

    6.4. SITUAES DE RISCO...........................................................................100

    6.5. A VIOLNCIA POLICIAL..........................................................................106

    7. CONSIDERAES FINAIS........................................................................112

  • REFERNCIAS...............................................................................................115

    APENDICE Roteiro de entrevistas................................................................120

  • 1. INTRODUO

    Na sociedade atual, a violncia um assunto corriqueiro em conversas

    entre pessoas de diversas categorias sociais. Em todas as camadas sociais e

    desde diversas posies sociais, as pessoas manifestam-se cientes da

    problemtica e expressam sua preocupao. Tal como indicam as pesquisas

    de opinio pblica, o sentimento de medo e insegurana se alastra

    progressivamente entre a populao. Contudo, essa familiaridade com o

    fenmeno, para a cincia, representa um obstculo epistemolgico, porque

    produz concepes fictcias, vises do senso comum, com interpretaes

    artificiais, distantes de interpretaes cientificas.

    J desde uma perspectiva analtica, as possibilidades de interpretao

    da violncia so inmeras. Ela pode ser abordada de um ponto de vista

    etiolgico ou etimolgico, de uma abordagem micro ou macrossociolgica,

    baseada em ferramentas antropolgicas, sociolgicas e filosficas, e assim por

    diante.

    No entanto, em termos gerais, as concepes de violncia variam

    conforme os contextos histricos, sociais e culturais em que se situa o

    problema e a perspectiva de anlise adotada. Como enfatiza Michaud (1982, p.

    98), estudos microssociolgicos da violncia evidenciam que a realidade

    cotidiana da violncia difere das representaes que fazemos dela e dos

    discursos ideolgicos ou mticos que sustentamos sobre ela.

    Conforme o postulado anterior, para abordar a violncia, nesta

    Dissertao, apoiamo-nos no pressuposto de que no podemos analis-la em

    abstrato, seno a partir de uma realidade especfica. E a realidade escolhida

    como objeto de anlise a fenomenologia da violncia e os sentimentos

    derivados - insegurana e medo - numa localidade estigmatizada de violenta;

    neste caso, o municpio de Alvorada, localizado na Regio Metropolitana de

    Porto Alegre, a 20 quilmetros de distncia do centro da capital do Estado de

    Rio Grande do Sul.

    Para abordar a violncia e os sentimentos derivados no universo social

    selecionado como laboratrio de anlise, utilizamos dois conceitos terico-

  • metodolgicos: representaes sociais e vulnerabilidade social.

    1.1 REPRESENTAES SOCIAIS

    O conceito de representaes sociais permite compreender fatos sociais

    a partir das relaes interpessoais e das relaes que os sujeitos estabelecem

    com o mundo social no qual se inserem, da maneira como eles interiorizam

    experincias sociais e das interpretaes que os prprios sujeitos fazem das

    mesmas, partindo do pressuposto de que as experincias individuais esto

    imbricadas nas experincias sociais.

    Assim, representaes sociais constituem um conceito que permite

    desvendar subjetividades, indagando por idias s quais o indivduo d voz

    atravs da fala e das aes. Quer dizer, a relevncia do estudo das

    representaes sociais est em que estas aludem a idias, prticas e atitudes

    dos atores sociais. Sua anlise permite a apreenso de modelos de

    comportamento que orientam prticas sociais e valores.

    Nesse sentido, o exame das representaes sociais possibilita uma

    aproximao fenomenologia da violncia e a questes afins, tomando como

    base a anlise do que as pessoas pensam e como agem em situaes de

    violncia, e os sentimentos que lhes produz. Essa postura terica e

    metodolgica inspira-se no argumento de Bourdieu (2004), segundo o qual,

    para apreender um fato social, no caso a fenomenologia da violncia, preciso

    saber o que a pessoa que age pensa a seu respeito.

    Nos relatos de acontecimentos violentos e em discursos ligados

    violncia, feitos durante conversas dirigidas dos atores sociais com a

    pesquisadora, no procuramos a reconstituio cronolgica e espacial dos

    acontecimentos, mas sua utilizao como fonte de dados para o exame das

    representaes e prticas sociais elaboradas em torno desse fato social.

    Igualmente, os relatos individuais possibilitam a anlise das estratgias

    individuais e coletivas utilizadas para enfrentar a insegurana e o medo.

    Paralelamente anlise dos discursos sobre violncia, abordamos a

    insegurana e o medo como sentimentos e percepes decorrentes da

  • experincia de vida em ambientes sociais, como o de Alvorada, condicionados

    pela violncia.

    Desse modo, da perspectiva de anlise adotada nesta Dissertao, a

    violncia, a insegurana e o medo no designam objetos e prticas

    empiricamente observveis, mas representaes sociais. Os significados

    dessas categorias evocam um tipo de relao com a violncia. Representam

    formas de expresso de um mundo social que interferem na prtica social dos

    atores. O interesse em aprofundar o universo social do municpio de Alvorada,

    surgiu ao perceber que violncia, insegurana e medo so categorias

    acionadas para nomear e qualificar aes e sentimentos decorrentes do

    convvio em um ambiente com alto ndice de homicdios. Tratam-se de

    categorias do senso comum que transformamos em categorias sociolgicas.

    Com o objetivo de analisar a fenomenologia da violncia, insegurana e

    medo no municpio de Alvorada, examinamos elementos subjetivos,

    caractersticas intrnsecas pessoa e objetivos externos que aludem ao

    contexto social e cultural em que esto inscritas. Todos esses elementos

    apontam para o quadro de vulnerabilidade social que potencializa aes

    violentas.

    1.2 VULNERABILIDADE SOCIAL

    Optamos tambm por utilizar o conceito de vulnerabilidade em nossas

    reflexes porque ele remete a diversas unidades de anlise (indivduos,

    domiclios e comunidades) e oferece ferramentas para identificar cenrios e

    contextos onde os acontecimentos ocorrem. Alm disso, permite situar

    mltiplas dimenses de anlise reveladas no olhar para as transformaes

    sociais decorrentes do novo perfil do mundo do trabalho ou do no-trabalho,

    tendo como pano de fundo um universo social determinado pela combinao

    entre a modernidade, diversidade e insegurana. Em outras palavras, o

    conceito de vulnerabilidade possibilita compreender diversidade de situaes

    sociais e os sentidos que as diversas situaes tm para atores sociais, sejam

    eles grupos, indivduos, famlias, domiclios ou comunidades.

  • Com foco no indivduo, alguns autores recorrem ao conceito de

    vulnerabilidade social para desconstruir sentidos nicos e identificar

    potencialidades nas aes dos sujeitos, quando enfrentam situaes

    socialmente negativas. Por trs desse postulado, est o conceito de

    vulnerabilidade positiva (CASTRO e ABRAMOVAY, 2002), que denota a

    aprendizagem adquirida pelo indivduo das experincias vividas, a tecer

    resistncias e a lidar com riscos e obstculos de modo criativo. Nesse processo

    de aprendizagem, ele toma conscincia da violncia simblica e daquilo que

    aparece como arbitrrio.

    So mltiplos os planos apreendidos com base nesse conceito. A

    incurso por diversas dimenses sociais que evocam fatos de vulnerabilidade

    social permitiu refletir acerca da vulnerabilidade dos jovens violncia.

    Contudo, as anlises sobre vulnerabilidades contemporneas, que frisam a

    mortalidade entre jovens, em particular, em comunidades pobres e por motivos

    violentos, indicam que, alm da referncia aos direitos individuais, preciso

    tambm uma referncia s marcas dos grupos e das geraes nas sociedades

    (idem).

    Privilegiamos a anlise das dimenses que levam, principalmente,

    compreenso de estruturas sociais condicionantes s vulnerabilidades, isto ,

    as que propiciam a construo de ambientes vulnerveis. No corpo deste texto,

    mostramos como as caractersticas estruturais da sociedade contempornea,

    marcadas pelo individualismo, no oferecem condies favorveis realizao

    de aes coletivas. E, no marco desse panorama social, o indivduo encontra-

    se com dificuldades ou est impedido de usufruir os direitos sociais, a liberdade

    e a segurana. Esse ltimo direito pensado em termos individuais e sociais: a

    segurana individual trata do direito integridade fsica e ao patrimnio

    individual, concebida pela agenda poltica de segurana cidad. J a

    segurana social alude s garantias oferecidas pelo Estado para a reproduo

    social das pessoas: emprego, sade, educao.

    Alm do individualismo, no processo de socializao, e das carncias de

    direitos (segurana e liberdade), outro fator de vulnerabilidade na sociedade

    moderna e no qual focamos a ateno nesta Dissertao o descrdito nas

    instituies de controle social, como a policial, o que leva as pessoas a fazer a

  • justia pelas prprias mos, em alguns casos, ou a se refugiar nas igrejas ou

    no mundo das incertezas fabricadas (BECK, 2006, p. 5). Todos esses fatos

    mencionados esto estreitamente vinculados remodelao das relaes

    sociais na sociedade contempornea, espelhada na difuso de prticas de

    violncia nas relaes sociais.

    Examinamos, portanto, as vulnerabilidades sociais que afetam os

    indivduos na comunidade a partir da anlise da violncia nas relaes, das

    noes de segurana e insegurana, de medo e liberdade. Reconhecemos, ao

    longo do empreendimento, a fora da subjetividade, do desejo, e a distncia

    entre o vivido e o esperado com relao a direitos humanos. Por causa disso,

    consideramos a metodologia de pesquisa qualitativa a mais apropriada para

    abordar a problemtica.

