moscovici representacoes sociais w2003

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4 Editado em inglês por Gerard Duveen Traduzido do inglês por Pedrinho A. Guareschi © Serge Moscovici and Gerard Duveen 2000 Título original inglês: Social Representations Explorations in Social Psychology Publicado pela primeira vez em 2000 por Polity Press em associação com Blackwell Publishers Ltd. Direitos de publicação em lingua portuguesa: 2003, Editora Vozes Ltda. Rua Frei Luís, 100 25689-900 Petrópolis, RJ Internet: http://www.vozes.com.br Brasil Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora. Editoração e org literária: Sheila Ferreira Neiva ISBN 85.326.2896-6 (edição brasileira) ISBN O-7456-2226-7 (edição inglesa) Moscovici, Serge Representações sociais: investigações em psicologia social / Serge Moscovici: editado em inglês por Gerard Duveen: traduzido do inglês por Pedrinho A. Guareschi. -5ª ed. Petrópo- lis, RJ: Vozes, 2007. Título original: Social representations: explorations in social psychology Bibliografia 1. Interação social 2. Interacionismo simbólico 3. Psicologia social I. Duveen, Gerard. II. Título. III Título: Investigações em psicologia social. O3-3O44 CDD-3O2. 1 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) índices para catálogo sistemático: 1. Representações sociais: Psicologia social: Sociologia 3O2. 1 Este livro foi composto e impresso pela Editoras Vozes Ltda. atenção este material foi scaneado e revisado superficialme n- te, pode conter algum erro de transcrição.

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Editado em ingl ês por Gerard Duveen Traduzido do inglês por Pedrinho A. Guareschi © Serge Moscovici and Gerard Duveen 2000 Título original inglês: Social Representations – Explorations in Social Psychology Publicado pela primeira vez em 2000 por Polity Press em associação com Blackwell Publishers Ltd. Direitos de publicação em lingua portuguesa: 2003, Editora Vozes Ltda. Rua Frei Luís, 100 25689-900 Petrópolis, RJ Internet: http://www.vozes.com.br Brasil Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escri ta da Editora. Editoração e org literária: Sheila Ferreira Neiva ISBN 85.326.2896-6 (edição brasileira) ISBN O-7456-2226-7 (edição inglesa) Moscovici, Serge Representações sociais: investigações em psicologia social / Serge Moscovici: editado em inglês por Gerard Duveen: traduzido do inglês por Pedrinho A. Guareschi. -5ª ed. Petrópo-lis, RJ: Vozes, 2007. Título original: Social representations: explorations in social psychology Bibliografia 1. Interação social 2. Interacionismo simbólico 3. Psicologia social I. Duveen, Gerard. II. Título. III Título: Investigações em psicologia social. O3-3O44 CDD-3O2. 1

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) índices para catálogo sistemático: 1. Representações sociais: Psicologia social: Sociologia 3O2. 1 Este livro foi composto e impresso pel a Editoras Vozes Ltda.

atenção este material foi scaneado e revisado superficialme n-te, pode conter algum erro de transcrição.

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SUMÁRIO

Introdução - O poder das idéias, 7

1. O fenômeno das representações sociais, 29

2. Sociedade e teoria em psicologia social, 111

3. A história e a atualidade das representações sociais, 167

4. O conceito de themata, 215

5. Caso Dreyfus, Proust e a psicologia social, 251

6. Consciência social e sua história, 283

7. Idéias e seu desenvolvimento - Um diálogo entre Serge Moscovici e Ivan Marková, 305

Referências bibliográficas, 389

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INTRODUÇÃO

O poder das idéias

1. Uma psicologia social do conhecimento

Imagine-se olhando para um mapa da Europa, sem nenhuma indicação nele, com exceção da cidade de Viena, perto do centro, e ao norte dela, a cidade de Berlim. Onde você localizaria as cidades de Praga e Budapeste? Para a maioria das pessoas que nasceram depois da II Guerra Mundial, ambas as cidades pertencem à divi-são do Leste da Europa, enquanto Viena pertence ao Oeste e, con-seqüentemente, tanto Praga como Budapeste deveriam se lo-calizar a Leste de Viena. Mas olhe agora para o mapa da Europa e veja a localização real dessas duas cidades. Budapeste, com certe-za, está afastada, ao Leste, bem abaixo de Viena, ao longo do Da-núbio. Mas Praga está, na verdade, a Oeste de Viena.

Esse pequeno exemplo ilustra algo do fenômeno das repre-sentações sociais. Nossa imagem da geografia da Europa foi re-construída em termos da divisão política da Guerra Fria, em que as definições ideológicas de Leste e Oeste substituíram as geográfi-cas. Podemos também observar, nesse exemplo, como padrões de comunicação, nos anos do pós-guerra, influenciaram esse proces-so e fixaram uma imagem específica da Europa. E verdade que no Oeste houve certo medo e ansiedade do Leste, que antecederam a II Grande Guerra e que persistem mesmo até hoje, uma década depois da queda do Muro de Berlim e do fim da Guerra Fria. Mas essa representação, duma Europa dividida nos anos do pós-guer-ra, teve sua influência mais forte no eclipse da velha imagem da Mitteleuropa, de uma Europa Central, abarcando as áreas centrais do Império Austro-Húngaro, e estendendo-se ao norte, em dire-ção a Berlim. Foi essa Europa Central, desmembrada pela Guerra Fria, que reposicionou também ideologicamente Praga ao leste da Viena “ocidental”. Hoje, a idéia da Mitteleuropa está sendo nova-

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mente discutida, mas talvez o sentido da “ outridade” leste marcou a imagem de Praga tão nitidamente, que poderemos necessitar de muito tempo antes que esses novos padrões de comunicação re-posicionem a cidade novamente a oeste de Viena.

Esse exemplo, além de ilustrar o papel e a influência da co-municação no processo da representação social, ilustra também a maneira como as representações se tomam senso comum. Elas en-tram para o mundo comum e cotidiano em que nós habitamos e discutimos com nossos amigos e colegas e circulam na mídia que lemos e olhamos. Em síntese, as representações sustentadas pelas influências sociais da comunicação constituem as realidades de nossas vidas cotidianas e servem como o principal meio para esta-belecer as associações com as quais nós nos ligamos uns aos ou-tros.

Por mais de quatro décadas Serge Moscovici, juntamente com seus colegas, fez avançar e desenvolver o estudo das representa-ções sociais. Esta coleção reúne alguns dos ensaios principais, ex-traídos de um corpo bem maior de trabalho, que apareceu nesses anos. Alguns desses ensaios apareceram anteriormente em inglês, enquanto outros são traduzidos aqui para o inglês pela primeira vez. Juntos, eles ilustram a maneira como Moscovici elaborou e de-fendeu a teoria das representações sociais, enquanto na entrevista conclusiva com Ivana Marková, ele apresenta os elementos princi-pais da história de seu itinerário intelectual. No coração deste proje-to esteve a idéia de construção duma psicologia social do conheci-mento e é dentro do contexto deste projeto mais vasto que seu tra-balho sobre representações sociais deve ser visto.

Com que, então, uma psicologia social do conhecimento pode se parecer? Que espaço ela procurará explorar e quais serão as ca-racterísticas-chave desse espaço? O próprio Moscovici apresenta este tema da seguinte maneira:

Há numerosas ciências que estudam a maneira como as pessoas tra-

tam, distribuem e representam o conhecimento. Mas o e s-

tudo de como, e por que, as pessoas partilham o conhecimento e des-

se modo constituem sua realidade comum, de como eles

transformam idéias em prática - numa palavra, o poder das idéi-

as - é o problema especifico da psicologia social (Moscovici, 1990a: 169).

Por conseguinte, da perspectiva da psicologia social, o conhe-cimento nunca é uma simples descrição ou uma cópia do estado de coisas. Ao contrário, o conhecimento é sempre produzido atra-

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vés da interação e comunicação e sua expressão está sempre liga-da aos interesses humanos que estão nele implicados. O conheci-mento emerge do mundo onde as pessoas se encontram e intera-gem, do mundo onde os interesses humanos, necessidades e de-sejos encontram expressão, satisfação ou frustração. Em síntese, o conhecimento surge das paixões humanas e, como tal, nunca é desinteressado; ao contrario, ele é sempre produto dum grupo es-pecifico de pessoas que se encontram em circunstâncias especifi-cas, nas quais elas estão engajadas em projetos definidos (cf. Bauer & Gaskell, 1999). Uma psicologia social do conhecimento está in-teressada nos processos através dos quais o conhecimento é gera-do, transformado e projetado no mundo social.

2. A La recherche des concepts perdus (À procura dos conceitos perdidos)

Moscovici introduziu o conceito de representação social em seu estudo pioneiro das maneiras como a psicanálise penetrou o pensamento popular na França. Contudo, o trabalho em que esse estudo é relatado, la Psicanalyse: Son image et son public, primei-ramente publicado na França em 1961 (com uma segunda edição, bastante revisada, em 1976), permanece sem tradução para o in-glês, uma circunstância que contribuiu para a problemática recep-ção da teoria das representações sociais no mundo anglo-saxão. É claro que uma tradução inglesa desse texto não iria, por si mesma, resolver todas as diferenças entre as idéias de Moscovici e os pa-drões dominantes do pensamento sociopsicológico na Inglaterra e nos EE.UU., mas teria, ao menos, ajudado a reduzir o número de maus entendimentos do trabalho de Moscovici, e adicionado uma penumbra de confusão às discussões destas idéias em inglês. Mais que isso, porém, a falta duma tradução significa que a cultura anglo-saxã, predominantemente monolingüe, não teve acesso a um texto, em que temas centrais e idéias sobre a teoria das re-presentações sociais são apresentados e elaborados, no contexto vital dum estudo especifico de pesquisa. Quando estas idéias são colocadas em ação na estrutura dum projeto de pesquisa, na orde-nação e no processo de tomar inteligível a massa de dados empíri-cos que emergem, elas assumem também um sentido concreto, que é apenas fracamente visível nos textos teóricos mais abstra-tos, ou programáticos.

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Mas se o trabalho de Moscovici foi obscurecido no mundo an-glo-saxão, o próprio conceito de representação social teve uma história problemática dentro da psicologia social. Na verdade, Moscovici intitula o capitulo inicial de La Psychanalyse “Representação social: um conceito perdido”, e introduz seu traba-lho nesses termos:

As representações sociais são entidades quase tangíveis.

Elas circulam, se entrecruzam e se cristalizam continua-

mente, através duma palavra, dum gesto, ou duma reunião,

em nosso mundo cotidiano- Elas impregnam a maioria de

nossas relações estabelecidas, os objetos que nós produzi-

mos ou consumimos e as comunicações que estabelecemos.

Nós sabemos que elas correspondem, dum lado, à substân-

cia simbólica que entra na sua elaboração e, por outro lado,

à prática especifica que produz essa substância, do mesmo

modo como a ciência ou o mito correspondem a uma práti-

ca científica ou mítica.

Mas se a realidade das representações é fácil de ser compreen-

dida, o conceito não o é. Há muitas boas razões pelas quais

isso é assim. Na sua maioria, elas são históricas e é por isso

que nós devemos encarregar os historiadores da tarefa de

descobri-las. As razões não-históricas podem todas ser re-

duzidas a uma única: sua posição “mista”, no cruzamento

entre uma série de conceitos sociológicos e uma série de

conceitos psicológicos. É nessa encruzilhada que nós temos

de nos situar. O caminho, certamente, pode representar algo

pedante quanto a isso, mas nós não podemos ver outra maneira

de libertar tal conceito de seu glorioso passado, de revitali-

zá-lo e de compreender sua especificidade (1961/1976: 40-41).

O ponto de partida fundamental para essa jornada intelect u-al, contudo, foi a insistência de Moscovici no reconhecimento da existência de representações sociais como uma forma característi-ca de conhecimento em nossa era, ou, como ele coloca, uma in-sistência em considerar “como um fenômeno, o que era antes con-siderado como um conceito” (capitulo 1).

Na verdade, desenvolver uma teoria das representações so-ciais implica que o segundo passo da jornada deve ser começar a teorizar esse fenômeno. Mas, antes de nos voltarmos para esse se-gundo passo, gostaria de parar, por um momento, no primeiro passo e perguntar o que significa considerar como um fenômeno

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o que era antes visto como um conceito, pois o que pode parecer como um pequeno aperçu (apanhado), de fato, contém alguns tropos especificamente moscovicianos. Antes de tudo, há certa coragem nessa idéia, em não ter receio de afirmar uma generaliza-ção conclusiva, uma generalização que tem ta mbém o efeito de separar radicalmente a concepção de Moscovici, com respeito aos objetivos e ao escopo da psicologia social, das formas predomi-nantes dessa disciplina. Mais precisamente, Moscovici se filia aqui à corrente de pensamento sociopsicológico que foi sempre uma corrente minoritária, ou marginal, dentro duma disciplina domi-nada, em nosso século, primeiro pelo comportamentalismo e, mais recentemente, por um cognitivismo não menos reducionista e, du-rante todo esse tempo, por um individualismo extremo. Mas, em suas origens, a psicologia social se construiu ao redor dum con-junto diferente de preocupações. Se Wilhelm Wundt é lembrado hoje principalmente como o fundador da psicologia experimental, ele é também, cada vez mais, reconhecido pela contribuição que sua Völkerpsychologie trouxe ao estabelecimento da psicologia social (Danziger, 1990; Farr, 1996; Jahoda, 1992).

Apesar de todas as suas falhas, a teoria de Wundt, contudo, situou claramente a psicologia social na mesma encruzilhada, en-tre os conceitos sociológicos e psicológicos indicados por Mosco -vici. Longe de abrir uma linha produtiva de pesquisa e teoria, o tra-balho de Wundt foi logo eclipsado pelas crescentes correntes de pensamento psicológico que rejeitaram toda a associação com o “social”, como se ele fosse comprometer o status científico da psi-cologia. O que Danziger (1979) chamou de “o repúdio positivista de Wundt” serviu para garantir a exclusão do social do campo de ação da psicologia social emergente. Ao menos, esse foi o caso que Farr (1996) chamou de sua forma “psicológica”, mas, como ele tam-bém mostra, uma forma “sociológica” também persistiu, brotando principalmente do trabalho de Mead, no qual a Völkerpsychologic de Wundt teve uma grande influência (e devemos dizer que uma preocupação com o social é também característica da psicologia de Vygotsky; ver capítulos 3 e 6). Na verdade, Farr chegou a sugerir que a separação radical, feita por Durkheim (1891/1974), de re-presentações “individuais” e “coletivas”, contribuiu para a insti-tucionalização duma crise na psicologia soc ial, que perdura até hoje. Durante o século vinte, sempre que formas “sociais” de psicologia surgiram, nós testemunhamos o mesmo drama de ex-clusão, que marcou a recepção do trabalho de Wundt.

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Uma “compulsão em repetir” mascara um tipo de neurose i-deológica, que foi mobilizada sempre que o social ameaçou invadir o psicológico. Ou, para passar duma metáfora freudiana para uma antropológica, o social representou, consistentemente, uma amea-ça de poluição à pureza da psicologia científica.

Por que se mostrou tão difícil estabelecer uma psicologia so-cial que incluísse tanto o social como o psicológico? Embora Mos-covici sugerisse, na citação acima, que isso era uma questão para historiadores, ele mesmo contribuiu, de algum modo, para escla-recer esse enigma, como muitos dos textos aqui coletados teste-munham (ver capítulos 1, 2, 3 e 7). Num ensaio histórico importan-te, The Invention of Society, Moscovici (1988/1993) oferece mais um conjunto de considerações que discutem a questão comple-mentar de por que as explicações psicológicas foram vistas como ilegítimas, na teoria sociológica. Durkheim formulou suas idéias explicitamente em seu aforismo de que “sempre que um fenôme-no social é diretamente explicado por um fenômeno psicológico, podemos estar seguros que a explicação é falsa” (1895/1982: 129). Mas, como mostra Moscovici, esse preceito contra a explicação psicológica não apenas percorre, como um fio unificador, através do trabalho dos escritores clássicos da teoria social moderna, mas é também sub-repticiamente contradito por esses mesmos textos. Pois, ao construir explicações sociais para fenômenos sociais, es-tes sociólogos (Weber e Simmel são os exemplos analisados por Moscovici, junto com Durkheim), necessitam também introduzir alguma referência aos processos psicológicos para fornecer coe-rência e integridade a suas análises. Em síntese, nesse trabalho Moscovici é capaz de demonstrar, através de sua própria análise destes textos fundantes da sociologia moderna, que o referencial explanatório exigido para tornar os fenômenos sociais inteligíveis deve incluir conceitos psicológicos, bem como sociológicos.

A questão, contudo, de por que foi tão difícil conseguir um re-ferencial teórico estável, abrangendo tanto o psicológico como o social, permanece obscura. Para dizer a verdade, a hostilidade da parte dos psicólogos ao “sociologismo” foi tanta quanto a dos so-ciólogos ao “psicologismo”. Ao dizer que a psicologia social, como uma categoria mista, representa uma forma de poluição, ficamos apenas nas palavras, enquanto nós não compreendermos por que o social e o psicológico são considerados como categorias exclusi-vas.

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Esse é o centro do enigma histórico que retém seu poder es-pecifico até hoje. Embora fosse ingênuo pretender oferecer uma explicação clara de sua origem, nós podemos vislumbrar algo de sua história na oposição entre razão e cultura que, como discute Gellner (1992), foi tão influente desde a formulação do racionalis-mo de Descartes. Contra o relativismo da cultura, Descartes pro-clamou a certeza que brota da razão. O argumento em favor do co-gito introduziu um ceticismo sobre as influências da cultura e do social que foi difícil de superar. Na verdade, se Gellner está correto ao constatar nesse argumento uma oposição entre cultura e razão, então toda a ciência da cultura será uma ciência da não-razão. A partir daqui, é um curto passo chegar-se a uma ciência desprovida de razão, o que parece ser a reputação dada a toda tentativa de combinar os conceitos sociológicos com os psicológicos numa ciência “mista”. Mas foi justamente tal “ciência desprovida de ra-zão”, que Moscovici procurou ressuscitar, através dum retorno ao conceito de representação, como central a uma psicologia social do conhecimento.

3. Durkheim, o ancestral ambíguo

Ao procurar estabelecer uma ciência “mista”, centrada no conceito de representação, Moscovici reconheceu uma dívida du-radoura ao trabalho de Durkheim. Como vimos acima, contudo, a formulação feita por Durkheim do conceito de representações co-letivas mostrou-se uma herança ambígua para a psicologia social. O esforço para estabelecer a sociologia como uma ciência autôno-ma levou Durkheim a defender uma separação radical entre repre-sentações individuais e coletivas e a sugerir que as primeiras de-veriam ser o campo da psicologia, enquanto as últimas formariam o objeto da sociologia (interessante notar que em alguns de seus escritos sobre esse tema Durkheim flertou com a idéia de chamar a esta ciência de “psicologia social”, mas preferiu “sociologia”, a fim de eliminar toda possível confusão com a psicologia (cf. Durkheim, 1895/1982). Não é apenas Farr quem mostrou as dificuldades que a formulação de Durkheim trouxe para a psicologia social. Numa discussão anterior, sobre a relação entre o trabalho de Durkheim e a teoria das representações sociais, Irwin Deutscher (1984) tam-

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bém escreveu sobre a complexidade de tomar Durkheim como um ancestral para uma teoria sociopsicológica. O próprio Moscovici sugeriu que, ao preferir o termo “social”, queria enfatizar a quali-dade dinâmica das representações contra o caráter mais fixo, ou estático, que elas tinham na teoria de Durkheim (ver capítulo 1, onde Moscovici ilustra a maneira como Durkheim usou os termos “social” e “coletivo” de maneira intercambiável). Ao comentar este ponto, depois na sua entrevista a Marková, no capitulo 7, Moscovi-ci se refere à impossibilidade de manter qualquer distinção clara entre o “social” e o “coletivo”. Esses dois termos não se referem a ordens distintas na organização da sociedade humana, mas tam-bém não é o caso de que os termos “representação social” e “repre-sentação coletiva” apenas colocam uma distinção, sem estabelecer uma diferença. Em outras palavras, a psicologia social de Moscovici não pode simplesmente ser reduzida a uma variante da sociologia durkheimiana. Como devemos, então, entender a relação das re-presentações sociais com o conceito de Durkheim?

A partir duma perspectiva sociopsicológica, podemos ser ten-tados a pensar que a resolução dessa ambigüidade pode ser bus-cada através dum esclarecimento dos termos “individual” e “cole-tivo”, como empregados na argumentação de Durkheim. Não é absolutamente claro, contudo, que tal esforço possa conseguir, com sucesso, algum espaço teórico para a psicologia social, parti-cularmente porque, como mostra Farr (1998), a questão se tornou problemática, devido ao reconhecimento do individualismo como uma poderosa representação coletiva na sociedade moderna.

Um enfoque mais produtivo pode ser constatado através duma reflexão posterior sobre o próprio argumento de Durkheim. Durkheim não estava simplesmente interessado em estabelecer o caráter sui generis das representações coletivas como um elemen-to de seu esforço para manter a sociologia como uma ciência autô-noma. Toda sua sociologia é, ela própria, consistentemente orien-tada àquilo que faz com que as sociedades se mantenham coesas, isto é, às forças e estruturas que podem conservar, ou preservar, o todo contra qualquer fragmentação ou desintegração. É dentro desta perspectiva que as representações coletivas assumem sua significância sociológica para Durkheim; seu poder de abrigar, ajuda a integrar e a conservar a sociedade. De fato, é em parte essa capacidade de manter e conservar o todo social que dá às repre-sentações coletivas seu caráter sagrado na discussão que Durkheim

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faz em The Elementary Forms of Religious Life (1912/1995). A psi-cologia social de Moscovici, por outro lado, foi consistentemente orientada para questões de como as coisas mudam na sociedade, isto é, para aqueles processos sociais, pelos quais a novidade e a mudança, como a conservação e a preservação, se tornam parte da vida social. Já aludi a esse seu interesse na transformação do senso comum, em seu estudo das representações sociais da psi-canálise. É no curso de tais transformações que a ancoragem e a objetivação se tornam processos significantes (ver capítulo 1). Uma afirmação mais clara desse enfoque do trabalho de Moscovici pode ser encontrada em seu estudo sobre influência social (1976) que, na verdade, tem o titulo de Influência Social e Mudança So-cial. O ponto de partida para esse estudo foi a insatisfação com os modelos de influência social, que apreenderam apenas a confor-midade ou a submissão. Se esse fosse o único processo de influên-cia social que tivesse existido, como seria possível qualquer mu-dança social? Tais considerações levaram Moscovici a se interes-sar pelo processo de influência da minoria, ou na inovação, um in-teresse que ele levou adiante através de uma série de investiga-ções experimentais. É esse interesse com a inovação e a mudança social que levou também Moscovici a ver que, da perspectiva so-ciopsicológica, as representações não podem ser tomadas como algo dado nem podem elas servir simplesmente como variáveis explicativas. Ao contrário, a partir dessa perspectiva, é a constru-ção dessas representações que se torna a questão que deve ser discutida, dai sua insistência, tanto em discutir como u m fenôme-no que antes era visto como um conceito, como em enfatizar o ca-ráter dinâmico das representações, contra seu caráter estático de representações coletivas da formulação de Durkheim (uma dis-cussão mais ampla desse ponto, feita por Moscovici, pode ser en-contrada no capitulo 1).

Por conseguinte, enquanto Durkheim vê as representações co-letivas como formas estáveis de compreensão coletiva, com o po-der de obrigar que pode servir para integrar a sociedade como um todo, Moscovici esteve mais interessado em explorar a variação e a diversidade das idéias coletivas nas sociedades modernas. Essa própria diversidade reflete a falta de homogeneidade dentro das sociedades modernas, em que as diferenças refletem uma distribui-ção desigual de poder e geram uma heterogeneidade de represen-tações. Dentro de qualquer cultura há pontos de tensão, mesmo de

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fratura, e é ao redor desses pontos de clivagem no sistema repre-sentacional duma cultura que novas representações emergem. Em outras palavras, nestes pontos de clivagem há uma falta de sentido, um ponto onde o não-familiar aparece. E, do mesmo modo que a natureza detesta o vácuo, assim também a cultura detesta a ausên-cia de sentido, colocando em ação algum tipo de trabalho represen-tacional para familiarizar o não-familiar, e assim restabelecer um sentido de estabilidade (veja-se a discussão de Moscovici sobre não-familiaridade como uma fonte de representações sociais, no capítu-lo 1). As divisões de sentido podem ocorrer de muitos modos. Po-dem ser muito dramáticas, como todos nós vimos ao assistir à queda do muro de Berlim e sentimos as estruturas de sentido que manti-veram uma visão estabelecida do mundo, desde o fim da guerra, evaporarem. Ou de novo, quando a aparição súbita dum fenômeno ameaçador, tal como HIV/Aids, pode oferecer uma oportunidade para um trabalho representacional. Mais freqüentemente, as re-presentações sociais emergem a partir de pontos duradouros de conflito, dentro das estruturas representacionais da própria cultu-ra, por exemplo, na tensão entre o reconhecimento formal da uni-versalidade dos “direitos do homem”, e sua negação a grupos espe-cíficos dentro da sociedade. As lutas que tais fatos acarretaram foram também lutas para novas formas de representações.

O fenômeno das representações está, por isso, ligado aos pro-cessos sociais implicados com diferenças na sociedade. E é para dar uma explicação dessa ligação que Moscovici sugeriu que as representações sociais são a forma de criação coletiva, em condi-ções de modernidade, uma formulação implicando que, sob outras condições de vida social, a forma de criação coletiva pode também ser diferente. Ao apresentar sua teoria de representações sociais, Moscovici, muitas vezes, traçou esse contraste (ver capítulo 1), e sugeriu, às vezes, que esta foi a razão principal de preferir o termo “social”, ao termo “coletivo” de Durkheim. Existe aqui uma alusão a uma complexa explicação histórica da emergência das repre-sentações sociais que Moscovici apenas delineia muito de leve e, sem querer apresentar uma explicação mais detalhada ou exten-sa, será útil, para se poder compreender algo do caráter das repre-sentações sociais, para chamar a atenção, nesse ponto, de dois as-pectos relacionados dessa transformação histórica.

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A modernidade sempre se coloca em relação a algum passado que é considerado como tradicional e embora seja errado (como Bartlett, 1923, viu muito previdentemente) considerar as socieda-des pré-modernas - ou tradicionais - como efetivamente homogê-neas, o fio condutor central do argumento de Moscovici sobre a transformação das formas de criação coletiva na transição para a modernidade se relaciona à questão da legitimação. Nas socieda-des pré-modernas (que, nesse contexto, são as sociedades feudais na Europa, embora este ponto possa ser também relevante para outras formas de sociedade pré-moderna), são as instituições cen-tralizadas da Igreja e do Estado, do Bispo e do Rei, que estão no ápice da hierarquia de poder e regulam a legitimação do conheci-mento e das crenças. De fato, dentro da sociedade feudal, as pró-prias desigualdades entre diferentes estratos, dentro dessa hierar-quia, foram vistas como legitimas. A modernidade, em contraste, se caracteriza por centros mais diversos de poder, que exigem au-toridade e legitimação, de tal modo que a regulação do conheci-mento e da crença não é mais exercida do mesmo modo. O fenô-meno das representações sociais pode, neste sentido, ser visto como a forma como a vida coletiva se adaptou a condições des-centradas de legitimação. A ciência foi uma fonte importante de surgimento de novas formas de conhecimento e crença no mundo moderno, mas também o senso comum, como nos lembra Mosco-vici. A legitimação não é mais garantida pela intervenção div ina, mas se torna parte duma dinâmica social mais complexa e contes-tada, em que as representações dos diferentes grupos na socieda-de procuram estabelecer uma hegemonia.

A transição para a modernidade é também caracterizada pelo papel central de novas formas de comunicação, que se originaram com o desenvolvimento da imprensa e com a difusão da alfabeti-zação. A emergência das novas formas de meios de comunicação de massa (cf. Thompson, 1995) gerou tanto novas possibilidades para a circulação de idéias, como também trouxe grupos sociais mais amplos para o processo de produção psicossocial do conhe-cimento. Esse tema é muito complexo para ser tratado adequada-mente aqui, exceto para dizer que, em sua análise das diferentes formas de representação da psicanálise nos meios de comunica-ção da França, Moscovici (1961/1976) mostrou como a propaga-ção, propaganda e difusão foram do modo que foram, porque os diferentes grupos sociais representam a psicanálise de diferentes

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modos e procuram estruturar diferentes tipos de comunicação sobre esse objeto, através dessas diferentes formas. Cada uma dessas formas procura estender sua influência na construção du-ma representação especifica e cada uma delas também reivindica sua própria legitimação para a representação que ela promove. É a produção e circulação de idéias dentro dessas formas difusas de comunicação que distinguem a era moderna da pré-moderna e ajudam a distinguir as representações sociais como a forma de criação coletiva, distinta das formas autocráticas e teocráticas da sociedade feudal. As questões de legitimação e comunicação servem para enfatizar o sentido da heterogeneidade da vida social moderna, uma visão que ajudou a dará pesquisa sobre representações sociais um foco distinto, na emergência de novas formas de representa-ção.

4. Representações sociais e psicologia social

A recepção da teoria das representações sociais dentro duma disciplina mais ampla da psicologia social foi tanto fragmentada, como problemática. Se alguém olhar para trás, para a “era domada” da psicologia social, pode ver certa afinidade entre o trabalho de Moscovici e o de certos predecessores, como Kurt Lewin, Solomon Asch, Fritz Heider ou, talvez o último representante desta era, Leon Festinger — uma afinidade mais que uma similaridade, pois embora o trabalho de Moscovici partilhe com esses predecessores uma pre-ocupação comum na análise das relações entre processos sociais e formas psicológicas, seu trabalho retém uma qualidade distintiva, do mesmo modo como esses autores diferem entre si. Não é difícil, contudo, imaginar a possibilidade dum diálogo produtivo baseado nessa afinidade. Mas é difícil imaginar tal diálogo produtivo na dis-ciplina de psicologia social como ela existe hoje, onde a predomi-nância dos paradigmas de processamento da informação e a emer-gência de variedades de formas “pós-modernistas” de psicologia social aumentaram a segmentação do campo.

O próprio Moscovici (1984b) sugeriu que a psicologia social contemporânea continua a exibir um tipo de desenvolvime nto descontinuo de paradigmas que mudam e se substituem, “para-digmas solitários”, como ele os descreve. Dentro deste fluxo, cada paradigma aparece mais ou menos desconectado de seus prede-

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cessores e deixa pequenos traços em seus sucessores. Nesse co n-texto, tem sido destino comum das intervenções teóricas, na psi-cologia social, bruxulear brevemente, antes de passar para um tipo de território de sombras, ás margens duma disciplina que trocou seu centro para o próximo paradigma, deixando pouco tempo para que as idéias fossem assimiladas e para um uso produtivo. Desse ponto de vista, há algo de notável na persistência da teoria das re-presentações sociais durante um período de quarenta anos. No espírito de sua problemática relação com o terreno cambiante da corrente em voga da disciplina, a teoria das representações sociais sobreviveu e prosperou. Ela se tomou não apenas uma das contri-buições teóricas mais duradouras na psicologia social, mas tam-bém uma contribuição que é amplamente difundida por todo o mundo.

Nessa discussão sobre os paradigmas em psicologia social, Moscovici vai à frente afirmando que:

Conceitos que operam em grandes profundidades parecem

necessitar mais de cinqüenta anos para penetrar as camadas mais

baixas da comunidade cientifica. É por isso que muitos de nós es-

tamos apenas agora começando a perceber o sentido de

certas idéias que estiveram germinando na sociologia, psi-

cologia e antropologia, desde o limiar desse século (Mosco-

vici, 1984b: 941).

É essa constelação de idéias que forma o foco para alguns dos ensaios dessa coleção (ver especialmente os capítulos 3 e 6 e a en-trevista no capítulo 7), dentro dos quais a teoria das representa-ções sociais tomou forma.

Para compreender a especificidade da contribuição de Mos-covici é importante lembrar, em primeiro lugar, de tudo aquilo contra o qual sua inovação psicossociológica reagiu. A revolução cognitiva, na psicologia, iniciada na década de 1950, legitimou a introdução de conceitos mentalistas, que tinham sido proscritos pelas formas mais militantes do comportamentalismo, que domi-nou a primeira metade do século vinte e, subseqüentemente, as idéias de representações foram o elemento central na emergência da ciência cognitiva, nas duas últimas décadas. Mas a partir desta perspectiva, a representação foi geralmente vista num sentido muito restrito, como uma construção mental dum objeto externo. Embora isso tenha permitido o desenvolvimento dum cálculo in-formacional, em que representações foram termos centrais, o ca-ráter social, ou simbólico, das representações raramente figurou

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em tais teorias. Para retornar, por um momento, ao exemplo do mapa da Europa, embora formas contemporâneas de ciência cog-nitiva possam reconhecer o deslocamento de Praga nas represen-tações populares, elas não possuem conceitos com os quais pos-sam compreender o significado desse deslocamento, nem as in-fluências dos processos sociais que subjazem a ele. Na melhor das hipóteses, tal deslocamento irá aparecer como uma das muitas “distorções” do pensamento comum, que foram documentadas em teorias de cognição social. Mas enquanto tais teorias em psi-cologia social tenham discutido “distorções” como exemplos de como o pensamento comum se afasta da lógica sistemática da ci-ência, do ponto de vista das representações sociais elas são vistas como formas de conhecimento produzidas e sustentadas por gru-pos sociais específicos, numa determinada conjuntura histórica (cf. Farr, 1998).

Conseqüentemente, enquanto as formas “clássicas” de psico-logia cognitiva (incluindo a cognição social, que se tomou a forma contemporânea predominante de psicologia social) tratam a re-presentação como um elemento estático da organização cogniti-va, na teoria da representação social o próprio conceito de repre-sentação possui um sentido mais dinâmico, referindo-se tanto ao processo pelo qual as representações são elaboradas, como às es-truturas de conhecimento que são estabelecidas. Na verdade, é através dessa articulação da relação entre processo e estrutura, na gênese e organização das representações, que a teoria oferece, na psicologia social, uma perspectiva distinta daquela da cognição social (cf. Jovchelovitch, 1996). Para Moscovici, a fonte dessa relação está na função das próprias representações. Fazendo eco a formu-lações anteriores de McDougal e Bartlett, Moscovici argumenta que “o propósito de todas as representações é tomar algo não-familiar, ou a própria não-familiaridade, familiar” (cf. capitulo 1). A familiarização é sempre um processo construtivo de ancoragem e objetivação (cf. capítulo 1), através do qual o não-familiar passa a ocupar um lugar dentro de nosso mundo familiar. Mas a mesma operação que constrói um objeto dessa maneira é também consti-tutiva do sujeito (a construção correlativa do sujeito e objeto na dialética do conhecimento foi também um traço característico da psicologia genética de Jean Piaget e do estruturalismo genético de Lucien Goldman). As representações sociais emergem, não apenas como um modo de compreender um objeto particular, mas

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também como uma forma em que o sujeito (indivíduo ou gru po) adquire uma capacidade de definição, uma função de identidade, que é uma das maneiras como as representações expressam um valor simbólico (algo que também empresta à noção de famili-arização de Moscovici uma inflexão que é distinta da de McDou gall ou Bartlett). Nas palavras de Denise Jodelet, colega durante muito tempo de Moscovici, a representação é uma “forma de co-nhecimento prático [savoir] conectando um sujeito a um objeto” (Jodelet, 1989: 43), e ela continua dizendo que “quantificar esse conhecimento como ‘prático ’ refere-se à experiência a partir da qual ele é produzido, aos referenciais e condições em que ele é produzido e, sobretudo, ao fato de que a representação é empre-gada para agir no mundo e nos outros” (Jodelet, 1989: 43-44).

As representações são sempre um produto da interação e co-municação e elas tomam sua forma e configuração específicas a qualquer momento, como uma conseqüência do equilíbrio especifico desses processos de influência social. Há uma relação sutil, aqui, en-tre representações e influências comunicativas, que Moscovici identifica, quando ele define uma representação social como:

Um sistema de valores, idéias e práticas, com uma dupla

função: primeiro, estabelecer uma ordem que possibilitará

as pessoas orientar-se em seu mundo material e social e

controlá-lo; e, em segundo lugar, possibilitar que a comunica-

ção seja possível entre os membros de uma comunidade, fo r-

necendo-lhes um código para nomear e classif icar, sem am-

bigüidade, os vários aspectos de seu mundo e da sua histó-

ria individual e social (1976: xiii) .

A relação entre representação e comunicação pode bem ser o aspecto mais controverso da teoria de Moscovici e em seu próprio livro ela está expressa, de forma muito clara, na segunda parte de seu estudo La Psychanalyse, a análise das representações na mídia francesa, como mostrei acima (e esse é um ponto devido ao qual uma compreensão da teoria das representações sociais foi di-ficultada de maneira muito séria, pela falta duma tradução inglesa do texto, como notou Willem Doise (1993); essa secção do livro ra-ramente figurou nas discussões anglo-saxãs da teoria).

Em relação à psicologia cognitiva, não é difícil ver por que es-sa concepção deva ser controversa, pois a força duradoura da i-déia de psicologia como uma ciência natural, concentrada em pro-

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cessos segregados da influência poluidora do social, tornou im-pensável a idéia de que nossas crenças, ou ações, possam ser for-madas fora de tais influências.

É claro que a psicologia de Moscovici não é a primeira a pro-por tal tema. A psicanálise de Freud, por exemplo, procurou as origens dos pensamentos nos processos libidinais, que, especial-mente para a escola das relações objetais, refletem as primeiras experiências da criança no mundo dos outros (Jovchelovìtch, 1996). Mead também pode ser considerado como tendo feito uma argumentação semelhante, em sua análise do desenvolvimento do self (ver Moscovici, 1990b). Mas o trabalho de Moscovici não enfoca as origens libidinais de nossos pensa mentos (embora Lucien Goldmann, 1996, tenha construído um paralelo sugestivo entre a organização das construções psicanalíticas e as sociais), nem está ele fundamentalmente interessado com as fontes interpessoais do self seu foco principal foi argumentar não apenas que a criação coletiva está organizada e estruturada em termos de representa-ções, mas que essa organização e estrutura é tanto conformada pelas influências comunicativas em ação na sociedade, como, ao mesmo tempo, serve para tornar a comunicação possível. As represen-tações podem ser o produto da comunicação, mas também é verda-de que, sem a representação, não haveria comuni cação. Precisa-mente devido a essa interconexão, as representações podem tam-bém mudar a estabilidade de sua organização e estrutura depende da consistência e constância de tais padrões de comu nicação, que as mantêm. A mudança dos interesses humanos pode gerar novas formas de comunicação, resultando na inovação e na emer-gência de novas representações. Representações, nesse sentido, são estruturas que conseguiram uma estabilidade, através da transformação duma estrutura anterior.

Se a perspectiva oferecida pela teoria das representações so-ciais foi, em geral, contrastada muito acentuadamente com a cor-rente em voga da disciplina, para que pudesse emergir daí um diá-logo construtivo (embora um interesse nesse diálogo esteja come-çando a emergir nos EE.UU. (cf. Deaux & Philogene, 2000), o que foi tanto mais surpreendente, como mais decepcionante, foi a re-cepção da teoria entre aquelas correntes de pensamento sociopsi-cológico, que tinham sido suas vizinhas nessa terra de sombras marginal. Com algumas exceções marcantes (por exemplo, Billig, 1988, 1993; Harré, 1984, 1998, que entraram num diálogo de enga-jamento construtivo a partir das perspectivas retóricas e discursi-

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vas), a maioria dos comentários, fora da corrente em voga, foram contrários, ou mesmo hostis, à teoria das representações sociais (ver, por exemplo, o catálogo de objeções, na recente contribuição de Potter & Edwards, 1999). Não há espaço, aqui, para oferecer uma relação sistemática de todas as criticas levantadas contra o trabalho de Moscovici, mas um enfoque sobre alguns temas cen-trais irá não apenas dar o tom das questões levantadas, mas tam-bém elaborar um pouco mais algumas das características centrais da própria teoria.

Em certo sentido, como mencionei anteriormente, o trabalho de Moscovici foi parte da perspectiva européia em psicologia so-cial, que emergiu nas décadas de 196O e 197O. Olhando para esse trabalho agora, contudo, podem-se notar também as diferenças dentro desse enfoque “europeu”. Por exemplo, a coleção editada por Israel e Tajfel (1972, um trabalho muitas vezes citado como a fonte central da visão européia, e para o qual o capitulo 2 dessa co-leção foi uma contribuição de Moscovici), aparece agora como sendo caracterizada mais pela diversidade de seus pontos de vista do que por um espírito critico comum entre os colaboradores. Algumas das criticas mais fortes à teoria das representações so-ciais vieram de Gustav Jahoda (1988; ver também a resposta de Moscovici, 1988), que pertence à mesma geração de psicólogos sociais de Moscovici, e que apresentou sua própria contribuição á tradição “européia”. Para Jahoda, longe de ajudar a iluminar os problemas da psicologia social, a teoria das representações sociais - serviu antes para obscurecê-los. De modo particular, ele acha a te-oria vaga na construção de seus conceitos, uma acusação que foi um tema importante nas discussões sobre representações sociais, que veio à tona de novo recentemente num comentário mais sim-pático de Jan Smedslund (1998; ver também Duveen, 1998).

O fato de uma teoria ser vaga é, na verdade, em grande parte, uma questão de ponto de vista. Onde um escritor acha que uma teoria necessita tanto de precisão, que não chega a apresentar nada mais que uma série de quimeras. Para outros escritores, a mesma teoria pode abrir novos caminhos para discutir antigos problemas. Desse modo, Jahoda sugere que, desprovida de sua retórica, a teoria das representações sociais pouco contribuiu, além do que já está contido na psicologia social tradicional das ati-tudes. Mas, como mostraram Jaspars e Fraser (1984), embora a formulação original do conceito de atitudes sociais, na obra de Thomas & Znaniecki (1918/1920), pudesse ter algumas similarida-

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des importantes como conceito de representações sociais, o con-ceito de atitude sofreu, ele próprio, uma transformação considerá-vel nas teorias sociopsicológicas subseqüentes. Nessa transfor-mação, a idéia de atitude foi despojada de seu conteúdo e de suas origens sociais e simbólicas. Na psicologia social contemporânea, as atitudes aparecem como disposições cognitivas ou motivacio-nais, de tal modo que a idéia duma conexão inerente entre comu-nicação e representação evaporou. Se a pesquisa em representa-ções sociais continuou a empregar alguma tecnologia da mensu-ração da atitude, ela procurou referenciar essas atitudes como parte duma estrutura representacional maior (ver também a dis-cussão das relações entre atitudes e representações na entrevista no capitulo7).

A partir de outra perspectiva, as co rrentes mais radicais da teoria do discurso, em psicologia social (por exemplo, Potter & Edwards, 1999), objetaram contra a própria idéia de representa-ção, como sendo um anexo tardio da psicologia cognitiva “moder-nista”. Desse ponto de vista, todos os processos sociopsicológicos se explicam nos efeitos do discurso e nas realizações e reformula-ções fugazes da identidade que ele sustenta. E apenas a atividade do discurso que pode ser o objeto de estudo, nessa forma de psico-logia social, e qualquer fala sobre estrutura e organização no nível cognitivo se apresenta como uma concessão à hegemonia dos mo-delos de processamento da informação (e pouco importa a es ses críticos que a teoria das representações sociais tenha sempre in-sistido no caráter simbólico da cognição; ver também os comen-tários de Moscovici na entrevista do capitulo 7). Aqui, o fato de a teoria das representações sociais ser vaga deve-se ao seu afasta-mento insuficientemente radical dum discurso “mentalista”, mas, como observou Jovchelovitch (1996), a pressa em evacuar o men-tal do discurso da psicologia social está conduzindo a uma re-cria-ção duma forma de comportamentalismo.

Apesar de tudo o que seus críticos possam sugerir, a teoria das representações sociais se mostrou suficientemente clara e precisa para apoiar e manter um crescente corpo de pesquisa, através de diversas áreas da psicologia social. Na verdade, a partir dum ponto de vista diverso, poder-se-ia argumentar que a pesqui-sa em representações sociais contribuiu tanto quanto qualquer

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outro trabalho em psicologia social, senão mais, para nossa com-preensão dum amplo espectro de fenômenos sociais (tais como o entendimento público da ciência, idéias populares sobre saúde e doença, concepções de loucura, ou o desenvolvimento de identi-dades de gênero, para nomear apenas alguns poucos). Contudo, a insistência com que a acusação de ser vaga foi apresentada contra a teoria merece alguma consideração a mais. Alguma compreen-são do que se quer com essa caracterização da teoria pode ser identificada considerando -se alguns dos estudos centrais de pesquisa que ela inspirou. Além do próprio estudo de Moscovici sobre as representações da psicanálise, o estudo de Denise Jodelet (1989/1991; ver também capítulo 1) sobre as representações sociais da loucura numa aldeia francesa oferece um segundo e-xemplo paradigmático de pesquisa nesse campo. Metodologica-mente, esses dois estudos adotam enfoques bastante diferentes (mostrando a importância do que Moscovici chamou de signifi-cância do “politeísmo metodológico”). Moscovici empregou mé-todos de levantamento e analise de conteúdo, enquanto o estudo de Jodelet se baseou na etnografia e entrevistas. O que ambos os estudos partilham, contudo, é uma estratégia de pesquisa similar, em que o passo inicial é o estabelecimento duma distância critica do mundo cotidiano do senso comum, em que as representa-ções circulam. Se as representações sociais servem para familiari-zar o não-familiar, então a primeira tarefa dum estudo cientifico das representações é tornar o familiar não-familiar, a fim de que elas possam ser compreendidas como fenômenos e descritas atra-vés de toda técnica metodológica que possa ser adequada nas cir-cunstâncias específicas. A descrição, é claro, nunca é indepen dente da teorização dos fenômenos e, nesse sentido, a teoria das repre-sentações sociais fornece o referencial interpretativo tanto para tornar as representações visíveis, como para tomá-las inteligíveis como formas de prática social.

A questão de uma teoria ser vaga pode ser vista como sendo, em grande parte, um problema metodológico, pois ela se refere, fundamentalmente, àquilo que diferentes perspectivas sociopsi-cológicas tornam visível e inteligível. Com respeito a isso, diferentes perspectivas em psicologia social operam com critérios e con-dições diferentes. Armado com o aparato conceptual da psicologia social tradicional, alguém irá lutar para não ver nada mais que atitudes, do mesmo modo que a perspectiva discursiva irá revelar

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apenas os efeitos do discurso nos processos sociopsicológicos. Cada um desses enfoques opera dentro dum universo teórico mais ou menos hereticamente lacrado. Dentro de cada perspectiva, há uma ordem conceptual que traz claridade e estabilidade á co-municação dentro dela (cada perspectiva, podemos dizer, “esta-belece seu próprio código para intercâmbio social”). O que perma-nece fora duma perspectiva particular mostra-se vago e o precur-sor de desordem. Esse fato, na verdade, não é mais que uma ex-pressão da permanente crise na disciplina da psicologia social que continua a existir como um conjunto de “paradigmas solitários”. O reconhecimento desse estado de coisas, por si mesmo, não confe re status especial, ou privilegiado, à teoria das representações so-ciais. O que dá ao trabalho de Moscovici seu particular interesse e a razão pela qual ele continua a exigir atenção é que seu trabalho em representações sociais forma parte dum empreendimento mais amplo para estabelecer (ou re-estabelecer) os fundamentos para uma disciplina que é tanto social, como psicológica.

5. Para uma psicologia social genética

A partir desse ponto de vista, é importante situar os estudos de Moscovici, sobre representações sociais, dentro do contexto de seu trabalho como um todo, pois é como parte duma contribuição mais ampla à psicologia social que esse trabalho permanece de capital importância. Já aludi ao sentido como seu trabalho expres-sou um espírito critico e inovador em relação á disciplina e nesse sentido ele também contribuiu para uma reavaliação critica mais ampla das formas dominantes de psicologia social, que começou na década de 1960 e foi, por um tempo, associada a uma perspec-tiva distintivamente européia da disciplina (algo desse espírito critico é evidente em muitos dos capítulos dessa coleção, mas par-ticularmente no capítulo 2 e na entrevista do capítulo 7). O que marcou a contribuição de Moscovici como inovadora foi o fato de que ela não se limitou a uma crítica negativa das fraquezas e limi-tações das formas predominantes de psicologia social, mas sem-pre procurou, em vez disso, elaborar uma alternativa positiva. A esse respeito, é também importante reconhecer que, embora a teoria das representações sociais tenha sido um ce ntro de seu esforço teórico, o trabalho de Moscovici estendeu-se, numa ampli-tude maior, através da psicologia social, abrangendo estudos de

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psicologia da multidão, conspiração e decisões coletivas, bem co-mo o trabalho sobre influência social. Em todas essas contribui-ções encontra-se alguma inspiração em ação, uma forma parti-cular do que pode ser descrito como a “imaginação sociopsicológi-ca”. Se o trabalho de Moscovici pode ser visto como oferecendo uma perspectiva distinta em psicologia social, ela é uma perspec-tiva que é mais ampla que o que é conotado simplesmente pelo termo representações sociais, embora esse termo tenha sido, mui-tas vezes, tomado como emblemático dessa perspectiva.

O próprio Moscovici raramente aventurou -se em esforços para articular as interconexões entre essas diferentes áreas de trabalho (embora a entrevista no capitulo 7 ofereça alguns pen-samentos importantes). Em parte, isso reflete o fato de que cada uma dessas áreas de trabalho foi articulada através de procedi-mentos metodológicos diferentes. Seus estudos de influência soci-al e processos de grupo, por exemplo, foram rigorosamente expe-rimentais, enquanto seu estudo sobre multidão se inspirou numa análise crítica das primeiras conceptualizações da psicologia das massas. Em parte, isso pode também refletir a razão pela qual esses estudos enfocam diferentes níveis de análise, desde a intera-ção face a face, até a comunicação de massa e a circulação de idéi-as coletivas. Todos esses estudos, contudo, parecem estar “grávi-dos” das idéias que foram articuladas ao redor do conceito de re-presentações sociais, de tal modo que um focar sobre esse concei-to pode indicar algo de sua perspectiva subjacente. Com respeito a isso, o ensaio sobre Proust, no capitulo 5, oferece um estudo ilu-minador das imbricações das relações entre influência e represen-tação. Outro exempla é sua análise crítica da discussão de Weber sobre a ética protestante em The Invention of Society (Moscovici, 1988/1993).O que é claro em ambos os ensaios é que a influên-

cia é sempre dirigida à sustentação, ou à mudança, das represen-tações, enquanto, inversamente, representações especificas se tornam estabilizadas através de um equilíbrio conseguido num modelo particular de processos de influência. Aqui, como nos estu-dos de tomada de decisão nos grupos, é a relação entre comunica-ção e representação que é central.

Em seu livro sobre influência social, Moscovici (1976) identi-ficou a perspectiva que ele descreveu como uma “psicologia

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socialgenética”, para enfatizar o sentido em que os processos de influência emergiram nos intercâmbios comunicativos entre as pessoas. O emprego do termo “genético” faz ecoar o sentido que lhe foi dado tanto por Jean Piaget, como por Lucien Goldmann. Em todas essas instâncias, estruturas especificas somente podem ser entendidas como as transformações de estruturas anteriores (ver o ensaio sobre themata - temas 7 - capitulo 4 desta publicação). Na psicologia social de Moscovici, é através dos intercâmbios comu-nicativos que as representações sociais são estruturadas e trans-formadas. É essa relação dialética entre comunicação e represen-tação que está no cento da “imaginação sociopsicológica” de Mos-covici e é a razão para se descrever essa perspectiva como uma psicologia social genética (cf. Duveen & Lloyd, 1990). Em todos os intercâmbios comunicativos, há um esforço para compreender o mundo através de idéias especificas e de projetar essas idéias de maneira a influenciar outros, a estabelecer certa manei ra de criar sentido, de tal modo que as coisas são vistas desta ma neira, em vez daquela. Sempre que um conhecimento é expres so, é por determinada razão; ele nunca é desprovido de interes se. Quan-do Praga é localizada a leste de Viena, certo sentido de mundo e um conjunto particular de interesses humanos estão sendo projetados. A procura de conhecimentos nos leva de volta ao tu-multo da vida humana e da sociedade humana; é aqui que o co-nhecimento toma aparência e forma através da comunicação e, ao mesmo tempo, contribui para a configuração e formação dos intercâmbios comunicativos. Através da comunicação, so-mos capazes de nos ligar a outros ou de distanciar-nos deles. Esse é o poder das idéias, e a teoria das representações sociais de Moscovici procurou tanto reconhecer um fenômeno social especí-fico, como fornecer os meios para torná-lo inteligível como um processo sociopsicológico.

Gerard Duveen

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O FENÔMENO DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

1. O pensamento considerado como ambiente

1.1 Pensamento primitivo, ciência e senso comum

A crença em que o pensamento primitivo - se tal termo é ain-da aceitável - está baseado é uma crença no “poder ilimitado da mente” em conformar a realidade, em penetrá-la e ativá-la e em determinar o curso dos acontecimentos. A crença em que o pen-samento científico moderno está baseado é exatamente o oposto, isto é, um pensamento no “poder ilimitado dos objetos” de confor-mar o pensamento, de determinar completamente sua evolução e de ser interiorizado na e pela mente. No primeiro caso, o pensa-mento é visto como agindo sobre a realidade; no segundo, como uma reação à realidade; numa, o objeto emerge como uma réplica do pensamento; na outra, o pensamento é uma réplica do objeto; e se para o primeiro, nossos desejos se tornam realidade - ou “wish--ful thinking” - então, para o segundo, pensar passa a ser transfor-mar a realidade em nossos desejos, despersonalizá-los. Mas sendo que as duas atitudes são simétricas, elas somente podem ter a mesma causa e uma causa com a qual nós já estávamos familiari-zados há muito tempo: o medo instintivo do homem de poderes que ele não pode controlar e sua tentativa de poder compensar essa impotência imaginativamente. Sendo esta a única diferença, enquanto a mente primitiva se amedronta diante das forças da na-tureza, a mente científica se amedronta diante do poder do pensa-mento. Enquanto a primeira nos possibilitou sobreviver por mi-lhões de anos e a segunda conseguiu isso em poucos séculos, de-vemos aceitar que ambas, a seu modo, representam um aspecto real da relação entre nossos mundos internos e externos; um as-pecto, além disso, que vale a pena ser investigado.

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A psicologia social é, obviamente, uma manifestação do pen-samento científico e, por isso, quando estuda o sistema cognitivo ela pressupõe que:

1. os indivíduos normais reagem a fenômenos, pessoas ou acon-tecimentos do mesmo modo que os cientistas ou os estatísti-cos, e

2. compreender consiste em processar informações.

Em outras palavras, nós percebemos o mundo tal como é e to-das nossas percepções, idéias e atribuições são respostas a estí-mulos do ambiente físico ou quase-físico, em que nós vivemos. O que nos distingue é a necessidade de avaliar seres e objetos corre-tamente, de compreender a realidade completamente; e o que dis-tingue o meio ambiente é sua autonomia, sua independência com respeito a nós, ou mesmo, poder-se-ia dizer, sua indiferença com respeito a nós e a nossas necessidades e desejos. O que era tido como vieses cognitivos, distorções subjetivas, tendências afetivas obviamente existem. Como nós, todos estamos cientes disso, mas eles são concretamente vieses, distorções e tendências em rela-ção a um modelo, a regras, tidas como norma.

Parece-me, contudo, que alguns fatos comuns contradizem esses dois pressupostos:

a) Primeiro, a observação familiar de que nós não estamos conscientes de algumas coisas bastante óbvias; de que nós não conseguimos ver o que está diante de nossos olhos. É como se nosso olhar ou nossa percepção estivessem eclipsados, de tal mo-do que uma determinada classe de pessoas, seja devido a sua ida-de - por exemplo, os velhos pelos novos e os novos pelos velhos - ou devido a sua raça - p. ex. os negros por alguns brancos, etc. - se tomam invisíveis quando, de fato, eles estão “nos olhando de fren-te”. É assim que um arguto escritor negro descreve tal fenômeno:

Eu sou um homem invisível. Não, eu não sou um fantasma como

os que espantaram Edgar Allan Poe; nem sou eu um de vos-

sos ectoplasmas dos cinemas de Hollywood. Eu sou um ho-

mem concreto, de carne e osso, fibra e líquidos – e de mim

pode-se até dizer que tenho inteligência. Eu sou invisível,

entenda-se, simplesmente porque as pessoas recusam ver-

me. Como a cabeça sem corpo, que às vezes se vê em circos,

acontece como se eu estivesse cercado de espelhos de vidro

grossa e que distorcem a figura. Quando eles se aproximam

de mim, eles vêem apenas o que me cerca, se vêem eles

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mesmos, ou construções de sua imaginação – na realidade,

tudo, exceto eu mesmo (Ellison, 1965: 7).

Essa invisibilidade não se deve a nenhuma falta de informação devida à visão de alguém, mas a uma fragmentação preestabeleci-da da realidade, uma classificação das pessoas e coisas que a com-preendem, que faz algumas delas visíveis e outras invisíveis.

b) Em segundo lugar, nós muitas vezes percebemos que alguns fatos que nós aceitamos sem discussão, que são básicos a nosso entendimento e comportamento, repentinamente trans-formam-se em meras ilusões. Por milhares de anos os homens estavam convencidos que o sol girava ao redor de uma terra pa-rada. Desde Copérnico nós temos em nossas mentes a imagem de um sistema planetário em que o sol permanece parado, enquanto a terra gira a seu redor; contudo, nós ainda vemos o que nossos antepassados viam. Distinguimos, pois, as aparências da realidade das coisas, mas nós as distinguimos precisamente por-que nós podemos passar da aparência à realidade através de al-guma noção ou imagem.

c) Em terceiro lugar nossas reações aos acontecimentos, nos-sas respostas aos estímulos, estão relacionadas a determinada de-finição, comum a todos os membros de uma comunidade à qual nós pertencemos. Se, ao dirigirmos pela estrada, nós encontramos um carro tombado, uma pessoa ferida e um policial fazendo um relatório, nós presumimos que houve um acidente. Nós lemos diariamente sobre colisões e acidentes nos jornais a respeito dis-so. Mas esses são apenas “acidentes” porque nós definimos assim qualquer interrupção involuntária no andamento de um carro que tem conseqüências mais ou menos trágicas. Sob outros aspectos, não existe nada de acidental, quanto a um acidente de automóvel.

Sendo que os cálculos estatísticos nos possibilitam avaliar o nú-mero de vítimas, de acordo com o dia da semana e da localidade, os acidentes de carro não são mais casuais que a desintegração dos átomos em uma aceleração sob alta pressão; eles estão direta-mente relacionados a um grau de urbanização de uma dada socie-dade, à velocidade e ao número dos seus carros particulares e à inadequação do seu transporte público.

Em cada um desses casos, notamos a intervenção de repre-sentações que tanto nos orientam em direção ao que é visível, como àquilo a que nós temos de responder; ou que relacionam a

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aparência á realidade; ou de novo aquilo que define essa realida-de. Eu não quero dizer que tais representações não correspondem a algo que nós chamamos o mundo externo. Eu simplesmente per-cebo que, no que se refere á realidade, essas representações são tudo o que nós temos, aquilo a que nossos sistemas perceptivos, como cognitivos, estão ajustados. Bower escreve:

Nós geralmente usamos nosso sistema perceptivo para interpretar

representações de mundos que nós nunca podemos ver. No

mundo feito por mãos humanas em que vivemos, a percepção das re-

presentações é tão importante como a percepção dos obj e-

tos reais. Por representação eu quero dizer um conjunto de estímulos

feitos pelos homens, que têm a finalidade de servir como um

substituto a um sinal ou som que não pode ocorrer natu-

ralmente. Algumas representações funcionam como substitutos de

estímulos; elas produzem a mesma experiência que o mundo na-

tural produziria (Bower, 1977: 58).

De fato, nós somente experienciamos e percebemos um mundo em que, em um extremo, nós estamos familiarizados com coisas feitas pelos homens, representando outras coisas feitas pe-los homens e, no outro extremo, com substitutos por estímulos cujos originais, seus equivalentes naturais, tais como partículas ou genes, nós nunca veremos. Assim que nos encontramos, por vezes, em um dilema onde necessitamos um ou outro signo, que nos auxili-ará a distinguir uma representação de outra, ou uma representa-ção do que ela representa, isto é, um signo que nos dirá: “Essa é uma representação”, ou “Essa não é uma representação.” O pintor René Magritte ilustrou tal dilema com perfeição em um quadro em que a figura de um cachimbo está contida dentro de uma figura que também representa um cachimbo Nessa figura dentro da figura podemos ler a mensagem: “Esse é um cachimbo”, que indica a dife-rença entre os dois cachimbos. Nós nos voltamos então para o cachimbo “real” flutuando no ar e percebemos que ele é real, en-quanto o outro é apenas uma representação1. Tal interpretação, contudo, é incorreta, pois ambas as figuras estão pintadas na mesma tela, diante de nossos olhos. A idéia de que uma delas é

1 Nota do editor: Moscovici está se referindo a um quadro de Magritte, que pode não ser tio familiar aos leitores, O famoso quadro data de 1926 e mostra uma simples imagem de um ca-chimbo com a inscriç~o “Isso n~o é um cachimbo”, embaicho da pintura. Em 1966, ele pintou outro quadro chamado Les deux mistéres (Os dois mistérios), em que o quadro de 1966 é mostra-do em um cavalete, em uma sala vazia, com uma segunda imagem de um cachimbo flutuando no ar, sobre ele. As questões sobre representação relacionadas a ambas as pinturas são extensa-mente discutidas por Michel Foucault (1983).

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uma figura que está, ela mesma, dentro de uma figura e por isso um pouco “menos real” que a outra, é totalmente ilusória. Uma vez que se chegou a um acordo de “entrar na moldura”, nós já estamos com-prometidos: temos de aceitar a imagem como realidade. Continua contudo a realidade de uma pintura que, exposta em um museu e definida como um objeto de arte, alimenta o pensamento, provoca uma reação estética e contribui para nossa compreensão da arte da pintura.

Como pessoas comuns, sem o benefício dos instrumentos ci-entíficos, tendemos a considerar e analisar o mundo de uma ma-neira semelhante; especialmente quando o mundo em que vive-mos é totalmente social. Isso significa que nós nunca conseguimos nenhuma informação que não tenha sido destorcida por re-presentações “superimpostas” aos objetos e às pessoas que lhes dão certa vaguidade e as fazem parcialmente inacessíveis. Quando contemplamos esses indivíduos e objetos, nossa predisposição genética herdada, as imagens e hábitos que nós já aprendemos, as suas recordações que nós preservamos e nossas categorias cultu-rais, tudo isso se junta para fazê-las tais como as vemos. Assim, em última análise, elas são apenas um elemento de uma cadeia de rea-ção de percepções, opiniões, noções e mesmo vidas, organizadas em uma determinada seqüência É essencial relembrar tais lu gares comuns quando nos aproximamos do domínio da vida mental na psicologia social. Meu objetivo é reintroduzi-los aqui de uma ma-neira que, espero, seja frutífera.

1.2 A natureza convencional e prescritiva das representações

De que modo pode o pensamento ser considerado como um ambiente (como atmosfera social e cultural)? Impressionistica-mente, cada um de nós está obviamente cercado, tanto individu-almente como coletivamente, por palavras, idéias e imagens que penetram nossos olhos, nossos ouvidos e nossa mente, quer quei-ramos quer não e que nos atingem, sem que o saibamos, do mesmo modo que milhares de mensagens enviadas por ondas eletromag-néticas circulam no ar sem que as vejamos e se tomam palavras em um receptor de telefone, ouse tomam imagens na tela da televisão. Tal metáfora, contudo, não é realmente adequada. Vejamos se po-

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demos encontrar uma maneira melhor de descrever como as re-presentações intervêm em nossa atividade cognitiva e até que pon-to elas são independentes dela, ou, pode-se dizer, até que ponto a determinam. Se nós aceitamos que sempre existe certa quantidade, tanto de autonomia, como de condicionamento em cada ambiente, seja natural ou social - e no nosso caso em ambos - digamos que as representações possuem precisamente duas funções:

a) Em primeiro lugar, elas convencionalizam os objetos, pes-soas ou acontecimentos que encontram. Elas lhes dão uma forma definitiva, as localizam em uma determinada categoria e gradual-mente as colocam como um modelo de determinado tipo, distinto e partilhado por um grupo de pessoas. Todos os novos elementos se juntam a esse modelo e se sintetizam nele. Assim, nós passamos a afirmar que a terra é redonda, associamos comunismo com a cor vermelha, inflação como decréscimo do valor do dinheiro. Mesmo quando uma pessoa ou objeto não se adéquam exatamente ao mo-delo, nós o forçamos a assumir determinada forma, entrar em deter-minada categoria, na realidade, a se tornar idêntico aos outros, sob pena de não ser nem compreendido, nem decodificado.

Bartlett conclui, a partir de seus estudos sobre percepção, que:

Quando uma forma de representação co mum e já conven-

cional está em uso antes que o signo seja introduzido, exi s-

te uma forte tendência para características particulares d e-

saparecerem e para que todo o signo seja assimilado em uma forma

mais familiar. Assim “o pisca-pisca” quase sempre é identifi-

cado a uma forma comum e regular de ziguezague e “quei-

xo” perdeu seu ângulo bastante agudo, tornando-se mais

semelhante a representações convencionais dessa caracte-

rística (Bartlett, 1961: 106).

Essas convenções nos possibilitam conhecer o que represen-ta o que: uma mudança de direção ou de cor indica movimento ou temperatura, um determinado sintoma provém, ou não, de uma doença; elas nos ajudam a resolver o problema geral de saber quando interpretar uma mensagem como significante em relação a outras e quando vê-la como um acontecimento fortuito ou casu-al. E esse significado em relação a outros depende ainda de um número de convenções preliminares, através das quais nós pode-mos distinguir se um braço é levantado para chamar a atenção, para saudar um amigo, ou para mostrar impaciência. Algumas ve-zes é suficiente simplesmente transferir um objeto, ou pessoa, de

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um contexto a outro, para que o vejamos sob nova luz e para sa-bermos se eles são, realmente, os mesmos. O exemplo mais provo-cante foi o apresentado por Marcel Duchamp que, a partir de 1912, restringiu sua produção cientifica em assinar objetos já prontos e que, com esse único gesto, promoveu objetos fabricados ao status de objetos de arte. Um outro exemplo não menos chocante é o dos criminosos de guerra que são responsáveis por atrocidades que não serão facilmente esquecidas. Os que os conheceram, contudo, e que tinham familiaridade com eles tanto durante como depois da guer-ra, elogiaram sua humanidade e sua gentileza, assim como sua efi-ciência tradicional, comparando-os aos milhares de indivíduos tranqüilamente empregados em trabalhos burocráticos.

Esses exemplos mostram como cada experiência é somada a uma realidade predeterminada por convenções, que claramente define suas fronteiras, distingue mensagens significantes de men-sagens não-significantes e que liga cada parte a um todo e coloca cada pessoa em uma categoria distinta. Nenhuma mente está livre dos efeitos de condicionamentos anteriores que lhe são impostos por suas representações, linguagem ou cultura Nós pensamos atra-vés de uma linguagem; nós organizamos nossos pensamentos, de acordo com um sistema que está condicionado, tanto por nossas representações, como por nossa cultura. Nós vemos apenas o que as convenções subjacentes nos permitem ver e nós permanece-mos inconscientes dessas convenções. A esse respeito, nossa po -sição é muito semelhante à da tribo étnica africana, da qual Evans-Pritchard escreveu:

Nessa rede de crenças, cada fio depende dos outros fios e

um Zande não pode deixar esse esquema, porque este é o única

mundo que ele conhece. A rede não é uma estrutura externa

em que ele esta preso. Ela é a textura de seu pensamento e

ele não pode pensar que seu pensamento esteja errado (Evans-

Pritchard, 1937: 199).

Podemos, através de um esforço, tornar-nos conscientes do aspecto convencional da realidade e então escapar de algumas exigências que ela impõe em nossas percepções e pensamentos. Mas nós não podemos imaginar que podemos libertar-nos sempre de todas as convenções, ou que possamos eliminar todos os pre-conceitos. Melhor que tentar evitar todas as convenções, uma es-

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tratégia melhor seria descobrir e explicitar uma única representa-ção.

Então, em vez de negar as convenções e preconceitos, esta estra-tégia nos possibilitará reconhecer que as representações constitu-em, para nós, um tipo de realidade. Procuraremos isolar quais representações são inerentes nas pessoas e objetos que nós en-contramos e descobrir o que representam exatamente. Entre elas estão as cidades em que habitamos, os badulaques que usa-mos, os transeuntes nas ruas e mesmo a natureza pura, sem polui-ção, que buscamos no campo, ou em nossos jardins.

Sei que é dada alguma atenção às representações na prática de pesquisa atual, na tentativa de descrever mais claramente o contexto em que a pessoa é levada a reagir a um estimulo particu-lar e a explicar, mais acuradamente, suas respostas subseqüentes. Afinal, o laboratório é uma realidade tal que representa uma outra, exatamente como a figura de Magritte dentro de um quadro. Ele é uma realidade em que é necessário indicar “isso é um estimulo” e não simplesmente uma cor ou um som e “isso é um sujeito” e não um estudante de direita ou de esquerda que quer ganhar algum dinheiro para pagar seus estudos. Mas nós devemos tomar isso em consideração em nossa teoria. Por isso, nós devemos levar ao cen-tro do palco o que nós procuramos guardar nos bastidores laterais. Isso poderia até mesmo ser o que Lewin tinha em mente quando escreveu: “A realidade é, para a pessoa, em grande parte, deter-minada por aquilo que é socialmente aceito como realidade” (Le-win, 1948: 57).

b) Em segundo lugar, representações são prescritivas, isto é, elas se impõem sobre nós com uma força irresistível. Essa força é uma combinação de uma estrutura que es tá presente antes mesmo que nós comecemos a pensar e de uma tradição que de-creta o que deve ser pensado. Uma criança nascida hoje em qual-quer país ocidental encontrará a estrutura da psicanálise, por exemplo, nos gestos de sua mãe ou de seu médico, na afeição com que ela será cercada para ajudá-la através das provas e tribula-ções do conflito edípico, nas histórias em quadrinhos cômicas que ela lerá, nos textos escolares, nas conversações com os co-legas de aula, ou mesmo em uma análise psicanalítica, se tiver de recorrer a isso, caso surjam problemas sociais ou educacionais. Isso sem falar dos jornais que ela terá, dos discursos políticos que

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terá de ouvir, dos filmes a que assistirá etc. Ela encontrará uma resposta já pronta, em um jargão psicanalítico, a todas essas questões e para todas as suas ações fracassadas ou bem-sucedidas, uma explicação estará pronta, que a levará de volta a sua primeira infância, ou a seus desejos sexuais. Nós menciona-mos a psicanálise como uma representação. Poderíamos do mes-mo modo mencionar a psicologia mecanicista, ou uma psicologia que considera o homem como se fosse uma máquina, ou o para-digma científico de uma comunidade específica.

Enquanto essas representações, que são partilhadas por tantos, penetram e influenciam a mente de cada um, elas não são pensadas por eles; melhor, para sermos mais precisos, elas são re-pensadas, re-citadas e re-apresentadas.

Se alguém exclama: “Ele é um louco”, pára e, então, se corrige dizendo: “Não, eu quero dizer que ele é um gênio”, nós imediata-mente concluímos que ele cometeu um ato falho freudiano. Mas essa conclusão não é resultado de um raciocínio, nem prova de que nós temos uma capacidade de raciocínio abstrato, pois nós apenas relembramos, sem pensar e sem pensar em nada mais, a representação ou definição do que seja um ato falho freudiano. Po-demos, na verdade, ter tal capacidade e perguntar-nos por que a pessoa em questão usou uma palavra em vez de outra, sem chegar a nenhuma resposta. É, pois, fácil ver por que a representação que temos de algo não está diretamente relacionada à nossa maneira de pensar e, contrariamente, por que nossa maneira de pensar e o que pensamos depende de tais representações, isto é, no fato de que nós temos, ou não temos, dada representação. Eu quero di-zer que elas são impostas sobre nós, transmitidas e são o produto de uma seqüência completa de elaborações e mudanças que ocor-rem no decurso do tempo e são o resultado de sucessivas g era-ções. Todos os sistemas de classificação, todas as imagens e todas as descrições que circulam dentro de uma sociedade, mesmo as descrições científicas, implicam um elo de prévios sistemas e ima-gens, uma estratificação na memória coletiva e uma reprodução na linguagem que, invariavelmente, reflete um conhecimento an-terior e que quebra as amarras da informação presente.

A atividade social e intelectual é, afinal, um ensaio, ou recital, mas muitos psicólogos sociais a tratam, erradamente, como se ela fizesse perder a memória. Nossas experiências e idéias passadas não são experiências ou idéias mortas, mas continuam a ser ativas, a mudar e a infiltrar nossa experiência e idéias atuais. Sob muitos

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aspectos, o passado é mais real que o presente. O poder e a clari-dade peculiares das representações - isto é, das representações sociais - deriva do sucesso com que elas controlam a realida de de hoje através da de ontem e da continuidade que isso pressupõe. De fato, o próprio Jahoda as identificou como propriedades autô-nomas que não são “necessariamente identificáveis no pen-samento de pessoas particulares” (Jahoda, 1970: 42); uma nota a que seu compatriota McDougall identificara e aceitara, meio sécu-lo antes, na terminologia de seus dias: “Pensar, com a ajuda de re-presentações coletivas, possui suas leis próprias, bem distintas das leis da lógica” (McDougall, 192O: 74). Leis que, obviamente, modificam as leis da lógica, tanto na prática, como nos resultados. À luz da história e da antropologia, podemos afirmar que essas re-presentações são entidades sociais, com uma vida própria, comu-nicando-se entre elas, opondo-se mutuamente e mudando em harmonia com o curso da vida; esvaindo-se, apenas para emergir novamente sob novas aparências. Geralmente, em civilizações tão divididas e mutáveis como a nossa, elas co-existem e circulam através de várias esferas de atividade, onde uma delas terá pre-cedência, como resposta à nossa necessidade de certa coerên cia, quando nos referimos a pessoas ou coisas. Se ocorrer uma mu-dança em sua hierarquia, porém, ou se uma determinada imagem-idéia for ameaçada de extinção, todo nosso universo se pre-judicará. Um acontecimento recente e os comentários que ele pro-vocou podem servir para ilustrar esse ponto.

A American Psychiatric Association recentemente anunciou sua intenção de descartar os termos neurose e neurótico para defi-nir desordens especificas. Os comentários de um jornalista sobre essa decisão em um artigo intitulado “Goodbye Neurosis” (Inter-national Herald Tribune, 11 de set de 1978) são muito signifi-

cativos:

Se o dicionário das desordens mentais não mais aceitar o

termo “neurótico” nós, leigos, somente podemos fazer o mes-

mo. Consideremos, contudo, a perda cultural: sempre que

alguém é chamado de “neurótico”, ou “um neurótico” , isso

envolve um ato implícito de perdão e compreensão: “Oh, Mano

de tal é apenas um neurótico”, significa “Oh, fulano é excessi-

vamente nervoso. Ele realmente não quer atirar a louça na

tua cabeça. É apenas o seu leito” . Ou então “Fulano é apenas

um neurótico” - signif icando “ele não pode se controlar. Não

quer dizer que todas às vezes ele vai jogar a louça em sua ca-

beça”.

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Pelo fato de chamar alguém de neurótico, nós colocamos o

peso do ajustamento não em alguém, mas sobre nós mes-

mos. É um tipo de apelo à gentileza, a uma espécie de genero-

sidade social.

Seria também assim se os “mentalmente perturbados” atiras-

sem a louça? Pensamos que não. Desculpar Mano de tal pelo

fato de citar sua desordem mental - a categoria especif ica

de sua desordem - é o mesmo que desculpar um carro por fal-

tar-lhe os freios - ele precisa ser consertado o mais rápido pos-

sível. O peso do desajustamento será colocado diretamente

no desajustamento do carro. Não se solicitará compaixão para

a sociedade em geral e naturalmente nenhuma será espera-

da.

Pensemos também na auto-estima do próprio neurótico,

que foi longamente confortado com o conhecimento que ele

é “apenas um neurótico” -apenas algumas linhas de segu-

rança abaixo de um psicótico, mas muitas acima da linha

normal das pessoas. Um neurótico é um excêntrico tocado

por Freud. A sociedade lhe concede um lugar honrado, muitas

vezes louvável. Conceder-se-ia o mesmo lugar para os que

sofrem de “desordens somáticas” ou “desordens depressi-

vas mais graves”, ou “desordens dissociativas”? Provavel-

mente não.

Tais ganhos culturais e perdas, estão, obviamente, relaciona-dos a fragmentos de representações sociais. Uma palavra e a defi-nição de dicionário dessa palavra contêm um meio de classificar indivíduos e ao mesmo tempo teorias implícitas com respeito à sua constituição, ou com respeito às razões de se comportarem de uma maneira ou de outra - uma como que imagem física de cada pessoa, que corresponde a tais teorias. Uma vez difundido e aceito este conteúdo, ele se constitui em uma parte integrante de nós mesmos, de nossas inter-relações com outros, de nossa maneira de julgá-los e de nos relacionarmos com eles; isso até mesmo define nossa posição na hierarquia social e nossos valores. Se a palavra “neurose” desaparecesse e fosse substituída pela palavra “de-sordem” , tal acontecimento teria conseqüências muito além de seu mero significado em uma sentença, ou na psiquiatria. São nos-sas inter-relações e nosso pensamento coletivo que estão implica-dos nisso e transformados.

Espero que eu tenha amplamente demonstrado como, por um lado, ao se colocar um signo convencional na realidade, e por outro lado, ao se prescrever, através da tradição e das estruturas

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imemoriais, o que nós percebemos e imaginamos, essas criaturas do pensamento, que são as representações, terminam por se cons-tituir em um ambiente real, concreto.

Através de sua autonomia e das pressões que elas exercem (mesmo que nós estejamos perfeitamente conscientes que elas não são “nada mais que idéias”), elas são, contudo, como se fossem realidades inquestionáveis que nós temos de confrontá-las. O peso de sua história, costumes e conteúdo cumulativo nos confronta com toda a resistência de um objeto material. Talvez seja uma resistência ainda maior, pois o que é invisível é inevitavelmente mais difícil de superar do que o que é visível.

1.3. A era da representação

Todas as interações humanas, surjam elas entre duas pessoas ou entre dois grupos, pressupõem representações. Na realidade, é isso que as caracteriza. “O fato central sobre as interações huma-nas, escreveu Asch, é que elas são acontecimentos, que elas estão psicologicamente representadas em cada um dos participantes” (Asch, 1952: 142). Se esse fato é menosprezado, tudo o que sobra são trocas, isto é, ações e reações, que são não-específicas e, ainda mais, empobrecidas na troca. Sempre e em todo lugar, quando nós encontramos pessoas ou coisas e nos familiarizamos com elas, tais representações estão presentes. A informação que recebemos, e a qual tentamos dar um significado, está sob seu controle e não possui outro sentido para nós além do que elas dão a ele.

Para alargar um pouco o referencial, nós podemos afirmar que o que é importante é a natureza da mudança, através da qual as representações sociais se tornam capazes de influenciar o com-portamento do individuo participante de uma coletividade. É des-sa maneira que elas são criadas, internamente, mentalmente, pois é dessa maneira que o próprio processo coletivo penetra, como o fator determinante, dentro do pensamento individual. Tais repre-sentações aparecem, pois, para nós, quase como que objetos ma-teriais, pois eles são o produto de nossas ações e comunicações. Elas possuem, de fato, uma atividade profissional: Eu estou me re-ferindo àqueles pedagogos, ideólogos, popularizadores da ciência ou sacerdotes, isto é, os representantes da ciência, culturas ou re-ligião, cuja tarefa é criá-las e transmiti-las, muitas vezes, infeliz-

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mente, sem sabê-lo ou querê-lo. Na evolução geral da sociedade, essas profissões estão destinadas a se multiplicar e sua tarefa se tornará mais sistemática e mais explícita. Em parte, devido a isso e em vista de tudo o que isso implica, essa era se tornará conhecida como a era da representação, em cada sentido desse termo.

Isso não subverterá a autonomia das representações em rela-ção tanto à consciência do indivíduo, ou à do grupo. Pessoas e grupos criam representações no decurso da comunicação e da co-operação. Representações, obviamente, não são criadas por um individuo isoladamente. Uma vez criadas, contudo, elas adquirem uma vida própria, circulam, se encontram, se atraem e se repelem e dão oportunidade ao nascimento de novas representações, en-quanto velhas representações morrem. Como conseqüência dis-so, para se compreender e explicar uma representação, é necessá-rio começar com aquela, ou aquelas, das quais ela nasceu. Não é suficiente começar diretamente de tal ou tal aspecto, seja do com-portamento, seja da estrutura social. Longe de refletir, seja o com-portamento ou a estrutura social, uma representação muitas vezes condiciona ou até mesmo responde a elas. Isso é assim, não por-que ela possui uma origem coletiva, ou porque ela se refere a um objeto coletivo, mas porque, como tal, sendo compartilhada por todos e reforçada pela tradição, ela constitui uma realidade social sui generis. Quanto mais sua origem é esquecida e sua natureza convencional é ignorada, mais fossilizada ela se torna. O que é ideal, gradualmente torna-se materializado. Cessa de ser efêmero, mutável e mortal e torna-se, em vez disso, duradouro, perma-nente, quase imortal. Ao criar representações, nós somos como o artista, que se inclina diante da estátua que ele esculpiu e a adora como se fosse um deus.

Na minha opinião, a tarefa principal da psicologia social é es-tudar tais representações, suas propriedades, suas origens e seu impacto. Nenhuma outra disciplina dedica-se a essa tarefa e ne-nhuma está melhor equipada para isso. Foi, de fato, à psicologia social que Durkheim confiou essa tarefa:

No que se refere às leis do pensamento coletivo, elas são to-

talmente desconhecidas. A psicologia social, cuja tarefa se-

ria defini-las, não é nada mais que uma palavra descrevendo

todo tipo de variadas generalizações, vagas, sem um objeto

definido como foco. O que é necessário é descobrir, pela

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comparação de mitos, lendas, tradições populares e lin-

guagens, como as representações sociais se atraem e se ex-

cluem, como elas se mesclam ou se distinguem etc. (Durkheim,

1895/1982: 41-42).

Apesar de numerosos estudos posteriores, idéias fragmenta-das e experimentos, nós não estamos mais avançados do que nós estávamos há quase um século. Nosso conhecimento é como uma maionese que azedou. Mas uma coisa é certa: As formas princi pais de nosso meio ambiente físico e social estão fixas em repre-sentações desse tipo e nós mesmos fomos moldados de acordo com elas. Eu até mesmo iria ao ponto de afirmar que, quanto me-nos nós pensamos nelas, quanto menos conscientes somos delas, maior se torna sua influência. É o caso em que a mente coletiva transforma tudo o que toca. Nisso reside a verdade da crença pri-mitiva que dominou nossa mentalidade por milhões de anos.

2. O que é uma sociedade pensante?

Nós pensamos através de nossas bocas (Tristan Tzara).

2.1. Behaviorismo como o estudo das representações sociais

Vivemos em um mundo behaviorista, praticamos uma ciência behaviorista e usamos metáforas behavioristas. Eu digo isso sem orgulho ou vergonha. Pois eu não vou embarcar em uma critica do que deveria, forçosamente, ser chamado de uma visão do ser hu-mano contemporâneo, pois sua defesa, ou refutação, não é, en-quanto eu posso perceber, interesse da ciência, mas da cultura. Não se defende, nem se refuta, uma cultura. Dito isso, é óbvio que o estudo das representações sociais deve ir além de tal visão e deve fazer isso por uma razão específica. Ela vê o ser humano en-quanto ele tenta conhecer e compreender as coisas que o circun-dam e tenta resolver os enigmas centrais de seu próprio nasci-mento, de sua existência corporal, suas humilhações, do céu que está acima dele, dos estados da mente de seus vizinhos e dos po-deres que o dominam: enigmas que o ocupam e preocupam desde o berço e dos quais ele nunca pára de falar. Para ele, pensamentos

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e palavras são reais - eles não são apenas epifenômenos do com-portamento. Ele concorda com Frege, que escreveu:

A influência de uma pessoa sobre outra acontece princi-

palmente através do pensamento. Alguém comunica um pen-

samento- Como acontece isso? Alguém causa mudanças no

mundo externo normal que, percebidas por outra pessoa,

são consideradas como induzindo-a a apreender um pen-

samento e aceitá-lo como verdadeiro. Poderiam os grandes

acontecimentos do mundo terem se tornado realidade sem

a comunicação do pensamento? E apesar disso, estamos in-

clinados a considerar os pensamentos como irreais, porque

parecem não possuírem influência sobre os acontecimen-

tos, embora pensar, julgar, falar, compreender, são fatos da

vida humana. Como um martelo parece muito mais real que

um pensamento. Como é diferente o processo de usar um mar-

telo do de comunicar um pensamento (Frege, 1977: 38).

É isso que os livros e artigos estão continuamente martelando sobre nossa cabeça: os martelos são mais reais que pensamentos; preste atenção a martelos, não a pensamentos. Tudo, em última análise, é comportamento, um problema de fixar estímulos para as paredes de nosso organismo, como agulhas. Quando estudamos representações sociais nós estudamos o ser humano, enquanto ele faz perguntas e procura respostas ou pensa e não enquanto ele processa informação, ou se comporta. Mais precisamente, en-quanto seu objetivo não é comportar-se, mas compreender.

O que é uma sociedade “pensante”? Essa é nossa questão e é isso que nós queremos observar e compreender, através do estu-do (a) das circunstâncias em que os grupos se comunicam, tomam decisões e procuram tanto revelar, como esconder algo e (b) das suas ações e suas crenças, isto é, das suas ideologias, ciências e representações. Nem poderia ser diferente; o mistério é profundo, mas a compreensão é a faculdade humana mais comum. Acredita-va-se antigamente que esta faculdade fosse estimulada, primeira e principalmente, pelo contato com o mundo externo. Mas aos poucos nós nos fomos dando conta que ela na realidade brota da comuni-cação social. Estudos recentes sobre crianças muito pequenas mos-traram que as origens e o desenvolvimento do sentido e do pen-samento dependem das inter-relações sociais; como se uma crian-ça chegasse ao mundo primariamente preparada para se relacio-nar com outros: com sua mãe, seu pai e com todos os que a espe-

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ram e se interessam por ela. O mundo dos objetos constitui apenas um pano de fundo para as pessoas e suas interações sociais.

Ao fazermos a pergunta: o que é uma sociedade pensante?, nós rejeitamos ao mesmo tempo a concepção que, creio eu, é pre-dominante nas ciências humanas, de que uma sociedade não pen-sa, ou, se pensa, esse não é um atributo essencial seu. O negar que uma sociedade “pense” pode assumir duas formas diferentes:

a) afirmar que nossas mentes são pequenas caixas pretas, dentro de uma caixa preta maior, que simplesmente recebe infor-mação, palavras e pensamentos que são condicionados de fora, a fim de transformá-los em gestos, juízos, opiniões, etc. De fato, nós sabemos muito bem que nossas mentes não são caixas pretas, mas, na pior das hipóteses, buracos pretos, que possuem uma vida e atividade próprias, mesmo quando isso não é óbvio e quan-do as pessoas não trocam nem energia nem informação com o mundo externo. A loucura, esse buraco negro na racionalidade, prova irrefutavelmente que é assim que as coisas são.

b) assegurar que grupos e pessoas estão sempre e completa-mente sob controle de uma ideologia dominante, que é produzida e imposta por sua classe social, pelo estado, igreja ou escola e que o que eles pensam e dizem apenas reflete tal ideologia. Em outras palavras, sustenta-se que eles, como regra, não pensam, ou pro-duzem nada de original por si mesmos: eles reproduzem e, em contrapartida, são reproduzidos. Apesar de sua natureza progres-sista, esta concepção está essencialmente de acordo com a de Le Bon, que afirma que as massas não pensam nem criam; e que são apenas os indivíduos, a elite organizada, que pensa e cria. Desco-brimos aqui, quer gostemos ou não, a metáfora da caixa preta, com a diferença que agora ela está composta de idéias já prontas e não apenas com objetos. Pode ser esse o caso, mas nós não o po-demos garantir, pois, mesmo que as ideologias e seu impacto te-nham sido amplamente discutidos, elas não foram extensivamen te pesquisadas. E isso também foi reconhecido por Marx e Wood: “Em comparação, porém, com outras áreas, o estudo da ideologia foi relativamente negligenciado pelos sociólogos, que em geral se sentem em situação mais confortável estudando a estrutura social e o comportamento, do que estudando crenças e símbolos (Marx & Wood, 1975: 382).

O que estamos sugerindo, pois, é que pessoas e grupos, longe de serem receptores passivos, pensam por si mesmos, produzem e

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comunicam incessantemente suas próprias e específicas repre-sentações e soluções às questões que eles mesmos colocam. Nas ruas, bares, escritórios, hospitais, laboratórios, etc. as pessoas ana-lisam, comentam, formulam “filosofias” espontâneas, não oficiais, que têm um impacto decisivo em suas relações sociais, em suas escolhas, na maneira como eles educam seus filhos, como plane-jam seu futuro, etc. Os acontecimentos, as ciências e as ideologias apenas lhes fornecem o “alimento para o pensamento”.

2.2. Representações sociais

É óbvio que o conceito de representações sociais chegou até nós vindo de Durkheim. Mas nós temos uma visão diferente dele - ou, de qualquer modo, a psicologia social deve considerá-lo de um ângulo diferente - de como o faz a sociologia. A sociologia vê, ou melhor, viu as representações sociais como artifícios explanató-rios, irredutíveis a qualquer análise posterior. Sua função teórica era semelhante á do átomo na mecânica tradicional, ou à do genes na genética tradicional; isto é, átomos e genes eram considerados como existentes, mas ninguém se importava sobre o que faziam, ou com o que se pareciam. Do mesmo modo, sabia-se que as re-presentações sociais existiam nas sociedades, mas ninguém se importava com sua estrutura ou com sua dinâmica interna. A psi-cologia social, contudo, estaria e deveria estar pré-ocupada so-mente com a estrutura e a dinâmica das representações. Para nós, isso se explica na dificuldade de penetrar o interior para descobrir os mecanismos internos e a vitalidade das representações sociais o mais detalhadamente possível; isto é, em “cindir as representa-ções”, exatamente como os átomos e os genes foram divididos. O primeiro passo nessa direção foi dado por Piaget, quando ele estu-dou a representação do mundo da criança e sua investigação per-manece, até o dia de hoje, como um exemplo. Assim, o que eu pro-ponho fazer é considerar como um fenômeno o que era antes visto como um conceito.

Ainda mais: do ponto de vista de Durkheim, as representa-ções coletivas abrangiam uma cadeia completa de formas intelec-tuais que incluíam ciência, religião, mito, modalidades de tempo e espaço, etc.