    1.3 METODOLOGIA DE PESQUISA

    A idia inicial consistiu em um mapeamento territorial das reas

    consideradas vulnerveis e perigosas (grifo meu). Em minha primeira visita

    cidade de Alvorada, todas as minhas concepes tericas de levantamento de

    dados se modificaram, pois percebi que toda a cidade se caracteriza como em

    situao de desigualdade social. A natureza urbanstica de Alvorada e a infra-

    estrutura so insuficientes para sua populao; possvel perceber isso

    atravs do sistema de transporte. Os nibus para Porto Alegre esto sempre

    lotados, e h um intervalo muito grande entre um e outro (em horrios de pico,

    a cada quinze minutos, e, fora dos horrios de pico, a cada meia hora). Esse

    contratempo se reflete na viagem de Alvorada at o centro de Porto Alegre

    (20 quilmetros de distncia). Em dia sem nenhum imprevisto, a viagem dura

    uma hora.

    A opo de pesquisa com grupos de idosos e grupos de jovens surgiu

    aps vrias visitas e anlises territoriais em Alvorada. O contato inicial foi por

    meio do posto de sade, onde expliquei a minha proposta de mapeamento

    territorial das reas consideradas vulnerveis e perigosas (grifo meu). Fui

    indicada a conversar com a coordenadora geral do grupo Agente Jovem, que

  • possui extenso banco de dados sobre violncia. Em conversa com a

    coordenadora, ela me sugeriu que entrevistasse os jovens do grupo Agente

    Jovem. Todos os participantes se caracterizam por situao de risco e

    vulnerabilidade (drogadio, risco social; alguns so assistidos por este

    programa, ao invs de serem enviados ao FASE Fundao de Atendimento

    Scio-Educativo).

    Para confrontar as informaes dos jovens, foram entrevistados os

    idosos, que se renem no mesmo local dos jovens, buscando-se, assim, uma

    anlise comparativa entre duas geraes. Em minha conversa com a

    coordenadora do ncleo de idosos, a proposta de trabalho consistiu em

    preveno sade, mas muitos idosos comparecem ao ncleo para

    compreender o que pode ser feito para auxiliar em sentimentos como o medo,

    decorrente de uma realidade social-territorial repleta de violncia.

    Neste estudo de caso, utilizamos a metodologia de pesquisa qualitativa,

    devido s possibilidades que ela oferece compreenso do assunto.

    Aplicamos entrevistas semi-estruturadas para 15 jovens e 22 idosos que

    participam de programas governamentais dirigidos a pessoas vulnerveis

    violncia. Por intermdio das entrevistas, recolhemos informaes

    concernentes ao estudo e conseguimos que os entrevistados transcendessem

    as questes colocadas e levantassem novos questionamentos ao roteiro inicial.

    Assim, mesmo que tivssemos um roteiro de questes que orientasse as

    entrevistas, a tcnica utilizada possibilitou a ampliao da participao de

    entrevistador e entrevistado na abordagem das questes propostas.

    Aps o agendamento e a autorizao de ambas as coordenadoras,

    iniciei a pesquisa durante os encontros com jovens e idosos que se realizam na

    sede do Ncleo Conhecer, da Secretaria de Assistncia Social da prefeitura de

    Alvorada, sempre em horrios ou no trabalho em que eles tinham

    disponibilidade para conversar. A utilizao do gravador permitiu que a

    conversa flusse livremente. Esse procedimento facilitou a coleta de

    informaes para posterior anlise.

    No entanto, as informaes que serviram de base para anlise no

    foram obtidas unicamente das entrevistas. Apoiamo-nos em observaes

    territoriais e sociais, na pesquisa bibliogrfica; sobre o municpio, em termos

  • gerais e em relao fenomenologia da violncia; e na anlise da bibliografia

    que aborda temas relativos violncia e s vulnerabilidades sociais.

    Aps a realizao das entrevistas, da pesquisa bibliogrfica e das

    observaes em campo, transcrevemos as entrevistas. Da leitura das

    entrevistas, identificamos indicadores para anlise sobre os quais

    estabelecemos princpios de correspondncias, que possibilitaram, por sua

    vez, estabelecer relaes entre diversas questes enunciadas pelos sujeitos.

    Das interpretaes de tais indicadores - suas correspondncias e relaes -

    elaboramos o texto aqui apresentado.

    Desse modo, a transcrio das entrevistas aparecer no texto desta

    Dissertao, onde incidiu a necessidade de exteriorizar as representaes dos

    sujeitos. Todavia, queremos ressaltar que essas mesmas representaes

    compem o horizonte da anlise aqui efetuada.

    Para desenvolver essas questes, apresentamos, na primeira parte da

    Dissertao, um panorama social do universo pesquisado, o panorama da

    violncia registrada nele e o marco terico no qual nos apoiamos. Assim, no

    captulo 1, esboamos um mapa geral da violncia em Alvorada, com base em

    dados oficiais, as peculiaridades histricas do municpio e o perfil do universo

    emprico onde centramos a pesquisa. No segundo captulo, discernimos acerca

    de algumas teorias de violncia desenvolvidas por autores que exerceram, e

    ainda exercem, grande influncia nas discusses sobre o tema. E, a partir

    delas, refletimos sobre seu legado para as teorias contemporneas.

    Assinalamos, especificamente, em que medida essas teorias podem, ou no,

    servir de instrumental terico na abordagem proposta por ns nesta

    Dissertao.

    No terceiro captulo, intitulado Segurana e Liberdade, tratamos da

    segurana, como direito do cidado, e da liberdade, como direito humano, visto

    que ambos os direitos esto mutuamente relacionados e que as possibilidades

    de realizao determinam a maneira de as pessoas reagirem com violncia ou

    diante da violncia. Em outras palavras, a precariedade das condies

    necessrias para adquirir esses direitos torna o ambiente social mais

    vulnervel a prticas de violncia. Tratamos, nesta parte, da segurana na

    sociedade moderna: quais so as condies em que esta se d; qual a

  • participao do Estado e dos indivduos na busca por esse direito; quais so os

    fatos que impedem sua efetividade; qual a influncia da democracia no direito

    segurana; como se d a segurana no contexto da Comunidade e como ela

    se contrape ao direito da liberdade. Discorremos sobre diversos conceitos

    de liberdade, distinguindo aqueles que seguem um vis psicolgico e os que

    tm um vis sociolgico, as dimenses de liberdade, individual e social. No

    final, abordamos a relao entre esfera pblica e a esfera privada no mbito da

    sociedade moderna, recorrendo ao conceito de gora, de Bauman (1999).

    Assinalamos em que medida a segurana afetada pelos interesses

    contraditrios entre o pblico e o privado, ou melhor, pela separao entre a

    esfera pblica e a esfera privada na vida das pessoas em sociedade.

    No quarto captulo, Insegurana e Medo, abordam: (a) a dimenso

    psicolgica e a dimenso exterior do conceito de insegurana; (b) as categorias

    objetividade da insegurana e a subjetividade da insegurana,

    desenvolvidas por Wieviorka (2006); (c) as ambivalncias com as quais se

    depara o indivduo em sociedade entre o pblico e o privado, o individual e o

    coletivo; (d) a noo de medo na abordagem clssica, de Sartre (1987; 1999)

    e, na contempornea, de Bauman (1999); (e) a exploso de sentimentos de

    medo e insegurana gerados em situaes reais, ou imaginadas, de violncia,

    em ambientes de alta vulnerabilidade social, como Alvorada.

    No ltimo captulo, Representaes sociais de violncia em Alvorada,

    interpretamos as informaes coletadas nas entrevistas semi-estruturadas e na

    permanncia em campo, com base nos dados tericos dos quais dispomos,

    buscando perceber diferenas entre geraes nas representaes de violncia

    e em sentimentos e atitudes diante do fenmeno.

    Cabe ressaltar ainda que a discusso das teorias interpretativas da

    violncia e de fenmenos como liberdade e segurana contribui para a

    apreenso de elementos de vulnerabilidade social, produtores de sentimentos

    de insegurana e medo. Por meio da discusso conceitual, no buscamos uma

    filiao terica, mas a produo de um trabalho acadmico fundamentado em

    princpios da teoria do conhecimento sociolgico. Seguindo a orientao de

    Bourdieu (2004) no que tange vigilncia epistemolgica, nos captulos

    tericos, interrogamos sobre a validade dos conceitos e no os aplicamos

  • automaticamente. Como o mesmo autor aponta, a obedincia incondicional a

    um conjunto de regras bsicas tende a produzir um efeito de fechamento,

    fazendo desaparecer o que Freud chama de elasticidade das definies

    (BOURDIEU, 2004, p.18) que a formalizao lgica como meio de colocar

    prova a lgica num ato de pesquisa e a coerncia de seus resultados constitua

    um dos instrumentos mais eficazes do controle epistemolgico.

    Em suma, queremos deixar o registro de que, por meio do trabalho

    sociolgico apresentado nesta Dissertao, esperamos ter apontado

    problemticas e sem ambicionarmos uma misso proftica de dizer tudo e de

    forma ordenada.

  • 2. ALVORADA

    2.1. CARACTERSTICAS HISTRICAS DO MUNICPIO

    A cidade de Alvorada faz parte dos Corede do Delta do Jacu,

    juntamente com os municpios de Cachoeirinha, Eldorado do Sul, Glorinha,

    Gravata, Guaba, Porto Alegre, Santo Antnio da Patrulha, Triunfo e Viamo.

    O Rio Grande do Sul, ao lado de somente outros dois estados brasileiros

    Santa Catarina e Cear - conta com uma diviso de planejamento regional

    comparvel aos modelos dos pases mais avanados do mundo. Essas

    unidades de planejamento regionais, chamadas de Corede Conselho

    Regional de Desenvolvimento tm por objetivo promover a cooperao entre

    os atores sociais, econmicos e polticos das regies, facilitando a formao de

    coalizes que defendam os interesses regionais, de acordo com a citao a

    seguir:

    [...] criaria um espao local, no tanto como sede fsica, mas como

    instncia poltica, onde entidades representativas da sociedade e

    poderes municipais pudessem se encontrar para pensar a regio

    como um todo. Seria uma instncia intermediria entre os municpios, o

    estado e a unio (GUARESCHI, p. 32, 2004).

    Esses conselhos, criados posteriormente em todo o estado, surgiram

    devido [...] escassez de iniciativas de participao da sociedade, onde

    geralmente as decises eram tomadas de cima para baixo, sem consulta

    sociedade. Seria um desafio da comunidade encontrar sada para seus

    prprios problemas (idem p. 33).

    QUADRO 1

  • Populao total - 1997 - 2003

    Corede Metropolitano Delta

    do Jacu 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003

    Alvorada 171672 175982 180059 183968 189955 196362 203089

    Cachoeirinha 101397 103558 105604 107564 109810 112214 114738

    Eldorado do Sul 24796 25662 26482 27268 28591 30006 31492

    Glorinha 5143 5333 5512 5684 5818 5961 6112

    Gravata 217734 222955 227894 232629 238026 243802 249865

    Guaba 89639 91275 92823 94307 95376 96521 97723

    Porto Alegre 1320431 1334521 1347835 1360590 1370289 1380649 1391546

    Triunfo 20694 21210 21698 22166 22573 23008 23465

    Viamo 210217 216250 221958 227429 234057 241151 248598 Fonte: IBGE FEE/Ncleo de Indicadores Sociais

    Convm ressaltar que Alvorada uma rea conurbada com Porto

    Alegre, localizada a 20 quilmetros do centro da capital. Alvorada possui 71

    quilmetros de extenso territorial e fica a leste da capital, na margem

    esquerda do rio Gravata, na depresso Central do Estado. Em seus limites

    geogrficos, esto as seguintes cidades: ao norte: Cachoeirinha e Gravata; ao

    sul: Viamo e Porto Alegre; a leste: Gravata e Viamo; a oeste: Porto Alegre.

    A seguir, encontra-se a localizao espacial de Alvorada no mapa do Rio

    Grande do Sul e seus principais dados estatsticos:

    MAPA 1 Localizao de Alvorada no Mapa do RS

  • Populao Total (2007): 207.142 habitantes rea (2007): 70,8 km Densidade Demogrfica em 2007: 2.925,4 hab/km2 Taxa de analfabetismo (2000): 5,99 % Expectativa de Vida ao nascer em 2000: 69,99 anos Coeficiente de Mortalidade Infantil (2006): 9,28 por mil nascidos vivos PIBpm(2005): R$ mil 783.518 PIB per capita (2005): R$ 3.727 Exportaes Totais (2007): U$ FOB 4.515.387 Data de criao: 17/9/1965 (Lei n. 5026) Municpio de origem: Viamo Fonte: FEE (Fundao de Economia e Estatstica) http://www.fee.tche.br/sitefee/pt/content/estatisticas/pg_populacao_tabela_03.php?ano=2007&letra=A&nome=Alvorada MAPA 2 INDICAO DOS MUNICPIOS DO COREDE DO DELTA DO JACU

  • Fonte: Foto Satlite (Disponvel em http://www.googlehearth.com)

    Antes de mapear os quadros da violncia nesse municpio, vamos

    apresentar, ainda que brevemente, algumas das peculiaridades histricas e

    sociais que servem de marco para refletir a respeito da violncia, levando em

    considerao que, conforme o argumento de Garland (2005), problemas

    surgidos em torno do delito e da insegurana e as atitudes em relao ao

    Estado resultam de respostas adaptativas s mudanas sociais e econmicas

    ocorridas no final do sculo XX. Determinantes econmicos e sociais incidem

    sobre os agentes de justia de um modo indireto, atravs da mudana de

    regras de pensamento e de ao. A cultura expressa valores, racionalidades,

    discursos e interesses polticos que do suporte s estruturas da justia

    criminal e criao de uma cultura de controle do delito, cultura esta

    construda em resposta s manifestaes criminosas da populao.

    Dessa forma, reconhecendo a estreita relao entre as condies

  • econmicas, sociais e culturais e a violncia, apresentamos as evidncias

    histricas do municpio de Alvorada.

    O municpio, antes de se emancipar, pertencia ao 3. Distrito de Viamo,

    espao de formao africana e afro-brasileira (OLIVEIRA, 2006, p. 82).

    Chamado de Passo do Feij, emancipou-se no dia 17 de setembro de 1965,

    conforme a lei estadual n. 5026. Acredita-se que o nome Alvorada seja uma

    referncia ao seu povo, constitudo, em sua maioria, por trabalhadores que

    acordavam nas primeiras horas da manh para trabalhar na capital do Rio

    Grande do Sul (Porto Alegre).

    Entre as primeiras sesmarias concedidas do Sul, esto as de Cristvo

    Pereira de Abreu, concedida em 23 de junho de 1775. Mais tarde, essa mesma

    sesmaria foi entregue a Joo Batista Feij, em 5 de maio de 1776, conforme

    dados do IBGE. Seria este o marco inicial da origem do povoamento da cidade

    de Alvorada.

    O povoamento se d pelas famlias vindas de Laguna que se

    estabeleceram em Viamo. Com o passar do tempo, aps o conhecimento da

    regio, comearam tambm a ocupar reas vizinhas. A maior parte da

    populao se dedicava produo de leite e hortifrutigranjeiros, que no eram

    muito variados. Serviam ao comrcio, a uma economia de subsistncia e

    alimentao dos animais. Os principais produtos cultivados foram: melo,

    melancia, aipim, mandioca e batata-doce. O meio utilizado como transporte das

    mercadorias eram as carretas. As carretas j circulavam pelo Estado no tempo

    dos padres jesutas. Em 1737, o Brigadeiro Jos da Silva Paes trouxe ferreiros,

    carpinteiros e madeira para fabricar carretas. Era o nico veculo que poderia

    atravessar as campinas da fronteira do planalto. Oriundos da beira da Lagoa

    dos Barros e de outras localidades, vinham com carroes de quatro rodas,

    puxados por parelhas de cavalos, trazendo melado, rapadura e carvo.

    Com o crescimento demogrfico e a influncia de carreteiros na regio,

    surgiram as primeiras casas de comrcio. Eram armazns estabelecidos ao

    longo da estrada. Constituam-se de prdios de madeira com cho batido.

    Nesses locais, vendia-se fumo, aguardente, arroz e miudezas, transformando-

    se em pontos de parada obrigatria para os carreteiros. Dentre essas casas, as

    mais importantes foram o armazm do Sr. Anbal e os armazns dos Srs.

  • Lothario e Frederico Dihl. As embarcaes vinham de vrios lugares pelo rio

    Gravata. Muitas paravam no Passo das Canoas, devido dificuldade de

    acesso por via fluvial a Porto Alegre e redondezas, surgindo ento a

    necessidade de uma estrada que facilitasse um deslocamento mais eficaz.

    Com a construo da estrada que liga Gravata a Cachoeirinha e Porto Alegre,

    o Passo das Canoas foi desativado.

    O incio da educao deu-se atravs da contratao de professores,

    feita por famlias com maior poder aquisitivo. Eram contratados professores de

    Gravata e Porto Alegre. A professora vinha dar aula para os filhos dos

    proprietrios das fazendas. Ela fixava residncia na fazenda que a contratava.

    Alguns desses proprietrios proporcionavam o ensino no s aos seus filhos,

    mas tambm s crianas das redondezas.

    Com a preferncia ao ensino pblico oficial, em 1886, na Vila de

    Viamo, havia seis salas de aula pblicas. Uma delas localizava-se no Passo

    da Figueira. Mais tarde, aproximadamente entre 1908 e 1910, tem-se

    conhecimento da escola de Augusta Agripina dos Santos, natural de Porto

    Alegre e professora estadual. Essa escola estava aberta comunidade,

    servindo a alunos de vrias localidades, tais como Passo da Figueira, Passo do

    Feij e adjacncias.

    Em 1911, essa escola atendia a trinta e seis alunos e localizava-se

    prxima a uma figueira, na atual Avenida Frederico Dihl. Os loteamentos

    iniciaram por volta de 1940, tendo como uma de suas principais causas o

    crescimento populacional das cidades vizinhas. Um dos primeiros loteamentos

    feitos no Passo do Feij foi o da Vila Passo do Feij. O loteamento foi aberto

    por um russo, que dividiu as terras em pequenos terrenos. Surgiram os

    loteamentos da Vila So Pedro e, sucessivamente, outros.

    Junto com os afro-brasileiros, a populao de Alvorada se compe de

    migrantes portugueses, especialmente aorianos, alemes e italianos, nativos

    ou descendentes. Um outro grupo populacional presente no municpio

    formado por descendentes de japoneses, que migraram na dcada de 1970 e

    instalaram-se como pioneiros na floricultura. De modo geral, Alvorada

    povoada por migrantes de diversos municpios do Rio Grande do Sul e de

    Santa Catarina.

  • Esse processo migratrio, potencializado na dcada de 1950,

    transformou Alvorada numa das cidades mais populosas do estado de Rio

    Grande do Sul. O municpio tem cerca de 200.000 habitantes. Conta com uma

    rede de servios pblicos insuficiente para o atendimento das infinitas

    demandas geradas por uma histria de excluso e misria.