De fato, qualquer tipo de idéia, emoção ou crença, que ocor-

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resse dentro de uma comunidade, estava incluído. Isso representa um problema sério, pois pelo fato de querer incluir demais, inclui-se muito pouco: querer compreender tudo é perder tudo. A intui-ção, assim como a experiência, sugere que é impossível cobrir um raio de conhecimento e crenças tão amplo. Conhecimento e crença são, em primeiro lugar, demasiado heterogêneos e, além disso, não podem ser definidos por algumas poucas características ge-rais. Como conseqüência, nós estamos obrigados a acrescentar duas qualificações significativas:

a) As representações sociais devem ser vistas como uma ma-neira especifica de compreender e comunicar o que nós já sabemos. Elas ocupam, com efeito, uma posição curiosa, em algum ponto entre conceitos, que têm como seu objetivo abstrair sentido do mundo e introduzir nele ordem e percepções, que reproduzam o mundo de uma forma significativa. Elas sempre possuem duas faces, que são interdependentes, como duas faces de uma folha de papel: a face icônica e a face simbólica. Nós sabemos que: repre-sentação = imagem/significação; em outras palavras, a represen-tação iguala toda imagem a uma idéia e toda idéia a uma imagem. Dessa maneira, em nossa sociedade, um “neurótico” é uma idéia associada com a psicanálise, com Freud, com o Complexo de Édipo e, ao mesmo tempo, nós vemos o neurótico como um indivíduo egocêntrico, patológico, cujos conflitos parentais não foram ainda resolvidos. De outro lado, porém, a palavra evoca uma ciência, até mesmo o nome de um herói clássico e um conceito, que, por ou-tras, evoca um tipo definido, caracterizado por certos traços e uma biografia facilmente imaginável. Os mecanismos mentais que são mobilizados nesse exemplo e que constroem essa figura em nosso universo e lhe dão um significado, uma interpretação, obviamente diferem dos mecanismos cuja função é isolar uma percepção pre-cisa de uma pessoa ou de uma coisa e de criar um sistema de con-ceitos que as expliquem. A própria linguagem, quando ela carrega representações, localiza-se a meio caminho entre o que é chama do de a linguagem de observação e a linguagem da lógica; a primeira, expressando puros fatos - se tais fatos existem - e a segunda, ex-pressando símbolos abstratos. Este é, talvez, um dos mais marcan-tes fenômenos de nosso tempo - a união da linguagem e da re-presentação. Deixem-me explicar:

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Até o inicio do século, a linguagem verbal comum era um meio tanto de comunicação, como de conhecimento; de idéias co-letivas e de pesquisa abstrata, pois ela era igual tanto para o senso comum, como para a ciência. Hoje em dia, a linguagem não-verbal - matemática e lógica - que se apropriou da esfera da ciência, subs-tituiu signos por palavras e equações por proposições. O mundo de nossa experiência e de nossa realidade se rachou em dois e as leis que governam nosso mundo cotidiano não possuem, agora, relação direta com as leis que governam o mundo da ciência. Se nós estamos, hoje, muito interessados em fenômenos lingüísticos, isso se deve, em parte, ao fato de a linguagem estar em declínio, do mesmo modo como estamos preocupados com as plantas, com a natureza e os animais, porque eles estão ameaçados de extin-ção. A linguagem, excluída da esfera da realidade material, re-emerge na esfera da realidade histórica e convencional; e, se ela perdeu sua relação com a teoria, ela conserva sua relação com a representação, que é tudo o que ela deixou. Se o estudo da lin-guagem, pois, é cada vez mais preocupação da psicologia social, isso não é porque a psicologia social quer imitar o que aconteceu com as outras disciplinas, ou porque quer acrescentar uma dimen-são social a suas abstrações individuais, ou por qualquer outros motivos filantrópicos. Isso está, simplesmente, ligado à mudança que nós mencionamos há pouco e que a liga tão exclusivamente ao nosso método normal, cotidiano, de compreender e intercam biar nossas maneiras de ver as coisas.

b) Durkheim, fiel à tradição aristotélica e kantiana, possui uma concepção bastante estática dessas representações - algo parecido com a dos estóicos. Como conseqüência, representações, em sua teoria, são como o adensamento da neblina, ou, em outras pa-lavras, elas agem como suportes para muitas palavras ou idéias - como as camadas de um ar estagnado na atmosfera da sociedade, do qual se diz que pode ser cortado com uma faca. Embora isso não seja inteiramente falso, o que é mais chocante ao observador contemporâneo é seu caráter móvel e circulante; em suma, sua plasticidade. Mais: nós as vemos como estruturas dinâmicas, ope-rando em um conjunto de relações e de comportamentos que sur-gem e desaparecem, junto com as representações. É o mesmo que aconteceria com o desaparecimento, de nossos dicionários, da pa-lavra “neurótico”, que iria, com isso, também banir certos senti-mentos, certos tipos de relacionamento para com algumas pessoas determinadas, uma maneira de julgá-las e, conseqüentemente, de

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nos julgarmos a nós mesmos.

Eu acentuo essas diferenças com uma finalidade especifica. As representações sociais que me interessam não são nem as das sociedades primitivas, nem as suas sobreviventes, no subsolo de nossa cultura, dos tempos pré-históricos. Elas são as de nossa so-ciedade atual, de nosso solo político, cientifico, humano, que nem sempre têm tempo suficiente para se sedimentar completamente para se tornarem tradições imutáveis. E sua importância continua a crescer, em proporção direta com a heterogeneidade e a flutua-ção dos sistemas unificadores - as ciências, religiões e ideologias oficiais - e com as mudanças que elas devem sofrer para penetrar a vida cotidiana e se tornar parte da realidade comum. Os meios de comunicação de massa aceleraram essa tendência, multiplica-ram tais mudanças e aumentaram a necessidade de um elo entre, de uma parte, nossas ciências e crenças gerais puramente abstra-tas e, de outra parte, nossas atividades concretas como indivíduos sociais. Em outras palavras, existe uma necessidade continua de re-constituir o “senso comum” ou a forma de compreensão que cria o substrato das imagens e sentidos, sem a qual nenhuma cole-tividade pode operar. Do mesmo modo, nossas coletividades hoje não poderiam funcionar se não se criassem representações sociais baseadas no tronco das teorias e ideologias que elas transformam em realidades compartilhadas, relacionadas com as interações en-tre pessoas que, então, passam a constituir uma categoria de fe-nômenos à parte. E a característica especifica dessas representa-ções é precisamente a de que elas “corporificam idéias” em expe-riências coletivas e interações em comportamento, que podem, com mais vantagem, ser comparadas a obras de arte do que a rea-ções mecânicas. O escritor bíblico já estava consciente disso quan-do afirmou que o verbo (a palavra) se fez carne; e o marxismo con-firma isso quando afirma que as idéias, uma vez disseminadas en-tre as massas, são e se comportam como forças materiais.

Nós não sabemos quase nada dessa alquimia que transforma a base metálica de nossas idéias no ouro de nossa realidade. Como transformar conceitos em objetos ou em pessoas é o enigma que nos pré-ocupou por séculos e que é o verdadeiro objetivo de nossa ciência, como distinto de outras ciências que, na realidade, inves-tiga o processo inverso. Eu estou bastante consciente que uma distância quase insuperável separa o problema de sua solução, uma distância que bem poucos estão preparados para transpor.

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Mas eu não deixarei de repetir que se a psicologia social não ten-tar transpor esse valor, ela fracassará em sua tarefa e com isso não somente não conseguirá progredir, mas cessará mesmo de exis-tir.Para sintetizar: se, no sentido clássico, as representações cole-tivas se constituem em um instrumento explanatório e se referem a uma classe geral de idéias e crenças (ciência, mito, religião, etc.), para nós, são fenômenos que necessitam ser descritos e explicados. São fenômenos específicos que estão relacionados com um modo particular de compreender e de se comunicar - um modo que aia tanto a realidade como o senso comum. É para enfatizar essa distin-ção que eu uso o termo “social” em vez de “coletivo”.

2.3. Ciências sagradas e profanas; universos consen-suais e reificados

O que nos interessa aqui é o lugar que as representações ocu-pam em uma sociedade pensante. Anteriormente, este lugar seria - e até certo ponto o foi - determinado pela distinção entre uma esfera sagrada - digna de respeito e veneração e desse modo man-tida bastante longe de todas as atividades intencionais, humanas - e uma esfera profana, em que são executadas atividades triviais e utilitaristas. São esses mundos separados e opostos que, em di-ferentes graus, determinam, dentro de cada cultura e de cada indi-víduo, as esferas de suas forças próprias e alheias; o que nós pode-mos mudar e o que nos muda; o que é obra nossa (opus proprium) e o que é obra alheia (opus alienum). Todo conhecimento pressupõe tal divisão da realidade e uma disciplina que estivesse interessada em uma das esferas, era totalmente diferente de uma disciplina que estivesse interessada na outra; as ciências sagradas não teri-am nada em comum com as ciências profanas. Sem dúvida, era pos-sível passar de uma para outra, mas isso somente ocorria quando os conteúdos fossem obscuros.

Essa distinção foi agora abandonada. Foi substituída por outra distinção, mais básica, entre universos consensuais e reificados. No universo consensual, a sociedade é uma criação visível, conti-nua, permeada com sentido e finalidade, possuindo uma voz hu-

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mana, de acordo com a existência humana e agindo tanto como reagindo, como um ser humano. Em outras palavras, o ser huma-no é, aqui, a medida de todas as coisas. No universo reificado, a sociedade é transformada em um sistema de entidades sólidas, básicas, invariáveis, que são indiferentes à individualidade e não possuem identidade. Esta sociedade ignora a si mesma e a suas criações, que ela é somente como objetos isolados, tais como pes-soas, idéias, ambientes e atividades. As várias ciências que es tão interessadas em tais objetos podem, por assim dizer, impor sua autoridade no pensamento e na experiência de cada individuo e decidir, em cada caso particular, o que é verdadeiro e o que não o é. Todas as coisas, quaisquer que sejam as circunstâncias, são, aqui, a medida do ser humano.

Mesmo o uso dos pronomes “nós” e “eles” pode expressar esse contraste, onde “nós” está em lugar do grupo de indivíduos com os quais nós nos relacionamos e “eles” - os franceses, os pro-fessores, os sistemas de estado etc. - está em lugar de um grupo diferente, ao qual nós não pertencemos, mas podemos ser força-dos a pertencer. A distância entre a primeira e a terceira pessoa do plural expressa a distância que separa o lugar social, onde nos sentimos incluídos, de um lugar dado, indeterminado ou, de qual-quer modo, impessoal. Essa falta de identidade, que está na raiz da angústia psíquica do homem moderno, é um sintoma dessa ne-cessidade de nos vermos em termos de “nós” e “eles”; de opor “nós” a “eles”; e, por conseguinte, da nossa impotência de ligar um ao outro. Grupos de indivíduos tentam superar essa necessi-dade tanto identificando-se como “nós” e dessa maneira fechando-se em um mundo à parte, ou identificando-se com o “eles” e tor-nando-se os robôs da burocracia e da administração.

Tais categorias de universos consensuais e reificados são próprios de nossa cultura. Em um universo consensual, a sociedade é vista como um grupo de pessoas que são iguais e livres, cada um com possibilidade de falar em nome do grupo e sob seu auspício. Dessa maneira, presume-se que nenhum membro possua compe-tência exclusiva, mas cada qual pode adquirir toda competência que seja requerida pelas circunstâncias. Sob este aspecto, cada um age como um “amador” responsável, ou como um “observador curioso” nas “frases feitas” e chavões do último século. Na maioria dos locais públicos de encontro, esses políticos amadores, douto-res, educadores, sociólogos, astrônomos, etc. podem ser encon-trados expressando suas opiniões, revelando seus pontos de vista

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e construindo a lei. Tal estado de coisas exige certa cumplicidade, isto é, convenções lingüísticas, perguntas que não podem ser fei-tas, tópicos que podem, ou não podem, ser ignorados. Esses mun-dos são institucionalizados nos clubes, associações e bares de hoje, como eles foram nos “salões” e academias do passado. O que eles fazem prosperar é a arte declinante da conversação. E isso que os mantém em andamento e que encoraja relações sociais que, de outro modo, definhariam. Em longo prazo, a conversação (os discursos) cria nós de estabilidade e recorrência, uma base co-mum de significância entre seus praticantes. As regras dessa arte mantêm todo um complexo de ambigüidades e convenções, sem o qual a vida social não poderia existir. Elas capacitam as pessoas a compartilharem um estoque implícito de imagens e de idéias que são consideradas certas e mutuamente aceitas. O pensar é feito em voz alta. Ele se torna uma atividade ruidosa, pública, que satisfaz a necessidade de comunicação e com isso mantém e con-solida o grupo, enquanto comunica a característica que cada mem-bro exige dele. Se nós pensamos antes de falar e falamos para nos ajudarmos a pensar, nós também falamos para fornecer uma reali-dade sonora á pressão interior dessas conversações, através das quais e nas quais nós nos ligamos aos outros. Beckett sintetizou essa situação em Endgame:

Clov: O que há aí para me manter aqui?

Hamm: Conversação.

E o motivo é profundo. Toda pessoa que mantiver seus ouvidos fixos nos lugares onde as pessoas conversam, toda pessoa que lê entrevistas com alguma atenção, perceberá que a maioria das con-versações se referem a profundos problemas “metafísicos” - nasci-mento, morte, injustiça, etc. - e sobre leis éticas da sociedade. Por-tanto, elas provêem um comentário permanente sobre os principais acontecimentos e características nacionais, científicas ou urbanas e são, por isso, o equivalente moderno do coro grego que, embora não esteja mais no palco histórico, permanece nas sacadas.

Num universo reificado, a sociedade é vista como um sistema de diferentes papéis e classes, cujos membros são desiguais. So-mente a competência adquirida determina seu grau de participa-ção de acordo com o mérito, seu direito de trabalhar “como médi-

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co”, “como psicólogo”, “como comerciante”, ou de se abster desde que “eles não tenham competência na matéria”.

Troca de papéis e a capacidade de ocupar o lugar de outro são muitas maneiras de adquirir competência ou de se isolar, de ser diferente. Nós nos confrontamos, pois, dentro do sistema, co-mo organizações preestabelecidas, cada uma com suas regras e regulamentos. Dai as compulsões que nós experienciamos e o sen-timento de que nós não podemos transformá-las conforme nossa vontade. Existe um comportamento adequado para cada circuns-tância, uma fórmula lingüística para cada confrontação e, nem é necessário dizer, a informação apropriada para um contexto de-terminado. Nós estamos presos pelo que prende a organização e pelo que corresponde a um tipo de acordo geral e não a alguma compreensão recíproca, a alguma seqüência de prescrições, não a uma seqüência de acordos. A história, a natureza, todas as coisas que são responsáveis pelo sistema, são igualmente responsáveis pela hierarquia de papéis e classes, para sua solidariedade. Cada situação contém uma ambigüidade potencial, uma vagueza, duas interpretações possíveis, mas suas conotações são negativas, elas são obstáculos que nós devemos superar antes que qualquer coisa se tome clara, precisa, totalmente sem ambigüidade. Isso é conse-guido pelo processamento da informação, pela ausência de envol-vimento do processador e pela existência de canais adequados. O computador serve como o modelo para o tipo de relações que são, então, estabelecidas e sua nacionalidade, podemos ao menos es-perar, é a racionalidade do que é computado.

O contraste entre os dois universos possui um impacto psico-lógico. Os limites entre eles dividem a realidade coletiva, e, de fato, a realidade física, em duas. É facilmente constatável que as ciên-cias são os meios pelos quais nós compreendemos o universo reifi-cado, enquanto as representações sociais tratam com o uni verso consensual. A finalidade do primeiro é estabelecer um mapa das forças, dos objetos e acontecimentos que são independentes de nossos desejos e fora de nossa consciência e aos quais nós de-vemos reagir de modo imparcial e submisso. Pelo fato de ocultar valores e vantagens, eles procuram encorajar precisão intelectual e evidência empírica. As representações, por outro lado, restau-ram a consciência coletiva e lhe dão forma, explicando os objetos e acontecimentos de tal modo que eles se tornam acessíveis a qual-quer um e coincidem com nossos interesses imediatos. Eles estão,

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conforme William James, interessados em: “a realidade prática, realidade para nós mesmos; e para se conseguir isso, um objeto deve não apenas aparecer, mas ele deve parecer tanto interessante como importante. O mundo, cujos objetos não sejam nem interes-santes, nem importantes, nós o tratamos apenas negativa mente, nós o rotulamos como irreal” (W. James, 1890/1980: 295).

O uso de uma linguagem de imagens e de palavras que se tor-naram propriedade comum através da difusão de idéias existentes dá vida e fecunda aqueles aspectos da sociedade e da natureza com os quais nós estamos aqui interessados. Sem dúvida - e isso é o que eu decidi mostrar - a natureza específica das representações ex-pressa a natureza especifica do universo consensual, produto do qual elas são e ao qual elas pertencem exclusivamente. Disso resulta que a psicologia social seja a ciência de tais universos. Ao mesmo tempo, nós vemos com mais clareza a natureza verdadeira das ideologias, que é de facilitar a transição de um mundo a outro, isto é, de transformar categorias consensuais em categorias reificadas e de subordinar as primeiras às segundas. Por conseguinte, elas não possuem uma estrutura especifica e podem ser percebidas tanto como representações, como ciências. É assim que elas chegam a interessar tanto à sociologia, como à história.

3. O familiar e o não-familiar

4.

Para se compreender o fenômeno das representações sociais, contudo, nós temos de iniciar desde o começo e progredir passo a passo. Até esse ponto, eu não fiz nada mais que sugerir certas re-formas e tentar defendê-las. Eu não poderia deixar de enfatizar de-terminadas idéias, caso quisesse defender o ponto de vista que eu estava sustentando. Mas, ao fazer isso, demonstrei que:

a) as representações sociais devem ser vistas como uma “atmosfera”, em relação ao indivíduo ou ao grupo;

b) as representações são, sob certos aspectos, espe-cíficas de nossa sociedade.

Por que criamos nós essas representações? Em nossas razões de criá-las, o que explica suas propriedades cognitivas? Estas são as questões que irei abordar em primeiro lugar. Nós poderíamos

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responder recorrendo a três hipóteses tradicionais: (1) a hipótese da desiderabilidade, isto é, uma pessoa ou um grupo procura criar imagens, construir sentenças que irão tanto revelar, como ocultar sua ou suas intenções, sendo essas imagens e sentenças distor-ções subjetivas de uma realidade objetiva; (2) a hipótese do dese-quilíbrio, isto é, todas as ideologias, todas as concepções de mun-do são meios para solucionar tensões psíquicas ou emocionais, devidas a um fracasso ou a uma falta de integração social; são, portanto, compensações imaginárias, que teriam a finalidade de restaurar um grau de estabilidade interna; (3) a hipótese do con-trole, isto é, os grupos criam representações para filtrar a informa-ção que provem do meio ambiente e dessa maneira controlam o comportamento individual. Elas funcionam, pois, como uma espé-cie de manipulação do pensamento e da estrutura da realidade, semelhantes àqueles métodos de controle “ comportamental” e de propaganda que exercem uma coerção forçada em todos aqueles a quem eles estão dirigidos.

Tais hipóteses não estão totalmente desprovidas de verdade. As representações sociais podem, na verdade, responder a deter-minada necessidade; podem responder a um estado de desequilí-brio; e podem, também, favorecer a dominação impopular, mas impossível de erradicar, de uma parte da sociedade sobre outra. Mas essas hipóteses têm, contudo, a fraqueza comum de serem demasiado gerais; elas não explicam por que tais funções devem ser satisfeitas por esse método de compreender e de comunicar e não por algum outro, como pela ciência ou a religião, por exemplo. Devemos, pois, procurar uma hipótese diferente, menos geral e mais de acordo com o que os pesquisadores desse campo têm ob-servado. Além do mais, por necessidade de espaço, eu não posso nem elaborar mais longamente minhas reservas, nem justificar minha teoria. Deverei expor, sem querer causar mais problemas, uma intuição e um fato que eu creio que sejam verdadeiros, isto é, que a finalidade de todas as representações é tomar familiar algo não-familiar, ou a própria não-familiaridade.

O que eu quero dizer é que os universos consensuais são lo-cais onde todos querem sentir-se em casa, a salvo de qualquer ris-co, atrito ou conflito. Tudo o que é dito ou feito ali, apenas confirma as crenças e as interpretações adquiridas, corrobora, mais do que

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contradiz, a tradição. Espera-se que sempre aconteçam, sempre de novo, as mesmas situações, gestos, idéias. A mudança como tal somente é percebida e aceita desde que ela apresente um tipo de vivência e evite o murchar do diálogo, sob o peso da repetição. Em seu todo, a dinâmica das relações é uma dinâmica de familiari-zação, onde os objetos, pessoas e acontecimentos são percebidos e compreendidos em relação a prévios encontros e pa radigmas. Como resultado disso, a memória prevalece sobre a dedução, o passado sobre o presente, a resposta sobre o estímulo e as ima-gens sobre a “realidade”. Aceitar e compreender o que é familiar, crescer acostumado a isso e construir um hábito a partir disso, é uma coisa; mas é outra coisa completamente diferente preferir isso como um padrão de referência e medir tudo o que acontece e tudo o que é percebido, em relação a isso. Pois, nesse caso, nós simplesmente não registramos o que tipifica um parisi ense, uma pessoa”respeitável”, uma mãe, um Complexo de Edipo etc., mas essa consciência é usada também como um critério para avaliar o que é incomum, anormal e assim por diante. Ou, em outras pala-vras, o que é não-familiar.

Na verdade, para nosso amigo, o “homem da rua” (ameaçado agora de extinção, junto com os passeios pelas calçadas, a ser em breve substituído pelo homem diante da televisão), a maioria das opiniões provindas da ciência, da arte e da economia, que se refe-rem a universos reificados, diferem, de muitas maneiras, das opi-niões familiares, práticas, que ele construiu a partir de traços e pe-ças das tradições científicas, artísticas e econômicas e diferem da experiência pessoal e dos boatos. Porque eles diferem, ele tende a pensar neles como invisíveis, irreais - pois o mundo da realidade, como o realismo na pintura, é basicamente resultado das limita-ções e/ou de convenção. Ele, pois, pode experimentar esse sentido de não-familiaridade quando as fronteiras e/ou as convenções desaparecerem; quando as distinções entre o abstrato e o concre-to se tomarem confusas; ou quando um objeto, que ele sempre pensou ser abstrato, repentinamente emerge com toda sua con-cretude etc. Isso pode acontecer quando ele se defronta com um quadro da reconstrução física de tais entidades puramente nacio-nais como os átomos e os robôs, ou, de fato, com qualquer com-portamento, pessoa ou relação atípico, que poderá impedi-lo de reagir como ele o faria diante de um padrão usual. Ele não encon-tra o que esperava encontrar e é deixado com uma sensação de in-completude e aleatoriedade. É desse modo que os doentes men-

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tais, ou as pessoas que pertencem a outras culturas, nos incomo-dam, pois estas pessoas são como nós e contudo não são como nós; assim nós podemos dizer que eles são “sem cultura”, “bárba-ros”, “irracionais” etc. De fato, todas as coisas, tópicos ou pessoas, banidas ou remotas, todos os que foram exilados das fronteira de nosso universo possuem sempre características imaginárias; e pré-ocupam e incomodam exatamente porque estão aqui, sem estar aqui; eles são percebidos, sem ser percebidos; sua irrealidade se torna aparente quando nós estamos em sua presença; quando sua realidade é imposta sobre nós - é como se nos encontrássemos face a face com um fantasma ou com um personagem fictício na vida real; ou como a primeira vez que vemos um computador jo-gando xadrez. Então, algo que nós pensamos como imaginação, se torna realidade diante de nossos próprios olhos; nós podemos ver e tocar algo que éramos proibidos.

A presença real de algo ausente, a “exatidão relativa” de um objeto é o que caracteriza a não-familiaridade. Algo parece ser visí-vel sem o ser: ser semelhante, embora sendo diferente, ser acessí-vel e no entanto ser inacessível. O não-familiar atrai e intriga as pes-soas e comunidades enquanto, ao mesmo tempo, as alarma, as obriga a tomar explícitos os pressupostos implícitos que são bási-cos ao consenso. Essa “exatidão relativa” incomoda e ameaça, como no caso de um robô que se comporta exatamente como uma criatura viva, embora não possua vida em si mesmo, repentinamente se torna um monstro Frankenstein, algo que ao mesmo tempo fascina e aterroriza. O medo do que é estranho (ou dos estranhos) é pro-fundamente arraigado. Foi observado em crianças dos seis aos nove meses e certo número de jogos infantis são na verdade um meio de superar esse medo, de controlar seu objeto. Fenômenos de pânico, de multidões muitas vezes provêem da mesma causa e são expressos nos mesmos movimentos dramáticos de fuga e mal-estar. Isso se deve ao fato de que a ameaça de perder os marcos referenciais, de perder contato como que propicia um sentido de continuidade, de compreensão mútua, é uma ameaça insuportável. E quando a alteridade é jogada sobre nós na forma de algo que “não é exatamente” como deveria ser, nós instintivamente a rejeitamos, porque ela ameaça a ordem estabelecida.

O ato da re-apresentação é uni meio de transferir o que nos perturba, o que ameaça nosso universo, do exterior para o interi-or,do longínquo para o próximo. A transferência é efetivada pela

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separação de conceitos e percepções normalmente interligados e pela sua colocação em um contexto onde o incomum se torna co-mum, onde o desconhecido pode ser incluído em uma categoria conhecida. Por isso, algumas pessoas irão comparar a uma “con-fissão” a tentativa de definir e tornar mais acessíveis as práticas do psicanalista para com seu paciente - esse “tratamento médico sem remédio” que parece eminentemente paradoxal a nossa cultura. O conceito é então separado de seu contexto analítico e transporta-do a um contexto de padres e penitentes, de sacerdotes confesso-res e pecadores arrependidos. O método de livre associação é, en-tão, ligado às regras da confissão. Dessa maneira, o que primeira-mente parecia ofensivo e paradoxal, torna-se um processo comum e normal. A psicanálise não é mais que uma forma de confissão. E posteriormente, quando a psicanálise for aceita e se tomar uma re-presentação social de pleno direito, a confissão é vista, mais ou menos como uma forma de psicanálise. Uma vez que o método da livre associação tenha sido separado de seu contexto teórico e te-nha assumido conotações religiosas, ele cessa de causar surpresa e mal-estar e toma, em contraposição, um caráter absolutamente comum. E isso não é, como poderíamos ser tentados a crer, um simples problema de analogia, mas uma junção real, socialmente significante, uma mudança de valores e sentimentos.

Nesse caso, como também em outros que nós observamos, as imagens, idéias e a linguagem compartilhadas por um determina-do grupo sempre parecem ditar a direção e o expediente iniciais, com os quais o grupo tenta se acertar com o não-familiar. O pensa-mento social deve mais à convenção e à memória do que à razão; deve mais às estruturas tradicionais do que às estruturas intelec-tuais ou perceptivas correntes. Denise Jodelet (1989/1991) anali-sou - em um trabalho infelizmente ainda não publicado - as rea-ções dos habitantes de várias aldeias às pessoas mentalmente de-ficientes que eram colocadas em seu meio. Esses pacientes, devi do à sua aparência quase normal e apesar das instruções que os habi-tantes da aldeia tinham recebido, continuaram a ser vistos como estrangeiros, apesar de sua presença ter sido aceita por muitos e durante muitos anos os pacientes tivessem compartilhado o dia-a-dia e até as casas desses aldeões. Tornou-se então evidente que as representações que eles provocaram derivavam de visões e noções tradicionais e que eram essas representações que determinavam as reações dos aldeões para com eles.

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Contudo, embora nós tenhamos a capacidade de perceber tal discrepância, ninguém pode livrar-se dela. A tensão básica entre o familiar e o não-familiar está sempre estabelecida, em nossos uni-versos consensuais, em favor do primeiro. No pensamento social, a conclusão tem prioridade sobre a premissa e nas relações so-ciais, conforme a fórmula adequada de Nelly Stephane, o veredicto tem prioridade sobre o julgamento. Antes de ver e ouvir a pessoa, nós já a julgamos; nós já a classificamos e criamos uma imagem dela. Desse modo, toda pesquisa que fizermos e nossos esforços para obter informações que empenharmos somente servirão para confirmar essa imagem. Mais experimentos de laboratório corro-boram essa observação:

Os erros usuais que os sujeitos cometem sugerem que exi s-

te um fator geral governando a ordem em que determina-

das observações são feitas. As pessoas parecem estar inclinadas na

direção de confirmar uma conclusão, seja ela sua própria resposta

inicial, ou a que lhe seja dada pelo experimentador para ser

avaliada. Eles buscam determinar se as premissas podem

ser combinadas de tal forma que tornem a conclusão verdadei-

ra. Na verdade, isso apenas mostra que a conclusão e as premissas

são consistentes e não que a conclusão segue das premissas (Wa-

son & Johnson-Laird, 1972: 157).

Quando tudo é dito e feito, as representações que nós fabrica-mos - duma teoria cientifica, de uma nação, de um objeto, etc. - são sempre o resultado de um esforço constante de tornar comum e real algo que é incomum (não-familiar), ou que nos dá um senti-mento de não-familiaridade. E através delas nós superamos o pro-blema e o integramos em nosso mundo mental e físico, que é, com isso, enriquecido e transformado. Depois de uma série de ajusta-mentos, o que estava longe, parece ao alcance de nossa mão; o que parecia abstrato, torna -se concreto e quase normal. Ao criá-los, porém, não estamos sempre mais ou menos conscientes de nossas intenções, pois as imagens e idéias com as quais nós compreendemos o não-usual (incomum) apenas trazem-nos de volta ao que nós já conhecíamos e como qual nós já estávamos fa-miliarizados há tempo e que, por isso, nos dá uma impressão se-gura de algo “já visto” (déjà vu) e já conhecido (déjà connu). Bar-tlett escreve: “Como já foi apontado antes, sempre que o material mostrado visualmente pretende ser representativo de algum obje-to comum, mas contém características que são incomuns (não-fa-

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miliares) á comunidade a quem o material é apresentado, essas características invariavelmente sofrem transformação em direção ao que é familiar” (Bartlett, 1961: 178).

É como se, ao ocorrer uma brecha ou uma rachadura no que é geralmente percebido como normal, nossas mentes curem a ferida e consertem por dentro o que se deu por fora. Tal processo nos confirma e nos conforta; restabelece um sentido de continuidade no grupo ou no indivíduo ameaçado com descontinuidade e falta de sentido. É por isso que, ao se estudar uma representação, nós devemos sempre tentar descobrir a característica não-familiar que a motivou, que esta absorveu. Mas é particularmente importante que o desenvolvimento de tal característica seja observada no mo-mento exato em que ela emerge na esfera social.

O contraste com a ciência é marcante. A ciência caminha pelo lado oposto; da premissa para a conclusão, especialmente no campo da lógica, assim como o objetivo da lei é assegurar a priori-dade do julgamento sobre o veredicto. Mas a lei tem de se apoiar em um sistema completo de lógica e provas a fim de proceder de uma maneira que é completamente estranha ao processo e à fun-ção natural do pensamento em um universo consensual ordinário. Ela deve, além disso, colocar certas leis - não envolvimento, repe-tição de experimentos, distância do objeto, independência da au-toridade e tradição - que nunca são totalmente aplicadas.

Para tornar possível a troca de ambos os termos da argume n-tação, ela cria um meio totalmente artificial, recorrendo ao que é conhecido como a reconstrução racional dos fatos e idéias. Para superar, pois, nossa tendência de confirmar o que é familiar, para provar o que já é conhecido - o cientista deve falsificar, deve ten-tar invalidar suas próprias teorias e confrontar a evidência com a não-evidência. Mas essa não é toda a histó ria. A lei se tornou mo-derna e rompeu com o senso comum, a ciência se ocupou com su-cesso em demolir constantemente a maioria de nossas perce p-ções e opiniões correntes, em provar que resultados impossíveis são possíveis e em desmentir o conjunto central de nossas idéias e experiências costumeiras. Em outras palavras, o objetivo da ciên-cia é tomar o familiar não-familiar em suas equações matemáticas, como em seus laboratórios. E dessa maneira a ciência prova, por contraste, que o propósito das representações sociais é precisa-mente o que eu já indiquei anteriormente.

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4. Ancoragem e objetivação, ou os dois processos que geram representações sociais

4.1. Ciência, senso comum e representações sociais

Ciência e representações sociais são tão diferentes entre si e ao mesmo tempo tão complementares que nós temos de pensar e falar em ambos os registros. O filósofo francês Bachelard observou que o mundo em que nós vivemos e o mundo do pensamento não são um só e o mesmo mundo. De fato, não podemos continuar desejando um mundo singular e idêntico e lutando por consegui-lo. Ao contrário do que se acreditava no século passado, longe de serem um antídoto contra as representações e as ideologias, as ciências na verdade geram, agora, tais representações. Nossos mundos reificados aumentam com a proliferação das ciências. Na medida em que as teorias, informações e acontecimentos se multi-plicam, os mundos devem ser duplicados e reproduzidos a um nível mais imediato e acessível, através da aquisição de uma forma e energia próprias. Com outras palavras, são transferidos a um mundo consensual, circunscrito e re-apresentado. A ciência era antes baseada no senso comum e fazia o senso comum menos comum; mas agora senso comum é a ciência tornada comum. Sem dúvida, cada fato, cada lugar comum esconde dentro de sua própria banalidade um mundo de conhecimento, determinada dose de cultura e um mistério que o fazem ao mesmo tempo compulsivo e fascinante. Baudelaire pergunta: “Pode algo ser mais encantador, mais frutífero e mais positivamente excitante do que um lugar comum?” E, poderíamos acrescentar, mais coletivamente efetivo? Não é fácil transformar palavras não-familiares, idéias ou seres, em palavras usuais, próximas e atuais. É necessário, para dar-lhes uma feição familiar, pôr em funcionamento os dois mecanismos de um processo de pensamento baseado na memória e em conclusões passadas.

O primeiro mecanismo tenta ancorar idéias estranhas, redu-zi-las a categorias e a imagens comuns, colocá-las em um contexto familiar. Assim, por exemplo, uma pessoa religiosa tenta relacionar

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uma nova teoria, ou o comportamento de um estranho, a uma es-cala religiosa de valores. O objetivo do segundo mecanismo é obje-tivá-los, isto é, transformar algo abstrato em algo quase concreto, transferir o que está na mente em algo que exista no mundo físico. As coisas que o olho da mente percebe parecem estar diante de nossos olhos físicos e um ente imaginário começa a assumir a rea-lidade de algo visto, algo tangível. Esses mecanismos transformam o não-familiar em familiar, primeiramente transferindo-o a nossa própria esfera particular, onde nós somos capazes de com pará-lo e interpretá-lo; e depois, reproduzindo-o entre as coisas que nós podemos ver e tocar, e, conseqüentemente, controlar. Sendo que as representações são criadas por esses dois mecanismos, é essencial que nós compreendamos como funcionam.

• Ancoragem - Esse é um processo que transforma algo estra-nho e perturbador, que nos intriga, em nosso sistema particular de categorias e o compara com um paradigma de uma categoria que nós pensamos ser apropriada. É quase como que ancorar um bote perdido em um dos boxes (pontos sinalizadores) de nosso espaço social. Assim, para os aldeões do estudo de Denise Jodelet, os do-entes mentais colocados em seu meio pela associação médica fo-ram imediatamente julgados por padrões convencionais e compa-rados a idiotas, vagabundos, epilépticos, ou aos que, no dialeto lo-cal, eram chamados de “rogues”(maloqueiro). No momento em que determinado objeto ou idéia é comparado ao paradigma de uma categoria, adquire características dessa categoria e é re-ajustado para que se enquadre nela. Se a classificação, assim obtida, é geral-mente aceita, então qualquer opinião que se relacione com a cate-goria irá se relacionar também com o objeto ou com a idéia. Por exemplo, a idéia dos aldeões mencionados acima sobre os idiotas, vagabundos e epilépticos, foi transferida, sem modificação, aos doentes mentais. Mesmo quando estamos conscientes de alguma discrepância, da relatividade de nossa avaliação, nós nos fixamos nessa transferência, mesmo que seja apenas para podermos garan-tir um mínimo de coerência entre o desconhecido e o conhecida.

Ancorar é, pois, classificar e dar nome a alguma coisa. Coisas que não são classificadas e que não possuem nome são estranhas, não existentes e ao mesmo tempo ameaçadoras. Nós experimenta-mos uma resistência, um distanciamento, quando não somos ca-pazes de avaliar algo, de descrevê-lo a nós mesmos ou a outras pessoas, O primeiro passo para superar essa resistência, em dire-

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ção à conciliação de um objeto ou pessoa, acontece quando nós somos capazes de colocar esse objeto ou pessoa em uma determi-nada categoria, de rotulá-lo com um nome conhecido. No momento em que nós podemos falar sobre algo, avaliá-lo e então comunicá-lo - mesmo vagamente, como quando nós dizemos de alguém que ele é “inibido” - então nós podemos representar o não-usual em nosso mundo familiar, reproduzi-lo como uma réplica de um modelo fami-liar. Pela classificação do que é inclassificável, pelo fato de se dar um nome ao que não tinha nome, nós somos capazes de imaginá-lo, de representá-lo. De fato, representação é, fundamentalmente, um sistema de classificação e de denotação, de alocação de ca-tegorias e nomes. A neutralidade é proibida, pela lógica mesma do sistema, onde cada objeto e ser devem possuir um valor positivo ou negativo e assumir um determinado lugar em uma clara escala hie-rárquica. Quando classificamos uma pessoa entre os neuróticos, os judeus ou os pobres, nós obviamente não estamos apenas colocan-do um fato, mas avaliando-a e rotulando-a E neste ato, nós revela-mos nossa “teoria” da sociedade e da natureza humana.

Em minha opinião, esse é um fator vital na psicologia social, que não recebeu toda atenção que merece; de fato, os estudos existentes dos fenômenos de avaliação, classificação e categori-zação (Eiser & Stroebe, 1972) e assim por diante, não conseguem levar em consideração o substrato (os pressupostos) de tais fenô-menos, ou dar-se conta de que eles pressupõem uma representa-ção de seres, objetos e acontecimentos. Na verdade, o processo de representação envolve a codificação, até mesmo dos estímu-los físicos, em uma categoria especifica, como uma pesquisa sobre a percepção das cores, em diferentes cultu ras, tem revelado. Na verdade, os estudiosos admitem que as pessoas, quando se lhes mostram diferentes cores, as percebem em relação a um pa-radigma - embora tal paradigma possa ser-lhes totalmente des-conhecido - e as classificam através de uma imagem mental (Ros-ch,1977). De fato, uma das lições que a epistemologia con-temporânea nos ensinou é que todo sistema de categorias pres-supõe uma teoria que o defina e o especifique e especifique o seu uso. Quando tal sistema desaparece, nós podemos presumir que a teoria também desapareceu. Deixem-nos, porém, continuar sis-tematicamente. Classificar algo significa que nós o confinamos a um conjunto de comportamentos e regras que estipulam o que é, ou não é, permitido, em relação a todos os indivíduos pertencentes

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a essa classe. Quando classificamos uma pessoa como marxista, diabo marinho ou leitor do The Times, nós o confinamos a um con-junto de limites lingüísticos, espaciais e comportamentais e a cer-tos hábitos. E se nós, então, chegamos ao ponto de deixá-lo saber o que nós fizemos, nós levaremos nossa interferência ao ponto de influenciá-lo, pelo fato de formularmos exigências especificas re-lacionadas a nossas expectativas. A principal força de uma classe, o que a torna tão fácil de suportar, é o fato de ela proporcionar um modelo ou protótipo apropriado para representar a classe e uma espécie de amostra de fotos de todas as pessoas que supostamen-te pertençam a ela. Esse conjunto de fotos representa uma espécie de caso-teste, que sintetiza as características comuns a um núme-ro de casos relacionados, isto é, o conjunto é, de um lado, uma síntese idealizada de pontos salientes e, de outro lado, uma matriz icônica de pontos facilmente identificáveis. Muitos de nós, por conseguinte, temos, como nossa representação visual de um cida-dão francês, a imagem de uma pessoa de estatura abaixo do normal, usando um boné e carregando uma grande peça de pão francês.

Categorizar alguém ou alguma coisa significa escolher um dos paradigmas estocados em nossa memória e estabelecer uma rela-ção positiva ou negativa com ele. Quando nós sintonizamos o rá-dio no meio de um programa, sem conhecer que programa é, nós supomos que é uma “novela” se é suficientemente parecido com P, quando P corresponde ao paradigma de uma novela, isto é, onde há diálogo, enredo, etc. A experiência mostra que é muito mais fácil concordar com o que constitui um paradigma, do que com o grau de semelhança de uma pessoa com esse paradigma. Da pesquisa de Denise Jodelet se percebe que, embora os aldeões fos-sem uniformes com respeito à classificação geral dos doentes mentais que viviam na aldeia, eles se mostravam bem mais discor-dantes em sua opinião no referente à semelhança de cada um dos pacientes em relação ao “caso teste”, aceito em sua generalidade. Quando se fazia alguma tentativa para definir este caso teste, inu-meráveis discrepâncias vinham à luz, que não eram normalmente óbvias, graças à cumplicidade de todos os interessados.

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Pode-se dizer, contudo, que em sua grande maioria essas classificações são feitas comparando as pessoas a um protótipo, geralmente aceito como representante de uma classe e que o pri-meiro é definido através da aproximação, ou da coincidência com o última Desse modo, nós dizemos de certas personalidades - de Gaulle, Maurice Chevalier, Churchill, Einstein, etc. - que eles são representativos de uma nação, de políticos e de cientistas e nós classificamos outros políticos ou cientistas em relação a eles. Se é verdade que nós classificamos e julgamos as pessoas e coisas comparando-os com um protótipo, então nós, inevitavelmente, estamos inclinados a perceber e a selecionar aquelas caracterís-ticas que são mais representativas desse protótipo, exatame n-te como os aldeões de Denise Jodelet estavam mais claramente conscientes da fala e do comportamento “esquisito” dos doentes mentais, durante os dez ou vinte anos de sua estadia lá, do que da gentileza, interesse e humanidade generalizados dessas desafor-tunadas pessoas.

Na verdade, qualquer pessoa que tenha sido jornalista, sociólo-go ou psicólogo clínico, sabe como a representação de tal ou qual gesto, ocorrência ou palavra, pode confirmar uma noticia ou um diagnóstico. A ascendência do caso teste deve-se, penso eu, a sua concretude, a uma espécie de vitalidade que deixa uma marca tão profunda em nossa memória, que somos capazes de usá-lo após isso como um referencial contra o qual nós medimos casos indivi-duais e qualquer imagem que se pareça com ele, mesmo de longe. Por conseguinte, cada caso teste e cada imagem típica contêm o abstrato no concreto, que os possibilita, posteriormente, a conse-guir o objetivo fundamental da sociedade: criar classes a partir dos indivíduos. Desse modo, nós não podemos nunca dizer que conhe-cemos um indivíduo, nem que nós tentamos compreendê-lo, mas somente que nós tentamos reconhecê-lo, isto é, descobrir que tipo de pessoa ele é, a que categoria pertence e assim por diante. Isso concretamente significa que ancorar implica também a prioridade do veredicto sobre o julgamento e do predicado sobre o sujeito. O protótipo é a quintessência de tal prioridade, pois favorece opiniões já feitas e geralmente conduz a decisões super apressadas.

Tais decisões são geralmente conseguidas por uma dessas duas maneiras: generalizando ou particularizando. Algumas ve zes,

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uma opinião já feita vem imediatamente à mente e nós tentamos descobrir a informação, ou “o particular” que se ajuste a ela; outras vezes, nós temos determinado particular em mente e tenta mos conseguir uma imagem precisa dele. Generalizando, nós re-duzimos as distâncias. Nós selecionamos uma característica alea-toriamente e a usamos como uma categoria: judeu, doente mental, novela, nação agressiva, etc. A característica se torna, como se re-almente fosse, co-extensiva a todos os membros dessa categoria. Quando é positiva, nós registramos nossa aceitação; quando é ne-gativa, nossa rejeição. Particularizando, nós mantemos a distância e mantemos o objeto sob análise, como algo divergente do pro-tótipo. Ao mesmo tempo, tentamos descobrir que característica, motivação ou atitude o torna distinto. Ao estudar as representa-ções sociais da psicanálise, eu tive possibilidade de observar como a imagem básica do psicanalista podia, através da exageração de uma característica específica - saúde, status, inflexibilidade -, ser modificada e particularizada, até chegar a produzir a do “psicana-lista americano” e que algumas vezes essas características eram enfatizadas conjuntamente. De fato, a tendência para classificar, seja pela generalização, ou pela particularização, não é, de nenhum modo, uma escolha puramente intelectual, mas reflete uma atitude específica para com o objeto, um desejo de defini -lo como normal ou aberrante. É isso que está em jogo em todas as classificações de coisas não-familiares - a necessidade de defini-las como con-formes, ou divergentes, da norma. Ademais, quando nós falamos sobre similaridade ou divergência, identidade ou diferença, nós estamos já dizendo precisamente isso, mas de uma maneira descomprometida, que está desprovida de conseqüências sociais.

Existe uma tendência, entre psicólogos sociais, de ver a clas-sificação como uma operação analítica, envolvendo uma espécie de catálogo de características separadas - cor da pele, tipo de ca-belo, formato do crânio e do nariz, etc. se for uma questão de raça - com as quais o indivíduo é comparado e depois incluído na cate-goria da qual ele possui mais características em comum. Em outras palavras, nós julgaremos sua especificidade, ou não-especificida-de, sua similaridade ou diferença, de acordo com uma característi-ca ou outra. E não nos admiremos que tal operação analítica tenha sido assumida, pois somente exemplos de laboratório foram estu-dados até agora e apenas sistemas de classificação que não pos-suem relação com o substrato das representações sociais, como

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por exemplo, a visão coletiva do que está sendo então classificado. E devido a essa tendência que eu sinto que devo dizer algo mais sobre minhas próprias observações sobre representações sociais, que mostraram que, quando nós classificamos, nós sempre faze-mos comparações com um protótipo, sempre nos perguntamos se o objeto comparado é normal, ou anormal, em relação a ele e ten-tamos responder á questão: “É ele como deve ser, ou não?”

Essa discrepância tem conseqüências práticas. Pois, se mi -nhas observações estão corretas, então todos nossos “preconcei-tos”, sejam nacionais, raciais, geracionais ou quaisquer que al-guém tenha, somente podem ser superados pela mudança de nos-sas representações sociais da cultura, da “natureza humana” e assim por diante. Se, por outro lado, é a visão dominante que é a correta, então a única coisa que precisamos fazer é persuadir os grupos ou indivíduos contrários, que eles possuem uma quantida-de enorme de características em comum, que eles são, de fato, espantosamente semelhantes e com isso nós nos livramos de clas-sificações profundas e rápidas e de estereótipos mútuos. O suces-so bastante limitado desse projeto até essa data, contudo, pode su-gerir que o outro é digno de ser tentado.

Por outro lado, é impossível classificar sem, ao mesmo tempo, dar nomes. Na verdade, essas são duas atividades distintas. Em nossa sociedade, nomear, colocar um nome em alguma coisa ou em alguém, possui um significado muito especial, quase solene. Ao nomear algo, nós o libertamos de um anonimato perturbador, para dotá-lo de uma genealogia e para incluí-lo em um complexo de palavras específicas, para localizá-lo, de fato, na matriz de iden-tidade de nossa cultura.

De fato, o que é anônimo, o que não pode ser nomeado, não se pode tornar uma imagem comunicável ou ser facilmente ligado a outras imagens. É relegado ao mundo da confusão, incerteza e inarticulação, mesmo quando nós somos capazes de classificá-lo aproximadamente como normal ou anormal. Claudine Herzlich (Herzlich, 1973), em um estudo sobre representações sociais da saúde e da doença, analisou admiravelmente esse aspecto alusivo dos sintomas, as tentativas muitas vezes fracassadas que todos nós fazemos para prendê-los pela fala e a maneira como eles esca-pam de nossas garras, como um peixe escapa das malhas largas de uma rede. Dar nome, dizer que algo é isso ou aquilo - se neces-

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sário, inventar palavras para esse fim - nos possibilita construir uma malha que seja suficientemente pequena para impedir que o peixe escape e desse modo nos dá a possibilidade de representar essa realidade. O resultado é sempre algo arbitrário mas, desde que um consenso seja estabelecido, a associação da palavra com a coisa se torna comum e necessária.

De modo geral, minhas observações provam que dar nome a uma pessoa ou coisa é precipitá-la (como uma solução química é precipitada) e que as conseqüências daí resultantes são tríplices: a) uma vez nomeada, a pessoa ou coisa pode ser descrita e adquire certas características, tendências etc.; b) a pessoa, ou coisa, torna-se distinta de outras pessoas ou objetos, através dessas caracterís-ticas e tendências; c) a pessoa ou coisa toma-se o objeto de uma convenção entre os que adotam e partilham a mesma convenção.

O estudo de Claudine Herzlich revela que o rótulo convencional “fadiga” relaciona um conjunto de sintomas vagos a certos pa-drões sociais e individuais, distingue-os dos conceitos de doença e saúde e toma-os aceitáveis, quase justificáveis, á nossa socieda-de. E, pois, permitido falar sobre nossa fadiga, dizer que estamos sofrendo de cansaço e reclamar certos direitos que, normalmente, em uma sociedade baseada no trabalho e bem-estar, seriam proi-bidos. Em outras palavras, algo que era antes negado é agora ad-mitido.

Fui capaz de fazer eu mesmo uma observação semelhante. Percebi que termos psicanalíticos como “neurose” ou “complexo” davam consistência e mesmo realidade a estados de tensão, desa-justamento, de alienação mesmo, que costumavam ser vistos como meio-caminho entre a “loucura” e a “sanidade”, mas nunca eram levados muito a sério. Era óbvio que, na medida em que re-cebiam um nome, eles paravam de incomodar. A psicanálise é também responsável pela proliferação de termos derivados de um modelo único, de tal modo que nós vemos um sintoma psíquico rotulado “complexo de timidez”, “complexo de gêmeos”, “com-plexo de poder”, “complexo de Sardanápalo” que, está claro, não são termos psicanalíticos, mas palavras cunhadas para imitá-los. Ao mesmo tempo, o vocabulário psicanalítico se ancora no voca-bulário da linguagem do dia-a-dia e toma-se, assim, socializado. Tudo o que era incômodo e enigmático sobre essas teorias está re-lacionado a sintomas, ou a pessoas, que eram vistas como algo

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que incomodava ou perturbava, com o objetivo de construir ima-gens estáveis, dentro de um contexto organizado, que não tem ab-solutamente nada de perturbador em si mesmo.

Na realidade, é dada uma identidade social ao que não estava identificado- o conceito cientifico torna-se parte da linguagem comum e os indivíduos ou sintomas não são mais que termos téc-nicos familiares e científicos. E dado um sentido, ao que antes não o tinha, no mundo consensual. Poderíamos quase dizer que essa duplicação e proliferação de nomes corresponde a uma tendência nominalística, a uma necessidade de identificar os seres e coisas, ajustando-os em uma representação social predominante. Cha-mamos antes a atenção à multiplicação de “complexos” que acom-panhou a popularização da psicanálise e tomou o lugar de expres-sões correntes, tais como “timidez”, “autoridade”, “irmãos”, etc. Com isso, os que falam e os de quem se fala são forçados a entrar em uma matriz de identidade que eles não escolheram e sobre a qual eles não possuem controle.

Podemos até mesmo ir ao ponto de sugerir que essa é a ma-neira como todas as manifestações normais e divergentes da exis-tência social são rotuladas - indivíduos e grupos são estigmatiza-dos, seja psicológica, seja politicamente. Por exemplo, quando nós chamamos uma pessoa, cujas opiniões não estão de acordo com a ideologia corrente, de um “inimigo do povo”, o termo que, de acordo com aquela ideologia, sugere uma imagem definida, exclui essa pessoa da sociedade à qual ela pertence. É pois evidente que dar nome não é uma operação puramente intelectual, com o obje-tivo de conseguir uma clareza ou coerência lógica. É uma operação relacionada com uma atitude social. Tal observação é ditada pelo senso comum e nunca deve ser ignorada, pois ela é válida para todos os casos e não apenas para os casos excepcionais que eu dei como exemplos.

Sintetizando, classificar e dar nomes são dois aspectos dessa ancoragem das representações. Categorias e nomes partilham do que o historiador de arte Gombrich chamou de “sociedade de con-ceitos”. E não simplesmente em seu conteúdo, mas também em suas relações. Não nego, de modo algum, o fato de que eles são naturalmente lógicos e tendem a uma estabilidade e consistência, como asseguram Heider e outros. Nem que tal ordem seja prova-velmente exigente. Posso ajudar, contudo, a observar que essas

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relações de estabilidade e consistência são altamente rarefeitas e são abstrações rigorosas que não se relacionam, nem direta, nem operacionalmente, com a criação de representações. Por outro lado, relações diferentes, que são induzidas por padrões sociais e produzem um caleidoscópio de imagens ou emoções, podem ser vistas como presentes. A amizade parece desempenhar uma parte importante na psicologia de Fritz Heider, quando ele analisa as re-lações pessoais (veja o capitulo de Flement nesse volume). Sem dúvida, ele chama isso pelo nome geral de estabilidade, mas deve ficar claro para todos que, entre os exemplos possíveis de estabili-dade, ele escolheu este como um protótipo para todos os outros.

A família é outra imagem muito popular para relações em ge-ral. Assim, intelectuais e trabalhadores são descritos como irmãos; complexos, como pais; e os neuróticos, como filhos (“o complexo é o pai do neurótico”, como disse alguém recentemente em uma entrevista); e assim por diante. O conflito ocupa o lugar de outro tipo de relação e está sempre implícito em toda descrição de pares contrastantes: o que o termo “normal” implica e o que ele exclui; a dimensão consciente e inconsciente do individuo; o que nós cha-mamos saúde e o que nós chamamos doença. A hostilidade está também sempre presente, como pano de fundo, quando nós com-paramos raças, nações ou classes. E relações de força e fraqueza freqüentemente definem preferências, onde a hierarquia abrange as várias categorias e nomes. Eu cito aleatoriamente, mas valeria a pena explorar, em detalhe, as maneiras em que a lógica da lingua-gem expressa a relação entre os elementos de um sistema de clas-sificação e o processo de dar nome. Padrões mais sugestivos do que os com que nós estamos agora familiarizados podem emergir.

Nossos padrões atuais são, de qualquer modo, muito artifici-ais de um ponto de vista psicológico e socialmente vazios de sen-tido. O fato é que se nós tomamos a estabilidade como um tipo de amizade, ou o conflito como uma hostilidade total, é simplesmente porque os padrões são mais acessíveis e concretos em tais formas e podem ser correlacionados com nossos pensamentos e emoções; temos, pois, maiores possibilidades de expressá -los ou de incluí-los em uma descrição que será facilmente inteligível a qual-quer pessoa. É esse o resultado da rotinização -um processo que nos possibilita pronunciar, ler ou escrever uma palavra ou noção familiar no lugar de, ou preferencialmente, a uma palavra ou no-ção menos familiar.

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A esta altura, a teoria das representações traz duas conse-qüências. Em primeiro lugar, ela exclui a idéia de pensamento ou percepção que não possua ancoragem. Isso exclui a idéia do assim chamado viés no pensamento ou percepção. Todo sistema de clas-sificações e de relações entre sistemas pressupõe uma posição especifica, um ponto de vista baseado no consenso. E impossível ter um sistema geral, sem vieses, assim como é evidente que existe um sentido primeiro para qualquer objeto especifico. Os vieses que muitas vezes são descritos não expressam, como se diz, um déficit ou limitação social ou cognitiva, mas uma diferença normal de perspectiva, entre indivíduos ou grupos heterogêneos dentro de uma sociedade. E não podem ser expressos pela simples razão que seu oposto - a ausência de um déficit ou de uma limitação social ou cognitiva - não tem sentido. Isso equivale a admitir a im-possibilidade de uma psicologia social de um ponto de vista de Sirius, como os que querem que as coisas sejam como pretendem que sejam, isto é, se colocarem unicamente e ao mesmo tempo, tanto dentro da sociedade, como observá-la de fora; que afirmavam que uma das posições, dentro da sociedade, era normal e todas as outras divergentes dela. Essa é uma posição totalmente insusten-tável.

Em segundo lugar sistemas de classificação e de nomeação (classificar e dar nomes) não são, simplesmente, meios de gradua r e de rotular pessoas ou objetos considerados como entidades dis-cretas. Seu objetivo principal é facilitar a interpretação de caracte-rísticas, a compreensão de intenções e motivos subjacentes às ações das pessoas, na realidade, formar opiniões. Na verdade esta é uma preocupação fundamental. Grupos, assim como indiví-duos, estão inclinados, sob certas condições, tais como super-excitação ou perplexidade, ao que nós poderíamos chamar de ma-nias de interpretação. Pois nós não podemos esquecer que inter-pretar uma idéia ou um ser não-familiar sempre requer categori-as, nomes, referências, de tal modo que a entidade nomeada possa ser integrada na “sociedade dos conceitos” de Gombrich. Nós os fabricamos com esta finalidade, na medida em que os sentidos emergem; nós os tornamos tangíveis e visíveis e semelhantes i-déias e seres que nós já integramos e com os quais nós estamos familiarizados. Desse modo, representações preexistentes são de certo modo modificadas e aquelas entidades que devem ser re-presentadas são mudadas ainda mais, de tal modo que adqu i-rem nova existência.

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• Objetivação - O físico inglês Maxwell disse, certa vez, que o que parecia abstrato a uma geração se torna concreto para a se-guinte. Surpreendentemente, teorias incomuns, que ninguém le-vava a sério, passam a ser normais, criveis e explicadoras da reali-dade, algum tempo depois. Como um fato tão improvável, como o de um corpo físico produzindo uma reação á distância em um lu-gar onde ele não está concretamente presente, pode transfor-mar-se, menos de um século depois, em um fato comum, inques-tionável - isso é ao menos tão misterioso, como sua descoberta, e de conseqüências práticas muito maiores. Poderíamos mesmo ir além da colocação de Maxwell, acrescentando que o que é inco-mum e imperceptível para uma geração, torna-se familiar e óbvio para a seguinte. Isso não se deve simplesmente a passagem do tempo ou dos costumes, embora ambos sejam provavelmente ne-cessários. Essa domesticação é o resultado da objetivação, que é um processo muito mais atuante que a ancoragem e que nós va-mos discutir agora.

Objetivação une a idéia de não-familiaridade com a de realida-de, torna-se a verdadeira essência da realidade. Percebida primei-ramente como um universo puramente intelectual e remoto, a ob-jetivação aparece, então, diante de nossos olhos, física e acessí-vel. Sob esse aspecto, estamos legitimados ao afirmar, com Lewin, que toda representação torna real - realiza, no sentido próprio do termo - um nível diferente da realidade. Esses níveis são criados e mantidos pela coletividade e se esvaem com ela, não tendo exis-tência por si mesmos; por exemplo, o nível sobrenatural, que em certo tempo era quase onipresente, é agora praticamente inexis-tente. Entre a ilusão total e a realidade total existe uma infinidade de graduações que devem ser levadas em consideração, pois nós as criamos, mas a ilusão e a realidade são conseguidas exatamen te do mesmo modo.

A materialização de uma abstração é uma das características mais misteriosas do pensamento e da fala. Autorida des políticas e intelectuais, de toda espécie, a exploram com a fi nalidade de sub-jugar as massas. Em outras palavras, tal autorida de está funda-mentada na arte de transformar uma representação na realidade da representação; transformar a palavra que substitui a coisa, na coisa que substitui a palavra.

Para começar, objetivar é descobrir a qualidade icônica de uma idéia, ou ser impreciso; é reproduzir um conceito em uma imagem. Comparar é já representar, encher o que está natural-

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mente vazio, com substância. Temos apenas de comparar Deus com um pai e o que era invisível, instantaneamente se toma visível em nossas mentes, como uma pessoa a quem nós podemos res-ponder como tal. Um enorme estoque de palavras, que se referem a objetos específicos, está em circulação em toda sociedade e nós estamos sob constante pressão para provê-los com sentidos con-cretos equivalentes. Desde que suponhamos que as palavras não falam sobre “nada”, somos obrigados a ligá-las a algo, a encontrar equivalentes não-verbais para elas. Assim como se acredita na maioria dos boatos por causa do provérbio: “Não há fumaça sem fogo”, assim uma coleção de imagens é criada por causa do pro-vérbio: “Ninguém fala sobre coisa alguma”.

Mas nem todas as palavras, que constituem esse estoque, po-dem ser ligadas a imagens, seja porque não existem imagens sufi-cientes facilmente acessíveis, seja porque as imagens que são lembradas são tabus. As imagens que foram selecionadas, devido a sua capacidade de ser representadas, se mesclam, ou melhor, são integradas no que eu chamei de um padrão de núcleo figurati-vo, um complexo de imagens que reproduzem visivelmente um complexo de idéias. Por exemplo, o padrão popular da psiquê her-dado dos psicanalistas está dividido em dois, o inconsciente e o consciente - reminiscente de dualidades mais comuns, tais como involuntário-voluntário, alma-corpo, interno-externo - localizado, no espaço um sobre o outro. Acontece, assim, que o mais alto, e-xerce pressão sobre o que está abaixo e esta “repressão” é o que dá origem aos complexos. Vale também a pena notar que os termos representados são os que são mais conhecidos e mais comumente empregados. A ausência, pois, de sexualidade, ou libido, é certa-mente surpreendente, pois ela desempenha uma parte significati-va na teoria e tem possibilidade de ser fortemente carregada de um conjunto de imagens. Sendo, contudo, o objeto de um tabu, ela permanece abstrata. Fui capaz, na verdade, de mostrar que nem todos os conceitos psicanalíticos sofrem tal transformação, que nem todos são igualmente favorecidos. Parece, então que a soci-edade faz uma seleção daqueles aos quais ela concede poderes figurativos, de acordo com suas crenças e como estão preexistente de imagens. Por isso afirmei, há algum tempo: “ Embora um para-digma seja aceito porque ele possui um forte referencial, sua aceitação deve-se também à sua afinidade com paradigmas mais atuais. A concretude dos elementos desse “sistema psíquico deriva

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de sua capacidade de traduzir situações comuns” (Moscovici, 1961/1976).

Isso não implica, de modo algum, que mudanças subseqüen-tes não aconteçam. Mas tais mudanças acontecem durante a transmissão de referenciais familiares, que respondem gradualmen-te ao que foi recentemente aceito, do mesmo modo que o leito do rio é gradualmente modificado pelas águas que correm entre as margens.

Uma vez que uma sociedade tenha aceito tal paradigma, ou núcleo figurativo, ela acha fácil falar sobre tudo o que se relacione com esse paradigma e devido a essa facilidade as palavras que se referem ao paradigma são usadas mais freqüentemente. Surgem, então, fórmulas e clichês que o sintetizam e imagens, que eram antes distintas, aglomeram-se ao seu redor. Não somente se fala dele, mas ele passa a ser usado, em várias situações sociais, como um meio de compreender outros e a si mesmo, de escolher e deci-dir. Mostrei (Moscovici, 1961/1976) como a psicanálise, uma vez popularizada, tornou-se uma chave que abria todos os cadeados da existência privada, pública e política. Seu paradigma figurativo foi separado de seu ambiente original através de uso contínuo e adquiriu uma espécie de independência, do mesmo modo como acontece com um provérbio bastante comum, que vai sendo gra-dualmente separado da pessoa que o disse pela primeira vez e tor-na-se um dito corriqueiro. Quando, pois, a imagem ligada à pala-vra ou à idéia se torna separada e é deixada solta em uma socieda-de, ela é aceita como uma realidade, uma realidade convencional, clara, mas de qualquer modo uma realidade.

Embora nós todos saibamos que um “complexo” é uma noção cujo equivalente objetivo é bastante vago, nós ainda pensamos e nos comportamos, como se ele fosse algo que realmente existisse, no momento em que nós julgamos uma pessoa e a relacionamos a ele. Ele não simboliza simplesmente sua personalidade, ou sua maneira de se comportar, mas na verdade o representa, é, passa a constituir, sua personalidade “complexada” e sua maneira de se comportar. Na verdade, pode-se dizer, sem equívocos, que em to-dos os casos, uma vez conseguida a transfiguração, a idolatria co-letiva é, então, uma possibilidade. Todas as imagens podem conter realidade e eficiência em seus inícios e terminar sendo adora das. Em nossos dias, o divã psicanalítico ou o “progresso” são exem-

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plos flagrantes desse fato. Isso acontece na medida em que a dis-tinção entre imagem e realidade são esquecidas. A imagem do conceito deixa de ser um signo e torna-se a réplica da realidade, um simulacro, no verdadeiro sentido da palavra. A noção, pois, ou a entidade da qual ela proveio, perde seu caráter abstrato, arbitrá-rio e adquire uma existência quase física, independente. Ela passa a possuir a autoridade de um fenômeno natural para os que a usam. Esse é precisamente o caso do complexo, ao qual tanta rea-lidade é geralmente concedida, quanto a um átomo ou a um aceno de mão. Esse é um exemplo de uma palavra que cria os meios.

O segundo estágio, no qual a imagem é totalmente assimilada e o que é percebido substitui o que é concebido, é o resultado lógi-co deste estado de coisas. Se existem imagens, se elas são essen-ciais para a comunicação e para a compreensão social, isso é por-que elas não existem sem realidade (e não podem permanecer sem ela), do mesmo modo que não existe fumaça sem fogo. Se as imagens devem ter uma realidade, nós encontramos uma para elas, seja qual for. Então, como por uma espécie de imperativo ló-gico, as imagens se tornam elementos da realidade, em vez de ele-mentos do pensamento. A defasagem entre a representação e o que ela representa é preenchida, as peculiaridades da réplica do conceito tornam-se peculiaridades dos fenômenos, ou do ambien-te ao qual eles se referem, tornam-se a referência real do conceito. Todos podem, por isso, hoje em dia, perceber e distinguir as “re-pressões” de uma pessoa, ou seus “complexos”, como se eles fos-sem suas características físicas.

Nosso ambiente é fundamentalmente composto de tais ima-gens e nós estamos continuamente acrescentando-lhe algo e mo-dificando-o, descartando algumas imagens e adotando outras. Mead escreve: “Vimos precisamente que o conjunto de imagens mentais que entra na formação da estrutura dos objetos e que re-presenta o ajustamento do organismo a ambientes inexistentes pode servir para a reconstrução do campo objetivo” (Mead, 1934). Quando isso acontece, as imagens não ocupam mais aquela posi-ção especifica, em algum lugar entre palavras, que supostamente tenham um sentido e objetos reais, aos quais somente nós pode-mos dar um sentido, mas passam a existir como objetos, são o que significam.

A cultura - mas não a ciência- nos incita, hoje, a construir rea-lidades a partir de idéias geralmente significantes. Existem razões óbvias para isso, dentre as quais a mais óbvia, do ponto de vista da

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sociedade, é apropriar-se e transformar em característica comum o que originalmente pertencia a um campo ou esfera específica.

Os filósofos gastaram muito tempo tentando compreender o processo de transferência de uma esfera a outra. Sem representa-ções, sem a metamorfose das palavras em objetos, é absolutamen-te impossível existir alguma transferência. O que afirmei a respeito da psicanálise é confirmado pela pesquisa meticulosa:

Através da objetivação do conteúdo cientifico da psicanáli-

se, a sociedade não confronta mais a psicanálise ou o psic a-

nalista, mas um conjunto de fenômenos que ela tem a liberdade de

tratar como quer. A evidência de homens particulares tomou-se a e-

vidência de nossos sentidos, um universo desconhecido é

agora um território familiar, O indivíduo, em contato direto com

esse universo, sem a mediação de peritos ou de sua ciência,

passou de uma relação secundaria com seu objeto para uma rela-

ção primária e esse pressuposto indireto de poder é uma ação cultu-

ralmente produtiva (Moscovici, 1961/1976: 1O9).

Na verdade, nós encontramos, então, incorporados em nossa fala, nossos sentidos e ambiente, de uma maneira anônima, ele-mentos que são preservados e colocados como material comum do dia-a-dia, cujas origens são obscuras ou esquecidas. Sua reali-dade é um espaço vazio em nossa memória - mas não é toda reali-dade uma só? Não objetivamos nós de tal modo que esquecemos que a criação, que a construção material é o produto de nossa pró-pria atividade, que alguma coisa é também alguém? Como afir-mei: “Em última análise, a psicanálise poderia estar morta e sepul-tada, mas ainda assim, como a Física de Aristóteles, ela iria permear nossa visão de mundo e seu jargão seria usado para descre ver o comportamento psicológico” (Moscovici, 1961/1976: 109).

O modelo de toda aprendizagem, em nossa sociedade, é a ci-ência da física matemática, ou a ciência dos objetos quantificá veis, mensuráveis. Desde que o conteúdo científico, mesmo de uma ciência do homem ou da vida, pressuponha esse tipo de realidade, todos os seres aos quais ela se refira são concebidos de acordo com tal modelo. Sendo que a ciência se refere a órgãos físicos e a psicaná-lise é uma ciência, então o inconsciente, por exemplo, ou um com-plexo, serão vistos como órgãos do sistema físico. Desse modo, um complexo poderá ser amputado, desenhado ou percebido. Como se

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pode perceber, o que é vivo é assimilado ao que é inerte, o subjeti-vo ao objetivo e o psicológico ao biológico. Cada cultura possui seus próprios instrumentais para transformar suas representa-ções em realidade. Algumas vezes as pessoas, outras os animais, serviram para tal propósito. Desde o começo da era mecânica, os objetos dominaram e nós estamos obsessionados com um ani-mismo às avessas, que povoa nosso mundo com máquinas, em vez de criaturas vivas. Podemos, pois, dizer que no referente a comple-xos, átomos e genes, nós não apenas imaginamos um objeto, mas criamos, em geral, uma imagem com a ajuda do objeto com o qual nós os identificamos.

Nenhuma cultura, contudo, possui um instrumento único, ex-clusivo. E devido ao fato de que o nosso instrumento está relacio-nado com os objetos, ele nos encoraja a objetivar tudo o que en-contramos. Nós personificamos, indiscriminadamente, sentimen-tos, classes sociais, os grandes poderes, e quando nós escrevemos, nós personificamos a cultura, pois é a própria linguagem que nos possibilita fazer isso. Gombrich escreve:

Acontece, pois, que as línguas indo-européias tendem em

direção a essa configuração particular, que nós chamamos

personificação, pois muitas delas dão aos nomes um gênero, que os

tornam inseparáveis dos nomes dados a espécies vivas.

Nomes abstratos em grego, em latim, quase sempre assu-

mem um gênero feminino e desse modo o caminho está a-

berto para que o mundo das idéias seja povoado por abs-

trações personif icadas, tais como Vitória, Fortuna ou Justi-

ça (Gombrich, 1972).

Mas é apenas o acaso que não pode responder pelo uso exten-sivo que nós fazemos das particularidades da gramática, nem po-de explicar sua eficiência.

Isso pode ser feito de uma maneira melhor, através da tenta-tiva de objetivar a própria gramática, o que é conseguido muito simplesmente colocando substantivos - que, por definição, se refe-rem a substâncias, a seres - em lugar de adjetivos, advérbios, etc. Desse modo, atributos ou relações são transformadas em coisas. Na verdade, não existe tal coisa como uma repressão, pois ela se refere a uma ação (reprimir a memória), ou um inconsciente, pois ele é um atributo de algo diferente (os pensamentos e de sejos de uma pessoa). Quando nós dizemos que alguém está dominado por seu inconsciente ou sofre de uma repressão como se tivesse bócio ou dor de garganta, o que nós realmente queremos dizer é que

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este indivíduo não está consciente do que faz ou pen sa; do mesmo modo, quando nós dizemos que uma pessoa sofre de ansiedade, nós queremos dizer que está ansiosa, ou se com porta de uma maneira ansiosa.

Desde que nós escolhemos, porém, usar um substantivo para descrever o estado de uma pessoa, dizer que está dominada pelo seu inconsciente, ou sofre de ansiedade, em vez de dizer que seu comportamento retrata determinada particularidade (que está in-consciente ou ansioso), nós estamos, com isso, juntando um de-terminado número de coisas a um determinado número de seres vivos. A tendência, pois, de transformar verbos em substantivos, ou o viés pelas categorias gramaticais de palavras com sentidos semelhantes, é um sinal seguro de que a gramática está sendo ob-jetivada, de que as palavras não apenas representam coisas, mas as criam e as investem com suas próprias características. Nessas circunstâncias, a linguagem é como um espelho que pode separar a aparência da realidade, separar o que é visto do que realmente existe e do que o representa sem mediação, na forma de uma apa-rência visível de um objeto ou pessoa, ao mesmo tempo que nos possibilita avaliar esse objeto ou pessoa, como se estes objetos não fossem distintos da realidade, como se fossem coisas reais - e particularmente avaliar o seu próprio eu, com algo com que nós não temos outra maneira de nos relacionarmos. Os nomes, pois, que inventamos e criamos para dar forma abstrata a substâncias ou fenômenos complexos, tornam-se a substância ou o fenômeno e é isso que nós nunca paramos de fazer. Toda verdade auto-evi-dente, toda taxonomia, toda referência dentro do mundo, repre-senta um conjunto cristalizado de significâncias e tacitamente aceita nomes; seu silêncio é precisamente o que garante sua im-portante função representativa: expressar primeiro a imagem e depois o conceito, como realidade.

Para se ter uma compreensão mais clara das conseqüências de nossa tendência em objetivar, poderíamos analisar fenômenos sociais tão diferentes como a adoração de um herói, a personifica-cão das nações, raças, classes, etc. Cada caso implica uma repre-sentação social que transforma palavras em carne, idéias em po-deres naturais, nações ou linguagens humanas em uma lingua-gem de coisas. Acontecimentos recentes mostraram que o resul-tado de tais transformações podem ser desastrosas e desencora-jadoras ao extremo para aqueles de nós que gostariam que todas

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as tragédias do mundo tivessem um final feliz e de ver o direito triunfar. A derrota da racionalidade e o fato de a história ser tão parca em seus finais felizes não nos devem desencorajar de exami-nar esses fenômenos significativos e principalmente não devem tirar a convicção de que os princípios implícitos são simples e não diferentes dos que nós analisamos acima. Nossas representações, pois, tornam o não-familiar em algo familiar. O que é uma maneira diferente de dizer que elas dependem da memória. A solidez da memória impede de sofrer modificações súbitas, de um lado e de outro, fornece-lhes certa dose de independência dos aconteci-mentos atuais - exatamente como uma riqueza acumulada nos protege de uma situação de penúria.

É dessa soma de experiências e memórias comuns que nós extraímos as imagens, linguagem e gestos necessários para supe-rar o não-familiar, com suas conseqüentes ansiedades. As expe-riências e memórias não são nem inertes, nem mortas. Elas são dinâmicas e imortais. Ancoragem e objetivação são, pois, maneiras de lidar com a memória. A primeira mantém a memória em movi-mento e a memória é dirigida para dentro, está sempre colocando e tirando objetos, pessoas e acontecimentos, que ela classifica de acordo com um tipo e os rotula com um nome. A segunda, sendo mais ou menos direcionada para fora (para outros), tira dai concei-tos e imagens para juntá-los e reproduzi-los no mundo exterior, para fazer as coisas conhecidas a partir do que já é conhecido. Seria oportuno citar Mead aqui uma outra vez: “A inteligência peculiar da espécie humana reside nesse complexo controle, conseguido pelo passado” (Mead, 1934).

5. Causalidades de direita e de esquerda

5.1. Atribuições e representações sociais

Farr (1977) mostrou com acerto que existe uma relação en-tre a maneira como nós concebemos algo para nós mesmos e a maneira descrevemos aos outros. Vamos, pois, aceitar essa rela-ção, embora notemos que o problema da causalidade foi sempre

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um problema crucial para as pessoas interessadas em representa-ções sociais, como Fauconnet, Piaget e, mais modestamente, eu mesmo. Nós enfocamos o problema, porém, de um ângulo muito diverso do de nossos colegas americanos - americano é usado aqui em um sentido puramente geográfico. O psicólogo social do outro lado do Atlântico baseia suas investigações na teoria da atri-buição e está interessado principalmente na maneira como nós atribuímos causalidade as pessoas ou coisas que nos rodeiam. Certamente não seria exagero dizer que suas teorias são baseadas em um principio único - o ser humano pensa como um estatístico - e que existe somente uma regra em seu método - estabelecer a coerência da informação que nós recebemos do meio ambiente. Nessas circunstâncias, grande número de idéias e imagens - na realidade, todas as que a sociedade nos apresenta - devem ou en-quadrar-se com o pensamento estatístico e assim consideradas como sem valor, pois elas não podem se adequar a ele, ou então ofuscar nossa percepção da realidade como de fato é. Elas são, por isso, pura e simplesmente ignoradas.

A teoria das representações sociais, por outro lado, toma, como ponto de partida, a diversidade dos indivíduos, atitudes e fe-nômenos, em toda sua estranheza e imprevisibilidade. Seu objeti-vo é descobrir como os indivíduos e grupos podem construir um mundo estável, previsível, a partir de tal diversidade. O cientista que estuda o universo está convencido de que existe lá uma or-dem oculta, sob o caos aparente, e a criança que nunca pára de perguntar “por quê?” não está menos segura a esse respeito. Esse é um fato: se, pois, nós procuramos uma resposta ao eterno “por-quê?”, isso não se deve à força da informação que nós recebemos, mas porque nós estamos convencidos de que cada ser e cada ob-jeto no mundo é diferente da maneira como se apresenta. O objeti-vo último da ciência é eliminar esse “porquê?”, embora as repre-sentações sociais tenham grande dificuldade de fazê-lo sem ele.

As representações sociais se baseiam no dito: “Não existe fu-maça sem fogo”. Quando nós ouvimos ou vemos algo nós, instinti-vamente, supomos que isso não é casual, mas que este algo deve ter uma causa e um efeito. Quando nós vemos fumaça, nós sabe-mos que um fogo foi aceso em algum lugar e, para descobrir de onde vem a fumaça, nós vamos em busca desse fogo. O dito, pois,

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não é uma mera imagem, mas expressa um processo de pensa-mento, um imperativo - a necessidade de decodificar todos os sig-nos que existem em nosso ambiente social e que nós não podemos deixar sós, até que seu sentido, o “fogo escondido”, não tenha sido localizado. O pensamento social faz, pois, uso extensivo das suspeições, que nos colocam na trilha da causalidade.

Poderia dar um grande número de exemplos. Os mais interes-santes são aqueles julgamentos onde os acusados são apresenta-dos como culpados, malfeitores e criminosos e o processo apenas serve para confirmar um veredicto preestabelecido. Os cidadãos alemães ou russos, que viram seus judeus ou compatriotas sub-versivos serem enviados aos campos de concentração, ou embar-cados para as Ilhas Gulag, certamente não pensavam que eles fos-sem inocentes. Eles deviam ser culpados, pois foram presos. Boas razões para serem presos foram atribuídas (a palavra é boa) a eles, pois era impossível crer que eles tivessem sido acusados, maltra-tados e torturados por absolutamente nenhuma razão.

Tais exemplos de manipulação, para não dizer de distorção da causalidade, provam que a cortina de fumaça não tem se m-pre como finalidade esconder astutamente medidas repressivas, mas podem, na verdade, chamar nossa atenção para elas, de tal modo que os espectadores sejam levados a supor que haveria, certamente, boas razões para acender o fogo. Os tiranos são, ge-ralmente, especialistas em psicologia e sabem que as pessoas irão caminhar, automaticamente, da punição até ao criminoso e ao cri-me, a fim de fazer essas estranhas e horríveis ocorrências, compa-tíveis com as idéias de julgamento e justiça.

5.2. Explicações bi-causais e mono-causais

A teoria das representações sociais assume, baseada em inu-meráveis observações, que nós, em geral, agimos sob dois conjun-tos diferentes de motivações. Em outras palavras, que o pensa-mento é bi-causal e não mono-causal e estabelece, simultanea-mente, uma relação de causa e efeito e uma relação de fins e meios. É aqui onde nossa teoria difere da teoria de atribuição e onde, nessa dualidade, as representações sociais diferem da ciência.

Quando um fenômeno se repete, nós estabelecemos uma cor-

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relação entre nós mesmos e ele, e então encontramos alguma ex-plicação significativa que sugere a existência de uma regra ou lei, ainda não descoberta. Nesse caso, a transição da correlação para a explicação não é estimulada por nossa percepção da correlação, ou pela repetição dos acontecimentos, mas por nossa percepção de uma discrepância entre esta correlação e outras, entre o fenô-meno que nós percebemos e o que nós temos que prever, entre um caso específico e um protótipo, entre a exceção e a regra; na ver-dade, para usar os termos que eu empreguei anteriormente, entre o familiar e o não-familiar. Esse é, de fato, o fator decisivo. Para citar Maclver: “É a exceção, o desvio, a interferência, a anormalida de, que estimula nossa curiosidade e parece exigir uma explicação. E nós, muitas vezes, atribuímos a alguma “causa” especifica todo o acontecimento que caracteriza a situação nova, ou não prevista, ou mudada” (Maclver, 1992).

Nós vemos uma pessoa, ou coisa, que não se enquadra em nossas representações, que não coincide com o protótipo (uma mulher primeira-ministra), ou um vazio, uma ausência (uma cida-de sem armazéns), ou nós encontramos um muçulmano em uma comunidade católica, um médico (“phisician”) sem usar coi-sas”físicas” (“physics”) (como um psicanalista, por exemplo), etc. Em cada caso, nós somos provocados a encontrar uma explicação. De um lado, existe uma falta de reconhecimento (recognition); de outro lado, existe uma falta de conhecimento (cognition). De um lado, uma falta de identidade; de outro, uma afirmação de não-identida-de. Nessas circunstâncias, nós somos sempre obrigados a parar e pensar e finalmente a admitir que nós não sabemos por que essa pessoa se comporta desse modo, ou que esse objeto tenha tal ou tal efeito.

Como podemos responder a esse desafio? Essa causalidade primária, para a qual nós nos voltamos espontaneamente, depen-de de finalidades. Sendo que a maioria de nossas relações se dão com seres humanos, nós somos confrontados com intenções e propósitos de outros que, por razões práticas, não podemos enten-der. Mesmo quando nosso carro não funciona, ou o aparelho que estamos usando no laboratório não funciona, de nada nos adianta pensar que o carro “não quer” andar, que o aparelho irritado “recu-sa colaborar” e desse modo não nos permite continuar com nosso experimento. Tudo o que as pessoas fazem, ou dizem, cada con-tratempo normal, parece ter um sentido, intenção ou propósito

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ocultos, que nós tentamos descobrir. Do mesmo modo, nós temos a tendência de interpretar as polêmicas ou controvérsias intelec-tuais como conflitos pessoais e pensar qual seria a razão da animo-sidade dos protagonistas, que motivos pessoais estão por detrás destes antagonismos.

Em vez de dizer: “Por que razão ele se comporta desse mo-do?”, nós dizemos: “Com que propósito ele se comporta assim?” e a procura de uma causa se torna a procura de motivos e intenções. Em outras palavras, nós interpretamos, procuramos animosidades ocultas e motivos obscuros, tais como ódio, inveja ou ambição. Nós estamos sempre convencidos que as pessoas não agem por acaso, que tudo o que fazem corresponde a um plano prévio. Daqui provém a tendência generalizada de personificar motivos e in-centivos, de representar uma causa imaginariamente, como quan-do nós dizemos de um dissidente político que ele é um “traidor”, um “inimigo do povo”, ou quando usamos o termo “Complexo de Édipo” para descrever determinado tipo de comportamento, etc. A noção torna-se quase que um “agente” físico, um ator que, em certas circunstâncias, possui uma intenção precisa. E essa noção termina por corporificar a própria coisa, em vez de ser vista como uma representação de nossa percepção particular dessa coisa

Causalidade secundária, que não é espontânea, é uma causa-lidade eficiente. É ditada por nossa educação, nossa linguagem, nossa visão científica do mundo e tudo isso nos leva a desvestir as ações, conversações e fenômenos do mundo exterior, de sua por-ção de intencionalidade e responsabilidade considerá-los apenas como dados experimentais, que devem ser vistos imparcialmente. Tendemos, assim, a juntar toda a informação possível a respeito destes dados, de tal modo que possamos classificá-los em uma determinada categoria e desse modo identificar sua causa, expli-cá-los. Tal é a atitude do historiador, do psicólogo, ou mesmo de qualquer cientista. Por exemplo, nós inferimos do comportamento de uma pessoa se ela pertence à classe média ou baixa, se é esqui-zofrênica ou paranóica: explicamos, então, seu comportamento atual. Indo do efeito para causa, na base da informação que coleta-mos, nós relacionamos um ao outro, atribuímos efeitos a causas específicas. Heider já mostrou, há muito tempo, que o comporta-mento de uma pessoa provém de dois conjuntos diferentes de mo-

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tivações internas e externas e que o conjunto das motivações ex-ternas provém não da pessoa, mas de seu ambiente, de seu status social e das pressões que outras pessoas exercem sobre ela. Desse modo, a pessoa que vota em um partido político, faz isso por con-vicção própria; mas em alguns países tal voto pode ser obrigatório e votar em um partido diferente, ou abster-se de votar, implica ex-pulsão ou prisão.

Assim, para sintetizar a maneira como o processo de atribui-ção opera, podemos dizer que, primeiro e principalmente, existe ali um protótipo que serve como uma barra de medição, para a-contecimentos ou comportamentos que são considerados como efeitos. Se o efeito se coaduna com o protótipo, assume-se que ele possui uma causa exterior; se não se coaduna, assume-se que a causa seja específica ou interna. Um homem usando um boné, carregando uma longa peça de pão francês sob seus braços, é um francês, pois tal é nossa representação desse tipo. Mas se aconte ce que essa pessoa é um americano, ele não se adéqua mais a esse modelo e nós supomos que seu comportamento é singular, ou mesmo aberrante, pois não está de acordo com o tipo.

Obviamente, tudo isso é grosseiramente simplificado; o que realmente acontece na cabeça não é tão facilmente deduzido. Mas eu queria tornar esse ponto claro: nas representações sociais, as duas causalidades agem conjuntamente, elas se misturam para produzir características especificas e nós saltamos constantemen-te de uma para outra. Por um lado, pelo fato de procurar uma or-dem subjetiva, por detrás dos fenômenos aparentemente objeti-vos, o resultado será uma inferência; por outro lado, pelo fato de procurar uma ordem objetiva por detrás de fenômenos aparente-mente subjetivos, o resultado será uma atribuição. Por um lado, nós reconstruímos intenções ocultas para explicar o comporta-mento da pessoa: essa é uma causalidade de primeira pessoa. Por outro lado, nós procuramos fatores invisíveis para explicar o com-portamento visível: essa é uma causalidade de terceira pessoa.

O contraste entre esses dois tipos de causalidade deve ser en-fatizado, pois as circunstancias da existência social são, muitas ve-zes, manipuladas com o propósito de ressaltar uma ou outra dessas duas causalidades, como por exemplo, para fazer passar um fim, como um efeito. Quando os nazistas, portanto, colocaram fogo no

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Reichstag, fizeram isso para que suas perseguições parecessem não a execução de um plano, mas um resultado, cuja causa seria, supostamente, o incêndio colocado por seus inimigos e cuja fuma-ça escondia um “fogo” muito diferente. Não é raro uma pessoa pro-vocar, em uma escala menor, um incêndio desse tipo, para obter promoção, por exemplo, ou para conseguir um divórcio. Além do mais, esses exemplos nos possibilitam perceber que as atribuições sem-pre envolvem uma relação entre fins, ou intenções e meios. Como, disse Maclver: “O porquê da motivação reside, muitas vezes de ma-neira oculta, por trás do porquê do objetivo” (Maclver, 1942).

As ciências biológicas e sociais tentam reverter a ordem psi-cológica de duas perguntas e apresentar motivações como cau-sas. Quando eles examinam um fenômeno, eles perguntam: A que propósito ele corresponde? Que função ele desempenha? Uma vez estabelecido o propósito, ou função, eles apresentam o propósito ou função como uma causa impessoal e o resultado como o meca-nismo que eles disparam. Do mesmo modo que Darwin, quando. descobriu a seleção natural. O termo causalização seria adequada nesse caso, sugerindo, como na realidade ele o faz, que os fins estão disfarçados como causas, os meios como efeitos e as intenções como resultados. Relações entre indivíduos, do mesmo modo que as relações entre partidos ou grupos políticos de todo tipo, fazem extenso uso desse procedimento, sempre que o comporta-1 mento de outras pessoas deve ser interpretado. Sempre, contudo; a per-gunta “Por que?” deve ser respondida. E a resposta dada; muitas vezes, é suficiente para apaziguar as mentes a fim de preservar a representação ou para convencer uma audiência, que jau estava suficientemente preparada para ser convencida.

5.3. Causalidade social

Para sintetizar, uma teoria de causalidade social é uma teoria das atribuições e inferências que os indivíduos fazem e também, da transição de uma a outra. Evidentemente, tal transição é inse-parável da teoria cientifica que lida com esse fenômeno. Os psicó-logos, contudo, têm o hábito de estudar tanto as atribuições, como as inferências e de ignorar a transição entre elas. Desse modo, eles atribuem causas a um ambiente ou a um indivíduo, cada um visto independentemente, o que é, evidentemente, tão ridículo como

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estudar a relação de um efeito para com sua causa, sem primeiro, formular uma teoria, ou definir um paradigma que dê conta dessa relação. Essa atitude muito peculiar possui suas limitações, como eu espero provar com o seguinte exemplo.

A teoria de atribuição apresenta certa quantidade de razões para explicar por que um indivíduo atribui certos comportamentos a outra pessoa e outros comportamentos ao ambiente - o fato de Pedro ter habilidade para certos jogos, ou então o fato de ele morar nas periferias, por exemplo. Como vimos antes, porém, isso está baseado em um principio único: o ser humano é um estatístico e seu cérebro funciona como um computador infalível2. A psicanáli-se, por outro lado, tomaria tais comportamentos como a simples racionalização de sentimentos hostis ou familiares, pois, para o psicanalista, todas as avaliações estão baseadas em emoções. Esse exemplo trivial ilustra com clareza o fato que toda explicação depende primariamente da idéia que nós temos de realidade. É uma idéia como essa que governa nossas percepções e as inferên-cias que nós construímos a partir delas. E esta idéia governa, da mesma maneira, nossas relações sociais. Podemos afirmar, pois, que quando nós respondemos ã pergunta “por que”, nós começa-mos de uma representação social ou de um contexto geral para o qual nós fomos levados, a fim de dar essa resposta especifica.

Eis um exemplo concreto: o desemprego, nesse momento, é geral e cada um de nós tem ao menos um homem ou uma mulher desempregados entre nossos amigos mais íntimos. Por que esse homem ou mulher não tem trabalho? A resposta a essa pergunta irá variar de acordo com quem fala. Para alguns, os desemprega-dos, na verdade, não se preocupam em procurar um trabalho, são muito exigentes ou, no mínimo, não têm sorte. Para outros, eles são vitimas de uma recessão econômica, ou de uma sobreposição injustificada de empregos ou, mais comumente, de uma injustiça inerente à economia capitalista. O primeiro, assim, atribui a causa do desemprego ao indivíduo, a sua atitude social, enquanto o se-gundo a atribui à situação econômica e política, a seu status so-cial, a um ambiente que torna essa situação inevitável. As duas

2 Experimentos feitos por Tversky e Kabneman (1974) tiveram muito sucesso ao prova r que esse pressuposto é infundado e deve sua popularidade a um equívoco que se baseia em principios artificiais

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explicações são totalmente opostas e obviamente provém de representações sociais distintas. A primeira representação acena responsabilidade individual e a energia pessoal — os problemas sociais somente podem ser resolvidos por cada indivíduo. A se-gunda representação acentua a responsabilidade social, denuncia: a injustiça social e propõe soluções coletivas para problemas indivi-duais. Shaver notou tais reações até mesmo nos Estados Unidos.

Atribuições pessoais sobre a razão para a assistência social

(wel-f are) levam a discursos sobre “aproveitadores do assisten-

cialismo”, a apelos para voltar aos tempos antigos, para a é-

tica protestante, ou para leis com a finalidade de tornar a

assistência f inanceira obrigatória mais difícil de ser conseguida. A-

tribuições situacionais, por outro lado, vão, mais provavelmente, su-

gerir que a expansão dos empregos, por parte do governo, a melhor

preparação para o trabalho e o aumento de oportunidade educa-

cional para todos, irão propiciar reduções mais duradouras

na assistência pública (Shaver, 1975: 133).

Contudo, absolutamente não concordo com meu colega ame-ricano. Eu mesmo reverteria a ordem dos fatores envolvidos, acen-tuando a primazia das representações e dizendo que são elas, em cada caso, as que ditam a atribuição, tanto para o indivíduo, quanto para a sociedade. Ao fazer isso, eu obviamente não nego a idéia de racionalidade e uma manipulação correta da informação rece bida, mas simplesmente afirmo que o que é tomado em consideração, as experiências que nós temos, isto é, as causas que nós sele-cionamos, tudo isso é ditado, em cada caso, por um sistema de re-presentações sociais.

Chego, então, ã seguinte proposição: nas sociedades em que nós vivemos hoje, a causalidade pessoal é uma explicação de direita e a causalidade situacional é uma explicação de esquerda. A psico-logia social não pode ignorar o fato de que o mundo está es-truturado e organizado de acordo com tal divisão e de que existe uma divisão permanente. De fato, cada um de nós está necessa-riamente obrigado a adotar um desses dois tipos de causalidade, juntamente com a visão do outro que ele implica. As conseqüên-cias que derivam de tal proposição não poderiam ser mais preci-sas: os motivos de nossas ações são ditados e estão relacionados com a realidade social, a realidade cujas categorias contrastantes

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dividem o pensamento humano tão nitidamente como o fazem dua-lidades tais como alto e baixo, homem e mulher, etc. Tinha-se a impressão de que a motivação poderia ser atribuída a um simples processo de pensamento e agora se vê que ela é determ inada por influências ambientais, status social, relação de uma pessoa com outras, suas opiniões pré-concebidas, cada uma das pessoas res-pondendo por sua parte. Isso é de extrema importância e, uma vez aceita, a pessoa passa a negar a existência de categorias suposta-mente neutras de atribuição pessoal ou situacional e as substitui por categorias de motivação claramente de direita ou de esquerda. Mesmo que a substituição não se afirme em todos os casos, ela é, em geral, constatável.