    QUADRO 2 ndice de desenvolvimento socioeconmico (IDESE), por blocos da educao,

    renda, saneamento e domiclios, sade e total

    2000 2001 Educao Renda Saneamento

    e Domiclios Sade IDESE Educao Renda Saneamento

    e Domiclios Sade IDESE

    Alvorada 0,811 0,524 0,656 0,826 0,704 0,813 0,550 0,657 0,820 0,710 Cachoeirinha 0,850 0,796 0,660 0,848 0,788 0,853 0,804 0,661 0,846 0,791 Eldorado do Sul 0,807 0,723 0,434 0,886 0,713 0,811 0,712 0,433 0,854 0,703 Glorinha 0,807 0,560 0,180 0,857 0,601 0,806 0,558 0,180 0,854 0,600 Gravata 0,851 0,650 0,552 0,851 0,726 0,851 0,659 0,552 0,856 0,730 Guaba 0,851 0,629 0,533 0,842 0,714 0,855 0,614 0,534 0,837 0,710 Porto Alegre 0,851 0,828 0,742 0,840 0,815 0,855 0,814 0,743 0,838 0,812 Triunfo 0,825 0,756 0,350 0,893 0,706 0,832 0,749 0,351 0,874 0,701

    Viamo 0,822 0,557 0,594 0,858 0,708 0,823 0,562 0,595 0,855 0,709

    2002 2003 Educao Renda Saneamento

    e Domiclios Sade IDESE Educao Renda Saneamento

    e Domiclios Sade IDESE

    Alvorada 0,817 0,555 0,656 0,812 0,710 0,821 0,513 0,656 0,816 0,701 Cachoeirinha 0,858 0,814 0,661 0,847 0,795 0,858 0,831 0,662 0,840 0,798 Eldorado do Sul 0,814 0,765 0,432 0,831 0,711 0,817 0,783 0,430 0,851 0,720 Glorinha 0,808 0,583 0,181 0,851 0,606 0,818 0,563 0,181 0,848 0,603 Gravata 0,852 0,662 0,553 0,859 0,731 0,860 0,657 0,553 0,850 0,730 Guaba 0,861 0,618 0,535 0,847 0,715 0,871 0,625 0,536 0,844 0,719 Porto Alegre 0,860 0,812 0,744 0,835 0,813 0,866 0,809 0,746 0,833 0,813 Triunfo 0,840 0,774 0,352 0,885 0,713 0,849 0,790 0,352 0,895 0,722

    Viamo 0,828 0,586 0,594 0,855 0,716 0,828 0,591 0,594 0,846 0,715 Fonte: FEE/Centro de Informaes Estatsticas

    Ao olharmos para Alvorada luz do princpio do debate poltico

    democrtico (MICHAUD, 1982, p. 89), percebemos que grande parte da

    populao desse municpio engrossa o setor social da Regio Metropolitana de

    Porto Alegre, excludo de benefcios, tais como servios bsicos e de poderes

    decisrios no mbito do governo. Diante dessa situao, muitos dos excludos

    manifestam-se com violncia.

    No caso de Alvorada, no se trata de um confronto organizado e direto

  • entre os excludos e representantes do governo ou entre excludos e classes

    sociais favorecidas, como acontece no quadro de violncia poltica referido por

    Michaud (1982), mas de uma produo de violncia como estratgia social

    desenvolvida, no s para enfrentar as adversidades provocadas pela

    precariedade na qualidade de vida, seno tambm como forma de resoluo

    de conflitos sociais, resultantes das tenses sociais. Nesse contexto social, a

    violncia acaba se incorporando como forma de socializao.

    Com base em Martins (1994; 1997), argumentamos que as

    desigualdades sociais, em Alvorada, no so vivenciadas em termos de

    relaes entre classes sociais diferentes, favorecidas e desfavorecidas. So

    desigualdades expressas na conformao de mundos opostos: o mundo dos

    integrados estrutura econmica e social e o mundo no qual as pessoas so

    obrigadas a desenvolver atividades econmicas informais, trabalho extorsivo e

    precrio, sem direitos sociais. Este ltimo corresponde ao universo emprico

    examinado aqui, dominado, geralmente, pelo poder paralelo das drogas.

    2.2. A VIOLNCIA NO MUNICPIO

    O municpio de Alvorada lembrado, nas crnicas policiais, como

    smbolo de uma terra sem lei, estigma reforado pelo conhecimento de

    estatsticas que colocam esse municpio como um dos lderes nas taxas de

    homicdio no estado do Rio Grande do Sul. Um estudo da Secretaria Estadual

    de Justia e de Segurana que compara os ndices de violncia entre 41

    cidades de RS (com populao maior de 50.000 habitantes), baseado em

    informaes policiais referentes ao perodo compreendido entre 1997-2002,

    revelando que, na taxa de homicdios, Alvorada ocupa o terceiro lugar, ficando

    atrs de So Borja e So Leopoldo. Esse estigma de municpio violento,

    construdo a partir das informaes divulgadas sobre o fenmeno, contribui

    para aumentar a sensao de insegurana entre a populao.

    QUADRO 3

    Taxas de homicdios nos 11 maiores municpios em nmero de habitantes do RS 1997-

  • 2004

    MUNICPIOS 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004

    Porto Alegre 25,88 20,21 17,43 21,56 19,30 27,90 21,18 23,02 Caxias do Sul 13,45 16,66 15,73 8,96 14,37 14,66 12,33 16,36 Pelotas 8,11 4,81 6,34 4,70 6,47 5,18 5,76 6,62 Canoas 17,38 15,46 11,56 10,76 11,61 18,80 19,77 12,66 N. Hamburgo 18,17 15,70 14,59 19,65 25,86 19,37 15,45 17,06 Santa Maria 6,94 6,82 5,87 6,19 7,67 8,76 7,54 7,50 Gravata 15,08 5,51 9,86 10,51 9,21 10,27 4,79 9,37 Viamo 21,93 18,61 14,94 16,12 15,90 11,80 14,21 12,09 So Leopoldo 26,12 19,83 18,49 24,48 25,95 29,15 34,47 27,42 Rio Grande 11,13 9,95 11,52 8,18 6,91 9,50 6,31 6,27 Alvorada 26,95 19,26 20,50 18,35 24,90 38,90 24,27 34,75 Taxas de homicdios: nmero de ocorrncias por 100.000 habitantes Fontes: Nmero de homicdios, furtos e roubos: S J S / Diviso de Estatstica Criminal - DEC IDH 2000: Atlas do Desenvolvimento Humano - PNUD Populao: Fundao de Economia e Estatstica - FEE

    Martins (1997) nomeia essas situaes, das manifestaes de violncia,

    como homicdio, sendo que este o maior fenmeno caracterstico de

    municpios de regies metropolitanas. Neles, a concentrao geogrfica da

    violncia extraordinria. Entre 1997 e 2001, as regies metropolitanas

    concentraram cerca de 70% dos homicdios. uma violncia que vitima

    principalmente homens jovens que habitam as periferias. Quanto evoluo

    desse crime, Rolim (2004), na elaborao do Plano de Segurana Pblica de

    Alvorada, em 2004, informa que no possvel identificar uma tendncia de

    crescimento ou de decrscimo. Ele nota uma certa regularidade nas taxas de

    homicdio.

    No mencionado Plano de Segurana, o autor dimensiona o problema do

    crime e da violncia na cidade atravs de uma pesquisa de vitimizao. Os

    dados recolhidos naquela pesquisa e em reunies com grupos focais,

    realizadas em instituies e servios vinculados ao tema da violncia e

    criminalidade (Polcia Militar, Polcia Civil, Poder Judicirio, Conselho Tutelar,

    Defensoria Pblica, etc.), revelam que os adolescentes e jovens adultos esto

    super-representados, tanto entre as vtimas quanto entre os autores.

    A maior concentrao de ocorrncias violentas ocorre na faixa etria de

    15 a 25 anos. Os homens jovens que evadiram da escola formam um subgrupo

    de alto risco para a vitimizao e autoria do crime (ROLIM, 2004).

  • QUADRO 4

    Os onze maiores municpios em populao e seus IDH taxas de homicdio, roubo e furto 2000

    MUNICPIOS IDH 2000

    Ordem IDH

    Taxa de Homicdio

    Ordem Taxa de

    Homicdio

    Taxa de Roubo

    Ordem Taxa de

    Roubo

    Taxa de Furto

    Ordem Taxa de

    Furto Porto Alegre 0,865 2 21,56 54 1.606,57 2 3.712,57 8 Caxias do Sul 0,857 4 8,96 142 492,66 22 2.150,44 43 Pelotas 0,816 91 4,70 180 251,81 44 1.926,03 49 Canoas 0,815 97 10,76 122 1.064,02 6 2.120,97 31 N. Hamburgo 0,809 123 19,65 61 971,86 8 2.073,49 44 Santa Maria 0,845 9 6,19 168 508,35 21 2.618,51 25 Gravata 0,811 121 10,51 127 945,17 9 1.812,38 88 Viamo 0,808 133 16,12 81 834,78 11 1.466,68 169 So Leopoldo 0,805 150 24,48 48 1.667,55 1 2.411,47 28 Rio Grande 0,793 203 8,18 150 629,56 15 2.014,60 26 Alvorada 0,768 308 18,35 69 1.554,38 3 1.492,65 101 Taxas de homicdio, roubo e furto: nmero de ocorrncias por 100.000 habitantes Fontes: Nmero de homicdios, furtos e roubos: Secretaria da Justia e da Segurana / Diviso de Estatstica Criminal - DEC Populao: Fundao de Economia e Estatstica - FEE IDH 2000: Atlas do Desenvolvimento Humano - PNUD

    Nota-se que a pesquisa indica falta de confiana da populao nos

    policiais. H uma insatisfao generalizada em relao ao trabalho policial na

    cidade. Com base na pesquisa de Rolim, em um ano, mais da metade da

    populao de Alvorada foi vitimada pelos seguintes crimes: furtos, roubos,

    arrombamento e agresso fsica. A maior parte das vtimas encontra-se entre

    os residentes com renda entre 2 e 5 salrios mnimos.

    O confronto dos dados na pesquisa sobre vitimizao com o registro de

    ocorrncias permitiu medir a taxa de subnotificao na cidade para os

    principais delitos. Conforme os resultados do referido estudo, alta a taxa de

    subnotificao de ocorrncias criminosas em delitos como arrombamentos e

    trfico de drogas.