Experimentos feitos por certos psicólogos (Hewstone & Jas-pars, 1982) confirmam a noção de tal substituição. Aqui está, por exemplo, um caso típico: o psicólogo americano Lerner sugeriu que nós explicamos o comportamento de alguém na premissa de que “as pessoas somente recebem o que merecem”. Essa hipótese chegou a ser conhecida como a “hipótese do mundo justo”. Ele vê isso como uma maneira quase natural de pensar. Os psicólogos canadenses Guimond e Simard tentaram concretizar essa teoria e não se surpreenderam ao descobrir que tal atitude era principal-mente a das pessoas pertencentes, em sua grande maioria, à clas se dominante. Por outro lado, não existia nenhum traço dela entre os que pertenciam às minorias ou classes desprivilegiadas. Falando mais claramente, eles conseguiram mostrar que os canadenses de fala inglesa tendiam a ver os canadenses franceses como res-ponsáveis por sua situação e apresentavam explicações individu-alísticas. Os canadenses de fala francesa, contudo, mostravam que os responsáveis eram os canadenses ingleses e suas explica-ções envolviam a própria estrutura da sociedade.

Se podemos tomar um experimento de laboratório como um exemplo do que acontece na sociedade, temos a possibilidade de ir mais adiante nessas descobertas. Classes dominantes e domi nadas não possuem uma representação igual à do mundo que elas com-partilham, mas o vêem com olhos diferentes, julgam-no de acordo com critérios específicos e cada uma faz isso de acordo com suas próprias categorias. Para as primeiras o indivíduo é que é respon-sável por tudo o que lhe acontece e especialmente por seus fra-cassos. Para as segundas, os fracassos se devem sempre às cir-cunstâncias que a sociedade cria para o indivíduo. E nesse exato sentido que a expressão causalidade de direita/de esquerda (uma

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expressão que é tão objetiva e científica como as dualidades al-to/baixo, pessoa/ambiente, etc.) pode ser aplicada a casos con-cretos.

Conclusões

Pelo fato de se restringir a um indivíduo e a um quadro de refe-rência indutivo, a teoria de atribuição se mostrou menos útil do que poderia ter sido. Esse estado de coisas poderia ser melhorado nos seguintes pontos: a) através da mudança da esfera individual para a esfera coletiva; b) através do abandono da idéia de ser hu-mano como um estatístico e da relação mecanicista entre o ser hu-mano e o mundo; c) pela re-colocação das representações sociais como mediadoras necessárias.

Algumas sugestões já foram dadas no sentido de melhorar a teoria (Hewstone & Jaspars, 1982). Devemos, contudo, ter em mente que a causalidade não existe por si mesma, mas somente dentro de uma representação que a justifique. Nem devemos es-quecer que quando nós consideramos duas causalidades, nós te-mos também de considerar a relação entre elas. Em outras pala-vras, nós devemos sempre procurar aquelas sobre causas que pos-suem uma ação dual, tanto como causas agentes como causas efi-cientes, que constituem essa relação. Todas nossas crenças, pro -cessos de pensamento e concepções do mundo possuem uma causa desse tipo à qual nós apelamos como último recurso. É nisso que colocamos nossa confiança e é a ela que nós invocamos em todas as circunstâncias. O que eu tenho em mente são palavras tais como “Deus” , “Progresso”, “Justiça”, “História”. Estas pala-vras se referem a uma entidade ou a um ser dotado com status so-cial agindo tanto como causa e como fim. As palavras são impor-tantes, pois respondem por tudo o que acontece em cada esfera possível de realidade. Não há dificuldade em identificá-las, mas eu penso que seria uma tarefa difícil explicar a parte que elas desem-penham e seu extraordinário poder.

Estou convencido de que, cedo ou tarde, nós conseguiremos uma idéia mais clara de causalidade. E eu consideraria nossas in-vestigações atuais concluídas, mesmo que seu objetivo último não fosse alcançado quando os psicólogos dominarem uma lin-

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guagem comum que os possibilitasse estabelecer uma concor-dância entre as formas de pensamento dos indivíduos e o conteú-do social destes pensamentos.

6. Um levantamento das primeiras pesquisas realizadas em representações sociais

61. Alguns temas metodológicos comuns e ligações com outras ciên-cias sociais

O corpo de pesquisa em que essas teorias estão baseadas e de onde elas surgiram é relativamente restrito. Mas isso é tudo o que temos até agora. Seja qual tiver sido o objetivo especifico dessas pesquisas, elas compartilharam, contudo, os quatro princípios metodológicos seguintes:

a) Obter o material de amostras de conversações normalmente usadas na sociedade. Algumas dessas partilhas tratam de tópicos importantes, enquanto outras se referem a tópicos que podem ser estranhos ao grupo - alguma ação, acontecimento ou personalida-de, com que ou quem as pessoas se surpreendessem, exclaman-do: “Do que se trata, afinal? ”, “Por que aconteceu isso?”, “Por que ele fez isso?”, “Qual o propósito de tal ação?” - mas tudo ten-dendo a um acordo mútuo. Tarde (1910) foi o primeiro a afirmar que opiniões e representações são criadas no curso de conver-sações, como maneiras elementares de se relacionar e se comu-nicar. Ele demonstrou como elas emergem em lugares especial-mente reservados (tais como salões, cafés, etc.); como elas são de-terminadas pelas dimensões físicas e psicológicas desses encon-tros entre indivíduos (Moscovici, 1961/1967) e como elas mu-dam como passar do tempo. Ele até elaborou um plano para a ci-ência social do futuro, que seria um estudo comparativo de con-versações. Na verdade, as interações que ocorrem natural mente no decurso das conversações possibilitam os indivíduos e os gru-pos a se tornarem mais familiarizados com objetos e idéias in-compatíveis e desse modo poder lidar com eles (Moscovici, 1976). Tais infra-comunicações e pensamento, baseados no boato, constituem um tipo de camada intermediária entre a vida pública e a privada e facilitam a passagem de uma para a outra. Em outras palavras, a conversação está no centro de nossos uni-versos consensuais, porque ela configura e anima as representa

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sociais e desse modo lhes dá uma vida própria.

b) Considerar as representações sociais como meios de re-criar a realidade. Através da comunicação, as pessoas e os grupos con-cedem uma realidade física a idéias e imagens, a sistemas classifi-cação e fornecimento de nomes. Os fenômenos e pessoas com que nós lidamos no dia-a-dia não são, geralmente, um material bruto, mas são os produtos, ou corporificações, de uma coletividade, de uma instituição, etc. Toda a realidade é a realidade alguém, ou é uma realidade para algo, mesmo que seja a de laboratório onde nós fazemos nossos experimentos. Não seria lógico pensar esses fenômenos de outro modo, tirando-os do contexto maioria dos problemas que nós enfrentamos, no curso de nossa caminhada social ou intelectual, não provém da dificuldade de presentear coi-sas ou pessoas, mas do fato que elas são representações, isto é, substitutos para outras coisas e outras pessoas. Antes de entrar, pois, em um estudo especifico, devemos averiguar origens do ob-jeto e considerá-lo como uma obra de arte e como matéria-prima.

Para ser preciso, contudo, deve-se dizer que se trata de re-feito, re-construído e não de algo recém-criado, pois, por lado, a única realidade disponível é a que foi estruturada pelas gerações passadas ou por outro grupo e, por outro lado, nós a re-produzimos no mundo exterior e por isso não podemos evitar a distorção de nossas imagens e modelos internos. O que nós cria-mos, verdade, é um referencial, uma entidade à qual nós nos refe-rimos que é distinta de qualquer outra e corresponde a nossa re-presentação dela. E sua repetição - seja durante uma conversação, ou ambiente (por exemplo, um “complexo”, um sintoma, etc.) - garante sua autonomia, diferentemente de um ditado que se toma dependente da pessoa que o disse pela primeira vez depois que repetido muitas vezes. O resultado mais importante dessa re -construção de abstrações em realidades é que elas se tornam se-paradas da subjetividade do grupo, das vicissitudes de suas intera-ções e conseqüentemente, do tempo, e adquirem, portanto, per-manência e estabilidade. Isoladas do fluxo de comunicações que as deduziu, elas se tomam tão independentes delas como uma cons-trução se torna independente do plano do arquiteto ou dos an-daimes empregados em sua construção.

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Poderia ser útil apontar algumas distinções que devem ser le-vadas em consideração. Algumas representações se referem a fa-tos, outras a idéias. As primeiras transportam seu objeto de um nível abstrato para um nível cognitivo concreto; as segundas, atra-vés de uma mudança de perspectiva, tanto compõem, como de-compõem seu objeto - elas podem, por exemplo, apresentar as bo-las de bilhar como uma ilustração do átomo ou considerar uma pessoa, psicanaliticamente falando, como dividida em um cons-ciente e em um inconsciente. Ambas, contudo, criam quadros de referência pré-estabelecidos e imediatos para opiniões e percep-ções, dentro dos quais ocorrem automaticamente reconstruções objetivas tanto de pessoas, como de situações e que subjazem à experiência e ao pensamento subjetivos. O que é surpreendente e que deve ser explicado não é tanto o fato de que tais reconstruções são sociais e influenciam a todos, mas antes que a sociabilidade as exige, expressa nelas sua tendência de posar como não-sociabili-dade e como parte do mundo natural.

c) Que o caráter das representações sociais é revelado especial-mente em tempos de crise e insurreição, quando um grupo, ou suas imagens, está passando por mudanças. As pessoas estão, então, mais dispostas a falar, as imagens e expressões são mais vivas, as memórias coletivas são excitadas e o comportamento se torna mais espontâneo. Os indivíduos são motivados por seu desejo de enten-der um mundo cada vez mais não-familiar e perturbado. As repre-sentações sociais se mostram transparentes, pois as divisões e bar-reiras entre mundos privado e público se tornaram confusas. Mas a crise pior acontece quando as tensões entre universos reificados e consensuais criam uma ruptura entre a linguagem dos conceitos e a das representações, entre conhecimento científico e popular. É como se a própria sociedade se rompesse e não houvesse mais maneira de preencher o vazio entre os dois universos. Essas ten-sões podem ser o resultado de novas descobertas, novas concep-ções, sua popularização na linguagem do dia-a-dia e na consciência coletiva - por exemplo, a aceitação, pela medicina tradicional, de teorias modernas, tais como a psicanálise e a seleção natural. Es-sas tensões podem ser seguidas por revoluções concretas no sen-so comum, que não são menos importantes que as revoluções cien-tíficas. A maneira como ocorrem e re-ligam um universo a outro joga alguma luz sobre o processo de representações sociais e dá significado excepcional a nossas investigações.

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d) Que as pessoas que elaboram tais representações sejam vistas como algo parecido a “professores” amadores e os grupos que for-mam como equivalentes modernos daquelas sociedades de profess o-res amadores que existiam há mais ou menos um século.” Tal é na natureza da maioria das reuniões não-oficiais, das discussões em bares e clubes, ou reuniões políticas onde os modos de pensamento e expressão refletem as curiosidades que são comentadas e os laços sociais que são estabelecidos nessas ocasiões. Por outro lado, mui-tas representações provém de trabalhos profissionais que se diri-gem a esse público “amador”; eu estou pensando; em certos peda-gogos, em popularizadores da ciência e em determinado tipo de jornalista (Moscovici, 1961/1976), cujos escritos tornam possível a qualquer um considerar-se um sociólogo, economista, físico, doutor ou psicólogo. Eu mesmo me vi na pele de um doutor de Agatha Christie que observa: “Tudo bem com a psicologia, se for deixada para o psicólogo. O problema é que todas as pessoas são psicólogos amadores hoje em dia. Meus pacientes me dizem exa-tamente de que complexos e neuroses eles estão sofrendo, sem me darem a chance de falar” (Agatha Christie, 1957).

Ao final de contas, talvez esse trabalho chegue muito tarde. Na verdade, certo número de teorias minhas concorrem com as de várias escolas de sociologia e da sociologia do conhecimento em países de fala inglesa. Farr (1978; 1981) se refere, em alguns arti-gos, à relação entre as teorias discutidas acima e as teorias de atri-buição, à construção social da realidade, à etnometodologia, etc. De outro ponto de vista, contudo, esse trabalho parece chegar pre-cisamente no momento exato, para uma re-avaliação do campo da psicologia social em relação às disciplinas a ela relacionadas. (Não de todo novo, mas novo para a psicologia social.)

Não se pode negar que o programa para uma sociologia do conhecimento, embora muitas vezes discutido, ainda nem come-çou a ser concretizado. Na verdade, obras como as de Berger e Luckmann (1967) se referem a uma teoria das origens do senso comum e da estrutura da realidade, mas eu creio que essa teoria, ao contrário da minha, não foi testada. Quanto à etnometodologia, ela se originou da distinção entre a “racionalidade” da ciência e a “racionalidade” do senso comum, aplicadas à vida cotidiana. Ela examinou essa distinção, separando, porém, deliberadamente, a estrutura social e então, à luz de tentativas de restabelecer a uni-dade do tecido, mostrando as normas e co nvenções sociais que

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constituem sua continuidade e tessitura. Uma vez mais o resultado é uma estrutura da realidade que brota de uma escolha de regras e convenções partilhadas de maneira geral.

Quanto a mim, por outro lado, achei mais compensador tirar proveito das rupturas que ocorrem naturalmente e que revelam tanto a propensão dos indivíduos e dos grupos para intervir na se-qüência normal dos acontecimentos e para modificar seu desen-volvimento e quanto eles conseguem seu objetivo. Desse modo, não são apenas as regras e convenções que vêm à luz, mas tam-bém as “teorias” em que elas estão baseadas e as linguagens que as expressam. Na minha opinião, isso é essencial — as regularida-des e equilíbrios sociais aparecem em uma representação comum e não podem ser compreendidos separadamente. Além do mais, o trabalho de construção em que os sociólogos estão interessados em nossas sociedades consiste principalmente em um processo de transformação de um universo reificado para um universo con-sensual, ao qual tudo o mais está subordinado.

Escolhi esses dois exemplos para enfatizar as afinidades, mas outros poderiam ser acrescentados. O que eles todos têm em co-mum é sua preocupação com as representações sociais e os inves-tigadores fariam bem em lembrar-se do aviso de Durkheim: “Sen-do a observação reveladora da existência de um tipo de fenômeno conhecido como representação, com características especificas que o distinguem de outros fenômenos naturais, é inútil compor-tar-se como se o fenômeno não existisse” (Durkheim, 1895/1982).

Grande parte da imaginação sociológica está preocupada, hoje, com universos consensuais, ao ponto, quase, de mais ou me-nos se restringirem a eles. Tal atitude pode ser justificada pelo fato de eles estarem preenchendo um vazio deixado pela psicologia so-cial. Mas seria melhor se houvesse um reagrupamento de discipli-nas ao redor desse “tipo de fenômeno conhecido como represen-tação”, esclarecendo a tarefa da sociologia e dando a nossa disci-plina a amplitude de visão de que ela urgentemente necessita.

6.2. Breve revisão de alguns dos principais campos de estudo

Numa publicação recente, tive a satisfação de mostrar que, fi-nalmente, os psicólogos americanos estão preparados para reco-

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nhecer, embora sem concretamente dar-lhes o nome, a importân-cia das representações sociais. “Tais teorias tácitas, globais, jun-tamente com muitas teorias mais especificas, incluindo teorias sobre indivíduos específicos ou classes de indivíduos, governam; nossa compreensão ou comportamentos, nossa explicação causal do comportamento passado e nossas predições de comportamen-tos futuros” (Nisbett & Ross, 1980).

Ou, podemos acrescentar, servem para ocultar, ignorar e subs-tituir o comportamento. E sendo que Gedankenexperiments o Ge-dankenbehaviours são pelo menos tão importantes na vida cotidia-na, como o são na ciência, seria um erro ignorá-los, simplesmente porque eles não explicam, nem predizem nada. Mas a falta de in-teresse por tudo, exceto pelo que for escrito em inglês ou por experimentos feitos em outro país - uma falta de interesse que, há uma geração, teria desqualificado qualquer professor, seja nos Estados Unidos ou em qualquer outro lugar - os levaria afirmar com confiança total:

Houve, surpreendentemente, pouca pesquisa sobre crenças e teor nas

partilhadas pela massa da população, em nossas culturas.

Heider (1958) foi talvez o primeiro a enfatizar sua impor-

tância e Abelson (1968) foi o primeiro (e quase o único) investiga-

dor a tentar estudá-los empiricamente. O pouco de pesquisa realiza-

do sobre teorias das pessoas focalizou diferenças individuais na crença e

teorias (Nisbett & Ross, 1980).

Acontece, porém, que, exatamente por esse tempo, a pesquisa sobre “teorias das pessoas” estava florescendo e produzindo resul-tados amplamente apreciados. Não estou dizendo que tal pes quisa era superior à pesquisa mencionada, ou mesmo excelente em si mesma, mas estou dizendo que ela existia e não estava restrita ao estudo das “diferenças individuais”. Se os pesquisadores em nosso campo continuam a ver a totalidade da ciência repre sentada ape-nas pela ciência de seu país, existirá sempre um Joe Bloggs ou um Jacques Dupont para inventar tudo, do mesmo modo que o Ivan Po-poff antes deles. Isso é algo que podemos perfeita mente dispen-sar.

Como dissemos, é durante o processo de transformação que os fenômenos são mais facilmente percebidos. Por isso nos con-centramos na emergência das representações sociais, provenham

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elas de teorias cientificas - seguindo suas metamorfoses dentro de uma sociedade e a maneira como elas renovam o senso comum - ou originem-se de acontecimentos correntes, experiências e co-nhecimento “objetivo”, que um grupo tem de enfrentar a fim de constituir e controlar seu próprio mundo.

Ambos os pontos de partida são igualmente válidos, pois, em um caso, é uma questão de observar o efeito de uma mudança de um nível intelectual e social para outro e no outro, de observar a organização de um conjunto de objetos quase-materiais e de ocor-rências ambientais que uma representação implícita normalmente oculta. Os mecanismos envolvidos são, contudo, idênticos.

O senso comum está continuamente sendo criado e re-criado em nossas sociedades, especialmente onde o conhecimento cien-tífico e tecnológico está popularizado. Seu conteúdo, as imagens simbólicas derivadas da ciência em que ele está baseado e que, enraizadas no olho da mente, conformam a linguagem e o compor-tamento usual, estão constantemente sendo retocadas. No proces-so, a estocagem de representações sociais, sem a qual a sociedade não pode se comunicar ou se relacionar e definir a realidade, é rea-limentada. Ainda mais: essas representações adquirem uma auto-ridade ainda maior, na medida em que recebemos mais e mais material através de sua mediação - analogias, descrições implícitas e explicações dos fenômenos, personalidades, a economia, etc., juntamente com as categorias necessárias para compre ender o comportamento de uma criança, por exemplo, ou de um amigo. Aquilo que, a longo prazo, adquire a validade de algo que nossos sentidos ou nossa compreensão percebem diretamente, passa a ser sempre um produto secundário e transformado de pesquisa cientifica. Em outras palavras, o senso comum não circula mais de baixo para cima, mas de cima para baixo; ele não é mais o ponto de partida, mas o ponto de chegada. A continuidade, que os filósofos estipulam entre senso comum e ciência, ainda existe, mas não é o que costumava ser.

A difusão da psicanálise na França forneceu um exemplo prá-tico para começar nossas investigações sobre a gênese do senso comum. Como conseguiu a psicanálise penetrar as várias camadas de nossa sociedade e influenciar sua cosmovisão e comporta-mento? Que modificações sofreu ela a fim de conseguir isso? Nós investigamos, metodicamente, as maneiras pelas quais suas teo-rias se ancoraram e objetivaram, como um sistema de classifica-ção e de nominalização de pessoas e comportamentos foi elabora-

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do, como uma “nova” linguagem foi criada a partir de termos psi-canalíticos e a tarefa desempenhada pela bi-causalidade no pensa-mento normal. Além disso, explicamos como uma teoria passa de um nível cognitivo a outro, tornando-se uma representação social. Nós, naturalmente, levamos em consideração os fundamentos po-líticos e religiosos, enfatizamos seu papel em tais transições. Fi-nalmente, nossa investigação nos possibilitou especificar a ma-neira como uma representação molda a realidade em que v ive-mos, cria novos tipos sociais - o psicanalista, o neurótico, etc. - e modifica o comportamento em relação a essa realidade.

Simultaneamente, estudamos o problema dos meios de co-municação de massa e seu papel no estabelecimento do senso co-mum. Nesse caso, o senso comum pode ser elevado à função de uma ideologia dominante. Pois esse é o status da psicanálise na França de hoje: comparável, em qualquer ponto, ao de um credo oficial, tornou-se claro, ao menos no que se refere à evolução, que a presença de uma representação social constitui um pressuposto necessário para a aquisição de tal status. Ainda mais: pudemos estabelecer, mais ou menos definitivamente, a ordem das três fa-ses da evolução: a) a fase científica de sua elaboração, a partir de uma teoria, por uma disciplina cientifica (economia, biologia, etc.); b) a fase “representativa”, em que ela se difunde dentro de uma sociedade e suas imagens, conceitos e vocabulário são difun-didos e adaptados; c) a fase ideológica, em que a representação é apropriada por um partido, uma escola de pensamento ou um ór-gão do estado e é logicamente reconstruída, de tal modo que um produto, criado pela sociedade como um todo, pode se legitimar em nome da ciência. Toda ideologia possui, pois, esses dois ele-mentos: um conteúdo, derivado da base e uma forma, que provém de cima, que dá ao senso comum uma aura científica. Outras in-vestigações se interessaram com teorias mais científicas (Acker-mann & Zygouris, 1974; Barbichon & Moscovici, 1965) e nossos achados contribuíram para a formulação de uma teoria mais geral de popularização do conhecimento científico (Roqueplo, 1974).

Numa segunda série de estudos, nós examinamos mais espe-cificamente a dinâmica das mudanças técnicas e teóricas. Em pou-cas palavras, durante os anos de 1950 a 1960, uma grande difusão de técnicas e teorias médicas surgiu na França, como resultado de um crescimento no consumo médico. Juntamente com uma nova relação médico-paciente, uma atitude totalmente nova com respeito à saúde e ao corpo foi rapidamente transformando ima-

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gens e teorias antigas. Uma das primeiras a estudar essa situação foi Claudine Herzlich, em seu trabalho sobre as representações da saúde e da doença. Seu objetivo era enfatizar o surgimento de um sistema de classificação e interpretação de sintomas, como res-posta ao que algum dia será reconhecido como uma revolução cultural em nossas visões de saúde, doença e morte (Herzlich, 1973). Se alguém sente saudade pelo desaparecimento da morte de nossa consciência e de nossos rituais, a causa disso remonta ao tempo em que a confiança nos poderes científicos da medicina foi estabelecida.

Um estudo posterior tratou das representações sociais do corpo. Ele mostrou que nossas percepções e concepções do corpo não eram mais adequadas à realidade que ia surgindo e que uma revolução importante era inevitável. Analisamos, por isso, essas representações; e no decorrer da caminhada, sob a influên-cia dos movimentos de jovens, do movimento de libertação das mulheres e a difusão da biodinâmica, etc., as maneiras de ver e ex-perienciar o corpo foram transformadas radicalmente. Retomando novamente nossa investigação depois que essa mudança profunda de representações tinha ocorrido, pudemos tirar proveito de algo parecido com um experimento natural. De fato, tendo acontecido uma revolução cultural importante, nós estávamos em situação de poder observar seus efeitos, passo a passo, e comparar o que nós tínhamos observado anteriormente, com o que estava agora acon-tecendo. Em outras palavras, nós começamos a perceber o proble-ma da modificação nas representações sociais e sua evolução. Isso constitui o centro do trabalho de Denise Jodelet (Jodelet & Moscovici, 1975) no momento presente. Ela, porém, estava muito bem preparada para tal investigação devido a seu estudo com do-entes mentais, colocados entre os habitantes de várias aldeias francesas. Pela observação desse projeto pelo período de dois anos, Jodelet foi capaz de descrever, com grande detalhe, o desenvolvi-mento das relações entre os aldeões e os pacientes e como Mosco-vici, por sua própria natureza, deu chance a discriminações, quan-do tentou “situar”, em um mundo familiar, os pacientes mentais cuja presença era eminentemente perturbadora. Essas discrimi-nações, além do mais, estavam baseadas em um vocabulário e em representações sociais que tinham sido pormenorizadamente ela-boradas pelas pequenas comunidades. Essas comunidades se sen-tiram, de certo modo, ameaçadas pelos seres indefesos que tinham

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sido colocados em seu meio, devido à própria infelicidade e à rotina institucional.

Finalmente, um estudo totalmente original de René Kaes (1976), sobre psicoterapia de grupo, mostra, de um lado, como tais grupos produzem certos tipos de representação, relacionada com o que constitui um grupo e como ele funciona; de outro lado, como tais representações refletem a evolução do grupo. Não há dúvida que eles têm uma significância cultural, se não cientifica, e é até certo ponto surpreendente vê-los surgir em tais circunstâncias. Perma-nece, contudo, o fato de que tais representações canalizam o fluxo de emoções e de relações interpessoais flutuantes.

O trabalho de Denise Jodelet, em colaboração com Stanley Milgram (Jodelet & Milgram, 1977; Milgram, 1984), sobre as ima-gens sociais de Paris, mostra que o espaço urbano, ou a matéria-prima do dia-a-dia, é totalmente determinado pelas represen-tações e não é, de nenhum modo, tão artificial como estamos acos-tumados a crer. Além do mais, esse estudo confirma nossa afirma-ção que o pensamento é uma atmosfera social e cultural, pois nada pode estar mais grávido de idéias, do que uma cidade. As teorias expressas nas primeiras quatro secções desse trabalho foram comprovadas por esta primeira geração de investigações.! Outras, inspirando-se na cultura (Kaes, 1968), em relações inter grupais (Quaglino, 1979), em métodos educacionais (Gorin, 198O), etc. ela-boraram alguns aspectos que nós omitimos, enquanto es tudos das representações da criança enfatizaram a importância heurística do sujeito como um todo (Chombart de Lauwe, 1971).

7. O status das representações: estímulos ou mediado-res?

7.1. Representações sociais como variáveis independentes

J.A. Fodor escreve:

Um dos argumentos principais deste livro foi que, se você

quer saber que resposta um dado estimulo irá evocar, você

deve descobrir que representação interna o organismo irá

designar para o estímulo. Evidentemente, o caráter de tais de-

signações deve, por sua vez, depender de que tipo de sistema re-

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presentacional está disponível, para medrar os processos cognitivos

do organismo (Fodor, 1975).

Uma preocupação saudável, tanto para com a teoria, como para com o fato das representações, pode ser observada agora em qua-se todos os lugares. Assim, o que acontece dentro de uma socieda-de, tornou-se uma pré-ocupação importante, muito mais do que simplesmente saber como ela cria e transforma a atmosfera. Mas, apesar desta preocupação existir, é, não obstante, essencial para proteger contra as tradicionais meias-medidas como as que su-põem a injeção de um mínimo de subjetividade e pensamento na “caixa preta” dos nossos cérebros ou simplesmente adicionam um pouco mais de espírito ao nosso mundo desumanizado, mecaniza-do.

De fato, se o texto de Fodor - que congrega uma extensa varie-dade de escritos - é lido com certa atenção, o uso de duas palavras acabam por assombrar: “interna” e “medial”. Estes termos impli-cam que as representações substituem o fluxo de informações que chegam até nós do mundo externo: que as representações são elos mediadores entre a causa real (estímulo) e o efeito concreto (respos-ta). Então, os elos são mediadores ou causas aleatórias. Este beha-

viorismo re-condicionado, ao qual nós sempre recosemos em tem-pos difíceis, é um pedaço inteligente de remendo, mas é um remen-do ad hoc por definição e não é muito convincente.

Devemos, aqui, sublinhar a posição firme que a teoria das re-presentações tomou, com respeito a isso: no que concerne à psico-logia social, representações sociais são variáveis independentes, estímulos explanatórios. Isto não significa que, por exemplo, no que concerne à sociologia ou à história, aquilo que para nós é explanató-rio não seja, para elas, uma explicação”3. É Obvio porque isto deveria ser assim. Todo estímulo é selecionado de uma grande variedade de estímulos possíveis e pode produzir uma variedade infinita de reações. São as imagens e paradigmas preestabelecidos que de-terminam a escolha e restringem a gama de reações. Quando uma criança vê o sorriso da sua mãe, ela percebe certo número de dife-

3 Nós discutiremos de novo representações socials depois que nós tivermos delineado as

criticas levantadas sobre o conceito de atitude que e, por definição, uma causa mediadora. Desse modo, nós esperamos demonstrar a autonomia da psicologia social e inserir no contexto coletivo uma teoria (isto é, a das atitudes), que se tomou muito individualística. O trabalho de Jaspers & Fraser (1984) dá muito peso a esse ponto de vista

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rentes signos - olhos bem abertos, lábios distendidos, movimentos da cabeça - que a incitam a ficar de pé, gritar, etc. Estas imagens e paradigmas predizem o que surgirá como estimulo ou resposta ao ator ou espectador: os braços da criança estendidos em direção ao rosto sorridente da mãe, ou o rosto sorridente da mãe inclinado em direção aos braços estendidos da criança.

Reações emocionais, percepções e racionalizações não são respostas a um estimulo exterior como tal, mas à categoria na qual nós classificamos tais imagens, aos nomes que nós damos a elas. Nos reagimos a um estímulo à medida em que, ao menos parcial-mente, nós o objetivamos e o re-criamos, no momento de sua constituição. O objeto ao qual nós respondemos pode assumir di-versos aspectos e o aspecto específico que ele realmente assume depende da resposta que nós associamos a ele antes de defini-lo. A mãe vê os braços da criança estendidos para ela e não para uma outra pessoa, quando ela já está se preparando para sorrir e está consciente de que seu sorriso é indispensável para a estabilidade da criança.

Em outras palavras, representações sociais determinam tanto o caráter do estimulo, como a resposta que ele incita, assim como, em uma situação particular, eles determinam quem é quem. Conhecê-los e explicar o que eles são e o que significam é o primeiro passo em toda análise de uma situação ou de uma relação social e constitui-se em um meio de predizer a evolução das interações grupais, por exemplo. Na maioria dos nossos experimentos e observações sistemáticas nós, de fato, manipulamos representações quando pensamos que estamos manipulando motivações, inferências e percepções e é somente por-que não as levamos em consideração, que estamos convencidos do contrário. O laboratório mesmo, para onde uma pessoa se dirige para ser objeto de um experimento, representa para ela e para nós o protó-tipo de um universo reificado (cf. o capítulo de Farr). A presença do aparato, a forma como o espaço é organizado, as instruções que ela recebe, a natureza mesma do empreendimento, a relação artificial entre o experimentador e o sujeito e o fato de que tudo isso ocorre no contexto de uma instituição e sob a égide da ciência, tudo isso repro-duz muitas características essenciais de um universo reificado. Está muito claro que a situação determina tanto as questões que vamos formular, como as respostas que elas vão fornecer.

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Figura 1.1 -Modelos de representação

Idéia corrente

Estimulo

Representação

Resposta

Idéia proposta Estimulo

Representação

Resposta

7.2. Representações sociais em situações de laboratório

Algumas investigações buscaram restabelecer sentidos e re-presentações em situações de laboratório e, tanto quanto possí-vel, corroborar o postulado teórico da sua autonomia, sem o que o experimento e a teoria perderiam muito do seu significado. Em 1968, Claude Faucheux e eu tentamos provar que representações modelam nosso comportamento, no contexto de um jogo compe-titivo. Nós baseamos nosso experimento em jogos familiares de cartas. A única variante que nós introduzimos era que a alguns dos sujeitos era dito que jogavam contra a “natureza”, enquanto que a outros era dito que seu adversário era o “acaso”. O primeiro termo evoca uma imagem do mundo mais tranqüilizadora, com-preensível e controlável, enquanto a idéia de acaso, enfatizada aqui pela presença de um baralho, lembra adversidade e inevoca-bilidade. Como nós prevíamos, a escolha dos sujeitos e especial-mente seus comportamentos diferiam de acordo com a represen-tação do seu oponente. Assim, a maioria dos sujeitos confrontados com a “natureza” gastaram algum tempo estudando as regras e montando algum tipo de estratégia; ao passo que aqueles sujeitos que enfrentaram o “acaso” concentraram sua atenção no baralho, tentando adivinhar qual carta seria jogada e não se preocuparam

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com as regras do jogo. Os números falam por si só: 38 dos 4O que jogavam contra a “natureza” foram capazes de racionalizar as re-gras, enquanto somente 12 dos outros 4O foram capazes de fazê-lo (Faucheux & Moscovici, 1968).

Desse modo, nossas representações internas, que herdamos da sociedade, ou que nós mesmos fabricamos, podem mudar nos-sa atitude em relação a algo fora de nós mesmos. Juntamente com Abric e Plon (Abric et a1., 1967), nós realizamos outra variação deste experimento. Aqui, um grupo era instruído para jogar contra um computador e as escolhas que fariam seriam programadas. O computador, assim como eles, tentaria acumular o máximo de pontos. O objetivo do outro grupo era idêntico, mas, neste, eram instruídos a jogar contra um outro estudante, igual a eles, cujas escolhas lhes seriam comunicadas por telefone. Uma vez mais nós observamos estratégias e racionalizações diferentes e até mesmo contrastastes, de acordo com o grupo. Compreensivelmente, emer-giu uma relação mais cooperativa como outro, do que com o com-putador. Outros experimentos realizados por Codol (Codol, 1974) relativos ao processo de ancoragem de várias representações do “self”, do grupo e da tarefa a ser executada, lançaram uma luz pe-culiar, na sua variedade e impacto, em uma situação competit i-va. Abric (1976), em um experimento muito ambicioso e sistemá-tico, dissecou cada uma dessas representações e mostrou por que eles se comportaram da maneira que o fizeram. Um relato da ex-tensa gama de resultados obtidos será publicado em breve.

Numa outra série de experimentos igualmente convincentes e sem problemas, Flament, em colaboração com Codol e Rossig nol (Codol & Flament, 1971; Rossignol & Flament, 1975; Rossig nol & Houel, 1976), consideraram o mesmo problema em um outro nível mais importante. De fato, a psicologia social está bas tante preocupada com a descoberta dos assim chamados mecanismos universais que, inscritos nos nossos cérebros ou nas nos sas glân-dulas, supostamente determinam cada uma de nossas ações e pensamentos. Eles ocorrem na sociedade, sem serem sociais. Mais ainda, eles são mecanismos formais muito desconec tados de um conteúdo individual ou coletivo de qualquer tipo, ou mesmo da história responsável por tal conteúdo. Um desses mecanismos supostamente único e universal é o da coerência e estabilidade.

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Ele sugere que indivíduos tentam organizar suas cren ças em es-truturas internamente coerentes. Conseqüentemente, nós pre-feriríamos estruturas estáveis às instáveis. O postulado implícito pode ser colocado assim: relações interpessoais positivas e nega-tivas são determinadas pelo princípio da estabilidade. As duas proposições que o sintetizam - “Os amigos dos meus amigos são meus amigos” e “Os inimigos dos meus inimigos são meus amigos” - servem como leis imutáveis, separadas de qual quer sentido im-plícito e independentes de qualquer circunstância particular. Em outras palavras, os dois ditos axiomatizados formam a base de uma sintaxe de relações entre pessoas e determinam sua própria semântica e pragmática.

Sem dúvida, já era óbvio antes de Flament que tais proposi-ções aplicam-se somente a “objetos” que tenham um quadro de referência comum, ou que estão situados ao longo de uma dimen-são cognitiva (Jaspers, 1965). Mas o uso que Flament fez da teoria das representações sociais lhe possibilitou ir mais longe e mais a fundo. Para começar, ele mostrou que cada indivíduo que tivesse que avaliar a relação entre vários outros indivíduos possui uma gama de representações do grupo ao qual eles pertencem e do tipo de elos que existem entre eles. Estas podem ser convencionais ou até mesmo um pouco míticas (e.g. o grupo fraternal ou Rousseau-niano, etc.). O princípio de estabilidade caracterizará tais relações somente se a pessoa já tem em mente a noção de um grupo básico, igualitário e amigável. Então, ela tentará formar uma opinião coe-rente dos membros que o constituem. Em outras palavras, é so-mente em um contexto social desse tipo que “os amigos dos meus amigos” serão necessariamente “meus amigos”. Em tais casos, o princípio da cognição e afetividade de Heider expressa so mente as normas coletivas e os elos internos do grupo particular, mas não uma tendência geral. De fato, Flament mostra com propriedade que é a representação de tal princípio que dá proeminência parti-cular a afabilidade e ao igualitarismo dos seus membros e não o contrário. Nas representações de um tipo diferente de gru po, afa-bilidade e igualitarismo não estão necessariamente ligados e não têm a mesma significação. Por fim, parece que a função do princí-pio de estabilidade consiste em criar um paradigma social de relacionamentos interpessoais positivos e negativos e que a sua significação depende deste paradigma. O que simplesmente quer dizer que o principio do equilíbrio, longe de determinar, é ele

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mesmo determinado pela forma como o contexto das relações interpessoais foi representado. E não é realmente de se surpreen-de que isto não tenha aparecido antes.

Muitos estudos contemporâneos em psicologia social tomam como seu paradigma este grupo de pessoas de opinião igual, que tendem a ter opiniões e gostos semelhantes e anseiam por evitar conflitos e aceitar o status quo. Mas o que eles não percebem é fato de que tal grupo é uma materialização da noção tradicional mítica, de uma comunidade ideal. Neste caso, a tendência em rea-ção à estabilidade e coerência pode bem ser vista como um fato - determinante dos relacionamentos interpessoais. Mas se nós com-pararmos esta representação social do grupo com outras, nós logo nos daremos conta que estas tendências “gerais” são realmente peculiares a ele, que nós trocamos o efeito pela causa. As indaga-ções realizadas por Flament e a sua equipe de Aix-en-Proven nos tornaram possível a reinterpretação das teorias de Heider, através de uma reavaliação que leva em conta a dimensão social e histórica das nossas percepções e opiniões dos outros.

Mas nos referimos somente a um número restrito de experi-mentos. Mesmo assim, cada um deles prova, no seu campo espe-cífico (competição, consciência de outros, etc.), que o nosso pos-tulado tem uma ampla significação. Mais do que motivações, as-pirações, princípios cognitivos e os outros fatores que são habitu-almente apresentados são as nossas representações que em últi-ma instância determinam nossas reações e as suas significações são, assim, as de uma causa real. Através delas, a sociedade se comporta de certa forma como Marcel Duchamp; como esse pin tor com os seus objetos já-feitos, ela põe a sua assinatura nos pro-cessos feitos-pela-sociedade e assim modifica seu caráter. Nós es-peramos ter demonstrado que, na verdade, todos os elementos do campo psíquico são revertidos, uma vez que a assinatura social te-nha sido colocada neles.

A lição a ser tirada do que foi dito acima é que a maneira atual de proceder - que nós devemos a Sherif e que consiste em de-monstrar como os mecanismos psíquicos se transformam em pro-cessos sociais - deveria ser revertida. Pois tal é o processo da pró-pria evolução e, seguindo-o, nós estaremos mais aptos a compre-endê-lo. É apenas lógico pensar que os processos sociais e públi-cos foram os primeiros a ocorrer e que eles foram gradualmente interiorizados até se transformarem em processos psíqui-cos.Assim, quando nós analisamos processos psicossociais, nós

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descobrimos que eles são psicossociais. É como se a nossa psico-logia contivesse a nossa sociologia de uma forma condensada. E uma das tarefas mais urgentes da psicologia social é descobrir uma dentro da outra e compreender esse processo de condensa-ção.

Observações finais

Não posso concluir essa exposição sem mencionar algumas das implicações mais gerais da teoria das representações sociais. Em primeiro lugar, o estudo destas representações não deveria per-manecer restrito a um mero salto do nível emocional para o intelec-tual. Nelas não deveriam ser vistas como puramente pré- ou anti-behavioristas. Se este fosse o caso, não haveria razão para insistir nelas. Não, o que se requer é que examinemos o aspecto simbólico dos nossos relacionamentos e dos universos consensuais em que nós habitamos. Porque toda “cognição”, toda “motivação” e todo “comportamento” somente existem e têm repercussões uma vez que eles signifiquem algo e significar implica, por definição, que pelo menos duas pessoas compartilhem uma linguagem comum, valores comuns e memórias comuns. É isto que distingue o social do individual, o cultural do físico e o histórico do estático. Ao dizer que as representações são sociais nós estamos dizendo principal-mente que elas são simbólicas e possuem tantos elementos percep-tuais quanto os assim chamados cognitivos. E é por isso que nós consideramos seu conteúdo tão importante e nos recusamos a dis-tingui-las dos mecanismos psicológicos como tais.

Em outras palavras, nós verificamos, em várias ocasiões, que a psicologia social tende a destacar um simples mecanismo, retirá-lo do seu contexto e atribuir um valor geral a ele - assim como os instintos foram uma vez segregados, com uma finalidade seme-lhante. Alguns destes são pseudomecanismos, tais como” estabi-lidade” ou “coerência”, que parecem explicar o que eles realmente definem. Uma vez que o pensamento tende naturalmente a substi-tuir ordem pela desordem, simplicidade pela diversidade, etc., afirmar que o pensamento tende em direção á coerência, significa pouco mais que dizer que o pensamento tende em direção ao pen-samento.

Outros mecanismos como “dissonância”, “atribuição”, “rea-ção”, etc. são vistos como universais e são aplicados a todos os campos sociais, categorias ou conteúdos possíveis. Supõe-se que

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eles processem determinadas informações e produzam informa-ções diferentes, sejam quais forem. Ao avaliar a maioria dos estudos realizados nestas bases, Simon concluiu: “Quando os processos subjacentes a esses fenômenos sociais são identificados; como eles o são nos capítulos deste livro, particularmente os da segunda e terceira parte, eles acabam sendo os mesmos processos de in-formação que nós encontramos em cognições não-sociais (Carroll & Paine, 1976).

Esta é uma coincidência perturbadora, pois ou o social tem uma existência e significação que deve produzir certos efeitos, ou o estudo desses processos de informação, como mecanismos isola-dos, se constitui em um erro, que cria a ilusão de um contato pos-sível e fácil com a essência da realidade.

Representações sociais, como teorias cientificas, religiões, mitologias, são representações de alguma coisa ou de alguém. Elas têm um conteúdo específico - implicando, esse especifico a-lém do mais, que ele difere de uma esfera ou de uma sociedade para outra. No entanto, estes processos são significantes, somente na medida em que eles revelam o nascimento de tal conteúdo suas variações. Afinal, como nós pensamos não é distinto daquilo que pensamos. Assim, nós não podemos fazer uma distinção clara en-tre as regularidades nas representações e nas dos processos que as criam. De fato, se nós seguimos os passos da psicanálise e da antropologia, nós deveríamos achar mais fácil entender o que as representações e os mecanismos têm em comum.

A segunda implicação - e uma que poderia ter sido prevista pode ser expressa em poucas palavras: o estudo das representa-ções sociais requer que nós retornemos aos métodos de observa-ção. Não tenho a intenção de criticar os métodos experimen tais como tais. O seu valor é incontestável, para o estudo de fenôme-nos simples, que possam ser recortados do seu contexto. Mas não é este o caso das representações sociais que são armazenadas nossa linguagem e que são criadas em um ambiente bem complexo. Es-tou muito consciente que vários dos meus colegas menosprezam observações, que eles consideram como uma abdicação covarde do rigor cientifico, um signo de prolixidade, preguiça e vagueza. Acho que eles são extremamente pessimistas psicologia social não é mais o que ela era meio século atrás.

Desde então, nós começamos a valorizar as exigências da teo-ria, de uma análise acurada do fenômeno; mas nós também pas-

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samos a valorizar o inverso, a saber, as limitações das teorias que explicam somente o que pode ser experimentado e do experimen-to como algo ao qual a realidade se ajusta. E o que nós exigimos da observação, é que ela preserve algumas das qualidades do expe-rimento ao mesmo tempo em que nos liberte de suas limitações. Ela obteve sucesso, nesta tarefa, para a etnologia, antropologia e psicologia infantil e nós não vemos razões por que ela não deva ter os mesmos resultados na psicologia social.

Evidentemente, porém, algo mais do que os méritos compa-rativos de um ou outro método está em jogo. E isto deve ser dito sem ambigüidade; deixando de lado os méritos técnicos, o expe-rimento se prestou para associar exclusivamente a psicologia so-cial à psicologia geral e para afastá-la da sociologia e das ciências sociais. Indubitavelmente, esta não foi a intenção dos seus funda-dores, mas este foi o caminho por onde ela se encaminhou. Ademais, seus programas de pesquisa e ensino formaram excelentes espe-cialistas em psicologia, que são, ao mesmo tempo, ignorantes em sociologia. Um retomo à observação necessitaria um retorno às ciências humanas. Durante a última década, elas fizeram avanços significativos e demonstraram que podem ser feitas descobertas sem rituais obsessivos, a tal ponto que podem existir destinos pio-res do que o fato de tornar a aderir a eles.

A terceira implicação, que é uma conseqüência natural da se-gunda, diz respeito à descrição. Durante certo tempo, nós estáva-mos preocupados somente com os mecanismos explanatórios para a mudança de atitude, influência, atribuição, etc. sem pensar muito em coletar dados. Tal coleta era vista como uma atividade menor, uma prova de preguiça intelectual e até mesmo como uma inequívoca inutilidade. Delinear hipóteses e verificá-las no labora-tório parecem ser a palavra de ordem. Mas, ao contrário das apa-rências, esta palavra de ordem nada tem a ver com a ciência. A maioria das ciências - da lingüística à economia, da astronomia à química, da etnologia à antropologia - descrevem fenômenos e tentam descobrir regularidades, nas quais se possa fundamentar uma teoria geral. A sua compreensividade consiste principalmente no acúmulo de dados à sua disposição e o significado das regulari-dades revelaram que teorias interpretar a seguir. Não desejo ana-lisar aqui as razões desta palavra de ordem, nem suas conse-qüências negativas para a nossa disciplina. Quaisquer que sejam as razões, permanece o fato de que somente uma descrição cuida-dosa das representações sociais, da sua estrutura e da sua evolu-

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ção nos vários campos, nos possibilitará entendê-las e que uma explicação válida só pode provir de um estudo comparativo de tais descrições. Isto não implica que nós devemos descartar a teoria, substituindo-a por uma acumulação insensata de dados, mas que o que nós queremos é uma teoria baseada em observações ade-quadas e que seja a mais acurada possível.

Por fim, a quarta implicação diz respeito ao fator tempo. As representações sociais são históricas na sua essência e influenci-am o desenvolvimento do indivíduo desde a primeira infância, desde o dia em que a mãe, com todas as suas imagens e conceitos, começa a ficar preocupada com o seu bebe. Estas imagens e con-ceitos são derivadas dos seus próprios dias de escola, de progra-mas de rádio, de conversas com outras mães e com o pai e de ex-periências pessoais e elas determinam seu relacionamento com a criança, o significado que ela dará para os seus choros, seu com-portamento e como ela organizará a atmosfera na qual ela crescerá. A compreensão que os pais têm da criança modela sua personali-dade e pavimenta o caminho para sua socialização. É por isso que nós pressupomos: “.. .que é a transmissão do conhecimento à criança, muito mais do que o seu comportamento ou as suas habi-lidades discriminatórias que deve ser o tema central de preocupa-ção dos psicólogos do desenvolvimento” (Nelson, 1974. Veja tam-bém Palmonari & Ricci Bitti, 1978).

Nossas representações de nossos corpos, de nossas relações com outras pessoas, da justiça, do mundo, etc. se desenvolvem da infância à maturidade. Dever-se-ia enfrentar um estudo detalhado do seu desenvolvimento, estudo que explorasse a forma como uma sociedade é concebida e experimentada simultaneamente por diferentes grupos e gerações. Não haveria razão por que ver o jovem adulto civilizado como o protótipo da raça humana e desse modo ignorar todos os fenômenos genéticos. E isso nos conduz a uma visão mais ampla de um elo entre a psicologia do desenvolvi-mento e a psicologia social, a primeira sendo uma psicologia social da criança e a segunda, a psicologia do desenvolvimento dos adul-tos.

Em ambas, o fenômeno das representações sociais tem um papel central e é isto o que elas têm em comum. Se somássemos a estes certos aspectos da sociologia da vida quotidiana - que, de mais a mais, ainda não foi adequadamente formulada -nós po-deremos reconstruir uma ciência geral que incluiria toda uma

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galáxia de investigações relacionadas. Percebo isto como uma materialização concreta de uma observação de Vygotsky: “O pro-blema do pensamento e da linguagem extrapola os limites da ciên-cia natural e se toma o problema central da sociologia histórica humana, i.e. da psicologia social” (Vygotsky, 1977). Esta seria a

ciência dos universos consensuais em evolução, uma cosmogonia da existência física humana. Não ignoro as dificuldades de tal em-preendimento, nem o fato de que ele pode ser impassível, como também não ignoro a lacuna entre tal projeto e as nossas modes-tas realizações até o dia de hoje. Mas não posso compreender que isso seja razão suficiente para não empreendê-lo e não desenvol-ve-lo, o mais claramente possível, na esperança que outros irão compartilhar da minha fé nesse projeto.

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2-SOCIEDADE E TEORIA EM PSICOLOGIA SOCIAL

1.O dia do primeiro julgamento

Como psicólogos sociais europeus, estamos em um dilema. Para muitos de nós, nossa ciência recém começou; mas, ao mes-mo tempo, pertencemos a sociedades e culturas que possuem um longo passado atrás de si. É por isso que revista familiar de psi-cólogos sociais europeus tem a tendência de ser escrita como uma autobiografia inserida em uma civilização antiga, enquanto nossos colegas americanos desfrutam de uma conjuntura de a-contecimentos que é exatamente o inverso de nossa própria si-tuação.

O que está em jogo quando são feitas perguntas sobre o que a psicologia social é ou deveria ser? Primeiramente, não há dúvi-da de que as respostas buscadas são um re flexo das circunstân-cias em que estas perguntas são feitas. Por isso, é prudente co-meçar tornando explicitas essas circunstâncias, em vez de deixá-las atrás dos bastidores. Duas delas parecem ser de maior impor-tância.

A primeira é a tentativa de criar, na Europa, uma psicologia social e de reunir um grupo de pessoas que estão tentando - com maior ou menor sucesso - alcançar este objetivo. Muitos de nós tivemos de usar métodos autodidáticos: começamos aprendendo ou reinventando procedimentos, enquanto consultávamos a úni-ca literatura disponível, da qual não conhecíamos nem a função, nem suas raízes presentes em nossa própria sociedade e em nos-sa própria tradição cultural. Em frente a nós, atrás de nós e ao nosso redor, havia - e ainda há - a psicologia social americana. É desnecessário discorrer sobre o papel desempenhado, neste de-senvolvimento, por pessoas como Lewin, Festinger, Heider, Deutsch, Asch, Schachter, Sherif, Kelley, Thibaut, Lazarsfeld, Ba-velas, Berkowitz e muitos outros. Mas, apesar do respeito que temos por seu trabalho - e, em alguns casos, apesar dos laços de amizade pessoais - não é segredo que a aceitação está se tornan-do progressivamente mais difícil. Na medida em que nós os le-

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mos e tentamos entendê-los e assimilar os princípios que os gui-am, devemos concluir, muitas vezes, que eles nos são estranhos, que nossa experiência não condiz com a deles, que nossa visão de homem, de realidade e de história é diferente. Antes de minha primeira visita aos Estados Unidos, havia poucas publicações, com exceção de algumas de Lewin, Festinge r e Sherif, que não me deixassem uma impressão de estranheza.

Tomemos o exemplo do livro de Thibaut & Kelley (1959) sobre pequenos grupos, ao qual retornarei mais tarde. Quando tentei lê-lo pela primeira vez, há alguns anos, não pude nem en-tendê-lo, nem me interessar por ele. Como é bem sabido, o livro analisa todas as relações sociais como um negócio. A teoria se baseia em um cálculo racional do individuo, sobre a probabilida-de de outras pessoas lhe trazerem uma maior satisfação, isto é, um máximo de recompensas e um mínimo de punições. A medi-da, porém, que lia o livro, eu pensava em inúmeros exemplos de interação social que não tinham nada a ver com uma equação de oferta e procura, como, por exemplo, o papel da reciprocidade e dos valores, ou a realidade do conflito social e da identidade so-cial. Estas lacunas me perturbavam e nunca consegui terminar o livro; e, apesar disso, sabia que era considerado um livro impor-tante, apesar de não entender por que devesse sê-lo. Encontrava dificuldades semelhantes com algumas das máximas implícitas em muitas das pesquisas correntes: “Nós gostamos de quem nos apóia”; “o líder é uma pessoa que entende as necessidades dos membros do seu grupo”; “nós ajudamos aqueles que nos aju-dam”; “entender o ponto de vista de outra pessoa estimula a co-operação”.

Esta “psicologia social da ingenuidade” era, para mim, como ainda o é, agressiva, de diferentes formas: ela tinha pouca rele-vância para o que eu conhecia, ou para o que eu havia vivencia-do. Sua postura moral implícita me recordava outra máxima (que talvez não seja tão evidente como parece): “É melhor ser saudá-vel e rico do que ser doente e pobre”. Eu sabia, por minha expe-riência social, que nós buscamos aqueles que diferem de nós e com os quais podemos identificar-nos; que podemos amar al-guém que nos despreza; que lideres podem impor-se pela violên-cia ou procurando exclusivame nte seus próprios ideais - e que, ao fazer isso, eles não são apenas admirados, como também a-mados; e, finalmente, não acontece, muitas vezes, que é o nosso adversário o que melhor nos conhece?

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Foi somente depois de ter estado nos EE.UU. e ter discutido estes assuntos com psicólogos sociais americanos que eu come-cei a entender seu ponto de vista e o que está por detrás dele. Estava, assim, habilitado a ler o livro de Thibaut e Kelley e conse-guir algum entendimento de suas formulações e máximas. Mas concluí, também, que precisávamos, na Europa, voltar-nos para nossa própria realidade, nossas próprias máximas, das quais precisamos extrair nossas conseqüências “científicas”. O fato de que a psicologia social é, hoje em dia, quase que exclusivamente americana, constitui um duplo empecilho. Do ponto de vista dos psicólogos sociais americanos, isso certamente coloca limites á relevância de seus resultados e cria incertezas e dúvidas sobre a validade das idéias e leis que eles propõem. Para os psicólogos sociais de outros lugares, lança dúvidas sobre a validade de sua postura cientifica: eles podem escolher entre uma psicologia social apropriada à sua cultura e sociedade ou contentar-se com a aplicação a seus ensinamentos e pesquisa de um modelo bas-tante restrito.

Não pode ser esquecido que o avanço real feito pelos psicó-logos sociais americanos não foi tanto no seu método empírico ou nas suas construções teóricas, mas no fato de que estes estu-diosos tomaram como temas de suas pesquisas e conteúdo de suas teorias os problemas de sua própria sociedade. Seu mérito estava tanto nas técnicas, quanto na transposição dos problemas da sociedade americana em termos psicossociológicos, fazendo deles um objeto de investigação científica. Portanto, se tudo o que fazemos é assimilar a literatura que nos é transmitida - mesmo que isso seja apenas com preocupações comparativas - não fazemos mais do que assumir preocupações e tradições de outra sociedade; trabalhamos no abstrato para resolver proble-mas da sociedade americana. E, portanto, temos de nos resignar a sermos uma pequena parte de uma ciência feita em outro lugar e isolarmo-nos em uma sociedade - a nossa própria - pela qual não mostramos nenhum interesse. Desta forma, podemos obter reconhecimento cientifico como metodólogos ou experimenta-dores - mas nunca como psicólogos sociais. É verdade que temos estímulo suficiente para imitação. Mas nós precisamos tentar trabalhar com um espírito de contradição e tornarmo-nos sócios em um diálogo estimulador; as diferenças entre “o grande irmão” e o “pequeno irmão” poderiam tornar-se menos marcantes com o tempo; sua persistência mostra apenas que, em ambos os lados,

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não foi alcançada uma real maturidade.

Este ponto de vista é compartilhado por outros, cujas expe -riências foram semelhantes à minha; mas apesar de nossas ori-gens comuns, não fomos bem-sucedidos na criação de uma lin-guagem, de um modelo e de uma definição de problemas que correspondessem genuinamente à nossa realidade social. Não é apenas esta realidade social que é compartilhada; para muitos de nós, as idéias de Marx, Freud, Piaget, Durkheim, por exemplo, estão em relevância direta porque nos são familiares e porque as questões a que eles estavam tentando responder eram também nossas próprias questões. Portanto, a estrutura social de classe, o fenômeno da linguagem, a influência das idéias sobre a socie-dade, tudo isso nos parece muito importante e exige prioridade na análise da conduta “coletiva”, embora eles dificilmente mar-quem uma presença significativa na psicologia social contempo-rânea.

Confrontados com esta situação, alguns buscam refúgio na metodologia e na respeitabilidade que esta oferece, embora sai-bam muito bem que isto não é uma solução. O fato de que somos tão poucos é também importante: é difícil simplesmente conti-nuar escrevendo um para o outro, isolarmo-nos dentro de nossa disciplina e sermos os únicos juízes do que fazemos, enquanto negligenciamos o que acontece alhures. Antropologia, lingüística, sociologia, psicanálise e filosofia exigem nossa atenção; seus u-suários solicitam que nos comuniquemos com eles. É impossível ignorar suas questões e também as dos estudantes, que insistem em obter respostas. A psicologia social, tal como ela se apresenta hoje, não nos ajuda muito diante dessas premências. Ela possui uma dimensão introspectiva e seu desenvolvimento se caracteri-zou por uma negligência das questões de onde essas premências se originaram; ou melhor: ela se desenvolveu como reação a ou-tras premências, dentre as quais a economia, o behaviorismo e a indústria são as mais importantes.

O segundo maior problema refere-se ao que é, muitas vezes, chamado de “revolução estudantil”. Há opiniões diferentes sobre o caráter “revolucionário” do movimento estudantil e de como deveríamos agir a seu respeito, ou contra ele. Do meu ponto de vista, o movimento teve um saldo positivo, porque nos ajudou a confrontar problemas que procurávamos esquecer. Não há nada mais saudável do que sermos colocados face a face com nossas próprias contradições. Por muitos anos, nós afirmávamos que a

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ciência buscava a verdade, que o seu papel era estimular valores humanizantes, ampliar o reino da razão e criar seres humanos capazes de julgamento objetivo, que pudessem ajudar a desen-volver os ideais de democracia, igualdade e liberdade. Mas os ideais dominaram nosso discurso, enquanto a realidade julgava nossas ações. Max Weber nos ensinou que a violência legitimada é o sustentáculo do corpo político, mas nós estávamos preocu-pados com legitimidade, enquanto esquecíamos a violência.

Os estudantes nos levaram a sério e deram mais valor do que nós àquilo que nós lhe ensina mos. Para eles, portanto, os ideais existem para serem realizados, não simplesmente para fazerem parte de nossos discursos. Os es tudantes são, muitas vezes, acusados pelo uso que fazem da violência; mas nós não podemos esquecer o fracasso de outra geração, que aspirou ser conselheira do príncipe e acabou, pelo contrário, sendo sua ser-va. E além disso, quem deu primeiro o exem plo de violência? Ditaduras, torturas, campos de concentração não foram criados com a atual geração de estudantes. O palavreado isolado acaba, mais cedo ou mais tarde, vazio de significado, particularmente quando distorce a realidade, tentando convencer o prisioneiro de que ele é livre, o pobre e o explorado de que vivem em uma sociedade afluente, o homem que trabalha 5O horas semanais sem nenhum descanso, de que ele é membro de uma sociedade de lazer. Ninguém ignora isso, mas todos colaboram para varrê-lo para baixo do tapete. Qualquer visitante de museu sabe o que está escondido por detrás das folhas de parreira e que, na rea-lidade, sua função em nada está relacionada com a arte. Por que então colocar um apêndice dispensável ao corpo humano? O pê-nis de Davi, na Piazza della Signoria, em Florença, é incompara-velmente mais bonito. Na sua busca por verdade e sinceridade, os estudantes se voltaram contra as ciências, particularmente contra as ciências sociais, as instituições que as protegem e os homens que as praticam. Para a geração mais jovem, nossas dis-ciplinas não se apresentam tão desinteressadas e objetivas como pretendemos que sejam. Os estudantes se e ncarregaram de nos lembrar as implicações ideológicas do que fazemos e seu papel na preservação da ordem estabelecida, tanto quanto a ausência de critica social em nosso trabalho.

Eles nos acusam de nos refugiarmos na metodologia, sob o pretexto de que usar métodos adequados equivalentes na inves-tigação cientifica. Nós afirmamos que nosso interesse está nos

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problemas da sociedade. Eles nos respondem que nós, tranqui-lamente, ignoramos as desigualdades sociais, a violência política, as guerras, o subdesenvolvimento e o conflito racial. Pelo quanto eles conseguem perceber, nós estamos seguramente abrigados dentro do “establishment”.

Por vezes, tudo isso nos leva ao ponto de nos convencer que a ciência social é inútil. Mas um movimento político que perse-gue objetivos em longo prazo não pode se dar ao luxo de retirar apoio à ciência ou desprezar as contribuições que a ciência tra-zer. Não há dúvida de que muitos de nós preferiríamos ver o desenvolvimento de uma ciência do “movimento”, do que de uma ciência da “ordem” - para usar uma expressão corrente na Fran-ça. Como Martin Deutsch (1969) escreveu, em seu trabalho sobre barreiras organizacionais e conceituais à mudança social. Na verdade, muitos dos pressupostos implícitos das ciências susten-tam barreiras a uma mudança ou se constituem, elas mesmas, seu maior obstáculo. Infelizmente, porém, nem o marxismo, nem os países socialistas contribuíram para tal ciência do “movimen-to”.

O fato de que a maioria das ciências sociais, tais como a lin-güística, a antropologia, a economia ou a psicologia social se te-nham constituído ou desenvolvido, no século XX, sem uma signi-ficativa influência ou contribuição do marxismo ou dos marxistas é, com certeza, um fenômeno importante, para o qual deverá ser encontrada, algum dia, uma explicação; naturalmente, isso aplica ao próprio Marx, cujas idéias tiveram um profundo impacto. Mas o fato de que tal ciência do “movimento” não exista no momento não significa que não possa desenvolver-se no futuro assim como não há tabula rasa na história, eu poderia supor que quando, finalmente, isso acontecer, ela terá que pedir muita emprestada a seus predecessores. Mas isso não poderá acontecer se a crítica permanecer improdutiva. Não é suficiente reinterpretar como é muitas vezes feito na França de hoje - todo um campo de pesqui-sa, mostrando que as ciências sociais e a psicologia em particular dependem de pressupostos implícitos sobre a sociedade, ou so-bre uma ideologia que os psicólogos sociais não conseguiram abandonar. Essa reinterpretação à luz das idéias dos marxistas e freudianos, que pode ser entendida como uma hermenêutica, levou ao desenvolvimento de uma ontologia freudiano-marxista no pós-guerra alemão, enquanto em outros lugares da Euro pa (particularmente na França) isso resultou em uma epistemolo gia

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freudiano-marxista.

O sonho positivista de uma ciência sem metafísica - que hoje em dia é seguidamente traduzido na exigência de uma ciência sem ideologia - provavelmente não se tomará realidade. A meu ver, ninguém ainda conseguiu mostrar que, sendo as ciências nascidas (históricas), tenham elas conseguido libertar-se de suas raízes, fundamentadas em valores sociais e filosofias. Se alguma mudança foi obtida, foi precisamente na transformação destes valores e filosofias para construir elos de natureza distinta. A noção de uma completa independência da ciência social em rela-ção a conceitos pré-científicos é um conto de fadas que os cien-tistas gostam de contar uns aos outros.

A conferência sobre a qual The Context of Social Psychology está baseada foi organizada em resposta a demandas especifi cas. Nós assumimos a tarefa de discutir uma ciência que para al guns absolutamente não existe e, para outros, não existe ainda. Como já escrevi em outra oportunidade, a psicologia social que deve-mos criar deve originar-se de nossa própria realidade ou, pelo menos, de seus aspectos relevantes. Mas isso não tem sido, até o momento, o principal foco de atenção. Além do mais - seja isso bem-vindo ou não - o papel da ideologia na ciência e a rele vância política da ciência têm-se tornado mais importante do que nun-ca. Alguns problemas costumavam ser considerados por muitos como “extra científicos” e a própria ciência tinha o privilé gio da extraterritorialidade. Chegou agora o tempo de revisar estas noções. A ciência é uma instituição social e, como tal, é um objeto de análise como qualquer outro, da mesma forma que os experi-mentos e seus sujeitos estão engajados na interação so cial, como todos os demais. Mas, mesmo assim, a verdadeira questão é tão simples quanto fundamental: precisamos perguntar qual é a fina-lidade da comunidade cientifica. É ela a de apoiar ou de criticar a ordem social? É de consolidá-la ou de transformá-la? Exigem de nós, por toda parte, que definamos nossa posi ção a respeito des-se assunto. Não há dúvidas de que a paz acadêmica não será res-tabelecida em um futuro próximo e que torres de marfim conti-nuarão a desmoronar, uma após outra. É melhor aceitar isso co-mo um fato da vida do que lamentar um passado que, afinal, não foi, de modo algum, tão imaculado.

Nas páginas que se seguem, tentarei colocar algumas idéias sobre as mudanças e transformações que me parecem necessá-rias. Posso prever algumas objeções que serão levantadas. E meu

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pensamento, contudo, que algumas das criticas que se originam de vários grupos políticos, filosóficos ou mesmo científicos, po-dem seguramente ser ignoradas. Elas representam uma solução tanto fácil quanto simples, pelo fato de virem de uma falta de familiaridade com os conteúdos das ciências sociais. Refiro-me aqui a alguns textos publicados pela escola de Frankfurt, que são também discutidos neste livro por Ragnar Rommetveit (1972). Um movimento similar existe na França: Kant, Hegel e Marx são discutidos ad naus comparados e confrontados; os autores, po-rém, confrontam a própria imagem “adequada” que eles fazem das ciências sociais, como aquela encontrada nas concepções “dominantes”. Sua vitória, nesses escritos, já está assegurada e lhes dá a impressão de ter colaborado no avanço da ciência soci-al. Seria uma experiência interessante vê-los trabalhando e vê-los assim mostrar como podem concretizar o que sugerem. Na ciência, como em outras atividades, não é suficiente apontar uma falha ou apedrejar o pecador. É previsível que se um trabalho concomitante, para provar e validar o que se diz, não é também realizado, estes textos, escritos com tanto fervor, serão rapida-mente esquecidos.

Em grande parte das publicações européias existe uma ten -dência de atribuir aos americanos a maior parte da responsabili-dade de nossas falhas e de confundir a critica à ciência social com a crítica aos EE.UU. Isso é, para nós, muito fácil: são as pu-blicações que correm todos os riscos. Se nós somos “puros” é porque nós; não produzimos quase nada e não exploramos, como fizeram os europeus, a herança da psicologia, da psicologia social e da sociologia do pré-guerra. Estou convencido de que se a psi-cologia social subsistir como disciplina, a contribuição dada pela psicologia social americana vai permanecer e durar. Nos capítu-los que se seguem, serei crítico de muitos escritores americanos; a razão disso é que foram os americanos que fizeram a maior parte do trabalho. Na América, como na Europa, muitos psicólo-gos sociais - particularmente os das gerações mais jovens - com-partilham de uma preocupação com esses mesmos problemas.

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2. Quem coloca os problemas e quem dá as respostas?

É muito evidente que o desenvolvimento da psicologia soci-al foi diretamente influenciado por eventos sociais concretos. Por exemplo, o Fascismo e a Segunda Feira Mundial levaram Kurt Lewin a seu trabalho de tomada de decisões dentro dos grupos e aos tipos de grupo democrático, autoritário e laissez faire. Não é necessário muita perspicácia para entender que as necessidades do mercado e das indústrias de produção e servi-ços fornecem a base para muitas das pesquisas que hoje são fei-tas. É importante, contudo, analisar como a pesquisa reflete estas necessidades. E aqui que percebemos um dos requisitos cruciais para uma mudança radical. No momento atual, a sociedade (isto é, os grupos industriais e políticos, etc.) coloca as perguntas e também sugere que tipo de respostas deveriam ser dadas. Ilus-trarei isto com exemplos retirados de algumas poucas áreas de pesquisa.

Vamos começar com a dinâmica de grupo. Os temas centrais de pesquisa, nesta área, são a eficiência do trabalho e o funciona-mento do grupo, em um dado ambiente social. O problema real é o aumento da produtividade e a consecução de uma organização otimizada das unidades industriais e militares. Essa é a razão por que tudo o que pareceu não ser diretamente ligado à produtivi-dade, como a satisfação no trabalho, tem sido grandemente ne-gligenciado. Como Coffins & Guetzkow (1964) escreveram: “Como os primeiros estudos não conseguiram mostrar uma cor-relação positiva entre satisfação e produtividade, satisfação pa-rece ter perdido seu espaço, como uma das variáveis centrais da psicologia social” (p. 11). O ideal que é visado é o de um bom trabalhador, de um bom chefe de seção ou um bom funcionário; sua satisfação é determinada pela gerência. Deste modo, as redes de comunicação, bem como as estruturas de decisões e motiva-ções, são concebidas dentro do referencial de um sistema plane-jado para a redução dos custos e o aumento dos lucros.

Os estudos de mudança obedecem aos mesmos imperativos, como foi claramente mostrado na conhecida experiência de Coch & French (1953) sobre a resistência à mudança. O objetivo foi colocado antecipadamente: era a transformação de uma empresa industrial. A direção tinha dificuldades com os trabalhadores e

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para alcançar seus objetivos queria reduzir suas resistências. No estudo de Coch e French, tudo o que se referisse ás atitudes dos trabalhadores foi concebido como “resistência”, enquanto que as intenções da direção eram vistas como favorecendo “mudança” e, conseqüentemente, o progresso. Na realidade, absolutamente não se questionava a mudança no funcionamento global do sis-tema; o objetivo era conseguir o controle da transformação por parte da direção, o que, ao mesmo tempo, exigia que os trabalha-dores deveriam partilhar com ela seus objetivos e sua concepção do processo social, no qual estavam envolvidos.

Qual é o contexto, nos estudos de conflitos e teorias do jogo Os problemas são colocados antecipadamente, em uma perspec-tiva que é total e especificamente política: os antagonismos estão baseados em um conflito de interesses. É o conflito entre os EE.UU. e “URSS” que aparece por trás. Não é um co nflito no qual representantes de duas classes sociais, ou dois sistemas sociais, ou distintas ideologias estejam se confrontando. É um conflito de interesses entre dois estados nacionais. O mesmo tipo de racio-cínio foi aplicado ao Vietnã. Está baseado na idéia de que o con-flito seria resolvido tão logo cada um dos oponentes percebesse os interesses e estratégicos do outro. Não há dúvida de que há muitas divergências entre os psicólogos sociais sobre o modo de resolução a ser adotado. Em um excelente artigo, Michael Plon (1970) analisou a discussão a esse respeito entre Morton Deustsch e Harold Kelley. O primeiro tinha mostrado, experi-mentalmente, que a redução na ameaça e o au mento na comuni-cação, durante o conflito, podem estimular a cooperação. O se-gundo questionou esta tese em seus próprios experimentos e acentuou que, de alguma forma, era preciso uma exibição de for-ça para facilitar a resolução do conflito. Mas tanto as hipótese psicossociais como as receitas ai implicadas são, na realidade, um reflexo de duas opções políticas domina ntes.

De um lado, a tendência liberal, representada por Deutsch, com ênfase no diálogo e desenvolvimento da confiança; de outro, a opção de Kelley por uma realpolitik (política baseada na força), que é uma estratégia de negociação baseada na realidade do po-der. Tanto para um como para o outro, as opções existiam antes de eles iniciarem seus trabalhos de pesquisa nesta área da psico-logia social. Meu último exemplo é dado pela escola marginalista, que é dominante, hoje em dia, na economia política. Esta escola produziu um modelo refinado de processos de mercado, no qual

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os parceiros de uma negociação têm, cada um, suas ordenações de habilidades ou de preferências e, através de uma série de ne-gociações, tentam estabelecer um equilíbrio de preços, na distri-buição dos bens e nas satisfações de suas necessidades. Não es-tou preocupado aqui com a análise matemática usada neste mo-delo, ou com sua coerência lógica. 0 problema concreto é que este modelo está baseado em uma série de pressupostos psicoló-gicos responsáveis por uma visão de realidade social que é pro-fundamente individualista. De fato, o livro de Thibaut & Kelley (1959), que já mencionei, elabora a contrapartida psicológica desta teoria; aceita em gros suas premissas e as combina como modelo behaviorista de conduta. Como é muito bem sabido, Thi-baut e Kelley assumem que cada indivíduo tem, à sua disposição, uma espécie de 'relógio' interno, ou uma balança que determina o nível comparativo ("comparison level" - C.L.) que indicará o ganho que o individuo poderá obter caso se engaje em um rela-cionamento alternativo ao comportamento no qual está empe-nhado no momento atual. Se este ganho é maior, este indivíduo abandona o relacionamento atual, se não, fica com o ganho. Des-se modo, todas as relações so ciais são capazes de serem traduzi-das em termos de oferta e pro cura. A possibilidade de que uma demanda que reflete as necessidades de um indivíduo, ou que este ache que tenha direito a esta necessidade, possa ser satisfei-ta em outra parte de maneira melhor, define os limites do poder que uma oferta possa ter. É a partir deste núcleo de idéias que Thibaut e Kelley partem para a definição de normas de trabalho em grupos, de poder, etc. 0 que me pa rece significativo é a tenta-tiva de construir uma teoria dos processos coletivos na base de uma teoria individualista; e isto parece ter sido feito através da assimilação destes processos dentro do funcionamento de uma economia de mercado. 0 mercado é uma ins tituição social espe-cial, característica de um período histórico específico; todavia, uma teoria sociopsicológica geral está fundamentada sobre os princípios de seu funcionamento.

Minha preocupação não é, neste momento, com as bases ló-gicas desta linha de pesquisa ou com a validade teórica e experi-mental de seus resultados. É, antes, com o que ela exclui, quando se permite confinar-se ao contexto acima descrito. É surpreen-dente, então, que, no campo da dinâmica de grupo, nunca tenham sido feitas perguntas a respeito do modo pelo qual o grupo é um produto de sua própria atividade.Grupos não só se adaptam aos

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seus ambientes circundantes, mas também criam, de algum mo-do, estes ambientes e em alguns momentos os tratam como re-cursos e não como algo que exista pré-determinadamente. Em outras palavras, nós estamos defronte a um estudo de dinâmica de grupo, o qual, paradoxalmente, não mostra interesse na gêne-se do grupo (cf. G. de Montmollin, 1959; 196O). Se nós conside-rarmos o que aconteceu a nossa volta historicamente, podemos ver - e isto constantemente confirmado através de estudos etoló-gicos - os homens sempre criaram instituições coletivas e orga-nizações de que eles necessitam. A produtividade é, na realidade, apenas um produto secundário. A primeira tarefa de um grupo não é funcionar melhor, mas funcionar. Os trabalhos de Bavelas - por geniais que sejam - dão um exempla desta falta de interesse na atividade criativa humana, como ela é expressa na sociedade e nos grupos que se criam a si mesmos. Parte do trabalho feito Claude Faucheux e por mim (196O) estava interessado com o estudo da criação de um sistema de relações sociais em um am-biente. Claude Flament (1965) também tentou cobrir esta lacuna entre perspectivas “genéticas” e “produtivistas”. Mais recente-mente Jean-Claude Abric (1984) pôde mostrar que a maneira como os indivíduos concebem uma tarefa e os leva a criar uma forma de organização social que seja adaptada a esta concepção.

Comentários semelhantes podem ser feitos sobre os estudo de Coch e French (1953). A modificação social não pode apenas ser vista em termos de técnicas e controles ambientais. Há sem-pre dois fatores nela, que são os que iniciam as mudanças e os que estão em situação de recepção destas mudanças. Juntos, eles constituem um sistema de relações inter-grupais, com suas ca-racterísticas especiais. Este é um sistema de interações dinâmi-cas, em que cada uma das partes age sobre a outra. Além disto, a resistência à mudança é ingrediente necessário a toda mudança, não é um fator abstrato causal e deve ser considerado como uma conseqüência da situação social. A medida que o processo de mudança se desenvolve, a resistência a ele afeta tanto seu “re-ceptor” quanto seu “iniciador” de que a administração consultou psicólogos sociais, no caso tudo de Coch e French, é uma prova, em si mesma, de alguma mudança de perspectiva no iniciador, que se deveu à pressão exercida pela outra parte do sistema so-cial.

É, contudo, surpreendente que os autores tenham negligen-ciado, quase que por completo, os aspectos interacionais da ação.

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Eles não se perguntaram sobre a conduta da gerência, sua moti-vação, ou suas intenções, nem inves tigaram a história das re-lações entre a gerência e os trabalhadores. Desta forma, todos os aspectos pertencentes ã anál ise do sistema social total, como tal, são deixados de lado e uma situação intergrupal é transformada em uma situação de relações intragrupais. Todas as questões são reduzidas a problemas de motivação. A perspectiva geral conti-nua sendo a dos administradores, uma vez que as etapas do pro-cesso de mudança são definidas como “resistências”, isto é, como obstáculos às efetivas implementações do que deveria acontecer. O problema de quem deseja introduzir as mudanças e a cujos interesses eles irão servir não e nem sequer mencionado; nada é dito sobre o fato de que a resistência possa ser legitima, que suas raízes possam estar ligadas a uma situação objetiva e que talvez sela realmente necessária para os que resistem. Deve-se enfati-zar, mais uma vez, que o raciocínio dos autores implica fazer mudanças sem que ninguém resista a elas, ou melhor, que é ape-nas o grupo resistente quem está na origem das dificuldades, que o grupo pode simplesmente optar por aceitar o que está sendo proposto. Qualquer um que teve oportunidades de estudar situa-ções deste tipo sabe que os iniciadores da mudança, sejam ge-rentes ou administradores, são, freqüentemente, contrários a qualquer mudança que os afete; se exigem mudanças nos outros, é no sentido de manterem-se, eles mesmos, mais seguros em suas próprias posições (Moscovici, 1961a).

Para resumir, Coch e French adotaram uma definição parci-al de situação que lhes permitiu considerar as mudanças sociais como um meio de assegurar controle social; isto lhes perm itiu, em troca, considerar resistência como uma variável negat iva e acidental ao invés de reconhecer que é um aspecto positivo e necessário da situação. Finalmente, os autores tomaram relações sociais intergrupais de um ponto de vista intragrupal. Estavam dentes, contudo, da natureza intergrupal do problema, como se vê na passagem que se segue:

Neste conflito entre o campo de poder da gerência e o campo

de poder do grupo, o grupo tentou reduzir a força do campo

de poder hostil relativa à força do seu próprio campo de po-

der. Esta mudança foi conseguida de três modos: a) O grupo

aumentou seu próprio poder, tomando-se um grupo mais co-

eso e mais disciplinado; b) O grupo conseguiu “aliados”, bus-

cando o apoio do sindicato, na confecção de uma reclamação

formal sobre a nova medida; c) O grupo atacou o poder do

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campo hostil diretamente, na forma de agressão contra o su-

pervisor, o engenheiro de demarcação do tempo e a gerência

superior. A agressão, pois, não provejo apenas das frustra-

ções individuais, mas também do conflito entre os dois gru-

pos.

Mas os autores não se interessam por este conflito.

Não se pode dizer que o estudo do conflito, em psicologia social, tenha sido um exemplo de uma adequada análise científi-ca do problema. Este estudo se ressentiu de uma estreita depen-dência da teoria do jogo, a qual contribuiu, ela mesma, para a idéia de que as guerras são um meio normal para se resolverem diferenças entre nações e que elas podem ser sustadas a partir do uso de estratégias apropriadas - isto é, uma estratégia racio-nal. É surpreendente que, em uma época em que ideologias soci-ais e políticas desempenham um papel tão importante nos assun-tos humanos, tão pouco interesse tenha sido mostrado sobre seus efeitos nas condutas sociais e na definição da natureza dos conflitos. Indivíduos e grupos freqüentemente têm diferentes concepções da realidade e tão logo uma adequada análise seja feita da natureza destas diferenças, os conflitos de interesse ou de motivações tornam-se secundários. Descobre-se, então, que os adversários não partilham um referencial comum e não se referem aos mesmos aspectos dos problemas e que sua avaliação das perdas e ganhos não é, de modo algum, idêntica. Por causa de tudo isto, os adversários não têm uma linguagem comum, ou desejo de se comunicarem; se e quando um diálogo começar, o conflito já está quase resolvido. Qual é, então, o sentido de pro-por uma solução que consiste em sugerir que se façam tentativas de “compreender” o outro, de tal modo que a cooperação possa substituir a competição? A implica ção é a de que os oponentes nunca foram estranhos um ao outro e que, quanto mais lutarem, mais interesse terão em se tornarem es treitamente familiariza-dos. É também bastante sabido que a paz nunca foi obtida deste modo.

As mesmas considerações se aplicam às relações entre indi-víduos e pequenos grupos. Iria até mesmo mais longe: a alterna-tiva competição versus cooperação é irrealística ou, no mínimo, é apenas uma entre várias possíveis alternativas. Divisão de traba-lho, definição de limites e o exercício de influência e de poder, tudo isso representa outras formas de solução de conflitos, que podem ser repetidamente observados na história, como na vida

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diária. Eles merecem ser levados em conta, analisados e avalia-dos – ao menos teoricamente, se não na forma de experimentos.

isto me traz de volta à concepção econômica, que nós aceita-mos tão fácil e espontaneamente no desenvolvimento deste tipo de psicologia social imaginada pela teoria da troca e nos nossos modelos de pensar sobre conflitos e decisões. Aqui ta mbém nós estamos lidando com uma concepção individualística, no sentido de que considera tudo o que acontece em uma sociedade em termos de escolhas e decisões individuais. Esta concepção resu-me o campo de comportamento econômico a processos de utili-zação de meios que são considerados como dados antecipada-mente, com o objetivo de atingir metas que são também preesta-belecidas. Isto se aplica tanto aos meios que um indivíduo tem à sua disposição e às suas previsões, quanto aos procedimentos técnicos e sociais que podem ser empregados para alcançar, em longo prazo, objetivos e metas so ciais. A finalidade da teoria e-conômica se transforma, então, em um planejamento de distribu-ição, com a finalidade de conseguir uma satisfação otimizada de metas e necessidades preestabelecidas, através do uso de meios preestabelecidos. Pode-se dizer que, ao final, o ser humano tor-na-se desnecessário. Seria suficiente, para Pareto, “ter um retra-to de seus gostos”; depois disto, ele poderia desaparecer. Não há espaço, neste sistema, para um agente de conduta econômica, nem para processos socioeconômicos; há apenas re cursos escas-sos e necessidades financeiras excessivas, que têm de ser coor-denadas. E mesmo quando o fato de que uma economia de me r-cado possa ter suas incertezas chamar a atenção para a existên-cia de pessoas agindo dentro dela, não são levadas em considera-ção as incertezas que as pessoas possam ter sobre os recursos disponíveis a eles e sobre seus objetivos recíprocos.

É desta forma que alguns economistas projetaram as nor-mas e atitudes de uma sociedade capitalista, baseados nos pro-cessos de troca. Suas reconstruções “psicológicas” pertencem a este contexto, a ação humana é concebida como determinada pelos imperativos de uma economia de dinheiro e de lucro. Mas há ainda mais que isto. Tudo o que é social é simplesmente ex-cluído deste tipo de economia. Investimentos coletivos, gastos que não são canalizados através do mercado, ou da chamada economia externa, não estão incluídos nos seus dispositi-vos.Como conseqüência, decisões que são verdadeiramente cole-tivas, normas que determinam o modo de utilização dos recursos

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e as interações políticas - que são fenômenos bem diferentes das simples deliberações administrativas que levam a escolhas e decisões que são de interesse secundário - também estão fora de sua competência; também não estão incluídos os processos pelos quais os meios de ação se tornam possíveis e os objetivos se tor-nam definidos dentro de seu território porque, dentro de uma perspectiva individualística, são considerados como “dados” na natureza do Homem. Como resultado de tudo isto, esta versão da economia concebe uma imensa área da conduta humana como irracional, uma vez que, dentro de sua prática, tudo o que vai além do individualismo e tudo o que diverge um pouco de um modelo de capitalismo entra, por definição, no domínio da irracionalidade.

Qual é a fundamentação desta concepção? Primeiro, é uma racionalidade que é puramente cartesiana e mecânica. A conduta é pois, racional na medida em que ela se conforma aos princípios de conservação (os meios são dados uma vez por todas e são imutáveis) e de maximização (a busca de satisfação otimizada). Segundo, os cálculos são puramente individua is, pois são limita-dos às relações entre dois indivíduos. Mas, se os psicólogos ado-tam tais hipóteses, o que eles têm todo o direito de fazer, têm também de se dar conta de que seu universo intelect ual termina por confinar-se a um setor muito especifico da soc iedade e que estarão apenas interessados em uma pequena e especifica fração da humanidade.

A leitura de alguns estudos antropológicos, ou uma familia-rização com outras culturas, será ilustrativa a esse respeito. O dar, a reciprocidade, os laços de consangüinidade e de religião estão todos aí para mostrar os limites da lei de oferta e de procu-ra e também das teorias de psicologia social. De fato, a maneira como os processos de escolha e sua evolução são vistos na teoria da dissonância cognitiva não são compatíveis com as premissas de economia de mercado. Os importantes estudos experimentais sobre necessidades desenvolvidos por Zimbardo (1969) com-provam que as necessidades não podem ser consideradas ante-cipadamente como “dadas”. A pesquisa de Mauk Mulder sobre poder (1955) também contradiz, em muitos pontos, uma con-cepção desta matéria com base em princípios utilitaristas.

Mas eu devo lembras ao leitor que não é meu objetivo criti-car estas teorias e as pesquisas delas advinda, Desejo, em vez disso demonstrar o quanto as teorias estão presas às questões feitas e às respostas dadas, em um contexto especifico. Nossas

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chances de progresso e renovação dependem de nossa habilida-de de permanecermos abertos a aos problemas de nossa realida-de coletiva. Nós não fomos suficientemente receptivos a estes problemas na Europa, na verdade, alguma coisa importante e preciosa pode ser aprendida com a abertura e receptividade dos nossos colegas americanos. A sociedade muda e cria e suas de-mandas são importantes fontes de estimulação. Mas a nós cabe dar as respostas, ao menos tentar encontrá -las. Devido à nossa formação, nossas funções e nossas tradições, nós deveríamos estar em uma posição de analisar, examinar e colocar questões dentro de um referencial mais amplo.

Se o estudo dos conflitos e das maneiras de resolvê-los fos-sem colocados na perspectiva de todas as situações possíveis - isto é, daquelas acontecidas na história - e além do horizonte bem limitado das interações políticas, elas nos conduziriam a formulações de respostas que seriam diferentes destas que têm sido até agora vislumbradas. O mesmo se aplica às mudanças, às dinâmicas de grupo e mesmo à própria definição do que é social na conduta humana. De fato, é provável que, através de um pro-cesso de representação continuada, até as próprias questões poderiam ser transformadas. Por agora - e isto é o que eu desejo enfatizar de novo - os psicólogos sociais não tem feito nada mais do que operacionalizar questões e respostas que eram imagina-das em outras partes. E, então, os trabalhos em que eles estão engajados - em que nós todos estamos engajados - não é um tra-balho de análise cientifica, mas de engenharia, com todo o peso de metodologia que isto implica. A confusão entre ciência e en-genharia é muito marcante nas ciências sociais e particularmen-te na psicologia social. Por isso, parece-me que, se nós devemos permitir que a sociedade faça as pe rguntas - uma vez que isso está implícito na natureza de nossas atividades - é, em contrapo-sição, nosso dever elaborar e redefinir nós mesmos estas per-guntas. Esta é uma condição necessária para estabelecer um diá-logo verdadeiro, em que nós podemos re-descobrir a liberdade de analisar objetivamente todos os aspectos de um problema e de considerar os vários pontos de vista que emanam da socieda-de em que vivemos.

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3. O lugar da teoria em um mundo de fatos

3.1. O compromisso tácito

Devemos admitir que a psicologia social não é realmente uma ciência. Nós desejamos dar-lhe uma aparência de ciência, usando um raciocínio matemático e os refinamentos do método experi-mental; mas o fato é que a psicologia social não pode ser descrita como uma disciplina, com um campo unitário de interesse, um re-ferencial sistemático de critérios e exigências, um corpo coerente de conhecimentos, ou mesmo um conjunto de perspectivas comuns compartilhado por todos os que a praticam. Estaríamos próximos à verdade ao dizer que ela consiste em um movimento de pesquisa e metodologia que periodicamente atrai um conjunto de interesses diversos que, algumas vezes, conseguem enriquecê-la de maneira nova e inesperada; mas uma fundamentação sólido futuro não foi ainda construída.

Este movimento não é tal que siga em frente firmemente, em uma direção definida. De tempos a tempos, os interesses dos pes-quisadores são mobilizados por temas ou áreas, que parecem ser novos e importantes naquele momento; mas, cedo ou tarde, eles se mostram estéreis e inúteis, sendo então abandonados. As pesquisas se espalham, então, aqui e ali, de uma forma puramente aleatória, ao invés de ir acumulando e ascendendo a novos patamares. Esse movimento oscila entre dois pólos. O primeiro consiste em uma coleção de tópicos separados e não relacionados; por causa disto, por exemplo, qualquer um interessado em fazer pesquisa sobre pequenos grupos, ou em redes de comunicação, ou sobre compara-ções entre desempenho individual ou grupal, irá se identificar como psicólogo social. No pólo oposto, há uma ilusão de coerência, uma vez que as pesquisas são organizadas ao redor de temas gerais, como os processos de influência social ou de mudança de atitude, mas estes temas permanecem ecléticos e não estruturados. A a-brangência do assunto é dividida em “tópicos”,“clãs”, “escolas” e “estabelecimentos”, onde cada um tem o seu modo próprio de fazer perguntas, sua própria linguagem e seus próprios interesses; ainda mais, cada um se desenvolve, a partir de suas peculiaridades, seu

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próprio critério de verdade e excelência. Deste modo, psicologia social é, ao mesmo tempo, um campo cercado ao redor e um mosai-co; nossa aparência de coesão é devido a pressões externas, mas nossa dependência de interesses, técnicas e ciências diversas conti-nua a nos separar uns dos outros.

Parece-me que a criação de um sistema de atividades teóricas é essencial para o desenvolvimento coerente do tema. E a ausência de tal sistema que é o principal obstáculo para que se possa dar res-postas que poderiam ser relevantes para as questões que nos são feitas pela sociedade. É unicamente um referencial compartilhado de critérios e princípios, que pode permitir aos cientistas libertar-se de pressões externas, de levar em conta os aspectos relevantes da realidade e serem críticos, tanto de sua própria atividade como da atividade dos que os patrocinam. As teorias determinam não ape-nas o que é “interessante”, mas também o que é “possível”. Mas elas não surgem do “nada”; são o resultado de um empenho coletivo e das inspirações coletivas daqueles que são os usuários de tal disci-plina. O ponto sobre o qual eu desejo insistir é que toda nossa “ideo-logia científica” - para tomar um termo usado por Henri Tajfel - se constitui em um obstáculo para este tipo de desenvolvimento em psicologia social. Três aspectos desta ideologia são, no meu ponto de vista, particularmente importantes.

O primeiro é a predominância de uma epistemologia positivis-ta. Seu dogma principal é que os fatos são “dados” na realidade cir-cundante e podem ser indutivamente isolados, através de uma des-crição das regularidades e que a experimentação é a marca regis-trada da ciência. Nessa perspectiva, a teoria é uma linguagem e uma ferramenta, ambas subordinadas ao método empírico e a ele su-bordinadas cronologicamente. Nós não estamos muito claros sobre nossa identidade, e como conseqüência, para nos tornarmos “cien-tistas”, nós tentamos seguir, tão próximo quanto possível, as nor-mas predominantes, das quais nós derivamos nossa ênfase com respeito ás técnicas estatísticas e experimentos e o ritualismo que os acompanha. Muitos de nós trabalhamos pacificamente em nos-sos cantos, guiados pela idéia de que, no momento, é essencial acu-mular fatos, que lido nos ajudar, um dia, na construção de uma es-trutura conceitual.