    Assim, mesmo que 32.000 pessoas testemunharam esses delitos,

    Alvorada possui 20 ocorrncias de trfico de drogas registradas pela polcia no

    mesmo perodo, o que acontece tambm com delitos como furto, agresses

    fsicas, arrombamentos e outros crimes. Para ilustrar melhor a idia, trazemos

  • dados da mencionada pesquisa: enquanto a policia registrou 1.851 ocorrncias

    no perodo, na pesquisa de vitimizao foram registrados 17.943 furtos. Em

    agresses fsicas, os registros oficiais apontam 1.517 casos, contra 8.362

    apurados. Houve 622 registros oficiais de arrombamentos e 19.912 casos

    apurados pela pesquisa. E, assim, a situao se repete sucessivamente com

    outros crimes. De todos eles, o nico em que as ocorrncias revelam taxas

    bastante prximas da realidade o homicdio, pois este se presta menos

    manipulao.

    A pretenso demonstrada nas informaes colocadas anteriormente

    apresentar os dados institucionais sobre a violncia no municpio de Alvorada,

    para introduzir o assunto de nosso interesse: examinar como esse fenmeno

    da violncia vivenciado por duas geraes - jovens e idosos - moradores do

    municpio.

    2.3. PERFIL DO UNIVERSO EMPRICO SELECIONADO

    Para analisar as representaes de violncia, insegurana e medo em

    Alvorada, selecionamos informantes de duas faixas etrias (jovens e terceira

    idade) que participam de dois projetos organizados pela prefeitura desse

    municpio, localizados na sede da Secretaria de Trabalho, departamento de

    Assistncia Social e Cidadania, no centro da cidade.

    O projeto para terceira idade existe h sete anos no municpio. Destina-

    se a pessoas adultas e idosas, com idade mnima de 45 anos; a maior parte

    est em fase de aposentadoria. So aproximadamente 500 inscritos; quase

    todos os participantes so mulheres. O programa dedica especial ateno

    queles que esto com problemas de sade e precisam de acompanhamento

    mdico. Seu objetivo central a educao em sade, constituindo-se a sade

    o foco principal. Nele, d-se um tratamento especial a diabticos e a

    hipertensos. A coordenadora desse programa com idosos explica que divide

    os participantes em grupos: hipertensos e diabticos por um lado; e, por outro,

    pessoas de acordo com a atividade desenvolvida: msica, artesanato,

    ginstica, tric, dana, passeios. Os homens participam principalmente de

  • bailes e passeios: quando tem baile aparece um monte de veio, disseram as

    participantes. Cabe ressaltar que quase tudo gratuito. A nica atividade paga

    so os passeios.

    Um dos objetivos do projeto o estmulo criao de laos de amizade

    entre essas pessoas, a construo de um espao social que lhes oportunize a

    expresso de sentimentos. Foi o que aconteceu, por exemplo, com uma

    senhora que disse ter sido vtima de violncia psicolgica ao perder

    tragicamente sua filha. No Conhecer, ela encontrou o apoio necessrio para

    enfrentar as crises que vivenciou. Tivemos conhecimento tambm do caso de

    dois participantes que, depois de uma excurso organizada pelo programa,

    namoraram e casaram. Antes disso, ele se sentia mal porque a esposa o tinha

    deixado; vivia entregue bebida e ao cigarro, vcios que, segundo ele mesmo

    contou, deixou, uma vez que ingressou no programa.

    Conhecer, para os idosos, representa um espao de convivncia. Nele

    seus integrantes so livres para ir e vir; no tm obrigao de assistir s

    atividades programadas. A coordenadora os deixa vontade para fazerem o

    que quiserem; podem ir l somente para olhar as atividades desenvolvidas. A

    freqncia da participao tambm livre: alguns vo s uma vez por semana

    para tomar um caf ou ch, enquanto que outros vo todos os dias,

    permanecendo durante o dia todo. Nesse ltimo caso, Conhecer uma

    extenso da casa afirmou a coordenadora.

    O outro projeto selecionado o Agente Jovem, implementado em

    Alvorada h dois anos. So nove ncleos no municpio, com capacidade para

    250 jovens, estando atualmente com 190. dirigido a jovens de 15 a 17 anos,

    encaminhados para o projeto pelos pais, pelo CRAS (Centro de Referncia em

    Assistncia Social) ou pelo Conselho Tutelar. Pretende-se, com este projeto,

    suprir as carncias no mbito das polticas pblicas para a juventude, a falta de

    reconhecimento de suas necessidades e evitar que os jovens sejam recrutados

    pelo narcotrfico, como costuma suceder nas periferias urbanas.

    Entre os objetivos especficos do programa Agente Jovem, est a

    capacitao de jovens para o mundo do trabalho e para atuar em suas

    comunidades, nas reas de sade, cultura, meio ambiente, cidadania, esporte,

    turismo e outros. A idia fazer com que esses adolescentes sejam agentes

  • sociais nos locais onde moram, alm de habilit-los para desenvolver seus

    projetos de vida. Consideram que, atravs dessas atividades, possvel tirar os

    adolescentes das ruas nos horrios em que esto fora da escola e reverter

    assim os indicadores sociais mediante a ao preventiva. Visa a prevenir que

    esses jovens pratiquem atos violentos.

    Os jovens inscritos no projeto esto em situao de vulnerabilidade,

    risco pessoal e social. A vulnerabilidade social, neste contexto, define a

    situao econmica, o no-comparecimento escola e o uso de drogas. Nesse

    contexto social, a droga a maior causa de vulnerabilidade social.

    Trata-se de egressos que esto cumprindo medida scio-educativa

    (FASE Fundao de Atendimento Scio-Educativo), ou so oriundos de

    programas de atendimento explorao comercial. Devem estar estudando e,

    em caso de no estarem, so encaminhados para a escola. Mas, segundo

    comenta a coordenadora, os jovens do projeto tm um rendimento baixo. Outro

    requisito para participar estar cadastrado no programa Bolsa-Famlia.

    Para nossa pesquisa, selecionamos, entre os nove ncleos, o Ncleo

    Conhecer. A coordenadora do mesmo afirmou que trabalha com os jovens

    assuntos da comunidade, mostra os servios de que ela dispe, como posto de

    sade, CRAS. Encaminha-os para o CRAS quando tm problemas

    psicolgicos. Trabalha sobre drogas e sexualidade. Atualmente, desenvolve um

    projeto relativo religiosidade. Quanto ao tema religio, a maioria deles no se

    interessa nela. Acreditam que s serve para roubar dinheiro de seus fiis. O

    interesse maior pela sexualidade e as drogas. Comenta que, no perodo de

    nossa pesquisa, esto se preparando para fazer uma apresentao sobre a

    religio esprita, o espiritismo (grupo da manh) e sobre a religio luterana

    (grupo da tarde).

    No entanto, conforme a coordenadora do programa, apesar do leque de

    atividades oferecidas para benefici-los, os jovens esto ali pelo simples

    interesse na bolsa. Recebem sessenta e cinco reais por ms. Alm da bolsa,

    so beneficiados com a possibilidade de assistir a cursos profissionalizantes

    gratuitos, e recebem acompanhamento de psiclogos e assistentes sociais.

    Durante nossa pesquisa de campo, tivemos oportunidade de observar

  • esse desinteresse pelas atividades do grupo. Num dia em que estava fechado

    o salo onde se desenvolvem as atividades do Ncleo Conhecer, como a

    coordenadora no tinha a chave, os jovens que ali se encontravam acharam

    logo que estavam livres para retornarem s suas casas. Quiseram ir embora;

    no optaram por se dirigir a outro Ncleo que fica perto do Conhecer.

    importante salientar que esses jovens so obrigados a participar das

    atividades. A diferena est em que, no programa da terceira idade, a presena

    cobrada e condio para receber a bolsa. Argumenta a coordenadora:

    Com o dinheiro da bolsa, ajudam nas despesas da famlia. H 7

    deles que no esto indo; nesses casos a coordenao os manda

    para o CRAS ou para o Conselho Tutelar, para fazer eles retornar ao

    programa, e se no voltam abre outra vaga. Tem muita evaso,

    principalmente os que chegam por meio do CRAS ou do Conselho

    Tutelar. Eles querem estar nas drogas, na rua.

    Percebemos que o trabalho com esses jovens, para as coordenadoras

    de Agente Jovem, no fcil. A atual coordenadora expressou sua

    desconfiana neles. Disse que tem medo de deixar a bolsa na sala porque

    todas as que o fizeram tiveram o celular roubado. Inclusive, recomendaram

    pesquisadora que tivesse cuidado com a bolsa durante sua estada l. De

    nossas observaes s atividades no Agente Jovem e pelas conversas,

    conclumos que h desconfiana e uma certa tolerncia com os jovens por

    parte da coordenadora.

    Ao acompanharmos algumas das atividades desenvolvidas pelos jovens

    (no ginsio, fazendo educao fsica, e em sala de aula), notamos um

    comportamento bastante agressivo entre eles. As atividades ocorrem sob clima

    de tenso. Perpassa uma certa revolta com a condio social desfavorecida

    em relao a outras camadas sociais. Contudo, nem todos os grupos de jovens

    esto em situao de pobreza. A coordenadora afirmou que, com alguns

    grupos, ela s consegue iniciar as atividades depois de lhes dar lanche; j com

    outros, no.

    A observao da natureza das relaes entre os jovens do programa

  • colocou a pesquisadora diante de uma situao que nunca tinha presenciado

    na convivncia com jovens de outros espaos.

    No sentido de apresentar o municpio, sua situao em termos de

    violncia, de acordo com os dados oficiais, e o universo emprico a partir do

    qual desenvolvemos as questes, vamos, no captulo seguinte, tratar acerca de

    algumas propostas tericas para aquilatar a violncia.

  • 3. MARCO TERICO DA VIOLNCIA

    3.1. VIOLNCIA: UMA CLASSE DE RELAO

    Wieviorka (2006) prope uma teoria da violncia com base na noo de

    sujeito, conformando-o a duas possibilidades: a primeira ser protagonista da

    violncia e, eventualmente, sair dela. A segunda remete s vtimas, atingidas,

    direta ou indiretamente, pela violncia. A violncia um problema que pode

    destruir a vida coletiva, a vida pessoal, a famlia e at uma cidade e um pas.

    o contrrio da capacidade de viver junto. Por isso, entend-la, compreend-la,

    estud-la e lutar contra ela , de certa maneira, construir a vida social e

    pblica.