Em segundo lugar, a negligência da atividade teórica resulta em uma espécie de compromisso tácito, pelo qual evitamos encarar as questões sobre a natureza das leis, com as quais nossa disciplina está relacionada e sobre seu modo de validação. Isso se reflete em

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conflitos entre observação e experimentação e entre o papel do “psicológico” e o papel do “social”. A linha divisória entre ob-servação e experimentação não é devida, em nossa disciplina, a uma distribuição de tarefas ou a uma especialização das técnicas de pes-quisa; antes, ela é devida a diferenças nas estratégias de pesquisa determinadas pela natureza dos problemas que estão sendo estu-dados. Isto se constitui em uma verdadeira ruptura, que divide a comunidade científica tão profundamente que nós somos tentados a perguntar se não estamos lidando com duas espécies diferentes de cientistas, ou duas disciplinas distintas. Optar por uma ou por outra dessas disciplinas é como tornar-se membro de um clube, ao qual alguém só pode se filiar, se aceitar um credo, que não necessita de justificativa, nem de explicação. O jogo é todo realizado entre estes dois clubes e as criticas mútuas eliminam toda a possibilidade de uma reaproximação, apesar de que tentativas sejam ainda feitas, aqui e ali, para criar esta possibilidade. As críticas que cada lado faz ao outro são bem conhecidas. Psicólogos sociais experimentais são acusados devido à artificialidade das situações que eles usam no estudo dos fenômenos sociais e, conseqüentemente, pelo fato de que seu método científico é inadequado para a compreensão da realidade social. Não-experimentalistas, são acusados pelo fato de que a complexidade dos processos sociais não pode ser apanhada no contexto “natural” e que sua simples coleta de dados não é um procedimento capaz de provar uma verificação rigorosa das hipóte-ses que podem ser seguidas pela observação. O argumento contra eles gira ao redor do fato da incompatibilidade de sua visão da rea-lidade social, com um modo de proceder propriamente científico.

A verdadeira questão que está aqui em jogo é a definição da teoria sociopsicológica e sua validação. Para os experimentalistas, as interpretações post hoc dos fatos observados - por mais coe-rentes que sejam - não podem resultar em conceitualizações ver-dadeiramente científicas e não podem, por isso, servir de funda-mentação para uma ciência. Os não-experimentalistas encontram pouco interesse nas hipóteses que formam a infra-estrutura dos experimentos; predição eficiente é obtida, de acordo com eles, às custas do menosprezo da maioria dos parâmetros e ao mesmo tempo da perda da especificidade do que esta sendo estudado. Uma articulação comum das duas abordagens toma-se mais difícil, pois as teorias que levam à experimentação têm uma estrutura que dife-

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re daquelas que se originam de uma observação sistemática. E as-sim, é muito mais confortável não levantar estes problemas muito freqüentemente, não encarar possibilidades diversas ou estimular paixões e deixar a escolha das direções futuras a passagem do tem-po e a “seleç~o natural”.

Mas se uma escolha deve realmente ser feita, nossas generali-zações conceituais penderiam em uma direção “psicológica” ou “social”? A aceitação de uma perspectiva psicológica significa, fun-damentalmente, que a psicologia social tornar-se-ia um ramo da psicologia geral cuja função seria aprofundar nosso conhecimento de problemas muito gerais, tais como percepção, julgamento ou memória que permanecem imutáveis através de seus modos e con-dições de operação e produção.Os dados da psicologia social nos habilitariam a nada mais do que especificar mais detalhadamente algumas variáveis no comportamento humano ou animal que, em última análise, são redutíveis a leis da psicologia “animal” ou “indi-vidual”, da psicofísica ou psicofisiologia.Assim, por exemplo, a per-cepção social poderia ser estudada da mesma maneira que a per-cepção auditiva ou visual; fenômenos sociopsicológicos, tais como processos de influencia, de mudanças de atitude ou de solução de problemas em grupo não seriam nada mais do que casos especiais de princípios condicionantes ou motivacionais, aos quais se pode-riam aplicar as leis gerais da aprendizagem.O trabalho de Zajonc (1966) é um excelente exemplo desta tendência.

Este tipo de extensão pressupõe uma aceitação implícita de três postulados. O primeiro é que a diferença entre processos so-ciais e processos não-sociais elementares é somente de grau e que uma hierarquia entre os fenômenos pode ser estabelecida, na qual eles podem ser ordenados, dos mais simples aos mais complexos e dos individuais aos coletivos. O segundo postulado é que os pro-cessos sociais não implicam na existência de fenômenos sociais, governados por suas próprias leis, mas que eles podem ser expli-cados por leis psicológicas, que podem, ao mesmo tempo, se basear em hipotéticas leis da fisiologia. O postulado final é que não há dife-rença de gênero entre comportamento social e não-social. As outras pessoas intervêm somente como parte do ambiente geral. A doutri-na inicial de F.H. Allport (1924) continua sendo o credo de muitos psicólogos sociais: “O significado do comportamento social é o mesmo do não-social, isto é, a conexão de um desajuste biológico do indivíduo ao seu ambiente. Nos outros e através dos outros, muitos de nossos mais urgentes desejos são preenchidos; e nosso compor-

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tamento para com eles está baseado nas mesmas necessidades fun-damentais, assim como nossas reações para com os objetos, sociais ou não-sociais” (p.3-4).

Opondo-se a esta tendência, embora ainda timidamente, há uma outra linha de pensamento que tende a conceituar processos sociopsicológicos de um ponto de vista sociológico. Exemplos disto são as pesquisas sobre estruturas de pequenos grupos, sobre hie-rarquia de papéis e status através dos quais é definida uma identi-dade individual e sua posição social, sobre comunicação de massa, sobre quadros referenciais e sobre relações intergrupais. Psicologia social, aqui, vem a ser um meio de estudo - se possível no laborató-rio e com métodos que provarem sua utilidade - dos processos so-ciais, que existem, em larga escala, na sociedade global.O estudo - da cultura é um outro exemplo - embora ainda mais marginal para a psicologia social - de uma aproximação similar; este estudo subor-dina mecanismos psicossociais ao contexto social cultural do com-portamento, ao referencial social dos aspectos fundamentais do funcionamento psicológico, ou aos aspectos culturais dos processos de aprendizagem e socialização.Em contraposição - como Claude-Faucheux (197O) claramente mostrou - o estudo transcultural, na psicologia social, esqueceu completamente as dimensões compa-rativas propriamente culturais ou sociais.

Entre psicólogos sociais foi, incontestavelmente, Sherif quem perseguiu, de forma mais constante, a tentativa de generalizar, do laboratório para a sociedade como um todo. O mínimo que se pode dizer é que, como resultado, ele não conseguiu muita popularidade. A prova disso está evidente no livro de Deutsch & Krauss (1965), sobre a teoria em psicologia social, no qual nenhuma referência é feita, tanto à sua pesquisa, quanto a sua posição teórica. Este lapso é, obviamente, o resultado de um consenso tácito. Se o problema de generalização tivesse sido tomado mais seriamente, teria sido im-possível negligenciar este tipo de orientação e evitar uma tentativa de esclarecer os problemas que resultam daí. Neste livro estes pro-blemas são enfrentados diretamente por Israel, Rommetveit e Taj-fel, que os discutem dentro de seus próprios pontos de vista; assim, fazendo, eles nos forçam a enfrentar dificuldades que muitos prefe-ririam esquecer e outros poderiam considerá-las fora de moda. Contudo, os problemas estão aí e eles continuam, permanentemen-te, como pano de fundo de nosso trabalho. Eles não necessitam, talvez, serem resolvidos antes de fazermos nosso próximo experi-mento; mas nós precisamos buscar uma solução para eles, se nós

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queremos nos engajar na construção de uma teoria.

Por último, mas não menos importante, a fuga da teoria, ou do debate teórico, tem também seus aspectos emocionais. A ciência social, incluindo a psicologia social, se desenvolveu em confronta-ção com a filosofia. Como resultado, existe um tipo de medo reativo de sermos indulgentes à especulação “filosófica”. A manipulação de idéias é, portanto, aceitável em condições que leve, mais ou menos diretamente, à experimentação ou, alternativamente, se ela for ca-paz de uma formalização matemática, que ofereça ao menos uma aparência de “respeitabilidade”, ainda que fraca ou duvidosa. Por causa da insegurança generalizada, o campo das ciências sociais se tornou tão repressivo que acabou por tomar a ciência completa-mente sem interesse; os problemas fundamentais do homem e da sociedade se perdem em uma nuvem de “campos” fragmentados e técnicos que conseguem desviar talentos genuínos e em esfriar todo o entusiasmo. Os experimentos jogam um papel negativo, co-mo um obstáculo ou um aviso, possibilitando-nos apenas provar ao mundo que estamos fazendo ciência e não filosofia. Se nós perder-mos a marca desta identidade, nós perderemos também toda nossa segurança e não saberemos se nossas construções teóricas podem ser reconhecidas como “científicas”. Mas tudo isso não é mais que uma armadilha; nem os métodos, nem as linguagens formais, garan-tiram jamais o caráter “científico” de coisa alguma. De qualquer modo, por que deveríamos nos desesperar, se nem começamos. Nem tudo, em ciência, é “científico”. Teorias biológicas sobre a ori-gem da vida ou teorias cósmicas sobre a estrutura do universo ain-da não chegaram a este nível.

3.2. Algumas conseqüências para a pesquisa e a teoria

O peso do positivismo, as tensões entre métodos observacio-nais e experimentais e o medo da especulação são as causas do len-to desenvolvimento da teoria em psicologia social. Uma das conse-qüências é o respeito do genuíno senso comum, da psicologia dos aforismos tidos como seguros. Não insistirei neste tema delicado; como é bem conhecido, o tema contribui enormemente para acusa-ções de trivialidade, que são, muitas vezes, jogadas sobre nós. Gos-taria, contudo, de fazer alguns comentários sobre o assunto.

Tem-se como aceito por todos que o senso comum é algo que é compartilhado de uma maneira mais igualitária que qualquer outra coisa no mundo.

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Isto não reflete, entretanto, um conjunto de dados estável ou imutável, correspondente à existência de uma versão validada fir-memente pela realidade. Pelo contrário, é um produto da cultura, que, em nossa sociedade, é mesclado com teorias científicas. Em um estudo sobre a imagem pública da psicanálise (Moscovici, 1961/1976) descrevi a extensão da penetração da teoria psicanalí-tica no senso comum do pensamento quotidiano, nas discussões e interpretações das ações das pessoas. Claudine Herzlich (1969) analisou fenômenos similares na nossa concepção de saúde e do-ença. Da mesma forma, o vocabulário marxista é parte e parcela de nossa herança e de filosofias espontâneas de milhões de pessoas. O mesmo é verdadeiro sobre o behaviorismo, a sociologia funcionalis-ta, os modelos econômicos e sobre a avaliação da ação - em termos históricos ou probabilísticos- Respeitar, pois, o senso comum, é respeitar teorias que aceitamos implicitamente. Mas nós devemos também aprender a desconfiar da “sabedoria popular”. O fato de que o senso comum esteja de acordo com nossas intuições não pro-va nada mais que a existência de um consenso. O socialista alemão Babel costumava dizer que sempre se preocupava quando estava de acordo com seus adversários ou quando estes concordavam com ele. Eu penso que o psicólogo social deve ter a mesma atitude, quando observa ou descobre que seus resultados apenas confir-mam algo que é conhecido por todos.

Isto não quer dizer que devamos nos esforçar para sermos ori-ginais a todo custo. E mais, em ciência só é descoberta verdadeira aquilo que é surpreendente e original. É por isso que nós precisa-mos tentar aceitar as coisas pelo que elas são em nossa disciplina. No seu inicio, a psicologia social tinha a tarefa de verificar certas hipóteses e interrogações, mesmo que elas não fossem muito dife-rentes daquilo que todos aceitavam tranqüilamente. Chegou agora o tempo de reconhecer que precisamos deixar esse primeiro es-tágio para trás e seguir adiante. Multiplicar experimentos para re-descobrir o que é óbvio pode conduzir unicamente a uma situação paradoxal. De fato, a principal razão de ser do método experimental é inventar e validar novos resultados de uma teoria ou produzir efeitos inesperados. Se nós fazemos experimentos que não tenham estas características e que não façam mais que confinar em um la-boratório o que já se encontra difundido na cultura, nós pro-cedemos de uma maneira não-experimental. Nossos experimentos se tornam, então, um tipo de observação sistemática, dirigida a co-locar em números e descrever em livros as crenças que foram

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transmitidas pela tradição oral. Desta forma, muitos experimentos sobre influência social, sobre os efeitos da maioria, sobre liderança ou sobre ameaça, nada mais são do que uma longa entrevista que fazemos junto à sociedade, sobre sua teoria social.

Entretanto, o domínio do senso comum é apenas uma conse-qüência da ausência de esforço teórico; a mortalidade e a esterili-dade dos achados em algumas áreas de pesquisa são outra. Estudos sobre dinâmica de grupo e sobre as redes de comunicação de Bave-las são um exemplo claro disso. Não estarei muito errado em afir-mar que devem existir cerca de cinco mil artigos sobre estes tó-picos; este número é provavelmente subestimada Muitos destes estudos não são mais que validações do folclore industrial e minia-turizações de situações reais; eles praticamente não contêm valor de informação cientifica. Os livros que foram escritos sobre estes estudos e as autópsias que foram feitas sobre eles têm revelado que, na maioria dos casos, estavam completamente vazios de pre-ocupação com problemas conceituais. Como McGrath & Altman (1966) escreveram: "A produção da pesquisa continuou crescendo a um ritmo intenso. A teoria era mínima durante a maioria dos anos 50 e tem continuado assim até o presente momento" (p. 9). Por estas razões, os autores das várias revisões deste campo se re-duziram à compilação de bibliografias ou, no máximo, a apresen-tação de listas classificadas de resultados; não se pode, realmente, dizer que o que sobrou é um conjunto de proposições confirmadas ou de variáveis adequadamente definidas. Suspeito que o mesmo é verdadeiro para o estudo sobre conflito.

A terceira conseqüência da ausência de interesse na teoria é o isolamento de várias áreas de pesquisa, ou melhor, o fato de não terem sido feitos esforços consistentes para chegar a generaliza-ções teóricas. Com respeito, por exemplo, ao trabalho sobre con-flito, alguém poderia perguntar se sua principal preocupação era com os processos do conflito que são centrais a todos os fenômenos psicológicos ou sociais - ou com ações particulares ditas "conceitu-ais". Como é sabido, o último caso é verdadeiro; não foi feito ne-nhum esforço para analisar as relações entre esta área particular do comportamento e os processos centrais do conflito ou para ver como eles se manifestam em vários tipos de situações reais. Como eu não estou muito familiarizado com este campo de trabalho, não irei discuti-lo mais a fundo; em lugar disso, tomarei, como exemplo um problema que está mais próximo dos meus próprios interesses e no qual tem sido despendido grande quantidade de trabalho, nos

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últimos anos: este é o fenômeno da mudança de risco ("risky shift").

Em primeiro lugar, vamos descrever brevemente o bem co-nhecido paradigma usado nestes estudos. Os sujeitos são geral-mente confrontados com escolhas entre várias alternativas, envol-vendo uma mudança na situação, nas relações com iguais, etc. de uma pessoa. Cada uma das escolhas representa vários graus de risco, para a pessoa que os escolhe. Trabalhando sozinho, cada su-jeito faz dez ou doze escolhas. Os sujeitos são, então, colocados jun-tos em grupos de vários tamanhos e solicitados a selecionar, para cada problema, um nível de risco unanimemente aceito por todos os membros do grupo. Uma vez completada a discussão do grupo, os sujeitos são novamente separados e novamente lhes é solicitado que indiquem sua preferência pessoal para a solução de cada pro-blema. Chega-se à conclusão que os grupos geralmente se inclinam para soluções de mais risco do que os indivíduos.

Descobriu-se isso por acaso. Na ciência e na tecnologia, acha-dos ocasionais desse tipo foram sempre muito explorados. Uma boa dose de atenção tem sido dada á mudança de risco porque, desde os experimentos iniciais de F.H. Allport e de Sherif, afirmou-se que, em situações sociais, as opiniões individuais e os juízos tendem a con-vergir em direção à média e afastar-se das posições extremas. All-port atribui esta tendência à natureza ra cional das decisões coleti-vas, que se colocam em oposição ao comportamento espontâneo da multidão, caracterizado por juízos extremos e ações irracionais. Assim, os resultados sobre os experimentos de risco, que foram replicados muitas vezes, constituem uma exceção a um tipo de con-duta que era considerado como universal. Isto fez surgir duas ques-tões: a primeira dizia respeito às condições em que era possível produzir uma "mudança conservadora" e a segunda questão era por que os grupos assumem mais riscos que os indivíduos.

Mudanças conservadoras raramente foram conseguidas em experimentos; quando isso aconteceu, foi através do fato de se dar mais ênfase às dimensões éticas do risco. No todo, foi de uma difi-culdade frustrante produzir tal fenômeno.

Diversas explicações da mudança de risco têm sido propostas. Wallach, Kogan & Bem (1964) trazem a hipótese da difusão de responsabilidade no grupo: sendo que cada indivíduo no grupo sente menor responsabilidade do que quando toma decisões indi-viduais, ele ousa correr mais riscos. Brown (1965) parte da idéia que, em situações individuais, as pessoas estão em um estágio de

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"ignorância pluralística", o que os força a serem cautelosos. Quando eles se encontram em uma situação social, eles abandonam a caute-la e tomam posições extremadas, particularmente porque o risco tem uma conotação de valor positiva em nossa sociedade. Final-mente, Kelley & Thibaut (1969) afirmam que existe uma "retórica do risco", isto é, a argumentação em favor à tomada de um risco tem sido mais convincente e elaborada do que a pregação do con-servadorismo. Além disso, alguns autores tentaram demonstrar que correr um risco depende de características pessoais e, con-seqüentemente, está relacionado à influência exercida em um gru-po por seus membros mais extremados.

Minha opinião é de que, se todas as teorias têm alguma verda-de, uma coisa é, então, certa: mudança de risco não apresenta inte-resse como objeto de estudo e não merece os esforços da análise experimental e teórica despendidos nela. Realmente, se tudo se resume na combinação de questões sobre influência, de retórica, de personalidade e de conformidade às normas, então mudança de ris-co não é nada mais que um fenômeno secundário e seria mais útil estudar influência ou conformismo, diretamente. Juízos sobre risco podem ser vistos, então, como não diferindo, de maneira alguma, de juízos que são feitos sobre o amor, agressão ou drogas. E se estes demonstram o tipo de mudança achado, no caso, de risco, a lógica implícita às teorias supramencionadas nos poderia levar a propor uma teoria sobre mudança amorosa, mudança agressiva, ou mu-dança aditiva. Poder-se-ia, pois, multiplicar indefinidamente os exemplos e chegar, finalmente, uma "teoria' específica para cada um destes aspectos da conduta social. Para completar o quadro, al-guém poderia progredir em direção a alguma destas “sínteses” ou “comparações”, concluindo, talvez, que a mudança de risco dos a-lemães é maior que a dos franceses, de que não existe distinção entre “mudança amorosa” e “mudança culinária” e, finalmente, que, no conjunto, mais riscos são assumidos quando em grupo. De uma maneira, então, puramente indutiva e post hoc, nós podemos repro-duzir ad infinitum um fenômeno que foi primeiramente descoberto por acaso. Todas as pesquisas poderiam concentrar-se, então, sobre o risco, sem lançar nenhuma nova luz sobre os fenômenos cogniti-vos ou sociais.

Mas um problema bem diverso surge se um fenômeno estra-139

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nho - estranho no sentido de que contradiz princípios geralmente aceitos - nos leva a perguntar sobre as implicações gerais que ele possa ter. Por exemplo, quando os físicos souberam das descober-tas de Roentzen, não gastaram muito tempo questionando sua va-lidade ou investigando suas diversas manifestações; eles indagaram imediatamente sobre sua influência na teoria da matéria. Quando Kogan trabalhou um tempo em meu laboratório, nós discutimos seus experimentos; eu adotei uma atitude que me pareceu guiada pelo mesmo interesse pela generalização e tentei ir além das expli-cações especificas do fenômeno da mudança de risco, permanecen-do no nível de sua significância básica, que é ser uma exceção à lei aparentemente “universal” da influencia do grupo sobre o indiví-duo. Isto conduz à primeira questão: É esta mudança devida ao conteúdo semântico, ou a outra propriedade deste conteúdo? Uma breve análise levou à formulação de uma hipótese bastante segura: a maioria dos estudos que têm demonstrado a convergência de opiniões em um grupo usaram estímulos que não apresentam im-portância significativa para os sujeitos e não provocaram qualquer compromisso mais sério.

Tornou-se importante, então, verificar se o mesmo efeito podia ser obtido usando escalas de avaliação de atitude que contivessem esta característica de “significância” e de “compromisso” que faltava à escala anterior. O ponto seguinte dizia respeito à diferença entre mudança “de risco” e mudanças “conservadoras”: o único interesse que isto pode ter, tem sua origem no aspecto de conteúdo semânti-co; é somente devido a isso que o direcionamento do juízo se torna importante e onde nós encontramos dois fenômenos distintos. Em contraposição ao ponto de vista psicológico, ou mesmo social, a questão mais importante é se estamos frente a um e o mesmo fe-nômeno ao qual, erradamente, se tem dado duas diferentes explica-ções. Isto significaria proceder de acordo com um tipo de epistemo-logia aristotélica que distingue entre movimentos para cima e para baixo, entre movimentos circulares e movimentos em linha reta e que oferece uma teoria diversa para explicar cada um. 0 tratamento de Galileu para os mesmos problemas abandona a descrição da diversidade e tenta separar a unidade e a natureza comum das for-ças envolvidas, Se um corpo sobe ou desce está sempre sujeito à gravidade e é a gravidade que precisa ser estudada.

Da mesma forma, se o julgamento de um grupo é mais conser-vador, ou mais de risco, do que o de seus membros individuais, isso

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reflete o mesmo fenômeno; especificamente, o afastamento da mé-dia ou a polarização de atitudes. Experimentos sobre familiarização têm dado a impressão, a certo ponto do trabalho, que os indivíduos podem demonstrar extremismo em seus julgamentos, sem nenhu-ma intervenção da interação social. Este fenômeno foi confirmado em experimentos subseqüentes. Mas no experimento de Kogan & Wallach (1964), cuja validade não foi questionada por ninguém, foi demonstrado que os indivíduos correm riscos maiores depois de discutirem o questionário dos dilemas de escolha e sem terem che-gado a consenso algum. Por isso, tudo o que se pode dizer é que indivíduos chegam a opiniões mais extremadas depois da interação social; não se pode afirmar que grupos correm maiores riscos que os indivíduos. As várias teorias mencionadas acima foram, pois, muitas tentativas de resposta a urna questão que não existe. Mas outra questão, que não foi ainda levantada, existe e deveria ter sido respondida, pois ela motivou o interesse inicial sobre mudança de risco. Porque, por exemplo, a decisão do grupo tende ou para uma conciliação (para a média) ou para a polarização? Em outras pala-vras, por que se observa ou uma média ou uma polarização?

Em relação a esta questão, dois pontos deveriam ser discuti-dos, que são importantes para os modos gerais de procedimento em psicologia social. Primeiro, a questão que há pouco formulei em um nível teórico foi sempre feita puramente em termos técnicos. Por exemplo, a análise estatística da mudança de risco é geralmente conduzida da seguinte forma: primeiro, a média é calculada, isto é, o valor numérico que expressará consenso se os indivíduos se com-portarem de acordo com a lei da convergência; então, a diferença entre este consenso “teórico” e o consenso que realmente aconte-ceu é usada como uma medida de “mudança”. Conseqüentemente, a relação entre a convergência ou polarização dos grupos é conside-rada simplesmente em termas estatísticos.

O segundo ponto refere-se aos obstáculos à generalização. O pouco interesse dado ao conteúdo semântico impede todo avanço em direção a fenômenos mais fundamentais. Assim, se nós enfo-carmos exclusivamente o risco, nós estaremos lidando com uma exceção à lei geral, que pode ser distorcida e mudada, antes mesmo de chegar ao ponto de analisar o que é excepcional a respeito dela e por quê. A possibilidade de sua contribuição para questionar um modelo ou um conceito teórico não pode ser explorada, até que

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cessemos de nos concentrar sob este aspecto particular. Deste mo-do, o concreto aprisiona o abstrato. O experimento de Moscovici e Zavalloni (1969), de Doise (1969) e de Fraser et al. (1971)demonstraram que o efeito de polarização deve ser conside-rado dentro de um referencial mais geral que o de mudança de ris-co, que é apenas um caso especial de outro fenômeno. Outros expe-rimentos nos possibilitaram estudar as condições em que tanto a convergência para a média como a polarização de grupo poderiam ser obtidas com os mesmos itens inicialmente usados para de-monstrar a mudança de risco. Mas isto apenas foi possível porque os problemas levantados no início foram modificados, com o fim de integrar a descoberta inicial dentro de um contexto mais amplo. Tornou-se então óbvio que o fenômeno modificado é de relevância imediata para a decisão social. É também importante para os pro-cessos de avaliação e de mudança de atitude, para generalização e a soma de categorias sociais e para relações intragrupais - e mesmo intergrupais-na formação do preconceito. Os estudos de Anderson (1968), Sherif et al. (1965), Tajfel & Wilkes (1964) e Fishbein &Raven (1962) confirmam estes pontos de vista. Logo, a tarefa hoje é achar uma explicação para a totalidade destes resultados e o es-tudo da mudança de risco feito de forma isolada perde totalmente seu interesse.

3.3 Para uma teoria flogística

O respeito ao senso comum, a proliferação de estudos experi-mentais carentes de preocupações teóricas e o isolamento de várias áreas da pesquisa em psicologia social combinam-se para explicar o acúmulo de fatos e noções que não resultam em um progresso real, pois que eles não estão conceitualmente integrados e nenhuma teoria, concretamente, foi desconfirmada ou substituída por outra. Os conceitos empregados tiveram sua origem em outros campos; modelos teóricos coexistem, lado a lado, em uma relação que não se constitui nem em um verdadeiro diálogo, nem em uma contradição fecunda. E por isso não é surpresa que os fatos estabelecidos empi-ricamente nada mais sejam que uma coleção heterogênea, do mes-mo modo que as teorias, das quais eles supostamente dependem. Os experimentos e estudos empíricos não são realmente capazes de confrontação, dentro de um referencial comum; os resultados con-traditórios publicados sobre o mesmo fenômeno raramente condu-zem a uma análise conceitual que poderia levar a uma decisão e transformar nosso conhecimento.

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Esta situação é refletida nos livros de texto. Os mais úteis den-tre eles adotam um vago esquema referencial que os possibilita, quando muito, a classificar uns poucos resultados empíricos, que são geralmente apresentados fora de seu contexto teórico - su-pondo que tal contexto exista. Exemplos contraditórios raramente são levados em consideração e, quando o são, é de maneira abstrata e longínqua. Como resultado, os estudantes ficam com a impressão de uma disciplina bem ordenada e fecunda - pela simples razão de que os pontos difíceis ou contraditórios foram ignorados.

O que acontece quando uma teoria aparece? Como é ela apre-sentada, criticada ou entendida? A teoria da dissonância cognitiva é um caso em questão (Festinger, 1957; 1964). É verdade que esta não é uma verdadeira teoria psicossocial, mas não há dúvida de sua importância como uma descoberta intelectual, sua habilidade para estimular a pesquisa, ou sua originalidade de perspectiva. Em uma ciência adequadamente construída, uma teoria deste tipo tornar-se-ia imediatamente um ponto de partida para novos conceitos, que a integrariam em um contexto sociopsicológico e a traduziriam em termos verdadeiramente sociais. Sua sorte foi radicalmente diversa. Com exceção de Bem (1965), o interesse se centrou inteiramente nos detalhes de metodologia. Em um artigo famoso, Chapanis e Chapanis (1962) dedicaram sua atenção ao modo de seleção dos sujeitos e a pontos referentes ã estatística. Outros criticaram Fes-tinger porque ele foi incapaz de prover uma medida da dissonância e estava, portanto, impossibilitado de fazer predições. E tudo parou ai. Muitos psicólogos sociais continuaram a trabalhar na teoria do reforço social ou na teoria da troca, como se a teoria da dissonância cognitiva não existisse e não contradissesse os próprios princípios comportamentais que eles tinham como certos. Se eles tivessem realmente assumido estes princípios com seriedade, uma contro-vérsia criada pela teoria da dissonância ter-se-ia tornado um centro de atividade intelectual. Poder-se-ia imaginar os químicos continu-ando calmamente a pesquisar, cada um em seu pequeno canto, en-quanto alguns acreditavam em flogística e outros em oxigênio? É óbvio para qualquer pessoa familiarizada com a história das idéias que o progresso real emerge da confrontação teórica e os fatos e métodos têm um papel relativamente menos importante. Mesmo que Festinger e seus discípulos não se enquadrem completamente ao ritual experimental, os fatos que eles demonstraram retêm seu interesse e importância. Os fatos estabelecidos por Piaget, na base de uma teoria sólida e coerente, também não conseguiram se en-

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quadrar em todas as regras do jogo - e ainda assim eles sobrevive-ram à passagem do tempo e aos ataques dos críticos.

Festinger e seus discípulos foram freqüentemente criticados por sua tendência a buscar resultados que não eram óbvios e que discordavam do senso comum. Esta é uma objeção que é surpreen-dente, mas que é significativa. Isto mostra quão distante está nossa concepção de experimentação do verdadeiro pensamento científico. Escrevi anteriormente que a experimentação deve sempre ter como finalidade a invenção e a criação de novos efeitos. As ciências natu-rais são ciências de efeitos; diferentemente destas, as ciências soci-ais - e particularmente a psicologia social - permanecem ciências dos fenômenos e das aparências. A crença de que tudo, ou quase tudo, sobre a conduta humana já é conhecido a partir da observação direta impede nossa disciplina de gerar descobertas verdadeiras e de contribuir com dados que modificariam o conhecimento pré-científico. E assim nosso conhecimento toma forma de um refina-mento do pré-conhecimento e a banalidade de nossos resultados fica oculta sob o refinamento das técnicas e métodos.

Não é minha intenção defender aqui a teoria da dissonância cognitiva, porque não precisa de defesa. Mas é importante ressaltar que, quando uma teoria desta qualidade aparece na psicologia soci-al, nenhuma tentativa é feita, tanto para desenvolver sua relevância ao processo coletivo, quanto para invalidá-la. Mesmo quando tenta-tivas de invalidação são feitas, elas dificilmente podem ser descritas como científicas. Ao invés, é dado tratamento uniforme As teorias de consistência cognitiva, como se todas tivessem o mesmo impacto científico potencial; a fórmula para esta eclética cozinha pode ser encontrada, por exemplo, no recente livro editado por Abelson et al. (1968).

Não seria muito útil discutir esta situação em psicologia social, sem tentar delinear uma maneira como poderíamos remediar as deficiências. Praticamente todas as ciências tem seus teóricos, seus experimentalistas, seus jornais teóricos e experimentais. Por que não poderíamos nós aceitar o mesmo tipo de divisão e es-pecialização? Poderíamos, então, deixar os teóricos definir seu ob-jetivo, sua “cultura” e a estrutura de seus problemas. De qualquer modo, teóricos e experimentalistas nunca se enquadraram muito; avanço do conhecimento é o resultado de contradições entre eles e das tentativas de comunicação feitas pelos dois lados. Em um estu-do sobre a história da mecânica (Moscovici, 1968a) fui capaz de mostrar que a característica principal de sua evolução não foi a

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predominância da teoria ou da experimentação, mas a tensão de-senvolvida entre as duas. Não há razão por que se deva tentar eli-minar estas tensões e as contradições fecundas que dai se seguem. Experimentação e teoria não se colocam em uma relação transpa-rente uma em relação à outra; é o papel da teoria tornar a experi-mentação desnecessária e o papel da experimentação tornar a teo-ria impossível. A relação dialética existente entre as duas proposi-ções deve ser convenientemente empregada, a fim de que o conhe-cimento avance.

Mas, para se conseguir isso, decisões devem ser tomadas sobre o tipo de teorias que deveria apresentar o referencial e sobre a tra-dição intelectual que deveria constituir seu pano de fundo. É minha opinião que maior independência é necessária à função preditiva da teoria. Da forma como as coisas estão hoje, sempre que um concei-to, ou um modelo, é proposto, ele é avaliado exclusivamente em termos de sua utilidade, quanto aos fenômenos que ele pode predi-zer e sobre os experimentos que ele sugere.

Isto resulta na criação de modelos restritivos que mais se pa-recem a reflexões sobre certos aspectos do fenômeno, do que a uma autêntica teoria sobre ele. Modelos deste tipo são úteis para estimu-lar alguns experimentos interessantes, mas sua explicação é limita-da, pois logo se atinge um ponto onde nada de novo é trazido para experimentos posteriores. Além disso, é muitas vezes difícil decidir experimentalmente sobre a validade de diferentes modelos, porque eles se concentram em categorias diferentes de variáveis, per-tencentes ao mesmo fenômeno. É este, por exemplo, o caso dos modelos de dinâmica de grupo. A situação se reflete em uma jus-taposição de experimentos tão numerosos, quanto ineficientes; e isto ilustra que uma ciência ateórica não tem memória e é incapaz de realizar uma integração de seus modelos restritos. A progressão normal dos eventos pode ser descrita da seguinte forma: alguém obtém dados ou propõe uma hipótese sobre, por exemplo, “mudan-ça de risco”, ou “categorização social”. Uma vez que os achados este-jam firmemente estabelecidos e a hipótese confirmada, tentativas são imediatamente feitas para reprodução posterior através da variação de fatores, tais como idade, personalidade ou estilo cogni-tivo. O fenômeno é assim reduzido ao contexto da psicologia indivi-dual ou inter-individual. Deste modo, o referencial da psicologia social é progressivamente abandonado. Em vez de se progredir em profundidade, progride-se em extensão; ao invés de estabelecer laços entre fenômenos psicossociais, faz-se com que estes desapa-

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reçam, através de sua absorção em processos que não são psicosso-ciais. Parece, por isso, mais útil voltar-se para teorias que são ex-planatórias ou que oferecem uma sistematização de um conjunto de proposições. Devem estas teorias partir de fa tos ou de experimen-tos? A resposta pode ser “sim” ou “não”, ao mesmo tempo. Seria uma resposta negativa, se fossem teorias de tipo “baconiano”, con-sistindo em uma “revisão crítica”, uma “síntese”, ou um “esclareci-mento ou definição de conceitos”. Isto é assim por duas razões: primeiro, porque não existe coerência suficiente no que nós consi-deramos como conhecimento adquirido, em psicologia social; se-gundo, é utópico esperar que uma teoria possa surgir de uma sim-ples integração das partes que não tenham elas mesmas a marca de uma teoria. O livro de Collins & Guetzkow (1969), que resume os experimentos com pequenos grupos, mostrou a impossibilidade de tal tentativa de integração.

Mas a resposta pode ser positiva se a teoria oferece uma pers-pectiva nova, em que experimentos ou levantamentos não são con-siderados mais que expedientes temporários, no esboço de uma nova imagem da realidade. Apesar das críticas que fiz inicialmente ao livro de Thibaut & Kelley (1959), parece-me que ele oferece um exemplo de uma tradição teórica que merece ser preservada. A exigência essencial é ter novas idéias, que possam ser es-quematizadas ou desenvolvidas. Não há necessidade de se procurar imediatamente e a todo custo uma validação empírica ou esperar até que alguém seja guiado por dados experimentais. Como Novalis escreveu: “Se a teoria precisa esperar pelo experimento, ela nunca verá a luz do dia”.

Para esclarecer meu ponto de vista, deveria talvez simples-mente declarar minha preferência por qualquer teoria, na ausência de toda teoria. Como as coisas estão hoje na psicologia social, nós não temos - com raras exceções - nada senão conceitualizações pro-tocientíficas. Seria melhor se tivéssemos a nossa disposição algo como uma teoria flogística do que continuar com a falta de comuni-cação, dispersão e anomia, que é evidente na situação atual. A teoria flogística foi útil na química, porque definiu os processos centrais do empreendimento científico, serviu como guia para pesquisa, forçando os cientistas a se confrontarem, fornecendo-lhes uma lin-guagem comum. A psicologia social poderia muito bem empregar

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uma disciplina intelectual similar e poderíamos até aventurar dar a sugestão de que é tempo de parar com a coleta de informações. Henri Poincaré escreveu: “Um acúmulo de fatos não constitui uma ciência, assim como um monte de pedras não se torna uma casa”. Nós temos as pedras, mas não construímos a casa. Se nós decidís-semos abandonar, por um tempo, a coleta de novos dados, nós po-deríamos vê-los em perspectiva e refletir no que foi conseguido; poderíamos, então, definir melhor a natureza das questões que nós nos formulamos, o objetivo de nossa busca e o sentido de nossos achados. Ao exortar nossos estudantes a produzir novos dados, nós reproduzimos as pressões das instituições acadêmicas e econômi-cas, ao passo que nossos esforços deveriam, ao invés disso, ser diri-gidos para ajudá-los a se educarem a si mesmos. A base para esta educação poderia ser encontrada em um retorno a Lewin e aos es-critores clássicos da antropologia e da sociologia levando-se em conta os desenvolvimentos recentes da etnologia, lingüística e epis-temologia genética; e no reexame dos enfoques representados pelas teorias da troca e da dissonância, com a finalidade de transcender seu contexto individual e interindividual, a fim de colocá-los decidi-damente dentro de um referencial social mais amplo.

A sugestão de que nós deveríamos procurar, ou ao menos não rejeitar, teorias que são protocientíficas, pode ser considerada o-fensiva em determinados redutos. Mas a idéia não é tão escandalosa como pode parecer. Quer gostemos ou não, as idéias de Heider, o postulado do equilíbrio e a noção de atribuição, são todos. pré-científicos. Se nós temos de pagar por nossa cientificidade, através da ausência de teoria, então é preferível não ser “científico” ao de-senvolvermos novas idéias teóricas.

4. A procura de uma psicologia social

A causa determinante de um fato social deve ser buscada em fatos sociais e não nos e-feitos da consciência individual (Durkheim).

41. Existem uma, duas ou três psicologias sociais?

Nenhum estudo teórico pode ser frutuoso se seus objetivos não forem claramente definidos. A química ou a lingüística, a física ou a economia, tornam-se ciências somente quando seus usuários

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começam a perguntar pelas razões da ocorrência do fenômeno que eles observaram. Certamente os fins da ciência não são imutáveis e o avanço teórico depende da consciência de seu contexto, continu-amente em mudança; mas não pode existir progresso ulterior sem uma definição comum desses fins.

Existem muitos que pensam que um acordo geral sobre tal de-finição não é mais problema na psicologia social. De acordo com seu ponto de vista, a psicologia social é uma ciência do comportamento - a ciência do comportamento social; dessa maneira, eles acham que o objeto da disciplina é idêntico ao da psicologia em geral, mesmo que seja enfocado em um contexto especial. É esta concepção da disciplina que necessita ser cuidadosa e criticamente examinado.

Muitas vezes se esquece que, inicialmente, foi dado um forte impulso ao desenvolvimento da psicologia social com a esperança de que isso viria contribuir à nossa compreensão das condições que subjazem ao funcionamento de uma sociedade e à constituição de uma cultura. O propósito da teoria era explicar os fenômenos so-ciais e culturais; o objetivo prático era usar os princípios que, es-perava-se, seriam descobertos, a fim de nos engajarmos na critica da organização social. A abrangência da psicologia social, pois, era tida como incluindo o estudo da vida cotidiana e as relações entre os indivíduos e entre os grupos, bem como o estudo das ideologias e da criatividade intelectual, tanto em suas formas individuais, co-mo coletivas.

Vista dessa perspectiva, a psicologia social oferecia a promessa de se tornar uma ciência verdadeiramente social e política. Tais idéias foram logo esquecidas, contudo, quando nossa ciência se tornou uma “ciência do comportamento.” Essa nova orientação mudou a base da investigação e estudo, passando do argumento da sociedade para os fenômenos individuais e interindividuais, que eram encarados de um ponto de vista quase físico, em lugar de se-rem vistos de um ponto de vista simbólico. O campo de pesquisa foi drasticamente reduzido, tanto em seus horizontes, como no seu impacto potencial. É certamente importante lembrar que, como James Miller confessou certa ocasião, essa mudança de ênfase para uma “ciência comportamental” também significou a chegada de certa garantia nos quartéis responsáveis pelo desembolso dos fun-dos de pesquisa, porque a idéia de “ciências sociais” tendia a criar desconfiança e confusão. O rótulo de uma “ciência comportamental” parecia mais aceitável.

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Mas essa mudança de terminologia refletiu uma mudança cor-respondente nos valores e interesses. De fato, os trabalhadores das novas ciências sociais restringiram suas ambições, procurando por paliativos para as disfunções da sociedade, sem questionar nem suas instituições, nem sua adequação psicológica em face das ne-cessidades humanas. O encurtamento dos horizontes está estreita-mente ligado à restrição do sujeito ao “estudo do comportamento.” A associação estreita com a psicologia geral, que tal restrição repre-senta, esconde suas implicações sociais e políticas; impede-nos de ver, em suas verdadeiras perspectivas, os fenômenos que, suposta-mente, deveríamos estudar e apresenta, até mesmo, certa justifica-ção para a acusação de que nós contribuímos para a alienação e a burocratização de nossa vida social.

Independentemente de tudo isso, a noção de “comportamento social”, embora seja útil para ajudar a definir índices empíricos, permanece extremamente vago. Longe de nos ajudar a unificar o sujeito, ela resultou no fato de nós termos, hoje, não uma, mas duas, ou mesmo três psicologias sociais.

A primeira delas é taxonômica; sua finalidade é determinar a natureza das variáveis que podem explicar o comportamento de um individuo em frente a um estimulo. Esta psicologia ignora a nature-za do sujeito e define “social” como uma propriedade dos objeto que são divididos em sociais e não-sociais. O esquema geral da relação entre sujeito-objeto pode, pois, ser representada assim:

Sujeito Indiferenciado - Indefinido

Objeto Diferenciado em social e não-

social

Nesse esquema, a finalidade do estudo é a descoberta de como os estímulos sociais afetam os processos de julgamento, percepção e formação das atitudes; o fato de que mudanças socialmente de-terminadas são elas mesmas um dos aspectos básicos desses pro-cessos não é levado em consideração. Por exemplo, a pesquisa da percepção social se preocupou, principalmente, com a classificação das variáveis independentes - como objetos percebidos que fossem tanto “pessoas” (“seres humanos” - como nos experimentos sobre percepção da pessoa), como elementos de uma classe de objetos

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físicos possuidores de valor social (como nos estudos sobre o jul-gamento do tamanho das moedas como uma função de seu valor). Os estudos de Sherif sobre o efeito autoquinético também perten-cem a essa perspectiva taxonômica: os modos de resposta estão neles relacionados à estrutura dos estímulos. O mesmo é verdade sobre o trabalho do grupo de Yale (por exemplo, Hovland et a)., 1953), que tentou explicar as comunicações persuasivas em termos das características sociais da fonte (tais como prestígio, credibilida-de, etc.). Esse tipo de psicologia social é “taxonômica” no sentido em que ela se limita à descrição psicológica dos vários tipos de estímu-los e à classificação das diferenças entre eles. Ela usa uma definição de “social” e “não-social” em que os fenômenos, que são inerente-mente produtos da atividade social, são concebidos como sendo, a partir de seu inicio, uma parte da “natureza”. Sendo que seu inte-resse exclusivo é com a enumeração dos vários tipos de reação ao ambiente, ela está destinada a excluir de seu raio de interesse a natureza da relação entre o ser humano e seu ambiente.

A segunda psicologia social é “diferencial”. Seu princípio é re-verter os termos da relação entre o Sujeito e o Objeto e procurar, nas características do individuo, a origem do comportamento que é observado. Nesta base, a natureza da estimulação é de pouca im-portância; a preocupação mais importante é classificar os indiví-duos por critérios de diferenciação, que muitas vezes variam de acordo com a escola de pensamento à qual o pesquisador pertence ou à natureza do problema que ele está estudando. Desta maneira, os sujeitos podem ser classificados em termos de seus estilos cogni-tivos (por exemplo, abstratos-concretos, dependentes ou indepen-dentes do campo - “field dependent and independent”), suas carac-terísticas afetivas (por exemplo, ansiosos ou não, com alta ou baixa auto-estima), suas motivações (motivo de realização ou necessida-des de aprovação), ou suas atitudes (por exemplo, etnocêntrico ou dogmático), etc. A relação entre o sujeito e seu ambiente pode ser representada da seguinte maneira:

Sujeito Diferenciado pelas características de sua perso-

nalidade

Objeto Indiferenciado

Para qualquer tipo de tipologia que for adotada nessa perspec-tiva, a finalidade é sempre a mesma: descobrir como diferentes categorias de indivíduos se comportam quando eles são confron-

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tados com um problema ou com outra pessoa. Em última instância, isso tende ao estabelecimento de uma psicologia diferencial de res-postas e - no limite - para a descrição da composição psicológica dos grupos sociais, dos quais podem ser inferidas suas pro-priedades. Um exemplo desse enfoque é a analise sintomatológica dos sujeitos que são facilmente influenciados, seguida pela de-monstração de que os mesmos indivíduos são fortemente sugestio-náveis, quando confrontados com qualquer tipo de mensagem. Da mesma maneira, os fenômenos sociais da liderança, mudanças com risco ou competição são percebidas no nível dos traços psicológicos dos indivíduos envolvidos; o que é completamente ignorado é que alguns desses traços podem ser nada mais do que reflexo, no nível individual, de um fenômeno que é inerente a uma rede de relações sociais ou a uma cultura especifica. É, pois, evidente que o motivo de realização (McClelland et al., 1953) está relacionado: com os imperativos do protestantismo e do racionalismo econômico, como foi mostrado por Max Weber. Mas transformar esse tipo ideal we-beriano em características individuais é transplantá-lo como um critério para a diferenciação de uma estrutura psicológica particu-lar, que é, então, imediatamente aceita, sem justificação alguma, como possuindo certo tipo de universalidade. Muitas vezes essas descrições pessoais são redundantes e tautológicas.

Do mesmo modo que a psicologia diferencial, que mede dife-renças individuais na inteligência ou na destreza manual, esse tipo de psicologia social procura medir as dimensões da personalidade ou os aspectos da afetividade que possuem somente uma tênue relação com os fenômenos sociais. É devido a suas tentativas para explicar o que acontece na sociedade em termos das características dos indivíduos, que o interesse dessa psicologia social no “social” é mais aparente que real.

Existe, finalmente, um terceiro tipo de psicologia social que pode ser descrito como “sistemático”. Seu interesse se concentra nos fenômenos globais, que resultam da interdependência de di-versos sujeitos em sua relação com um ambiente comum, físico ou social. Aqui, a relação entre Sujeito e Objeto é mediada pela inter-venção de outro sujeito; essa relação se toma uma relação trian-gular complexa, em que cada um dos termos é totalmente deter minado pelos outros dois. Esta situação pode ser representada pelo esquema seguinte:

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Sujeito Objeto

Sujeito

E, contudo, importante sublinhar que essa relação entre objeto e sujeito, em um ambiente comum, foi concebida de duas maneiras diferentes: uma estática, outra dinâmica. Na primeira, os principais objetos de estudo foram as modificações de comportamento de indivíduos participando em interação; no segundo, o interesse foi centrado mais diretamente nos efeitos específicos que essas rela-ções produzem, pelo fato de engajarem o indivíduo total, as intera-ções entre indivíduos e também sua orientação no ambiente. Desta distinção, duas tendências distintas de trabalho teórico e experi-mental podem ser identificadas. Uma se interessa com o processo de facilitação, ou de troca e com uma análise, no nível do desempe-nho observável do progresso seqüencial da relação. Ela analisa as modificações que ocorrem nas respostas, em termos da mera pre-sença de outra pessoa, ou das relações de dependência e interde-pendência entre duas pessoas; e ela vê essas modificações como uma função da estimulação, ou da recompensa, trazida para a situa-ção pela presença, pela intervenção ou pela resposta de outra pes-soa, ou pelo controle que duas pessoas possam exercer uma sobre a outra. O trabalho de Zajonc sobre facilitação social fornece um bom exemplo dessa tendência. O segundo enfoque considera a relação social como apresentando a base para a emergência de processos que criam um campo sociopsicológico, em que os fenômenos psico-lógicos observados encontram seu lugar e sua origem. Exemplos disso pode ser o trabalho a respeito de pequenos grupos da escola de Lewin, o trabalho de Festinger sobre pressão para a uniformida-de e sobre comparação social e o trabalho de Sherif sobre o desen-volvimento das relações intergrupais.

As três psicologias sociais - taxonômica, diferencial e siste-mática - coexistem hoje pacificamente nos livros de texto. Esse e-quilíbrio precário é, talvez, compreensível quando se pensa nos requisitos necessários pelo ensino e na ausência de pressões fortes que possam dificultar o equilíbrio, em uma direção ou noutra. A mistura contínua, contudo, arbitrária e seus ingredientes são in-compatíveis. Na verdade, como será possível realçar e articular os achados de diferentes psicologias sociais, juntamente com os da

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psicologia social sistemática, quando, por definição, a primeira está em contradição com a segunda? Por exemplo, se se considera que as diferenças individuais na facilidade de ser influenciado fornece uma base suficiente para a compreensão dos efeitos de uma men-sagem nada mais é necessário além de estudar a distribuição dessas diferenças na população; não existem mais requisitos ulteriores para uma análise teórica dos mecanismos da comunicação social.Do mesmo modo, se alguém afirma que é a presença de pessoas com-petitivas que faz com que uma situação de conflito torne competiti-va, então o estudo do conflito deve ser substituído pelo estudo do funcionamento de determinado tipo de personalidade. Se, de outra parte, alguém está realmente interessado natureza do conflito ou da comunicação é tão inútil estudar os fatores de personalidade, como o seria basear o estudo das leis do pêndulo em dados sobre sua umidade ou sobre a qualidade suas fibras. Não existem dúvidas de que esses fatores intervêm como parâmetros; mas considerá-los como variáveis é negar aos fenômenos sociopsicológicos a autono-mia de funcionamento dentro de seu próprio sistema especifico. Alguns podem pensar que eu esteja falando de coisas sabidas e que esses problemas já nos eram familiares desde há muito tempo; esse tipo de argumento é trazido sempre que alguém questiona a legiti-midade de um consenso que, com a passagem do tempo, se tornou uma segunda natureza. Meu ponto de vista pessoal é de esses pro-blemas são cruciais e que, até que eles tenham sido resolvidos, de uma maneira ou outra, nós não seremos capazes de nossa pesquisa em direções que a possibilitem tornar-se o fundamento de uma ciência sociopsicológica.

4.2. O que é “social” em psicologia social?

Seria difícil levantar aqui, em detalhes, as razões de meu ponto de vista, de que é somente a psicologia social sistemática que mere-ce ser desenvolvida e que os outros enfoques, que interpretam os fenômenos sociais em termos de propriedades de estímulos ou de personalidade, não têm muito a contribuir. De qualquer modo, esse ponto de vista foi já brilhantemente desenvolvido por autores agora “clássicos” em psicologia social e não há necessidade de repetir seus argumentos. Gostaria, contudo, de levar um pouco adiante a análise da maneira como nossa disciplina tenta, em dia, definir “o social” como uma interação entre dois sujeitos e um objeto; um exame desse ponto nos ajudará a esclarecer nosso pontos de vista sobre o

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que sempre foi, implicitamente e ainda o é hoje, o verdadeiro objeto de nossa disciplina.

O triângulo Sujeito-Outro-Objeto é crucial para essa discussão, pois é o único esquema capaz de explicar e sistematizar processos de interação.

A maneira, contudo, como foi usado, nem sempre contribuiu para a definição da conduta social ou do sistema em que essa con-duta está inserida. Dois índices foram, muitas vezes implicitamente, aceitos como refletindo a influência do contexto social, em um comportamento do indivíduo: a presença de outro em seu campo social e a “numerosidade”. Para muitos pesquisadores, pois, o com-portamento de um organismo se torna “social” somente quando ele é afetado pelo comportamento de outros organismos. Tal definição é igualmente válida para o ser humano e para outras espécies e possibilita a uma pessoa usar uma série de analogias, a fim de ex-trapolar para outras espécies.

A aceitação desses pontos de vista conduz ao abandono de al-guns aspectos fundamentais dos fenômenos sociais. A sociedade possui sua própria estrutura, que não é definível em termos das características dos indivíduos; esta estrutura é determinada pelos processos de produção e de consumo, pelos rituais, símbolos, ins-tituições, normas e valores. Ela é uma organização que possui uma história e suas próprias leis e dinâmicas que não podem ser deriva-das das leis de outros sistemas. Quando o “social” é estudado em termos da presença de outros indivíduos ou de “numerosidade” não são realmente as características fundamentais do sistema que estão sendo exploradas, mas sim um de seus subsistemas - o subsistema das relações interindividuais. O tipo de psicologia social que emerge desse enfoque é uma psicologia social “privada”, que não inclui, dentro de seu escopo, a distintividade da maioria dos fenômenos sociais genuínos. Pode-se, pois, argumentar que, por razões que são parte culturais e parte metodológicas, a perspectiva sistemática em psicologia social não se interessou, verdadeiramente, nem com o comportamento social como um produto da sociedade, nem com o comportamento na sociedade. Isso não quer dizer que não existi-ram tentativas para analisar fenômenos tais como poder, autorida-de ou conflito; a perspectiva dessa análise foi, contudo, sempre in-terindividual e, conseqüentemente, esses fenômenos foram retira-dos do contexto ao qual eles necessariamente pertencem.

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Devido a essas razões, é ambíguo sustentar que o comporta-mento social é, presentemente, o verdadeiro objeto de nossa ciên-cia. Vista de um certo ponto de vista, essa afirmativa é justificada, pois nos preocupamos com uma categoria de ações sociais e com um segmento da vida social; de outro lado, nunca foi conveniente-mente reconhecido que o “social” existe, primariamente, nas pro-priedades intrínsecas da sociedade humana.

É por isso que a psicologia social sistemática deve ser renova-da e re-desenvolvida, de tal modo que se torne uma verdadeira ciência dos fenômenos sociais, que são a base do funcionamento de uma sociedade e dos processos essenciais que operam dentro dela. Mas - como é óbvio que nem todos os citados fenômenos estão den-tro da perspectiva da psicologia social - é importante selecionar os que devem ser seu foco principal. O objeto central e exclusivo da psicologia social deve ser o estudo de tudo o que se refira á ideolo-gia e à comunicação, do ponto de vista de sua estrutura, sua gênese e sua função. O campo especifico de nossa disciplina é o estudo dos processos culturais que são responsáveis pela organização do co-nhecimento em uma sociedade, pelo estabelecimento das relações interindividuais no contexto do ambiente social e físico, pela forma-ção dos movimentos sociais (grupos, partidos, instituições), através dos quais os homens agem e interagem, pela codificação da conduta interindividual e intergrupal que cria uma realidade social comum com suas normas e valores, cuja origem deve ser novamente busca-da no contexto social. Paralelamente, mais atenção deveria ser dada á linguagem, que até agora não foi pensada como uma área de estu-do estreitamente relacionada à psicologia social. Textos atuais de psicolingüística devotam sua atenção inteiramente a exposições claras e acadêmicas de fenômenos lingüísticos, enquanto eles se relacionam à aprendizagem e á memória, ou a estruturas fonéticas ou léxicas. Eles contém muito pouco sobre as funções de troca da linguagem e sobre a origem social de suas características. Assume-se como pacifico que a linguagem é uma característica essencial da comunicação; mas isso não é usado como base para estudos teóri-cos. Dessa maneira, a natureza social da linguagem permanece na periferia: dos enfoques dos problemas psicolingüísticos; a implica-ção é que; questões sociopsicológicas sobre linguagem não diferem das questões discutidas na psicolingüística. Rommetveit discute, nesse livro, algumas das conseqüências gerais dessa perspectiva reducionista para a psicolingüistica.

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A noção de ideologia deve ter seu lugar na psicologia social contemporânea. Muitos fenômenos que são atualmente estudados são ou partes inerentes da ideologia ou substitutos teóricos dela. Isso vale para conceitos, como hábitos, preconceitos, estereótipos, sistemas de crenças, psicológica, etc. Mas essa acumulação não co-bre a cadeia inteira do tema teórico central que permanece ainda segmentado. Existem, contudo, alguns sinais de que o estudo do fenômeno da ideologia poderá muito bem ser mais desenvolvido; a promessa disso está contida na análise sistemática do pensamento social e em algum trabalho da dissonância cognitiva, na unidade dos processos cognitivos e não-cognitivos e na motivação social.

A pesquisa na psicologia social da comunicação não andou muito à frente, apesar de, como uma disciplina, a psicologia social se ajustar perfeitamente a essa tarefa; ela deveria ser capaz de o-lhar para os aspectos básicos da comunicação, do ponto de vista da gênese das relações sociais e dos produtos sociais e também deve-ria ser capaz de considerar o ser humano como um produto de pró-pria atividade - como, por exemplo, na educação e na socialização. Para conseguir tal finalidade, porém, nós deveremos ir além das explorações superficiais. Levantar questões sobre os efeitos dos meios de comunicação de massa, sobre a influência exercida por uma fonte autoritária ou não, sobre a eficácia da mensagem anunci-ada no inicio ou no fim de uma fala, é confinar nossa disciplina den-tro de limites puramente pragmáticos, colocados pelas exigências dos donos, ou dos manipuladores, dos meios de comunicação de massa. Os problemas reais são muito mais amplos. Eles residem nas questões sobre por que e de acordo com que retórica nós nos co-municamos e sobre a maneira como nossa motivação para a comu-nicação se reflete em nossos modos de comunicação. Os meios de comunicação de massa, cujo objetivo é persuadir, são uma parte secundária da rede total de comunicações. Não existem razões que fundamentem o fato de se lhes destinar um status privilegiado em comparação com os processos de troca de informação, que se dão em comunidades sociais, políticas ou religiosas, nos mundos do teatro, cinema, literatura ou lazer. A cultura é criada pela e através da comunicação; e os princípios organizacionais da comunicação refletem as relações sociais que estão implícitas neles. É por isso que nós devemos enfrentar a comunicação dentro de uma perspec-tiva nova e mais ampla. Até agora, ela foi considerada principalmen-te como uma técnica, como um meio para a realização de fins que são externos a ela. O estudo da comunicação pode-se tornar um

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objeto adequado da ciência se nós mudarmos essa perspectiva e passarmos a entender a comunicação como um processo autôno-mo, que existe em todos os níveis da vida social.

A vida social é a base comum da comunicação e da ideologia. A tarefa da psicologia social, no estudo desses fenômenos, é uma ta-refa para a qual a disciplina está muito bem equipada; ela se inte-ressa pelas relações entre o indivíduo e a sociedade. Essas relações são um foco de tensões e contradições e elas representam o ponto de encontro das necessidades de liberdade do ser humano e de suas tendências para a alienação; elas são, também, o campo de batalha preferido de muitos movimentos políticos. Embora seja verdade que os psicólogos sociais estão conscientes dos problemas implíci-tos aqui, eles, ao reluzi-los a processos de socialização, nada mais fazem do que eliminar seus interesses reais e sua relevância.

Os pontos de vista que enfatizam a importância hegemônica da socialização podem ser assim resumidos: a criança aprende e inter-naliza um conjunto de valores, a linguagem e as atitudes sociais; ela modela seu comportamento pelo comportamento dos adultos e pelo de seus colegas. Finalmente, quando ela mesma se torna um adulto, se integra ao grupo que a preparou adequadamente para sua pertença a ele. Quando este estágio é alcançado, dificuldades de ajustamento podem surgir somente se a pessoa não teve sucesso nessa assimilação apropriada, ou na aplicação adequada dos prin-cípios que lhe foram ensinados.

O desenvolvimento dessa concepção depende, na realidade, da aceitação de diversos pressupostos. O primeiro é que a pessoa é uma unidade biológica, que deve ser transformada em uma unidade social; o segundo, que a sociedade é um “dado” imutável, encontra-do pelo individuo como um ambiente já pronto, em uma estrutura de círculos concêntricos, constituídos pela família, grupos de com-panheiros e os grupos mais amplos e instituições, para as quais ele se dirige e aos quais ele deve se adaptar. O terceiro pressuposto é que o individuo é inexoravelmente absorvido pelo seu ambiente social. Ele deixa de ser um individuo desde o momento em que ele se filia, se submete às pressões sociais e se torna um executor de papéis. Finalmente, assume-se que a sociedade desempenha um papel de equilíbrio na vida do individuo, pois ela reduz suas tensões e incertezas. Na realidade, esses pressupostos implicam a concep-ção de um individuo que é totalmente orgânico, junto com a con-

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cepção de uma sociedade que restringe seu papel ao de mediadora das necessidades dos organismos individuais. Dentro dessa concep-ção, a sociedade não é vista como um produto dos indivíduos, nem os indivíduos vistos como produtos da sociedade. As leis sociopsi-cológicas que daí surgem não estão interessadas com as transfor-mações que se dão dentro do âmbito do “social”, mas com trans-formações do biológico para o social. Os interesses fundamentais de uma psicologia social que se concentra principalmente nos proces-sos de aprendizagem, de socialização e de conformidade podem ser ligados diretamente a esses pressupostos e à sua aplicação.

E mais: o problema das relações entre ser humano e sociedade se relaciona intrinsecamente com ambos os termos do rapport: eles intervêm, conjuntamente, nos processos econômicos, sociais e polí-ticos. Não se pode esquecer que o indivíduo não é um “dado”, mas um produto da sociedade, pois é a sociedade que o força a se tornar um individuo e a acentuar sua individualidade em seu com-portamento. Por exemplo, nossa economia de mercado nos força a todos a tornarmo-nos compradores e vendedores de bens e servi-ços; nossa democracia eleitoral está baseada no princípio de que cada pessoa representa um voto. Mas esses não são princípios uni-versais, seus limites são culturais. Os antagonismos que as so-ciedades capitalistas criaram ao levarem o individualismo ao seu pico máximo são, na realidade, uma conseqüência da estreita in-terdependência de todos os setores da vida cotidiana, que é a marca dessas sociedades. O sistema que emergiu combina o anonimato da vida urbana com a interdependência física, psicológica e social; ele também introduz uma divisão aguda entre vida pública e privada. O individuo criado por essa sociedade tem muito pouco em comum com um organismo puramente biológico. Os juristas tiveram mais sucesso que os psicólogos no estabelecimento da distinção entre a pessoa moral e a pessoa física. Está implícito em nossa sociedade que os indivíduos são primariamente pessoas morais e, como tais, se comportam como participantes em relação aos encontros sociais e como atores em seus diversos meios. Por todas essas razões, a noção de “indivíduo” é inteiramente relativa: sindicatos ou partidos políticos podem ser considerados coletivamente como indivíduos, que se comportam como tais uns com os outros e em suas relações com a sociedade como um todo. A sociedade produz indivíduos de acordo com seus próprios princípios; dessa maneira pode ser com-parada com uma “máquina”, que socializa e individualiza ao mesmo tempo. Sua maneira de agir consiste não apenas - como se acredita

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muitas vezes - em estabelecer uniformidades, mas também em manter e acentuar diferenças. Conseqüentemente, na medida em que o indivíduo se torna social, “. assim também a sociedade adqui-re individualidade; é por isso que não existe apenas uma, mas mui-tas sociedades, que diferem umas das outras tanto por suas origens, como pelas características dos atores sociais que as compõem e as produzem.

Esta perspectiva nos possibilita compreender o contraste en-tre o individualismo e a tendência do ator social em minimizar suas diferenças para poder conseguir seus objetivos e interesses e na conformação de sua noção de o que é “bom” e o que é “verdadeiro.” A pergunta principal que os psicólogos sociais faziam era: Quem socializa o individuo? Os psicólogos negligenciaram o segundo as-pecto do problema contido na sua pergunta: Quem socializa a soci-edade? Um novo enfoque com respeito à relação entre indivíduo e sociedade deveria tomar em consideração dois fenômenos básicos. O primeiro é onde que o individuo não é apenas um produto bioló-gico, mas um produto social; e o segundo é o de que a sociedade não é um ambiente destinado a treinar o indivíduo e a reduzir suas in-certezas, mas um sistema de relações entre “indivíduos coletivos”. Esta visão da dinâmica social possui implicações científicas imedia-tas, assim como importância psicológica e política; ela nos obriga a encarar o controle social e a mudança social em uma perspectiva comum e a não tratá-los separadamente, como aconteceu no passa-do. Não existe razão nenhuma para conceder prioridade aos aspec-tos da socialização que tendem para a transmissão das tradições existentes e da estabilidade do status quo; as tendências opostas, que possibilitam reformas e revoluções, são igualmente importan-tes.

Nosso único interesse foi na formação dos “objetos sociais”; e isso se reflete na concepção que temos do organismo individual como uma parte passiva, em uma relação que tem como finalidade a conformação do individuo a um modelo imutável e preestabele-cido. Chegou, agora, o tempo de insistir na formação dos “objetos sociais” (Moscovici & Plon, 1968) - sejam eles grupos ou indivíduos - que adquirem sua identidade através de seu relacionamento com outros.Essa mudança de perspectiva pode já ser vista no trabalho de Brehm (1966) sobre “reação psicológica”, de Rotter (1966) so-bre controle interno e externo e de Zimbardo (1969) sobre controle cognitivo. Devemos, também, reconhecer o papel essencial desem-

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penhado na formação dos “sujeitos sociais” pela “solidariedade social” (isto é, comparação social e reconhecimento social), proces-sos de decisão (tanto individuais como sociais), organização social e influência social. Temos já um fundo de noções teóricas e de estu-dos experimentais importantes para cada um desses fenômenos. A fim de conseguir um novo nível de compreensão das relações entre ser humano e sociedade, nós devemos relacionar esse conhecimen-to a processos de comunicação e à influência exercida pelas ideolo-gias. Neste sentido, controle e mudança constituem duas linhas de desenvolvimento que devem ser analisadas simultaneamente a fim de nos possibilitar tanto compreender, como criticar, os aspectos importantes da vida social. Se adotarmos esse enfoque como um guia para pesquisa, deixaremos de considerar nosso meio ambiente como um meio “externo” imutável e passaremos a considerá-lo, ao contrário, como o pano de fundo humanizado das relações em que os seres humanos vivem e como um instrumento para essas rela-ções (Moscovici, 1968/1977). Esse meio ambiente não é inerente-mente ambíguo ou estruturado, nem é ele puramente físico ou soci-al; ele é determinado por nosso conhecimento e pelos métodos de investigação. O ambiente não explica nada; pelo contrário, ele se apresenta como necessitando de explicação, pois é tanto construí-do, como limitado por nossas técnicas, nossa ciência, nossos mitos, nossos sistemas de classificação e nossas categorias. Na maioria das teorias que tratam de intercâmbio ou de influência, esses processos são concebidos como respostas determinadas pelos recursos pre-sentes no meio ambiente, ou por sua organização. Como conse-qüência, questões relacionadas com a gênese dos objetos sociais nem sequer podem surgir. Mas o progresso na etologia, alguns es-tudos recentes sobre influência social (Moscovici & Faucheux, 1969; Moscovici et al., 1969; Alexander et al., 197O) e a evidência histórica sobre a transformação do meio ambiente apresentam indícios de que esta ênfase está mudando: de uma concepção que enfatizava a inércia do mundo material, estamos nos voltando para o estudo de sua significância.

Resumindo, o campo da psicologia social consiste de objetos sociais, isto é, de grupos e indivíduos que criam sua realidade soci-ais (que é, na realidade, sua única realidade), controlam-se mutua-mente e criam tanto seus laços de solidariedade, como suas dife-renças. Ideologias são seus produtos, a comunicação é seu meio de intercâmbio e consumo e a linguagem é sua moeda. Esse paralelo com as atividades econômicas é, fica claro, nada mais que uma ana-

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logia; mas esta analogia nos possibilita definir melhor aqueles ele-mentos da vida social que são de maior importância para o estudo teórico e empírico; e ela também realça a necessidade de introduzir mais direcionamento e coerência na definição de nosso campo po-tencial de investigação.

Onde fica o “comportamento” em relação a tudo isso? Ele tam-bém deve ser enfocado em uma nova perspectiva: em vez de locali-zar o “social” no comportamento nós devemos localizar o compor-tamento no “social”. Em livros de texto e em outras publicações, o comportamento social é, geralmente, considerado como qualquer outro tipo de comportamento; a única diferença é que o comporta-mento social, presumivelmente, inclui características sociais sobre-impostas. É considerado como determinado pelas mesmas causas psicológicas dos outros tipos de comportamento e pelos mesmos sistemas de estimulação física. Do ponto de vista da presente dis-cussão, o comportamento social deve ser visto como um problema próprio e específico. Sua característica essencial é que ele é simbó-lico. Os estímulos que deslancham o comportamento social e as respostas que dai resultam são elos em uma cadeia de símbolos; o comportamento expressa, pois, um código e um sistema de valores que são uma forma de linguagem; ou, poder-se-ia até, talvez, dizer que é o comportamento como tal que constitui a linguagem. Ele é essencialmente social e criado por relações sociais; na realidade, não poderia existir simbolismo confinado apenas a um indivíduo ou a um indivíduo confrontado com objetos materiais.

O comportamento simbólico foi, muitas vezes, confundido com os processos psicológicos gerais chamados de “cognitivos”. Teorias, pois, que introduziram o conceito de consistência no estudo da in-fluência social ou da motivação foram classificadas como teorias “cognitivas”. A razão disso foi que essas teorias estavam interessa-das com um modo simbólico de organização de ações e “simbólico” foi considerado como “cognitivo”. A dificuldade dessa perspectiva não se deve unicamente á ilegitimidade de se igualar simbólico com cognitivo; está no fato de que, ao proceder assim, mascara-se a dis-tinção entre os dois termos. Quando os termos “afetivo”, “motor” ou “motivacional” são substituídos pelo termo “cognitivo”, o pressu-posto subjacente é que não se fez mais do que passar de um nível a outro. O foco de análise permanece ainda no indivíduo, como uma unidade dentro do esquema clássico do estímulo-resposta. Mas os aspectos fundamentais do comportamento simbólico consistem de

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suas manifestações verbais e não-verbais, que são compreendidas e se tornam “visíveis” somente em relação aos significados comuns que eles adquirem para os que recebem as mensagens e para aque-les que as emitem. Comportamento simbólico é fundamentado e torna-se possível pelas normas sociais e regras e por uma história comum que reflete o sistema de conotações implícitas e pontos de referencia que, invariavelmente, se desenvolvem em todo ambiente social.

A psicologia social é uma ciência do comportamento somente se isso for entendido como significando que seu interesse é em um modo muito específico deste comportamento - o modo simbólico. É isso que distingue nitidamente seu campo de interesse do da psico-logia geral. Tudo o que foi dito na presente secção refere-se unica-mente ao desenvolvimento dessa proposição fundamental.

5. Um problema sociopsicológico: a ausência de verdades perigosas

Se o estudo dos processos simbólicos se tornou nosso objeto principal, nós seremos forçados a explorar o campo e limites da realidade social em que nós vivemos. De fato, se quisermos com-preender fatos sociais reais em vez de fatos individuais em um con-texto social; e se quisermos abandonar a visão de sociedade em que os indivíduos, fechados nas células de seus grupos “primários”, se movimentam como que aleatoriamente, se quisermos destruir a ilusão de que nós poderemos um dia conseguir uma universalidade vazia de leis, através da descoberta de mecanismos gerais e abstra-tos, sem referência a seus conteúdos, então devemos admitir cla-ramente que nós, ate o presente momento, tendemos a ignorar os processos sociais concretos e suas formas coletivas.

Apesar de seus sucessos técnicos, a psicologia social se tornou uma ciência isolada e secundária (cf. Jaspars & Ackermann, 1966/1967). Este juízo é, certamente, correto para a Europa, mas eu penso que o seja também para outros lugares. Esse é, provavel-mente, o resultado de um desejo intenso de alcançar reconheci-mento profissional e respeitabilidade acadêmica. É verdade, com tudo, que nós conseguimos realizar experimentos científicos, tendo nossos programas de pesquisa aceitos pelas universidades, prepa-rando - embora para um mercado muito limitado - estudantes que

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conhecem sua literatura, empregando métodos estatísticos, mani-pulando aparatos e produzindo boas dissertações. De outro lado, a defasagem que se criou entre nossa disciplina e outras ciências so-ciais (tais como a antropologia, a sociologia, a lingüística ou econo-mia) nos conduziu à situação de uma habilitação ignorante. As questões que investigamos são, na maioria das vezes, muito restri-tas; e se acontecer que problemas importantes são enfrentados, nós conseguimos transformá-los, novamente, em questões secundárias.

Isso, porém, parece não preocupar a ninguém, pois parece que temos conseguido nossos fins mais importantes, que seriam aplicar corretamente as regras da arte da experimentação e em receber, por esse sucesso, a aprovação de nosso próprio grupo. E ainda mais, existe ampla evidência de que nosso controle e minutiae (mesqui-nharias) têm pouca significância para os aspectos verdadeiramente importantes dos problemas que estamos dando. Por exemplo, em seus estudos dos primatas, os etologistas nunca conseguiram usar métodos tão refinados como os que nós usamos em nossos estudos de interação. Apesar disso, eles atacaram corajosamente problemas cruciais que são de interesse imediato tanto para o estudo da orga-nização social das espécies animais como para o ser humano; eles conseguiram uma produção de conhecimento que parece mais rica e próxima às nossas preocupações presentes, que a psicologia soci-al jamais foi capaz de acumular. Em contraste, a psicologia social se tornou a ciência da vida privada e, ao mesmo tempo, conseguiu transformar seus usuários em membros de um clube privado. Até mesmo no campo da metodologia, em que, até recentemente, nós estávamos bastante à frente, fomos agora ultrapassados por outras disciplinas. Certamente não se pode dizer que existe uma escassez de problemas importantes: guerras, profundas mudanças sociais, relações raciais e internacionais, alienação individual, luta para libertação política e violência. Poder-se-iam acrescer os problemas criados pela ciência, pela tecnologia e pela mudança de influência na evolução de nosso mundo - e apesar disso não existem vestígios de nada disso em nossas revistas e em nossos livros de texto; pare-ce até que a própria existência de todos esses problemas está sendo negada.

Não é suficiente, contudo, reconhecer que esses tópicos são “relevantes”, para fazê-los objetos adequados de investigação. Eles devem também ser enfocados de uma maneira que seja “relevante”; isto é, de uma maneira que nos possibilite compreender, simultane-amente, como eles se relacionam com o ser humano e a sociedade e

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como seu estudo poderia contribuir para um avanço autêntico do conhecimento. Uma maior lucidez e um compromisso intelectual mais corajoso são indispensáveis para esta tarefa. Por exemplo, não seria suficiente discernir, no campo social, somente as forças que o mantêm, porque as forças que empurram em uma direção de mu-dança gradual e de revolução são, pelo menos, igualmente impor-tantes. A história não é feita somente por sociedades que sobrevi-vem; é também feita por sociedades que morrem. Devemos apren-der a enfrentar essas realidades; uma procura exclusiva por uma ciência que não fosse senão uma arte de contemporização iria, con-seqüentemente, comprometer a própria ciência. Tornou-se eviden-te que o equilíbrio social e a pacífica satisfação individual não são os supremos objetivos buscados pelos seres humanos. Os valores não são somente utopias ou apêndices inúteis; os ideais de justiça, ver-dade, liberdade e dignidade fizeram viver e morrer pessoas que viram neles a razão de não aceitar, indistintamente, qualquer tipo de vida ou morte. É difícil entender por que nós deveriamos esque-cer, junto com os psicólogos sociais de hoje, que os processos de revolução, de inovação, de irredutibilidade do conflito, constituem uma parte inerente da evolução dos grupos humanos.

O segundo ponto que eu gostaria de acentuar é que a psicolo-gia social deveria, agora, deixar o gueto acadêmico ou, talvez se po-deria dizer, deixar o gueto americano, em que se fecharam os des-cendentes europeus dessa disciplina (Back, 1964). A reflexão dentro de um círculo vicioso nunca expandiu horizonte nenhum. Devería-mos ser sobre-humanos para fugirmos completamente à influência das nossas circunstancias imediatas e não sermos afetados pelas perspectivas em que as questões, em determinadas situações con-cretas, são formuladas. É bastante notório que os habitantes de um gueto partilham pontos de vista comuns e não resistem grande-mente ao que lhes e familiar. Atualmente, muitos dos argumentos, juízos e tópicos de pesquisa em psicologia social, refletem os valo-res da classe média, de que a maioria dos psicólogos sociais ainda não se desvencilhou. Eles permanecem, então, prisioneiros de uma cultura pragmática , que tem como preocupação central evitar o que se chamou de “metafísica” ou, em outras palavras, toda sombra de possíveis realidades que não sejam imediatas.

A maioria dos experimentos feitos na Inglaterra, na França ou nos Estados Unidos sobre influência social, polarização de grupo (riskyshift) ou conflito usaram estudantes como sujeitos. Nenhum trabalho foi feito sobre as várias regiões do país, sobre as diferentes

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classes sociais, sobre grupos ideológicos, nacionais, religiosos ou raciais. Ao mesmo tempo, poucos de nós se interessaram por um estudo cuidadoso e uma formulação adequada dos problemas e preocupações desses grupos. Conseqüentemente, os psicólogos sociais têm dificuldade em ver, dentro de uma perspectiva ade-quada, seu próprio ambiente e valores e por isso eles não podem enriquecer e diversificar sua disciplina. E necessário e imprescindí-vel que uma ciência, cedo ou tarde, se torne uma tarefa acadêmica, mas isso não significa que ela deva começar por isolar-se, ou dentro da universidade, ou dentro dos limites de uma nação, de uma classe, de um grupo de idade, ou de um movimento político.

Nossa disciplina deve, agora, voltar-se para realidades das quais, no passado, ela não estava consciente e ela deve participar dos experimentos sociais e do estabelecimento de novas relações sociais. A psicologia social não pode permitir-se continuar uma “ciência da aparência”; ela não deve somente começar a descobrir os aspectos mais profundos da realidade social, mas também par-ticipar na dinâmica geral do conhecimento, através do qual certos conceitos são destruídos e novos são criados. O objetivo deve ser não apenas sistematizar o conhecimento existente, mas propor conceitos inteiramente novos. É hoje plenamente aceito que as ci-ências exatas criaram novos aspectos da natureza; as ciências soci-ais devem criar novos aspectos da sociedade. Será somente a explo-ração de novas realidades que possibilitará à psicologia social pro-gredir e ser retirada dos esquemas referenciais das atividades co-merciais e industriais a que ela está hoje confinada. Até agora seus usuários preferiram interessar-se pela visão do mundo presente em determinados círculos acadêmicos e descuidar o que poderiam ter aprendido de artistas e escritores sobre psicologia humana e mecâ-nica de uma sociedade. Não tomaram como guia os princípios epis-temológicos que levam a uma análise do que é raro e sobre o qual pouco se sabe; é esse tipo de análise que aludirá a lançar nova luz sobre os fenômenos já estabelecidos e familiares. Como Durkheim escreveu certa vez: “Se uma ciência das sociedades deve existir, devemos esperar que ela não consista de uma simples paráfrase dos preconceitos tradicionais, mas, ao contrário, que nos conduza a ver coisas de maneiras diferentes das visões comumente aceitas”.

A história da ciência mostra que esse princípio está no coração de toda descoberta. As grandes inovações intelectuais atribuídas a Descartes ou a Galileu foram possíveis devido a seu sério interesse nos instrumentos óticos que eram familiares somente a um peque-

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no grupo de pessoas daquele tempo; a maioria dos filósofos conti-nuou a praticar uma ciência baseada nas observações cotidianas que tinham sido também a base do universo de Aristóteles. Esse é apenas um exemplo entre muitos; sua importância, talvez, seja mostrar que novas e inesperadas idéias em uma ciência não são somente devidas á inspiração e ao gênio de um indivíduo, mas tam-bém á sua coragem em abandonar as concepções que são correntes em seu tempo. Mas essa criação de novos pontos de partida depen-de, também, da susceptibilidade de uma ciência a novas idéias e da sua capacidade de permanecer aberta a concepções, que tenham sido, antes, consideradas como existindo fora do seu campo de inte-resse. Os escritores clássicos em psicologia social foram admiráveis em sua habilidade e presteza em aceitar uma vasta gama de idéias. Se voltarmos a eles, talvez sejamos capazes de conseguir uma me-lhor compreensão de perspectivas mais amplas e dedicarmo-nos à busca de idéias significativas, em lugar da busca de dados. Presen-temente, nós respeitamos a idéia de que a metodologia faz uma ciência, em vez de lembrarmos que a ciência deve escolher seus métodos.

Será somente se nos apoiarmos na crença de que existe um caminho real e tentarmos descobri-lo que nós seremos capazes de ultrapassar as limitações presentes da psicologia social e transfor-má-la em algo mais do que uma ciência secundária. É o destino de toda verdade ser critica e por isso nós devemos ser críticos. A pre-sente conjuntura de eventos é favorável a tal mudança. Para que nossa disciplina se torne verdadeiramente científica, seu campo de interesse deve permanecer livre e suas portas devem estar am-plamente abertas às outras ciências e ás exigências da sociedade. Os objetivos de uma ciência são o conhecimento através da ação, jun-tamente com uma ação através do conhecimento- Não importa se esses objetivos são conseguidos através da matemática, expe-rimentação, observação ou reflexão filosófica e cientifica. Mas, por enquanto, os termos “ciência” e “científico” estão ainda imbuídos de um fetichismo e seu abandono é a condição sine qua non do co-nhecimento. A psicologia social será incapaz de formular verda des perigosas, enquanto ela aderir a esse fetichismo. Essa é sua princi-pal limitação e é isso o que a força a preocupar-se com problemas menores e a permanecer em segundo plano. Todas as ciências ver-dadeiramente bem-sucedidas conseguiram produzir verdades peri-gosas, pelas quais elas lutaram e cujas conseqüências elas previram. É por isso que a psicologia social não poderá alcançar a verdadeira

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idéia de uma ciência, a não ser que ela também se torne perigosa.

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3 - HISTÓRIA E A ATUALIDADE DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

1. O escândalo do pensamento social

Ouve-se muitas vezes falar que a boa ciência deveria começar propondo conceitos definidos clara e meticulosamente. Na verda-de, nenhuma ciência, mesmo a mais exata, procede dessa manei ra. Ela começa juntando, ordenando e diferenciando fenômenos que surpreendem a todos, porque são perturbadores e exóticos, ou constituem um escândalo. Mas, para pessoas que vivem em uma cultura como a nossa, que apregoa a ciência e a razão, há poucas coisas tão escandalosas como as crenças, superstições ou precon-ceitos que são partilhados por milhões de pessoas; ou en tão o es-cândalo das ideologias, aqueles conjuntos, como diz Marx, de “qui-meras, dogmas, seres imaginários” que obscurecem os verdadei-ros determinantes da situação humana e as autênticas motivações da ação humana. Com certeza nós nos tornamos mais tolerantes, hoje, em relação às crenças religiosas que assumem a imortalida-de da alma, a reencarnação das pessoas, a eficácia da oração, ou muitas outras coisas que nosso conhecimento da humanidade e da natureza não abarca. Basta olhar para publicações populares para ser surpreendido pela quantidade de pessoas em nossa sociedade que lê seus horóscopos, consulta pessoas que curam pela fé, ou consome remédios miraculosos. Do mesmo modo, podemos ob-servar a intensidade com que a magia é praticada em nosso meio, em nossas cidades e mesmo em nossas universidades. Os que re-correram a essas coisas não são os socialmente desajustados das camadas pouco instruídas da sociedade, como poderíamos crer, mas as pessoas instruídas, os engenheiros e até mesmo os douto-res. Pensemos naquelas empresas de “alta tecnologia” que recru-tam seu pessoal empregando testes grafológicos ou astrológicos. Longe de querer ocultar tais atividades, muitos dos praticantes dessa magia apresentam-se na televisão e publicam livros que conseguem um número de leitores bem maior que qualquer texto escolar.

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Tais coisas, que nos parecem estranhas e perturbadoras, têm também algo a nos ensinar sobre a maneira como as pessoas pen-sam e o que as pessoas pensam. Tomemos, por exemplo, essa es-tranha e desconhecida doença, Aids. As conversações e a mídia foram rápidas em se apoderar dela e, imediatamente, a cataloga-ram como a doença vingadora de uma sociedade permissiva. A imprensa a representou como uma condenação de “comporta-mentos degenerados”, a punição de uma “sexualidade irrespon-sável”. A Conferência dos Bispos do Brasil se colocou contra a campanha para o uso de preservativos, descrevendo a Aids como “uma conseqüência da decadência moral”, a “punição de Deus” e a “resposta da natureza”. Houve também uma série de publica-ções afirmando que o vírus tinha sido produzido pela CIA para ex-terminar populações indesejáveis e assim por diante. Esse exem-plo mostra (como outros poderiam mostrar do mesmo modo) a fre-qüência com que circulam idéias ou imagens incríveis e alarman-tes que não podem ser detidas nem pelo bom senso nem pela lógi-ca. E evidente que um tipo de funcionamento mental que confirme claramente essa irracionalidade fez nascer muita pesquisa. E isso nos conduz ao cerne da questão.

Podemos sintetizar os resultados de tal pesquisa dizendo que, não para nossa grande surpresa, eles mostram que a maior parte das pessoas prefere explicações populares a explicações cientifi-cas, fazendo correlações enganadoras que fatos objetivos são in-capazes de corrigir. Em geral as correlações não levam em consi-deração as estatísticas que desempenham papel tão amplo em nossas decisões e discussões cotidianas. Distorcem a informação que lhes é acessível. Além disso, como já foi dito repetidamente sem que ninguém contestasse, as pessoas aceitam acima de tudo aqueles fatos ou percebem aqueles comportamentos que confir-mam suas crenças habituais. E as pessoas procedem assim mes mo quando sua experiência lhes diz “está errado” e a razão lhe diz “é um absurdo”. Deveríamos tomar tudo isso com moderação, ar-gumentando que as pessoas são vitimas de preconceito, são en-ganadas por alguma ideologia ou forçadas por algum poder? Não, os fatos são por demais generalizados para que nos contentemos com tais explicações e finjamos que não sentimos algum descon-forto ao ver até que ponto o Homo sapiens, o único animal dotado de razão, mostrou ser irracional.

É possível compreender esses fatos, repito, mas sem deixar de pensar que eles têm conseqüências para as relações entre as pes-

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soas, para as opções políticas, para as atitudes com respeito a ou-tros grupos e para a experiência do dia-a-dia. Poderia continuar trazendo à consideração o racismo, as guerras étnicas, a comuni-cação de massa e assim por diante. Mas a questão mais chocante é a seguinte: Por que as pessoas pensam de maneiras não-lógicas e não-racionais? Uma questão preocupante, muito preocupante. Sem dúvida alguma, é uma questão que compete à psicologia so-cial e necessito explicar brevemente por que assim é.

A partir do ponto de vista do individuo, houve uma concor-dância, penso que desde Descartes, em que as pessoas têm a ca-pacidade de pensar corretamente sobre a evidência a elas apre-sentada pelo mundo externo. Por um lado, estão em uma posição de distinguir a informação acessível e, por outro lado, a partir do conjunto de premissas referentes à informação, as pessoas sabem como chegar a determinada conclusão . Seria, supõe-se, uma ques-tão de seguir regras lógicas, das quais a mais importante é a da não-contradição. Desde que tal raciocínio e conclusão sejam cor-retos, pode-se também considerar que o modo como as regras e procedimentos lógicos foram aplicados fornece a melhor explica-ção das crenças persistentes e do conhecimento. Mas a partir do momento que se percebe que o raciocínio é falso e a conclusão é errada, deve-se procurar outras causas para a má aplicação das re-gras, causas não-lógicas que podem explicar por que os indivíduos cometem erros. Entre essas causas estão, em primeiro lugar, os problemas afetivos, mas, sobretudo, as influências sociais que irão submeter o aparato psíquico a pressões externas. As influências sociais irão encorajar as pessoas a ceder diante dos hábitos, ou afastar-se do mundo externo, de tal modo que sucumbam aos en-ganos ou à satisfação de uma necessidade imaginada.

Descobrimos, por conseguinte, uma dualidade que está na raiz da maioria das explicações nesse campo pode ser descrita em poucas palavras: nossas faculdades individuais de percepção e observação do mundo externo são capazes de produzir conheci-mento verdadeiro, enquanto fatores sociais provocam distorções e desvios em nossas crenças e em nosso conhecimento do mundo.

Detenhamo-nos por um instante sobre a natureza vaga dessa dualidade e examinemos as três maneiras em que é expressa. Primeiro, pela idéia de que alguém atinge os verdadeiros proces-sos do conhecimento quando esses processos são pensados den-tro do individuo, independentemente de sua cultura e, concre-tamente, de qualquer cultura. Nesse sentido, como escreve Geli-

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ner, “cultura, um conjunto partilhado de idéias, válido simples-mente porque elas constituem os bancos conceituais conjuntos de costumes de uma comunidade em ação, é rejeitada. É rejeitada porque é uma cultura. Sua origem social e comum é sua mácula fatal” (1992: 18).

Em segundo lugar, há a convicção, expressa principalmente na psicologia da massa, que as pessoas reunidas em um grupo po-dem ser consideradas como sofrendo mudanças em suas qualida-des psíquicas, perdendo algumas e adquirindo outras. Ou, mais precisamente, assume-se que as pessoas se comportam de ma-neira correta e racional quando sozinhas, mas tornam-se imorais e irracionais quando agem em grupo (Moscovici, 1985). Finalmen-te e mais recentemente, à luz da pesquisa que mencionei antes, a pessoa comum, o “noviço”, tem a tendência de desprezar a infor-mação dada, de pensar de maneira estereotipada, não conseguin-do levar em conta os erros a que isso induz. Em outras palavras, a pessoa comum é, como dizem, um miserável, cognitivamente fa-lando (“cognitive miser”).

Aqui está uma imagem pouco lisonjeira da maneira como as pessoas pensam e agem quando colocadas juntas na sociedade a que pertencem. Não creio em um tipo de debilidade mental que é invocada e reconhecida através do que se parece a um conjunto de crenças habituais, de desvios ou distorções de nosso conheci-mento do mundo que surpreende ou escandaliza. Mas o fato é que isso se apresenta como os sintomas de uma psicopatologia de ori-gem social. Devo acrescentar que isso não é uma metáfora, lem-brando que a psicologia social foi, por muito tempo, igualada, por esse motivo, a psicologia patológica. Isto é expresso no próprio ti-tulo de uma famosa revista dos Estados Unidos: o Journal of Ab-normal and Social Psychology.

Essa associação provém também, e talvez principalmente, do fato de que psicólogos como Freud, Jung e Janet, que tanto contri-buíram para a psicopatologia, dedicaram também importantes li-vros e artigos à psicologia coletiva. Era evidente para eles, como para muitos outros, que o pensamento normal dos grupos tem sua contrapartida nas anomalias mentais dos indivíduos. E isso vale para as massas civilizadas, as assim chamadas sociedades primiti-vas ou religiões exóticas. Embora falemos sobre isso de maneira menos clara, ou sejamos menos conscientes disso, essa relação en-tre pensamento coletivo e pensamento patológico está também ins-crita em nossas teorias e métodos de observação. Isso significa que

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finalmente razão e sociedade ou cultura são antitéticas. Como uma conseqüência, a auto-suficiência total do individuo acaba sendo re-presentada como a situação de referência e a norma, enquanto a as-sociação de indivíduos na unidade social se toma uma situação de-rivada, uma situação de dependência em relação a um ambiente que modifica essa norma em um sentido positivo ou negativo.

Ao curso dessa discussão, contudo, há algo que seguramente nos ajudará a surpreender-nos, o que me obriga a fazer um comen-tário adicional. Nós não apenas aceitamos que é absolutamente normal que exista uma dualidade entre as formas de pensamento não-social e as formas de pensamento e de crença compartilhadas. Nós também assumimos que os conceitos e leis das primeiras ser-vem como a referência para as Ultimas. Como observam Wyer &Stull (1984), “Esse raciocínio significa que os processos impli-cados em lidar cognitivamente com acontecimentos não-sociais são mais simples e conceitualmente mais fundamentais que os processos implicados nos acontecimentos sociais. O estudo do pro-cessamento cognitivo no contexto dos estímulos não-sociais fornece um fundamento sobre o qual os princípios sociais cognitivos mais complexos podem ser construídos” (p. 25). E desse pressuposto, o mais limitador e também o mais desprovido de fundamento, que nós necessitamos tentar nos libertar. De qualquer modo, é somen-te no contexto de uma psicologia diferente que nós podemos eluci-dar os sentidos dessas formas de pensamento e crença comuns.

É também acertado mostrar que as coisas estão mudando. A supremacia do social é mais e mais reconhecida nos campos da epistemologia, linguagem e psicologia social. Pessoalmente, estou convencido de que essa é uma tendência que irá se aprofun dar. Entretanto, não teria escrito esse capitulo se não estivesse con-vencido que não é suficiente reconhecer a supremacia do social como se isso fosse uma esmola, mesmo no sentido de um consenso geral. Acima de tudo, nós precisamos recuperar a perspectiva teó-rica que pode iluminar esses fenômenos surpreendentes como uma parte normal de nossa cultura e de nossa vida em sociedade. Tomando tudo em consideração, é uma questão de reformular a polaridade do individuo e da sociedade em termos mais claros e definidos com mais precisão.

2 . Uma noção anti-cartesiana: representações coletivas

Parece-me que nada do que disse até agora me distancia do

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que é hoje conhecido como a psicologia do social. O problema não é escolher entre a supremacia do individuo ou da sociedade, é algo mais concreto. Está relacionado com a explicação dos fenômenos da crença, da religião ou magia, do conhecimento comum e popu-lar, das formas ideológicas de pensamento e ação coletiva. Para começar, por que a sociedade cria tais crenças e idéias, sejam elas contas ou não? Depois, por que são elas aceitas e transmitidas de uma geração a outra? Mesmo que a natureza social de nosso pen-samento, linguagem e assim por diante seja reconhecida na psico-logia, o que não é o caso nos dias de hoje, o problema seria coloca-do nos mesmos termos e os que o discutem e continuarão a discu-ti-lo teriam, de algum modo, de resolvê-la Não é possível buscar refúgio nas trivialidades da intersubjetividade ou das construções lingüísticas. E eu penso que a cognição social continuará a ser tudo, menos convincente, porque não se confrontou com esse problema.

Sou, portanto, levado, hoje, a reconhecer esse fato simples e evidente, embora não sem sentido. Deixando a psicanálise á parte, que relacionou a psicologia coletiva e a psicologia individual atra-vés do inconsciente, apenas a linha de pensamento que se de-senvolveu na direção da teoria das representações dedicou-se se-riamente à solução do problema. E isso acontece quase um século depois que o aparecimento de suas primeiras noções exigissem a autonomia de nossa psicologia para a própria solu ção. Note-se que, em uma era em que os rótulos mudam tão rapidamente e onde cada um pode romper tão radicalmente quanto possível com o passado, eu hesito em apelar para uma linha de pensamento que começou com as próprias ciências humanas e que forma, por as-sim dizer, parte de seu código genético. Mas pode-se também pen-sar que o fato de ela persistir, o fato de ser necessário retomar a essa linha de pensamento sem ser limitado por nenhuma tradição de escola alguma, significa que ela atinge algo fundamental e pre-cioso na maneira como as pessoas vivem.

A teoria das representações sociais é singular, parece-me, de-vido ao fato de esta teoria tender mais e mais na direção de se tor-nar uma teoria geral dos fenômenos sociais e uma teoria especifica dos fenômenos psíquicos. Esse paradoxo, como veremos, não se dá por acaso; pelo contrário, provém da natureza profunda das coisas. É uma teoria geral à medida que, dentro do que lhe compete, uma sociedade não poderia ser definida pela simples presença de um coletivo que reuniu indivíduos através de uma hierarquia de po-der, por exemplo, ou através de intercâmbios baseados em inte-

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resses mútuos. Certamente existem poder e interesses, mas para serem reconhecidos como tais na sociedade devem existir repre-sentações ou valores que lhes dêem sentido e, sobretudo, que se esforcem para que os indivíduos convirjam e se unam através de crenças que garantam sua existência em comum. Isso tudo é gui-ado por opiniões, símbolos e rituais, isto é, por crenças e não sim-plesmente pelo conhecimento ou técnica. As opiniões pertencem a uma ordem diferente: crenças sobre a vida em comum, sobre co-mo as coisas devem ser, sobre o que se deve fazer; crenças sobre o que é justo, o que é verdadeiro e o que é belo; e ainda outras coisas, todas produzindo um impacto nos modos de se comportar, de sentir ou de transmitir e permutar bens.

É no momento em que o conhecimento e a técnica são trans-formados em crenças que congregam as pessoas e se tornam uma força que pode transformar os indivíduos de membros pas-sivos em membros ativos que participam nas ações coletivas e em tudo o que traz vida a uma existência em comum. As sociedades se despedaçam se houver apenas poder e interesses diversos que unam as pessoas, se não houver uma soma de idéias e valores em que elas acreditam, que possa uni-las através de uma paixão co-mum que é transmitida de uma geração a outra (Moscovici, 1993a). Em outras palavras, o que as sociedades pensam de seus modos de vida, os sentidos que conferem a suas institui ções e as imagens que partilham, constituem uma parte essencial de sua realidade e não simplesmente um reflexo seu. Como observou o filósofo polonês Leaek Kilakowski, “a realidade de uma sociedade depende em parte do que existe em sua representação de si mes-ma” (1978: 94).

Antes de continuar, devemos levar em consideração um fato importante, mas embaraçoso: existem fenômenos psíquicos que, embora variem em complexidade, possuem em comum uma ori-gem social e são indispensáveis para a vida em comum. Mas logo que se examine a sociedade desse ponto de vista, um enigma vem à tona. Na verdade, não se compreende mais como as sociedades são capazes de sobreviver embora conservando crenças religiosas ou mágicas e deixando-se guiar por ilusões, ideologias e os pre-conceitos a elas atribuídos. Além disso, espantamo-nos por que as pessoas criam essa confusão de irracionalidade através da qual elas se iludem a si mesmas. Falando das crenças religiosas, que lhes interessavam acima de tudo, Durkheim escreveu:

É impensável que sistemas de idéias como as religiões, que ocu-

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param um lugar tão importante na história - de cuja fonte

os povos de todas as épocas retiraram a energia de que n e-

cessitavam para viver - possam ser apenas fábricas de ilusão. Há um

consenso em admitir hoje que a lei, a moral, o próprio pensamento cien-

tífico nasceram da religião, foram por muito tempo confu n-

didos com ela e permaneceram imbuídos com seu espírito. Poderia

uma fantasmagoria oca ser capaz de moldar a consciência humana de

maneira tão poderosa e duradoura? Mas se as próprias pes-

soas criam esses sistemas de idéias falsas e ao mesmo tempo são iludi-

das por elas, como poderia essa espantosa ilusão se perpetuar atra-

vés do inteiro curso da história? (1912/1995: 66).

Suspeito que, com razão, é esse rebaixamento das crenças compartilhadas, esse desprezo pelas idéias e pelo conhecimento popular, pelas outras culturas em geral, que ofendia Durkheim. Como conceber uma sociedade onde a confiança e a solidariedade sejam apenas uma ilusão? Deveríamos admitir que a cultura tem a função secular de fornecer à humanidade fantasmagorias e enga-nos? Qual é o conteúdo da consciência coletiva de uma sociedade que procura zombar de suas idéias e valores? Devemos conservar o sentido profundo dessas interrogações sobre coisas pelas quais nós conseguimos deslizar tão facilmente, ainda hoje, na psicologia e até mesmo na sociologia. Seja o que forem, devemos prestar menos atenção a seu caráter anormal, do ponto de vista do indivíduo e de suas crenças e conhecimento e mais atenção a seu caráter social, à vida mental e psíquica que elas expressam. A fim de primeiramente descrevê-las e depois explicá-las como a existência ser comum de um grupo de indivíduos, devemos levar em consideração três coi-sas:

Supomos que as pessoas conheçam essencialmente tanto o mundo natural, como o mundo social (Heider, 1958) através de percepções sensoriais da informação, que esperam ser observa-dos e explicados através de conceitos adequados. As percepções são como Adão, no dia de sua criação, abrindo seus olhos e vendo animais e outras coisas, desprovidas de tradição, desprovidas de conceitos compartilhados com os quais elas coordenam suas im-pressões sensoriais. Essa imagem não pode, na verdade, ser apli-cada às pessoas que vivem em sociedade, que possuem um modo comum de vida que mostra como os seres ou objetos devem ser classificados, como julgá-los de acordo com seu valor, que infor-mação é digna de crença e assim por diante. Podemos dizer a cada um de nós o que o filósofo inglês Cornford disse a respeito dos filó-sofos e das pessoas acadêmicas:

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Em qualquer situação e sempre que um profissional da ciência de-

fende tal opinião, podemos estar seguros que ele não está

apresentando uma descrição dos fatos observados, mas di-

recionando seu conhecimento à defesa de uma crença que ele apren-

deu, não diretamente da Natureza, mas nos joelhos de sua mãe; em ou-

tras palavras, uma representação coletiva. E essa represen-

tação especifica não é fruto de longos resultados acumulados da ciên-

cia e da filosofia. Ao contrário, quanta mais a examinamos em sua histó-

ria anterior, tanto mais ela se mostra firmemente estabelecida e as

contradições cotidianas de toda a experiência ainda não o

desenraizaram da mente popular (1912: 43).

Isso significa que a tentativa de compreender o conhecimento e as crenças complexas de uma sociedade à base de leis elemen-tares de conhecimento individual, que estão, em última análise, fundamentadas em dados sensoriais ou experiência sensorial, é sempre impossível, não porque qualquer conclusão que possa ser tirada dela não tenha valor, mas porque as premissas de onde ela parte são artificiais e não têm profundidade.

2) Não temos razão para excluir totalmente a experiência e as percepções individuais. Mas, com toda a justiça, devemos recordar que quase tudo o que uma pessoa sabe, ela o aprendeu de outra, seja através de suas narrativas, ou através da linguagem que é ad-quirida, ou dos objetos que são empregados. Tais coisas constitu-em, em geral, o conhecimento ligado ao tipo mais antigo, cujas raízes estão submersas no modo de vida e nas práticas coletivas das quais todos participam e que necessitam ser renovadas a cada instante. As pessoas sempre aprenderam umas das outras e sem-pre souberam que isso é assim. Tal fato não é exatamente uma descoberta. A importância dessa proposição para a nossa teoria é que conhecimento e crenças significativas tem sua origem de uma interação mútua e não são formadas de outro modo.

3) As idéias e crenças que possibilitam às pessoas viver estão encarnadas em estruturas especificas (clãs, igrejas, movimentos sociais, famílias, clubes, etc.) e são adotadas pelos indivíduos que são parte delas. O sentido que comunicam e as obrigações que re-cebem estão profundamente incorporados em suas ações e exer-cem uma coação que se estende a todos os membros de uma co-munidade. É provavelmente essa coação que nos obriga, conforme

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Weber, a não ignorar o papel causal das formas coletivas de pen-samento no desempenho de nossas atividades comuns e das ativi-dades que esperamos de outros. Escreve então:

Esses conceitos de entidades coletivas que são encontrados

tanto no senso comum, como em outras formas de pensa-

mento, possuem um sentido nas mentes das pessoas individuais,

parte como algo realmente existente, parte como algo com autori-

dade normativa. Isso é verdadeiro não apenas para juízes, mas

também para indivíduos particulares normais. Os atores,

portanto, orientam, em parte, sua ação em conformidade com eles e

nessa atividade as idéias possuem uma influência causal poderosa,

muitas vezes decisiva, no curso da ação de indivíduos concretos (We-

ber, 1968/1972: 14).

Se Weber está correto, então formas de pensamento coletivo estão fortemente incorporadas nas motivações e expectativas dos indivíduos, que dependem, para sua eficácia, em geral, de sua ação. É exatamente isso que ele tentou mostrar em seu estudo do espírito do capitalismo: práticas econômicas racionais nasceram das crenças das seitas puritanas e dos ensinamentos da Bíblia, como na esperança premeditada de sua própria salvação.

Essas três coisas - a primazia das representações ou crenças, a origem social das percepções e das crenças e o papel, algumas vezes de coação, dessas representações e crenças - são o pano de fundo sobre o qual a teoria das representações sociais se desen-volveu. Penso que tracei seu perfil de maneira suficientemente clara para justificar uma observação, a de que esse pano de fundo contribui para a solução do problema mencionado anteriormente. Podemos encontrar um delineamento dele na obra em que Dur-kheim discute esse problema, The Elementary Forms of the Religi-ous Life (1912/1995). As partes descritivas do livro reservam um amplo espaço às crenças religiosas dos indígenas australianos, enquanto as partes explicativas, no meio e no fim da obra, são dedicadas à criação e ao sentido dessas crenças como o cimento da sociedade em geral. O livro apresenta, com muitos detalhes, as peculiaridades do pensamento humano, as estranhas ilusões e práticas compartilhadas por uma comunidade, ou suas idéias, que podem ser muito curiosas, mas apenas fracamente científicas.

Durkheim apresenta, então, um exame detalhado do que pa-rece ser o aspecto geral da adoração de animais e plantas, juntas ósseasou madeira, bem como esquemas pouco claros de idéias, tais como o famoso maná e as fórmulas que acompanham cada

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ritual. Nada mais permanece a nós oculto, seja o delírio exaltado da dança coletiva ao redor do totem durante a qual toda psique indivi-dual se torna sugestionável, ou o caráter licencioso do êxtase ritu-al que suspende a relação consciente com a realidade. É nesse estado de efervescência que as crenças são criadas e ganham vida comum, inculcadas em cada um dos participantes. Na manhã que segue à cerimônia ritual, os “selvagens” acordam cheios de triste-za, mas - eles são parte um do outro pelo fato de terem tornado pró-prias essas percepções e valores compartilhados. Pode-se ver tam-bém em outros momentos, nas orações e manipulações mágicas para a propiciação dos espíritos, como as crenças trazem sucesso na caça e na pesca, ou fornecem remédio para algumas doenças.

O que é interessante aqui é o fato de que através desses fan-tásticos e até mesmo bizarros elementos, um universo de coisas sagradas e por isso impessoais é constituído nessas sociedades australianas, um universo que apresenta animais como totens, depois os objetos assobiados a esses totens e finalmente até mesmos os próprios indivíduos. Nada se da mais fácil do que tra-çar a analogia com os universos religiosos ou políticos de nossas sociedades e mostrar uma oportunidade que não foi perdida até onde nossas crenças são fundamentadas em pensamento simbóli-co, no deslocamento de observações, rituais extremados e emo-ções intensas.

Durkheim reconhece que tais coisas podem parecer qu i-méricas ou irracionais àqueles que as julgam na base de sua rela-ção com a realidade física. Mas se o leitor me perdoar por retornar a coisas que já discuti em outro lugar (Moscovici, 1988/1993), na verdade, chega-se à conclusão oposta logo que se assume que atrás dessas ilusões, rituais ou emoções existem representações coletivas que são partilhadas e transmitidas de uma geração a outra sem que mudem. A impressão é confirmada e fortificada quando nos damos conta de que, através de totens e rituais, a sociedade celebra o culto de si mesma, através de divindades in-terpostas. Sua autoridade difusa e impessoal sobre os indivíduos é a da própria sociedade à qual pertencem.

É verdade que toda pessoa, ao adorar uma planta ou um ani-mal, parece ser a vitima de uma ilusão. Mas se todas juntas reco -nhecem seu grupo dessa maneira, então estamos lidando com uma realidade social. Elas representam, então, não apenas seres ou coisas, mas os símbolos dos seres e das coisas. É sobre estes símbo-los que as pessoas pensam, é face a face com os símbolos que as

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pessoas se orientam, como nós fazemos quando diante da ban-deira ou da chama no Arco do Triunfo. Do mesmo modo, condutas rituais têm, como sua finalidade concreta, não tanto fazer chover ou prantear uma morte, mas manter a comunidade, revigorar o sen-tido de pertencer a um grupo, inflamar crença e fé. Estou longe de sugeri que essa explicação da vida religiosa é a melhor, ou que ela resistiu à critica do tempo. Mas para mim é suficiente ilustrar o sentido em que representações latentes são expressas através de conteúdos mentais e comportamentos simbólicos. Seria legitimo perguntar se esse enfoque teria dado conta do que dele se esperava e, com isso, tenha ajudado a resolver nosso problema concreto, se foi permitido à hipótese alcançar consecução, isto é, a hipótese de que representações coletivas são racionais, não apesar de serem coletivas, mas porque elas são coletivas e até mesmo que essa é a única maneira pela qual nos tornamos racionais. De fato, de acor-do com Durkheim, com base em suas diferentes sensações, os in-divíduos não poderiam chegar nem a noções gerais, nem a estabe-lecer qualquer regularidade. Não podemos mais ver o que é que nos faça agir assim. Criticando David Hume, o sociólogo afirma que não é possível compreender como ou por que, em nossa soli-dão, poderíamos descobrir uma ordem através de nossa associação de idéias ou sensações fugazes. E mesmo supondo que um indiví-duo fosse capaz de agir assim, é impossível compreender como essa ordem poderia permanecer estável e impor-se sobre todos. Por outro lado, podemos compreender que uma representação, que é coletiva porque é o trabalho de cada um, pode tornar-se estável através da reprodução e transmissão de uma geração a outra. Ela também se torna impessoal á medida que se desliga de cada um e é partilhada através dos recursos dos conceitos de uma linguagem comum. "Pensar conceitualmente não é meramente isolar e agrupar as características comuns a determinado número de objetos. É também incluir o variável dentro do permanente e o indivíduo dentro do social" (Durkheim, 1912/1995: 440).

Além do mais, as principais categorias da representação são de origem social e são trazidas à cena exatamente em situações em que todos parecem se opor a elas. Desse modo, um rito mími-co, onde gritos e movimentos imitamos do animal que se quer ver reproduzido, torna presente um processo causal ao pé da letra. Ou de novo, a fórmula mágica, “o semelhante atrai o semelhante”, liga diferentes coisas e faz com que algumas pareçam uma função das outras. Mas nesse caso, um poder causal implícito é atribuído a

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algo para produzir seu semelhante e é isso que é essencial. É desse modo que uma categoria concreta de uma causalidade ativa é for-mada, tanto na prática da cultura, como na prática da magia. Ou repetindo, à medida que cada sociedade, por mais primitiva que seja, divide e classifica seus membros, ela tende também, ne-cessariamente, a classificar seres animados ou inanimados de a-cordo com os mesmos critérios. Uma lógica de classificações é com isso criada, que pode ser grosseira, mas não é menos rigorosa por isso. Além do mais, religiões elementares esboçaram os princípios básicos dos conceitos que, conforme Durkheim, tornaram possí-veis a ciência e a filosofia.

A religião os tomou possíveis. É devido ao fato de a religião

ser uma coisa social que ela pôde desempenhar esse papel. Para que

os homens possam conseguir o controle das impressões sensoriais

e substituídas com uma nova maneira de imaginar4 o real, um novo tipo

de pensamento teve de ser criado: pensamento coletivo. Se

apenas o pensamento coletivo tem o poder de conseguir tal coisa. aqui

esta a razão: Criando todo um mundo de ideais, através dos

quais o mundo das realidades sensíveis pareceria transfi-

gurado, exigiria uma hiper-excitação das forças intelectuais

que é possível somente na e através da sociedade (Durkheim.

1912/1995: 239).

Sejam quis forem as circunstâncias, é claro que a energia psí-quica criada através da participação dos indivíduos na vida do grupo e as categorias mentais que eles cristalizam permite que re-presentações coletivas se descolem, formando um complexo de idéias e inferências que deve ser chamado racional. É claro que eu não paro no conceito sem discutir sua justificação. Parece-me que Durkheim queria designar com esse termo um conteúdo intelectu-al, assemelhando-se, sob alguns aspectos, aos paradigmas de Thomas Kuhn e, sob outros, às formas simbólicas de Cassirer, que subjazem às crenças religiosas, ás opiniões de uma sociedade, à ciência. Representação possui um caráter intelectual claramen te marcado, mesmo que os aspectos cognitivos não sejam especifi-cados pelo sociólogo (Ansart, 1988).

Afirma Durkheim: “Um homem que não pensa com conceitos não seria um homem, pois ele não seria um ser social. Restrito apenas a percepções individuais, ele não seria diferente de um

4 Em s ua nova tradução, Karen Fields Vaduz représenter de Durkheim por imaginação (em mules. imagining) (N. do T)

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animal” (1912/1995: 44O). Essas são expressões fortes. Não pode-mos nos queixar de que não sejam claras. Traçam uma fronteira clara entre a psicologia individual e a psicologia social, ligando cada uma delas a sua própria realidade e a suas formas distintas de pensamento. Nessas circunstâncias e sem cair no banal, pode-se concluir que, de acordo com o sociólogo, é obrigação da última, isto é, da nossa ciência, conseguir uma compreensão mais pro-funda das representações públicas e culturais. De acordo com Durkheim, nossa ciência necessita estudar, através de compara-ções de temas míticos, lendas, tradições populares e linguagens. como as representações sociais estão ligadas ou se excluem, como elas convergem ou se diferenciam umas das outras e assim por diante (cf. Durkheim, 1895/1982).

As argumentações de Durkheim sobre esse ponto, a visão que ele expressa da gênese coletiva de nossas crenças, de nosso co-nhecimento e do que nos torna seres racionais de maneira mais geral podem ser consideradas como discutíveis, ou mesmo desa-tualizadas. O mesmo pode ser dito da influência das representa-ções coletivas latentes sobre nossas representações individuais. Mas permanece o fato de que elas são o único esboço de uma visão coerente que continua a existir. Tal é também a opinião apresentada recentemente pelo antropólogo Ernest Gellner sobre a solução do problema com o qual nós estamos preocupados: “Não existe teoria melhor disponível para responder a essa questão. Nenhuma outra teoria realça o problema tão bem” (1991: 37). Além disso, a linha geral do argumento interessa mais que os argumentos invocados pelos críticos de Durkheim. E seguindo a linha que nos é demarca-da, ao menos sabemos para onde estamos caminhando.

3.Representações coletivas e desenvolvimento cultural

Por todos os lados nos é negado o direito de pensar uma psico-logia das representações comuns e de trabalhar cientificamente com base nessa hipótese. E contudo isso é necessário, pois os da-dos da psicologia individual são elementares e se referem apenas a fenômenos extremamente limitados. Tanto na criança como no adulto vêem-se muitas vezes atos psíquicos cuja explicação implica outros atos que não dependem de representações individuais. Esses atos não são apenas as percepções de outros, ou atitudes com res-peito a grupos étnicos. Nas nossas conversações cotidianas menos reprimidas encontramo-nos confrontados com imagens lingüilísti-

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cas ou influências que vêm à mente sem que sejamos nós sua ori-gem e com deduções cuja formação não pode ser atribuída a ne-nhum de nossos interlocutores, como é o caso dos boatos. Todos esses atos permanecem sem coerência se nós afirmamos que eles são deduzidos de raciocínio ou expressões individuais, mas eles podem ser combinados em um todo cuja coerência pode ser des-coberta quando se leva em conta as representações sociais pressu-postas. Encontramos nessa melhor compreensão um motivo sufi-ciente para ir além da experiência imediata de cada pessoa. E se, por outro caminho, nós podemos mostrar que a psicologia das re-presentações coletivas, contrariamente ao que alguns acreditam, esclarece as operações mentais e lingüísticas dos indivíduos, então nossa hipótese irá receber uma justificação suplementar.

Na verdade, as coisas são assim: acima de tudo, Durkheim traçou os contornos de um programa de pesquisa ao definir uma posição de principio e o fundamento coletivo de nossa vida mental. Ele formulou, como veremos, a idéia de representações coletivas como a matriz subjacente, poderíamos mesmo dizer inconsciente, de nossas crenças, de nosso conhecimento e de nossa linguagem. Portanto, mesmo que alguém possa desaprovar essa maneira de falar, não existe tal coisa, estritamente falando, como racionalida-de individual, que é a armadilha de uma das crenças mais genera-lizadas. Como escreveu Plocart: “Os homens de todas as raças e gerações estão igualmente convencidos de que eles extraem seu conhecimento da realidade” (1987: 42). Ao argumentar que eles extraem suas categorias do pensamento da sociedade, Durkheim iniciou uma mudança radical na sociologia e antropologia. Mas essa é também a razão por que essa idéia é ainda contestada hoje, ou ignorada ao ponto de, mesmo nas biografias mais perspicazes do sociólogo francês, ser feita a ela apenas uma rápida alusão (Giddens, 1985).

Contudo, necessitamos reconhecer também que, preocupado com a oposição entre o coletivo e o individual e em mostrar a con-tinuidade entre religião e ciência, Durkheim deu a essa idéia um sentido que é bastante intelectual e abstrata Para nos aproximar-mos dessa questão da maneira mais concreta, necessitamos pres-tar maior atenção as diferenças que ás semelhanças entre repre-sentações coletivas, ligá-las a diferentes sociedades a fim de ser-mos capazes de compará-las de maneira segura. Nesse sentido, parece que foi Lévy-Bruhl quem transformou essa idéia geral em um conceito preciso e conseguiu, mesmo que de maneira frag-

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mentada, fazer a comparação. Isso é incontestável do ponto de vista que nos interessa, pois, ao mesmo tempo, ele esboçou sua psicologia social autônoma, a cuja importância retornarei mais tarde. Sabemos que as premissas de seu trabalho e de sua psicolo-gia foram, e continuam a ser, escandalosas (Lloyd, 199O). Mas não estou interessado aqui nesse escândalo, ou nas razões confusas que levaram à rejeição de Lévy-Bruhl, pois existem muitos livros e escritos sobre a famosa “mentalidade pré-lógica”. Pode-se encon-trar uma discussão sucinta e imparcial dessas que stões disputa-das em um excelente livro de Gustav Jahoda (1982).

Podemos tentar compreender o conceito de maneira rápida dizendo que, pressupondo o fundamento coletivo, Lévy-Bruhl in-sistiu em quatro aspectos dessas representações.

Elas possuem um caráter que nos dias de hoje descreveríamos como holistico, que significa dizer que não podemos atribuir uma crença ou categoria isolada a um individuo ou a um grupo. Desse modo, toda idéia, ou crença, pressupõe grande número de outros com os quais forma uma representação total. Por exemplo, a idéia “Esse homem é alemão” pressupõe que a idéia de “homem” seja acessível, bem como a idéia de “alemão” e, conse-qüentemente, a de “tipo”, “francês” e assim por diante. Por conse-guinte, a crença “Esse homem é alemão” pressupõe crenças sobre nações e implica uma crença que “Esse homem não é um turco”, etc. O holismo de uma representação significa que o conteúdo se-mântico de cada idéia e cada crença depende de suas conexões com outras crenças e idéias. Portanto, ao contrário do que é aceito na cognição social, o erro ou verdade de uma das idéias ou crenças não implica que a representação partilhada pelo coletivo tenha um caráter errôneo ou verdadeiro, ou que sua maneira de pensar seja errônea ou verdadeira. Evans-Pritchard compreendeu a importân-cia desse aspecto quando escreveu que Lévy-Bruhl “foi um dos primeiros, se não o primeiro, a enfatizar que as idéias primitivas, que nos parecem tão estranhas e às vezes “idióticas”, quando con-sideradas como fatos isolados, criam sentido quando vistas como partes de conjuntos de idéias e comportamentos, possuindo cada parte uma relação compreensível com outras” (1965: 86). É, pois, a representação que une as idéias e o comportamento de um coleti-vo, representações que são formadas no decurso do tempo e as quais as pessoas aderem de maneira pública.

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Podemos pôr fim a todos os equívocos que cercam a natureza das representações no momento em que, daqui para frente, ao des-crevermos os diferentes tipos de crenças, deixarmos de lado a ques-tão de se necessitamos, para classificá-las, saber se elas são intelec-tuais ou cognitivas e as juntarmos apenas de acordo com sua cone-xão e sua aderência a uma sociedade ou cultura específicas. Devido a várias razões, isso é até mesmo mais verdadeiro, conforme Lévy-Bruhl, para as assim chamadas culturas primitivas, pois “o que é concretamente” representação para nós, encontra-se combinado com outros elementos de caráter emocional ou motor, colorido e manchado por eles e, por isso, implicando uma atitude diferente com respeito aos objetos representados” (1925/1926: 36). Todos os símbolos presentes e ativos em uma sociedade obedecem tanto à lógica do intelecto quanto à lógica das emoções, mesmo que estes símbolos possam estar fundamentados em um principio diferente. Afirmo que isso vale para qualquer cultura e não apenas para as as-sim chamadas primitivas. Não devemos hesitar, portanto, em tratar representações como construções intelectuais de pensamento, embora relacionando-as às emoções coletivas que as acompanham, ou que elas despertam. Quando fazemos discriminação contra um grupo, expressamos não apenas nossos preconceitos sobre essa categoria, mas também a aversão ou desprezo a que eles estão indissoluvelmente ligados.

3) Um provérbio alemão diz que “o demônio está no detalhe” e isso é também verdade com respeito as represen tações coleti-vas. Evidentemente, elas compreendem idéias e crenças que são gerais e as relacionam a práticas ou realidades que não o são. Além disso, talvez seja legitimo concebê-las e apresentá-las como uma ciência ou uma religião. Apesar disso, porém, é aconselhá-vel procurar por essas representações entre os aspectos mais tri-viais da linguagem ou comportamento, demorar-se sobre as in-terpretações mais obscuras ou as metáforas mais fugidias, a fim de descobrir sua eficácia e seu sentido. Se alguém, pois, as exa-mina como um todo, as representações devem se mostrar como continuas e internas tanto à sociedade como á realidade e não como sua cópia ou seu reflexo. Nesse sentido, uma representa-ção é ao mesmo tempo uma imagem e uma textura da coisa ima-ginada que manifesta não apenas o sentido das coisas que coe-xistem, mas também preenche as lacunas - o que é invisível ou está ausente dessas coisas.

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Lendo os livros de Lévy-Bruhl, ficamos surpresos com o talen-to com que ele investigou conteúdos religiosos ou com que des-creveu rituais e, além disso, pelo exame minucioso de suas ramifi-cações nas expressões lingüísticas, o uso de números, o compor-tamento para com os doentes ou as atitudes com respeito à morte. Desse modo, uma compreensão das assim chamadas representa-ções primitivas aumenta progressivamente à medida que as ve-mos fincando raízes na vida concreta do povo. Entre os pesquisa-dores contemporâneos dentro desse campo somente Denise Jode-let (1989/1991, 1991a) demonstra um cuidado semelhante.

Isso, contudo, não se relaciona com o método, mas como pró-prio conceito, que assume um sentido diferente. É isso que Husserl viu com clareza ao escrever em uma carta a Lévy-Bruhl a 11 de mar-ço de 1935 (a data aqui é importante):

Na verdade nós sabemos há muito tempo que todo ser humano

possui sua “representação do mundo”, que cada nação, cada

esfera cultural supranacional vive, por assim dizer, em outro mundo di-

ferente daquele que as circunda e nós também sabemos que isso é assim

para cada época histórica. Mas confrontados com essa generalidade va-

zia, seu trabalho e o excelente tema por ele tratado nos faz ver algo

tão surpreendente devido a sua novidade; é, com efei to, pos-

sível e absolutamente crucial tomar como tarefa “sentir a partir de

dentro” uma humanidade fechada vivendo em uma sociedade ativa e

generativa, para compreendê-la, pois ela contém um mundo

em sua vida social uniforme e, com base nisso, ela assume esse mundo

não simplesmente como uma “representação do mundo”, mas como o

próprio mundo existente. Chegamos, desse modo, a apreender,

identificar e pensar seus costumes e, conseqüentemente, sua lógica

bem como sua ontologia e, através de suas correspondentes ca-

tegorias, as do mundo circundante.

Esse é um texto difícil, pois vai além da psicologia ou antropo-logia existentes no momento lastimoso em que o grande filósofo alemão o escreveu. Mas seu autor reconheceu perfeitamente que uma representação social que fosse apenas uma representação de algo, de um ambiente ou objeto comuns, seria uma “generalidade vazia”. Ela foi muitas vezes pensada desse modo, apesar da preci-são que tentei dar a ela. Isso acontece quando alguém não leva su-ficientemente em conta sua especificidade e sua “novidade”, que é ser ao mesmo tempo a representação de alguém, de uma coleti-vidade que desse modo cria um mundo para si mesma.

4) Finalmente, devemos ter em mente que todas as represen-

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tações coletivas possuem a mesma coerência e valor. Cada uma pos-sui sua originalidade e sua própria relevância, de tal modo que ne-nhuma delas possui uma relação privilegiada com respeito às outras e não pode ser critério de verdade ou racionalidade para as demais. Caso contrário, logo que tal reconhecimento é concedido, por exem-plo, a uma representação científica ou moderna, então, como con-seqüência, as outras aparecem como inferiores, incompletas ou ir-racionais. Se insisto nesse ponto, é porque ele não é totalmente es-tranho à psicologia social e cognitiva contemporânea. Qualquer um pode compreender a pertinência dessa crítica lendo o excelente li-vro de Stephen Stich, The Fragmentation of Reason (199O), que faz um balanço da pesquisa realizada nessa psicologia e mostra como ela se prejudicou devido a esse reconhecimento errôneo.

Poder-se-ia pensar a respeito desses quatro aspectos como especificando o conceito de conhecimento com o qual estamos interessados e que retêm seu valor mesmo hoje. Mas é sobretudo o quarto aspecto que foi a fonte da afirmação escandalosa de Lévy-Bruhl, isto é, que é impossível propor um critério absoluto de ra-cionalidade que possa ser independente do conteúdo das repre-sentações coletivas e de sua inserção em uma sociedade especifica. Ele contestou, portanto, a proposição fundamental que defende que “pensamento primitivo” está interessado com os mesmos problemas ou o mesmo tipo de problemas do pensamento avança-do. Tal ponto de vista tornaria o primeiro uma forma rudimentar, até mesmo infantil, do segundo. Para Lévi-Bruhl existe uma des-continuidade, portanto uma profunda diferença, entre mentalida-de primitiva e mentalidade moderna ou cientifica. Não que as pes-soas nas culturas tradicionais tenham uma mentalidade mais sim-ples ou mais arcaica que a nossa. Pelo contrário, cada uma delas é igualmente complexa e desenvolvida e não temos razão para desprezar uma e glorificar a outra. Cada uma possui suas próprias categorias e regras de raciocínio que correspondem a diferentes representações coletivas.

Não podemos, então, como queria Durkheim, dar conta da psi-cologia tanto dos povos “primitivos”, como dos “civilizados” em termos dos mesmos processos de pensamento. Se não reduzirmos a psicologia do grupo à psicologia do indivíduo, do mesmo modo não devemos reduzir a psicologia dos diferentes grupos a uma entidade singular uniforme e indiferenciada. Como escreve Levy-Bruhl: “nós

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devemos, então, rejeitar de antemão toda idéia de reduzir as opera-ções mentais a um único tipo, sejam quais forem os povos que estão sendo considerados, e dar conta de todas as representações coleti-vas através de um funcionamento psicológico e mental que é sem-pre o mesmo” (1925/1926: 28). Esse é um sábio conselho que nos autoriza, na frase de Husserl, a “sentir a partir de dentro” como a mentalidade é moldada e como, por sua vez, ela molda, não a socie-dade em geral, mas essa sociedade da Melanesia, ou essa sociedade indígena, ou européia. Isso poderia ser mostrado em detalhe, mas essa não é a ocasião de se fazer isso. No entanto, podemos com-preender o sentido pleno da distinção entre dois modos de pensar e representar, prestando atenção á psicologia social que deles e-merge, em particular a das assim chamadas culturas primitivas, que está fundamentada em três idéias principais.

Primeiro, a idéia que as representações não-científicas dessas culturas estão embebidas em uma ambiance que sensibiliza as pessoas á existência de entidades invisíveis, sobrenaturais, em uma palavra, “místicas”. Essas entidades “místicas” dão um colori-do a todos seus modos de pensar, sugerindo ligações precoces en-tre as coisas representadas. Elas também tornam os indivíduos impermeáveis aos dados da experiência imediata. Em segundo lugar, há a idéia que a memória desempenha um papel mais impor-tante nessas culturas do que nas nossas. Isso significa que o mun-do das percepções mediadas e interiores domina o mundo das percepções diretas e exteriores. Finalmente, a terceira idéia é que as pessoas que criam essas representações e as colocam em práti-ca não são constrangidas, como nós, a “evitar a contradição” (Lévy-Bruhl, 1925/1926: 78). Pelo contrário, são forçadas a seguir a lógi-ca regulada pela lei da participação, que lhes permite pensar o que a nós é proibido, isto é, que uma pessoa ou uma coisa pode, ao mes-mo tempo, ser tanto ela mesma, ou alguém ou alguma coisa dife-rente.

Por exemplo, um animal pode compartilhar de uma pessoa; ou, freqüentemente, os indivíduos compartilham seus nomes, dessa maneira eles não necessitam revelá-los, pois um inimigo pode surpreendê-los e se aproveitar do dono do nome. Ainda mais, um homem participa da vida de seu filho, de tal modo que se o filho está doente, é o homem que toma o remédio em vez do filho. Chegamos nós, alguma vez, a aplicar a lei da participação? Pensamos nós que o homem é o que ele come, sugerindo que as

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qualidades do animal ou planta dos quais ele se alimenta acabam dando um aspecto específico a suas características? Podemos ver a razão por que Lévy-Bruhl qualificou os primitivos como “pré-lógicos”, não porque eles fossem ilógicos ou incapazes de pensar como os mais civilizados, mas porque seguiam outras leis de pensamento governadas pelo que é chamado de representa-ções coletivas místicas.

A pessoa que estiver lendo isso ficará, provavelmente, choca-da, como eu fiquei, com a semelhança entre a psicologia dessas representações e as do inconsciente formuladas por Freud à mes-ma época. Mas enquanto para Lévy-Bruhl essa psicologia expressa uma racionalidade alternativa, para Freud ela expressa a pró pria irracionalidade. Para ilustrar concretamente como o pensador francês concebeu a diferença, devido á qual ele foi tantas vezes criticado, devemos sonhar duas culturas fictícias. A primeira iria estabelecer, por decreto ou por voto, a psicanálise como sua re-presentação pública, a segunda a psicologia cognitiva. Na primei-ra, podemos supor que os indivíduos irão pensar em termos de en-tidades invisíveis: “Complexo de Édipo”, “catexias”, “superego” e que eles seriam capazes de associar livremente idéias sem se pre-ocupar com as contradições entre elas. No entanto, na segunda, eles não levarão nada em conta, com exceção de informação men-surável sobre a freqüência dos acontecimentos ou comportamen-tos percebidos e eles seriam forçados a obedecer ao principio da não-contradição, ou qualquer outro princípio que regula os cálcu-los de um computador.

Não queremos dizer, contudo, que os indivíduos na primeira cultura seriam incapazes de um pensamento que respeitasse a não-contradição, nem que os da segunda cultura não pudessem li-dar com associação livre, mas simplesmente que as representações coletivas de nossas duas culturas imaginárias diferem e impõem um ou outro principio sobre seus membros. Além do mais, os habitan-tes da cultura cognitiva irão dizer e em algum lugar, podemos estar seguros, eles o disseram (Moscovici, 1993a), que os habitantes da cultura psicanalítica são “pré-lógicos”. Mas eles estariam errados em pensar, como fazem, que isso significa ilógicos, pois é apenas uma questão de lógica diferente. Esse exemplo imaginário nos faz ver que é o conteúdo de uma representação e a natureza do grupo correspondente que estabelece o principio da racionalidade e não o inverso. Para empregar termos contemporâneos: o critério de ra-cionalidade aparece como uma norma inscrita na linguagem, nas

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instituições e representações de uma cultura especifica.

Gastou-se grande quantidade de tinta na discussão sobre essa diferença entre uma “mentalidade primitiva” e uma mentali-dade “civilizada”, ou “científica”. Na verdade, parece-me que a questão se refere à diferença entre crença e conhecimento, tão im-portante, mas tão pouco compreendida, como pode ser estabele-cida pela leitura das últimas reflexões de Wittgenstein sobre a crença. Na minha opinião, muitos equívocos poderiam ser dissi-pados se fosse aceita a sugestão que segue. A diferença com que estamos interessados toma um novo sentido quando p restamos atenção à distinção entre:

A. representações comuns cujo núcleo consiste em crenças, que são, em geral, mais homogêneas, afetivas, imperme-áveis à experiência ou à contradição e deixam pouco es-paço para variações individuais;

B. representações comuns fundamentadas no conhecimen-to, que são mais fluidas, pragmáticas, passiveis de teste de acerto ou erro e deixam certa liberdade para a lingua-gem, a experiência e até mesmo para as faculdades criti-cas dos indivíduos.

Vamos sintetizar. Indiferença à contradição, mobilidade nas fronteiras entre realidade interna e realidade externa, homogenei-dade do conteúdo seriam as características da psicologia associa-da à primeira cultura; abstenção de contradição, distinção entre realidade interna e realidade externa, permeabilidade à experiên-cia seriam as características da psicologia associada à segunda cultura. E evidente, contudo, que cada cultura as combina de acordo com seus próprios objetivos e história, impondo regras nas relações entre elas. Seja qual for a sorte dessa sugestão, eu a apre-sentei a fim de generalizar e realçar o sentido psíquico da distinção estabelecida pelo escritor francês. Em troca, espero expor, ao me-nos brevemente, qual foi sua influência e como o conceito de re-presentações coletivas de Lévy-Bruhl se tornou um modelo que foi - absorvido na psicologia contemporânea. Na ve rdade, a quase to-talidade da psicologia do desenvolvimento individual ou cultural é um produto seu.

4.Piaget, Vygotsky e representações sociais

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Na década de 1920, era ainda possível pensar em termos de evolução e, mais especificamente, de uma evolução de represen-tações “primitivas” sendo modificadas e transformadas em repre-sentações “civilizadas”. Até Lucien Lévy-Bruhl, acreditava-se que tal evolução poderia ser conseguida em virtude da famosa “unidade psíquica da humanidade”. Mas, depois dele, tornou-se possível pensar que essa evolução pode consistir em uma mudança des-contínua que ocorre com a passagem de uma cultura a outra. Essa questão pode parecer abstrusa, mas necessitamos lembrar que se quisermos ter uma idéia precisa das duas maiores influências que ela exerceu, uma sobre Jean Piaget, a outra sobre Lev Vygostsky.

Piaget foi, se não o discípulo, ao menos esteve muito íntimo do pensamento de Lévy-Bruhl, tanto em seu método, como a sua psicologia. Sem exagero, pode-se dizer que a psicologia das repre-sentações “primitivas” estabelecida pelo pensador francês foi refle-tida na psicologia das representações das crianças (por no ani-mismo infantil, no realismo intelectual, etc.) que devemos ao psi-cólogo suíço. Em outras palavras, o que um descobriu nas repre-sentações públicas das sociedades “exóticas”, o outro descobriu, de maneira transposta, nas representações supostamente privadas das crianças suíças. Piaget, contudo, distanciou-se de Lévy-Bruhl (e se aproximou de Durkheim e Freud) quando imaginou uma evolu-ção contínua estendendo-se dessas representações ”pré-lógicas” da criança, para as representações mais lógicas e individuais do adolescente.

O que sabemos é que Vygotsky, Alexander Luria e sua equipe voltaram-se para a mesma fonte intelectual. Evidentemente com inclinação política própria e, sobretudo, a revolução socialista os forçou a conceber uma psicologia que reconhecia o lugar legítimo da sociedade e da cultura, isto é, uma psicologia profundamente marxista que não se contenta em fazer pouco caso da primazia da sociedade, como acontece tanto no Oriente como no Ocidente com o acúmulo de declarações e citações, enquanto se procura ir ao encalço de uma psicologia individual. Como muitos russos do seu tempo, Vygotsky acreditou na verdade do marxismo materialista de uma sociedade nova e melhor, cujo sucesso era necessário ga-rantir. Ele e seus colegas não trataram essas questões com algum distanciamento irônico; eram pensadores comprometidos.

Foi precisamente porque eles tomaram esses problemas a

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sério, que chegaram a uma discussão mais aprofundada delas. Concluíram que, à parte o referencial geral, havia pouca esperança de encontrar um conceito fundamental no marxismo, ou uma vi-são frutífera para a psicologia. Eles não devem ser censurados por isso; na verdade, aos olhos de seus fundadores e dos pensadores contemporâneos da revolução, o marxismo não era a “ciência de tudo” o que até então existira. Através de uma febricitante análise da psicologia no decurso desses anos de criatividade e revolução, Vygostky e Luria abriram o caminho que lhes permitia introduzir os fenômenos sociais na psicologia e fundamentá-la sobre eles, Mas acima de tudo a introdução da dimensão histórica e cultural na psicologia foi feita à revelia. Como se pode adivinhar, pois esti-ve falando sobre isso, esse é o caminho das representações coleti-vas e a afirmação que os processos mentais superiores tem sua origem na vida coletiva do povo. De modo especial, o caminho que levou ao conceito dessas representações foi a psicologia de Lévy-Bruhl, cujo valor Piaget e Werner tinham começado a demonstrar.

Vocês não terão como objetar se, para confirmar essa afirma-ção, eu faça apelo a um erudito especialista em psicologia soviética que escreve:

Levando em consideração uma orientação social geral do

marxismo, deve-se pressupor que foi a teoria marxista que

forneceu uma orientação intelectual para Vygostsky. Esse pressu-

posto, contudo, não é à prova de refutação; como Vygotsky

mostrou em seu livro Crisis, a teoria marxista, na década de

1920, não conseguiu desenvolver nenhum dos conceitos exigidos

para o estudo psicológico do comportamento e da cognição

humanos. A única teoria suficientemente desenvolvida da

cognição humana como determinada socialmente foi oferecida

pela escola sociológica francesa de Emile Durkheim e foi discutida

nos trabalhos ligados a ela de Lucien Levy-Bruhl, Charles Blondel e

Maurice Halbwachs (Kozulin, 199O: 122).

Mesmo que esse autor sobreestime a convergência entre esses diferentes pensadores, ele sintetiza em termos precisos a maneira como essa conexão foi estabelecida e por que ela foi im-posta com tal nuforça. É verdade que podem ser encontradas em Vygotsky numerosas passagens que fazem eco a essa conexão e que podem ser mal interpretadas se for ignorada a inspiração que

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lhes está por detrás. De qualquer modo, logo no inicio desses anos cruciais, a noção de representações coletivas começou a moldar sua visão de vida mental, sua mediação lingüística e seu conteúdo soci-al. O encontro de Vygotsky com as categorias de Lévy-Bruhl deu a Luria um sentido concreto e permitiu a Vygotsky formular uma teoria do desenvolvimento cultural humano. Essa teoria original leva a marca de Vygostky mesmo que eu, pessoalmente, não esteja inclinado a lhe dar tanto valor cientifico como outros lhe dão. Além do mais, essa teoria propõe, ao contrário da de Piaget, uma evolução descontínua das representações coletivas.

Seja como for, uma vez feita a conexão, Vygotsky e Luria fo-ram os primeiros a tentar uma prova experimental em uma pro-porção verdadeira, o que ninguém havia tentado anteriormente. Como conta Luria em suas memórias: “Os dados em que Levy-Bruhl se apoiava, bem como seus críticos antropológicos e socio-lógicos - na verdade os únicos dados disponíveis a alguém na-quela época - eram anedotas coletadas por exploradores e missio-nários que tinham entrado em contato com esse povo exótico du-rante as suas viagens” (1979: 59). Portanto, eles tiveram a idéia de planejar o primeiro estudo de campo em uma escala relativamen-te ampla sobre as representações dos Uzbeks na Asia Central no início da década de 1930: “Embora pudéssemos fazer nossos es-tudos nas aldeias russas remotas, escolhemos para nossos campos de pesquisa as vilas e regiões nômades do Ezbekistão e Ásia Cen-tral, onde grandes discrepâncias entre formas culturais prometi-am maximizar a possibilidade de descobrir mudanças nas for-mas básicas, bem como no contexto do pensar das pessoas” (Luria, 1979: 60).

Podemos ver que esse vasto projeto procurou explorar em ni-vel coletivo entre os nômades o que Piaget explorou em nível indi-vidual entre as crianças. Eles tinham intenção de compreender as transformações psicológicas que ocorriam em uma população liga-das a sua religião e vivendo de um modo tradicional, mas que pas-savam por uma profunda metamorfose a um nível social e cultural como conseqüência da revolução. Os antigos referenciais de vida se desintegraram, a hierarquia havia desaparecido, escolas haviam sido abertas em numerosas aldeias, enquanto vários produtos tecnológicos apareceram, descontrolando a economia tradicional.

Esse estudo, publicado somente muitos anos depois(Luria 1976), confirmou, do meu ponto de vista, a conjetura de Levi-Bruhl e por isso deu à teoria de Vygotsky do desenvolvimento cul-

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tural e histórico uma sólida fundamentação. Mas, a um nível mais profundo, Vygotsky e Luria permaneceram mais fiéis que Piaget aos cânones da psicologia individual face ao conceito de represen-tações coletivas e fizeram um uso menos criativo da análise psico-lógica do pensador francês. Existe aqui uma inversão: o conceito de Piaget de desenvolvimento está mais distante de Levi-Bruhl, enquanto o conteúdo de sua psicologia está mais próximo dele, quanto com Vygotsky é exatamente o oposto. Como irmãos rivais, eles compartilham o mesmo fundamento científico, embora sendo totalmente opostos entre si. Espero que algum dia epistemólogos com mais tempo que eu se interessem por essa relação peculiar.

O que parece importante aqui é que durante os anos em que sua própria saúde piorou, bem como a saúde da revolução socia-lista, Vygotsky foi atacado porque sua teoria do desenvolvimento histórico e cultural, portanto, sua psicologia, devia muito às repre-sentações coletivas e aos escritos de Durkheim e Lévy-Bruhl refe-rentes a elas. Em um recente artigo, o psicólogo russo Brushlinky (1989) reviu novamente essas críticas relativamente corretas e defendeu Rubinstein, que estivera entre aqueles que fizeram tais críticas, pois ele, por sua vez, se tornou vitima delas. Mas algo mais surpreendente é o silêncio, se não a leviandade, com que os melho-res especialistas que estudam o grande psicólogo russo (Wertsch, 1985) passam por cima de suas obras como se fosse uma questão de anedota e não um momento essencial na história da psicologia contemporânea, a tal ponto que as idéias e a pesquisa de Vygotsky sobre desenvolvimento histórico e cultural, mesmo sobre lingua-gem, pareçam ter surgido em sua cabeça do mesmo modo que a deusa Atenas surgiu do cérebro de Zeus, através de uma filiação miraculosa. Algumas poucas alusões a Mead ou Marx não tornam essa aparição menos miraculosa; ao contrário, servem para obscu-recer sua gênese concreta. Suspeito que essa cegueira para com a conexão histórica efetiva seja devida a algo bem mais profundo que uma simples negligência pela verdade.

Tal cegueira é o resultado - mesmo naqueles que estão con-vencidos que os fenômenos psicológicos não devem ser reduzidos a fenômenos orgânicos ou individuais e naqueles que demonstram uma simpatia pelo social - de todavia verem tal desenvolvimento em relação ao individuo, ou quando muito como uma forma de inter-subjetividade. Desse modo, eles não conseguem ver com clareza nem os limites do marxismo nas questões psicológicas, nem em que sentido a abertura para um Durkheim ou para um Lévy-Bruhl

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foi uma oportunidade única para os pensadores russos confronta-dos com uma situação histórica extraordinária, em que eles esta-vam plenamente conscientes dos riscos que estavam assumindo e pelos quais eles pagaram as conseqüências, Esse é ainda um aspec-to parcial da representação (Darstellung) que nos interessa. O que realmente interessa é que à medida que se tornaram um conceito preciso, as representações sociais inspiraram uma psicologia dos “primitivos” que era nova e não-individualista (Davy, 1931). E isso, por sua vez, abriu caminho para a psicologia da criança de Piaget e para a psicologia das funções psicológicas superiores de Vygotsky. Não se pode, pois, aceitar que não houvesse aqui uma noção ver-dadeiramente especifica do social capaz de dar à psicologia da representação seu conteúdo legítimo Não é esse, fundamental-mente, o espírito que deveria predominar nas ciências humanas e na psicologia social de maneira particular? Talvez não seja correto continuar insistindo sobre posturas que já foram ultrapassadas há tempo, a fim de se poder avançar. Por razões óbvias, não trouxe à consideração o desenvolvimento de algo cujos traços são percebi-dos na moderna epistemologia. Mas, lendo o livro de Fleck (1935/1979), podem ser entendidos tais traços, mencionados pelo próprio autor. Uma vez mais, eles levam a Lévy-Bruhl, de modo marcante, se não exclusivo. De modo particular, o conceito de re-presentação coletiva é expresso através da noção do estilo de pen-samento de um coletivo usado por Fleck. E nós sabemos que o livro de Fleck encontrou eco na teoria de Thomas Kuhn e na sua epistemologia da ciência.

5. De representações coletivas para representa sociais

O tema geral desse capítulo é a gênese e fecundidade da idéia de representação social. Este tema ofereceu a oportunidade de caracterizar o que é reconhecido como decisivo nos processos de pen sarnento, ou o conjunto de crenças partilhadas por grupos ou sociedades inteiras. Serviu também para explicar as mudanças ou meta morfoses que esses processos e esses conjuntos de crenças aparentemente sofreram. Se nos voltarmos para a época atual, fica claro que o problema subjacente é o da racionalidade moderna.

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Como sabemos, ela implica que as formas de vida mental e social conserva das pela tradição devem ser substituídas pelas da ciência e da tecnologia. Nosso pensamento científico elevado à categoria de norma e de todo pensamento, nossa lógica tomada como única lógica viável, estigatizam, sem examiná-los, todos os pensamentos e crenças diferentes, relegando-os a uma categoria inferior. Desse modo, a difusão do pensamento moderno pressupõe ipso facto o retrocesso, sem exceção, de todos os outros. Evidentemente, deve-mos pagar o preço: como conseqüência, se o pensamento científi-co impõe suas regras e operações sobre a mente, ele questiona outras formas de pensamento e as condena ao desaparecimento.

Essa é a direção na qual nossos processos de pensamento ou conjuntos de crenças são mudados e transformados. Não há, por-tanto, nada de surpreendente se grande parte do trabalho devota-do ao desenvolvimento cultural e individual se esforce para eluci-dar os estágios através dos quais as sociedades, ou indivíduos, al-cançam esse estágio em um trajeto obrigatório. Hoje, devido a tudo isso, nossa consciência crítica está menos segura dessa evo-lução. Mas apesar disso, o postulado de redutibilidade de todas as formas de pensamento e crença a uma unidade mantém a posição mais elevada em qualquer situação, tanto na psicologia, economia ou sociologia, como no discurso público.

Tudo isso pode chamar a atenção do leitor como a repetição e descrição de coisas já há muito conhecidas e, conseqüentemente, sem grande interesse. Esse seria o caso se não estivessem presen-tes, contudo, duas conseqüências que merecem atenção:

1) A primeira conseqüência é expressa no fato de que uma distinção tácita é feita entre sociedades sem ciência e sociedades com ciência. E, conseqüentemente, as representações coletivas são estudadas apenas nas primeiras, como se não se relacionassem às últimas, de tal modo que as características, começando com as crenças instituídas nessas sociedades tradicionais, ou “exóticas”, são distinguidas como se tal fato fosse uma questão de alguma forma mental peculiar apenas delas. Além disso, a um nível mais profundo, essas representações são tomadas como modelos de sociedades “totais” ou “fechadas”, em que os constituintes simbó-licos e práticos das relações sociais estão perfeitamente integra-dos. Em tais sociedades, todo tipo de comportamento e cognição parece ser conformado pelo núcleo mítico e ritual da tradição de um povo. Desse modo, a maior parte do conhecimento exercido nas atividades de subsistência, as artes e tudo o que é negociado

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nos intercâmbios da vida cotidiana são deixados de lado. Isso explica, ao menos em parte, por que toda representação parece coincidir com a coletividade em sua totalidade e assumir um cará-ter tanto uniforme, como estático.

Com esse referencial em mente, chama a atenção ver uma re-presentação assim chamada primitiva, comparada e contrastada com a ciência, não apenas como os cientistas a praticam, ou como ela é difundida nas sociedades modernas, mas como ela é descrita pela lógica da ciência apresentada nas obras dos filósofos. Por exemplo, o causador de chuva da Melanesia, cujos ritos são obser-vados e cujas crenças mágicas são registradas, é comparado com nem mais nem menos uma personalidade como Einstein. Mas essa discussão nos levaria muito longe. Por ora, prefiro simplesmente apresentar minha discordância com a idéia que representações coletivas devem ter um sentido em sociedades longínquas ou em tempos antigos, mas não nas nossas, com seu endeusamento das crenças científicas. Há uma boa razão para isso.

2) A segunda conseqüência do postulado da redutibilidade é o que Laudan (1977) chamou de pressuposto de a-racionalidade, que significa que as explicações sociais de nossos estudos intelectuais entram no domínio da sociologia apenas quando esses estudos não conseguem adequar-se aos critérios de racionalidade geralmente aceitos. Até mesmo Mannheim, que nes-se ponto era fiel ao marxismo, invocou essa hipótese quando ele isentou a matemática e as ciências naturais do domínio da socio-logia do conhecimento. Mas isso pode também ser aplicado à ideo-logia, porque ela se desvia desses critérios, tanto por ser confun-dida com religião, como porque ela é uma simulação da ciência. Deve-se, contudo, notar que tanto Durkheim, como Levy-Bruhl, aderiram implicitamente a essa hipótese. Sem dúvida, eles vêem as características universais da cognição - causa, tempo, classe ou número - como estando fundamentadas nas características parti-lhadas por todas as sociedades. Isso não os impede de explicar a passagem de crenças religiosas ou mágicas para a ciência moderna como um efeito da passagem da pré-eminência da coletividade para a pré-eminência do individuo que se torna consciente de si mesmo e “diferencia explicitamente a si mesmo do grupo do qual ele se sente um membro” (Levy-Bruhl, 1925/1926: 365).

Ao estabelecermos uma conexão entre esses diferentes as-pectos entenderemos melhor por que, após um período de extra-

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ordinário interesse nas representações coletivas, houve um perío-do de reserva, até mesmo de abandono. Elas se mostram como no-ções explicativas apenas com respeito a sociedades cujas cren-ças, materializadas em instituições, linguagem e moral, têm cará-ter de obrigatoriedade e são centradas no universo humano, ou, para emprestar um termo de Piaget, são sociocêntricas. Elas não poderiam, portanto, como viu claramente Bergson, ter validade para além das sociedades fechadas ou totais, tais como uma nação ou uma tribo. Ainda mais, dentro da concepção positivis-ta que então predominava, a ciência e as técnicas racionais das so-ciedades modernas, embora derivadas de um pensamento religio-so, tinham um caráter objetivo e individual.

Foi aqui que Fleck viu corretamente uma incongruência, ou, quanto a isso, uma contradição, pelo fato de propriedades objeti-vas dependerem das condições particulares de uma sociedade, tanto quanto dos seus modelos de pensar. E ele não foi o único, pois Piaget escreveu, com relação a Durkheim, que sustentava ao mesmo tempo tanto o caráter sociocêntrico das representações coletivas, como o caráter individual da ciência:

Se ele foi capaz de manter duas posições tão incompatíveis,

é obviamente porque, em vez de proceder à análise de diferentes ti-

pos de interações sociais, ele retrocedia constantemente a

linguagem global da “totalidade”. Portanto, a fim de demonstrar a

natureza coletiva da razão, ele alternava entre dois tipos de

argumento, na verdade muito diversos, mas usados simultaneamen-

te sob a capa dessa noção indiferenciada de totalidade social exer-

cendo pressão sobre o individuo (Piaget, 1965/1995: 72).

Não se pode, então, negar que psicólogos e sociólogos tive-ram algumas razões para se distanciarem de um conceito que pa-recia talhado á medida de uma sociedade tradicional ou exótica e marcado por suas origens positivistas, ou quando muito referir-se a ele em uma dimensão histórica (Farr, 1993). Mas isso é inaceitá-vel quando não se quer renunciar a uma psicologia social ao mes-mo tempo individualistica e despojada de qualquer referencial co-mum a outras ciências humanas e, conseqüentemente, destinada a tornar-se fragmentada em uma multidão de campos de pesqui-sa, sem qualquer elo entre si e sem qualquer continuidade históri-ca. Talvez isso nos ajude a compreender por que, quando nos vol-tamos para o fundamento coletivo da vida e da ação mental, não haja outra alternativa séria que tentar dar uma nova chance a essa

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linha de pensamento. Afinal, muitas vezes na história das idéias ou da ciência, uma noção muito debatida mostrou-se útil dentro de um novo contexto, como foi o caso, por exemplo, como átomo no século vinte.

Seja como for, devido a uma escolha cujos motivos têm aqui pouca importância, parece-me legítimo supor que todas as formas de crença, ideologias, conhecimento, incluindo até mesmo a ciên-cia, são, de um modo ou outro, representações sociais5. Parecia então (Moscovici, 1961/1976), e parece igualmente assim hoje, que nem a oposição do social ao individual, nem a evolução do tra-dicional ao moderno, tiveram, com respeito a isso, a importância que lhes é dada.

Mas parecia correto distinguir aquelas formas de acordo com a maneira como elas ordenam seu conteúdo e representam os ho-mens, os acontecimentos, as coisas, dentro de um universo parti-cular que a sociedade reconhece tanto como um universo consen-sual, ou como um universo reificado. As representações sociais estão mais e mais marcadas pela divisão entre esses dois univer-sos, o primeiro caracterizado por uma relação de apropriação con-fiante, até mesmo uma implicação, e o último pelo distanciamen to, pela autoridade, até mesmo por uma separação - ou o que em a-lemão se chama Zugehorigkeit (afiliação) e Enttremdung (aliena-ção). Eles também correspondem às relações instituídas pelos in-divíduos na sociedade e aos modos de interação específicos a cada um deles. Sem repetir as razões e descrições que apresen-tei em outro lugar (Moscovici, 1984a), quero apenas recordar que essa distinção coloca o conhecimento popular, as maneiras de pensar e agir na vida cotidiana, o senso comum se quiserem, de um lado, e a ciência e ideologia, do outro. Ideologia é entendida aqui, como Ricoeur a descreveu, “simplificadora e esquemática. Ela é uma grade ou código para dar uma visão geral, não apenas de um grupo, mas também da história e, em íntima análise, do mundo” (1981: 226).

Poderiamos, talvez, tentar classificar as formas de crença e conhecimento de acordo com o lugar atribuído a elas em uma hie-rarquia, sendo as formas reificadas de imediato consideradas

5 Ao falar de representações sociais em lugar de representações coletivas, quis romper com as associações que o termo coletivo tinha herdado do passado e também com as In-terpretações sociológicas e psicológicas que determinaram sua natureza no procedimento clássico.

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como de mais valor e poder que as formas consensuais. Nada aqui justificaria colocá-las onde elas deveriam estar, livres da depen-dência do social. Para me repetir, é claro que elas incluem alguma representação social. Conseqüentemente, o postulado da reduti-bilidade, isto é, o postulado de uma eliminação de crenças e co-nhecimento comum pela ciência como um telos do desenvolvi-mento individual e social, deve ser abandonado. Nesse sentido, dentro de urna dimensão social, a ciência e o senso comum - cren-ças em geral - são irredutíveis um ao outro, pelo fato de serem mo-dos de compreender o mundo e de se relacionar a ele Embora o senso comum mude seu conteúdo e as maneiras de raciocinar, ele não é substituído pelas teorias científicas e pela lógica. Ele conti-nua a descrever as relações comuns entre os indivíduos, explica suas atividades e comportamento normal, molda seus intercâm-bios no dia-a-dia. E ele resiste a qualquer tentativa de reificação que transformaria os conceitos e imagens enraizados na lingua-gem em regras e procedimentos explícitos (Farr, 1993).

Creio que fui um dos primeiros a defender a irredutibilidade do senso comum à ciência, o que se tornou hoje uma posição filosófi-ca, caracterizando uma parte da ciência cognitiva. Mas enquanto as razões invocadas por Fodor, Dennett, Putnam e outros são de uma ordem lógica, eu continuo a pensar que a razão verdadeira é uma razão psicológica. De qualquer modo, devemos dizer que renunciando ao mito da racionalização total, isto é, da assimilação de todas as representações sociais por representações cientificas, do universo consensual pelo universo reificado, implica abando-nar outra idéia partilhada por muitas ciências humanas e em parti-cular pela psicologia. Quero dizer, a idéia de que se vê uma ascen-são de pensamento, da percepção à razão, do concreto ao abstra to, do “primitivo” ao “civilizado”, da criança ao adulto, etc., à medida que nosso conhecimento e nossa linguagem se tornam pro-gressivamente mais descontextualizados. Ao contrário, o que ve-mos é uma descida de pensamento, isto é, um movimento na dire-ção oposta, à medida que nosso conhecimento e linguagem circu-lam e se tornam contextualizados na sociedade. Isso é totalmente normal, pois, como disse Maxwell, o abstrato de um século se torna o concreto de outro. As mudanças e transformações têm lugar constantemente em ambas as direções, as representações se co-municam entre si, elas se combinam e se separam, introduzem uma quantidade de novos termos e novas práticas no uso cotidia-no e “espontâneo”. Na verdade, as representações sociais diaria-

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mente e “espontaneamente” se tornam senso comum, enquanto representações do senso comum se transformam em representa-ções científicas e autônomas. Um exemplo desse primeiro tipo de transformação é a difusão de idéias e explicações biológicas em relação à ecologia ou à Aids (Herzlich, 1973; Marková & Wilkie, 1987) e do segundo tipo, em teorias da personalidade, ou do caos e assim por diante.

Deixemos de lado essa distinção entre ascensão e descida de representações sociais e reconheçamos como o conhecimento po-pular do senso comum fornece sempre o conhecimento que as pessoas têm a seu dispor; a própria ciência e tecnologia não hesi-tam em emprestar dele quando necessitam uma idéia, uma ima-gem, uma construção. Não há nada de surpreendente, pois se o conhecimento comum permanece na base de todos os processos cognitivos, o que coloca um problema teórico e empírico do ponto de vista do conhecimento. Se um psicólogo fala de uma personali-dade extrovertida ou de um protótipo, se um biólogo lembra infor-mação e seleção, ou ainda se um economista raciocina em termos de mercado e competição, cada um deles, dentro de sua própria especialidade, apela para conceitos tirados de sua herança, das fontes do conhecimento comum das quais ele nunca se separou. Vemos como até mesmo a maneira de nomear e comunicar esses elementos da ciência pressupõe e conserva um elo como conheci-mento do senso comum (Moscovici, 1961/1976; Herzlich, 1973; Fleck, 1935/1979; Flick, 1998).

Poderíamos deixar de comentar o profundo interesse que es-se fenômeno possui para a psicologia social? E não é essa, precisa-mente, a dificuldade com respeito às representações coletivas, o fato de elas serem compreendidas, na prática, de maneira indireta através de sistemas de crença e conhecimento codificados pelas instituições, pela moral e pelas linguagens especializadas? Isso acaba, de certo modo, por isolá-las do fluxo dos intercâmbios so-ciais e por cortar operações psíquicas sem ser possível observar como elas são articuladas na vida concreta. Em tais condições, não é de se surpreender que essas representações devam apare-cer tão “fechadas”, tão “totais” e que seja tão difícil aplicá-las á nos-sa sociedade. Mas o argumento que estou apresentando me levou a uma decisão clara. O senso comum, o conhecimento popular - o que em inglês se chama de folk science - oferece-nos acesso di-reto a representações sociais. São, até certo ponto, as represe n-tações sociais que combinam nossa capacidade de perceber, infe-

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rir, compreender, que vêm à nossa mente para dar um sentido às coisas, ou para explicar a situação de alguém. Elas são tão “natu-rais” e exigem tão pouco esforço que é quase impossível suprimi-las. Imaginemos assistir a uma competição esportiva sem ter ao menos uma idéia do que os atletas estão fazendo, ou ver duas pes-soas se beijando na rua sem ter a menor idéia de que eles estão enamorados. Essas interpretações são tão evidentes que nós normalmente esperamos que todos concordem com a verdade do que se passa diante de seus olhos.

Aprendemos a olhar as representações da física popular, bio-logia popular ou economia popular com certo ceticismo. Mas quem não tem uma representação que lhe permita compreender por que os líquidos sobem em um recipiente, por que o açúcar se dissolve, por que as plantas necessitam de água ou por que o go-verno aumenta os impostos? Graças a essa física popular nós evi-tamos colisões nas estradas, graças a essa biologia popular nós cultivamos nossos jardins e essa economia popular nos ajuda a procurar um modo de pagar menos imposto. As categorias da ci-ência popular são tão espalhadas e irresistíveis que elas parecem ser “inatas”. Fazemos uso de tal conhecimento e tecnologia todo o tempo. Intercambiamo-los entre nós, os renovamos através do es-tudo ou da experiência a fim de explicar as condutas com segurança - e sem estarmos conscientes deles - e passamos boa parte do tempo em que estamos despertos falando sobre o mundo, fazendo planos sobre nosso futuro e sobre o futuro de nossos filhos como uma função dessas representações.

Qual é o valor da ciência popular? Essa é uma questão filosófi-ca que não me proponho discutir aqui, mas, como aponta o filóso-fo Daniel Dennet com respeito a ela, todo o que se aventurar em uma via expressa, deve julgar essa ciência confiável. O vasto campo do senso comum, das ciências populares, nos permite agarrar es-sas representações ao vivo, compreender como elas são geradas, comunicadas e colocadas em ação na vida cotidiana. Para fazer uma comparação, podemos dizer que esses campos oferecem um material prototípico para explorar a natureza dessas representa-ções, do mesmo modo que os sonhos oferecem um campo exem-plar para todo o que quiser compreender o inconsciente. As repre-sentações sociais perdem, então, o caráter derivado e abstrato as-sociado com representações coletivas para se tornarem, de certo modo, um fenômeno concreto e observável. Apesar de várias críti-cas (Fraser & Gaskell, 199O), era e continua sendo minha convic-

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ção que a psicologia social é mais que nunca a ciência das repre-sentações sociais e ela pode descobrir nelas um tema unificador.

De qualquer modo, podemos ver como o senso comum e o co-nhecimento popular nos oferecem esse campo privilegiado de ex-ploração.

1) O que eu denominei de senso comum pós-científico é, como todo conhecimento partilhado pela sociedade como um todo, en-trelaçado com nossa linguagem, constitutivo de nossas relações e de nossas habilidades. É um conjunto estruturado de descrições e explicações, mais ou menos interligadas umas ás outras, da perso-nalidade, da doença, dos sentimentos ou dos fenômenos nat u-rais, que todas pessoas possuem, mesmo que não es tejam cientes disso e que elas usam para organizar sua experiência, para participar de uma conversação, ou para negociar como utras pessoas. Ele é Umgangsdenken (pensamento cotidiano) associado com Umgangssprache (linguagem coloquial), sem os quais a vida do dia-a-dia é inconcebível. Até mesmo as crianças pequenas se apro-priam facilmente - como Freud mostrou com respeito às teorias sexuais das crianças - do conhecimento popular em uma idade em que elas têm uma experiência limitada das atividades humanas, permitindo-lhes deduzir tal conhecimento (Jodelet, 1989b).

Não podemos deixar de nos chocar com o seguinte contraste. De um lado, estamos familiarizados com um bom número de ciên-cias populares, as compreendemos, as usamos, renovamo-las fa-cilmente através da conversação, lendo os jornais ou olhando tele-visão. De outro lado, nós dominamos a muito custo uma pequena parte do conhecimento científico ou tecnológico que empregamos em nossa profissão, em nossa sobrevivência e na prática de toda nossa vida. Em poucas palavras, como escreveu Chomsky:

A gramática e o senso comum são adquiridos virtualmente

por todos, sem esforço, rapidamente, de maneira uniforme, pelo

simples fato de viver em uma comunidade sob as mínimas condições

de interação, de exposição e de atenção. Não há necessida-

de de ensino ou treinamento explicito e, quando o Ultimo acontece,

tem apenas efeitos marginais no estágio final alcançado

(1975:144). Variações individuais são muito limitadas e,

em dada comunidade, cada pessoa adquire um estoque vas-

to e rico de conhecimento, comparável ao dos outros. Bergson es-

tava certo ao afirmar que o senso comum é “senso social” (1932/1935:

110).

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2) Em contraposição às representações cientificas e ideológi-cas, construídas de acordo com as demandas da lógica formal com base em termos fundamentais, todos perfeitamente definidos, até mesmo distintos, as representações do senso comum são, de um modo ou de outro, “híbridas”. Isso quer dizer que idéias, expres-sões lingüísticas, explicações de diferentes origens são agrega-das, combinadas e regulamentadas mais ou menos como ciências diferentes, em uma única ciência híbrida, como diversos idiomas em uma linguagem crioula. As pessoas que partilham de um co-nhecimento comum no decorrer de sua vida cotidiana não “racio-cinam” sobre ele e não conseguem colocá-lo diante de si como um “objeto”, ou analisar seus conteúdos colocando-o a certa distância para “observá-lo”, sem que eles mesmos estejam implicados nisso. Para apropriá-lo, eles devem fazer exatamente o oposto, devem mergulhar no fluxo dos diferentes conteúdos, participar em sua implementação concreta e esforçar-se para tomá-los acessíveis a outros. Desse modo, seu conhecimento transformado assim em conhecimento híbrido e seus vocabulários disparatados têm um potencial semântico que não se exaure por nenhum uso espe cifico, mas deve constantemente ser refinado e determinado com a ajuda do contexto.

Deve ficar claro para nós que esses arranjos levam a dois re-sultados que não coincidem de modo algum. O conhecimento co-mum não apenas compreende crenças científicas ou religiosas. Ele também as transpõe para imagens familiares, como se a possi-bilidade de representar noções abstratas dominasse o processo. Além disso, as representações sociais de diferentes origens são condensadas em conhecimento comum, de tal modo que, confor-me as necessidades, algumas podem ser substituídas por outras. Se voltarmos ao exemplo da Aids, mencionado acima, pode-se di-zer que as representações religiosas referentes á liberdade sexual se combinam com representações médicas sobre as causas da do-ença, ou com as representações políticas sobre a fabricação do vírus pela CIA a fim de eliminar determinadas populações. Isso dá uma impressão de uma colcha de retalhos cognitiva e social. Mas é uma impressão falsa, pois do mesmo modo que nossa linguagem habitual se fundamenta sobre o valor polissêmico de palavras e a linguagem crioula é tão rigorosa como qualquer outra, assim tam-bém as representações populares têm sua própria coerência e ri-

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gor. Parece-me que o trabalho de Billig (1987) elaborou recente-mente esses aspectos e esclareceu o que achei ter observado e que era para mim apenas uma conjetura.

3) O senso comum continua a ser concebido predominante-mente como um estágio arcaico de compreensão, incluindo uma magnitude de conhecimento que não mudou durante milênios e que nasceu de nossa percepção direta das pessoas e das coisas. Ele, pois, se ajusta aos objetivos de nossa vida diária, com extraor-dinário sucesso. Cerca da época em que sugeri que os psicólogos sociais se interessaram pelo senso comum, o psicólogo Fritz Hei-der (1958) começou a argumentar que as relações entre os seres humanos são uma função de sua “psicologia ingênua”. Seria me-lhor estudar a origem dessa psicologia ingênua que dá sentido a nossa experiência Mas, como sabemos, isso foi feito começando pela percepção que os indivíduos têm um do outro, sem levar em consideração suas crenças, linguagem ou os sentidos implícitos nessa linguagem. É curioso que Fritz Heider foi considerado como sendo alguém que apoiasse essa concepção, pois suas análises começam a partir de textos literários e filosóficos e não de análises em laboratório. Seja como for, essa concepção dominante é acul-tural e a-histórica. Seria incompatível com meu pressuposto. No entanto, considerando-a como uma forma de representação so-cial, pode-se reconhecer não apenas que ela possui traços cultu-rais, mas também um caráter histórico. No primeiro estudo que fiz nesse campo (Moscovici, 1961/1976), tentei mostrar que a ciência popular não é a mesma para qualquer pessoa e para sempre. Ela é modificada ao mesmo tempo em que as estruturas ou problemas da sociedade com os quais as pessoas se confrontam também mu-dam. Além do mais, idéias de escopo revolucionário nas ciências, tais como as de Freud ou Marx, ou movimentos artísticos que ar-rastam tudo consigo, são assimilados por muitas pessoas, deixan-do uma impressão estável em sua maneira de pensar, de falar, de compreender a si próprios ou de compreender o mundo em que vivem. Eles podem ser impunemente venerados, pois, usados por todos e incorporados às próprias estruturas da linguagem, as cate-gorias e raciocínio da ciência popular são afetados por aqueles que descobriram a psicanálise, a física, etc. Eles se comunicam pouco a pouco e finalmente todos os consideram como sendo in-dependentes e formando parte da "realidade".

Nós mesmos vemos as representações sociais se construindo por assim dizer diante de nossos olhos, na mídia, nos lugares pú-

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blicos, através desse processo de comunicação que nunca aconte-ce sem alguma transformação. Mesmo quando a mudança afeta o sentido, os conceitos, as imagens, ou a intensidade e associação das crenças, no seio de uma comunidade, ela é sempre expressa em representações (De Rosa, 1987). Todo o que menosprezar esse fato, nunca irá construir uma teoria psicossocial do pensamento e da ação. O antropólogo francês Dan Sperber (199O) formulou uma interessante teoria da comunicação de representações. Ele as vê como sendo geradas através de um processo de difusão epidemio-lógica de representações individuais. Essa conjetura é difícil de admitir, devido ao caráter intrinsecamente regulamentado e orga-nizado de tal difusão. Em diferentes oportunidades, fomos capa zes de experimentar a vantagem para nossa ciência de escolher o co-nhecimento comum coma um campo de pesquisa e empreen der uma comparação séria de uma forma com outra. Isso supõe que nós consideremos tal conhecimento comum como o núcleo de nosso universo consensual e reconheçamos nele um caráter histó-rico, cultural e retórico, não permitindo que tal conhecimento seja reduzido a traços empobrecidos, a esquemas e estereótipos sem sentido. Parece-me importante enfatizar a linha entre ciência po-pular, senso comum e representações sociais (ver também Flick, 1998), pois ela justifica, ao mesmo tempo, tanto o que eu restituí à tradição desse conceito, como a maneira pela qual ele adquire a importância que possui em nossa sociedade. E é devido ao fato de as representações serem uma criação continua que nós pode-mos compará-las in statu nascenti e compreende-las diretamen-te e podemos propor oferecer uma teoria sua, isto é, não apenas articular um conceito seu, mas descrever ou explicar essas repre-sentações, enquanto um fenômeno social.

6. Representação, comunicação e o compartilhamento da realidade

Devo admitir que minha primeira intenção não era introduzir na psicologia social um conceito derivado de Durkheim e Lévy-Bruhl, nem tentar depois distingui-lo a fim de adaptá-lo ao Zeitgeist. Ao contrário, foi o problema da transformação da ciência no curso de sua difusão e o nascimento de um sentido comum pós-científico, portanto o de nossa psicologia social, que me levou ao conceito. Para colocar isso de maneira clara, se a psicologia do desenvolvi-

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mento está interessada, no curso das vidas das crianças, com a transformação de suas representações “espontâneas” em represen-tações científicas e racionais, parece-me que a psicologia social de-ve enfrentar o processo inverso, isto é, estudar como representa-ções científicas são transformadas em representações comuns. E do mesmo modo que outros antes de mim, descobri que a única linha de pensamento que soube como articular crenças e conhecimento com a realidade social é a desses pensadores. Quanto ao mais, eles devem avançar com seus próprios meios, pois o problema desses pensadores franceses não é igual ao nosso e o mesmo vale para o futuro. Podemos acrescentar, estabelecendo um novo elo, que o

fato muito sabido de que desde a II Grande Guerra não foi mais pos-sível, como tinha sido antes, fundamentar a sociedade no trabalho ou na crença, mas ao contrário na comunicação ou na produção de conhecimento (Moscovici, 1982). Mas isso é precisamente um as-pecto que na maioria das vezes escapa aos psicólogos sociais, pelo fato de limitarem seus interesses às relações interpessoais.

Seja como for, a aspiração da teoria das representações sociais é clara. Pelo fato de assumir como seu centro a comunicação e as representações, a teoria espera elucidar os elos que unem a psico-logia humana com as questões sociais e culturais contemporâneas. A esta altura podemos nos perguntar qual a função das re-presentações partilhadas e o que são, a partir do momento em que elas não são mais consideradas indiretamente através da religião, mitos e assim por diante. Como resposta a essa pergunta, sugeri que a razão para se criarem essas representações é o desejo de nos familiarizarmos com o não-familiar. Toda violação das regras exis-tentes, um fenômeno ou uma idéia extraordinários, tais como os produzidos pela ciência ou tecnologia, eventos anormais que per-turbem o que pareça ser o curso normal e estável das coisas, tudo isso nos fascina, ao mesmo tempo em que nos alarma. Todo desvio do familiar, toda ruptura da experiência ordinária, qualquer coisa para a qual a explicação não é óbvia, cria um sentido suplementar e coloca em ação uma procura pelo sentido e explicação do que nos afeta como estranho e perturbador.

A motivação para a elaboração de representações sociais não é, pois, uma procura por um acordo entre nossas idéias e a realida-de de uma ordem introduzida no caos do fenômeno ou, para sim-plificar, um mundo complexo, mas a tentativa de construir uma ponte entre o estranho e o familiar; e isso à medida que o estranho pressuponha uma falta de comunicação dentro do grupo, em rela-

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cão ao mundo, que produz um curto-circuito na corrente de inter-câmbios e tira do lugar as referências da linguagem. Temos a sen-sação de que ele não se ajusta mais à matriz da vida em comum, que não mais concorda com nossas relações com os outros. Para contro-lar uma idéia ou percepção estranhas, começamos por ancorá-lo (Doise, 1992) em representações sociais existentes e é no curso dessa ancoragem que ele se modifica (Moscovici, 1988a). Essa ob-servação é corroborada por Barlett, que escreve: “Como foi mos-trado, sempre que um material apresentado visualmente pretenda ser representativo de algum objeto comum, mas contém certas ca-racterísticas que são não-familiares na comunidade em que o mate-rial é introduzido, essas características invariavelmente sofrem transformações em direção ao familiar” (1932: 178). O familiar não pode deixar de se transformar no curso desse processo e encontra certa satisfação social e afetiva ao redescobrir tal familiaridade, al-gumas vezes de maneira efetiva, outras de maneira ilusória.

Para levar mais adiante a explicação da formação dessas re-presentações, necessitamos esclarecer algumas dificuldades. A pro-cura pelo familiar em uma situação estranha significa que essas representações tendem para o conservadorismo, para a confir-mação de seu conteúdo significativo. Bem, isso seria, então, a pura e simples conseqüência de seu sociocentrismo, do caráter sociomór-fico de suas operações cognitivas e lingüísticas. Isso significa que existe certa distância em relação à realidade não representada pelo grupo. Mas seria essa uma questão de uma característica peculiar a representações não-científicas e não-racionais, como afirmam al-guns? A observação nos mostrou que as representações cientificas são também centradas, embora de maneira diferente, na comuni-dade científica e na sociedade da qual ela é uma parte. Poderia a-crescentar que os paradigmas de uma ciência normal demonstram igualmente uma tendência ao conservadorismo em face de anoma-lias, até ao ponto em que sua resistência se torna impossível (Kuhn, 1962). Por conseguinte, concluo que todas as representações são sociocêntricas e que na familiarização ao estranho, a sociedade é representada de maneira mais implícita (Mugny & Carugati, 1985/1989).

Escrevi sobre essas coisas com mais detalhes em outro lugar. Aqui, quero simplesmente especificar que se nós formamos repre-sentações a fim de nos familiarizarmos com o estranho, então as formamos também para reduzir a margem de não-comunicação. Essa margem é reconhecida através das ambigüidades das idéias,

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da fluidez dos sentidos, da incompreensão das imagens e crenças do outro, em síntese, através daquilo que o filósofo dos EE.UU. C.S. Peirce denominou de o ”vago”. O que torna problemáticas as rela-ções e também os intercâmbios entre as pessoas e grupos é a circu-lação de representações que apesar de tudo coexistem no mesmo espaço público. A existência em comum se mostra impossível se essa margem de incerteza persiste e se torna importante. Nesse caso, os membros de um grupo correm o risco de permanecer tão estranhos nas conversações familiares como se pertencessem a grupos diferentes.

Sustento, pois, que as representações sociais têm como finali-dade primeira e fundamental tornar a comunicação, dentro de um grupo, relativamente não-problemática e reduzir o “vago” através de certo grau de consenso entre seus membros. Sendo que essa é a questão, as representações não podem ser conseguidas através do estudo de alguma crença ou conhecimento explicites, nem ser cria-das através de alguma deliberação específica. Ao contrário, elas são formadas através de influências recíprocas, através de negociações implícitas no curso das conversações, onde as pessoas se orientam para modelos simbólicos, imagens e valores compartilhados especí-ficos. Nesse processo, as pessoas adquirem um repertório comum de interpretações e explicações, regras e procedimentos que podem ser aplicadas ã vida cotidiana, do mesmo modo que as expressões lingüísticas são acessíveis a todos (Moscovici, 1984a).

Muitas vezes me perguntam o que quero dizer com partilhar uma representação ou por representações compartilhadas. 0 que lhes dá esse caráter não é o fato de elas serem autônomas, ou que elas sejam comuns, mas sim o fato de seus elementos terem sido construídos através da comunicação e estarem relacionados pela comunicação. As coações que tal fato exerce, suas regras de inte-ração e influência determinam a estrutura especifica de conheci-mento e linguagem daí resultante. Para simplificar, podemos dizer que todo indivíduo isolado não pode representar para si mesmo o resultado da comunicação do pensamento (Freyd, 1983), das men-sagens verbais e icônicas. É isso que dá a essas estruturas cogniti-vas e lingüísticas a forma que elas têm, pois elas devem ser com-partilhadas com outros a fim de serem comunicadas. Falo, por isso, de representações compartilhadas para indicar que as formas de nosso pensamento e de nossa linguagem compatibilizam-se com as formas de comunicação e as coações que isso impõe. Mostrei ante-riormente que existem três formas de comunicação pública que

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moldam três formas correspondentes de pensamento e linguagem pública (Moscovici, 1961/1976).

Parece-me que a noção de compartilhar expressa o processo através do qual representações sociais ou públicas se apropriam de representações individuais ou privadas. Isso parece mais adequado que a idéia de coação introduzida por Durkheim e Levy-Bruhl para descrever o processo pelo qual representações coletivas confor-mam a vida mental dos indivíduos. Para esses pensadores, contudo, as representações são formadas em relação á realidade e não em relação à comunicação com outros, algo que eles julgam ser secun-dário, mas que é essencial para nós.

Uma definição de representações sociais

Agora que esse ponto foi realçado, podemos nos perguntar o que define uma representação social. Se estiver presente ali algum sentido, isso se deve ao fato de ele corresponder a certo modelo recorrente e compreensivo de imagens, crenças e comportamen-tos simbólicos. Vistas desse modo, estaticamente, as representa-ções se mostram semelhantes a teorias que ordenam ao redor de um tema (as doenças mentais são contagiosas, as pessoas são o que elas comem, etc.) uma série de proposições que possibilita que coisas ou pessoas sejam classificadas, que seus caracteres sejam descritos, seus sentimentos e ações sejam explicados e as-sim por diante. Além disso, a “teoria” contém uma série de exem-plos que ilustram concretamente os valores que introduzem uma hierarquia e seus correspondentes modelos de ação. Aqui como em qualquer lugar, fórmulas e clichês são associados a fim de evocar essa “teoria”, de distingui-la a partir de sua origem e de distingui-la de outras (Duveen & Lloyd, 1990; Palmonari, 1980).

Por exemplo, os consultórios médicos estão lotados de pes-soas falando sobre seu nível de colesterol, sua dieta, sua pressão sanguínea, explicando que sua doença é inata ou adquirida e assim por diante, referindo-se a alguma teoria médica. Ou então jornalis-tas devotam artigos a vírus de computador, ou vírus étnicos e assim por diante, fazendo alusão ao modelo genético. Nada é mais difícil que erradicar a falsa idéia que as deduções ou explicações que nós extraímos do senso comum são arcaicas, esquemáticas e estereoti-padas. Não se pode negar, certamente, que existem muitas “teori-as” que foram tornadas rígidas. Mas, ao contrário do que se supõe, isso não se relaciona a sua natureza coletiva ou ao fato de que elas

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são partilhadas por uma grande multidão de pessoas. Ao contrário, isso provém da flexibilidade do grupo e da rapidez da comunica-ção do conhecimento e das crenças no coração da sociedade.

Na verdade, do ponto de vista dinâmico, as representações sociais se apresentam como uma “rede” de idéias, metáforas e imagens, mais ou menos interligadas livremente e, por isso, mais móveis e fluidas que teorias. Parece que não conseguimos nos desfa-zer da impressão de que temos uma “enciclopédia” de tais idéias, metáforas e imagens que são interligadas entre si de acordo com a necessidade dos núcleos, das crenças centrais (Abric, 1988; Fla-ment, 1989; Emler & Dickinson, 1985) armazenadas separadamen-te em nossa memória coletiva e ao redor das quais essas redes se formam. Imagino que as representações sociais em movimento se assemelham mais estreitamente ao dinheiro que à linguagem. Co-mo o dinheiro, elas têm uma existência à medida que são úteis, que circulam, ao tomar diferentes formas na memória, na percepção, nas obras de arte e assim por diante, embora sendo, contudo, sempre reconhecidas como idênticas, do mesmo modo que 100 francos podem ser representados por uma nota, um cheque de via-gem, ou um número no extrato da conta bancária. E seu valor distin-tivo varia de acordo com relações de contigüidade, como notou Da-vid Hume. Se encontro um colega durante uma viagem à Alema-nha, eu o represento como um compatriota e digo a mim mesmo "Vejam, um francês." Se dou de cara com ele em uma rua em Tó-quio, faço dele a imagem de um europeu. E se, supostamente, nos encontrássemos em Marte, eu pensaria "Eis aqui um humano."

Do mesmo modo que o dinheiro, sob outros aspectos, as re-presentações são sociais, pelo fato de serem um fato psicológico, de três maneiras: elas possuem um aspecto impessoal, no sentido de pertencer a todos; elas são a representação de outros, perten-centes a outras pessoas ou a outro grupo; e elas são uma represen-tação pessoal, percebida afetivamente como pertencente ao ego. Além do mais, não nos devemos esquecer que as representações, como o dinheiro, são construídas com o duplo fim de agir e avaliar. Elas não pertencerão, pois, a um domínio separado de conheci-mento e por essa razão são sujeitas às mesmas regras como outros tipos de ações e avaliações sociais. Contrariamente aos especia-listas, as pessoas comuns não se vêem de maneira discreta como um cidadão, como alguém que vai à igreja e assim por diante. Por-tanto, as regras sociais são ao mesmo tempo regras de inferência

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que possuem um sentido lógico. Para os protesta ntes de Max We-ber, “a honestidade é a melhor política” não é apenas uma máxima religiosa. É uma regra que eles aplicam quando raciocinam, fazem juízos sobre as pessoas e assim por diante. Em contraposição, cer-tas regras lógicas funcionam como regras sociais. Por exemplo, não se contradiga, calcule as probabilidades e muitas outras. É por essa razão que os conteúdos mentais são imperativos mais fortes que formas cognitivas. Resumidamente, podemos dizer que o que as pessoas pensam determina como elas pensam.

Vamos adiante. Consideradas todas as coisas, à medida que a comunicação se acelera em nossa sociedade, a extensão da mídia (visual, escrita e áudio) no espaço social vai crescendo ininterrup-tamente. Duas coisas que merecem atenção podem, então, ser observadas. De um lado, as diferenças entre representações so-ciais são obscurecidas, os limites entre o aspecto icônico e seu as-pecto conceptual são eliminados. O desaparecimento das diferen-ças e limites as transforma mais e mais em representações de re-presentações, faz com que se tomem mais e mais simbólicas. E isso ás custas da referência direta a cada uma delas. Desse modo, a questão de saber como ligar representações a realidades não é mais uma questão filosófica, mas uma questão psicológica.