    Em ambas as possibilidades, a violncia revela-se um fenmeno atravs

    do qual o sujeito coloca em ao um sentido, isto , d inicio a uma ao com

    sentido especfico para o sujeito, seja ele pessoal ou coletivo, sendo que

    qualquer experincia concreta em que a violncia intervm e propicia condutas

    protagonizadas pelo sujeito decorre de um excesso ou de uma falta. Isso

    acontece, por exemplo, no processo de socializao. Para ilustrar essa idia, o

    autor nos remete a observaes realizadas em tribos, grupos que praticam a

    crueldade, autodestruio, sempre partindo de um sujeito pessoal/coletivo

    suprimido, almejando realizar uma ao em busca de um resultado.

    Nessa posio, o autor localiza tambm os grupos terroristas, que

    realizam aes violentas, fundamentados em princpios religiosos. Nessa

    perspectiva, a violncia um fenmeno multiforme, repleto de significaes

    sociais e culturais que a transformam e deformam constantemente,

    constituindo-se uma identidade mutvel. Hannah Arendt (1994) explica que a

    violncia almeja um fim, um sentido que, na prtica, perde-se, desnatura-se,

    perverte-se e sobrecarrega-se.

    No quadro atual, o Brasil vivencia um aumento da violncia em centros

    urbanos, onde a condio do sujeito passa por uma experincia de no-

    reconhecimento de seu lugar na sociedade, principalmente no caso dos jovens,

    pois sofrem inmeros tipos de discriminao, e a violncia urbana surge dessa

    ao condicionante (no-reconhecimento/discriminao) que produz frustrao

    no sujeito (WIEVIORKA, 2006, p. 204).

  • Nesse contexto social, a violncia uma forma de relao social,

    construda de maneira assimtrica; fruto de uma comunicao desigual. A

    qualificao de uma prtica de violncia (legtima ou ilegtima) vai depender

    dos cdigos morais utilizados na avaliao. Ao mesmo tempo, esses cdigos

    morais so o suporte para o desenvolvimento de procedimentos legais e de

    recursos coercitivos utilizados para conter essas prticas. Quer dizer, uma

    situao reconhecida como violenta se preenche os requisitos sociais

    capazes de propiciar tal reconhecimento.

    Atribuir a um ato o qualificativo de violento e, portanto, condenar os

    atores sociais responsveis no um procedimento tranqilo, livre de tenses;

    pelo contrrio, resulta da disputa de poder entre os atores sociais que

    defendem posies contrrias.

    Wieviorka (2006, p. 203), em suas reflexes, considera que o sujeito tem

    a capacidade de construir-se a si prprio, de escolher, de produzir sua

    existncia. Nesse sentido, postula que a violncia a marca de um sujeito

    contrariado, interditado, impossvel ou infeliz. O sujeito1 encontra na ao sua

    realizao concreta mais importante, mesmo sendo destrutiva ou violenta. Esse

    fato pode proceder da frustrao de uma pessoa, em circunstncias em que se

    v privada de bens materiais e/ou de um reconhecimento simblico, da

    identidade social.

    Esse fenmeno acontece num contexto em que as fronteiras culturais

    entre camadas sociais so atenuadas. Os jovens de diversos espaos sociais

    tm acesso s informaes sobre servios e produtos existentes no mercado,

    veiculadas pelos meios de comunicao. Ento, sejam eles originrios de

    setores perifricos ou centrais das cidades, desejam o mesmo tipo de bens de

    consumo: veculos, roupas, diverso, entre outros.

    1 Para uma primeira aproximao, neste trabalho fao duas caracterizaes de sujeito: uma de Franois Dubet e outra de Michel Wieviorka, embora distintas, as duas conceituaes so influenciadas pelos trabalhos de Alain Touraine, professor de ambos. Para Dubet, O Sujeito no um estado de fato [...], o Sujeito no existe. um tipo ideal, uma construo cultural. O que existe o sentimento de ser sujeito, de construir sua vida em adequao com aquilo que se tenciona ser. uma aproximao, um projeto no apenas individual, mas tambm social, pela articulao entre lgicas de ao diferentes e vinculadas a um sistema social. (DUBET, 2003; p.204).

  • Essa frustrao no jovem comum e pode lev-lo ao crime para ter

    acesso ao consumo de bens desejados. , por exemplo, a situao bem

    conhecida do jovem que comete crimes para comprar droga ou para obter bens

    da sociedade de consumo dos quais est privado pela escassez de recursos

    monetrios. Recorre violncia para estar acorde com uma sociedade que lhe

    d proeminncia aos valores materiais. Citando Wieviorka (2006 p. 204), [...] a

    frustrao remete mais ao indivduo preocupado em consumir do que ao sujeito

    esforando-se para construir-se.

    Destacamos essas consideraes de Wieviorka porque elas ajudam a

    aprofundar os estudos sobre a violncia entre jovens e idosos. A violncia um

    problema constante, mas ns podemos nos questionar se no h na violncia

    um valor fundador do sujeito pessoal. Em certos casos, por meio de uma

    experincia de violncia, ns descobrimos a capacidade de nos

    autotransformarmos. As pessoas que no fazem nada, que no tm nada,

    podem tirar de uma experincia dessas a motivao para tomar aes

    polticas, praticar um esporte, aderir a uma igreja, escrever uma dissertao.

    Essa mesma violncia, ao longo do tempo, destri e transforma o sujeito. Nos

    grupos de jovens e idosos, a violncia aproxima as pessoas em busca de um

    ideal (grifo meu) que possa modificar suas vidas para melhor e tambm se

    relaciona diretamente com a insegurana. Como ser abordado no ltimo

    captulo, a insegurana o catalisador das relaes sociais em ambos os

    grupos.

    3.2. VIOLNCIA E VULNERABILIDADE SOCIAL

    A situao descrita indica a importncia de revisar o conceito de

    vulnerabilidade para compreender o panorama social dos jovens, mas, antes,

    preciso caracterizar a gerao dos jovens da qual estamos tratando. Em nossa

    anlise, definimos a categoria social jovem no por um critrio biolgico,

    seno pela fase de transio entre a subordinao autoridade, na unidade

    familiar - e demais instituies sociais e sua emancipao, processo de

    transio marcado por elementos especficos em cada situao social.

  • No contexto dos setores marginais das cidades, os jovens representam

    o setor social mais vulnervel s transformaes ocorridas na atividade

    econmica neoliberal e no modo de vida. Novaes e Vannuchi (2004, p. 8),

    pensando em nvel mundial, afirmam que os jovens so os alvos de mudanas

    sociais em curso. Eles so os mais atingidos pela retrao do mercado, pela

    terceirizao e flexibilizao das relaes de trabalho.

    Dados de diversos estudos sobre jovens mostram que, devido falta de

    oportunidades de trabalho e de alternativas de lazer, soma-se a vulnerabilidade

    violncia a que esto expostos esses atores sociais, o que se reflete em

    inmeras mortes. Os estudos revelam que, enquanto a falta de alternativas de

    trabalho e lazer no trao novo na vida dos jovens de baixa renda no Brasil,

    j o medo, o envolvimento ativo ou passivo em atos violentos e no trfico de

    drogas so as marcas de uma gerao em que esses atores sociais2 esto

    sendo dizimados, independentemente da camada social qual pertencem.

    Essa ponderao rompe com a associao entre misria e violncia. No so

    apenas os jovens de setores pobres os envolvidos em violncia. Estes, porm,

    como moradores das periferias, apresentam descontentamento por sua

    excluso social, agravada, em alguns casos, de forma violenta, e querem ser

    reconhecidos e valorizados como cidados (CASTRO E ABRAMOVAY, 2002).

    Entre as questes que afetam a gerao dos jovens esto: o

    desencanto, as incertezas em relao ao futuro, a descrena na legitimidade

    das instituies e o autoritarismo. Nessas circunstncias, a escola e a famlia

    perdem a referncia que tiveram para outras geraes. Nota-se a diversidade

    de construes dessas referncias em grupos em uma mesma gerao. Por

    outro lado, convivem com as contradies entre a sociedade de espetculo e o

    apelo responsabilidade social e o associativismo. So contradies que

    potencializam as vulnerabilidades negativas como fragilidades, obstculos e

    resistncias.

    Em suas aes, os jovens enfrentam certos obstculos para concorrer a

    2 Segundo Matus (1993, p. 54) o conceito de homem estrutura-se como o de um ator social. " uma personalidade, uma organizao, ou um agrupamento humano, que, de certa forma, estvel ou transitria, tem capacidade de acumular fora e desenvolver interesse, produzindo fatos na situao".

  • empregos urbanos: baixo nvel de escolaridade, escassez de recursos

    financeiros para dar continuidade aos estudos, falta de oportunidades nas

    cidades e o fato de que, s vezes, quando essas oportunidades aparecem, no

    compensam em termos financeiros.

    Nas periferias, eles esto inseridos num mundo onde no so

    reconhecidos. H falta de polticas pblicas para a juventude. Esse abandono e

    a falta de perspectivas favorecem as dinmicas perversas de recrutamento de

    meninos pobres pelo narcotrfico.

    A mobilizao social dos jovens em busca de recursos monetrios

    costuma implicar na ruptura com um processo de socializao em famlia, e,

    por meio dessa ruptura, na possibilidade de se engajar em outras formas de

    sociabilidade. Nos novos espaos sociais por onde passam a transitar, os

    jovens constroem vises de mundo e redes de sociabilidade decisivas na

    escolha de seus futuros caminhos.

    Nesse sentido, preciso refletir tambm sobre uma questo que torna

    os jovens vulnerveis violncia, insinuada acima, ao nos referirmos

    descrena nas instituies, na qual vamo-nos deter neste item, pois uma

    questo que permeia os discursos nesta pesquisa: a violncia policial.