Por outro lado, as categorias e sentidos através dos quais nós “escolhemos” conferir uma característica às pessoas, ou proprie-dades aos objetos, se modificam. Como exemplos, nós “escolhe-mos” descrever um alimento pelo seu gosto ou pelo seu valor pro-téico, de acordo com a cultura à qual pertencemos ou pelo uso que nós queremos fazer dele. Torna-se impossível exigir que todas es-sas qualidades sejam reduzidas a uma única qualidade “verdadei-ra”. Isso implicaria que exista uma realidade dada, totalmente acabada, para esse alimento, que é imposta a nós independente-mente da representação que nós compartilhamos.

Como argumentei no primeiro esboço de nossa teoria, em re-lação à psicanálise (1961/1976), não é mais adequado considerar as representações como uma réplica do mundo ou como um refle-xo dele, não apenas porque essa concepção positivista é uma fonte de numerosas dificuldades, mas também porque as representa-ções evocam igualmente o que está ausente desse mundo, elas o constituem mais do que o simulam. Quando somos perguntados “com que objetos é construído nosso mundo?” deveríamos, por

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nossa vez, perguntar “dentro de que representação?”, antes de responder. Isso significa que representações compartilhadas, sua linguagem, penetram tão profundamente em todos os interstícios do que nós chamamos realidade que podemos dizer que elas o constituem. Elas constituem, pois, a identidade, o self (Markus & Nurius, 1986; Oyserman & Markus, 1998), o mercado, as caracte-rísticas de uma pessoa ou de um grupo, etc. (Mugny & Carugati, 1985/1989). E incontestável que elas possuem um efeito social-mente criativo ou construtivo, que há não muito tempo poderia causar surpresa, mas que é normalmente aceito hoje. Penso que a maioria da pesquisa sobre discurso realizada por Billig (1987), Potter & Litton (1985) não contradiz a teoria das representações sociais. Pelo contrário, ela a complementa e aprofunda esse seu aspecto. Perguntar, pois, se a linguagem ou a representação é o melhor modelo, não pode ter maior sentido psicológico que fazer a per-gunta: “O homem caminha com a ajuda de sua perna esquerda ou de sua perna direita?” Mas para se fazer idéia de quão verdadeira e profunda é essa contribuição e para aceitá-la, seria necessário co-meçar com uma coerência bem maior na própria psicologia. En-quanto esperamos por isso, não hesito, portanto, em tratar o que aprendemos sobre retórica, sobre narrativas lingüísticas, como sendo muito estreitamente relacionado às representações sociais.

Conclusão

Para concluir, há uma conseqüência dessa perspectiva sobre representações sociais que merece ser melhor elaborada, mas que devo, contudo, tentar formular. Todos nós aceitamos, sem duvi-dar, a idéia de que os conteúdos e sentidos representados variam dentro da mesma sociedade, da mesma cultura, como acontece também com seus meios de expressão lingüística. Mas somos o-brigados a pressupor que essas diferenças no sentido e conteúdo devem ser julgadas de acordo com as diferenças na maneira de pensar e compreender, em síntese, de acordo com os princípios de racionalidades distintas. Como vimos, as especificidades do universo consensual e do universo reificado, os contextos da co-municação em que essas representações são elaboradas, são res-ponsáveis por essas diferenças. Os contrastes entre eles são so -cialmente demarcados e reforçados, de tal modo que se pode dis-tinguir cada forma de racionalidade.

Se esse é o caso, devemos então levar em consideração que

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em cada sociedade, em cada cultura, existem ao menos dois tipos de racionalidade, dois estilos de pensar, equivalentes às duas for-mas extremas de representar e comunicar. Seria impossível redu-zi-las a uma racionalidade super-ordenada que seria, nesse caso, supra-social, ou, de qualquer modo, normativa, que não poderia deixar de levar a círculos viciosos. Mutatis mutandis, devemos pressupor que os indivíduos compartilham a mesma capacidade de possuir muitos modos de pensar e representar. Existe aqui o que chamei anteriormente de polifasia cognitiva, que é tão ineren-te á vida mental como o é a polissemia à vida da linguagem. Além disso, não devemos esquecer que ela é de grande importância prá-tica para a comunicação e para a adaptação às necessidades so-ciais em mudança. O conjunto de nossas relações intersubjetivas referentes à realidade social depende dessa capacidade.

A história que leva a uma teoria é, ela mesma, uma parte des-sa teoria. A teoria das representações sociais se desenvolveu den-tro desse pano de fundo (Doise & Palmonari, 1990) e dentro de um número ainda maior de pesquisas que trouxeram contribuições para ela e a aprofundaram. São elas que, com razão, nos permitem apreciar melhor, retrospectivamente, a escolha de precursores e o significado de seu trabalho. Essa é ao menos a experiência que eu tive ao escrever essa historische Darstellung (representação histó-rica), que espero será útil a outros. Uma grande narrativa, escreve Frank Kermode, é a fusão do escandaloso com o miraculoso. Mi-nha representação começou com escândalo. Se ela contém algum milagre, eu o verei na longevidade e vitalidade da teoria das repre-sentações sociais.

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O estudo das representações sociais: uma nova epistème6

Nos últimos trinta anos, toda uma série de enfoques foi desen-volvida no campo da psicologia social para tentar esclarecer o fenômeno das representações sociais. Trata-se claramente de um tipo de fenômenos cujos aspectos salientes conhecemos e cuja elaboração podemos perceber através de sua circulação através do discurso, que constitui seu vetor principal. Tomemos o exem-plo do desenvolvimento de representações relacionadas à Aids (Jodelet, 1991b). As “teorias” elaboradas pelas discussões há dez anos, antes da intervenção da pesquisa científica, não são as mes-mas de hoje. No início, ela foi considerada como uma doença pu-nitiva, castigando uma liberdade sexual que se tinha tornado exa-gerada dentro do contexto de uma sociedade abertamente per-missiva (Marková & Wilkie, 1987) e essa representação moral do fenômeno, que se tornou um estigma social, foi repetida pelas au-toridades religiosas. Mais tarde, emergiu entre algumas pessoas a. idéia de uma conspiração, de modo especial entre minorias dos EE.UU., apresentando a imagem de um “genocidio” perpetrado pela classe dirigente dominante, branca e protestante. A questão dos meios de propagação dessa conspiração foi, então, desenvol-vida; proveio dai a emergência de teorias populares sobre sua transmissão: se isso tinha acontecido através do sangue e esper-ma, então por que não também através de outros líquidos corpó-reos, tais como a saliva e o suor? Retorna-se, desse modo, a anti-gas crenças sobre os “humores” (Corbin, 1977). O que é interes-sante nesse caso é a conjunção entre discursos de medo e discur-sos racistas, dando assim origem à permanência, se não à invari-ância, de um tipo particular de representação social face á adver-

6 Escrito com Georges Vignaux.

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sidade, que engloba simultaneamente tanto a dimensão moral como a biológica (Delacampagne, 1983; Jodelet, 1989/1991).

Isso significa que representações sociais são sempre comple-xas e necessariamente inscritas dentro de um “referencial de um pensamento preexistente”; sempre dependentes, por conse-guinte, de sistemas de crença ancorados em valores, tradições e imagens do mundo e da existência. Elas são, sobretudo, o objeto de um permanente trabalho social, no e através do discurso, de tal modo que cada novo fenômeno pode sempre ser reincorporado dentro de modelos explicativos e justificativos que são familiares e, conseqüentemente, aceitáveis. Esse processo de troca e com-posição de idéias é sobretudo necessário, pois ele responde às du-plas exigências dos indivíduos e das coletividades. Por um lado, para construir sistemas de pensamento e compreensão e, por ou-tro lado, para adotar visões consensuais de ação que lhes permi-tem manter um vinculo social, até mesmo a continuidade da co-municação da idéia.

Representar significa, a uma vez e ao mesmo tempo, trazer presentes as coisas ausentes e apresentar coisas de tal modo que satisfaçam as condições de uma coerência argumentativa, de uma racionalidade e da integridade normativa do grupo. É, portanto, muito importante que isso se dê de forma comunicativa e difusiva, pois não há outros meios, com exceção do discurso e dos sentidos que ele contém, pelos quais as pessoas e os grupos sejam capazes de se orientar e se adaptar a tais coisas. Conseqüentemente, o sta-tus dos fenômenos da representação social é o de um status sim-bólico: estabelecendo um vínculo, construindo uma imagem, evo-cando, dizendo e fazendo com que se fale, partilhando um signifi-cado através de algumas proposições transmissíveis e, no melhor dos casos, sintetizando em um clichê que se torna um emblema. No seu limite, é o caso de fenômenos que afetam todas aquelas re-lações simbólicas que uma sociedade cria e mantém e que se rela-cionam com tudo o que produz efeitos em matérias de economia ou poder. Não é ideologia, da qual pouco existe na forma como ela foi concebida, mas todas aquelas interações que, das profundezas às alturas, das matérias brutas até às efemeridades das estruturas sociais, são transmitidas através do filtro das linguagens, imagens e lógicas naturais (Grize, 1993; Vignaux, 1991). E através destas interações pode-se ao menos ter certeza, graças ao trabalho não apenas de historiadores e antropólogos, mas também de psicólo-gos sociais, que as interações têm como objetivo a constituição de

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mentalidades ou crenças que influenciam os comportamentos.

Constatamos a banalidade do fenômeno quando ele é visto e observado como um efeito descritível e constatamos sua comple-xidade quando ele é uma questão de uma corrente ascendente que flui em direção ao que constitui o “núcleo semântico” de algu-ma concepção generalizada no corpo social e o estrutura em al-gum momento ao ponto de motivar histórias, ações, acontecimen-tos. Isto porque, uma vez mais, o conceito é apenas evocativo. De-vemos extrair da massa considerável de índices de uma si tuação social e de sua temporalidade e esses índices tomam a forma de traços lingüísticos, arquivos e, sobretudo, “pacotes” de discurso; examiná-los atentamente permitirá que alguma luz seja lançada sobre o que repetem - de um lado, sobre o que eles repetem per-manentemente - o problema da redução semântica - e, por outro lado, sobre o que os motiva e os fundamenta - o problema daque-las “idéias” que de algum modo possuem o status de axiomas, ou princípios organizativos, em determinado momento histórico para certo tipo de objeto ou situação.

Contudo, se o conceito de representação atravessa tantos do-mínios de conhecimento, da história à antropologia através da lin-güística, ele é sempre e em todo lugar uma questão de compreen-são das formas das práticas de conhecimento e de conhecimento prático que cimentam nossas vidas sociais como existências co-muns. E sobretudo, esse conceito permite-nos um acesso àqueles fenômenos sociais totais de que falou Marcel Mauss, fenômenos em que as práticas de conhecimento e do conhecimento prático desempenham um papel essencial, pois esse conhecimento está inscrito nas experiências ou acontecimentos sustentados por indi-víduos e partilhados na sociedade. Conhecimento prático, uma vez mais, porque ele sempre constitui, de algum modo, uma com-preensão popular (folk knowledge, folk psychology) que reformula constantemente o discurso da elite, dos especialistas, daqueles que possuem um conhecimento descrito como sabedoria ou ciên-cia (Moscovici & Hewstone, 1983; 1984).

Em primeiro lugar, seria isso uma questão de “conteúdos de pensamento” que poderiam ser fornecidos pelo social, sendo ape-nas necessário coletá-los? Certamente não. Toda representação social é constituída como um processo em que se pode localizar uma origem, mas uma origem que é sempre inacabada, a tal ponto que outros fatos e discursos virão nutri -la ou corrompê-la. E ao mesmo tempo importante especificar como esses processos se

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desenvolvem socialmente e como são organizados cognitivamen te em termos de arranjos de significações e de uma ação sobre suas referências. Uma reflexão sobre as maneiras de enfocar os fa-tos da linguagem e da imagem é aqui fundamental.

Em segundo lugar, esses processos são a ação de sujeitos que agem através de suas representações da realidade e que constan-temente reformulam suas próprias representações. Estamos sem-pre em uma situação de analisar representações de represe n-tações! Isso implica, metodologicamente falando, compreender co-mo os sujeitos, na maneira como cada um de nós age, chegam a operar ao mesmo tempo para se definir a si mesmos e para agir no social: “O que representações coletivas expressam é a maneira como o grupo pensa a si mesmo em suas relações com os objetos que o afetam” (Durkheim 1895/1982: 4O). Desse modo, toda re-presentação social desempenha diferentes tipos de funções, algu-mas cognitivas - ancorando significados, estabilizando ou deses-tabilizando as situações evocadas - outras propriamente sociais, isto é, mantendo ou criando identidades e equilíbrios coletivos. Isso é conseguido através de um trabalho constante, que toma a for-ma de juízos ou raciocínio partilhados. Isso significa que esse tempo retórico, metodologicamente e em conjunto com os ins-trumentos lingüísticos previamente mencionados - modos de expressão - e as aproximações lógicas - formas naturais de racio-cínio - se impõem á evidência.

Para sintetizar, do ponto de vista epistemológico, o que está em questão aqui é a análise de todos aqueles modos de pensamento que a vida cotidiana sustenta e que são historicamente mantidos por mais ou menos longos períodos (longues durées); modos de pensamento aplicados a “objetos” diretamente socializados, mas que, de maneira cognitiva e discursiva, as coletividades são conti-nuamente orientadas a reconstruir nas relações de sentido aplica-das á realidade e a si mesmas. Daqui provém o imperativo de forne-cer os meios criticas de tratar esses fenômenos de coesão sociodis-cursiva e de analisar os princípios de coerência que os estruturam dentro de uma relação interna-externa (esquemas cognitivos, atitu-des e posicionamentos, modelos culturais e normas). Desse ponto de vista, é evidente que a cognição organiza o social desde que este a governe e que o simbólico module constantemente nossas aventuras humanas, sob essa forma mais elevada que é a lingua-gem. Não há representações sociais sem linguagem, do mesmo modo que sem elas não há sociedade. O lugar do lingüístico na

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análise das representações sociais não pode, por conseguinte, ser evitado: as palavras não são a tradução direta das idéias, do mes-mo modo que os discursos não são nunca as reflexões imediatas das posições sociais.

2. Representações sociais, cognição e discurso

No decurso dos últimos dez anos, constatamos a elaboração de uma análise de estruturas cognitivas que nos permite aprofun-dar a teoria das representações sociais. Se nós sintetizarmos o tra-balho que contribuiu para esse desenvolvimento, podemos distin-guir duas hipóteses que estimularam, de maneira frutífera, os pro-gramas de pesquisa que justificaram uma atenção mais próxima da que eles tinham até então. Primeiramente, há a hipótese do nú-cleo central (Abric, Flament, Guimelli), de acordo com a qual cada representação social é composta de elementos cognitivos, ou es-quemas estáveis, ao redor dos quais estão ordenados outros ele-mentos cognitivos, ou esquemas periféricos. A hipótese é que os elementos estáveis exercem uma pré-eminência sobre o sentido dos elementos periféricos e que os primeiros possuem uma resis-tência mais forte ás pressões da comunicação e da mudança do que os últimos. Somos tentados a dizer que os primeiros expres-sam a permanência e uniformidade do social, enquanto os últimos expressam sua variabilidade e diversidade. Além do interesse ex-perimental dessa hipótese, não devemos deixar de mencionar sua relação com a concepção corrente na filosofia da mente com res-peito á diferença entre idéias centrais e idéias marginais. Em se-gundo lugar, há a noção do princípio organizador, sugerido pelos pesquisadores de Genebra (Doise, Mugny), que procuraram dar conta da generatividade das representações sociais. Sem ir a deta-lhes, podemos dizer que nós estamos interessados em idéias, má-ximas ou imagens que, de maneira ou outra, são virtuais ou implí-citas. Ambas são expressas através de idéias explicitas ou imagens e as ordenam dando-lhes um sentido que não tinham anteri-ormente; elas introduzem uma coerência entre si, garantindo-lhes o sentido que lhes é comum através do trabalho de seleção. Em outras palavras, o principio organizador, ao mesmo tempo reduz a ambigüidade ou polissemia inerente às idéias ou imagens e as tor-na relevantes em qualquer contexto social dete rminado. De mui-tos pontos de vista, há uma profunda analogia entre essas duas hi-póteses, que tocam nos problemas de como as representações mudam e de sua generatividade, respectivamente, ao ponto que a

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mudança e a generatividade chegam a interessar ao mesmo fenô-meno fundamental, isto é, à questão da formação e evolução das

representações sociais no curso da história, seja ela uma história longa ou curta, para empregar uma expressão de Fernand Braudel. Mas nós temos obrigação de dar conta disso. Por várias razões, que estão relacionadas com as orientações dominantes na psico-logia social, houve uma tendência de deixar na sombra uma das referências essenciais da teoria das representações sociais. Que-remos dizer, sua referência à comunicação, à linguagem, em sínte-se, ao aspecto discursivo do conhecimento elaborado em co mum. É verdade que a psicologia social teve somente um interes se mar-ginal nesse aspecto e que praticamente toda a pesquisa sobre cog-nição social não o levou em consideração. Mas, desde seu inicio, a teoria das representações sociais insistiu, com razão, no laço pro-fundo entre cognição e comunicação, entre operações mentais e operações lingüísticas, entre informação e significação. Somente sob essa condição foi capaz de explicar, de maneira correta e si-multânea, de modo não redutivo, tanto a formação como a evolução do conhecimento prático e do que é chamado conheci mento popu-lar, bem como sua função social. Para esse fim, pare ceu necessário propor um conceito que levou em consideração a importância das hipóteses que nós vínhamos discutindo, bem como pudesse dar forma concreta ao laço entre cognição e comunicação, entre operações mentais e lingüísticas. Ao menos foi a partir dessa perspectiva que o conceito de themata foi proposto (Moscovici, 1993), com a finalidade de responder às exigências da análise estru-tural, sobre a qual foi perfeitamente correto ter insistido. Na ver-dade, não é apenas uma questão de responder a essas exigências, mas também de enriquecer as possibilidades de análi se através das aberturas que esse conceito permite com respeito à história do conhecimento, à antropologia e à semântica. Essas possibilida-

des, devemos enfatizar, são, na verdade, de ordem teó rica, mas também metodológica. A fim de introduzir o conceito da maneira mais clara e torná-lo familiar, devemos começar com certas ques-tões com as quais nós já estamos familiarizados no estudo das representações sociais.

Se aceitarmos, então, que as representações sociais, pelo fato de serem formas particulares (sistemas de prescrições, inibições, tolerâncias ou preconceitos), participam sempre da visão global que uma sociedade estabelece para si própria, devemos, conse-qüentemente, saber como lidar com o modo dessas relações entre

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visões gerais e representações particulares, sendo as últimas ins-critas nas primeiras, ou supostamente esclarecê-las. E esse é o pa-radoxo no estudo das representações sociais: como passar do mi-crossociológico ao macrossociológico? Que teoria pode garantir alguma concordância entre esses dois níveis? Que instrumentos conceituais irão garantir uma generalização legítima dos fatos ob-servados em uma situação específica? Que propriedade localmen-te identificada pode ser um exemplo do coletivo? Que fatos regis-trados quantitativamente serão suficientes para definir uma pro-priedade qualitativa atribuível a uma coletividade?

O problema é, em primeiro lugar, de ordem cognitiva e funda-menta-se na seguinte questão: é toda propriedade psicológica identificável dependente da interação social, ou de algum meca-nismo humano supostamente comum à “espécie” e anterior a toda interação? Em resposta a esse ponto preciso, a história da ciência mostra claramente que toda reestruturação de nossas representa-ções e conhecimento depende das interações do momento - no acontecimento como ele ocorre - embora nós necessitemos pro-gredir no nosso conhecimento do nosso “mecanismo comum” - o que é nossa inteligência e que formas ela pode assumir, a fim de tornar mais explicitas aquelas que intervêm cognitivamente em nossos processos de interação social.

E é aqui onde o problema da congruência das representações ocorre, no sentido de quais são traduzidas ou não e de como elas são interpretadas: nossas idéias, nossas representações são sem-pre filtradas através do discurso de outros, das experiências que vivemos, das coletividades às quais pertencemos. É também o problema daqueles “referenciais”, ou “scripts” que determinado tipo de literatura cognitivista nos apresenta. Há alguns poucos (Schank & Abelson, 1977), onde isso se daria como se a mente hu-mana e a memória funcionassem em termos de “casos” particula-res e seria suficiente reunir esses conteúdos a fim de poder lê-los. Todos sabemos que uma descrição não dá informação sobre os processos constitutivos dos fatos, sem que ela dê deles uma expli-cação. Um simples martelo é descritível não apenas em termos de sua estruturação, ou de sua finalidade; é por isso que há diferentes tipos de martelos - para marceneiros ou decoradores, etc. -e cada um deles carrega uma longa história de significação e função que lhes deu forma.

A questão se toma, então, a seguinte: de onde vêm essas idéias ao redor das quais as representações são formadas ou mes-

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mo são geradas? O que existe, na sociedade, que irá “ter sentido” e manter a emergência e produção de discurso? E, como conse-qüência, como é que certas representações - entre todas aquelas produzidas por um discurso qualquer - podem chegar a ser qualifi-cadas como sociais e exatamente sob que fundamento?

Se retornarmos ao exemplo anterior do martelo, é claro que juntamente com certa representação científica (deve haver certa massa movida por uma força orientada na direção de empurrar um objeto como um prego ou um pino), existe - e isso é também im-portante - um conhecimento popular que é preciso, funcional e analógico (por exemplo, um martelo de garra com dois dentes que também permite que se arranquem pregos), e que opera na apro-priação do instrumento, sua difusão e transformações. Podemos ir além: para ilustrar essa teoria dos referenciais da experiência e do mental, Schank usou o exemplo do restaurante Burger King, onde o produto, as ordens, os pagamentos e as gesticulações podem ser exaustivamente descritos e definidos em termos de esquemas de ação organizada (referendais). Mas pode-se também mostrar como o Burger King pode ser um lugar de improvisação com base nessa figura restrita e se tornar não apenas um restaurante, mas também um lugar de encontro, um espaço para as crianças brincarem, para encontros ocasionais e para imaginação (como no caso do cowboy associado aos cigarros Marlboro, em que o fumo se torna emblemá-tico de uma virilidade associada a amplos espaços descampados). “Estereótipos” (no sentido comum de imagens congeladas ou opi-niões), por isso, nunca são como nós pensamos que sejam. E as representações não estão nunca limitadas a uma simples descri-ção de seus conteúdos, sem falar da estranha idéia que nos faz con-ceber a memória como um enorme armário com escaninhos para situações pré-conhecidas e pré-ordenadas do qual seria possivel retirar as coisas conforme as circunstâncias o exigissem.

Na verdade, se a cognição humana supõe aprendizagem e memória, não se poderia entender a extraordinária adaptabilida-de de nossa espécie (como testemunhado pela filogênese), se tam-bém não admitíssemos que o exercido e desenvolvimento dessa cognição está concretamente fundamentado em processos per-manentes de adaptabilidade, na forma de elaborações de conheci-mento e organizado em termos de processos orientados na dire-ção de temas comuns, tomados como a origem daquilo ao qual nos referimos cada vez, como conhecimento aceito ou mesmo como idéias primárias. São essas idéias primárias que vêm instruir

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e motivar regimes sociais de discurso, o que significa que cada vez nós devemos adotar idéias comuns, ou ao menos dar conta delas.

3. Temas e variações

De qualquer modo, estamos no início de nossa investigação e, conforme o preceito de Bacon, seria perigoso tentar e apresentar como um resultado comprovado algo que, para o momento, é ape-nas um horizonte. O que nós apresentamos aqui, instantaneamen- te, é ainda um assunto para debate e ajustamentos para pontos de vista e para conceitos que existem entre nós. Obviamente, o concei-to que estamos propondo possui um passado recente do qual, como é muitas vezes o caso, nós não suspeitamos nem de sua amplitude, nem de suas ramificações. Uma investigação desse passado não deixa de ser interessante, pois ela não apenas nos permite situar o conceito com mais clareza mas, sobretudo, apreender os papéis teóricos que ele desempenha nos muitos domínios que nos interes-sam diretamente. Não há necessidade de percorrer a historia para justificar convergências insuspeitas, nem fazer isso exaustivamente para estabelecer uma árvore genealógica do acontecimento. E sufi-ciente realçar certas reflexões e intuições, olhar para sua interação do ponto de vista que nos interessa a fim de esclarecer uma região conceitual que, podemos dizer, permanece banhada por meia luz. Um físico notou, certa vez, que tais noções são extremamente frutí-feras. Na verdade isso é assim, mas sob a condição que as zonas de claridade e obscuridade sejam tomadas explicitas. Se isso não acon-tecer, podemos esperar dificuldades na compreensão e uma incer-teza revigorante como seu valor.

Seja como for, devemos concordar que reflexões sobre “temas” ou “themata” não encontraram ainda um nicho cientifico, nem pe-netraram os discursos científicos. É certamente aceito que eles se relacionam com algo real e importante. Não fora assim, eles não teriam sido evocados por tão longo tempo. Por enquanto, eles per-manecem empregados episodicamente e situados na intersecção de muitos campos intelectuais. Talvez o contexto das representações sociais possa produzir a cristalização que permitiria a expressão cientifica do que eles designam intensivamente.

Primeiramente, com relação à sociologia e à antropologia, os

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temas, ou análises temáticas, expressam uma regularidade de estilo, uma repetição seletiva de conteúdos que foram criados pela socie-dade e permanecem preservados pela sociedade. Eles se referem a possibilidades de ação e experiência em comum que podem se tor-nar conscientes e integradas em ações e experiências passadas. Em síntese, a noção de tema indica que a possibilidade efetiva de senti-do vai sempre além daquilo que foi concretizado pelos indivíduos, ou realizado pelas instituições. Quando tudo é dito e feito, os temas que atravessam os discursos, ou as práticas sociais, não podem ser simplesmente “deletados”, como se diz no jargão dos computado-res, mas somente colocados entre parênteses, deslocados de um momento a outro de diferentes maneiras, mas eles são sempre pre-servados como fontes constantes de novos sentidos, ou combina-ções de sentidos, se houver necessidade.

Devemos realçar aqui que a noção de necessidade aparece nas reflexões que Schütz devotou ao senso comum. Essas reflexões são de considerável interesse para nós, pois a teoria das representações sociais foi elaborada em relação a formas comuns e populares de conhecimento. Em suas notas para seus últimos cursos na New S-chool for Social Research, ele estava interessado na questão da re-levância. O que é que toma uma parte de nosso cabedal de conheci-mento relevante e chama nossa atenção? O que é que nossa cons-ciência experiência como sendo familiar e que nos interessa em de-terminado momento quando somos assaltados por tantas experiên-cias simultaneamente? O tema em sua concepção aparece como aforma, ou núcleo, o centro do campo de consciência cujo funda-mento é a experiência e o conhecimento não-temático:

Dentre todos esses campos virtuais de realidade, ou pro-

víncias f initas de sentido, queremos nos concentrar naquele dos

atos em ação no mundo externo... A atenção é, pois, restrita

ao problema geral do tema e horizonte pertencente ao es-

tado de plena consciência característico desse campo. Mas

essa concentração e restrição são elas próprias uma ilustração de

nosso tópico: esse campo particular de realidade, essa província en-

tre todas as outras províncias, é declarado como sendo suprema reali-

dade e tomada, por assim dizer, temática na investigação des-

ses f ilósofos (isto é, Bergson e James) - um movimento que torna

todas as outras províncias que circundam essa temática cen-

tral apenas horizontais (e também pouco esclarecidas). Mas a

estruturação em tema e horizonte é básica à mente. E explicar

esse tipo de estrutura confundindo o que está fundamentado com

seu principio fundante é, na verdade, uma verdadeira petitio

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principia (Schütz, 1970: 7-8).

É difícil comentar um texto não terminado, mas pode-se perce-ber que a estruturação temática coincide, de algum modo, com o trabalho de objetivação. E isso é assim porque, ao tornar algo temá-tico, relevante a sua consciência, os indivíduos o transformam ao mesmo tempo em um objeto para eles próprios ou, mais precisa-mente, em um objeto pertencente a uma realidade escolhida entre todas as outras realidades possíveis ou anteriores. É ao menos des-sa maneira que devemos entender a referência a James e Bergson.

Vejamos o seguinte exemplo: quando andamos na rua, agimos em relação a um grande número de “objetos”, carros, ruído, nomes de bares, a multidão, etc. À medida que nossa atenção, ou percep-ção, se move de uma coisa a outra, cada uma delas é objetivada por nós vez por vez. Mas não podemos dizer que todo objeto que chama nossa atenção, ou que é percebido por nós, é, com isso, objetivado. Apenas aqueles que são o “centro”, por assim dizer, de nosso campo de consciência se tomam o tema de nossa representação e são obje-tivados no estrito senso do termo. Em síntese, nós experienciamos muitas “regiões da realidade” ligadas a uma representação comum. Mas apenas uma entre elas adquire o status de uma realidade soci-almente dominante, enquanto as outras parecem possuir uma rea-lidade derivada em relação à realidade dominante.

Tudo isso pressupõe que a relação entre o tema corresponden-te e os outros pode ser relevante e partilhada simultaneamente. Ou, para concluir, o que queremos dizer, pode haver um referencial familiar segundo o qual tudo o que existe ou acontece possuirá um caráter não-problemático. Logo que o referencial for questionado por um elemento inesperado, um acontecimento ou algum conhe-cimento que não comporte a marca do familiar, do não-problemático, uma mudança temática é indispensável. Como obser-vou Schütz:

Algo que supostamente era familiar e, conseqüentemente,

não-problemático, mostra-se como não-familiar. Ele tem,

por isso, de ser investigado e determinado com respeito a

sua natureza; ele se torna problemático e, por conseguinte,

tem de ser constituído como tema e não deixado na indife-

rença do pano de fundo horizontal concomitante. Ele é sufi-

cientemente importante para ser imposto como um novo

problema, como um novo tema e mesmo substituir o tema

anterior de seu pensar; de acordo, então, com as circuns-

tâncias, algo poderá perder inteiramente seu interesse, ou

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ao menos ser colocado temporariamente de lado (Schutz,

1970: 25-26).

Não é necessário insistir mais. Com essas observações quise-mos sublinhar, por um lado, exatamente quanto a discussão da consciência cotidiana e da compreensão “natural” sugere a noção de tema, que designa o movimento de estruturação de um campo de conhecimento e possíveis sentidos comuns, ordinários (vere-mos, em breve, como isto se relaciona com o conhecimento cienti-fico!). E, por outro lado, procuramos enfatizar a afinidade com al-gumas hipóteses fundamentais no estudo das representações so-ciais e das implicações sociológicas e antropológicas dessa idéia.

Num passo adiante, através de uma espécie de movimento in-verso, o estudo dos fenômenos lingüísticos exige mais e mais o es-tudo do conhecimento comum e, conseqüentemente, de suas re-presentações. Evidentemente, a análise das representações so-ciais retoma conjuntamente, isto é, tratamos com os mesmos fe-nômenos, pois são fenômenos de intercâmbio entre discursos, ou de convergência entre discursos. Sabemos pelo menos, graças ao trabalho de lingüistas, que existe na linguagem um processo fun-damental que é o da tematização. Em cada fala, por exemplo, “Os Verdes são um movimento social”, há uma focalização léxica na forma da orientação da fala com respeito a uma palavra especifica - substantivo ou verbo - que toma o “núcleo de sentido”, em última instância, uma referência (“os Verdes”) ao sentido da fala E com a atividade da reiteração ou reescrita no discurso, há também, progressivamente, a construção de chaves para a leitura se-mântica que são impostas ao leitor ou ouvinte. Em um trabalho de fundamental importância Chomsky (1982), de certo modo, abriu espaço para a pressuposição de um nível de e strutura temática que orienta os campos semânticos e controla, ou conecta, as fun-ções gramaticais das palavras. Ao abandonar um sistema de re-gras de transformação, ele propõe um sistema de princípios que reconhece a existência de “papéis” temáticos que determinam a associação entre verbo e substantivos na formação de uma sen-tença. Por exemplo, o verbo “convencer” tem a propriedade de de-terminar um papel temático ao seu objeto e complemento na fra-se: “Os Verdes foram convencidos a abandonar sua posição ante-rior”. Há aqui uma idéia importante para a elaboração de uma re-presentação, pois a função principal dos papéis temáticos é asso-ciar o argumento de um verbo a um sentido do verbo dentro de um campo semântico. Isso implica sempre o conteúdo do verbo e uma

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interpretação do próprio verbo dentro de um contexto específico. Além disso, a idéia de relações temáticas entre palavras expressa a possibilidade de um vocabulário “primário” que compreende as partes semânticas do discurso (acontecimentos, lugar, agente, etc.) que permanecem constantes e determinam combinações sintáti-cas: “As relações temáticas estão fundamentadas nos elementos que constituem nossas representações mentais dos acontecimen-tos. Assumo como algo indiscutível que há uma correspondência entre nossa representação mental dos acontecimentos e o sentido de frases empregadas para expressá-los” (Culicover, 1988).

Sem dúvida, há uma controvérsia sobre a questão de se as re-lações temáticas são mais semânticas ou sintáticas em seu caráter, mas ninguém contesta que elas possuem um aspecto conceitual estruturante no discurso. Embora isso possa ser assim, parece, contudo, possível esclarecer a natureza das representações sociais através dessas idéias, pois as representações sociais possuem uma estrutura temática cujos efeitos léxicos e sintáticos são incontestá-veis. A esse respeito, Talmy (1985) demonstrou a existência de um tema que ele chama de dinâmica de força e que expressa a manei-ra pela qual entidades sociais ou físicas interagem com relação à força. Ele analisa sua maneira de “causar” algo expressa pelos ver-bos “prevenir, ajudar, levar”, que afetam a interpretação semântica de falas semelhantes. Mas ele também mostra, ao mesmo tempo, que o tema afeta o emprego de categorias mentais gramaticais (dever, obrigação, etc.). Podemos imaginar que, partindo dessas propriedades sintáticas e semânticas e seguindo o caminho de Talmy, poder-se-ia descrever um tema subjacente e as representa-ções sociais e mentais cujo núcleo seria ele próprio.

Evidentemente essas idéias são ainda provisórias e discutí -veis (Carrier Duncan, 1985; Jackendorf, 1991). Por enquanto, de-vemos levar em consideração que os processos de tematização objetivam, em todo discurso, a estabilização dos sentidos na forma de relações características do tema (adjetivos), induzindo imagens de situações ou maneiras de ser das coisas e do mundo. São pro-cessos, em síntese, que associam constantemente nosso co-nhecimento comum com nosso conhecimento discursivo e o cons-tato de nossas maneiras de ancoragem cognitiva e cultural. Por conseguinte, de uma maneira concreta nossas representações, nossas crenças, nossos preconceitos são sustentados por uma re-presentação social específica. Isso se dá através do estabeleci-mento de relações internas ao discurso, conseqüentemente rela-

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ções lingüísticas, mas agindo necessariamente através do jogo de referências entre, por um lado, aquelas que estão orientadas para uma nova leitura semântica das coisas (aquelas que são tematiza-das, ou não, e aquelas que são faladas) e, por outro lado, através da escolha feita a cada vez de uma origem particular dada a essas ro-tas de se dizer e se significar. Alguns lingüistas parecem estar per-suadidos que existe apenas um número limitado de temas que possuem um valor universal e que regulam construções lingüís-ticas que, á primeira vista, parecem muito distantes umas das ou-tras (Jackendorf, 1991).

4.O papel dos temas nas representações científicas do mundo

Finalmente, devemos prestar atenção especial à idéia que es-tamos discutindo dentro do campo do conhecimento científico. A importância dessa idéia foi entendida a partir do momento em que as pessoas pela primeira vez se preocuparam com a origem do curso da fala e do significado, ou da compreensão ou explicação. No caso do discurso do conhecimento comum, do mesmo modo que do conhecimento científico, é uma questão de perguntar o que desempenha o papel de primeira idéia na formação de families de representações no campo especifico que propicia uma forma “típi-ca” aos objetos e situações relacionados com essa idéia dentro desses campos. Ela vem à tona toda vez que elas repassam os des-dobramentos discursivos com o objetivo de ilustrá-los e de lem-brá-los e, sobretudo, de reorganizá-los como uma função de um grupo, de uma história, de um projeto de ação.

Sem dúvida, o que se nos apresenta como sendo, e aquilo que nós cremos, é constitutivo dessa “essência” das coisas, como Aris-tóteles já expressou claramente:

Todo ensinar e todo aprender de um tipo intelectual proc e-

de de um conhecimento preexistente. Isso se torna evidente

se nós estudarmos todos os casos: as ciências matemáticas são adqui-

ridas dessa maneira e assim é com todas as artes. Do mesmo modo com

argumentos, tanto dedutivos como indutivos: eles comuni-

cam seu ensino através do que nós já sabemos, os primeiros assumin-

do pontos que nós já presumivelmente entendemos, os úl-

timos provando algo universal, pois os casos específicos

são evidentes.

Há dois modos segundo os quais nós já devemos ter algum co-

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nhecimento: de algumas coisas nós já devemos acreditar

que elas existem, de outras, nós devemos compreender

quais são os pontos sobre os quais se fala (e de algumas

coisas, devemos saber ambos os casos). Por exemplo, do fa-

to de que tudo é ou verdadeiramente afirmado ou negado,

nós devemos acreditar que assim é do triângulo, que ele

signif ica isso; e da unidade, ambos (tanto o que ele signifi-

ca, como o que ela é) (Aristóteles, traduzido para o inglês

por Jonathan Barres, 1994: 1).

Uma vez mais, sem dúvida e de igual modo, nós necessaria-mente temos intuições sobre as leis gerais que organizam nossas construções mentais. Como notou Albert Einstein, é uma questão da relação entre a intuição dessas leis gerais que formam a base para construções mentais e para a física: “Para essas leis elemen-tares não há um caminho lógico que leve até lá, apenas a intuição sustentada por estar empaticamente em contato com a experiên-cia (Einfühlung in die Erfahrung) [...] não há ponte lógica que parta das percepções para os princípios básicos da teoria” (Einstein, spud Holton, 1988: 395).

De maneira semelhante Peter Medawar assinala:

O raciocínio cientifico é um diálogo exploratório que pode

ser sempre explicado através de duas vozes ou dois episó-

dios de pensamento, imaginativo e crítico, que se alternam e inte-

ragem. (...) O processo pelo qual chegamos a formular uma hipótese não

é Ilógico, mas não-lógico, isto é, fora da lógica. Mas uma vez

tendo formado uma opinião, podemos expô-la à critica, co-

mumente através do experimento (1982: 101-102).

Mas, de novo sem dúvida alguma, esse é o caso de todos os processos científicos, até mesmo do raciocínio comum: “E (expe-riências: Erebnisse) são dadas a nós. A são os axiomas dos quais nós tiramos conseqüências. Psicologicamente, A se apóia em E. Não existe, contudo, caminho lógico de E a A, mas apenas uma conexão intuitiva (psicológica) que está sempre “sujeita à revoga-ção” (auf Widerruf)” (A. Einstein, carta a M. Solovine, 7 de maio de 1952, apud Holton, 1978: 96; uma discussão mais ampla desse ponto pode ser encontrada em Holton, 1998).

Temos necessariamente, portanto, uma intuição dessas “idéias primárias” - ao menos, porque elas governam efetivamente certo número de desenvolvimentos discursivos - e nós podemos adivi-

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nhar que elas certamente subjazem à maioria de nossas represen-tações coletivas, sintetizando neles “arquétipos”, “idéias comuns”, cultura, histórias, sociedades. Podemos seguir Holton e chamá-las de temas? Holton demonstra na verdade que elas desempenham um papel tanto através de seus bloqueios, como de suas abertu-ras, que pontuam os desenvolvimentos da ciência moderna, atra-vés de “revoluções” nas representações.

Conforme Holton, “temas” corresponderiam também ao tipo de “primeiras concepções profundamente arraigadas, que infor-mam a ciência, como a percepção que nós temos dela”: “idéias primitivas” possuem tanto as características dos estratos originais da cognição, como das imagens arquetípicas do mundo, de sua estrutura e gênese.

Um primeiro exemplo é Copérnico, que conseguiu um avanço significativo na astronomia matemática. Olhando de perto a obra que o tornou famoso (De Revolutionibus) podemos perceber uma profunda razão, que é sua visão da natureza como o templo de Deus e que, devido a isso, seria estudando a natureza que os homens se-riam capazes de distinguir o desígnio do criador.

O livro foi posto no Index do Vaticano precisamente devido a essa proposição, que foi entendida como um tipo de desafio a Deus. Mas a idéia permaneceu como o fundamento da ciência mo-derna, no sentido que dai em diante ela teve a vocação de sistema-tizar o real.

Nessa época, dois temas principais viram a luz do dia, como en-fatiza Holton, o da simplicidade e o da necessidade. A correção de todo sistema cientifico seria assegurada no momento que houvesse um ajustamento mútuo, de uma maneira quase estética, entre os dados e a teoria, mas também quando houvesse a necessidade de ajustar cada detalhe dentro de um plano mais geral. Por isso, Copér-nico explicou que o esquema heliocêntrico que ele havia descoberto para o sistema planetário tinha a peculiaridade que:

não apenas devem todos os seus (dos planetas) fenômenos derivar

disso, mas essa correlação também interliga tão estreit a-

mente a ordem e magnitudes de todos os planetas e de suas

esferas, ou círculos orbitais e os próprios céus, que nada pode ser mu-

dado em qualquer parte deles sem desorganizar as demais partes e o

universo como um todo (Copérnico, DeRevolutionibus, apud Hol-

ton, 1988: 322).

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Com respeito a isso não podemos deixar de pensar, como o faz Holton, em Einstein, que escreveu a seu assistente Ernst Strauss: “No que eu estou mesmo interessado é se Deus poderia fazer o mundo de maneira diferente; isto é, se a necessidade da simplici-dade lógica deixa, afinal, alguma liberdade” (Einstein, spud Holton, 1978: xii).

Mas para entender os temas não será suficiente relatar al-guns tipos de comentários feitos por cientistas sobre as motiva-ções de seu trabalho. Devemos:

1. Saber como compreender o conteúdo cientifico de um acontecimento (E), tanto nos termos de sua própria épo-ca, como nos termos que serão, de agora em diante, os nossos.

2. Mas estabelecer a trajetória através do tempo de determi-nado estado de conhecimento científico comum (ciência “pública”), o que significa “traçar a Linha de Mundo do Uni-verso de uma idéia, uma linha em que o elemento anteri-ormente citado (E) é apenas um ponto” (Holton, 1988: 21).

3. Conseqüentemente, é importante identificar o “momento de nascimento” em algum contexto de descoberta.

4. O acontecimento (E) agora “começa a ser entendido em termos da intersecção de duas trajetórias, duas Linhas de Mundo, uma para a ciência pública e uma para a ciência privada” (Holton, 1988: 223)

Haveria também, através dos textos e representações aos quais eles subjazem e ajustam, três níveis na emergência e imple-mentação dos temas:

O do conceito, ou do componente temático de um conceito, por exemplo, na ciência, o aparecimento dos concei-tos de simetria ou continuidade.

O de tema metodológico: esse seria, novamente na ciên-cia, a formulação de termos de invariância, extre-mos, ou de impossibilidades, aplicados a leis.

Finalmente o de proposição temática, ou hipótese temática, isto é, de falas universalizantes, tais como a hipótese de Newton sobre a imobilidade do centro do univer-so.

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A pesquisa sobre temas pressupõe portanto:

1. No nível da análise semântica e cultural dos discursos e textos, uma exploração temática (que é que torna um tema comum, em determinado momento de consenso, ou de ruptura, em um consenso científico?).

2. No nível da análise cognitiva e lógica, uma especificação de ti-pos de relações dialéticas, que seriam estabelecidas entre proposições e entre conceitos nessa relação de confronto entre ciência pública (oficial) e conhecimento comum, ou senso co-mum.

Um caso exemplar é o do tema do átomo, não apenas um con-ceito, mas também uma imagem cuja idade sabemos remontar à Antiguidade. Demócrito ou Epicuro queria significar com esse ter-mo um elemento constitutivo do fundamento de toda matéria, um elemento indivisível e homogêneo. E embora a busca por uma “par-tícula” singular que iria constituir todos os corpos através de sua combinação tenha, hoje, cada vez mais alcançado seus limites a idéia permanece tão fecunda hoje como o era há dois mil anos. Isso porque ela está fortemente associada a um número de temas metodológicos, que tomam sentido no nível anteriormente men-cionado da "harmonia" entre dados e teoria e, sobretudo, entre imagens e modalidades da "apresentação" científica das coisas.

O tema do átomo não se refere necessariamente a um objeto no sentido literal ou físico, tais como as entidades elementares discretas (descontinuidades): partículas gama, mésons ou pró-tons. Poderia, do mesmo modo, ser uma questão de um tipo abs-trato de elemento, mas um tipo que seria derivado de entidades com um caráter formal: entidades teóricas tais como “forças” (in-terações eletromagnéticas), ou compostas de diferentes termos, por exemplo, um termo central e determinado número de termos corretivos. Metodologicamente, então, os temas do atomismo, isto é, da decomposibildade, confronta-se com o tema da conti-nuidade e vemos a emergência recorrente na ciência de duplas antitéticas, tais como as de evolução e involução, invariância e va-riância, reducionismo e holismo, pois o que aqui ocorre, no nível de representações, é realmente persistente, desde uma dimensão mais fraca, até uma mais forte, desse esquema antigo, com suas interações recíprocas e, por isso, a necessidade de uma “identida-de subjacente” que fundamente as classificações hierárquicas. Colocar uma ordem a partir desse caos na física moderna pressu-

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põe essas quatro categorias de temas metodológicos: gravitação, interação eletromagnética e interações fortes e fracas. Poder-se-ia pensar novamente aqui na ressurreição, na metade do século vin-te, da antiga antítese entre o cheio e o vazio em relação aos deba-tes sobre “realidade molecular”.

Desse modo, um artigo do físico S. Weinberg (1974) toma a forma de uma “carta patente”, tanto filosófica como programática, para essa era quando, segundo ele, trata-se de descobrir um fun-damento comum aos quatro tipos de interações (“forças”) que, juntas, forneçam uma explicação completa dos fenômenos físicos:

1. Interação gravitacional que sustenta todas as partículas.

2. Força eletromagnética que explique aqueles fenômenos em que ocorrem partículas carregadas, bem como a intera ção en-tre luz e matéria.

3. A força nuclear “forte que ocorre entre membros da família de partículas elementares chamadas hádrons (mésons e bárions).

4. A “interação fraca” com a tarefa de descrever as interações, de âmbito extremamente breve, de certas partículas elementares (tais como a difusão de um neutrino por um neutron e a desin-tegração radioativa de um neutron permitindo um próton, um elétron e um antineutrino). Eis que Weinberg escreve no inicio de seu artigo:

Uma das permanentes esperanças do ser humano foi e n-

contrar algumas poucas leis gerais simples que explicassem

por que a natureza, com toda sua aparente complexidade e

variedade, é da maneira que é. No momento atual, o mais próximo

que podemos chegar de uma visão unificada da natureza é uma des-

crição em termos de partículas elementares e suas interações recí-

procas. Toda matéria comum é composta de apenas aquelas partícu-

las elementares que acontece possuírem tanto massa como (relativa)

estabilidade: o elétron, o próton e o nêutron. A essas devem ser a-

crescidas as partículas de massa zero: o fóton ou quantum

da radiação eletromagnética, o neutrino, que desempenha um pa-

pel essencial em certos tipos de radioatividade e o gráviton, ou quan-

tum da radiação gravitacional (Weinberg, 1974: 56).

É interessante notar aqui tais expressões como “leis gerais de uma forma simples” e “visão unitária da natureza” brotando de

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“partículas elementares e suas interações recíprocas”. Há aqui um eco da afirmação de Demócrito: “tudo é átomos e vazio”. E essa propriedade da elementaridade ajuda a orientar a inteira cadeia de explicação, que vai desde partículas chamadas elementares e che-ga a entidades “compostas”, antitéticas (núcleos, átomos ou “ma-téria” familiar, tudo “composto” de partículas elementares). Atra-vés do artigo de Weinberg pode-se ver essa concepção dominante de grupos, famílias e famílias de ordem superior organizando as partículas entre elas de uma maneira quase “zoológica”. Esse é o tema metodológico do continuum, mas também com um eco desse outro tema, o ciclo vital, “importado pelas ciências do mundo dos encontros humanos” (Holton, 1978: 17):

O relatório técnico da, digamos, análise de fotografia de

câmara de bolha é apresentado, de modo geral, em termos de uma

história de ciclo vital. É uma história de evolução e devol u-

ção, de nascimento, aventuras e morte. Partículas entram

em cena, encontram outras e produzem uma primeira geração de

partículas que, subseqüentemente, se deterioram, dando origem a

uma segunda geração e talvez a uma terceira geração. Elas são ca-

racterizadas por vidas relativamente curtas ou longas, por perten-

cer a famílias ou espécies (Holton, 1978: 17)

O que isso significa é que certo número de temas se estende de una extremo a outro das épocas de revoluções do conhecimen-to, com as oposições temáticas que eles geram, ou que estão asso-ciadas a eles, tudo dentro daquela interpretação que menciona-mos anteriormente entre ciência pública e representações co-muns de conhecimento e do mundo. Uma vez mais, não é esta uma questão de arquétipos no sentido de Jung, antes de “idéias primárias” ajudando a reformular a representação de domínios de conhecimento e a ação desses domínios. A noção de “trabalho”, ao mesmo tempo cognitiva e discursiva, é importante aqui porque é realmente nas incessantes reformulações e reescritas implicadas nesse trabalho histórico de representações, que esses temas e-mergem, os quais se tomam pontos de referência, no sentido de “pontos semânticos focais”, para compreender a estabilização ou desestabilização de idéias ou conceitos.

O exemplo do trabalho de Kepler, novamente analisado por Holton, é particularmente ilustrativo da progressão de tais proces-sos. Kepler permaneceu ancorado em uma época em que animis-mo, alquimia, astrologia, numerologia e feitiçaria continuavam a ser problemas discutidos com seriedade. Ele narra os estágios de

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sua progressão com detalhes e assim nos ajuda a compreender as múltiplas confrontações que acompanham o inicio do século de-zessete, a aurora da ciência moderna.

Seu primeiro passo é unificar a representação do mundo her-dado da Antiguidade apelando para o conceito de uma força física universal fundamentada em uma figura unitária - o sol governan-do a terra a partir de seu centro - e um principio unitário: a ima-nente onipresença de harmonias matemáticas. Ele não pode ofe-recer uma explicação mecânica do movimento dos planetas, mas conseguiu unir duas concepções do mundo: o antigo - o de um cosmos imutável - e o moderno, devotado ao jogo de leis dinâmi-cas e matemáticas. E é quase por acaso que ele juntou as indica-ções que Newton depois empregou para estabelecer definitiva-mente nossas concepções modernas.

Kepler é, na verdade, o primeiro a procurar uma lei física ba-seada na mecânica terrestre para compreender o universo como um todo. Embora Copérnico ainda insistisse em manter uma distin-ção entre fenômenos celestes e os que pertenciam apenas à Terra, Kepler a rejeitou. Desde a obra de sua juventude, Mysterium cos-mographicum (1596), um e o mesmo procedimento geométrico serve para estabelecer a natureza necessária da organização ob-servada de todos os planetas. A Terra é dado o mesmo valor que aos outros planetas!

Pouco mais tarde, trabalhando em 1605 em sua Astronomia nova, ele traçou seu programa:

Meu objetivo aqui é mostrar que a máquina celestial deve ser

comparada não a um organismo divino, mas a um relógio,

pois quase todos os movimentos aparentes são realizados

por meio de uma força magnética singular, bastante simples,

como no caso de um relógio onde todos os movimentos (são

causados) por um simples peso. Ainda mais, mostro como

essa concepção fisica deve ser apresentada através do cálculo e

da geometria (apud Holton, 1988: 56).

Aqui, então, a máquina celeste é pensada como transformada por uma única força terrestre, à imagem de um relógio, uma profé-tica intenção traduzida pelo título Physica Coelestis. Para isso, Kepler primeiramente discerniu que a causa das forças que são sentidas entre dois corpos não está em sua relativa posição, nem nas confi-gurações geométricas em que elas entram (como fez Aristó teles,

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Ptolomeu e Copérnico), mas nas interações mecânicas esta-belecidas entre esses objetos materiais. Ainda mais, ele já tinha um pressentimento de uma gravidade universal: “Gravitação con-siste na luta corporal reciproca entre corpos em relação, na dire-ção de uma união ou conexão; dessa ordem é também a força magnética” (apud Holton, 1988: 57).

Do mesmo modo ele afirmou o que poderia ser um precursor do princípio da conservação da quantidade do movimento: “Se a terra não fosse redonda, um corpo pesado seria dirigido não em qualquer direção, diretamente ao centro da terra, mas para dife-rentes pontos a partir de diferentes lugares” (apud Holton, 1988: 57).

Mas ele permaneceu prisioneiro da concepção aristotélica do principio da inércia, identificando inércia como uma tendência de retomo ao repouso: “Fora do campo de força de outro corpo rela-cionado, toda substância corpórea, pelo fato de ser corpórea, por natureza tende a permanecer no mesmo local em que se encontra" (apud Holton, 1988: 58). E esse axioma o impediu de formular concretamente os conceitos de massa e força; devido a esses con-ceitos, a máquina celestial do mundo imaginada por Kepler está destinada ao insucesso. Ele deveria ter previsto forças distintas para garantir o deslocamento de planetas ao longo da tangente para a trajetória e levar em consideração o componente radial do movimento. Além disso, ele pressupôs a hipótese que a força pro-veniente do sol, que mantém o movimento tangencial dos plane-tas, decresce na razão inversa da distância. A imagem é sugestiva, mas ela não conduz Kepler à lei das forças da razão quadrada in-versa da distância, simplesmente porque ele considera a expansão da luz em um único planeta, composta pelo plano da órbita plane-tária. Dessa maneira, ele faz a redução em intensidade lumi nosa depender do aumento linear da circunferência, à medida que algo se move para órbitas mais distantes!

A física de Kepler é, então, uma fisica pré-newtoniana: a força é proporcional não à aceleração, mas à velocidade. Isso lhe era su-ficiente a fim de explicar sua observação que a velocidade de um planeta ao longo de sua órbita elíptica decrescia em uma razão li-near, à medida que sua distância do sol aumentasse; disso se ori-ginou sua segunda lei, que fundamentou um inicio da interpreta-ção física na base de muitos postulados errôneos.

Movido, com efeito, pela convicção da existência de uma fo r-

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ça original proveniente do magnetismo, ele representou o sol como um ímã esférico, sendo que um de seus pólos estaria no seu centro e o outro em sua superfície, de tal modo que um planeta, ele também magnetizado como uma barra magnética de orientação constante, encontrar-se-ia algumas vezes atraído, outras repelido pelo sol ao longo de sua órbita elíptica. Isso explicava o compo-nente radial no movimento dos planetas: o movimento que seguia a tangente resultaria em uma força, ou momento angular, que ele pôde provar por hipótese: o planeta sendo arrastado ao longo de sua rota pelas linhas da força magnética que emanavam do sol à medida que ele girasse sobre seu próprio eixo. Essa representação já é notável, mas permaneceu incompleta: Kepler não conseguiu mostrar: “como essa concepção física deve estar presente através do cálculo e da geometria” (apud Holton, 1988: 59-60).

Na verdade, o bloco é apenas aparente devido à tentativa de Kepler de estabelecer um modelo mecânico do universo e uma nova interpretação filosófica da “realidade”. Ele quis “oferecer uma filosofia ou física dos fenômenos celestes em lugar da teolo-gia ou metafísica de Aristóteles” (carta de Johann Brengger, 4 de outubro de 1607; apud Holton, 1988: 60). Seus contemporâneas vi-ram apenas o absurdo disso. Eles foram tentados a ver em Kepler o campeão de um tipo mecânico de filosofia natural; o termo “mecâ-nico” implica aqui que o mundo real seria o mundo de objetos e de suas interações mecânicas no sentido aristotélico.

Contudo, a partir do insucesso do programa anunciado em Astronomia nova, outro aspecto de Kepler pode ser afirmado, que pode ser entendido se, com Holton, nós admitirmos que os termos “realidade” e “físico” possuem aqui sentidos que concordam:

Chamo minhas hipóteses f ísicas por duas razões. Meu obje-

tivo é supor apenas aquelas coisas das quais eu não tenho

dúvida que sejam reais e conseqüentemente físicas, onde deve-

mos fazer referência à natureza dos céus, não dos elementos. Quando

eu descarto o excêntrico perfeito e o epiciclo, eu não faço isso pelo fa-

to de serem puramente pressupostos geométricos para os

quais não existe um corpo correspondente nos céus. A segunda ra-

zão para chamar minha hipótese de f ísica é isso ... eu provo

que a irregularidade do movimento (dos planetas) corres-

ponde à natureza da esfera planetária; isto é, é física (Notas de

Kepler em uma carta de Mastlin, 21 de setembro de 1616; a-

pud Holton, 1988: 62).

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Tudo, para Kepler, fundamenta-se na natureza dos céus e na natureza dos corpos. E para ele isso segue do fato de ele se apoiar em dois critérios de realidade:

1. O mundo real, no sentido fisico, determina a natureza das coisas e o mundo dos fenômenos comuns dos princípios mecânicos; essa é a possibilidade para formular uma dinâ mica generali-zada e coerente, que Newton concretizou mais tarde.

2. O mundo real, no sentido físico, é o mundo das harmonias da expressão matemática, que o homem é capaz de detectar a partir do caos do contingente. Devemos, portanto, fazer o pos-sível para descobrir essas “harmonias matemáticas” da natu-reza.

Portanto, quando Kepler observou, seguindo as primeiras ob-servações do movimento das manchas solares, que o período da rotação solar era na verdade completamente diferente do que ele tinha postulado em seu sistema físico, ele absolutamente não se perturbou. Ele não estava totalmente comprometido com uma in-terpretação mecânica dos fenômenos celestiais, como Newton es-teve mais tarde. Seu critério era o da regularidade harmoniosa das leis descritivas da ciência. A “Lei das Áreas Iguais” é um bom e-xemplo. Para Tycho e Copérnico, a regularidade harmônica do movimento dos planetas era reconhecível na uniformidade dos movimentos circulares dos quais eles eram compostos. Mas Ke-pler acabou identificando as órbitas dos planetas como elipses, uma forma não-uniforme de movimento. A figura é irregular e a velocidade é diferente para cada ponto. E o levar em consideração essa dupla complicação nutre uma regulari dade harmônica: “o fato de que uma área constante é removida em intervalos iguais por uma linha do foco da elipse, onde está o sol, para o planeta na elipse (Holton, 1988: 63).

Para Kepler essa lei é harmoniosa por três razões:

1. A lei está de acordo com a experiência (ele teve de supor-tar o sacrifício de suas primeiras idéias a fim de respon-der aos imperativos da experiência quantitativa).

2. A lei apela a uma invariância, apesar de não ser mais uma questão de velocidade angular, mas de velocidade de á-rea.

Lembremos que o sistema de mundo de Copérnico e o primei-ro sistema de Kepler (Mysterium cosmographicum) postulavam

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conjuntos de esferas concêntricas estacionárias. Galileu nunca chegou a aceitar as elipses de Kepler e permaneceu até o fim um discípulo de Copérnico, que tinha declarado que “a mente se arre-pie á suposição de movimento celestial não-circular e não-unifor-me. O postulado de Kepler de órbitas elípticas marcou, então, o fim de uma simplicidade antiga. A segunda e a terceira lei criaram a lei da invariância física como um princípio de ordem em uma si-tuação de fluxo.

3. Essa lei é também harmônica no sentido que o ponto fixo de referência da Lei das Áreas Iguais, o “centro” de mo-vimento dos planetas, é o centro do próprio sol, mesmo que o esquema copernicano situasse o sol levemente re-baixado do centro das órbitas planetárias. Através des-sa descoberta, Kepler criou um sistema planetário ver-dadeiramente heliocêntrico, de acordo com sua exigên-cia instintiva de um objeto material em seu “centro”, do qual deveriam provir os fatores físicos que governassem o movimento do sistema. Esse sistema heliocêntrico é também teocêntrico.

Para Kepler, a imagem é empolgante. O sistema planetário se torna uma figura em um universo centripeto, controlado através e pelo sol com seus múltiplos papéis: “como o centro matemático na descrição dos movimentos celestes; como a ação física central para garantir movimento continuo; e, sobretudo, como centro me-tafísico, o templo da Divindade” (Holton, 1988: 65). Três insepará-veis papéis correspondem igualmente aos argumentos que possu-em um status de arquétipos:

1 O sistema heliocêntrico permite uma representação ad-miravel. mente simples dos movimentos planetários.

2 Cada planeta está necessariamente sujeito a uma força diretiva invariável e eterna em sua própria órbita.

3 Ali deverá haver fundamentação para o que é comum a todas as órbitas, isto é, seu centro comum e essa fonte eterna deve ela própria ser invariável e eterna

4 Esses são os atributos exclusivos da única Divindade (Holton, 1988: 65).

Kepler acumulou, então, deduções e analogias para apoiar sua tese. Mas o argumento mais retumbante foi a comparação da esfe-ra do mundo à Trindade: o sol, estando no centro da esfera e, con-

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seqüentemente, anterior a seus dois outros atributos - superficie e volume - é relacionado a Deus Pai, uma permanente analogia para Kepler e uma imagem que o obcecou do inicio ao fim. Nessa as-cendência observada na figura solar podemos, na verdade, encon-trar um tema muito antigo: o da identificação da “luz” com a fonte de toda existência e a afirmação que espaço e luz são apenas um tema da influência neoplatônica, como as referências a Proclus (quinto século antes de Cristo) testemunham. Na Idade Média, o “lugar” atribuído a Deus era, ou o inteiro universo ou o espaço além da última esfera celeste. Kepler apresenta uma nova alterna-tiva. No referencial de um sistema heliocêntrico Deus poderia ser reintegrado ao sistema solar, entronizado no objeto que serve como uma referência estacionária comum e que coincide com a fonte da luz e a origem das forças físicas que garantem a coesão do sistema. Como sabiamente diz Holton: “a física dos céus de Kepler é heliocêntrica na ciência dos movimentos mecânicos (cinemática), mas teocêntrica em sua dinâmica” (1988: 66) - dinâmica porque as harmonias, originadas nas propriedades da Divindade, substi-tuem as leis físicas originadas no conceito de forças quantitativas especificas. As harmonias de Kepler, portanto, são quantitativas, mesmo que para os Antigos essas leis fossem qualitativas, ou de um formato simples; e é isso que se torna o ponto de ruptura que resulta na concepção matemática moderna de ciência. Embo ra para os Antigos os resultados quantitativos servissem apenas para esclarecer um modelo especifico, para Kepler é nos próprios re-sultados empíricos que a construção celestial se revela. Esse pos-tulado, que as harmonias são imanentes nas propriedades quanti-tativas da natureza, remonta, na verdade, às próprias ori gens da filosofia natural, é a assimilação da quantidade, na medida em que ela é atributo da Divindade; e essa capacidade do ser humano de perceber as harmonias se torna a prova da ligação en tre seu espí-rito e Deus (cf. Harmonica mundi, P7,1).

A sensação da harmonia se tomou presente, pois existe uma equivalência entre a ordem das percepções e os arquétipos inatos correspondentes (archetypus). O arquétipo se torna até mes-mo parte do espírito de Deus, sendo que ele é uma marca na alma do ser humano, pois Deus o criou, pois a alma apresenta: “Não uma imagem do verdadeiro modelo (paradigma), mas o próprio modelo autêntico... Então finalmente a própria harmonia se torna inteiramente alma, até mesmo Deus” (apud Holton, 1988: 69).

O estudo da natureza é transformado então no estudo do en-

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tendimento divino, que é, portanto, acessível a nós através do in-termediário da linguagem matemática: Deus fala através de leis matemáticas!

Encontramos aqui a imagem do Deus de Pitágoras, encarnado diretamente em uma natureza observável nas harmonias matemá-ticas do sistema solar: um Deus, escreve Kepler: “a quem, na con-templação do universo eu posso tocar, por assim dizer, com mi-nhas próprias mãos” (carta ao Barão Strahlendorf, 23 de outubro de 1613; apud Holton, 1988: 7o).

Existe aqui uma harmonia conceitual absoluta que opera a-través de três temas fundamentais, na origem, portanto, de três modelos cosmológicos: o universo como uma máquina fisica, o uni-verso como uma harmonia matemática e o universo como uma or-dem teológica, governada a partir de seu centro.

5.Temas e representações sociais

Para sintetizar, no coração das representações sociais, no co-ração das revoluções cientificas, existem temas que perduram como “imagens-conceito” ou que são o objeto de controvérsias antes de serem questionadas. Quais são elas? Que formas to-mam? “Imagens-conceito”? “Concepções primárias” profunda-mente ancoradas na memória coletiva? “Noções primitivas”? Cer-tamente algo de tudo isso. Todos nossos discursos, nossas crenças, nossas representações provém de muitos outros discursos e mui-tas outras representações elaboradas antes de nós e derivadas delas. É uma questão de palavras, mas também de imagens men-tais, crenças, ou “pré-concepções”. Faltando-nos a capacidade de dominar completamente a origem das concepções no longo espa-ço de tempo (longue durée), a análise das representações sociais não pode fazer mais que tentar, por um lado, identificar o que, em determinado nível “axiomático” em textos e opiniões, chega a operar como “primeiros princípios”, “idéias propulsoras” ou “ima-gens” e, por outro lado, esforçar-se para mostrar a “consistência” empírica e metodológica desses “conceitos”, ou “noções primári-as”, na sua aplicação regular ao nível de argumentação cotidiana ou acadêmica. Isso quer dizer que a lingüística, como uma ima gem mental, intervém nesses processos de pensamento social; ou, novamente, que desse ponto de vista os limites entre discurso “acadêmico” e “comum” não são nunca fixos e que há uma passa-gem continua entre um e outro. Como isso acontece? Devemos

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aqui ao menos tentar especificar, de cima para baixo, uma confi-guração tanto cognitiva como aplicada.

Temas conceituais podem, então, ser considerados como “i-déias-fonte” (o universo é uma máquina física”; “ele obedece, pois, a leis matemáticas”; “o sol está no centro como Deus e luz”) que geram uma nova axiomática na evolução de nossas representa-ções do mundo. Eles tomam a forma de “noções”, isto é, de “locais potenciais” de significado como geradores de concepções, eles são “virtuais” porque esses “locais” somente podem ser caracterizados através do discurso, através de justificações e argumentos que os “alimentam” na forma de produções de sentido.

Exemplo 1: “O átomo é a menor partícula de todas as coisas, isto é, ele é o mais simples, o mais concentrado e o mais universal; pois deve existir um núcleo ‘último’ .”

Isso implica que essas “noções-tema” possuem como com-plementos certo número de temas metodológicos que tomam a forma de “leis” aplicáveis a certos campos na forma de “chaves in-terpretativas” para esses campos: chaves interpretativas no senti-do de estatutos das propriedades e modos de combinação e inter-relação atribuídos aos objetos desses campos, definindo, portanto os internos (os conteúdos desses campos em relação aos externos - o que eles não são, ou não incluem).

Exemplo 2: “O átomo é o elemento que entra na composição de todas as coisas complexas (matéria ou seres vivos).” Dessa ma-neira tanto a “natureza” como a amplitude das representações sociais são fundamentadas. Concretamente, essa tarefa cognitiva começa a operar através de uma dupla articulação simbólica:

1. Na definição de limites estabelecendo essas relações in-ternas/externas através da indexação (ancoragem referen cial) em relação a campos já existentes ou conhecidos (dos-quais eles são responsáveis/dos quais eles não são responsáveis; o que lhes pertence/o que não lhes pertence).

2. Pela legitimação recíproca dessas reconstruções ou re-presentações através da “apresentação” argumentativa de ob-jetos que autenticam esses campos (objetivação de con-teúdos), objetos eles próprios legitimados proporcionalmente ás propriedades atribuídas a eles a cada vez, como típicas, se não exclusivas.

Exemplo 3: “Todo ser vivo, toda matéria, são sempre constitu-

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ídos de átomos. Há átomos para as coisas vivas e átomos para os minerais.”

O jogo sociocognitivo total de representação repousa então nos tipos dessas propriedades atribuídas sempre aos objetos de um campo com o objetivo de ilustrá-los. E considerando as rela-ções entre “interiores” e “exteriores”, isto é, contrastando entre campos sociais e, portanto, entre os conteúdos que os caracteri-zam, estamos evidentemente na presença de sistemas locais de oposição construídos através do discurso; as propriedades atribuí-das aos objetos de certo modo desempenham o papel de funções aplicáveis ao conjunto de relações entre elementos de campos. Essas funções aplicadas a objetos (qualidades, especificações e determinações de existência atribuídas a elementos de um cam-po) são, podemos dizer, funções topocognitivas: elas têm como objetivo especificar o caráter exemplar dos objetos, posicionando-os totalmente em relação a outros objetos e, com isso, estabe-lecendo a legitimação dos campos de contextos que fund amen-tam toda representação.

Exemplo 4: “Todo ser vivo é feito de átomos. Devemos, portanto, encontrar átomos (células) que diferenciam os (corpúsculos) vi-vos dos “não-vivos”.”

Neste nível, todas as relações metodológicas entre objetos ou propriedades de objetos funcionam na forma de “regras” tributárias, tanto da memória ordinária das “coisas” (o que as coisas “são” em relação a outras “coisas”), como de “máximas de crenças” (o que essas “coisas” trazem com elas e para onde conduzem, ou o que produzem), que traduzem a resistência de uma semiosis comum a toda coletividade humana. Essas “regras” tomam, então, a forma de proposições, retematizando a relação da “lei” em questão.

Exemplo 5: “O átomo é diferente em uma pedra e em um ser vivo, mas algumas leis de construção da pedra são também en contradas em seres vivos (“tijolos de vida”).”

A Figura 4.1 sintetiza esses desenvolvimentos em um esque-ma configuracional. Isso significa, para retomai à questão das re-presentações sociais, que elas são sempre derivadas de elementos nucleares “pseudoconceptuais”: arquétipos de raciocínio comum ou “pré-concepções” estabelecidas ao longo de um largo espaço de tempo (long durée), isto é, tributárias de histórias retóricas e crenças sociais que possuem o status de imagens genéricas

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Figura 4.1 -A função geradora dos temas

TEMAS: Idéias-fonte: "conceitos-imagem" NOÇOES: Tópicos que geram sentido 'primitivo" e representação na relação cultura-cognição

ANCORAGEM

Classes de discurso: representações sociais

Construção de campos semânticos e suas “chaves

interpretativas”

OBJETIVAÇÃO

Marcas cognitivas e trabalho lingüístico de referen-

da: modos de composição entre “objetos” e o esta-belecimento de “limites” nas relações de campos

internos/ externos

leis Marcas cognitivas e trabalho lingüístico de referen-cia: modos de composição entre 'objetos' e o esta-

belecimento de "limites" nas relações de campos internos/ externos

regras máxi-mas

especificação de objetos "exemplares" através da atribuição de propriedades apresentadas como "t í-picas' com o objetivo de estabilizar a marca

“princípios aplicáveis” legitimando as argumenta-ções inscritas nas “semiosis social”

- retórica comum,

- “senso comum”,

- representações legitimadoras,

- modos comuns de jujstificação,

- crenças confirmadoras.

Na verdade, é uma questão de topoi, isto é, de “locais” de sen-so comum onde elas encontram a fonte de desenvolvimentos e os meios de se legitimar, pois esses “locais” est~o ancorados no per-

1

TEMAS: Idéias-fonte': "conceitos-imagem"

1

NOÇOES: Tópicos que geram sentido 'primiti-vo" e representação na relação cultura-cognição

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ceptível (cognição partilhada e popular) e na experiência rituali-zada (cultura e seus ritos, isto é, suas partes operativas na repre-sentação). Elas tomam, geralmente, a forma de noções ancoradas em sistemas de oposições (isto é, termos que são contrastados a fim de ser relacionados) relativas ao corpo, ao ser, à ação na soci-edade e ao mundo de maneira geral; toda linguagem testemunha isso.

Conseqüentemente, no francês, como em muitas línguas, há a oposição entre homem/mulher, que permite temas conceituais sejam derivados (homem=força; mulher=graça) que, através de um longo período (long duree), irão conformar nosso comportamento, nossa conduta e, sobretudo, nossas imagens, mas que também chegam a operar como “núcleos sem}nticos” gerando e organi-zando regimes discursivos, posicionamentos cognitivos e cultu-rais, em outras palavras, classe de argumentação (“feminismo” versus “chauvinismo machista “ a mulher no lar” versus “o homem no trabalho” etc.) Desse modo comparando discursos que carre-gam conflitos socioético podemos encontrar novamente aqueles tópicos comparáveis às propriedades atribuídas ao “outro” e legi-timando oposição.

Toda representação social retorna, pois, à expressão reitera-da em discursos desses intercâmbios de teses ou temas negocia-dos localmente, ou mais universalmente. A “revolução das idéias”, até mesmo na ciência, como vimos, exige argumentos que possu-em o poder de subverter uma idéia, ou uma imagem dominante. Do mesmo modo, deverá existir o “bom das histórias” para cons-truir uma “história”. Conseqüentemente, o que é importante nas análises desses discursos que, intuitivamente, sempre retomamos como representativos de movimentos de opinião ou de movimen-tos sociais, e realmente trazer á luz a negociação ali presente, lin-guisticamente, na fronteira entre o “negociável” e o “não negociá-vel” entre o que funciona como crença estável ou como desenvol-vendo cognição social. Concretamente, trata-se de identificar, por um lado, o que se apresenta “literalmente” e, por outro lado; e por outro lado o que surge do debate construtivo e apresenta proces-sos adaptativos, índices de transformações sociais e culturais. Desse modo, na abertura de um filme americano sobre dinossau-ros podemos ver a repentina reaparição de uma oposição nítida entre “crentes darwiniano” e aqueles (“fundamentalistas” religio-sos) que não aceitam nenhuma vida na terra antes daquilo que a Bíblia fala sobre a criação do homem. Essa oposição apóia-se no-

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vamente entre dois tipos de tematização:

1) O ser humano é receptáculo de Deus e ter sido precedido por um mundo visto como bestial.

2) Deus existe apenas no projeto progressivo e evolutivo de um mundo que é construído e não em “Criação”. Esse é um tipo de demarcação regularmente encontrada nessa fron teira entre discurso “sério” (científico) e “não-sério” (isto é, desprezível), mas que ainda assim força todo discurso so cial a tomar seu lugar em certa relação com respeito a uma “policia sobre o conflito de idéi-as”.

Conseqüentemente, devemos admitir que juntamente com esses “invariantes” perceptuais ou neuro-sensores que organizam nossos mecanismos cognitivos básicos, há também nossas cogni-ções ordinárias e que no decurso de um longo tempo (longue du-rée) são gravadas com postulados ancorados em crenças e é essa “gravação” que vemos emergir em nossos discursos na forma de aberturas ou fechamentos recorrentes - “aberturas” e “fechamen-tos” que integram “opostos” em um relance. E é essa “síntese de opostos” que, como na linguagem, fundamenta a integração de cada tema perceptível em uma ou mais noções.

Assim, por exemplo, a crença na noção de “liberdade” as-sume a representação de um par especifico de reciprocidades, integrado em um esquema nocional: “a capacidade de agir sem pressão versus pressões forçando alguém”. Essa reciprocidade ine-rente a cada noção permite, por sua vez, as comutações de propri-edades e determinações derivadas da noção: “liberdade = bem-estar” Versus “mal-estar”: “liberdade = licenciosidade” versus “li-berdade responsabilidade”, etc.

São essas comutações que, com o fluxo do discurso, facilitam permutações nas representações e nas normas associadas a elas, a

forma de:

1. “Bloqueios” ou “desbloqueios” no status axiomático (te-mas) de noções e suas expressões normativas (na lei de emprego francesa o direito de greve é central, na lei ale-mã é o de “interesse coletivo” que é central e, conse-qüentemente, a necessidade de negociação preliminar).

2. As mudanças semânticas e operacionais que estão inse-ridas nos valores ou nos traços, que comportam a anco-ragem de valores (por exemplo, no alimento, o peixe que

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é usado para ser parte da prática religiosa da “abstinên-cia da sexta-feira” tornou-se agora emblema de uma die-ta saudável e de uma cuisine lêgére).

A conseqüência de tais processos operativos torna-se eviden-te no jogo de negociações sobre o status de objetos e seus contex-tos de “existência”, que são inerentes a toda representação dis-cursiva. Será importante distinguir aqui, na análise, entre aqueles que operam cognitivamente através de expressão na própria lin-guagem e aqueles que identificam artefatos de comunicação (ti pos de situações, a presença ou ausência do outro, etc.).

No primeiro caso, isso será evidente, tanto através da temati-zação léxica como através da orientação semântica da organiza ção sintática da expressão:

• Exemplo: “A mulher feminina usa meias da mama X,” isto é:

a. “No centro da classe de mulheres há o tipo do “mais femi-nino!”.

b. “Ela é reconhecida pelo que veste; se você quiser identifi-cá-la você deve olhar primeiro para a marca de suas mei-as.”

No segundo caso, no nível “comunicacional” (isto é, relações Eu-Outro), será uma questão de diferenciar claramente os tipos de processos discursivos e argumentativos que levam, por um lado, a enfocar os “objetos pretextos”, ou “exemplos” (exemplo ou lugares comuns) e, por outro lado, ao posicionamento da representação discursiva em um contexto referencial que vai do proximal (diálo-go, conversações, intercâmbios face a face) ao distal (o discurso escrito ou registrado da mídia ou instituições). Estaremos, conse-qüentemente, muitas vezes na presença de “pacotes de co-municações” expressando tanto as reiterações sociais de repre-sentações, como a evolução de imagens, ou noções, na sociedade. Necessitamos saber, então, como levar em consideração esse as-pecto “epidemiológico” de representações, embora sem com isso prejulgar se todas elas irradiam de uma “fonte” central, saber como distinguir o conteúdo de um e outro campo, retomando as convergências, de certo modo, de maneira ascendente, possuindo mais o status de um esquema de oposições nocionais, do que uma idéia-fonte estável.

“Temas” nunca se revelam com clareza; nem mesmo parte

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deles é definitivamente atingível, tanto porque eles estão comple-xamente interligados com certa memória coletiva inscrita na lin-guagem, como também porque são combinações, iguais às repre-sentações que eles sustentam, ao mesmo tempo cognitivas (inva-riantes ancorados em nosso aparato neurossensor e em nossos es-quemas de ação), como culturais (universais consensuais de te-mas objetivados pelas temporalidades e histórias do longo espaço de tempo [longue durée]).

Tomemos o exemplo do alimento e as representações que ele implica, ou que estão associadas a ele. Os sistemas de oposições que podem ser discernidos ali são normalmente acordos entre o biológico e o social, entre preocupações sobre saúde ou sobrevi-vência (imagens do corpo e do self em relação a outros) e memó-rias ou culinárias culturais que fundamentam e posicionam os gru-pos uns em relação aos outros. E nesse trio “alimento/corpo, saú-de/ cozinha, gosto” constata-se regularmente o reaparecimento de tais temas como o “tradicional”, o “natural” e o “sofisticado” ancorados nas “noções-imagem” correspondentes - “terra”, “saúde ou beleza”, “distinção” - onde se pode facilmente ver os campos semânticos que eles geram tão abundantemente entre nossos con-temporâneos. E diferentes tipos de “leis” (médicas, patrimoniais, etc.) serão aplicáveis de acordo com cada um desses temas, desde as “regras” de consumo que são deles derivadas, até a mul-tiplicidade de imagens e sentidos que isso produz. Desse ponto de vista, o interessante é medir como representações alimentares, índices de novas categorizações do social, são constantemente re-compostas; como limites nas apresentações sócio-históricas são subvertidos; e, finalmente, como algumas representações possu-em um impacto direto nas mudanças em prática; esquematiza-ções ativas do sentido comum, mas também chaves para compre-ender o que na análise de cada uma de nossas representações é apresentado como as condições para o estabelecimento de uma “verdade comum”. Toda representação social somente pode ser analisada em termos de uma trajetória icônica e lingüística, ascen-dendo a uma fonte (as “idéias-fonte) e ao mesmo tempo procuran-do normatizar na direção descendente na forma de campos se-mânticos e esquemas demonstrados, facilmente transmitidos. Ten-tamos recapitular essa arquitetura operativa na figura 4.2.

Figura 4.2 – dos temas de representações sociais TEMAS: “arquétipos” (memória coletiva ou “residual”)

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Propriedades essenciais e genéricas atribuídas a classes de objetos no mun-do determinações e disposições de intenções

Expressões em NOÇÕES Na forma de TEMATIZAÇÕES cognitivas (“noemas falados” e topoi argumentativos, lugares comuns, exemplos)

ESQUEMAS cognitivo-culturais que organizam ANCORAGENS situacionais na forma da “LEIS” (senso comum)

CAMPOS SEMÂNTICOS comportando REPRESENTAÇÕES OBJETIVAS através da aplicação de REGRAS derivadas de LEIS (senso comum aplicado)

Chaves interpretativas que organizam nossas CATEGORIZAÇÕES cognitivas e culturais

princípios projetivos

ESQUEMATIZAÇÕES DISCURSIVAS JOGOS ARGUMENTATIVOS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS NEGOCIAÇÕES NAS RELAÇÕES EU-OUTRO

PRINCÍPIOS

APLICATIVOS

regras

máximas cognições crenças “culturas

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5 – Caso Dreyfus, Proust e a Psicologia Social

Sem dúvida, alguns vão achar o titulo desse trabalho ridículo, outros o irão considerar arriscado, mas todos o acharão esquisito. Se você estiver curioso por saber por que ele é esquisito, vai logo se dar conta de que é porque as palavras familiares “psicologia so-cial” são empregadas ligadas a algo que está longe de ser familiar. Seria suficiente substituí-las ou por “história”, ou “psicanálise” para se livrar do esquisito e tornar a associação normal. Contudo, isso pode parecer desconcertante, fui tolerante, durante algum tempo, em não apresentar nenhuma análise, nem nenhuma críti-ca, mas Gedanken experiments7 (experimentos de pensamento) sobre personagens e grupos fictícios presentes no mundo da lite-ratura. Por que isso? É verdade que alguns novelistas franceses, como Michel Butor (196o), ou historiadores, especificamente Ge-orges Duby (1961) e Jacques Le Goff (1974), defenderam que a psi-cologia social é absolutamente necessária, caso queira alguém compreender a ficção e a história em sua profundidade. E eles não hesitam em utilizar-se disso em seu trabalho. Um historiador dos EE.UU., James Redfield, declarou há pouco que, a fim de interpretar a Ilíada, seria bom conhecer a psicologia social de Homero. Isso seri-a, sem dúvida, uma tarefa difícil. E o historiador inglês M.I. Finley, discutindo a mudança de atitudes com relação ao mundo antigo, acusa a maioria de seus colegas de negligenciar o papel desempe-nhado pela psicologia social: “A maioria dos historiadores”, es-creve ele, “tem vergonha das explicações psicológicas para tal mudança, em parte por um medo compreensível da retóri ca mora-lizante que decorre como conseqüência e em parte por ignorância e desconfiança da psicologia social, mas na maioria das vezes de-vido a tradições profissionais enrijecidas” (Finley, 1983: 120). Eles não são os únicos e, acrescentaria, nem é sua culpa.

A razão disso, e esse é outro fato, é que os psicólogos sociais

7 • As idéias desse artigo foram primeiramente apresentadas em uma confe rência no semi-nário geral da New School for social Research, Nova lorque.

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não compartilham desses interesses. Dito com mais precisão, eles relutam em devotar seu tempo e habilidades a tais empreendi-mentos. Mas não necessitamos espantar-nos. Não pretendo criti-car meus colegas, cujas motivações entendo perfeitamente bem, principalmente porque a maioria deles, vivendo nos EE.UU., tema sorte de possuir uma ampla comunidade cientifica e uma vasta audiência, correndo, desse modo, menos riscos de ser atraídos ou contaminados pelas preocupações das disciplinas afins. Na Euro-pa, como todos sabemos, os limites são menos nítidos e a pressão para responder As mesmas perguntas gerais são muito mais for-tes. De qualquer modo, fica-se intrigado pela possibilidade de ex-pandir nossas indagações para as áreas, digamos, da literatura ou arte, história ou cultura, do mesmo modo como isso intriga sociólo-gos, an- tropólogos e, certamente, psicanalistas. De qualquer mo-do, uma coisa é certa. Existem menos chances de que os achados de uma ciência possam criar um grande alvoroço ou ter muitas con-seqüências, se ela volta as costas ao que acontece nessas áreas. Por não to- mar parte em sua vida mental, ela não se comunica com outras ciências e permanece uma disciplina de menor importân-cia.

Voltemos aos nossos Gedankenexperiments. Eles podem ter três diferentes finalidades. A primeira, é trazer à cena teorias psi-cossociais existentes em lugar das teorias ad hoc excogitadat por críticos literários, historiadores, ou sociólogos, para explicar as relações humanas, os sentimentos ou o comportamento mos-trado em novelas ou em peças teatrais. Pode-se estudar a dinâmi-ca dos grupos imaginários ex atamente como se fossem grupos concretos. Em segundo lugar, toda pequena história, novela ou peça teatral contém um protocolo de observações feitas pelo au-tor sobre uma classe de pessoas, eventos sociais importantes o referencial mental de um período. E cada um desses protocolos inclui, eu percebo, uma teoria psicológica e social que não foi expli-citada. Conseqüentemente, ela nos fornece um ponto de partida que nos ajuda a explicitá-la - como pude me convencer recente-mente com respeito à psicologia da liderança e das massas Coun-try Doctor de Balzac.

Nós somos ajudados, nessa tarefa, pelo próprio autor quando apresenta alguns fragmentos de sua teoria. Por exemplo, em War and Peace, Tolstoi inclui um ensaio concreto sobre o papel das massas e dos grandes homens comprometidos com uma ação co-

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mum”8. E ele opõe sua teoria às teorias dos pensadores de seu tem-po. Por favor, notemos que não estou dizendo que devemos consi-derar a teoria de um artista do mesmo modo que a teoria de um ci-entista. Elas não são, obviamente, do mesmo tipo. A teoria do cien-tista é uma forma que organiza os fatos em uma ordem tão geral quanto possível. A teoria do artista é um conteúdo com o qual ele constrói seus personagens e situações dispondo-os de tal forma em uma ordem peculiar que nos faz dizer: “Esse é um mundo de Stendhal, ou de Balzac, de Dickens ou de Hemingway.” Podemos, contudo, reconstruir, por assim dizer, a teoria do artista e, ao assim proceder, descobrir um prospecto, problemas e soluções que não foram antes pensados por cientistas. Eles ainda não foram pen-sados, na verdade, porque o escritor permite-se levar suas idéias às últimas conseqüências e incluir em sua ficção o que nós excluí-mos de nossas teorias, isto é, a morte. As pessoas morrem nas novelas e nas peças teatrais, mas não morrem nas teorias cien-tificas e isso produz uma diferença.

Em terceiro lugar, dá-se o caso que eu chamo de misto, de uma teoria que tem sua origem na ciência e é subseqüentemente transformada pela ação da arte, por exemplo, a psicologia da massa. Em um primeiro período, podemos descobrir descrições e ex-plicações do comportamento e da vida mental das multidões antes que a ciência fosse constituída. Há, nas obras de Balzac, Flaubert, Maupassant ou Tolstoi, para mencionar apenas as que conheço, reflexões extraordinariamente elaboradas desses fenômenos (cf. Mos-covici, 1983). Depois, uma vez que a ciência tenha sido estabele-cida, percebemos que a teoria da psicologia da massa foi filtrada nas novelas escritas pelos maiores escritores alemães de Mann a Musil (cf. Moscovici, 1985). Alguns deles e não os menos impor-tantes escreveram tanto ensaios sobre sua teoria, como a toma-ram como conteúdo de suas novelas. É suficiente mencionar os nomes de Canetti e Broch (Moscovici, 1984). O último engendrou uma concepção original completa da psicologia da massa, pois ele estava convencido da necessidade política e histórica de tal psico-logia:

8 Em War and Peace. Tolstoi opõe Napoleão e Dutuzov, os dois tipos de lideres que defini

em The Age of Crowd (Moscovici, 1935) como totêmicos e mosaicos.

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“Para realçar esses momentos irracionais”, escreve ele, da

esfera do mero instinto, a fim de torná-los racionalmente

perceptíveis e com isso colocá-los a serviço do progresso humano,

tal será a nova tarefa política da Ciência. As novas verdades políticas

terão seus fundamentos no psicológico. A humanidade está

prestes a deixar o período econômico de seu desenvolvimento e

entrar no seu período psicológico (Broch, 1979: 42).

Não deverá haver dúvida quanto a isso: essas palavras não perderam nada de sua força e atualidade. Mas a concepção de psi-cologia de massa construída por Broch não permaneceu confinada a seus ensaios. Nós ainda a encontraremos, por assim dizer, trans-figurada em suas novelas, especificamente em The Death of Virgil, que é contada entre as obras de arte da literatura alemã contem-porânea. De tal modo que Hannah Arendt tinha razão quando es-creveu sobre ela: “Por detrás da novela em que ele estava traba-lhando e que ele considerava como totalmente supérflua [...] esta-va o busto da psicologia da massa” (Arendt, 197o: 115-116). Estou completamente convencido de que os psicólogos sociais irão en-contrar, em tais ensaios e nas novelas que tomam delas sua inspi-ração, muitas idéias seminais que podem ser testadas. Mas, além dessa possibilidade, uma análise é absolutamente necessária para nos fazer compreender um dos fenômenos capitais da história contemporânea. Eu estou aludindo ao que Thomas Mann chamou de popularização do irracional (Mann, 1977). Na primeira metade desse século nós testemunhamos, começando pela ciência e de-pois penetrando na literatura, a difusão de uma psicologia das massas e dos lideres. Essa visão da psique humana teve conse-qüências na política e na cultura que são muito tangíveis (Berlin, 1981; Cassirer, 1946).

É bem verdade, esses três propósitos não são tão disti n-tos como os apresentei para fim de análise e não podemos com-preendê-los separadamente. Tudo depende da pergunta que al-guém se coloca sobre a obra literária e o quanto se considere que ela corresponda a uma realidade especifica social ou histórica. Espero, contudo, que tenha justificado a introdução das palavras “psicologia social” em meu titulo e tenha feito com que vocês te-nham esquecido o caráter incongruente que elas poderão ter mos-trado à primeira vista.

1. Por que o caso Dreyfus e por que Proust?

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Vejamos agora por que o caso Dreyfus e por que Proust. Gran-des tempestades, grandes descargas de energia humana, grandes rupturas de tensão na sociedade permanecem opacas aos con-temporâneos e são vistas sob sua verdadeira luz somente depois de algum tempo. Mas seu enigma nunca parece ter uma solução inques-tionável. É isso que os torna fascinantes, que pode durar por um lon-go tempo. O caso Dreyfus foi uma dessas grandes tempestades, uma que rompe a tensão cujo enigma continua a nos fascinar quase um século depois de acontecido. Vou sintetizar o caso Dreyfus breve-mente. Devido à semelhança entre dois manuscritos, o capitão Drey-fus, um oficial de carreira, foi acusado de vender informação militar confidencial aos alemães. Depois de um julgamento sumário, foi con-denado ao degredo e transportado à Guiana Francesa em 1894. Em 1896, outro oficial francês foi acusado de ser o verdadeiro culpado, mas foi perdoado. Esse foi o inicio do caso Dreyfus. Em seu Souvenirs, Leon Blum nos dá uma idéia disso quando escreve: “O caso foi uma crise humana, não de tão amplas conseqüências, nem tão prolongada, mas tão violenta como a Revolução Francesa ou a Grande Guerra” (Blum, 1982: 35). Ele convulsionou o cenário político da França, con-sagrou as novas relações sociais na Terceira República e trouxe à tona a nova figura do nacionalismo moderno e do anti-semitismo. A coisa é tão óbvia e tão bem conhecida que não vejo o que poderia acrescentar ao que é de conhecimento comum.

Muitos livros foram escritos para discernir a verdade da falsi-dade e para reconstruir o julgamento Dreyfus. Outros tentaram des-crever e analisar a condição da sociedade francesa no tempo do acon-tecimento, uma sociedade em que se travou uma das batalhas ideo-lógicas e políticas mais ferozes do século dezenove. Mas que eu saiba, nenhum deles se dedicou a analisar o movimento Dreyfus, iniciado por uma minoria, um pequeno grupo de homens corajosos e hones-tos. Gramsci foi uma das poucas pessoas que percebeu que esse é um “tipo ideal” de movimento da sociedade contemporânea: “Há outros movimentos histórico-políticos do tipo Dreyfus que podem ser en-contrados, que são certamente não revoluções, mas que também não são inteiramente reacionários Limas que indicam que havia forças latentes efetivas na antiga sociedade que os antigos lideres não sou-beram explorar” (Gramsci, 1971: 223). Não se faz muito para com-preender a natureza de tais movimentos. E possuímos poucos estu-dos históricos e sociológicos sobre as minorias que os promovem. Mas, para alguém que está interessado, como eu, sobre sua psicologia social (Moscovici, 1976), é difícil imaginar um caso mais iluminador

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que o caso Dreyfus e uma minoria ativa mais exemplar que a que pri-meiramente levantou o problema, depois o levou à vitória. Outra coisa que não deve ser esquecida, muito ao contrário, é que muitos documentos sobre o caso são acessíveis.

Isso não é tudo. Os escritos sobre o caso Dreyfus em que esses documentos são recolhidos e analisados estão interessados com as grandes batalhas políticas e ideológicas e com os acontecimentos mais importantes do julgamento. Mantendo determinada tradição, eles não mencionam a reação dessas batalhas e acontecimentos so-bre a vida coletiva, sobre as várias relações tangíveis que foram esta-belecidas ou enfraquecidas entre os grupos e as pessoas nessa ocasi-ão. Refiro-me especialmente às relações estabelecidas ou enfraque-cidas entre a minoria pró-Dreyfus9 e a maioria anti-Dreyfus. Uma ilustração desse tipo de estudo foi oferecida pelo historiador francês Le Roy Ladurie (198o) em seu livro sobre a caça às heresias no sudo-este da França, onde ele mostrou quão importantes são essas rela-ções tangíveis para uma correta compreensão dos fenômenos histó-ricos e sociais. Com os documentos acessíveis, poder-se-ia, com o mesmo método, reconstruir a vida coletiva durante o caso Dreyfus. Poder-se-ia, digo, se isso não tivesse sido feito em grande parte por alguns poucos escritores. Entre os melhores desses escritores temos de colocar Marcel Proust, que o fez com suprema arte e inigualável profundidade. Na verdade, ele o fez duas vezes, primeiro em Jean Santeuil, no qual diversos capítulos constituem um protocolo de ob-servações similares àquelas a que aludi, tanto sobre o julgamento, como sobre as reações que ele acarretou; depois, mais visivelmente, em Remembrance of Things Past, em que esse protocolo é recriado por uma reflexão mais ampla e, se pudesse dizer, mais teórica. Não há dúvida que é uma ficção, mas uma ficção cum fundamento in re (com fundamento na realidade). Ela se mantém próxima à realidade his-tórica pois, como foi notado, Proust aparece “como o maior histori-ador dos costumes da Terceira República que tivemos até hoje” (De-lhorbe, 1932: 87).

Como pró-Dreyfus e como judeu, por isso duplamente um membro da minoria em questão, Proust quis recapturar a vida psí-

9 No francês foi cunhado o termo Dreyfusard para indicar os simpatizantes e defensores de

Dreyfus. Traduzimos o termo Dreyfusard por pró-Dreyfus contrapondo-o assim a anti-Dreyfus já

empregado no texto (N. do trad.).

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quica e social das pessoas que, com ele, acompanharam o evento - um evento em que ele foi, desde o inicio, tanto testemunha como ator. Sabemos que Proust esteve entre os primeiros escritores (Char-le, 1977) - escritores marginais, na verdade (Reberioux, 1976; 1980) - que defenderam a reconsideração do julgamento do Capitão Drey-fus e tentaram convencer outros a se juntar a eles. Sua correspon-dência mostra quão profundamente o escritor estava interessado no caso e nas suas conseqüências e também com os aspectos grosseiros e intoleráveis de homens e da sociedade em geral que ele revelou. Seja como for, sua novela é tanto um protocolo preciso e uma riqueza de teorias que nos fazem compreender as relações e ações de seus personagens sob aquelas dramáticas circunstâncias. Embora nunca se coloque como o narrador em sua história, imediatamente os lan-ces assumem o caráter de verdade histórica e realidade. As pessoas muitas vezes falam erroneamente: “mais verdadeiro que a vida.” Com relação a Proust, essas palavras são plenamente justificadas. Lendo as partes de Remembrance of Things Past dedicadas ao caso, compre-endi por que Leon Blum pode colocá-las entre as obras-primas da literatura pró-Dreyfus, ao lado de J’acuse, de Zola, M Bergeret à Paris, de Anatole France, e Journal, de Jules Renard, bem como Preuves, de Jean Jaurés. Proust expressa, do mesmo modo que esses escritores, uma paixão que é inteira e uma convicção desprovida de qualquer complacência.

Todo leitor de Proust está familiarizado com nomes como Al-bertine e Charlus, sabe que existe um estilo Swann e um estilo Guer-mantes. O que dizer do caso Dreyfus? O leitor tem uma impressão que ele é mencionado apenas de passagem como um episódio soma-do a muitas tramas e acontecimentos. Mas eu defendo que essa im-pressão não é suficientemente acurada. Primeiro, consideremos que o caso é discutido no meio da novela, fica-se tentado a dizer em seu centro. Isso é indicado pelo próprio Proust em uma carta a madame Strauss, uma amiga de longa data, que acompanhou sua publicação enferma em seu leito. Afinal, sabia ela dos tipos de personagens em sua novela, que era, de certo modo, a história de sua vida? Aqui está o que ele lhe escreveu em 1920:

O que me aborrece sobre esse estilo Guermantes é que ele

parece tão anti- ou pró-Dreyfus, por acaso, por causa dos

personagens que nele aparecem. É verdade que o volume

seguinte é tão pró-Dreyfus que ele será uma compensação,

porque o príncipe e a princesa de Guermantes são pró-

Dreyfus, do mesmo modo que Swann, embora o duque e a

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duquesa não o sejam.

Não vou tecer comentários sobre esse tão estranho relato de um escritor sabre os personagens que criou. Sim, é na verdade em The Guermantes Way e Cities of the Plain que o episódio é a maior parte das vezes mencionado, colorindo os caracteres e suas relações. Ele pertence à trama central, por assim dizer10. A fim de tomar pé e ter acesso ao centro do mundo proustiano, temos primeiro de descobrir sua força diretora. Essa força, contudo, a gravidade peculiar ao uni-verso proustiano, que atrai e repele os personagens entre si, não é nem o poder, nem o status social, como nos universos de Balzac ou de Zola: é o reconhecimento social. Father Goriot, de Balzac, termina com essas palavras: “Como primeiro ato do desafio que ele estava enviando à sociedade, Rastignac foi jantar na casa de Madame de Nucingen”. Essa é uma frase que Marcel Proust nunca teria escrito. Não que seus personagens não se interessem em jantar fora - muito pelo contrário. Mas esse ato, com toda a consagração burguesa que traz consigo, possui um significado totalmente diferente para eles. Poder, dinheiro, status social não possuem valor nenhum a seus o-lhos. Eles são valorizados apenas enquanto permitem que sejam re-conhecidos pelas pessoas com as quais eles desejam se relacionar e que as consagrem como tais. Qual é o valor em ser um renovado cien-tista, um artista talentoso, ou um homem á frente do estado, se ele não é eleito para uma academia, recebido em certos salões ou convi-dado a uma festa dada por um ou uma hóspede de muito glamour? Esse fenômeno é particularmente evidenciado nas esferas mais altas da sociedade; na verdade, nenhuma classe social está isenta disso - a novela mostra isso tanto entre burgueses como entre os servos.

Proust supõe uma vontade de reconhecimento que é tão forte como a vontade de poder de Nietzsche. Para ser socialmente con-sagrado, todos são capazes de heroísmo, abnegação ou baixeza. Não é uma fachada, mas uma tendência fundamental, uma busca. A busca é muito arriscada e o reconhecimento é lento em chegar Se os grupos,

10 É claro que os criticas literários não deixam de mencionar o caso Dreyfus quando discute Proust. Depois de ler muitos del es, estou inclinado a acreditar que eles compreen-deram a influência do caso sobre sua vida melhor que sobre sua obra A partir de seus escrita temos, as vezes, a sensação que esse importante acontecimento sucedeu próximo a ele, sem atingi-lo como um homem, semi-judeu e como um artista. Os que o mencionam relutam em insistir também e examinam timidamente suas idéias sobre o caso. Ver Del-horbe (1932)”, R.L. Kopp (1971); 3.M. Cocking (1982).

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dos quais se espera que venha, continuam mudando a toda hora. Apesar das aparências, os universos de Balzac e Zola são estáveis, ou procuram a estabilidade, depois das sublevações da Revolução Fran-cesa e do Império, ou das perturbações do século dezenove; o mundo de Proust é um mundo em transforma-cão. Os grupos e as ordens sociais continuam sendo insensivelmente feitos e refeitos. Os cata-clismos estão em ação nas profundezas. Ao contrário dos acidentes da história, eles evocam as sublevações da cosmologia, quando o único laço entre o antes e o depois é a permanência de um nome: Swarm, Guermantes ou Charlus. Portanto, o reconhecimento não está nunca definitivamente garantido, seguro. A todo momento temos de lutar para mantê-lo novamente. Na verdade, como Max Weber escre-veu: “O reconhecimento é um dever.” Isso significa que a pessoa que o busca tem de conseguir toda qualidade física ou psíquica necessária e preencher os requisitos estabelecidos pela sociedade. A questão colocada às pessoas e gravada nas mentes daqueles que se engajam nessa constante busca foi ironicamente expressa por Proust, em um humor shakespeariano: “A questão não é, como para Hamlet, ser ou não ser, mas pertencer ou não pertencer (en être ou ne pas en être)” (G 231)”11. Essa questão marcante, que ele formulou no contexto particular da homossexualidade, surge sempre de novo sob vários disfarces na novela. Ela nos faz sentir em poucas palavras o dilema com o qual nos deparamos vivendo com e entre outras pessoas pois, como escreve ele: “Elas são todas manteiga e mel para as pessoas às quais pertencem e não possuem palavras suficientemente más para aquelas a quem não pertencem” (G 231)12.

É impossível traduzir mais clara e sucintamente nossa maneira de comportar-nos em sociedade. Para responder a essa questão (que é de crucial importância para a psicologia social, como sabemos), Proust introduziu em sua novela uma teoria do fluxo humano. Como

11 M. Proust, Remembrance of Things Past, traduzido por C.K. Scott-Moncdeff (Londres: Ghana & Windus,1925). As citações são retiradas dessa edição principalmente em The Guer-mantes Way (indicado pel a letra G nas páginas incidentalmente citadas) e Cities of the Plain indicadas pela letra C) 12 Não é de se admirar que a busca de reconhecimento social tenha assumido tal impo rtân-cia para Proust, pois ele é o desejo de toda minoria (ver Moscovici.1976). Ele mesmo mem -bro de três minorias como um judeu, um homossexual e um pró -Dreyfus, experimentou e viu as relações sociais desse tríplice ponto de vista. 13 Na verdade a teoria da recombinação social dos indivíduos e grupos em busca de um reconhecimento que estou apresentando aqui é mais geral que as teorias de estratificação ou diferenciação social. Ela pressupõe um constante movimento e mobilidade na sociedade, enquanto que aquelas teorias consideram a sociedade como uma esp écie de molde, ou sis-tema, em que os indivíduos e a grupos estão meramente situados um em relação ao outro .

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em um maço de cartas, as pessoas são embaralhadas e separadas, colocadas á parte e juntadas, de tal modo que as maiorias e as mino-rias ou desviantes (nesse caso os pró-Dreyfus, judeus e ho-mossexuais) são criados. Proust está consciente, e o diz várias vezes, de que ele esboçou uma teoria desse fluxo. E somos autorizados a vê-la como a verdadeira estrutura de sua novela. Mas sua visão de arte o proíbe de explicá-la detalhadamente como um Tolstoi ou um Zola teriam feito: “Uma obra em que há teorias é semelhante a um objeto com a etiqueta do preço ainda nele presa”, escreve ele habilmente em Time Regained (882). A melhor maneira de defini-la seria dizer que é uma teoria do fenômeno da recombinação social dos indivíduos nesse fluxo. Ela permite que se qualifiquem para um determinado meio, de tal modo que pertençam a ele, en être. Como uma recombi-nação genética, da qual emprestei a denominação, ela associa ao in-divíduo alguns traços que não foram originalmente reconhecidos, conforme seja ele conduzido através da sociedade junto com a maio-ria, ou posto de lado junto com a minoria. Ele se toma assim diferente do que era. Nesse caminho os grupos mudam seus componentes, mesmo que algumas vezes incluam as mesmas pessoas. É importante lembrar uma coisa: o fluxo é continuo e nunca congela em camadas estáticas, diferenças ou relações”. “Devemos ter presente”, observa Proust, “que as opiniões que temos uns dos outros, nossas relações com amigos e familiares não são de forma alguma permanentes, sal-vo na aparência, mas são eternamente fluidas como o próprio mar” (G 37o).

Até mesmo a identidade de um indivíduo nunca é dada de uma vez por todas, pois ela depende da percepção que outras pessoas têm dele: “Não somos”, nota o escritor, “um todo materialmente constitu-ído, idêntico para todos, que cada um de nós pode examinar como uma lista de especificações ou um testamento: nossa personalidade social é uma criação do pensamento de outras pessoas” (Swann’s Way 23). Aqui está o exemplo banal de tal recombinação. Quando Swann decide deixar a maioria, separar-se de seu meio anti-Dreyfus e aproximar-se da minoria, em síntese, tornar-se um pró-Dreyfus, testemunhamos sua metamorfose tanto mental como física. Ele a assume com alivio e gratidão, também com alguma resignação. No processo se misturam, junto com suas atitudes de gentleman, sua maneira polida de falar e comportar-se, algumas características e gestos já esquecidos e até mesmo nunca experienciados de seu pas-sado judeu, até que ele se transforma em outra pessoa a seus pró-prios olhos e aos dos outros. Retornaremos a esse ponto posterior-

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mente.

Falei de uma teoria de recombinação social inspirada nas ob-servações que se podem fazer sobre as relações entre maioria e mi-noria no decorrer do caso Dreyfus. Permitam-me que agora coloque seus princípios. O primeiro é que, sempre que lidamos com uma mi-noria divergente, a sociedade apresenta contra ela e contra seus membros um veredicto antes de qualquer julgamento. Desse modo, nunca se supõe que eles sejam inocentes, nem podem eles se justifi-car ou se defender. Em M Bergeret à Paris, de Anatole France, Maxu-re, um dos personagens, coloca claramente esse principio: “Eu sou um patriota e um republicano. Se Dreyfus é inocente ou culpado, eu não sei. Não me importo, não é meu problema. Ele pode ser inocente. Mas os pró-Dreyfus são certamente culpados.” Por que isso é assim? Por que nunca se supõe que os membros de uma minoria sejam ino-centes, mas sempre culpados? Simplesmente porque eles tomaram uma posição dissidente, no caso pró-Dreyfus, que os associa de ime-diato a um crime contra a sociedade. E tal crime não admite escu-sas13. “Nós perdoamos os crimes dos indivíduos”, escreve Proust, “mas não sua participação em um crime coletivo” (G 2o4). Uma vez admitido tal principio, compreendemos por que os personagens de Proust, como os de Kafka nesse ponto, são considerados culpados quando acusados. E em nenhum lugar em Remembrance of Things Past consegui ver uma única passagem em que um Saint-Loup, um Bloch, ou um Swain explique a seu acusador por que ele se tornou um pró-Dreyfus.

O segundo principio vincula uma oposição estrita, diria mesmo clássica, entre sociabilidade pública e sociabilidade privada. Na pri-meira, as pessoas são os símbolos de uma família, classe, nação, ou mesmo de uma empresa financeira, etc. Em cada uma de suas rela-ções, o que eles parecem ser é mais importante do que o que eles são. “Mas é claro que você deve julgar apenas pelas aparências,” já tinha escrito Proust em Jean Santeuil. Os indivíduos não são seres inde-pendentes que modelam seus próprios destinos e confrontam uma sociedade cujos valores eles são livres de aceitar ou rejeitar. Insepa-

13 A recusa em perdoar um crime coletivo tem sua provável origem na teoria da conspir a-ção. O individuo concreto ou suposto, aderindo a uma gangue de criminosos, assume todos os crimes cometidos por seus cúmplices, tenha ou não participado deles .

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ráveis de seu meio - seja o etilo Swann ou o estilo Guermantes - eles são moldados por regras e normas com relação às quais eles se defi-nem. Se acontecer de se tornarem vítimas da indecisão ou terem de fazer uma escolha - veremos daqui a pouco a importância psicológica disso - é o repertório de regras e normas que irá ditar suas decisões e guiar suas escolhas. Na sociabilidade privada, por outro lado, os indi-víduos são caracterizados por sua habilidade em corporificar ou do-minar os símbolos, sua habilidade em transgredir as regras e normas com a cumplicidade de outros. Eles são assim vulneráveis à paixão e ao sofrimento, formam laços preferenciais de amizade, caem doentes e até mesmo cometem a indecência de morrer. Portanto, o individual aparece como uma sucessão de estados particulares cuja unidade existe apenas na e pela memória. Para resumir o assunto, eu diria que a sociabilidade pública pertence à dimensão do espaço e a so-ciabilidade privada, à dimensão do tempo. A oposição implica, obvi-amente, que alguém pode ser um pró-Dreyfus ou um anti-Dreyfus apenas na esfera pública. Na esfera privada tal oposição é totalmente sem sentido.

Estamos nos aproximando agora do objeto concreto de nossa investigação, que tende a mostrar como esses dois princípios con-formam a recombinação de indivíduos e grupos na sociedade. Diga-mos, de imediato, que o movimento possui um caráter cíclico. A soci-edade recombina seus membros através de ciclos que são análogos aos ciclos comerciais. Cada ciclo começa e termina com um grande evento: o caso Dreyfus ou a Grande Guerra, nos quais Proust está interessado. Seguiremos agora os passos pelos quais os pró-Dreyfus são empurrados para a posição minoritária, enquanto os anti-Dreyfus são concentrados e empurrados para a posição majoritária. Uma coisa é marcante: o primeiro ciclo descrito por Proust não é um ciclo de expulsão. Os apoiadores do Capitão Dreyfus não são orienta-dos do interior para o exterior, nem submetidos abertamente a pres-sões a fim de novamente se conformar. É um ciclo daquilo que cha-marei de deslocamento, que traz os membros da minoria dissidente do universo público para o universo privado da sociabilidade. Por conseguinte, como membros da minoria dissidente, eles não se trans-formam em pessoas de fora, mas, pelo contrário, em pessoas de den-tro. Proust nos dá uma pista para isso com breves palavras sobre a opinião da duquesa sobre Swann, uma vez que ele se tornou um pró-Dreyfus: “Ele não estava correndo nenhum risco de ter de falar publi-camente com o “pobre Carlos”, a quem ela gostaria de afagar priva-

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damente” (C 63). Portanto, os pró-Dreyfus continuam a subsistir nos interstícios da vida social sem existir ali plenamente, de acordo e ao mesmo tempo visíveis e invisíveis. Eles são exatamente como as pes-soas deslocadas depois da Segunda Grande Guerra. Tudo acontece exatamente como se uma convenção tácita implicasse que, se a mino-ria individual fosse deixar o grupo em conjunto, toda esperança de juntar-se a ele novamente, algum tempo depois, estaria perdida para sempre e desapareceria de vista. Como a natureza, a sociedade deve ser suficientemente cuidadosa para manter toda possibilidade exis-tente para posteriores combinações não imaginadas no futuro. Se ela excluísse alguns indivíduos, não seria ela mesma e não poderia so-breviver a essa perda. Podemos também pensar em um cozinheiro que não joga fora sobras de comida, mas as conserva para uso poste-rior.

Alguém poderá certamente perguntar: o que implica o deslo-camento? Ele acarreta uma perda de reconhecimento social com todas suas conseqüências danosas para aqueles que foram tão as-síduos em buscá-lo. Pode-se imaginar que essa perda não é a mesma para todos. Ela afeta cada indivíduo ou categoria em proporção ao que eles têm de renunciar, ou ao que o grupo retira deles. Seguire-mos assim esse deslocamento passo a passo. Isso nos permitirá ver a relação entre um indivíduo que fica com a minoria e sua perda de reconhecimento social. Veremos também as conseqüências psíquicas do deslocamento na vida coletiva de homens e mulheres na novela de Proust.

Vejamos primeiro aqueles que pertencem e participam no gru-po, isto é, a aristocracia, como Robert de Saint-Loup. Um nobre e um oficial militar, ele está convencido da inocência de Dreyfus e não faz segredo de sua opinião. Mas como ele pertence a uma família muito antiga, como pertence a le monde, sua posição pública é tratada como uma opinião privada, quase como uma moda. Ele evita contar isso a seus colegas oficiais, com uma única exceção. E eles o cercam com silêncio a fim de evitar qualquer choque “Quando a conversa se toma geral, eles evitam toda referência Dreyfus com medo de ofender Sa-int-Loup” (G 156). Ele, contudo sente o impacto de sua opinião so-bre sua situação nesse ambiente. Em certo sentido, as pessoas ten-tam disfarçar e desculpá-lo. Eles atribuem assim sua opinião pró-Dreyfus a uma causa indireta e não a sua reflexão e convicção. Isso é coerente com um mecanismo sociopsicológico muito conhecido. A causa poderia ser Rachel, uma atriz judia que é sua amante: “Há uma

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moça, uma esposa do pior tipo: ela tem muito mais influência sobre ele que sua mãe e dá-se o caso de ela ser compatriota do Mestre Dreyfus. E passou seu ponto de vista a Roberto” (G 323). Outra ex-plicação sua opinião é sua pretensão de rebaixar-se ao tornar-se a-migo de intelectuais. Sim, naquele tempo os pró-Dreyfus eram de-preciados sendo tachados de intelectuais, o pior insulto na boca de aristocrata ou mesmo de um burguês.

Ambas as razões não justificam ainda o fato de se ter tornado vulnerável à causa dissidente: Roberto não é o único nobre e oficial com uma amante judia, ou amigos que são escritores. Uma outra razão é, pois, buscada e encontrada na etimologia do nome de sua mãe, ela própria uma feroz anti-Dreyfus. Ela é chamada de Mme. de Marsantes, que é interpretado como Mater semita (mãe judia). A etimologia contém uma tradução errada, pois “semita” escreve Proust, “significa “caminho” e não “semita”“ (G 241 verdade, ninguém dá a isso muita importância e percebe-se meramente um jogo de palavras que é também um jogo da sociedade. Mas o jogo permite que as pessoas “desloquem” Roberto que é inquestionavelmente um deles e o empurrem para a periferia da esfera pública, privando-o assim do reconhecimento social. Ao menos o acesso ao centro é difi-cultado a ele. Desse modo, ele é impedido de ser eleito um membro do Jockey Club, como ele deveria ter sido por direito, como seu pai antes dele. O duque de Guermantes aponta a causa de seu ostracis-mo: “Que se pode esperar, meu querido, isso o atingiu na ferida, esses companheiros: eles estão todos em cima disso [...] mas azar deles, quando alguém se chama “Marquis de Saint-Loup”, esse não é um pró-Dreyfus - que mais posso dizer?” (G 253) Na verdade, o porta-dor de tal nome professando ser um pró-Dreyfus seria deslocado no coração de uma boa sociedade.

Temos depois indivíduos que pertencem ao grupo, mas geral-mente não participam dele. O caso é menos evidente que o primeiro. Odette, mulher de Swann, é uma dessas pessoas. Ela poderia perten-cer, pois ela é francesa e possui o status social exigido. Mas as pessoas relutam em permitir que participe porque ela era uma mulher fútil, uma cocotte, como dizem os franceses. E também porque Swann é um judeu e, além disso, um pró-Dreyfus. Suas próprias opiniões anti-Dreyfus poderiam abrir-lhe muitas portas, se seu marido não atrapa-lhasse. Desse modo ela é colocada “entre parênteses”, isto é, tratada na esfera pública como uma pessoa privada seria ali tratada. As re-gras em vigor se aplicam a ela de acordo com circunstâncias e situa-

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ções particulares - quero dizer, arbitrariamente. Ela é levada a sentir que nunca está no lugar em que deveria estar, como em um jogo de cadeiras musicais, exatamente como é o caso de uma mulher comum de um nobre, ou de uma amante. As vezes, as pessoas a convidam, outras a evitam. De qualquer modo, eles sinalizam sua presença a outros, deixando-os livres para escolher como se comportar com respeito a ela. Conseqüentemente, Mme. de Villeparisis previne a duquesa de Guermantes, que nunca gostou dela, que Odette virá visi-tá-la:

“Escuta” , disse Mme. de Villeparisis à duquesa de Guerman-

tes, “eu estou esperando, a qualquer momento, uma mulher

que você não gostaria de conhecer. Pensei que seria melhor

preveni-la, para evitar algum mal-estar. Mas você não pre-

cisa ter medo, eu não permitirei que ela retorne, eu apenas

estava obrigado a deixá-la vir hoje. É a mulher de Swann (G

346).

A festa da tarde na casa de Mme. de Villeparisis será a ocasião para o novelista fazer com que os muitos personagens de seu livro se encontrem para realizar, por assim dizer, uma análise espectral deles ã luz do caso Dreyfus. Estamos, na verdade, nos aproximando do úl-

timo caso que Proust ilumina profusamente com seu ilimitado gênio. É o caso dos judeus, ou semi-judeus, que não pertencem ao grupo, mas participam plenamente dele. Eles, um Bloch, ou um Swann, por exemplo, são empurrados para fora da esfera pública para uma esfe-ra privada. Eles se tomam, literalmente, pessoas deslocadas. Desses personagens, Proust parece dizer o que Aristophanes disse de Alcibi-ades em The Frogs: “Um o ama, outro o odeia, outro ainda não pode viver sem ele.” Desse modo, o duque e a duquesa de Guermantes não podiam ficar sem Swann. Para apoiar esse ponto de vista, menciona-rei um fato histórico. A maioria dos judeus não se colocou a favor do Capitão Dreyfus. Eles aceitaram a sentença dada contra ele pela corte militar como justa e final. Isso não impede as pessoas de tratar com um Bloch ou Swann tanto como um pró-Dreyfus quanto como um judeu. Consideremos apenas a situação: deslocar judeus e semi-judeus, que problema! Nós sabemos disso através de uma conversa concreta aconteceu entre Mme. Aubemon e outras senhoras de sua classe social. Quando perguntada: “Que faz você com seus judeus?”, respondeu: “Eu os mantenho.” Sua resposta é, contudo, mencionada pelos historiadores como um exemplo e uma exceção.

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Na verdade o deslocamento coloca muitos problemas sócio-psicológicos e eu não estou muito seguro de que a ciência os tenha resolvido, ou mesmo os tenha discutido satisfatoriamente. Na verda-de, desde então os judeus foram recebidos por toda parte e recebe-ram, até mesmo, reconhecimento social, como Swann, foram assimi-lados. Eles adquiriram os procedimentos, a aparência física, os nomes apropriados, em síntese eles aprenderam a “ser como os outros” (Berlin, 1981: 258). As pessoas se esqueceram como eles pareciam antes. Os próprios judeus os esqueceram depois de ocultar suas ori-gens e obedecer às regras em vigor por um longo tempo. Se você não consegue descartá-los à primeira então a semelhança entre judeus e não judeus se toma enigma no contexto do caso Dreyfus (É a mesma coisa com a sem entre homossexuais e heterossexuais e Proust reto-ma a isso vezes). Como podemos discernir que uma pessoa que é você, apesar disso não parece ser como você? Como pode detectar um judeu sob o disfarce de um pró-Dreyfus? Elaborando o que diz Proust, nós nos damos conta que a semelhança coloca um duplo pro-blema: o da percepção e o do reconhecimento.

O primeiro é o problema colocado a Mme. de Villeparisis, que tem de detectar a presença de um judeu em seu salão a fim de con-trolar seus movimentos. Se ao menos ela pudesse compreendê-lo! Pouco, ou nada, à face ou diante da aparência de determinadas pes-soas permite-lhe supor que ele é o tal. Ela não sabe, ou não lembra, quais são as características distintivas. Ela apenas sabe que devem existir tais características; a curva de um nariz, ou, até mesmo mais indefinível, o tom de uma voz. Para sintetizar seu dilema: como pode alguém decidir que o semelhante não é o semelhante? No que se re-fere aos judeus, bem como aos homossexuais, o semelhante não é o portador de um signe qui fait signe (sinal que produz um sinal), que apenas os iniciados podem detectar. Nesse caso, escreve Proust,

os próprios membros, que planejam não se conhecer mutu-

amente, reconhecem-se imediatamente, por sinais naturais

ou convencionais, involuntários ou deliberados, que indicam um

de seus congêneres, ao mendigo na rua, para o nobre fidalgo cuja porta

da carruagem ele está fechando, ao pai com relação ao pretendente

de sua filha (G 23).

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Logo que um indivíduo é percebido como um portador de tal sin” um deles”, qu’il en est. Mas o sinal é invisível aos não-iniciados (Deleuze, 1970). Então, essa é a questão de Proust: como perceber o imperceptível, como devemos nos identificar como não-identifi-cável, quando nós somos Mme. de Villeparisis e não um judeu co-mo Swann, a duquesa de Guermantes e não um homossexual co-mo o Barão de Charlus? Parece-me que a pesquisa sobre per-cepção social não colocou o problema em termos tão sutis, nem propôs uma resposta satisfatória. De qualquer modo, aqui está a solução de Proust.

Podemos compreender facilmente sua teoria se levarmos em consideração o fato de que para ele, do mesmo modo que para seu primo, o filósofo Henri Bergson, a percepção e a memória diferem em natureza, não em grau. Percepção é individualística, a memória é altamente coletiva. Com os dados imediatos de nossos sentidos nós misturamos milhares de detalhes de nossa experiência dopassado que é, na maioria das vezes, partilhada com outras pes soas.

Perceber é, em síntese, uma oportunidade para o indivíduo relembrar. Na sua primeira obra, Jean Santeuil, o novelista escre-veu: “Podemos encontrar tudo em nossa memória; é uma espécie de loja de um químico, um laboratório de química, onde o acaso nos faz por as mãos às vezes em um remédio calmante, outras em um veneno perigoso” (632). Lembrar ocorre não apenas antes de qualquer percepção, ele coloca também seu fundamento e pode sozinho completar seu sentido. Colocando a questão com palavras simples, poderia dizer que, no caso em questão, é a memória que foi herdada e materializada na cultura, arte ou linguagem que nos permite perceber nas pessoas vivas as características distintas de seus ancestrais, reais ou supostos. Imagens irreais são invocadas na mente do “que procura faces escondidas”, como escreveu certa vez Virginia Woolf e transformadas em percepções concretas. Mas é melhor deixar Proust falar. A ocasião é ainda o matinée de Mme. de Villeparisis, do qual Bloch é um hóspede:

Quando falamos de persistência racial, nós não comunic a-

mos adequadamente a impressão que recebemos dos ju-

deus, gregos, persas, todos aqueles povos que é melhor dei-

xar com suas difenças. Conhecemos a partir de pinturas

clássicas as faces dos antigos gregos, vimos assírios nas

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muralhas de um palácio em Susa. E desse modo perceb e-

mos, ao encontrarem uma recepção, oficial em Paris orie n-

tais pertencendo a um ou outro grupo, que nós estamos na

presença de criaturas que as forças da necromancia devem ter chama-

do à vida. Conhecíamos, até então, apenas uma imagem superfici-

al; veja, ela ganhou profundidade, ela se amplia em três di-

mensões, ela se move (G 258).

A memória coletiva é um estoque de protótipos humanos e está em nosso poder materializá-los. Em sua “lembrança de mu-seus do passado”, Mme. de Villeparisis, como seus hóspedes, irão procurar e encontrar as “características distintivas” de Bloch. E Proust continua:

Eu senti que se eu estivesse na claridade da sala de recepção de

Mme. de Villeparisis tirando fotografias de Bloch, elas teri-

am fornecido a mesma imagem de Israel -tão perturbadoras porque

isso; não parece provir da humanidade, tão enganadoras porque

ao mesmo tempo isso é tão estranho como a humanidade -

que nós” encontramos nas fotografias de espíritos (G 259).

Devemos encontrar aqui o centro de toda percepção social: um ser humano pode perceber outro ser humano com a ajuda de algo que ele realmente não percebe. Um fator de ilusão, se não de alucinação, está sempre combinado nela.

Uma vez identificados desse modo, os judeus perdem seu a-nonimato, sua similaridade, sua liberdade de locomoção no “mundo” e podem ser rejeitados. Em casa de Mme. de Villeparisis, Bloch pode mover-se livremente por algum tempo e falar sobre o caso Drey-fus com muitas pessoas as vezes apaixonadamente, outras desai-rosamente. Até à culminação da cena, quando todos estão cientes de quem ele é e recebe uma resposta rude: “Você não precisa me pedir, senhor, para discutir o caso Dreyfus com você; é uma ques-tão que, em princípio, nunca comento, a não ser aos Japhetics” (G 359). Após ouvir essas palavras, Bloch, que se considerava acima

de qualquer suspeita, percebe que foi, falando apro priadamente, desmascarado e ouve-se que ele murmura: “Mas como é possível que você saiba? Quem lhe disse?”, como se ele fosse um filho de um condenado. Pouco mais tarde, quando se aproxima de sua anfi-triã para dela se despedir, ela tenta encontrar um meio de fazê-lo dente de que não deve voltar tão freqüentemente como antes “E

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com toda a naturalidade,” escreve Proust, “ela encontrou em seu repertório mundano a cena pela qual uma grande dama manda al-guém embora” (G 36O), isto é, insinuando que estivesse com so-no. Para Proust, podemos supor, cada palavra conta. Se tivermos de nos livrar de uma relação publica embaraçosa, não devemos deixar-nos levar pelas nossas palavras. Nós consultamos o código de um método convencional e o aplicamos rudemente. Uma vez “descoberto”, Bloch pode ser facilmente “deslocado”.

Afirmei que a semelhança, isto é, ser como outras pessoas, cria um segundo problema. Nós construímos, normalmente, dis-criminações contra uma minoria étnica ou social como uma res-posta ao fato de ela ser diferente, não “como nós”, ou estrangeira. Mas pensemos por um momento sobre o que aconteceu na França. Devido ao fato de os judeus, após sua emancipação, terem se mis-cigenado com os franceses e se terem tornado como eles. O menor desvio nesses judeus é percebido como sendo muito maior do que realmente é. E sua menor divergência em opinião provoca uma resposta exagerada. Percebemos com mais nitidez algo que nos perturba em uma pessoa quando ela está próxima a nós e nos sen-timos mais vulneráveis a isso. Ao contrário, desvios chamam me-nos a atenção e divergências não são sentidas tão agudamente quando a pessoa é alguém concretamente diferente, um perfeito estrangeiro. A partir desse argumento tiramos, com Proust, a con-clusão de que os judeus não sofreram tanto devido ao caso Drey-fus, ou não teriam sido socialmente deslocados se eles tivessem permanecido como estrangeiros.

O caso que segue é um exemplo disso. O Barão de Charlus, um homossexual, pergunta ao narrador (Proust) sobre Bloch. Ou-vindo seu nome, ele diz: “Não é uma má idéia incluir entre seus amigos um estrangeiro ocasional.” O narrador responde que ele é um francês. “Ah”, disse Charlus, “eu achei que ele fosse um judeu.” O que faz Proust acreditar que o barão é um anti-Dreyfus. Ao con-trário, ele protesta contra a acusação de crime contra sua pá tria, do qual o capitão é uma vitima:

De qualquer modo, o crime é não existente, o compatriota de seu ami-

go Ide Bloch teria comendo um crime se ele tivesse traído a

Judéia, mas que tem ele a ver com a França? O seu Dreyfus

deveria ser antes condenado por ter infringido as leis da hospitalidade.

Estava dizendo que, se eles pudessem ser considerados como estrangeiros, os judeus não teriam sido deslocados para esferas

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privadas devido a suas idéias pró-Dreyfus. Isso é afirmado explici-tamente por Proust em outra passagem com respeito a Swann.

Falando de pró-Dreyfus, eu disse, parece que Prince Von é um deles. -

Ah, estou contente que você me fez lembrar dele, exclamou

M. de Queimantes. Estava esquecendo que ele rinha me pedido para

jantar com ele na segunda-feira. Mas se é pró ou anti-Dreyfus é totalmen-

te secundário, pois ele é um estrangeiro. Eu não dou o mínimo valor a

sua opinião. Com um francês, é outra questão. E verdade que Swann é

um judeu (G 108-109).

Esse diálogo mostra claramente que Proust imagina que o an-ti-semitismo existente durante o caso Dreyfus é uma nova varie-dade. Ele brota da assimilação dos judeus, do fato de eles viverem dentro da sociedade francesa, não fora, como foi no passado. Isso nós já sabíamos, mas aqui o vemos incorporado em um quadro mais vivo e minucioso do que aconteceu naquele tempo de pro-fundas mudanças e fortes tempestades, um quadro que não per-deu nada de sua atualidade. Gostaria de acrescentar algo antes de prosseguir. Como se poderia ter esperado, essas idas e vindas transformam os sentimentos das pessoas e a estrutura de seu ambiente social. Mas seus efeitos não são idênticos na maioria que discrimina e na minoria que é segregada. E eles não estão coerentes com as predições de nossas teorias sócio-psicológicas que discutem tais fenômenos. Por mais estranho que possa pare-cer, é a minoria que parece ter ganho algo e a maioria que se sente perdedora. Não há dúvida que as pessoas experimentam alguma satisfação ao se reunirem entre si sem nenhum intruso, onde todos são da mesma nação e da mesma opinião. Mas “deslocar” desse “mundo” alguém como Swann, que era aceito como pertencente a ele, implica algum sacrifício. O laço com ele tem de ser cortado e tudo o que isso significa tem de ser descartado. O grupo é amputa-do de sua minoria, como acontece com uma pessoa que conviveu com ele durante muito tempo. Esse sentimento de amputação é materializado na ingratidão que traduz tanto desilusão e desen-canto, como auto-insatisfação e tristeza. Proust analisa com muita fineza as facetas dessa ingratidão colorida de nostalgia. Contento-me em citar a reação de M. de Guermantes com respeito a Swann. Sua esposa confessa que ela “sentiu uma afeição sincera para com Charles!” E ele acrescenta: “Quanto a isso, veja você, eu não preci-so que ela o diga. E afinal, ele leva sua ingratidão ao ponto de ser uma pró-Dreyfus!” (G 108).

Por outro lado, na medida em que a minoria está certa de ter a

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causa correta a seu lado - o que Proust chama uma “opinião can-dente” - ela retoma algum tipo de autonomia. Swann, por exemplo, sente como se seu sangue começasse a correr novamente em suas veias ressequidas por um longo desuso. Ele se sente aliviado do esforço que fez durante toda sua vida pour en être, o esforço por pa-recer como as pessoas de seu meio e ser reconhecido como uma delas. Estou inclinado a dizer que o deslocamento que ele sofre em direção à minoria lhe dá um sentimento de recuperação. É como sentir-se de novo como antigamente, uma vez que o estresse que pesava sobre ele foi retirado. Nas palavras do autor: “Como um animal exausto que é espicaçado, ele grita contra as perseguições e retorna aos braços de seus pais” (G 374). Se isso o faz feliz ou não, ao menos ele aprende a suportar e estimar esse sentimento de alivio que lhe permite reconciliar-se com o outro grupo, o que povoa sua memória. Desse modo, ele também, como os outros membros da minoria, se toma desassimilado (Por falar nisso, hoje na Europa podemos observar uma tendência análoga à desassimi-lação entre os judeus e outras minorias étnicas. Esse fenômeno merece ser pesquisado do mesmo modo como tem sido seu opos-to). Ocorre nele uma recombinação de suas características físicas e morais: “Essa nova perda de classe poderia ser melhor descrita como uma reclassificação” (G 375). Tudo acontece para Swann como se o passado que tinha sido desdobrado passo a passo retor-nasse repentinamente para ele de uma só vez e o transformasse em outra pessoa. Vou citar de novo para concluir esse ponto:

Além disso, em dias recentes, a raça talvez tenha feito com

que o tipo físico que é característico dela aparecesse mais forte-

mente marcado nele, do mesmo modo como o sentimento de solida-

riedade moral com outros judeus, uma solidariedade que Swann pa-

recia ter esquecido durante toda sua vida e que, enxertada uma so-

bre a outra, doença mortal, o caso Dreyfus e a propaganda anti-semita

tenha reacendido (C 42).

2. Fazendo um bom uso do nacionalismo e do anti-semitismo

Poderia prolongar-me por muito tempo sobre esse ponto, pois a obra de Proust lida com isso em profundidade. Vou parar, contudo, a fim de examinar, por um momento, o segundo ciclo que sua novela descreve. É o ciclo de inserção na esfera pública, no le monde, dos indivíduos que estiveram previamente fora, ou foram confinados à esfera privada (O termo é, está claro, uma metáfora

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biológica descrevendo uma mutação em que uma ou várias novas bases são inseridas entre as já existentes em uma cadeia de ácidos nucléicos do código genético). Essa inserção caminha passo a pas-so com um aumento no reconhecimento social. E é evidente que o caso Dreyfus é a oportunidade para tal incremento, um ganho que teria sido impossível antes. A análise de Proust desse segundo ciclo é menos alentada aqui. Ele tratará dele com mais detalhe com referência ao período da Primeira Guerra Mundial. Seja como for, vemos claramente que a possibilidade de reconheci mento é trazi-da à tona devido a uma profunda mudança na sociedade. Com o caso Dreyfus, um novo critério é acrescentado, dando-se ás pesso-as o direito de pertencer e participar, de ser bem recebidos no mundo: estou me referindo ao nacionalismo e ao anti-semitismo14. Para resumir em poucas palavras: se você é francês, pode exigir que você “pertence”, que voos en êtes. Simplesmente pelo fato de se tornar um anti-Dreyfus, ou professar ser um anti-semita, você pode ver as portas, fechadas até então, escancararem-se diante de você. Se ser um anti-Dreyfus se iguala a ser um francês, ou france-sa, então as pessoas se concentram na maioria. Eles ganham, com isso, uma qualificação social que tinha sido recusada até então a muitos deles, porque eram apenas franceses. Conseqüentemente, Odette, esposa de Swann, beneficia-se das oportunidades, quando seu esposo está longe, para ostentar seu nacionalismo, o que lhe permite estabelecer relações com senhoras aristocráticas.

Para aqueles, contudo, que, de certo modo, ainda estão firme-mente presos aos antigos critérios de reconhecimento, essa inser-ção é sentida como uma invasão. Proust faz a duquesa de Guer-mantes proferir essas terríveis sentenças:

Mas por outro lado, eu penso ser totalmente intolerável que

apenas pelo fato de eles supostamente possuírem pontos

de vista “sadios” e não negociarem com comerciantes judeus, ou

terem escrito em seus bonés “abaixo os judeus”, que nós devamos

ter um enxame de Durands. Dubois etc., de mulheres que

nós nunca as teríamos conhecido se não fosse por essa razão, enfi-

ados goela abaixo por Marie-Ainard ou Victurnienne. Fui vi-

14 “A opini~o pública francesa nos úl timos dois anos do século dezenove esteve ampla e in -tensamente envolvida no caso Dreyfus, um tema que cristalizou nestas afirmativas de anti-semitas com respeito à traição e conspiração judaica e deu a tais afirmativas crédito e uma aura de respeitabilidade ligando-as à causa do Exército e da Naç~o” (Wilson, 1976. 227).

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sitar Marie-Aynard há alguns dias. Lá costumava ser tão agradável.

Hoje encontram-se ali todas as pessoas que gastamos a vida

toda tentando evitá-las, sob o pretexto de serem anti-Dreyfus (G

325).

M. de Charlus concorda com essa opinião quando se queixa da companhia eclética que ela encontra na casa de seus primos:

“Todo esse problema do Dreyfus”, continuou o Barão, agar-

rando-me ainda pelo braço, “tem apenas uma desvantagem.

Ele destrói a sociedade [...] devido ao influxo do Sr. e da Sra. Camels e

Camelries e Camelyards, criaturas surpreendentes que eu

encontro até mesmo na casa de meus próprios primos, por-

que eles pertencem ao Pattie Française, ou á liga anti-

judaica, ou qualquer outra liga, como se uma opinião políti-

ca autorizasse alguém a alguma qualificação social” (G 398).

Posteriormente, Proust irá afirmar que sim, que isso dá a al-guém à direita. O quadro que nos é mais freqüentemente ofere-cido ao olhar e representa recombinação social é o de um ciclo de deslocamento e um ciclo de inserção, de pessoas que partem, sen-do substituídas por pessoas que chegam. As últimas sobem ao mesmo tempo que as primeiras descem, como os passageiros de uma escadaria de duas mãos no metro. No processo, o reconheci-mento social que é perdido pelos que são deslocados, é ganho pe-los recém-chegados. A personalidade social de cada um passa por uma mudança. Mas o próprio sucesso produz uma frustração de destinos. Pois, os círculos aos quais nós aspiramos e as pessoas que gostaríamos de encontrar são sempre mais fascinantes que aquelas com as quais convivemos, com as quais concordamos. Tudo acontece como se, no processo de nos erguermos até elas, elas fossem rebaixadas e desclassificadas para um denominador comum. Nas palavras de Proust: “Para mim foi, inicialmente, um desapontamento que Mine. de Guermantes devesse ser como as outras mulheres; era, por reação e com a ajuda de tantos bons vi-nhos, quase que um milagre” (G 637).

3.Swan e o sapato pranteado

Estou consciente de ter exagerado um pouco o caso. Mas se o que disse há pouco é claro, podemos ver o paradoxo resultante. Por um lado, quanto mais alguns são inseridos na esfera pública da maioria e restringidos a ela, tanto mais outros, digamos um Bloch ou um Swan, são deslocados dela. Por outro lado, suas relações

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com pessoas anti-Dreyfus, como o duque e a duquesa de Guer-mantes, são concentradas na esfera privada e assumem um cará-ter familiar. Não há dúvida que é sempre mantido um sentimento de insuficiente coincidência entre relações públicas e privadas. Mas os ciclos de recombinação que descrevi há pouco aguçam o permanente conflito entre as duas. Como é solucionado esse con-flito? O que teria a ver a psicologia com sua solução? Para respon-der a ambas as questões, temos de nos dirigir á psicologia social e não á literatura. Isso nos ajudará a dar sentido ao famoso final de The Guermantes Way.

Vejamos, novamente, com os olhos da memória, a cena mais refinada. Swann, sabendo da afeição da duquesa de Guermantes por ele, visita-a certa tarde. Como ela está se vestindo para um di-ner de gala, pede a seu criado para levá-lo até seu marido. O duque fica feliz em vê-lo, mas ao mesmo tempo fica apreensivo, pois ima-gina que Swann não é um convidado para a festa. Por isso pede cau-telosamente ao narrador, que está presente, para não mencionar isso, pois “agora, não vê você, o caso Dreyfus fez com que as coisas ficassem mais sérias” (G 37O). Enquanto esperam pela duquesa, falam de muitas coisas. Tudo permanece na esfera privada. Fi-nalmente aparece ela, “esbelta e linda, em um vestido de cetim vermelho, bordado com lantejoulas”. Quando ela percebe a admi-ração de Swann em seus olhos, a de uma especialista no assunto, ela começa a depreciar seu vestido e a queixar-se que os rubis de seu magnífico colar são grandes demais para seu gosto.

Começa então entre os quatro personagens uma dessas sinu-osas conversas sobre arte, sobre a genealogia de grandes famílias, etc. em que Proust é mestre. A duquesa brilha com sua inteligência e é gentil com seu “pequeno Charles”, sem que nós saibamos exa-tamente se ela o quer consolar por não ter sido convidado para o jantar, ou para se desculpar por dedicar-lhe tão pouco tempo. Chegamos próximos ao desenlace quando, cheios de mútua afeie ção, dirigem-se à porta de entrada que começará a separá-los, ela saindo para o diner de gala, ele retornando a sua casa. Somente então ele lhe fala com a calma atitude de um homem cônscio de suas graves responsabilidades, onde a afetação não tem lugar, que ele está muito doente e morrerá em breve. A invasão repenti-na de um elemento da vida privada no curso da vida pública cria nela um estado de dissonância. Essa é uma primeira versão social da teoria dissonância cognitiva de Festinger (1957). A duquesa fica extremamente chocada. Ela não pode deixar de crer que aquilo

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que escuta é verdade. Mas se comporta como se não o fosse, para desse modo não necessitar mudar seus planos. E a solução que ela encontra é exatamente a solução predita pela teoria. Na linda pro-sa de Proust:

“O que você está dizendo?” grita a duquesa, parando por

um momento em seu caminho para sua carruagem e levantando

seus lindos olhos, sua triste melancolia turbada pela incerteza. Coloca-

da, pela primeira vez em sua vida, entre duas obrigações incom-

patíveis, isto é, dirigir-se a sua carruagem para sair para jantar e mos-

trar compaixão por um homem que estava para morrer, ela não po-

de descobrir nada em seu código de convenções que indicasse o ca-

minho correto a seguir e, não sabendo o que escolher, achou melhor

demonstrar não acreditar que a última alternativa devesse ser seria-

mente considerada, seguindo desse modo a primeira, que lhe exigia,

no momento, menos esforço e pensou que a melhor maneira de solu-

cionar o conflito seria negar que ele existisse. "Você est| brincando”,

disse ele a Swuam (G 392)

Essa é uma notável mensagem de adeus. Sua resposta, devo insistir, expressa a primeira dissonância devida ao conflito criado pela irrupção da esfera privada dentro de uma esfera pública, quando não está disponível nenhuma regra preestabelecida para evitá-la ou resolve-la. Em outras palavras, a causa da dissonância, falando socialmente, não é tanto a existência de duas cognições opostas, mas a ausência de uma convenção no repertório da du-quesa. Sua resposta suprime o conflito, revelando, contudo, outro conflito subjacente ao primeiro, apontando na direção oposta: a intromissão da obrigação pública de ir a um jantar na obrigação privada da duquesa de permanecer em casa e falar com Swann. Essa segunda dissonância, da qual ela não está consciente, é re-solvida por um acre manqué, quebrando uma norma de decoro. Essa importante senhora, que se preocupa tanto com a etiqueta, tão melindrada por não poder vestir as roupas perfeitas, é mostra-da levantando seu vestido vermelho para dirigir-se à carruagem. Mas o pé que ela coloca á mostra está envolto por um sapato preto, demonstrando com isso a impossibilidade de ir a uma festa. Quan-do o duque vê esse sapato, ele, que é sempre exageradamente cortês e tradicional, grita em uma voz terrível: "Oriane, que está você pensando, sua desgraçada? Você está com os sapatos pre-tos! Com um vestido vermelho! Sobe logo e ponha os sapatos ver-melhos, ou melhor," diz ao criado, "diga à camareira para trazer

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um par de sapatos vermelhos" (G 394). Embora aborrecida por Swann ter ouvido, ela tem de obedecer.

As duas dissonâncias expressam a tensão psíquica entre a so-ciabilidade privada e pública, criada, nesse caso, pelo caso Drey-fuss. A primeira dissonância é resolvida provisoriamente pela pessoa. Contudo, a insistência do duque que sua esposa troque seus sapatos mostra que apenas a regra convencional imposta pelo meio social pode colocar um fim ao conflito. O capitulo ter-mina apaziguando a todos, Swann e o narrador indo a suas casas e os Guermantes a seu diner de gala. Uma vez mais a regra que, se-gundo Proust, tem de prevalecer na vida social, prevalece: “Não pode haver dissonância; diante do silêncio eterno, um acorde do-minante!” (G 689). Como se pode ver, duas teorias sócio-psicológicas, uma de ordem literária, outra de ordem científica, parecem articular-se mutuamente a fim de revelar certa ordem subjacente a um dos mais importantes enredos da novela15.

4. Uma conversão principesca

Tudo termina mostrando que a oposição entre pró e anti-Dreyfus tem seu fim com a vitória dos primeiros sobre os últimos. Uma vez mais, na história, uma minoria ativa consegue vencer a maioria. Mas Marcel Proust, que colocou muitas questões, não deixou de colocar a seguinte: como pode uma posição minoritária transformar-se em uma posição majoritária? Ou, em palavras mais concretas, como puderam os anti-Dreyfus, que eram tão hostis no início, converterem-se à causa do Capitão Dreyfus? O escritor re-torna diversas vezes ao problema da influência na sociedade. Uma de suas análises é de particular interesse para mim, pois ela ilumi-na algumas idéias sobre inovação, que desenvolvi no decurso de minha pesquisa e está de acordo com elas. Proust define a minoria como ativa e a maioria como reativa. Durante o caso Dreyfus, “entra-ram em conflito,” escreve ele, “de um lado um timido apostolado e de outro uma justa indignação.” Além disso, em um período de tensão e de controvérsia como esse, todos tinham de formar uma

15 É difícil compreender esse lindo final se nos contentarmos em fazer como o faz

um historiador da literatura, que “a cena mais impressionante da hipocrisia social é a dos sapatos vermelhos” (Kopp, 1971:45).

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opinião, assumir uma posição. A pressão assim exercida sobre os indivíduos resulta em que eles se organizem e adotem opiniões semelhantes. A razão que ele dá para isso é engenhosa: “Há menos idéias que homens, portanto todos os homens com idéias seme-lhantes são parecidos” (G 138).

Tentemos agora seguir, em Cities of the Plain, uma das cenas que se colocam, para Leon Blum, entre as obras-primas da alma pró-Dreyfus. Vemos aqui o Príncipe de Guermantes obrigado a apresentar uma opinião sobre o caso que divide a França. Estando as coisas nesse pé, ele não pode deixar de ser anti-Dreyfus, como todas as pessoas de seu meio com quem convive. Mas uma noite ele se reúne em sua casa com Swann e lhe apresenta uma estra-nha narrativa, lhe faz uma confissão. Irei resumi-la a fim de re-construir brevemente a teoria de Proust. Convencido, como toda sua parentela, da culpa de Dreyfus. o príncipe começa a hesitar quando toma conhecimento de alguns fatos contraditórios apre-sentados pelos pró-Dreyfus. Essa é a primeira fase, que eu chamo de fase da revelação; ela acontece quando a minoria apresenta uma idéia que é nova ou proibida, no caso em questão, a idéia da possível inocência de Dreyfus e da implicação do exército na ma-quinação. Embora perturbado, o príncipe resiste, recusa ouvir os argumentos, ou ler os jornais pró-Dreyfus. Pensa, desse modo, po-der permanecer invulnerável a qualquer prejuízo que tal conheci-mento lhe possa causar.

Segue-se, então, uma segunda fase, a da incubação, no de-curso da qual, apesar de sua resistência, uma dúvida insidiosa vai se ampliando sem que dela ele se dê conta e as idéias rejeitadas preparam o caminho até sua mente, tanto mais porque a minoria pró-Dreyfus as martela insistentemente ou, se quiser. consisten-temente. O príncipe não fala com ninguém sobre isso, nem mesmo com sua mulher, que tinha nascido na Bavária: “Não senti que de-vesse falar sobre isso com a princesa. Todos sabem que ela se tor-nou tão francesa quanto eu” (C 15O). Ele é logo dominado pelo que se transformou em um conflito interno tão sério que não pode ser revelado a ninguém. Lê agora, contudo, a imprensa pró-Dreyfus, mais, porém, assim pensa ele, para se confortar de sua opinião an-ti-Dreyfus do que pela razão contrária. Nessa caminhada, contudo, o príncipe finalmente se convence da inocência do Capitão Drey-fus: “Depois disso,” diz a ele a Swann, “sem deixar que a princesa me visse, comecei a ler o Siècle e o Aurore todos os dias; em pouco tempo não permaneceram mais dúvidas, isso me mantinha toda

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noite sem dormir” (C 151). Desse modo, lá onde ele estava procu-rando por um antídoto, encontrou veneno. Suas noites de insônia testemunham quão intenso se tornou o conflito. Ele entrou agora na terceira fase, a da conversão. Caminha por ela por si mesmo, transformando sua opinião através de um intenso trabalho psí-quico. Ele, porém, permanece ainda na de fensiva, mesmo com respeito a sua mulher, como se temesse ser assimilado por uma minoria desprezível. Como os sujeitos de nossos experimentos, o príncipe mudou privadamente seu ponto de vista, mas o manteve em público. Essa tensão silenciosa, imperceptível, o corrói o tem-po todo, como se fosse uma traição secreta aos familiares de al-guém. O Príncipe de Germantes sente que ele necessita corrigir uma má ação que cometeu como um francês e como um cristão. Como poderia fazê-lo, a não ser confessando publicamente sua conversão a seus familiares e aos que ele tinha anteriormente re-jeitado pelo fato de não pensarem como ele? Mas isso ele nunca o faria.

Portanto, como um bom cristão, ele abre sua consciência a seu confessor, o Padre Poiré, e lhe pede para rezar uma missa pelo Capitão Dreyfus. O sacerdote responde que ele não pode aceitar seu pedido, pois outra pessoa já fez o mesmo. O príncipe fica sur-preso quando ouve que existe mais alguém em seu meio e diz: “É verdade! Há pró-Dreyfus entre nós, não é assim? O senhor atiça minha curiosidade: gostaria de abrir-me a esse raro pássaro, se o conhecesse. - O senhor o conhece. - Qual seu nome? - A Princesa de Guermantes” (C 154). É pois sua própria esposa. Notemos, po-rém, uma mudança léxica a que Proust chama a atenção e uma mudança significativa no caso. Antigos anti-Dreyfus, quando con-vertidos à causa, mudam seu nome e passam a ser não Dreyfu-sards, mas Dreyfusists 16. A distinção significa que eles se conver-teram não à minoria, como um Saint-Loup ou um Swann, mas à posição minoritária e a seu movimento de opinião.

Conjecturei, certa ocasião (Moscovici, 1981), que a conversão é acompanhada, no fenômeno de mudança, pelo que os sociólogos chamam de ignorância pluralista. Algum dia, repentinamente, as

16 Como assinalamos na nota 2, vínhamos empregando o termo “pró-Dreyfus” para o q ue era designado na França, por Dreylusard. Compreende-se, agora o que Moscovici quer signi-ficar por uma mudança léxica (N. do Trad.).

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pessoas se dão conta que elas acreditam, ou sentem, as mesmas coisas. Contudo, o que parece ser repentino, é preparado por um processo oculto, interno, até mesmo secreto. Podemos ver aqui que o esposo e a esposa se converteram separadamente e do mes-mo modo, lendo os mesmos jornais, apenas ocultando mutuamen-te o fato. A princesa mandava sua empregada comprá-los e foi quase surpreendida por seu esposo lendo o Aurora. Se o Príncipe de Guermantes apresenta a Swann uma narrativa de sua mudança de opinião que é uma confissão, isso é para restabelecer o laço com ele e para consagrar solenemente o que sua confissão ao Pa-dre Poiré não tinha podido fazer por si só: sua conversão à minoria. Vai aqui uma última citação:

Meu caro Swann, a partir desse momento imaginei a alegria que devo ter-lhe causado quando lhe falei quão próximos eram meus pontos de vista dos seus; perdoe-me não ter feito isso antes. Se você considerar que nunca disse uma palavra á princesa, não será surpre-sa para você saber que pensar de maneira igual faria com que, naquele tempo, eu me mantivesse muito mais distante de você do que pensar diferentemente (C 154).

Deixem-me acrescentar que a análise de Proust sobre a con-versão principesca se fundamenta em um caso concreto. O conde e a condessa de Greffulhe se converteram secretamente à causa -. do Capitão Dreyfus. A condessa chegou até mesmo a escrever ao imperador alemão para saber dele qual era a verdade no caso. Sua resposta foi uma magnífica coroa de flores.

Conclusão

É um prazer acompanhar o gênio de Proust ao longo da inves-tigação da “astronomia social” (Cocking, 1982), em que, como no adágio latino, não há nada para ostentação, mas tudo para a cons-ciência. Não sei se consegui apresentar uma narrativa autêntica, embora, é claro, parcial, da sutileza que ele coloca nela. Ela trans-mite o sentido das relações entre homens e mulheres durante unidos acontecimentos mais poderosos da era moderna, um acon-tecimento que nunca deixou de ser para ele enigmático e ao mes-mo tempo chocante. Isso fica claro a partir de uma carta narrando que o caso Dreyfus que ele escreveu em junho de 1906 a Mme. S-trauss:

Penso que se fica profundamente chocado quando se lêem nova-

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mente essas coisas e se pensa que isso pôde acontecer na

França há bem poucos anos e não entre os Apaches. Há um

contraste assustador entre, de um lado, a cultura, distinção,

inteligência e até mesmo o esplendor de seus uniformes e,

de outro lado, sua infâmia moral.

Hoje, quase um século depois do fato, o sentimento, para o lei-tor de Proust, ainda persiste, mesmo se já mais ou menos acostu-mado a tais coisas. Na verdade, quem de nós não se engajou em reflexões semelhantes com referência ao que aconteceu na Ale-manha ou em outros lugares17 quando trevas mortais se ergueram e ameaçaram destruir a civilização?

De qualquer modo, tais são os Gedankenexperiments que gos-taria de apresentar a vocês. Tive a intenção de mostrar as vá rias formas que as minorias dissidentes podem assumir sob circuns-tâncias específicas. E também exemplificar até que ponto, com que precisão, a psicologia social nos permite uma nova lei tura da lite-ratura.

17 O Caso Dreyfus foi, por assim dizer o ensaio geral e a sedimentação das forças po-

líticas e Ideológicas que deveriam explodir com tal violência no século vinte. Desse ponto de vista, es pecialmente no que se refere ao anti-semitismo e a suas conseqüências. Proust foi extraordi nariamente clarividente. Em sua obra podemos ler sentenças nítidas sabre judeus e não judeus. Mas em nenhum lugar encenamos a ingenuidade do homem da ordem e da razão como em Durkheim, que acreditou na assimilação como o efeito natural do caso: “Os erros dos judeus são compensados por inquestionáveis qualidades e se existem raças melhores, há raças piores. Além disso, os Judeus estão perdendo suas características étni-cas muito rapidamente. Mais duas gerações e isso será um fato consumado” (E. Durkheim, 1975: 253). Infelizmente sabemos como as coisas acharam acontecendo depois de duas gerações.

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6. CONSCIÊNCIA SOCIAL E SUA HISTÓRIA*18

Quando era um jovem pesquisador, Piaget, mais que qualquer outro cientista contemporâneo, articulou uma concepção apropri-ada de pesquisa em psicologia. Eu li The Child’s Conception of the World (1926/1929) pouco depois do que deveria, pois já tinha perto de 30 anos. Contudo, depois de o ler, fiquei em estado de choque. Tive uma grande oportunidade. Graças a essa leitura e a outros es-critos de Piaget, meu pensamento se libertou de muitas noções li-mitadoras com respeito tanto aos métodos de pesquisa, quanto às importantes questões tratadas por nossa ciência.

É um dos paradoxos da psicologia que o estudo da cognição nos adultos interessa-se, sobretudo, pela atenção, percepção, a-prendizagem básica e memória, por conseguinte, por processos elementares para os quais são aplicadas as mesmas técnicas sim-plificadas e não-lingüísticas que as aplicadas para o estudo dos ratos, pombos e coelhos. Em contraposição, o estudo da vida men-tal das crianças fornece uma base para uma observação rica e deta-lhada e tenta compreender antropológica e filosoficamente ques-tões centrais como explicações, classificações, moralidade, re-presentações espontâneas e científicas, linguagem, isto é, as fun-ções mentais superiores, começando com seu conteúdo no contex-to concreto. Foi tentador considerar o primeiro trabalho de Piaget como uma exploração de nossa cultura através do discurso das crianças e o material coletado como expressando seu folclore, senso comum e conhecimento, tudo isso no pensamento de uma única criança. Isso me levou a considerar, sob uma nova luz, o que se poderia tornar uma psicologia social como uma importante disciplina científica: um tipo de conhecimento sobre uma antropo-logia de nossa cultura, do mesmo modo como a antropologia é,

18 Este trabalho foi originalmente preparado para uma conferência pública na Segun da Conferência sobre Estudos Socioculturais em Genebra, setembro de 1996, como parte da celebração do centenário do nascimento de Jean Piaget e Lev Vygotsky.

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muitas vezes, a psicologia social de outras culturas, assim chama-das “primitivas”. Quando, no final da década de 1960, Piaget me convidou a ir a Genebra para organizar ali o primeiro curso de psi-cologia social, isso significou, para mim, um reconhecimento dos esforços que tinha empreendido desde minha primeira leitura de seu trabalho, que transformou a maneira de pensar de um estu-dante que tinha começado seus estudos muito tarde, tendo sido afastado deles devido à guerra.

Em contraposição, apenas me familiarizei com Vygotsky mais recentemente. Foi durante os anos de meu curso em Nova York que as idéias referentes à cultura, pensamento e linguagem, que eram discutidas em numerosos livros e artigos, entraram em meu mapa mental. Sob muitos aspectos, ele era um autor da moda. Co-mecei lendo seu trabalho e o achei revigorante, estimulante e não-convencional. Sobretudo, era curioso conhecer alguém que, na dé-cada de 192o, pode escrever como se vivesse na década de 198o e que não acreditava que poderia distinguir o social do marxista. Deixei-me cativar pelo poder de seu estilo, uma impressão firme que permanecia quanto mais penetrava em seu horizonte intelec-tual.

Todo o que estiver bem informado sobre as fortemente irre-gulares carreiras das vidas de Piaget e Vygotsky sabe que ambos foram, com respeito a sua educação, estranhos à psicologia. Além do mais, nenhum foi, e talvez ainda não o seja, um profeta em seu respectivo país. Foi a América que lhes conferiu esse status e, do mesmo modo como se pode falar de um “criador de rei”, foi Je-rome Bruner quem foi o criador do profeta. Não parei, contudo, de refletir sobre a questão inevitável: por que celebrar Piaget e Vy-gotsky conjuntamente?

A primeira vista, eles parecem ser um par incompatível. Gos-taria de afirmar, após refletir sobre isso, que Piaget e Vygotsky possuem mais coisas em comum que a maioria dos grandes psicó-logos do século vinte. Para começar, eles compartilham a convic-ção de que existia um problema sério para a psicologia: o proble-ma da modernidade. O que estava em jogo ali era oferecer uma ex-plicação da evolução não tanto do animal até o ser humano, mas da vida mental dos assim chamados “primitivos”, até a vida mental dos assim chamados “civilizados”; do pensamento pré-racional e coletivo, ao pensamento individual e científico. Em síntese, o pro-blema era compreender como os seres humanos se tomam seres racionais, como eles controlam seu próprio comportamento e co-

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mo eles se libertam da dependência do ambiente e da tradição. Seu trabalho como um tudo, do qual a psicologia da criança não é mais que um capítulo, é uma resposta a uma questão fundamental que ocupou todos os grandes pensadores dessa época. Seu traba-lho corre o perigo de se tornar um borrão de Rorschach e podemos ter tantos Piagets e Vygotskys quantos quisermos, se nosso en-tendimento de seu trabalho não for ancorado em seu contexto his-tórico. Pois seria somente um pequeno exagero dizer que a prolífi-ca literatura que existe hoje sobre matérias que se referem a eles é reticente sobre a exploração desse fundamento histórico.

Falando de Vygotsky - e poder-se-ia dizer o mesmo de Piaget - Van der Veer & Valsiner (1991) observam que “com o floresci-mento das modas “neo-vygotskianas” na psicologia contempo-rânea, o foco histórico de Vygotsky e suas idéias voltaram a um se-gundo plano” (p. 1).

Essa reticência, para mim, resulta de uma tendência comum de procurar a fonte de uma teoria dentro da própria psicologia. Como se, na nossa ciência, não pudéssemos tomar emprestado ou encontrar inspiração em idéias e princípios de outras ciências, como a física de Maxwell tomou emprestadas hipóteses estatísti-cas da matemática social que era moda naquele tempo.

Curiosamente, mesmo teorias sociais parecem ter uma ori -gem psicológica, como se pode ler no brilhante livro de Wertsch Vygotsky and the Social Formation of Mind (1985): “Muito do que Vygotsky tem a dizer sobre as origens sociais da consciência hu-mana não está necessariamente fundamentado nas idéias de Marx, ou de algum outro teórico social” (p. 60).

É evidente que, se cada psicólogo inventasse sua própria teo-ria social, ela teria o mesmo valor científico como se cada geneti-cista ou astrônomo inventasse sua própria teoria química ou física. Contudo, se nos lembrarmos que Piaget e Vygotsky foram duas mentes altamente criativas, com uma cultura de bases amplas, so-mos levados a observar que suas idéias germinaram dentro de um largo espectro de campos filosóficos e científicos. Além disso, é interessante que ambos fundamentam suas teorias na mesma perspectiva teórica, cuja influência foi tão penetrante em sua ge-ração. Eles herdaram essa perspectiva teórica da sociologia e da antropologia e fizeram amplo uso disso no estabelecimento dos fundamentos da psicologia infantil. Essa inspiração de toda sua vida, que Piaget e Vygotsky adquiriram dessas fontes, explica essa

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proximidade continua, se não sempre uma similaridade, que man-teve seus respectivos trabalhos “em termos de diálogo” um co-mo outro, mesmo que nunca se tenham encontrado. Mas essa é outra história, embora não muito diferente.

1.As raízes da visão social de Piaget e Vygotsky

Quando o trem demorava mais de três horas para cobrir a distância entre Paris e Genebra, podia-se ler em todas as passa-gens de nível: “Atenção, um trem pode ocultar outro trem”. No momento atual, quando estamos interessados em identificar as origens conceituais de idéias particulares, podemos avisar: “Aten-ção, um século pode ocultar outro século”. Assim, o centenário de Piaget e Vygotsky pode esconder o centenário que nós cele-bramos em 1996/7, da idéia de representação coletiva, que de-sempenhou um papel essencial em seu trabalho e sem a qual esse trabalho seria incompreensível. Na verdade, é necessário um esforço de imaginação para ver como alguém possa conectar seriamente cultura e psicologia, sem que preste atenção a essa idéia. Nem se poderia falar sobre as teorias de Piaget e Vygotsky como se essa idéia nunca fosse formulada. A idéia de representa-ção coletiva ou social tornou possível o casamento da antropolo-gia e da psicologia dentro de um referencial desenvolvimentista. Vejamos as razões desse casamento.

Para começar, essa idéia introduz o que o grande sociólogo americano Talcott Parsons chamou de uma concepção cultural de sociedade dentro do pensamento moderno. Durkheim, que foi o autor dessa concepção, rompe com fáceis analogias entre organis-mos vivos e a sociedade humana; e com aquelas entre evolução biológica e história social, que poderíamos chamar de conseqüên-cias de um darwinismo vulgar. Ele vai em frente fazendo uma crítica das teorias psicológicas e antropológicas que explicam peculia-ridades étnicas e culturais através da raça, instinto, hereditarieda-de, em suma, através da sociobiologia daquele tempo. Para ele, o ambiente natural dos seres humanos é a sociedade. A sociedade se mostra como sendo um sistema de relações que geram crenças, normas, linguagens e rituais coletivamente partilhados que man-tém as pessoas coesas. Do mesmo modo que qualquer instituição, o conhecimento e as crenças têm uma existência antes, durante e depois das existências dos indivíduos singulares. É por isso que todas as formas de representações são estáveis, exercendo coer-

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ções e constituindo a sociedade. Isso significa que elas possuem uma realidade que, embora simbólica e mental, é tão real, se não mais real, que uma realidade física. “Conceitos”, escreve Durkheim (1995/1993), “que são coletivos na origem (como o são na verdade todos os conceitos), assumem a nossos olhos, mesmo quando seu objeto não seja um objeto real, tal força que ele se apresenta como real. É por isso que os conceitos adquirem a vivacidade e a força de ação de sensações” (p. 101-102).

Representações coletivas ou sociais são a força da sociedade que se comunica e se transforma. A visão de Durkheim sobre o pensamento e a realidade de uma representação social inserida em sua história é expressa da melhor maneira em sua obra Prag-matism and Sociology (1955/1983): “Tudo no ser humano”, de-clara ele, “foi feito pela humanidade no decurso do tempo. Conse-qüentemente, se a verdade é humana, ela também é um produto humano. A sociologia aplica a mesma concepção à razão. Tudo o que constitui a razão, seus princípios e categorias, foi feito no de-curso da história” (p. 67). A conseqüência disso é que representa-ções coletivas ou sociais não podem ser explicadas por fatos me-nos complexos que os que governam a interação social. Com ou-tras palavras, eles não podem ser explicados pelos fatos da psico-logia individual, ou por alguns processos elementares.

Essa é a visão que julgo totalmente plausível, embora supo-nha que nem todos concordem com isso, e dá o seguinte sentido à afirmação de Durkheim: todas as representações sociais, incluin do os mitos e a religião, irrespectivamente da cultura a que perten-çam, são racionais. Parafraseando Hegel, poder-se-ia dizer que, para Durkheim, tudo o que é social é racional e tudo o que é racio-nal é social. Com outras palavras, representações míticas ou religi-osas, por exemplo, de outras pessoas vivendo em sociedades dife-rentes, não são falaciosas ou irracionais, como Frazer ( 1922), por exemplo, acreditava. Em sua brilhante obra Reason and Culture Gellner (1922) mostra o caráter específico da teoria nesses termos:

Essa teoria procura explicar por que todos os homens são

racionais: porque todos os homens pensam com conceitos rigoro-

samente restritos, partilhados, exigentes e não em termos

de associações reunidas privadamente e talvez fortemente

divergentes. É isso que Durkheim quer dizer por racionali-

dade... Essa teoria, contudo, não diferencia entre um sist e-

ma e outro de coerções partilhadas. Ela as explica a todas e

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não privilegia por si só uma delas com preferência a outras. Co-

mo a chuva que cai gentilmente sobre o justo e o injusto, ela se aplica a

todas as culturas humanas, não favorecendo a nenhuma (p. 41-

42).

A atribuição de vieses, falácias e ilusões ajuda apenas a dis-farçar essa coerção de uma comunidade e favorecer um modo de conhecer diante de outro. Em relação a isso podemos notar que Horton (1993) discutiu a relevância da obra de Durkheim e Lévy-Bruhl para os dias de hoje e avaliou sua influência: “mesmo hoje”, escreve ele, “muitas das idéias que dominam o campo derivam de sua obra” (p. 63).

De qualquer modo, devemos reconhecer que na década de 1920 a idéia de representação coletiva ou social na sociologia se espalhou pela antropologia, fecundou a lingüística (por exemplo, Saussure) e entrou na filosofia e epistemologia onde, para men-cionar apenas alguns nomes, Cornford, Koyré e Fleck me vêm à mente. Na psicologia, podemos lembrar Ribot, Dumas, Wallon, Janet, Blondel e outros.

Quando Piaget e Vygotsky iniciaram suas primeiras pesqui-sas, a idéia de representações coletivas ou sociais já perpassava a atmosfera de toda a Europa. Poder-se-ia dizer que Piaget foi inici-ado nessa idéia e estimulado pelo exemplo de outro grande inte-lectual de Genebra, Saussure. Piaget estava tão ligado, em seu ra-ciocínio, a essa maneira de pensar que seu contemporâneo, o psi-cólogo russo Rubinstein, um conhecedor das grandes correntes do tempo, chamou a atenção a isso de maneira especial. Em um capí-tulo onde ele fala sobre outros, no Ocidente, que partilharam a idéia de representação coletiva, ressaltou: “As mesmas conside-rações se relacionam, em principio, à concepção de desenvolvi-mento da criança, elaborada por Piaget em seus primeiros traba-lhos, como ele mostrou, sob a influência direta da “psicologia soci-al” de Blondel e Lévy-Bruhl” (Rubinstein, 1959: 328). No que diz respeito a Vygotsky, ele foi “convertido” à mesma idéia depois de uma séria crise intelectual, como relata Kozulin (199o) ou, como eu creio, sob a influência de Janet e Piaget. Contudo, quanto mais eu leio sobre o que foi escrito sobre Piaget e Vygotsky, não posso se-não ficar espantado pela tão pouca referência encontrada nessa relação científica e historicamente essencial.

2. Relembrando Lévy-Brull

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A história, mesmo a das escolas de pensamento, não é mais um rio tranqüilo. A concepção refletida de Durkheim de representações coletivas implica uma continuidade de conceitos e de formas de pensamento que vai das religiões antigas às ciências modernas. Ela remonta ao que, em outro local (Moscovici, 1998), chamei de um paradoxo da racionalidade das representações sociais. De fato, to-das as representações são racionais, mesmo que, para parafrasear Orwell, algumas pareçam mais racionais que outras. Representa-ções dos civilizados podem parecer ser mais racionais do que aque-las dos supostos primitivos, representações científicas podem pare-cer mais racionais que as religiosas e assim por diante. Tal aparên-cia, contudo, chega a um beco sem saída se adotarmos seriamente a postura que o conceito de representação coletiva é criado apenas por uma cultura.

Lévy-Bruhl colocou seu dedo nesse paradoxo. Ele tentou mos-trar que se as representações são racionais aos olhos dos membros de uma cultura elas necessitam ser assim tanto no mesmo sentido, ou de acordo com a mesma lógica, aos olhos de outra cultura. O projeto de toda a vida de Lévy-Bruhl foi duplo: primeiro, explicar a mentalidade das assim chamadas culturas “primitivas” a partir de causas sociais e não a partir de causas individuais, como Frazer (1922) fizera; e, segundo, desmistificar o pensamento ocidental como sendo privilegiado em comparação com outras formas de pensamento. Lévy-Bruhl não era um durkheimiano e, em contraste, trabalhou para conseguir uma compreensão mais rigorosa das re-presentações coletivas que ele, então, transformou em um conceito genuinamente autônomo com respeito a uma teoria especifica de sociedade e de história. Como conseqüência, elaborou uma das mais surpreendentes e radicais visões de mentalidade. Segundo ele, é impossível converter formas superiores de pensamento, escolhidas por uma cultura, em leis universais da mente humana.

O conceito de escolha possui uma natureza social, do que se segue que uma dessas formas pode ser legitimada como um protótipo normal, à custa de todas as outras. É difícil imaginar hoje o escândalo que o ponto de vista de Lévy-Bruhl provocou. A idéia de que a humanidade partilha uma unidade psíquica era a rocha sobre a qual psicólogos e antropólogos tinham fundado suas igrejas. Do mesmo modo que a relatividade de Einstein, na mesma época, a hipótese de Lévy-Bruhl subverteu a idéia kantiana que as categorias da mente humana são as mesmas para todas as cultu-

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ras em todos os tempos. Lévy-Bruhl acrescentou um elemento inescrutável, para não dizer trágico, a seu conceito de representa-ção social. Ele efetuou uma mudança naquilo que nós pensamos ser iguais, isto é, seres racionais, mas de maneiras imperfeitas, dependendo da cultura á qual pertencemos. Há uma tensão men-tal em toda cultura, incluindo nossa própria, porque, diz ele, a homogeneidade cognitiva nunca é conseguida. Por mais su r-preendente que isso seja, os antropólogos e os psicólogos, de n-tre todas as pessoas, foram os mais tardios em reconhecer essa tensão. A hipótese de Lévy-Bruhl, elaborada em vários de seus livros, se espalhou amplamente nas diferentes esferas da vida artística e filosófica, de Musil a Fontane, de Husserl a Bergson, de Jung a Koiré ou Fleck. “Assumindo como algo pacífico”, escreveu Evans-Pritchard (1964), com referência a Lévy-Bruhl,

que as crenças, mitos e, de maneira geral, as idéias dos po-

vos primitivos são um reflexo de suas estruturas sociais e,

portanto, diferem de um tipo de sociedade a outro, ele se dedicou

em mostrar como elas formam sistemas, cujos princípios lógicos é o

que ele chamou de lei da participação mística (p. 53).

Temos aqui um pensador cuja obra forneceu um fundamento comum tanto para Piaget como para Vygotsky. É claro que ambos também se beneficiaram de Darwin, Freud, Baldwin, Kofka, Bak-thin, Saussure, Janet e muitos outros. A hipótese e o enfoque de Lévy-Bruhl foi o catalisador das teorias iniciais de Piaget e Vygotsky. Foi através de seu esforço de explicar, em termos psicológicos, os conceitos do antropólogo francês que uma nova psicologia emer-giu. De maneira geral, todos conhecem, ou deveriam conhecer, esse fato e deveriam reconhecer suas conseqüências históricas. Contudo, na prática, seu reconhecimento é geralmente evitado, de-vido à compreensível tendência acadêmica de nossos contemporâ-neos de moderar idéias altamente provocantes e abandonar pala-vras fora de moda e dissonantes como: mentalidade pré-lógica, pri-mitivismo, participação mística e outras semelhantes a essas. De qualquer modo, não necessitamos dessas palavras.

O prestígio de uma obra está indubitavelmente ligado ao nú-mero de oposi tores que e la consegue mobiliza r contra s i. Pode-se dizer o mesmo sobre a qualidade de leitores que a obra atrai e cujo raciocínio ela influencia. Com base nisso, o prestígio de Lévy-Bruhl está muito bem justificado, pois sua obra continua a ser tanto admirada como questionada. Ele foi um pensador notá vel e um escritor que analisou os textos de culturas tradicionais com o

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mesmo rigor conceptual que ele trouxe á análise dos textos de Pas-cal ou Descartes, como um historiador da filosofia. Esse talento foi reconhecido por Husserl quando escreveu a Lévy-Bruhl dizendo que as representações coletivas se apresentavam a seus olhos como o mundo da cultura habitado por pessoas.

Devido aos polêmicos debates a que suas idéias deram ori-gem, alguns notáveis especialistas não conseguiram nem se referir a seu trabalho. E acho difícil de entender o que outros reconhe-cidos especialistas querem dizer quando afirmam que Vygotsky extraiu, fundamentalmente, seu material etnográfico da obra de Lévy-Bruhl (Van der Veer & Valsiner, 1991: 209). Seria o mesmo que dizer que Weber extraiu do Capital de Marx o material históri-co da sociedade capitalista e não as poderosas idéias sobre seus processos econômicos e a origem da mais-valia. Luria (1979), em suas memórias, não cometeu esse erro. Nem Piaget, que sempre se referiu ao “memorável”, ou “essencial” trabalho de Lévy-Bruhl (por exemplo, 1951/1995: 147). Mesmo tão tarde como em 1951, em seu ensaio sobre explicações na sociologia, Piaget defendeu Lévy-Bruhl contra seus opositores quando escreveu: “Nota-se como a noção de participação resistiu vitoriosamente a seus críticos” (Pi-aget, 1951/1995: 88).

Aqueles que leram a obra de Lévy-Bruhl, porém, sabem que ele a concebeu ao redor de um único tema: como a lógica se forma na mente humana? Certamente, afirma ele, através de maneiras pré-lógicas que, originalmente, deveram ser incontáveis. Contu do, se inumeráveis culturas que raciocinam diferentemente da nossa desapareceram, isso não significa que nós privilegiemos nossa própria cultura adotando-a como um modelo. O único resultado disso seria ratificar, como norma, a hierarquia de formas de co-nhecimento e culturas. Nesse sentido, Lévy-Bruhl é, como se diria hoje, não-eurocêntrico. O que as ciências humanas devem a ele, sobretudo, é uma regra metodológica que pode ser definida como segue: o que é absurdo a nossos olhos, não o é necessaria mente aos olhos de outros. Façamos um experimento e, se sua conjetura se verificar, essa regra tomar-se-á necessariamente inteligível e claro na medida em que os fatos permitam.

Estamos aqui, penso eu, no nó da questão. Conseqüentemen-te, fiel a essa regra, Lévy-Bruhl examinou representações coletivas em todos seus aspectos para ver se poderia fazer evidenciar sua

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coerência, seguindo sua estrutura concreta particular em to dos seus entrelaçamentos e giros e tentando justificar sua forte in-fluência sobre as vidas das pessoas. A clareza de Lévy-Bruhl, que considero magnífica, se mostrou consistente desde suas primeiras asserções, até ás últimas interrogações, com as quais ele questio -nou a obra de toda sua vida. Todo aquele que ler seu Notebooks fi-cará chocado por sua honestidade cientifica e pelas efêmeras emo-ções do ser humano.

Nos parágrafos que seguem, irei sintetizar três temas que ele desenvolveu com respeito à natureza das representações em cul-turas pré-modernas, ou assim chamadas “primitivas”.

O primeiro tema: essas representações coletivas são impene-tráveis à experiência. Isso é assim porque nós as consideramos como sendo santificadas pela autoridade ou tradição e, conse-qüentemente, protegidas da informação que poderia falsificá-las. Pode também acontecer que os membros do grupo nunca con-frontem a experiência diretamente, mas apenas através de catego-rias e sentimentos partilhados. Em um sentido, essas representa-ções são como paradigmas, isto é, elas são incomensuráveis. Além disso, conforme Finis (1994), a noção de incomensurabilidade en-tre paradigmas foi um fruto da idéia de Lévy-Bruhl no referente à impermeabilidade da experiência.

O segundo tema: todas as pessoas são sensíveis à contradi-ção, mas essa afirmativa não é verdadeira para todas as represen-tações que elas partilham. Isso é particularmente verdade para as civilizações pré-modernas, nas quais a lei da participação toma precedência sobre a eliminação da contradição. Ao apoiar-se nes-sa lei, as pessoas julgam como idênticos objetos que para elas são ou familiares, ou semelhantes.

Finalmente, o terceiro tema pode ser expresso como uma efi-ciência semântica, fazendo alusão ã famosa eficiência simbólica. De algum modo, a linguagem, para Lévy-Bruhl, é uma forma de re-presentação social, até mesmo um sistema fundamentado em re-presentações sociais. E nas assim chamadas culturas “primitivas”, sua finalidade última seria reproduzir, tão estreitamente quanto possível, imagens de objetos e de pessoas, toda situação, ou toda mudança de situação. É por isso que, segundo ele, as culturas pos-suem um léxico particularmente rico, flexível, móvel, termos qua-se fluidos, sempre prontos a ser moldados de acordo com as ima-

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gens que se transformam.

Ao recordar essa evidência histórica, não reivindico nenhuma originalidade exceto, com muita modéstia, colocar Lévy-Bruhl e Vygotsky em seu contexto. Eles iniciaram um conjunto de idéias e pressupostos interligados referentes à natureza das funções men-tais mais elevadas que, por um tempo, tinham sido deixadas de lado porque lhes faltava rigor formal e porque a psicologia se sepa-rou da cultura. A cultura foi até considerada como um simples re-sultado desses processos históricos. A autonomia do indivíduo foi em grande parte considerada como sendo um resultado natural dessa longa história. Esse processo foi suposto como um movi-mento singular e progressivo da cultura humana. Agora, à medida que a palavra “cultura” começa a ser usada no plural, sugerindo muitas maneiras de vida distintas, locais e igualmente significati-vas, os pressupostos referentes à natureza partilhada das repre-sentações e sua especificidade psicológica podem emergir nova-mente com uma nova feição.

3. A criança, um noviço na cultura moderna

É tempo de nos perguntarmos: que tipo de criança, ao menos no início, pressupunham Piaget e Vygotsky ao desenvolver sua psicologia? Na verdade, e isso nos choca à primeira vista, parece que ambos transformaram a criança em uma figura totalmente cultural e social. Contudo, se você quiser conhecer essa criança e sob que bases Piaget e Vygotsky a construíram, procure por ela não apenas nas escolas de Genebra ou Kharbin, mas também nos livros de Lévy-Bruhl! Olhando-se de perto, parece que os adultos das culturas pré-modernas são reinventados como crianças, como noviços de nossa cultura pré-adulta. No final das contas, temos de nos defrontar como seguinte fato, não levando em consideração o raciocínio indutivo: o que Piaget e Vygotsky estavam procurando na época, ao estudar as crianças, eram indícios, mais que prová-veis. Eram indícios relacionados à assim chamada mentalidade “primitiva” e nada mais. E uma vez encontrados esses indícios, deram-lhes uma formulação psicológica.

Por essa razão, insisto que os três temas na obra de Lévy-Bruhl mencionados acima são também os temas das teorias de Piaget e Vygotsky. Penso ser necessário sugerir, embora sem fechar a questão, sua afiliação intelectual. Talvez deva dizer que se pode mostrar como eles transformaram a criança na via régia para a

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compreensão da vida mental dentro de uma cultura e de uma so-ciedade. Piaget e Vygotsky seguiram um caminho comum não porque ambos estivessem interessados nas crianças, mas porque eles construíram e reinventaram as crianças empregando meios materiais similares. Gostaria, primeiramente, de apresentar essas características que são comuns a Piaget e Vygotsky. Isso me pos-sibilitara, mais tarde, enfatizar com mais facilidade a principal ra-zão suas divergências.

Não é surpreendente e altamente significativo que Piaget e Vygotsky estabelecessem, ambos, a lei da participação, que foi muito discutida naquela época, como a espinha dorsal da mentali-dade infantil? Ao assim proceder, eles se colocaram ao lado de Lévy-Bruhl e fortaleceram sua concepção de funções mentais su-periores. Como não podemos deixar de notar que, para que para ambos o desenvolvimento natural do pensamento se orienta na direção do pensamento científico e na direção da não-contradição? Piaget definiu o pensamento pré-lógico e pré-operacional e Vygotsky definiu o pensamento em complexos, como estágios necessários desse desenvolvimento. Com respeito a isso, a lei da participação não é mais uma lei particular de uma cultura especifica, mas uma lei universal do pensamento que cada um en-contra no desenvolvimento da criança. A conexão teórica entre uma experiência antropológica e uma análise psicológica é, com isso, alcançada.

Piaget começa, além disso, alargando o raio de participações e ele considera que elas aparecem no momento em que a criança começa a diferenciar entre o self e o mundo. Conseqüentemente, tanto o pressuposto dos poderes mágicos da criança, como a atri-buição de consciência e vida às coisas no mundo, emergem simul-taneamente com esse espectro de participações. Piaget explica as participações por um egocentrismo ontológico, que se manifesta em uma confusão entre um signo e uma coisa, entre o que é objeti-vo e o que é subjetivo. Seja quando a criança faça uma conjetura a respeito de seus poderes mágicos ao dizer que ela obriga o sol ou a lua a segui-la, ou seja quando atribui consciência a coisas materi-ais, essa é uma participação em ação. Isso é equivalente, acredita Piaget, a um pensamento intuitivo, ou pré-operacional, no segun-do estágio do desenvolvimento da criança.

Há certo estilo vitoriano quando lidamos com pensadores e

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suas idéias. A década de 1920 era fortemente vitoriana. O entrela-çamento de surrealismo, futurismo, antropologia e psicologia era uma realidade e eu penso que isso influenciou pensadores como Vygotsky e influenciou sua atração pelo pensamento mágico e as assim chamadas “culturas” primitivas. Ele estava fascinado pelos fenômenos da identificação totêmica que, acreditava ele, encon-trar-se-iam também nas mentes das crianças. Se um membro de um clã diz que ele é um papagaio vermelho, essa afirmativa pode parecer estranha quando vista em termos de sua validade física, - mas é totalmente compreensível em termos de participação, do mesmo modo que saudar a bandeira, ou identificar diferentes membros da mesma família pelo nome. O termo “complexo” foi cunhado por Vygotsky para dar conta de tais modos de pensar em crianças de 4 ou 5 anos. Nessa idade, supõe-se que as crianças se-jam capazes de arranjar e selecionar objetos com base em algum atributo concreto - um atributo que os adultos podem julgar irrele-vante - e que, de qualquer modo, irá mudar muitas vezes no de-curso das classificações dos objetos feitas pelas crianças. Pensar em complexos, do mesbjeto individual é simultaneamente ele mesmo, com sumo modo que dar nome, significa que um oas próprias características e algo pertencendo a uma rede de muitos outros objetos, com os quais ele possui algum atributo em comum. Há uma relação evidente entre a noção de “o complexo” de Vygotsky e a noção de “semelhança de família” de Wittgenstein.

Seja como for, pensar em complexos possui uma característica em comum com as representações de supostos primitivos, é, uma insensibilidade à contradição. Vygotsky estava convencido que sua análise explicaria a formulação psicológica da lei da participação. Em síntese, o pensar dos assim chamados “primitivos, não é tanto pré-lógico, mas é pré-conceptual.