    3.3. VIOLNCIA POLICIAL

    Entendemos a violncia policial como prtica de justias e/ou injustias,

    envolvendo principalmente a populao jovem, considerando que os jovens

    so vtimas e agentes da violncia policial.

    A reflexo inicial do problema, a partir da literatura sobre o tema, indica

    que um fenmeno amplamente evocado por diversos setores da sociedade,

    principalmente pela mdia: a violao aos direitos humanos por parte dos

    policiais no exerccio de suas funes, atingindo principalmente o setor jovem

    da populao. A interpretao dada ao problema atravs da mdia e por

    responsveis da Segurana Pblica (BALESTRERI, 2003) consensual e est

    voltada para a descrio de um conflito social.

  • J com um vis crtico da problemtica, percebe-se que as prticas dos

    agentes policiais, como detentores do poder de exercer a violncia e em nome

    do combate ao crime, cometem bastantes arbitrariedades, violando os direitos

    humanos. Um amplo nmero de policias envolve-se em aes de violncia,

    corrupo, tortura e grupos de extermnio. Atua indiferente aos valores

    humanos e acaba por produzir a impotncia da segurana pblica no controle

    da criminalidade. Esses fatos levam corroso da imagem policial, sua

    desmoralizao, descrena nesses profissionais, na instituio qual

    pertencem e no Estado que representam.

    Uma interpretao das aes policiais sugere que o exerccio da

    violncia como forma de controle social por parte desses atores sociais

    inscreve-se no mbito de uma sociedade estratificada na qual o crime e os

    comportamentos marginais, em geral, so utilizados para legitimar polticas

    sociais que afetam as camadas baixas da populao e justificam o

    desenvolvimento de um Estado disciplinar. Nesse contexto social e poltico, o

    crime atribudo falta de disciplina, de auto-controle e de controle social.

    Portanto, para inibi-lo, as autoridades recorrem ao aumento do controle social e

    marginalizao de sujeitos tidos como perigosos.

    Assim, mesmo que o Estado de bem-estar social proponha o abandono

    das medidas punitivas, percebe-se, pelas prticas policiais, que esses

    sentimentos punitivos desapareceram apenas do discurso oficial, continuando

    presentes na cultura popular e no senso comum. As apreciaes do senso

    comum fundamentam-se em consideraes superficiais e ideologias que

    demandam, a qualquer custo, justia, castigo e proteo. Nessa tica, os

    delinqentes devem ser perseguidos com toda a fora da lei, e o culpado deve

    ser sempre castigado.

    Contudo, para os policiais, so diversos os significados das prticas de

    violncia que protagonizam. Esses significados relacionam-se com a posio

    social que eles ocupam dentro da hierarquia de poder, tanto institucional (o

    poder legitimado institucionalmente de praticar a violncia para combater o

    crime) quanto social e simblico.

    O exerccio da violncia como forma de poderes da instituio policial

    causa revoltas entre setores sociais da populao, induz as pessoas a se

  • manifestarem de maneira violenta contra as aes policiais; em conseqncia

    disso, constitui-se uma situao geradora de mais violncia.

    No entanto, no se pode generalizar a concepo da policia como

    agente da brutalidade arbitrria, pois os policiais so atores sociais que

    ocupam diversas posies e, a partir delas, desenvolvem aes; ento, os

    mbiles da violncia protagonizada pela polcia so mltiplos. Alm disso,

    necessrio considerar a situao dos policiais como atores de uma justia

    penal que no autnoma, mas condicionada em suas aes por instncias de

    poder poltico amplo, que direcionam suas opes em conformidade com a

    opinio pblica. A problemtica da violncia policial, abordada neste item,

    levanta uma srie de questes que evocam a relevncia em aprofundar

    tambm a relao entre violncia e poder em Alvorada.

    3.4. VIOLNCIA E PODER

    Iniciamos a discusso terica da relao entre violncia e poder

    remetendo-nos a Thomas Hobbes, cujo pensamento filosfico e poltico,

    construdo no marco das guerras civis inglesas, no sculo XVII, para dar

    resposta ao que ele considerava o horror da guerra, lembrado na atualidade

    para refletir acerca das tenses sociais que surgem das discrdias entre os

    homens e de lutas pelo poder.

    Para Hobbes (1999), a violncia faz parte do estado de natureza

    humana. Cada homem livre para usar seu prprio poder, da maneira que

    quiser, para preservar sua prpria natureza, isto , sua vida. Est livre para

    fazer tudo aquilo que ele julgue adequado a esse fim. Na guerra de todos

    contra todos, cada um governado por sua prpria razo. Pode lanar mo do

    que for para preservar sua vida contra os inimigos. Nesse sentido, nenhum

    homem tem a segurana de viver todo o tempo que a natureza permite. A regra

    que qualquer homem deve esforar-se pela paz, quando tenha esperana em

    consegui-la. Para manter a paz, o homem tem que renunciar ao direito a todas

    as coisas, assim como os outros tm tambm que renunciar a esse direito. No

    caso de cada homem querer garantir seu direito, a guerra ser constante.

  • Seu argumento o sustenta no fato de que a igualdade natural entre os

    homens faz com que estes desejem as mesmas coisas. Mas como a coisa

    impossvel de ser gozada por todos, eles acabam tornando-se inimigos entre si

    e esforando-se por se destruir uns aos outros. Se algum constri ou possui

    um lugar conveniente, provvel que venham outros com fora para

    desaposs-lo e priv-lo do fruto de seu trabalho e da liberdade.

    Ele vai se abstraindo da racionalidade e age violentamente por causa

    de seu instinto de conservao. Para sobreviver e se garantir no espao, o

    homem utiliza a antecipao, que consiste em subjugar pela fora os homens

    que puder, durante o tempo que for necessrio, at chegar o momento em que

    no veja outro poder suficientemente grande para amea-lo. Quem tem o

    poder no se limita a uma atitude de defesa; ele deve aumentar o domnio para

    sua conservao. A utilidade da fora a medida do direito. Hobbes (1999)

    defende a supremacia da fora sobre o direito; nessa tica, a justia no tem

    nenhum peso.

    Para este autor, so trs as causas de discrdia entre os homens: a

    competio, a desconfiana e a glria. Elas esto voltadas respectivamente

    para a obteno do lucro, da segurana e da reputao. Nesse processo,

    distinguem-se dois momentos: (a) um em que os homens so capazes de

    manter o respeito mtuo - seria o tempo de paz; (b) o outro o tempo de luta

    de todos contra todos, do Estado de Natureza, quando os homens agem de

    maneira violenta numa tentativa de conquistar o respeito dos outros, de atingir

    seus interesses e de garantir sua conservao.

    Esse foco de Hobbes para pensar a violncia nos remete descrio de

    situaes em que o homem age movido pela fora do instinto, por atitudes

    defensivas. Seguindo a teoria de Hobbes (1999), em ambos os casos, um

    comportamento acorde com um direito, a ao em funo a um direito, mas

    no a uma lei, obrigao. Percebemos a apelao a esse direito na anlise

    das representaes da violncia entre as pessoas de Alvorada. Elas defendem,

    em seus depoimentos, a violncia quando praticada contra um algoz,

    quando, como eles dizem, algum fez coisa errada.

    Alm dos pressupostos tericos de Hobbes (1999) para pensar a

    violncia, nos remetemos a outra cientista poltica, cuja obra tambm tem

  • contribudo para nossas reflexes tericas sobre o assunto. Trata-se de

    Hannah Arendt (1906-1975). Ela, tanto quanto Hobbes, situa sua anlise no

    mbito da violncia poltica e, a partir dela, oferece elementos tericos para

    compreender a relao entre o poder e a violncia.

    Em Sobre a Violncia, texto escrito entre 1968 e 1969, Arendt (1994)

    debrua-se sobre a problemtica, almejando conhecer as causas e a natureza

    da violncia no mbito poltico. De modo geral, considera a violncia um

    denominador comum no sculo XX, cuja multiplicao obedece intromisso

    na poltica.

    Inicia o texto com uma crtica aos movimentos da nova esquerda, no

    final dos anos 1960, demonstrando como esses movimentos optaram pela

    glorificao da violncia. Para ela, um equivoco dos tericos da poltica, da

    esquerda direita, acreditar que a violncia a essncia de todo poder3.

    O eixo central da crtica de Arendt (1994) posio de intelectuais e

    polticos que glorificam a violncia a abordagem de acontecimentos polticos

    a partir da violncia e do poder, tratando-os como dois fenmenos distintos.

    Discorre sobre a importncia de distinguir ambos os fenmenos e de

    abandonar o tratamento dos termos: fora, vigor e autoridade como sinnimos

    de poder e violncia4, pois, geralmente, todos esses termos so igualmente

    utilizados para designar os meios atravs dos quais o homem domina.

    Para pensar o assunto, Arendt (1994) inspira-se numa poca

    caracterizada por rebelies estudantis no mundo todo, por confrontos raciais

    nos Estados Unidos e pelo progresso tecnolgico na produo de meios de

    violncia em guerras, como a do Vietn. Em suas reflexes acerca do racismo,

    nazismo, fascismo e demais eventos histricos em que houve genocdio,

    3 Para Hannah Arendt, "o poder corresponde habilidade humana no apenas para agir, mas para agir em concerto. O poder nunca propriedade de um indivduo; pertence a um grupo e permanece em existncia apenas na medida em que o grupo conserva-se unido. Quando dizemos que algum est 'no poder', na realidade nos referimos ao fato de que ele foi empossado por um certo nmero de pessoas para agir em seu nome" (1994; p.36). 4 Este carter instrumental demonstra que fenomenologicamente, ela est prxima do vigor, posto que os implementos da violncia, como todas as outras ferramentas, so planejados e usados com o propsito de multiplicar o vigor natural at que, em seu ltimo estgio de desenvolvimento, possam substitu-lo (ARENDT, 1994; p. 37).

  • assinala que precursores dessas prticas, entre eles Adolf Hitler e Benito

    Mussolini, achavam que somente atravs da violncia seria possvel

    transformar uma nao. E a autora concorda com o fato de a violncia ser uma

    prtica que muda o mundo, mas uma mudana para um mundo violento. A

    adoo da violncia como meio de luta era o que Hannah Arendt mais temia,

    pois, se os objetivos almejados de emancipao no fossem rapidamente

    alcanados, a conseqncia seria uma sociedade muito mais violenta,

    provocando a desestruturao das sociedades, dos Estados e da conduta e

    personalidade dos indivduos.

    Ao dirigir a ateno para o racismo nos Estados Unidos, Arendt (1994)

    alerta para o perigo de se deixar conduzir por metforas biolgicas ou

    orgnicas que produzem e sustentam o racismo. Essa postura sintoma de

    uma sociedade doente, na qual a ao coletiva violenta torna-se um fato

    natural, um pr-requisito da vida em sociedade, conduzindo, muitas vezes,

    morte violenta. Nessa perspectiva, a produo da morte violenta um recurso

    para preservar a sobrevivncia e garantir a manuteno dos grupos.

    Alm de chamar a ateno para as conseqncias da cultura da

    violncia, compara os conceitos de violncia e poder, no mbito poltico, e

    afirma que o poder a essncia de todo governo, e no a violncia. A violncia

    instrumental; um meio que depende de orientao e de justificao pelo fim

    que almeja, enquanto o poder precisa de legitimidade. Do seu ponto de vista, a

    violncia justificvel, mas no legtima, sendo que a justificao se perde

    quanto mais o fim objetivado esteja no futuro.

    Centrada nessa hiptese, Arendt (1994) contraria a posio dos

    pensadores que analisam o poder como uma relao de mando-obedincia, no

    mbito da qual a violncia uma manifestao de poder, isto , quando o

    poder e a violncia so equivalentes. Interpreta essa equao, ligada

    concepo do governo como o domnio do homem pelo homem atravs da

    violncia, no sentido Hobbesiano. A autora distancia-se tambm de Hobbes ao

    asseverar que a violncia e o poder no so fenmenos naturais nem

    manifestaes do processo vital. Eles pertencem ao mbito poltico das

    negociaes humanas, cuja qualidade garantida pela capacidade humana

    para agir.

  • Arendt (1994) aponta que a questo da obedincia no decidida pela

    relao mando-obedincia, mas pela opinio. A obedincia s leis, aos

    dominantes, uma manifestao de extremo consentimento. Os homens

    precisam de apoio para se manter no poder, no do uso da violncia. De

    acordo com ela, o poder existe onde as pessoas se unem e agem em conjunto,

    em grupo. O poder um consenso de muitos, e sua legitimidade deriva do

    estar junto.

    J o domnio pela pura violncia advm de onde o poder est sendo

    perdido, quando o ltimo recurso para dominar os que se recusam a serem

    subjugados pelo consenso da maioria. Arendt (1994) complementa esse

    postulado terico dizendo que, na sociedade contempornea, a tentao de

    recorrer violncia se apresenta em condies ultrajantes, nas quais ela o

    nico meio de fazer justia. Quando a violncia usada em defesa prpria,

    porque o perigo claro, o fim justifica os meios. Enquanto ao, a violncia

    um instrumento plausvel de romper com determinada forma de dominao e

    de mudar uma situao considerada insuportvel. A violncia substitui o poder

    e se transforma num meio de conduo poltica destruidora. No depende da

    opinio seno de implementos que ampliam o vigor humano; um recurso para

    manter a estrutura de poder contra contestadores.

    O poder o princpio essencial do artifcio humano, e quando trocado

    pela violncia para atingir o objetivo, sem viabilizar as necessidades e

    realidades do meio, transforma-se num fim em si mesmo, contaminando a

    sociedade e o sistema poltico. No entanto, o domnio pela violncia pura no

    fortalece o poder, mas preenche a lacuna onde o poder est se perdendo e se

    destruindo totalmente. Em vez de conseguir preserv-lo e mant-lo, surge a

    tirania, que transforma sua ao a favor da violncia e da represso. No marco

    de sistemas totalitrios e violentos, mais vivel e seguro para os cidados a

    promoo de aes violentas.

    A destruio do poder pela violncia traz o desentendimento entre os

    homens e a desagregao da esfera pblica, enquanto espao de opinio, de

    consensos e de direitos. Onde a interao se d atravs da violncia, esta

    usurpa o espao pblico e utiliza o lugar do poder. O aumento da violncia

    resulta na perda do poder e da impossibilidade da interao e atuao poltica

  • na esfera pblica, no enfraquecimento das relaes, na impotncia da tomada

    de decises da ao coletiva. Em suma, violncia e poder so opostos: a

    violncia destri o poder; em sua forma extrema, todos contra todos,

    representa a negao do poder.

    Para complementar as idias referidas acima, Arendt (1994) associa a

    violncia ao dio, no sentido de que a violncia advm de um dio, racional ou

    patolgico, e ambos pertencem s emoes naturais do homem. O dio

    aparece onde h razo para supor que as condies poderiam ser mudadas,

    mas no so; sentido quando o senso de justia ofendido. Extirpar aes

    em que os homens tomam a lei com suas prprias mos para o bem da justia

    seria castrar o homem. Assim, Arendt (1994) postula que a manifestao de

    violncia uma reao natural dos homens diante das injustias. Esse

    sentimento produz a vontade de desmascarar as manipulaes dos que

    dominam, sem uso de meios violentos.

    A teoria da Arendt (1994) nos ajuda a refletir acerca da atuao violenta

    da polcia em situaes nas quais o poder (como definido pela autora) est

    sendo perdido, quando a polcia recorre violncia como instrumento de

    obedincia.

    Hobbes (1999) e Arendt (1994) tratam a relao violncia e poder a

    partir de contextos sociais e histricos diferentes ao nosso. Agora, gostaramos

    de nos remeter s contribuies de um socilogo brasileiro, Jos Vicente

    Tavares dos Santos, que aborda tambm o problema, com base em uma

    realidade prxima de ns.

    Tavares dos Santos (1995), inspirado em Foucault (1987), expe a

    questo da violncia como fundadora de uma sociedade dividida, e que, para

    compreender esse fenmeno, necessrio reconstituir, no mbito das relaes

    sociais, as relaes de poder, exercidas de mltiplas formas. As relaes de

    poder estruturam-se em diversos eixos: de classes sociais, de relaes tnicas,

    de relaes de gnero, processos disciplinares e de maneira inconsciente. Em

    cada uma dessas relaes de poder, as diferentes formas de violncia esto

    presentes, fato que ele compreende como sendo derivado da situao de

    excesso de poder, configurando uma relao social inegocivel, porque leva ao

    limite as condies de sobrevivncia daquele que objeto do agente da

  • violncia.

    Tavares dos Santos(1995), como Arendt (1994), chama a ateno para

    o carter instrumental da violncia. um meio para chegar a um fim. Enquanto

    dispositivo de poder, a violncia exerce uma relao especfica com o outro

    pelo uso da fora e da coero; uma modalidade de prtica disciplinar. Ainda

    compartilhando as teorias de Arendt (1994), Tavares (1995) distingue o poder e

    a violncia. O primeiro um exerccio de dominao caracterizado pela

    legitimidade e pela capacidade de negociar o conflito e estabelecer consenso.

    J a violncia denota uma relao social inegocivel, pois consegue, no limite,

    as condies de sobrevivncia: materiais e simblicas daquele percebido como

    desigual pelo agente da violncia. Segundo o autor, h um continuum entre

    poder e violncia. A violncia sempre uma derivao de poder. Ocorre com a

    transformao de alguns atos e frente a algumas situaes de excesso de

    poder em violncia.

    Como so mltiplos os eixos de poder que esto em jogo e que

    transformam suas relaes em atos de violncia, o autor centra-se no eixo de

    dominao de classe. Suas idias remetem s colocaes de Giddens (1997)

    sobre o assunto: existem novas formas de violncia associadas ao novo estado

    da sociedade contempornea. A violncia, para Giddens (1997), o outro

    extremo da persuaso, aquele pelo qual os indivduos, grupos e o Estado

    buscam impor sua vontade a outros.

    Na obra citada, Giddens postula que no o aumento da fora e da

    violncia que faz o Estado assegurar o monoplio da fora e do poder

    soberano, seno o desenvolvimento do mecanismo de vigilncia e controle. Da

    que o uso da fora esteja associado a um dficit em matria de controle, e isso

    ocorre com todos os sistemas de poder. O autor, para reforar o argumento,

    refere-se ao patriarcado. Afirma que este nunca foi mantido pela fora e pela

    violncia. O poder dos homens sobre as mulheres tem durado pelo fato de

    possuir legitimidade, baseada em papis de gnero, nos valores a eles

    associados e na separao entre a esfera pblica e a esfera privada. O mesmo

    autor assinala que a violncia contra a mulher no expresso de poder do

    sistema patriarcal, seno uma reao sua dissoluo. A dominao se

    transforma em excesso de poder quando comea a perder sua capacidade de

  • persuaso, e a violncia uma reao a essa situao.

    Em suma, a violncia inerente s relaes que conformam uma

    sociedade. um instrumento de ao, meio de domnio, de coero, manifesto

    na relao com o Outro, seja o Estado ou os indivduos. A disseminao dessa

    prtica gera insegurana e coloca os indivduos diante do problema de

    liberdade. Esto livres para agir com violncia, como postula Hobbes (1999),

    por carecerem de uma instituio social, de uma ordem social que controle as

    aes? Ou esto inseridos numa sociedade, no marco da qual o Estado limita a

    liberdade individual das pessoas como garantia de sobrevivncia de outros

    indivduos? O esboo dessas questes visa a introduzir as reflexes sobre as

    noes de segurana e de liberdade, conforme a realidade contempornea,

    assunto sobre o qual nos deteremos no prxim