Piaget e Vygotsky adotaram estratégias de análise diferentes das de Lévy-Bruhl. Piaget chegou a acreditar, contudo, que todas as características da mentalidade pré-lógica são transferidas em con-ceitos da psicologia infantil. Mencionarei aqui apenas uma, do am-plo conjunto de tais características, isto é, o egocentrismo. Esse conceito deve muito, evidentemente, a Bleuler e a Freud. Além mais, e isso não tinha sido notado antes, ele deve muito a Durkheim para quem o egocentrismo estava associado à anomia e ã alienação. De acordo com Piaget, os escritos de Durkheim forneceram evidên-cia para a idéia de que a criança é alienada na sociedade geronto-

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crátiea. Permanece o fato de o egocentrismo estar situado a meio caminho entre o pensamento artístico e socializado, permanecendo a criança como incapaz de compreender o ponto de vista do outro. É exatamente porque a criança é centrada sobre si mesma, do mesmo modo que o indivíduo primitivo é centrado em seu grupo, que ela possui apenas uma compreensão parcial e de curto prazo da realidade, o que, contudo, não afeta a tendência geral de seu racio-cínio. Se concordarmos que a sociedade gerontocrática, como subli-nhou Piaget, afeta o julgamento da criança, devemos dizer, do mesmo modo, que a criança é sobressociocêntrica. Nessas circuns-tâncias, onde a pessoa é inteiramente subordinada a sua família, igreja ou comunidade, ela é incapaz de pensar por si mesma sem pensar ao mesmo tempo, em sua família, igreja ou comunidade. Isso se aplica igualmente às crianças e aos adultos. Essa condição forne-ce o modelo para a concepção total de participação de Piaget. Seja uma questão de egocentrismo ou, pelo contrário, de sociocentris-mo, as representações da criança, como as do “homem primitivo” seriam impenetráveis à experiência e, conseqüentemente, à contra-dição. “Impenetrabilidade à experiência e insensibilidade às con-tradições”, escreveu Rubinstein (1959), “caracterizam do mesmo modo o pensamento da criança nas obras de Piaget, como pensa-mento de um homem “primitivo” em Lévy-Bruhl. Aqui, como lá, “participação substitui os princípios lógicos de identidade e contra-dição”(p. 328-329).

Essa passagem implica um tema que permeia também a obra de Vygotsky. Segundo ele, o pensamento e a linguagem da criança estão subordinados à linguagem e ao pensamento da so-ciedade. A criança adquire grande parte de suas idéias e vocabulá-rio através das instituições socializadoras da sociedade. Ela, por-tanto, não domina a realidade, pois lhe falta o acesso à experiência de que necessitaria adquirir, porque vive em um mundo restrito pelo dos adultos. Para a criança, haveria um processo libertador quando, de acordo com a linguagem, começasse a interiorizar es-sas representações.

4. A divergência entre Piaget e Vygotsky

É impossível compreender a psicologia da criança sem com-preender as idéias e achados de Piaget e Vygotsky. Isso, por sua vez, necessita que compreendamos os achados de Durkheim e

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Lévy-Bruhl e como esses achados diferem no que diz respeito à evolução das representações coletivas. É exatamente por que as teorias de Piaget e Vygotsky estão no mesmo nível e possuem mui-tos pontos em comum, que a maior fonte de sua divergência, que não pertence à mesma ordem de fatos, se torna transparentemen-te clara. Na verdade, Parsons notou que a idéia de representação social ou coletiva foi apenas esboçada por Durkheim. Mesmo as-sim, houve, desde o início, uma oposição fundamental entre Dur-kheim e Lévy-Bruhl. Isso se deveu não tanto às diferenças com respeito à natureza das representações, mas àquelas com respeito a suas diferentes concepções de evolução. Conseqüentemente, os dois estudiosos apresentaram soluções diferentes ao problema da modernidade, que foi esboçado no inicio desse artigo. Segundo Durkheim, pensar em uma representação religiosa “primitiva” e em uma representação científica “moderna” são dois passos de um processo histórico único, o último proveniente do primeiro. Segundo Lévy-Bruhl, representações “primitivas” e “modernas” são antitéticas e a evolução da primeira para a segunda é a substituição de um padrão de pensar e sentir pelo seu contrário. Essa é, eviden-temente, uma distinção muito bruta, que esclarecerei a seguir.

Defendo que essa oposição entre Durkheim e Lévy-Bruhl é re-fletida no pensamento de Piaget e de Vygotsky. Em poucas pala-vras, sugiro que Piaget segue Durkheim e Vigostky segue Lévy-Bruhl. Não gostaria, contudo, de reduzir as diferenças entre Piaget e Vy-gotsky a apenas essa diferença, porque há ainda outras idéias, extravagantes ou sábias, a respeito daquilo em que diferem. A crença que o desenvolvimento é contínuo, como defendia Dur-kheim, ou descontínuo, como pensou Lévy-Bruhl, é o ponto de partida crucial para a singularidade teórica de cada um desses dois grandes psicólogos.

Em certo sentido, as idéias de Piaget continuam o racionalis-mo de Durkheim. Esse é um tipo de racionalísmo que inverte a clássica fórmula do pensamento à ação e torna a ação, ou o ritual, o principal agente que confere às pessoas representações estáveis e partilhadas, sem as quais elas não seriam nem humanas, nem sociais. Partindo da ação, Piaget concebeu um novo e sofisticado mecanismo - acomodação e assimilação - para dar conta da evo-lução de um estado de equilíbrio a outro, através de uma nova or-ganização dos elementos preexistentes. Ele notou uma continui-dade ininterrupta da criança ao adulto. Em 1965 ele afirmou que isso, conseqüentemente, restaura a continuidade, mais do que

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Lévy-Bruhl poderia supor, entre as assim chamadas representações “primitivas” e as nossas. O próprio sentido dessa evolução para a reversibilidade e para conceitos científicos corresponde à concep-ção de Durkheim segundo a qual quanto mais os indivíduos se tor-nam autônomos, tanto mais as representações se tomam diferen-ciadas e sujeitas à critica. O que foi anteriormente considerado como uma intuição e um símbolo irá fixar-se em conceitos. No pro-cesso de descentração, representações sociocêntricas, como as chama Piaget, são transformadas em representações científicas.

É necessário comentar brevemente a teoria histórico-cultural de Vygotsky. Nos dias de hoje, palavras como “cultura” e “histó-ria” evocam sentimentos positivos e são amplamente populares. Os sentidos dessas palavras, contudo, são obscuros na sua ori-gem. E uma tautologia afirmar que a idéia central de Vygostky e Lévy-Bruhl seja a de que as pessoas que vivem em épocas diferen-tes e em culturas diferentes possuem funções mentais diferentes, ou diferentes representações. Poderíamos supor que é necessário uma teoria para explicar que o mundo é diferente em épocas e lo-cais diferentes e que tal sugestão teria implicações subversivas? Tomemos, no sentido literal, os escritos de Vygotsky & Luria (Lu ria & Vygostsky, 1992). Do ponto de vista de Vygotsky, a origem das funções mentais mais elevadas deve ser buscada não nas pro-fundezas da mente ou nos tecidos ne rvosos, mas na história so-cial, fora do organismo individual. Isso, evidentemente, implica uma mudança fundamental em todas as áreas da psicologia. Lem-bremos que esse foi mais ou menos o pressuposto básico feito por Durkheim e sua escola.

Lévy-Bruhl, contudo, introduz a ousada e dificilmente crível hipótese de que o desenvolvimento histórico do conhecimento e das representações é o resultado de uma série de transformações qualitativas e de descontinuidades não apenas de conteúdo, mas nas estruturas cognitivas.

Lévi-Bruhl foi o primeiro a identificar a característica quali-

tativa do pensamento primitivo e o primeiro a tratar processos lógi-

cos como produtos de desenvolvimento histórico. Ele teve

uma grande influência nos psicólogos da década de 1920

que tentaram ir além de noções simplísticas sobre a mente e com-

preender a consciência humana como um produto de desen-

volvimento sociocultural (Luria, 1976: 7).

A avaliação histórica é clara e precisa. Lévi-Bmhl abandonou o

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caminho estéril da psicologia evolucionista de seu tempo e ofe-receu uma nova visão de consciência social. Naquele tempo ele propôs uma nova hipótese de desenvolvimento histórico e um modo particular de torná-lo evidente. Embora ele não tivesse em-pregado a palavra “revolução”, ela é, contudo, semelhante aos saltos qualitativos das revoluções representacionais que têm muito em comum com as mudanças paradigmáticas de Kuhn (1962). Tais considerações levaram Vygotsky e Luria a acreditar que a conjetu-ra de Lévy-Bruhl merecia ser provada. A revolução bolchevista se constituía em um experimento natural que lhes permitia testá-la concretamente. “O período”, escreveu Luria entre os anos de 1931/1932, “ofereceu uma oportunidade única de observar como decididamente todas essas reformas efetuaram não apenas uma abertura de visão mas também mudanças radicais na estru-tura dos processos cognitivos” (Luria, 1976: iv). Não se po deria sintetizar melhor tanto a tarefa que eles se propuseram realizar como o enfoque hipotético-dedutivo que torna original essa teoria histórico-cultural. É por isso que eu me surpreendi que ex celentes estudiosos como Van der Veer & Valsiner (1991) pudessem escre-ver que “Vygotsky e Luria sentiram a necessidade [ao planejar essa pesquisa] de atestar essas semelhanças e diferenças cogniti-vas” (p. 242).

Deduz-se dos escritos de Luria que ele e Vygotsky sentiram necessidade de testar uma corajosa conjetura de Lévy-Bruhl e foi com esse objetivo em mente que a expedição foi organizada. Em seu excelente livro de memórias, Luria (1979) narra seu primeiro encontro com Durkheim e sua visão de sociedade estruturada a partir de representações sociais e normas que modelam a vida mental dos indivíduos. Posteriormente, ele se familiarizou com as idéias de Janet que, sob a influência desse sociólogo francês, se aprofundou a compreensão da relação entre atividades sociais e intelectuais no desenvolvimento da criança. Finalmente, ele es-creveu sobre Lévy-Bruhl que, de certo modo, havia justificado o experimento natural que eles quiseram realizar no Usbequistão, Luria estava convencido que eles tinham provado que as mudan-ças revolucionárias na sociedade tinham acarretado mudanças fundamentais nas representações das pessoas e em seus proces-sos mentais. E, desse modo, sua teoria sócio-histórica é perigosa-mente correta, diria eu. Podemos lembrar como Rubinstein, em 1934, criticou implicitamente Vygotsky por escolher a hipótese da descontinuidade de Lévy-Bruhl e não a hipótese da continuidade

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de Marx: “o que é decisivo aqui”, escreve ele,

pode ser identificado em um contraste entre Marx e Lévy-Bruhl. O úl-

timo defendeu não apenas uma transformação quantitativa,

mas qualitativa, da psique no processo de desenvolvimento

sócio-histórico - mudanças não apenas no conteúdo, mas

também nas formas e estruturas. I. ...] Há uma caesura (inter-

rupção) entre a primeira cognitiva e a intelectual. A continuidade

aqui se torna impossível. Essa acentuação basicamente falsa e poli-

ticamente reacionária nas diferenças mostra o resultado do misticis-

mo ideológico (Rubinstein, 1934/1987: 119-120).

Mas ao escolher a hipótese da descontinuidade de Lévy-Bruhl, Vygostky rejeita, ao mesmo tempo, a hipótese da continui-dade de Durkheim. Era uma crença de Durkheim que os indiví-duos se tornam, no processo de evolução, menos subordinados à coletividade e se tornam mais capazes de perceber a realidade física diretamente e de reagir a seus próprios pensamentos, as re-presentações cientificas modernas substituem as antigas não cien-tíficas. Contrariamente a Durkheim, Lévy-Bruhl estava convencido de que o pensamento científico não substitui inteiramente o pen-samento pré-científico, a lei da não-contradição não elimina a lei da participação. Nesse sentido, o ponto de vista de Lévy-Bruhl é a chave para o problema da teoria histórico-cultural. Entende-se por que, segundo essa teoria, os conceitos científicas, ou representações, são eventualmente transformados em representações do senso comum, em vez de serem inteiramente eliminados por elas.

Trouxemos à memória esses estudos seminais do desenvolvi-mento do pensamento infantil do nível dos complexos para o dos conceitos racionais. Eles são, em certo sentido, inacabados e nos deixam à espera de uma continuação. Seria incapaz de avaliar sua importância sem os comentários históricos e culturais oferecidos pelo Professor Brushlinsky, do Instituto de Psicologia de Moscou, na Academia de Ciência da Rússia. Esses estudos e os que se se-guiram a eles, e isso raramente é mencionado, estão interessados com a “difusão” do conhecimento, por assim dizer - mais exata-mente, com a difusão depois da revolução soviética, dos conceitos marxistas no pensamento cotidiano das crianças. Evidentemente, os conceitos espontâneos, ou do senso comum, e os científicos possuem duas origens distintas e, possivelmente, opostas: a pri-

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meira, na escola ou no partido; e a segunda, no ambiente familiar. No processo de comunicação do professor ao aluno, essas repre-sentações se chocam e se transformam reciprocamente. As repre-sentações espontâneas facilitam a assimilação das cientificas e as científicas enriquecem as espontâneas de tal modo que elas se tornam mais abstratas. Ou, como coloca Vygotsky, as primeiras se movem para cima e as últimas para baixo, tornando-se mais con-cretas. Conseqüentemente, Vygostsky e seus estudantes, do mes-mo modo que Lévy-Bruhl antes deles, sugeriram que não se pode erradicar o pensamento pré-científico. Ao contrário, eles sugerem que o senso comum é um mediador necessário de assimilação, seja ele cultural ou cientifico. Incluir esses estudos entre os precurso-res de nossos estudos baseados na teoria das representações soci-ais e incluí-los como parte da psicologia social não seria desprovi-do de fundamento. Há neles algo mais do que nosso olhar possa perceber? Lembremos que esses estudos foram debatidos durante o período e existia uma preocupação com a questão de uma peda-gogia socialista. Segundo Lenin, a consciência social é criada fora da mente do indivíduo pelo partido e ela penetra nas mentes das pessoas e especialmente dos trabalhadores através da remoção de suas idéias e crenças espontâneas, não-revolucionárias e de con-ceitos não-marxistas. Rubinstein, em seu artigo, menciona em que sentido isso foi relevante para a psicologia: “o problema leninista do espontâneo e consciente se coloca, fica evidente, fora da psico-logia, mas a transição de uma para a outra é uma mudança psíqui-ca profunda” (Rubinstein, 1934/1987: 123). Conseqüentemente, os estudos de Vygostsky e de seus colegas po dem ser também vistos como testando, em tempos estimulantes, mas perigosos, o dogma leninista da consciência social, que foi fortemente critica-do pelos seus oponentes social -democratas. Mais que tudo, foi provavelmente esse esforço que deve ter levantado críticas e sus-peitas a respeito do grande psicólogo russo.

Nossa época não é a deles. Contudo, do que acabei de dizer, podemos imaginar a raiz da diferença entre Piaget e Vygotsky, com respeito à solução do problema da modernidade. Para o pri-meiro, esse problema estava interessado na capacidade de pensar cientificamente e de descentrar da sociedade, a fim de cooperar ou agir racionalmente. Para o último, a solução do problema da modernidade era criar uma consciência social baseada em uma vi-são cientifica, sem dúvida uma visão marxista, do mundo e da soci-edade. A diferença não se ligava apenas aos dois grandes psicólo-

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gos. Ela correspondia a duas correntes que dividiam a Europa na marcha da história moderna.

Comentários conclusivos

Fleck escreveu em 1936: “O embrião da teoria moderna da cognição se fundamenta nos estudos da escola de Durkheim e Lévy-Bruhl na sociologia do pensamento e no pensamento das pessoas primitivas” (Fleck, 1936/1986: 80). É esse embrião que Piaget e Vygotsky enriqueceram em sua psicologia do desenvol-vimento e que foi elaborado na psicologia social pela teoria das representações sociais. Tentei também lembrar que a idéia de re-presentações sociais é fundamental, não apenas no passado, mas também no futuro, para uma psicologia cultural vigorosa. Ela está, por assim dizer, no coração do código genético.

Antes de terminar, é necessário enfatizar que o ponto nevrál-gico está em outro lugar e não em comparar as duas teorias dos dois pensadores. Eles viveram no mesmo tempo, mas não na mes-ma história. Vygotsky trabalhou exatamente no olho do furacão e em uma das grandes tragédias de nosso tempo. E embora Piaget fosse talvez mais sensível do que se possa pensar ao fluxo e refluxo da democracia na Europa, ele teve, de um modo ou outro, uma oportunidade de observá-la de Genebra, do mesmo modo que Kant observou a Revolução Francesa do outro lado do Reno. A obra de Piaget é um monumento, a de Vygotsky é um busto mag-nificente, mas sempre um busto, um pouco como os de Leonardo da Vinci, que escreveu tanto, que começou obras sem comple-tá-las. A grande tentação é opor Piaget a Vygotsky como se opu-séssemos razão controlada sobre paixão, uma vida regulada ver-sus uma existência desorganizada, uma ca rreira normal versus uma rebelião, o clássico versus o romântico.

Em síntese, enfrentamos o que Nietzsche chamou de um espí-rito apolíneo, totalmente equilibrado, regular, contínuo, expres-sando a unidade da vida psíquica e um espírito dionisíaco de rup-tura, irregularidade, conflito e a dualidade das forças psíquicas e das novidades inesperadas. A história nos convida para lá, quando comparamos Wundt e Fechner, Freud e Janet, Lewin e Skinner, Baldwin e Tolman, para falar apenas dos mortos. Esse contraste

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de visão científica, contudo, seria muito grosseiro se não tivesse um discernimento nas origens de suas histórias paralelas e sem que se investigasse se eles representam, ou não, uma oposição in-telectual mais duradoura, que data do nascimento da psicologia: Pediria que lessem tudo isso com tolerância: como uma inspiração para tornar a história da psicologia mais interessante, tanto como uma ciência da humanidade e como uma ciência humana.

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7. IDÉIAS E SEU DESENVOLVIMENTO

Um diálogo entre Serge Moscovici e Ivana Marková

IM - Sua teoria das representações sociais já tem quase qua-renta anos e, apesar disso, nos dias de hoje, várias atividades psi-cossociais relacionadas a esse campo parecem estar florescendo mais do que nunca; muita pesquisa em representações sociais está sendo realizada, não apenas em toda a Europa, mas também em outros continentes. Há um programa de Doutorado europeu sobre representações sociais e comunicação, que organiza anualmente uma escola de verão para jovens pesquisadores; há uma associa-ção e uma rede sobre representações sociais que publica uma re-vista e organizou uma série de conferências internacionais. Ao mesmo tempo, a teoria tem seus críticos. Alguns deles afirmam que a teoria é muito vaga; outros, que é muito cognitiva; que não está claro como o conceito de representações sociais difere de outros conceitos, por exemplo, dos conceitos de atitudes, cognição social, crenças, estereótipos, etc.; outros ainda gostariam de casar a teoria tanto com a análise de discurso, como com o construti-vismo(s) social e o construcionismo - ou com ambos ao mesmo tempo.

Mas a teoria das representações sociais é apenas uma área de seus interesses de pesquisa. Outras áreas em que você se consti-tuiu em uma figura de liderança, durante muito tempo, incluem a influência das minorias e a da inovação, a psicologia ecológica e a psicologia da multidão. Seus estudos nessas áreas foram traduzi-dos em uma dúzia de línguas.

Os leitores da França estão familiarizados, também, com seu trabalho na história e na filosofia da ciência, na invenção humana e tecnologia, na psicologia da resistência e da dissidência e, mais recentemente, com seu magnífico estudo autobiográfico, Chroni-que des annoes égarées (Crônica dos anos perdidos, Moscovici. 1997). Embora residindo permanentemente em Paris, você traba-lhou em universidades dos EE.UU., foi convidado para dar confe-rências por todo o mundo e recebeu um grande número de títulos de doutor de várias universidades européias.

Antes de começar a falar sobre esses assuntos, gostaria de re-

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petir aqui algo que Willem Doise disse na escola de verão sobre representações sociais, em Lisboa, em 1997, quando estava falan-do sobre sua carreira inicial com você, na década de 196o, em Paris. Eu estou parafraseando o que Willem disse:

As mulheres trabalhavam no laboratório de representações

sociais (Claudine Herzlich e Denise Jadelet) e ele não era

acessível aos homens; os homens trabalhavam no laborató-

rio sobre influência das minorias e maiorias (Willem Doise,

Michel Plon); esse era um laboratório cientifico difícil e eu

teria gostado de trabalhar com representações; e Serge à

cabeça de tudo isso, escreveu livros sobre a história e a f i-

losofia da ciência, sobre tecnologia e inovação.

SM - É claro, eu estou feliz, mas também surpreso, porque a teoria das representações sociais tenha estado conosco por muito tempo e que as novas gerações de pesquisadores estejam interes- sados nela, a tenham desenvolvido e tenham feito progresso teóri-co e metodológico. Estou feliz de ver que novas correntes emergi-ram dentro da teoria e que mais diversidade esteja sendo expres-sa, através das personalidades dos pesquisadores - como se diz na França “il faut de tout por faire un monde” (é preciso de tudo para construir um mundo). Não sou contra ortodoxias, mas elas nun ca resistem ao teste do tempo.

Minha primeira resposta poderá soar desrespeitosa. Sou muitas vezes solicitado a justificar o conceito de representação social e a explicar como ele difere de outros conceitos, tais como atitudes, cognição social e assim por diante. Gostaria de lembrar que a idéia de representação coletiva ou social é mais velha que todas essas noções e que ela é parte do “código genético” de todas as ciências humanas. É necessário distinguir uma idéia, de sua expressão conceitual, em áreas cientificas especificas. Por exem-plo devemos distinguir a idéia de atomismo, como uma maneira descontinua de ver a matéria, do conceito de particula, digamos que a mecânica quântica; ou a idéia de molécula do conceito de gens na biologia molecular, etc. Do mesmo modo, a idéia de repre-sentação coletiva ou social, foi a fonte de conceitos extremam fru-tiferos na antropologia, lingüística (por exemplo la langue), histó-ria (por exemplo, mentalidade), psicologia infantil e psicologia social. Mas como veremos, a psicologia social tem uma tarefa mais geral com respeito a essa idéia. Na verdade, a partir desse ponto de vista, dever-se-ia esperar o contrário, que essas diversas no-

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ções deveriam ser definidas com respeito à idéia básica de re-presentações sociais. De fato, a maioria dos “pedidos” que recebo, não são críticas, ou prelúdios para um diálogo, mas exigências de credenciais. Ainda mais, não sei o que se quer dizer por “cogniti-vo”, porque hoje a palavra cognitivo possui um sentido muito ge-ral e ela se aplica a qualquer tipo de processamento de informa-ção. As representações sociais estão, é claro, relacionadas ao pen-samento simbólico e a toda forma de vida mental que pressupõe linguagem. Finalmente, é o conceito de representações sociais “muito vago”? De que maneira vago é “vago”? Se alguém o com-para com conceitos formais, matemáticos, então isso certamente é verdade. Se alguém quer dizer que ele é muito complexo, isso é verdade também. Essa é, porém, uma opção que assumi no come-ço de minha pesquisa e uma opção que você vai encontrar tam-bém na minha teoria da influência. Pode alguém pressupor que os fenômenos sociopsicológicos são mais simples que os fenômenos lingüísticos ou econômicos? Ou deveriam as teorias sociopsicoló-gicas ser mais simples que as outras teorias? Deveriam elas ser re-duzidas a simples proposições, como elas o são muitas vezes? Dis-cuti essa questão, muitas vezes, com Leon Festinger, quando éra-mos colegas na New School, em Nova Iorque, e ele estava envolvi-do em pesquisa antropológica e histórica. Essas discussões foram alimentadas por questões concretas, durante nossas viagens aos lugares pré-históricos, onde nós encontramos especia listas em paleontologia, antropologia e assim por diante. E nós chegamos á conclusão que, em psicologia social, as teorias devem ser “mais ricas” do que elas normalmente são, de tal modo que descrevam e possivelmente expliquem, adequadamente, os fenômenos especí-ficos. Ainda mais, tendo discutido algumas observações com Fran-cis Crick em suas memórias, ambos concordamos que o modelo dessas teorias não poderia ser o modelo hipotético-dedutivo da física, mas o modelo mais indutivo e descritivo da biologia, tanto em termos de evidência, como das relações entre teorias e fenô-menos.

Fico emocionado pelas interessantes observações de Willem. Permita-me acrescentar alguma coisa. Sempre evitei proselitismo. Você agora conhece meu passado cultural. Havia um respeito qua-se religioso pelo conhecimento e pelo aprender. Nessa cultura, as pessoas pensam que se uma idéia é certa, então ela conseguirá triunfar, apesar de toda resistência externa. Impô-la autoritaria-mente é desvalorizar seu conteúdo autêntico. Não quero que Wil-

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lem pense que usei minha autoridade nesse assunto. Mais tarde fi-quei muito feliz em ver que ele foi inspirado pela teoria e contri-buiu para ela de maneira original.

1. A origem das idéias nas representações sociais

IM - De maneira muito clara, suas idéias sobre representa-ções sociais formam uma parte central de seu trabalho como um todo, como eu acabei de delinear. Por conseguinte, esse diálogo nos trará uma oportunidade de discutir suas idéias sobre repre-sentações sociais, no contexto de sua paixão de toda sua vida, na busca da origem das idéias, da história do conhecimento humano e da tecnologia, da construção de mitos e da transformação das idéias em senso comum. Além disso, espero que possamos falar sobre a interdependência entre representações sociais e lingua-gem - um tema que você mesmo trouxe à discussão da pesquisa sócio-representacional, desde o inicio, mas que, do meu ponto de vista, foi em grande parte ignorado, ou mal interpretado.

SM - Se nós falamos sobre as origens de minhas idéias sobre representação social, então diria que a teoria das representações sociais é um fruto de minha idade da inocência. Quando eu digo “idade da inocência”, quero dizer que comecei a trabalhar nessa direção quando era ainda um refugiado político em Paris. Eu era um estudante na Sorbonne e não tinha nenhuma idéia sobre meu futuro profissional. Nesse tempo, havia pouca psicologia social na França, ou na Europa, falando de maneira geral. Não tive nenhum contato com os colegas dos EE.UU. ou ingleses. Li por conta pró -pria e, além disso, fiz alguns cursos interessantes com o Professor Lagache, sobre Kurt Lewin. Dessa maneira, fiz alguma idéia es-pontaneamente sobre como se pareceria a psicologia social, mas não tinha idéia do que ela realmente era, ate muito mais tarde. E por isso que digo que a teoria das representações sociais é um fru-to de minha idade da inocência. Isso não quer dizer que eu estava em um estado de inocência intelectual porque, como escrevi em minha autobiografia, eu já havia escrito alguns ensaios e publica-do, com meus amigos da Romênia, uma revista de vanguarda em Bucareste, entre outras coisas.

Há um ponto que gostaria de discutir sobre esse período. Ha-via um problema que minha geração debateu amplamente: o pro-

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blema da ciência. Era, ao final de contas, o problema da moderni-dade. Nós estávamos todos interessados em compreender de que maneiras a ciência teve um impacto na mudança histórica, no nos-so pensamento, em nossas perspectivas sociais. Nós estáva mos muito menos interessados em como a ciência afeta nossa cul tura, as idéias de cada um na vida cotidiana, ou como essas idéias po-dem se tornar parte das crenças das pessoas e assim por diante. Todas as pessoas jovens que foram atraídas pelo marxismo, co-munismo e socialismo estavam preocupadas com a questão da ciência, tecnologia e matérias afins.

IM - Então, o que os marxistas pensavam sobre o efeito da ci-ência nas pessoas comuns? Você aceita a posição marxista?

SM - Não, eu não aceitei. Deixe-me explicar. A guerra era um inferno para mim. No inferno, as pessoas aprendem muito sobre si mesmas e sobre a humanidade em geral. Você se torna mais lúci do e enfrenta os problemas duros da vida e da morte. Na minha opi-nião, a parte mais rica e mais profunda da Divina Comédia, de Dan-te, é o Inferno. Desse modo, já durante a guerra comecei a pensar sobre o impacto da ciência na cultura das pessoas, como ela altera suas mentes e comportamento, por que ela se torna parte de um sistema de crenças, etc. Você ve, esse é o tipo de perguntas que Gramsci se fez, durante seus anos de prisão. Naquele tem po, não havia posições claras sobre o problema. Em primeiro lugar, a po-sição marxista, com a qual me familiarizei porque, como jovem, na Romênia, no começo da guerra, eu me inscrevi no parti do comu-nista. Os marxistas - ou, mais precisamente, Lanin! - desconfiavam do conhecimento espontâneo e do pensamento das massas. Eles estavam convencidos que o conhecimento espontâ neo tinha de ser purificado de suas racionalidades ideológicas, religiosas e po-pulares e substituído por uma visão científica do ser humano, da história e da natureza, isto é, pela visão marxista e materialista. Os marxistas não acreditavam que a difusão do conhecimento cientí-fico poderia melhorar o conhecimento ou o pensamento comum. O primeiro tinha de erradicar o último. Você conhece a fórmula: a consciência social provém do exterior. A outra posição era uma mais geral, podemos chamá-la da posição do iluminismo. Para expressar isso com poucas palavras, o conhecimento e o pensa-mento científico dispersam a ignorância, os pre conceitos ou os

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erros do conhecimento não-científico, através da comunicação e da educação. Assim, de certo modo, seu objetivo era transformar todos os seres humanos em cientistas, fazê-los pensar racional-mente.

Ao mesmo tempo, paradoxalmente, todos consideravam a di-fusão do conhecimento científico entre as pessoas, a ciência po-pular - vulgarisation (vulgarização) é a palavra francesa para isso - como uma desvalorização, ou uma deformação, ou ambas, do co-nhecimento científico. Em outras palavras, quando a ciência se espalha pela área social, ela se toma algo impuro e degradado, su-postamente porque as pessoas são incapazes de assimilá-la, como fazem os cientistas. Veja você, havia uma convergência entre os pontos de vista marxistas e não-marxistas; o conhecimento co-mum é contaminado, deficiente e errado. Desse modo, depois da guerra, eu reagi de certo modo a esse ponto de vista e tentei reabi-litar o conhecimento comum, que está fundamentado na nossa experiência do dia a dia, na linguagem e nas práticas cotidianas. Mas bem lá no fundo, reagi contra a idéia subjacente que me preo-cupou a certo momento, isto é, a idéia de que “o povo não pensa”, que as pessoas são incapazes de pensar racionalmente, apenas os intelectuais são capazes disso. Eu cresci em um tempo em que rei-nava o fascismo, de tal modo que se poderia dizer que, pelo con-trário, são os intelectuais que não são capazes de pensar racional-mente, pois na metade do século vinte eles produziram teorias tão irracionais, como o racismo e o nazismo. Pode crer, a primeira vio-lência anti-semita aconteceu nos colégios e universidades, não nas ruas e foi legitimada não pelos padres ou pelos políticos igno-rantes, mas por pessoas estudadas, tais como Mircea Eliade, Emi le Cioran e outros filósofos.

Por conseguinte, o problema para mim se tornou o seguinte: como o conhecimento cientifico é transformado em conhecimento comum, ou espontâneo? Nesse processo, ele adquire as qualidades de um credo real. Esse problema estava também relacionado com um ensaio que escrevi imediatamente depois da guerra, em que criticava a dualidade marxista da ciência e da ideologia, como as raízes da consciência social. Sugeri que um terceiro componen te intervém, isto é, o senso comum. Mais precisamente, o que ti nha em mente era sua relação com a cultura, porque, nessa ordem de coisas, você deve assumir como ativo, real, somente o que entra nas maneiras e práticas, isto é, na vida do senso comum. Desse modo, quando comecei minha pesquisa na França, tentei compre-

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ender e reabilitar o pensamento comum e o conhecimento co-mum. Ainda mais, não os considerei como algo tradicional, ou pri-mitivo, como mero folclore, mas como algo muito moderno, origi-nando-se parcialmente da ciência, como a configuração que assu-me quando se torna parte e parcela da cultura. Via transfo rmação do conhecimento científico em conhecimento comum como uma área de estudo possível e excitante.

IM - Mas explorar o senso comum é, na verdade, uma tarefa difícil. Tinha uma idéia de como fazê-lo?

SM - Claro que tinha. Eu sempre gostei de fazer coisas, não apenas especular sobre elas teoricamente. Nos anos de 1948/1949, havia duas teorias que estavam começando a pene-trar na sociedade francesa: a primeira, o marxismo, partilhado e propagado pelo maior partido comunista da Europa; e em segun-do lugar, a psicanálise. Eu estava impossibilitado de escolher o marxismo, porque era um estrangeiro e um refugiado de um país comunista; era também uma questão politicamente difícil. Assim, o que restou para mim foi a psicanálise, que acabou sendo a me-lhor escolha a longo prazo, pois ela penetrou mais profundamente a sociedade francesa, que o marxismo. Ainda mais, Daniel Laga che, que era meu professor, ele próprio era um psicanalista e acabou interessado em minhas idéias e me encorajou a começar a pesqui-sar nessa área.

IM - Para mim, essa questão é particularmente interessante, porque eu nunca pude entender como, na França, o marxismo e a psicanálise pudessem andar juntos. Quando era estudante de me-dicina na Checoslováquia comunista, a psicanálise era proibida. No livro livro-texto de psiquiatria, havia apenas uma linha e meia, no fim de uma página e em letras menores, sobre Freud e sobre a psi canalise, apresentada como uma pseudociência burguesa. Sempre fomos levados a crer que a próxima revolução comunista seria na França, sendo o partido comunista tão forte - e isso pro-vavelmente influenciou, em parte, minha própria decisão de emi-grar para a Inglaterra e não para a França. Então, para mim, foi sempre um problema como o marxismo e a psicanálise pudessem coexistir na França.

SM - Naquele tempo, na década de 195o, eles estavam lutan-

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do entre si. Ou melhor, os marxistas guerreavam os psicanalistas, o que tornou meu estudo ainda mais fascinante. Como você sabe, na segunda parte de La Psychanalyse, son image et son public (Moscovici, 1961/1976), que devotei ao estudo da comunicação, analisei a propaganda contra a psicanálise na imprensa comunis-ta. Essa foi também a ocasião de mostrar que, quando uma nova idéia, ou conhecimento cientifico, penetra na esfera pública, a vida cultural de uma sociedade, então você tem uma verdadeira Kul-turkampf, lutas culturais, polêmicas intelectuais e oposição entre diferentes modos de pensar. Esse foi também o caso com a relati-vidade, a termodinâmica e o darwinismo. Há um drama implicado no processo de transformação do conhecimento, o nascimento de uma nova representação social. Isso explica o confronto entre psicanálise e marxismo, quando o partido comunista estava em ascensão. Sartre tentou encontrar um compromisso que, na minha opinião, não foi de todo bem-sucedido. Depois da revolução estu-dantil de 1968, quando foi necessária uma ideologia para inte-grar e recuperar os estudantes dentro do referencial social exis-tente, Althusser iniciou uma coexistência pacifica com Lacan, com o marxismo e com a psicanálise. Nesse tempo, contudo, o partido comunista não era mais um partido central e as idéias e a lingua-gem psicanalíticas já se constituíam em parte importante do co-nhecimento comum e da cultura. Os gurus das demonstrações de massa, que ocuparam o espaço entre a Republique até a Bastille, tinham sido substituídos pelos gurus dos divãs individua is, em consultórios confortáveis, na área que vai do Guarder Latin, até Saint-Germain-des-Pres.

IM - E uma pena que La Psychanalyse não tenha ainda sido traduzida para o inglês. É um livro clássico; ali você define os con-ceitos elementares e apresenta a base teórica das representações sociais. Em especial, é a segunda parte de La Psychanalyse que não é bastante conhecida entre os psicólogos que trabalham na área das representações sociais. Considero isso importante, por ao menos duas razões. Primeiro, é ali que você explora a relação en-tre representações sociais e linguagem. E, segundo, você examina as estratégias que a ideologia comunista, usando a propaganda, empregou na imprensa, a fim de fazê-la parte da realidade exis-tente. Essas duas questões estão interligadas na segunda parte de La Psychanalyse e por isso quero falar sobre elas com mais deta-lhes.

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Ao estudar as representações sociais da psicanálise na Fran-ça, você mostrou como a propaganda, focando alguns critérios lin-güísticos, através do emprego de palavras, associando-as a novos sentidos e a categorias sócio-cognitivo-afetivas alternativas, ten-tou criar novas representações, novo conhecimento comum. Você descreve esse processo como consistindo de três estágios. O pri-meiro estágio estava baseado na evidência geral de que a psicaná-lise poderia ser associada a várias esferas das atividades humanas, tais como a ciência, a terapia, a uma doutrina particular ou a uma ideologia. Selecionando ideologia para associar psicanálise, a pa-lavra “psicanálise” recebeu um novo sentido específica Por exem-plo, a imprensa comunista descreveu a psicanálise como o símbo-lo de um estilo de vida dos EE.UU., de uma cultura americana de-cadente, ou como uma pseudociência. Podemos dizer que o senti-do da palavra “psicanálise” foi particularizado, com a intenção de que esse sentido particular fosse, mais tarde, adquirir um signifi-cado novo e global. A fim de conseguir isso, a palavra “psicanálise” subseqüentemente nunca foi usada sozinha, mas sempre com um adjetivo, ou um grupo de palavras, que re-enfatizavam as novas conexões. Desse modo, a imprensa comunista nunca usou combi-nações de palavras, tais como “ciência psicanalítica”, “eficiência terapêutica psicanalítica”, “objetividade das concepções psicanalí-ticas” e assim por diante. Em vez disso, ela sempre usou combina-ções tais como: “o mito da psicanálise”, “psicanálise americana”, ou “uma ciência burguesa”. O emprego dessas restrições, fixou o conteúdo particular, como um conteúdo geral. Como você mos-trou, o sentido da nova combinação de palavras tomou-se um tipo de rótulo, um título, como o título de um livro ou de um filme. No estágio final, o critério de hierarquia determinou a ordem em que significações específicas foram organizadas. Por exemplo, a pala-vra “ciência” tornou-se parte de algum tipo de hierarquia artifici-almente criada como, digamos, a “ciência soviética” no cume, se-guida pela “ciência proletária”, a “ciência materialista” e assim por diante. Tal hierarquia seria classificada como mais alta do que, digamos, “a ciência racionalista”, “a ciência americana”, “a ciência burguesa”, etc. Desse modo, a propaganda, através dos efeitos da seleção de associações entre categorias, através do emprego do controle, reduziu o raio de significações, a fim de eliminar os ris-cos da relativização e das livres interpreta ções dos sentidos pelo seu público, ou pelos interlocutores. O resultado dessas operações foi, tanto a criação de uma linguagem especifica, como a elevação de uma barreira semântica entre as palavras. É a constituição des-

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sa linguagem especifica que acompanha a formação de uma repre-sentação. Uma vez conseguido isso, as palavras obtem seus senti-dos específicos e esses, por sua vez, justificam seu uso na propa-ganda. A repetição dos elementos formaliza e solidifica o pensa-mento, tomando-o parte da constituição lingüística e cognitiva do indivíduo.

Achei esse estudo iluminador, porque ele mostrou uma rela- ção direta entre pensamento e linguagem. Mais especificamente, nesse caso, ele mostrou a relação entre as operações da ideologia. e os sentidos das palavras, com uma ideologia tentando se tomai representação social, uma parte da cultura.

Mas retomemos à origem de suas idéias sobre representa-ções sociais. Você explicou que a primeira razão que o levou ao estudo das representações sociais foi sua convicção de que o sen-so co- mum, ou o conhecimento comum, necessita ser reabilitado. E não pode ser tratado como algo irracional, mas como um impor-tante terceiro fator entre conhecimento cientifico e ideologia. Oual foi a segunda razão que o levou a estudar as representações soci-ais durante sua idade da inocência?

1.1. Representações sociais e atitudes

SM - É difícil saber como uma idéia nasce na mente de al-guém. Há sempre uma transfertilização de conjeturas, interesses intenções, uma vez que você agarra uma boa questão. Naquele tempo, encontrei o Professor Jean Stoetzel, que era, então, o único professor de psicologia social na França, em Bordéus. Ele era tam-bém o diretor do Instituto para o Estudo da Opinião Pública em Paris e autor de um livro clássico sobre a teoria das opiniões. Fui a ele porque tinha de aprender métodos de levantamento e também porque precisava de dinheiro. Não apenas aprendi métodos de le-vantamento, especialmente o emprego de escalas, mas também um pouco de psicologia social. Como você sabe, até a II Guerra Mundial, a psicologia social era definida como a ciência das atitu-des e da opinião pública. Li sobre elas e cheguei à conclusão de que tais noções eram muito atomísticas e superficiais para meu propósito teórico. Uma psicologia social do conhecimento não po-deria ser construída sobre tais fundamentos; até aí estava claro. O auxílio deveria vir de outra fonte. Naquele tempo, fiquei fascinado pela cibernética, por duas razões. Ela parecia anunciar um novo

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tipo de ciência, unificando diferentes campos de conhecimento e reunindo pesquisadores tanto das ciências naturais, como das ciências humanas. De algum modo, isso se adequava a minha pró-pria idéia de psicologia social, como uma nova ciência em si mes-ma. Ainda mais, ela compreendia uma mistura interessante de te-oria matemática da informação, com a teoria “sociofisica” da co-municação. Lembro claramente de um artigo de Roman Jakobson sobre esse tópico, quando já tinha começado meu estudo-piloto sobre a difusão da psicanálise. Tanto a teoria da informação, como a teoria da comunicação, me aproximaram da idéia de represen-tação. Embora nunca tivesse seguido cursos regulares de estu dos, pois eu tinha sido excluído do lycée, na Romênia, por motivos raci-ais, sempre fui arguto em matemática e pude entende-la - muito facilmente. Por isso estudei a teoria da informação e tentei aplicá-la às escalas de atitude de Guttman, com sucesso, penso eu, ao menos aos olhos do próprio Guttman.

Deixe-me ser um pouco mais específico nesse ponto. A ori-ginalidade das escalas de Guttman está no fato de elas lidarem com amostragem de idéias mais do que com a amostragem de in-divíduos. Elas supõem um universo de itens sociais (objetos, opi-niões, etc.) e faz-se uma amostra de um pequeno número deles, a fim de mostrar, por assim dizer, a estrutura que os mantém uni-dos. Isso levanta duas questões. Primeiro: o que há nesse universo social e mentalmente? E segundo: o que mantém os itens de uma atitude juntos e os ordena em uma escala, especialmente em uma escala de Guttman, que representa um conteúdo e um padrão sig-nificativo?

Minha resposta particular era que os itens eram mantidos juntos e ordenados por uma estrutura mental subjacente, expres-sa pela redundância de respostas individuais, uma estrutura que eles partilhavam, pois, se eles não o fizessem, não haveria uma ordenação normal dos itens na população. E os erros (ou ruídos, como eles eram chamados na teoria da informação) expressam as respostas que se desviam da estrutura mental normal. Eles eram, então, puramente padrões mentais individuais. As computações da teoria da informação mostravam tudo isso de maneira elegan-te. Isso era fantástico porque, naquele tempo, eu fazia escalas a mão, organizando sujeitos e ordenando itens. Desse modo, pude ver, no escalograma, os itens que foram excluídos e aqueles que foram mantidos, como partes dessa assim chamada estrutura mental. Alguém poderia também ver o contraste entre as respos-

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tas redundantes e as “ruidosas”, entre os padrões mentais sociais e os individuais. O que eu estava medindo era, de algum modo, o grau de estruturação dessa estrutura mental social. Assim, no ini-cio, a representação social era uma espécie de idéia visual, que tentei, então, compreender, dar-lhe um sentido. Nesse contexto, para responder parte de sua questão, as atitudes se mostraram a mim como uma dimensão de nossas representações compartilha-das.

Trabalhando na teoria da informação e na construção de es-calas, tive o privilégio de ser convidado a um seminário organiza-do por Claude Levi-Strauss sobre essas questões. De fato, foi um seminário sem paralelo; entre os participantes estavam, se lembro exatamente, Koyré, Lacan, Mandelbrot, Schützenberger e outros pesquisadores de altas qualidades intelectuais. É claro que não abri minha boca e mantive meus ouvidos abertos. E aprende-se bem mais quando se escuta as pessoas falando, do que lendo o que elas escreveram. Tentei aprender mais sobre a teoria da comuni-cação. E imaginava quão útil seria essa teoria para a psicologia social do conhecimento. Vários autores ingleses, não lembro quais, disseram que a comunicação é impossível quando não hé possibi-lidades pré-concebidas ou padronizadas, ou representações pré-fabricadas. Essa foi, contudo, a maneira como a noção representa-ção entrou em meu vocabulário, ou em minha mente. De qualquer modo, tentei formular uma teoria de comunicações cujo código era a representação normalizada e a atitude, o conhecimento ou os itens de opinião eram as formas de mensagens. A única coisa que me desagradava nessa teoria era o fato que a comunicação era concebida como uma espécie de troca e reprodução de represen-tações.

Quando me pergunto, hoje, sobre o que cristalizou essa noção de representação em minha mente, penso que foi lendo Merleau-Ponty. Também participei de alguns de seus cursos, quando ele ensinava psicologia infantil na Sorbonne. Ele escreveu e talvez falasse bastante sobre a primazia da percepção. Pensei que a pri-mazia da percepção fosse justificada em cada ramo de psico logia não-social, ou em uma concepção de senso comum como perten-cendo aos sentidos, ao conhecimento sensorial, de acordo a gran-de tradição da filosofia européia. E de fato, mais recen temente muitos psicólogos sociais seguiram essa tradição, ao empregarem o termo “o perceptor social”, que se refere a pessoas que adqui-rem seu conhecimento de senso comum na base da observação e

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da experiência. Parecia-me que nós estamos interessados com simbolos, realidade social e conhecimento, comunicando-nos so-bre objetos não como eles são, mas como eles devem ser e as sim o que se apresenta é uma representação. Em outras palavras, pensei que a psicologia social do conhecimento implicasse a primazia das representações. Foi isso que fixou essa noção em minha mente, como ela foi associada com certas idéias na relação entre comuni-cação, conhecimento e a transformação do conteúdo do conheci-mento. Deu-se pouca importância a esse conteúdo, não mais que se da hoje. Mas que podemos nós dizer do pensamento, - ou co-nhecimento, quando nós não sabemos nada sobre seu con teúdo? Não mais daquilo que podemos dizer sobre linguagem, quando nós não tomamos os sentidos em consideração. De qualquer mo-do, cheguei à conclusão que, do mesmo modo como alguém pode pensar um sistema de representações que forma um conhecimen-to científico, alguém pode também pensar um sistema de repre-sentações que forma um conhecimento do senso co mum. Como você sabe, nasci na Romênia, um país onde o conhecimento popu-lar era predominante, na verdade era o único tipo de conhecimen-to generalizado. Provavelmente este “sentimento” foi em parte responsável pelas minhas escolhas intelectuais.

IM - Foi muitas vezes mostrado, por críticos do conceito tra-dicional de atitude, que o problema principal é que os estudos so-bre atitudes se interessaram com a expressão individual da ati-tude e não com uma atitude como algo que é social, ou coletiva-mente, compartilhado. Você concorda com essa avaliação?

SM - Eu até nem diria isso. Os psicólogos sociais, na minha o-pinião - e eu penso que conheço muito bem o assunto- quiseram estudar um tipo de um substituto para o comportamento, podería-mos dizer, um pré-comportamento, que lhes permitisse predizer o comportamento. A maioria das definições de atitude lhe mostra isso. Há também uma idéia subjacente de que, se nós pudermos predizer o comportamento, podemos também mudá-lo. No meu modo de entender, os psicólogos sociais que estudam as atitudes não estão realmente interessados no conhecimento das pessoas e em seu mundo simbólico. Eles estão interessados em como as ati-tudes estão estruturadas e o que nós podemos descobrir sobre estruturas através de escalas - na verdade, meu primeiro trabalho. (Moscovici, 1954), baseado no emprego da escala de Guttman, estava interessado nesse assunto.

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IM - Como você sabe, houve um enorme interesse entre os psicólogos sociais, para identificar, com precisão, as diferenças entre atitudes e representações sociais. No seu aplaudido artigo, Jasper e Frasr (1984) argumentaram que enquanto a característi-ca mais di- ferenciadora das representações sociais é que elas são partilhadas por muitas pessoas, constituindo sua realidade social, em contraste, o conceito de atitude se individualizou. Uma argu-mentação similar, elaborada depois, foi apresentada por Rob Farr. A idéia básica dessa argumentação é que, enquanto que em 1920, no trabalho de Thomas & Znaniecki (1918/1920) sobre o campo-nês polonês na América, a noção de atitudes era social e, por isso, muito parecia com o conceito de representações sociais, posteri-ormente, as atitu- des foram individualizadas, no sentido de que elas foram tratadas como uma disposição de resposta de um indi-víduo.

Parece-me que o que você falou há pouco muda, de certo mo-do, o foco da relação entre atitudes e representações sociais Em principio, presumivelmente, você não se oporia ao argumento de que as atitudes foram individualizadas. Eu entendi, contudo você dizendo que adquirir uma atitude para com um objeto, significa que você deve ter uma representação, que é parte de seu co-nhecimento cultural, ou do conhecimento popular, como também parte de sua cognição. É claro, falamos de cognição em um sentido muito amplo, incluindo imagens, emoções, paixões, crenças e as-sim por diante. Você traz à discussão, por conseguinte, uma ques-tão ontológica básica, com respeito a pensamento e a um objeto. Eu entendo que essa é a resposta a essa questão ontológica, que distingue enfoques tradicionais das atitudes e a teoria das re-presentações sociais. Enquanto que os enfoques tradicionais do estudo das atitudes consideravam uma atitude e um objeto da ati-tude como entidades distintas, você vê uma atitude e a represen-tação do objeto latitudinal, como sendo interdependentes. Você concordaria com essa formulação?

SM - Eu concordo com ela, com a condição de que nos lem-bremos de um certo número de coisas. Nós nascemos em uma grande biblioteca, onde nós encontramos todo tipo de conheci-mento, de idiomas, de normas e assim por diante. Ninguém de nós pode teorizar, ou falar, sobre natureza e realidade - do mesmo modo que Adão, antes de ser expulso do paraíso, não conhecia nada sobre a diferença entre o bem e o mal, o verdadeiro e o falso. Se quiser, nosso conhecimento é uma instituição igual a outras

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instituições. Nossas representações são também instituições que nós partilhamos e que existem antes de nós termos nascido den-tro delas; nós formamos novas representações a partir das anteri-ores, ou contra elas. As atitudes não expressam conhecimento como tal, mas uma relação com certeza e incerteza, crença ou des-crença, em relação a esse conhecimento. Pode-se falar também sobre uma atitude em relação a um objeto, uma pessoa, um grupo e assim por diante. Contudo, no que diz respeito a entidades soci-ais, essas são as entidades representadas. As mais salientes dentre elas são aquelas representações que estão interessadas com fe-nômenos como dinheiro, mercado, direitos humanos, França, Deus e assim por diante. Por conseguinte, não sei como alguém pode es-colher entre as duas noções, especificamente, atitudes e repre-sentações sociais. Cheguei a sua preocupação ontológica básica. Quando alguém fala sobre a relação entre pensamento e um obje-to, uma atitude (ou cognição) e um objeto, esse alguém está inte-ressado em uma relação binária, com uma oposição entre subjeti-vidade e objetividade. Contudo, a metáfora da biblioteca sugere uma relação tríade entre representação social, representação indi-vidual e o assim chamado objeto que é, muitas vezes, a expressão ontológica de uma representação social. Pense em um cartão de crédito. Você vai e compra uma mala, você apresenta seu cartão de crédito ao vendedor, que o coloca em um aparelho especial que registra a compra. Aparentemente, o negócio é entre duas pesso-as, uma das quais está do lado do objeto. Na verdade, há ali um terceiro parceiro, o banco, a instituição que criou o cartão e esta-beleceu o equilíbrio entre débito e crédito. Do mesmo modo, as representações sociais fazem sempre esse terceiro parceiro inter-vir na relação com o outro, ou com o objeto. Francamente, não sei por que o conceito de atitude se opõe ao de representação social, pois ela (a atitude) é uma de suas dimensões. Nem posso eu en-tender como alguém pode substituir um conceito pelo outro, quando esse alguém se propõe estudar a gênese do senso comum.

IM - Gostaria de dar um exemplo para aprofundar esse assun-to. O que você disse sobre o estudo das atitudes na psicologia so-cial se aplica, em geral, também ao estudo do pensamento, da so-lução de problemas, dos conceitos e da formação de conceitos. Esses assuntos também se basearam no pressuposto ontológico de que o objeto de estudo e o self, são independentes. Isso tem conseqüências epistemológicas importantes para as teorias de

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formação de conceitos, de solução de silogismos e anagramas de aquisição de sentidos para as palavras e assim por diante. Minha crítica pessoal a tal posição já tem mais de vinte anos, mas para deixar clara a questão, vou me referir a um exemplo mais recente na área da educação para a saúde, com respeito à Aids. A campa-nha, na Inglaterra, na década de 198o, foi feita sob o título “não morra de ignorância”. Foi suposto, em tal campanha, que o indiví-duo, a fim de se proteger contra HIV/Aids, tinha de conseguir co-nhecimento técnico. O que foi totalmente ignorado foi que existia um conhecimento popular presente, que, havia representações de HIV/Aids que eram parte da cultura e que, por isso, eram já parte da mente do individuo; que esse conhecimento popular e essas representações estavam ancorados em pecado, doenças sexual-mente transmissíveis, obscenidade e muitos outros fenômenos indesejáveis. Essas representações tinham uma influência mais forte nas atividades das pessoas, que um conhecimento neutro e objetivo sobre vírus, antivírus, agulhas infectadas e camisinhas que lhes eram dadas, através de campanhas de saúde. As repre-sentações de HIV/Aids eram ameaçadoras ao self fazer algo que pudesse ser uma ação preventiva com respeito à aquisição à transmissão de HIV poderia, ao mesmo tempo, servir como uma prova, a outros, que o individuo, de fato, poderia já estar infectado. Isso, por sua vez, pode levar à rejeição desse indivíduo pelos ou-tros. Em geral, o que essas campanhas deveriam ter feito, era levar a sério o conhecimento representacional popular e social, sua ex-pressão lingüística e seu raciocínio individual. Você tem uma vi são diferente sobre esse assunto?

SM - Não, eu não vejo diferente. Quando a epidemia da Aids começou entre grupos de homossexuais, eu estava nos EE.UU. Lembro que a representação social e a linguagem foram elabora-das ao redor da denominação de “câncer gay”. Isso permitiu aos grupos em questão falar, partilhar seu conhecimento, familiarizar-se com essa “estranha” doença e agir coletivamente. A pesquisa médica foi provocada por esse conhecimento e linguagem popula-res. E a escolha de um nome “científico” envolveu negociações entre diferentes grupos. Escolheram um acrônimo “neutro”, sem nenhuma referência aos homossexuais, para evitar a dissemina-ção de preconceitos existentes. Esse acrõnimo se transformou em um nome próprio e se tornou o símbolo de uma nova representa-ção social, desenvolvida no curso da comunicação, que misturou conhecimentos científicos e populares. Nos seminários que dei

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mais tarde na New School, meus estudantes e eu descobrimos que os elementos das representações novas e antigas se sobrepunham.

1.2. Representações sociais e a teoria sócio-psicológica do co-nhecimento

IM - Desse modo, se entendi você corretamente, a fim de de-senvolver uma psicologia social do conhecimento, necessita-se começar com questões referentes ao conhecimento popular e co-nhecimento cultural, dos quais fazem parte as representações so-ciais e, através deles, elas se desenvolvem. Estuda-se sua génese através da conversação, propaganda, mídia e outros meios de co-municação baseados na linguagem. As representações estão inse-ridas nos sentidos das palavras e, por conseguinte, são recicladas e perpetuadas através do discurso público. E, é claro, você men-cionou antes que a cultura desempenha um papel importante na formação das representações sociais.

SM - Quando eu lhe falei sobre ideologia e ciência, você lem-bra que localizei o senso comum como um terceiro gênero de co-nhecimento, diferente dos outros dois. Ele não pode ser reduzido à ideologia, como algumas pessoas gostariam de fazer. E por isso que, quando se estuda o senso comum, o conhecimento popular, nós estamos estudando algo que liga sociedade, ou individuos, a sua cultura, sua linguagem, seu mundo familiar. Isso pode lhe fa-zer rir, mas para mim essa autonomia do senso comum como um terceiro gênero de conhecimento, por assim dizer, a necessidade do senso comum, foi provada na luta dos dissidentes russos glas-nost, pelo direito de expressar o que cada um podia ver e conhe-cer, por uma linguagem comum, em síntese, por um senso comum, em uma sociedade que se proclamou ideológica e cientifica Glas-nost, na verdade, foi uma das reformas que permitiu à sociedade civil se manifestar, com numerosos grupos e movimentos. Nosso diálogo é descontinuo, como todo diálogo deve ser. Na minha ida-de da inocência, tinha uma preocupação: cada ciência um “objeto”, um “fenômeno”, uma “matéria-prima” que lhe é própria e que ela estuda através de sua história. E que dizer da psicologia social? Pensei que o senso comum era o “fenómeno”, ou “matéria-prima” da psicologia social, do mesmo modo que o é para a antropologia, os sonhos para a psicanálise, ou o mercado para a economia. E os estudantes compreenderam o que quando lhes falava que nós temos tantas ciências populares, psicologia popular, física popu-lar, medicina popular, mágica popular e assim por diante e todas

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elas oferecem materiais maravilhosos para uma rica exploração de nossa cultura, nossas maneiras pensar e falar, nossos modos de nos relacionar e de nos comportar em grupos. É exatamente o estudo desse tipo de material pode ser a fonte de teorias mais gerais e complexas, que podem explicar a estrutura e a gênese de nosso conhecimento e de nossa ação em comum. Esse material poderia interessar também a outras ciências humanas, como a sociologia, a economia ou a história. Você vê que o que eu tinha em mente era uma psicologia social do conhecimento como o cen-tro de nossa ciência.

1.3. Conhecimento científico e conhecimento do senso comum

IM- Você disse antes que os marxistas não pensavam que fu-são do conhecimento científico iria aumentar o nível de conhe-cimento público e que, além disso, ligar o senso comum à irra-cionalidade foi a visão partilhada por alguns outros cientistas sociais. Em contraste, seu objetivo era reabilitar o pensamento comum e o conhecimento comum e você assumia que o conhe-cimento comum é algo bastante moderno, algo que provem da ciência.

Gostaria de fazer algumas associações. A primeira, diz res-peito ao conhecimento científico e senso comum. Há algum tem-po, você fez uma distinção entre dois universos: reificado e con-sensual. O conhecimento científico pertence ao universo reifica-do, enquanto o conhecimento do senso comum pertence ao uni-verso consensual. Esses dois tipos de u niversos diferem um do outro no sentido que o primeiro tenta estabelecer explicações do mundo que são imparciais e independentes das pessoas, enquan-to que o último prospera através da negociação e da aceitação mútua. Mas, de maneira igualmente importante, eles diferem com respeito ao tipo de pensamento e métodos de raciocínio. O primeiro procede, sistematicamente, da premissa para a conclu-são e ele se apóia naquilo que ele considera puros fatos. O méto-do do segundo não é tão sistemático; ele se apóia na memória coletiva, no consenso. Mas o que deve ser enfatizado é que am-bos os modos de pensar estão baseados na razão. O pensamento do senso comum é razoável, racional e sensível - para empregar os termos de Alfred Schütz. Melhor ainda, para citar seu próprio

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trabalho recente, “todas as representações são racionais, mesmo se, para parafrasear Orwell, algumas pareçam mais racionais que outras” (Moscovici, 1998: 416; ver também capítulo 6). Você mesmo queria reabilitar o senso comum porque estava conven-cido de que os marxistas e outros estavam errados quando eles pensavam que o pensamento comum é irracional.

Queria, contudo, levantar esse ponto especifico aqui porque, apesar do já acentuado por você repetidamente, penso que o ponto que diz respeito à natureza racional das representações sociais é, muitas vezes, mal entendido, até mesmo por estudiosos das representações sociais. É fácil fazer um atalho e dizer que a ciência é racional, porque ela se apoia na razão e porque as re-presentações sociais se apóiam no consenso, elas estão baseadas em um pensamento irracional. Em outras palavras, é fácil tomar “raciocínio” como tendo apenas um sentido. Essa é outra razão porque penso que é importante enfatizar a natureza polifásica do conhecimento e do raciocínio. Raciocínio, no pensamento comum e no senso comum, por um lado e em pensamento cientifico e conhecimento cientifico, por outro lado, mostram essa natureza polifásica.

No meu ponto de vista, a afirmação concernente à natureza “razoável” do senso comum é a principal diferença entre o ponto de vista das representações sociais e, digamos, da visão de Lewis Wolpert em The Unnatural Nature of Science (1992), que Rob Farr discute em seu artigo sobre “Senso comum, ciência e repre-sentações sociais” (Farr, 1993).

Mas continuemos com a questão referente à ciência e senso comum. Em contraste com os marxistas e com Wolpert, há den-tistas sociais que tomam- ou tomaram - o conhecimento do senso comum mais a sério e, de fato, viram um caminho direto do sen-so comum até à ciência Você escreveu sobre o caminho da ciên-cia ao senso comum em seu trabalho sobre “O fenômeno das re-presentações sociais” (Moscovici, 1994a; ver capitulo 1 deste livro) Você disse algo assim: antes, a ciência estava baseada no senso comum e ela tornou o senso comum menos comum. Em contraste hoje o senso comum é ciência tornada comum. Essa é uma formulação provocativa e por isso nós devemos discuti-la por um momento. Há - ao menos houve - cientistas sociais que subscreveram a primeira parte da afirmação, isto é, do senso comum para ciência. O conhecimento popular, conhecimento cultural e se comum e sua relação com o conhecimento científico

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foram dados muito extensivamente por antropólogos, sociólogos e, a certo ponto, por psicólogos sociais. Poderíamos pensar em pessoas como Schütz, Heider, Gadamer, Garfinkel e Bartlett.

Por exemplo, Schatz, em seus escritos fenomenológicos, fal-ta uma distinção entre senso comum e conhecimento cientifico referindo-se a Whithead, ele mostra que a ciência tem dois obje-tivos: primeiro, produzir uma teoria que esteja de acordo com a experiência e, segundo, explicar conceitos do senso comum so-bre a natureza. A explicação consiste na preservação desses con-ceitos do senso comum em uma teoria científica.

Para Schutz, o conhecimento do senso comum se apóia no toque de conhecimento que é socialmente produzido e aprovado. Ele começa de uma pressuposição da reciprocidade de perspec-tivas. Em contraste, a ciência começa de um corpus de evidêndia de regras de procedimento, métodos científicos, etc. A posição de Heider, com respeito ao senso comum, eu a vejo como sendo muito semelhante à de Schütz. Ele também afirma que o conhe-cimento do senso comum deve ser levado a sério e que ele é a base do conhecimento cientifico. Ele se refere a Whitehead pela mesma razão que Schütz. Para Schütz, o senso comum e o racio-cínio científico são duas maneiras paralelas de lidar com a reali-dade social. Ambos correspondem à experiência, em particular à observação física. Schatz considera o senso comum- como você mesmo já comentou antes - como algo que, muitas vezes, se su-põe proveniente dos sentidos, do conhecimento sensorial. O ca-minho do senso comum até a ciência é, falando estritamente, racional. Schütz sempre se referiu à racionalidade da ação e, ba-sicamente, o que ele queria significar era uma correspondência entre percepção dos sentidos, observação, etc., de um lado e a realidade, de outro. De maneira semelhante, Whitehead se refe-riu à física, à observação física - como fez Heider, quando ele falou sobre senso comum.

Por conseguinte, ambas as posições possuem seus advoga -dos, uma vendo o conhecimento cientifico comum como uma continuação do senso comum e a outra vendo o senso comum e o conhecimento científico como totalmente separados e opostos entre si. Deveríamos, portanto, esclarecer as semelhanças e dife-renças entre essas duas posições e a sua. Para mim, a questão é interessante, não apenas por razões históricas, mas, sobretudo, por razões teóricas.

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SM - Para responder a seus comentários sobre ciência e sen-so comum, seria obrigado a escrever um livro inteiro. Você me pede que me defina correlação a outros autores e a outras teori-as. Antes de fazer isso, eu tenho de lhe dizer o que eu mesmo penso, como certas idéias nasceram e tomaram lugar, pois a maioria do meu trabalho foi por caminhos solitários. Eu não es-tava muito interessado em saber o que outras pessoas pensa-vam, pois já tinha suficiente trabalho em saber quais eram meus próprios pensamentos. Por isso, para reassumir o fio de minha história de vida, parecia-me que tinha dado um grande passo a frente, que conhecia qual era o campo da psicologia social, quan-do supus que sua “matéria-prima” era o senso comum. Experien-ciei esse passo à frente como uma descoberta intelectual e uma inspiração prática, porque há algo poético sobre conhecimento popular, do mesmo modo que há sobre sonhos e mitos.

Ao mesmo tempo, na medida em que trabalhava entusiasti-camente naquilo que seria a teoria das representações sociais, participei de um seminário sobre a história e a filosofia da ciên-cia, sob a orientação do Professor Alexandre Koyré. Como você sabe, a primeira vez que fui aos EE.UU., fui não como psicólogo social, mas como um historiador da ciência. Tinha uma bolsa de estudos na Institute for Advanced Studies, em Princeton. Dei minhas primei- ras aulas em inglês em Yale e Harvard sobre tó-picos relacionados à revolução cientifica e encontrei Thomas Kuhn que, de certo modo, foi discípulo de Koyré. Koyré foi um mestre magnífico e seus seminários sobre Galileu, Kepler, etc. foram extraordinários. De qualquer modo, eles me permitiram ter uma percepção mais profundas noções de senso comum, me permitiram ver como e por que senso comum pode ser coerente e possui sua própria lógica diferindo, ao mesmo tempo, da ciên-cia.

Do ponto de vista histórico, a física de Aristóteles é uma fisi-ca do senso comum. Ela foi elaborada através da sistematização algumas idéias correntes e está fundamentada nas qualidades sensoriais - as famosas qualidades secundárias - dos objetos ob-servação direta dos fenômenos e em uma explicação teleológica, em causas finais. Ela não é, contudo, nem incoerente, nem mági-ca, nem é ela um amontoado de ecos, como pensavam as pessoas antes que Duhem ou Koyré mostraram o contrário. A ciência de Galileu ou cartesiana é diferente, porque ela elimina as proprie-dades sensoriais dos objetos, introduz o método experimental

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estudo dos fenômenos e por isso formaliza o raciocínio teórico Ao mesmo tempo, ela substitui uma explicação feita com causas finais por uma explicação com causas eficientes. Tudo isso é mui-to conhecido, precisa, contudo, ser rele mbrado, porque essa foi a razão por que o senso comum se mostrou, para mim, como uma forma de conhecimento sistemático, coerente. Isso também me levou sob a recomendação de Claude Faucheux, ao maravilhoso artigo de Kurt Lewin sobre a passagem da ciência aristotélica para a ciência de Galileu, que ele queria empreender na psicolo-gia social. Esse é um artigo que todo estudante deveria ler ainda hoje. Apesar disso, foi durante esses seminários sobre a história da ciência a especificidade do senso comum em relação à ciência assuma forma mais precisa em minha mente, ao mesmo tempo em que me convenci de seu respectivo valor e coerência. Quero também insistir em outra diferença que parece importante, para mim. Em contraste com o pensamento científico, que de maneira ideal pode ser compreendido independentemente de seu conte-údo, de uma maneira formal, lógico-matemática, o pensamento espontâneo, ou cotidiano, não pode ser dividido em dois; o con-teúdo infecta o raciocínio, tornando-o plausível, e, sem isso, a forma iria parecer incompreensível, sem sentido. Em outras pa-lavras, a estrutura e a dinâmica do pensamento não podem ser compreendidas quando se parte apenas dos processos cogniti-vos, pois eles não podem ser separados do que é, por assim dizer, a substância do conhecimento concreto. Ao trabalhar com a filo-sofia e a história da ciência, adquiri uma visão mais rica e mais “realista” do que é a vida do conhecimento. Kepler é, certamente, o primeiro que colocou a lei matemática do movimento dos pla-netas, mas ele também pensava que esses planetas eram movi-dos por forças vivas. A ação newtoniana à distância é, sem dúvi-da, familiar e fundamental, do ponto de vista científico. As pesso-as, contudo, têm alguma dificuldade em aceitá-la - como pode um corpo agir onde ele não está? -, pois ela se apóia sempre em uma representação mágica de força.

Vamos adiante. Se há um sistema de conhecimento, é neces -sário fazer a pergunta: quem é o sujeito conhecedor, como deve-mos imaginá-lo nessa prática corrente? Por exemplo, na psicolo-gia social recente, ele foi visto como um cientista leigo, ou um aprendiz, comparado a um cientista sofisticado, ou um especia-lista. Quando comecei minha pesquisa, na década de 195o, en-frentei uma oposição entre o pesquisador profissional e o dile-

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tante, o cientista e o filósofo amador, o primeiro fazendo pergun-tas precisas sobre os fenômenos, enquanto que o segundo se fazia perguntas gerais, até mesmo sobre fenômenos especí ficos. Em vez de sistematizar, o amador coloca os itens de conhecimen-to e informação que ele coleta em seus arquivos mentais. Desse modo ele extrai elementos heterócl itos da ciência e os coloca em um conjunto significante, que possui valor prático para ele. No senso comum, predominam elementos “realísticos” e materialis-ticos, do contexto imediato. Eles incluem interrogações especula-tivas, metafísicas, tais como “De onde nós viemos? Quem somos nós? Para onde vamos? Qual é a origem do universo e do ser hu-mano?” e assim por diante. Eu escolho Bouvard e Pé cuchet, fa-mosos heróis de Gustave Flaubert, que estão envolvidos em uma caminhada prática e teórica através da agricultura, história, química, arqueologia, medicina, como protótipos do sujeito do senso comum. Como qualquer um de nós, eles caminham através dos campos da ciência, como andantes no tempo e conhecimen-to, arquivando noções e experimentos, tentando reconstruir uma visão global. Eles reconstroem um mundo comum, baseado em idees regues (idéias recebidas), não em ides fausses (idéias falsas) inspiradas por ideias científicas. Em sua novela inacabada, Flau-bert nos dá uma visão da ciência popular como o século dezeno-ve a propagou, cheia de entusiasmo e chavões tediosos. James Joyce buscou alguma inspiração nisso: em certo sentido, Bloom é o herdeiro de Bouvard e Péicuchet em nosso século.

Finalmente, sugiro, com cuidado, a hipótese da polifasia cognitiva. Basicamente, penso que, do mesmo modo que a lin-guagem é polissemica, assim também o conhecimento é polifási-co. Isso significa, em primeiro lugar, que as pessoas são capazes, de fato de usar diferentes modos de pensamento e diferentes representações, de acordo com o grupo especifico ao qual pe r-tencem, ao contexto em que estão no momento, etc. Não é neces-sário investigar muito para perceber que até mesmo cientistas profissionais não estão totalmente interessados no pensamento cientifico. Muitos deles possuem um credo religioso, alguns são racistas, ou consultam seus “astros”, têm um fetiche, amaldiçoam seu aparato experimental quando se recusa a trabalhar, o que não é, necessariamente, muito racional. E como mostraram mui-to bem alguns estudos, quando solicitados a explicar alguns fe-nômenos comuns, eles fazem uso até mesmo da física aristotéli-ca, e da física de Galileu que eles aprenderam na escola e na qual

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confiam. Se essas diferentes, até mesmo conflitantes, formas de pensamento não coexistem em suas mentes, elas não seriam m humanas, eu suponho.

O que interessa agora não são essas observações gerais, mas o duplo significado de minha hipótese. Primeiro, as pessoas não são monofásicas, capazes de uma única maneira privilegiada de pensamento, sendo os outros caminhos acessórios, perniciosos ou, mesmo, sobreviventes dos anteriores. Segundo, na nossa teo-ria psicológica, supomos, como fez Augusto Comte, que finalmen-te uma única forma de pensamento, isto é, a ciência, irá pre vale-cer e o resto irá mover. Essa é a lei do progresso e da racionali-zação. Mas, não há razão de por que, no futuro, apenas uma for-ma de pensamento “puro” deva predominar. sendo o mythos de-finitivamente substituído pelo logos, pois, em toda cultura co-nhecida, várias formas de pensamento coexistem. Em síntese, a polifasia cognitiva, a diversidade de formas de pensamento, é a regra, não a exceção. Pode-se, por exemplo, observar hierarquias parciais e temporais. Mas seria uma generalização arriscada, que a ciência não deve favorecer, conferir privilégio excl usivo a esse ou aquele gênero de conhecimento, ou forma de pensamento, que será proclamado como o primeiro e o último. Partindo dessa hipótese, podemos colocar as questões sociopsicológicas genuí-nas, das transformações dos sistemas de conhecimento, das for-mas de pensamento ou discursos, dentro do contexto social. A partir dai, podemos compreender como é possível que, não ape-nas em sociedades diferentes, mas também dentro dos mesmos indivíduos, coexistam maneiras incompatíveis de pensamento e representações. É verdade que essa é, por agora, uma hipótese muito geral e também uma hipótese que é difícil de admitir. Mas, ao mesmo tempo penso que não se pode questionar, tanto sua relevância concreta, como sua relevância social, em nosso tempo pós-moderno. Ao menos para mim, ela foi uma intuição útil. A-qui, novamente, o senso comum aparece como o lugar privilegia-do, em que tais questões podem ser colocadas e, conforme o ca-so, respostas podem ser conseguidas.

Peço desculpas por falar tão longamente, mas se for assim dificilmente poderia justificar o que virá a seguir, o esclareci-mento da racionalidade, que você está esperando. Você está me colocando em uma posição delicada. O progresso das ciências humanas separou-as da filosofia e impulsionou os pesquisadores para gavetas de disciplinas especializadas. Quanto mais as pes-

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soas progridem em seu conhecimento, mais elas perdem de vista a totalidade dos fenômenos e de si mesmas. Na minha juventude, dizer de um pesquisador que ele era um filósofo, ou que estava interessado na filosofia, era quase que um insulto. Agora, é o contrário, um pesquisador tem de ser um filosofo e apelar para a filosofia como uma autoridade. Mas eu penso que seria ingenui-dade não reconhecer que penetrar no mundo dos filósofos exige alguma intuição e uma preparação especial. Se não for assim, alguém pode correr o risco de se tornar, por sua vez, uma espé-cie de Bouvard ou Pécuchet, vagando de um filósofo a outro, res-pigando aqui e ali uma palavra-chave, ou metáfora, sem realmen-te compreender seu sentido profundo. É por isso que, quando expresso algumas opiniões filo sóficas, apenas o faço com o sorri-so de alguém que não nutre ilusões sobre o que ele conhece, ou não conhece.

Isso é para dizer que a maneira como concebo o senso co-mum provém principalmente de filósofos da ciência como Me-yerson, Frank, Mach, Peirce, Duhem, Bachelard e outros, com cujo trabalho me familiarizei quando trabalhava nesse campo. Não li Heider, até que estive em Princeton em 1962. Gostei mui-to de seu livro como um livro literário, mais do que um livro de psicologia social - isso mostra como eu era ignorante. Do mesmo modo, eu não li Schütz, até que fosse professor na New School, na década de 1980- Sua visão de senso comum como um tipo de conhecimento direto e sensorial a la Mach, não era minha visão, embora seu enfoque fosse realmente sutil e rico. Ofereci diversos cursos integrando sua análise do mundo da vida. Contudo, o es-pírito da fenomenologia não me capturou. É claro que eu li Krisis, de Husserl, por razões nostálgicas. Era difícil, para mim, aceitar suas idéias de que as raízes da crise dos tempos modernos de-vem ser encontradas em Galileu e Descartes. Ou que sua solução está na redescoberta do mundo concreto da v ida, o Lebenswelt, como ele disse. Essa é uma frase linda, quase mágica, mas ela não é suficiente para indicar o lugar onde as pessoas podem encon-trar abrigo das forças da tecnologia, da política ou da história, especialmente quando se sabe que ele escreveu em 1935, na

véspera do triunfo do fascismo.

Apesar disso, quando a Schutz, não me tornei um fanático de tais noções como “aceito sem discussão”, ou tipicalidade, etc. Elas pressupõem um ordenamento e uma preditibilidade das coisas humanas, uma solidez do mundo da vida, nas quais eu não

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acredito. Nossas relações intersubjetivas e decisões pessoais são bastante imprevisíveis e improvisadas. Como disse Napoleão: “A gente improvisa e então se vê”. Os mundos da vida, do mesmo modo que quaisquer outros mundos, são seqüências de even tos mais ou menos regulares, surpresas e rotinas, no meio das as pes-soas conseguem viver junto. Essa é uma mágica social um lado, tudo o que Schütz escreveu sobre a anomie, sobre a distribuição do conhecimento, sobre themata, “descongelou” mui idéias que tinha antes. Veja, por exemplo, a anomia. Ela é, primeiro, uma perda de nome, significando que o que originalmente era uma possessão individual, tomou-se uma possessão comum. Muitas pessoas falam sobre e empregam noções que pertencem à teo ria de Darwin, ou à psicanálise, sem mesmo conh ecer os nomes de darwinismo ou psicanálise, Darwin ou Freud. Em segundo lugar, a anemia é, ela própria, um nome. Ela categoriza um tipo de pes-soa, ou conhecimento, em oposição a uma pessoa, ou conheci-mento, particular que tem um nome. O senso comum é categori-zado como um tipo anônimo de conhecimento, em oposição à ciência, ou filosofia, que são consideradas não-anônimas. Essas são categorias muito importantes de nossa cultura, pois aquilo que tem um nome é considerado duradouro, memorável, de grande valor, enquanto que aquilo que não tem nome, é efémero, transitório, perecível. Não há dúvida que a paixão pelo nome é a mais forte das paixões, sobre a qual ha páginas a dmiráveis no Symposium, de Platão.

Retornando à fenomenologia, você não a acha muito estáti-ca? De qualquer modo, o que eu tentei elucidar, naquele tempo, foi a gênese do senso comum, a transformação de formas de pen-samento. Enquanto que em minha pesquisa sobre a história da ciência, estudei com Koyre a transformação da fisica do senso comum aristotélico, para a mecânica científica de Galileu, em minha pesquisa sobre psicanálise eu estava interessado com a transforma-cão contrária. Sempre que falei sobre representações sociais, posteriormente, enfoquei sua gênese, enfoquei as repre-sentações se construindo, não como algo já feito. Eu até acres-centaria que é essencial para nós estudá-las na sua construção, do ponto de vista de sua história e desenvolvimento. É evidente que as observações de nossa consciência e as representações são elaboradas durante nossas comunicações. A “paixão para conhe-cer”, sobre o que Husserl escreveu e a paixão para a comunica-ção, vão de mãos dadas. E por isso que escrevi que “nós pensa-

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mos com nossas bocas”, acentuando o papel especifico da con-versação na gênese e partilha de nossas representações comuns.

Estou consciente de que lhe devo uma resposta sobre a ra-cionalidade, ou irracionalidade, dosenso comum. Na verdade, pede-se fazer essa pergunta na esteira de toda pesquisa sobre distorções cognitivas. O que fez os psicólogos se interessarem pelo senso comum foi o trabalho de Heider, que abriu um campo de investigação sobre o pensamento das pessoas leigas e das pessoas na vida cotidiana. Na introdução de seu livro, Heider (1958) lembra o leitor que não deve fazer perguntas sobre a verdade ou falsidade de noções do senso comum. Isso foi negli-genciado, a tal ponto que os psicólogos sociais começaram a se perguntar, não como e por que as pessoas pensam corretamente, em seus contextos familiares, mas como e por que elas pensam incorretamente. Por conseguinte, na década de 198O, nós expe-rienciamos esse episódio marcante, embora curioso, no qual se mostrava como pessoas fazem erros de atribuição fundamentais, como coletam informações de maneira deficiente, como menos-prezam informação bem fundamenta da, como possuem habili-dades limitadas no raciocinio dedutivo e assim por diante. Sob todos os aspetos, isso provou nossa irracio nalidade na vida coti-diana, por um lado e, por outro, a inutilidade de estudar o senso comum, que desapareceu do horizonte de pes quisa. Pela mesma razão, os motivos por que compo rtamentalistas disseram que não devemos nos interessar com a mente, foram confirmados, como foram também os argumentos dos filósofos que afirmavam que o senso comum tem de ser banido do estudo do pensamento, em síntese, que o ser humano não tem mente, ape nas um cére-bro. Eu chamo esse episódio de curioso, porque ele reproduz, exceto no referente aos métodos, a concepção de Frazer do pen-samento primitivo e os primitivos como noviços ineptos. Quero mostrar, com isso, o renascimento da psicologia individualista dos antropólogos ingleses, sua degradação do pen samento popu-lar e do pensamento de outras culturas. Foi Lévy-Bruhl quem mostrou os erros das concepções de Tylor e Fiazer e revelou a coerência e singularidade da assim chamada men talidade primi-tiva e maneiras comuns de pensar. Ele mostrou que as pessoas não são necessariamente cientistas despreparados, mas podem ser bons místicos ou filósofos da vida cotidiana. É no solo do tra-balho de Lévy-Bruhl que a psicologia do desenvolvimento de Vygotsky e Piaget cresceram. Esse é um acontecimento excep-

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cional, porque as criticas foram poucas e raramente chegaram até a raiz da questão.

Mas, devemos nós, de fato, considerar a distorção como um desvio do pensamento, como um sinal de erro, uma falta de lógi-ca? O grande lingüista Emile Benveniste mostrou que, no estudo das significações gramaticais ou léxicas, deve-se evitar empregar noções polares de regularidade, ou desvio, em um sentido estri-to. Aqueles que geralmente esquecem a estrutura hierárquica da linguagem, a enterram na noção de desvio. Um elemento secun-dário, é uma coisa, enquanto um elemento desviante é outra coi-sa completamente diferente. Tomemos, por exemplo, o erro fun-damental de atribuição, cujo elemento principal todavia perma-nece na possibilidade de pensar que deve existir uma ligação entre um efeito e uma causa. Esse erro consiste, como todos sa-bem, em atribuir a causa de algum comportamento, ou aconte-cimento, a uma pessoa, em vez de atribui-la a uma situação. O leigo comete o erro, enquanto o especialista o evita, fornecendo, por isso, uma resposta correta. Mas onde está a difere nça entre o primeiro e o último? O leigo ignora a categoria de causalidade? É ele incapaz de raciocinio causal, enquanto que o especialista, conhecendo essa categoria, é, por isso, capaz de raciocinio cau-sal?

Esse, evidentemente, não é o caso. Ambos são capazes de f azer atribuições, de dar explicações causais. Desse modo, a única diferença está no fato de que um prefere explicações pessoais, enquanto que o outro prefere explicações situacionais, por moti-vos que não ficaram claros. Portanto, eles não aplicam a catego-ria de causalidade do mesmo modo; e não há aqui um erro de raciocinio maior que o que existe quando se compara a astrono-mia ptolemaica com a astronomia copernicana, pois ambos estão fundamentados em uma hipótese distinta sobre o movimento dos planetas. Mas não quero insistir no fato óbvio que a questão da racionalidade não pode ser reduzida a uma questão de pro-cesso e lógica, sem levar em consideração o conteúdo e finalida-de do pensamento comum. Ninguém assume uma mentalidade conspiratória como o cume da ciência ou razão. Mas tomando em consideração sua amplitude, freqüência e importãncia na vida social, seria ridículo explicá-la apenas como uma distorção, ou uma falta de lógica, pois ela implica toda uma visão sobre o ser humano e o mundo. Enumerar suas irracionalidades é uma coisa, compreender o que as pessoas fazem com ela é uma questão

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totalmente diferente. Muitos estudos sobre a história das artes mostram os feitos criativos que os pintores conseguiram, porque nós estamos sujeitos a ilusões perceptuais, ou o que os novelis-tas conseguiram, devido a nossas ilusões cognitivas. Somente dentro da realidade histórica e cultural as relações de razão e não-razão podem ser plenamente avaliadas e compreendidas.

A hipótese da polifasia cognitiva assume que nossa tendên-cia em empregar maneiras de pensar diversas e até mesmo opos-tas - tais como as cientificas e religiosas, metafóricas e lógicas e assim por diante - é uma situação normal na vida cotidiana e na comunicação. Conseqüentemente, a unidade lógica ou cognitiva de nossa vida mental, que é assumida como dada por muitos psicólogos, é um desiderato, não um fato. Podemos supor que há três elementos - contexto, normas e fins - que regulam a escolha que fazem de uma forma de pensamento, com preferência a ou-tra. E talvez nós a qualifiquemos como racional. Para começar, é óbvio que alguma informação particular pode ser identificada e podemos lidar com ela, somente dentro de um contexto. Por e-xemplo, um acontecimento não tem apenas uma causa, mas um número infinito de causas, que dependem da multiplicidade de outros eventos articulando esse contexto e também da represen-tação que nós temos dele. Pense na famosa maçã de Newton. A queda de uma maçã, como um simples fruto, pode bem ter como sua causa o peso, a, maturação do fruto, que depende do sol che-gando ao pomar, da: variedade da maçã, mas também das ci r-cunstâncias atmosféricas, de um forte vento soprando naquele dia. Apresentando sua representação mecânica, Newton olha para a maçã caindo dentro de um contexto do qual ele exclui a maturação do fruto, o vento etc: da cadeia causal, de modo a re-ter apenas a direção do movimento e o peso do fruto. Por isso, a maneira como nós lidamos com qualquer informação e a racio-nalidade de nosso lidar com ela é uma questão de contexto e representação explicando o que vai ser tomado como uma causa, ou como um efeito.

As normas definem o que é considerado como pensamento e conhecimento racionais na cultura ocidental. Desde os gregos, a norma dominante foi o princípio de não-contradição, que se tor-nou, por assim dizer, uma categoria imperativa. Ela é tanto um imperativo jurídico, como retórico, dizendo -nos que não deve-mos nos contradizer. Ao transgredir essa norma, somos qualifi-cados como irracionais. O pensamento primitivo foi definido, no

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século dezenove, com fundamento na suposição de que ele transgride o princípio da não-contradição, ou as leis da associa-ção. Pela metade do século passado, outra norma começou a e-xistir: o princípio da probabilidade. A transgressão desse princi-pio foi, desde então; considerado um sinal de distorção e irracio-nalidade, embora o pr& prio Einstein duvidou disso, dizendo “Deus não joga dados.”

As finalidades da atividade cognitiva podem ser múltiplas, indo desde a procura da verdade, a persuasão e exercido do po-der, até a sedução e o prazer de viver. Por conseguinte, o conhe-cimento toma uma forma diferente, de acordo com o fim especi-fico que alguém luta por conseguir. Pode ser uma finalidade cien-tífica, como quando alguém quer confirmar, ou falsificar, uma idéia arrojada, ou uma idéia ideológica, como quando alguém tenta convencer ou exercer poder. Pode ser também uma finali-dade “popular”, ter o prazer de pensar ou falar, ou desempenhar espontaneamente determinada tarefa. É claro que uma pessoa, ou um grupo, não pode conseguir todas essas finalidades dife-rentes e opostas, através da mesma uni dade cognitiva. Muitos efeitos cômicos surgem quando uma pessoa emprega uma forma inadequada de pensar ou falar. Por exemplo, um cientista ten-tando seduzir alguém através de um raciocínio ci entifico ou re-tórico é tão ridiculo como Dom Quixote dirigindo -se a uma mu-lher camponesa, como se ela fosse uma dama. Penetrar na racio-nalidade do pensamento das pessoas, ou do senso comum, não é uma tarefa fácil. Pense na questão do método. Ao estudar o pen-samento cientifico, nós analisamos a produção, teorias e experi-mentos dos pesquisadores e seus escritos. Ou nós observamos como eles trabalham nos laboratórios e assim por diante. Nin-guém nunca sugeriu que o conhecimento científico deveria ser estudado escolhendo uma amostra de pessoas que receberam o prêmio Nobel e solicitando-lhes que resolvam alguns problemas implicando silogismos ou inferências estatísticas, mas isso é o que os psicólo: gos fazem quando estudam o pensamento do sen-so comum e o conhecimento comum. Ao invés disso, os psicólo-gos deveriam estudar o conhecimento do senso comum a partir de suas produções, inco rporadas em textos, linguagem, folclore, ou mesmo literatura. Isso foi o que Heider fez. Se você contrasta sua maneira de estudar psicologia popular com a maneira que se tomou dominante posteriormente, com a psicologia social expe-rimental empregando, por assim dizer, aprendizes, espero que

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você irá compreender o que eu estou tenta ndo dizer. Na minha opinião, a maioria desses experimentos não tem a ver como pen-samento do senso comum. Isso não significa que eles não são interessantes para o estudo do processa mento da informação. Se você projeta isso para uma população inteira, que não possui mais que 5 ou 1O por cento de especialistas, então você mesmo pode tirar a conclusão sobre a finalidade social de tais resulta-dos.

Nunca devemos esquecer que nós adquirimos a marca do conhecimento do senso comum cedo na infância, quando nós começamos a nos relacionar, comunicar e falar. A maioria das pessoas fala muito bem sua língua materna, mesmo que elas não tenham nenhum estudo. O conhecimento do senso comum, por isso, não pode ser tão distorcido e errado, como algumas vezes se supôs. Ele serve muito bem a seus propósitos na vida diária e chegou mesmo a encantar e a tornar a vida digna de ser vivida por séculos, como ele me serviu, durante minha infância na zona rural, em uma cultura popular, maravilhosa, poética, apesar da dificuldade e da pobreza em muitos lares. Penso em um quadro de Chagall, Village et violiniste; ele pode lhe dar uma idéia da pequena aldeia em que cresci.

IM - Penso que a questão colocada por você sobre senso comum e distorções pode ser feita não apenas com respeito à psicologia social, mas também com respeito à psicologia cogniti-va. em um sentido mais geral. Quando vim à Inglaterra, em 1967, fiquei admirada ao descobrir que os psicólogos ali não est uda-vam o pensamento como um processo social, como era o caso na psicologia marxista com a qual eu estava acostumada na Checos-lováquia. Tenho em mente pessoas como Rubinstein, Vygotsky, Leontiev e assim diante. Ao invés disso, o pensamento e a solu-ção de problemas eram investigados como processamento da informação e como processo onde o foco estava nos erros lógicos e nas distorções. Você apresenta silogismos ou tarefas lógicas baseadas em um cálculo proposicional às pessoas e você fica interessado em descobrie que tipos de erros eles podem fazer. Havia o pressuposto de existe apenas um modo de codificar cor-retamente tais tarefas lógicas. Como resultado, os “erros” dos sujeitos eram atribuídos ao conteúdo da tarefa, à motivação dos sujeitos, ao esquema mental e a vários outros fatores. Escrevi sobre isso muito extensamente em Paradigms, thought and lan-guage (Marková, 1982). De fato, foi grande parte essa a razão por

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que, em vez de continuar, na Inglaterra, como psicólogo cogniti-vista - esse era o “rótulo” na Checoslováquia -, quis tornar-me um psicólogo social, para estudar o pensamento e a linguagem, do ponto de vista social.

Continuando com a mesma questão, gostaria de pe rguntar sobre seus pontos de vista a respeito de Bartlett, a quem você se refere muitas vezes em seu trabalho. Que papel, você diria de-sempenhou ele no desenvolvimento de suas idéias sobre repre-sentações sociais?

SM - Gostei do trabalho de Frederick Bartlett, que encontrei quando fui ao Congresso Internacional de Psicologia, em Bruxe-las, na década de 1950. Ele se vestia de maneira muito engraça-da, mas era um homem agradável, gentil e eu estava em um pai-nel sobre escalas, com Louis Guttman, no qual apresentei um trabalho. Bartlett era uma pessoa bastante reservada, mas tive uma conversa agradável com ele. Ele era mais “social” com res-peito ao pensar, que muitos dos psicólogos sociais hoje. Durante nossa conversa, ele fez um comentário sobre Lévy-Bruhl, dizen-do que era errado comparar o homem primitivo com Kant. Des-cobri depois que ele já havia feito esse comentário na década de 192O, em seu livro sobre cultura primitiva (cf. Bartlett, 1923: 289). Mas esse comentário me impressionou muito, porque pen-sei que ele estava de acordo com meu próprio método científico. Esse encontro me dispôs a ler seu livro Remembering (Bartlett, 1932). Nesse tempo, estava trabalhando na teoria das represen-tações sociais. E sua análise sobre convencionalização ajudou-me a compreender o processo de objetivação mais claramente.

IM - Isso me leva a uma questão até mesmo mais fundamen-tal, que tem a ver com pressupostos ontológicos, de um lado, e sua elaboração epistemológica, de outro. Gostaria de afirmar que a fenomenologia, a teoria das representações sociais e alguns outros enfoques sociais científicos, tais como o dialogismo de Bakhtin, a teoria sociocultural da mente de Vygotsky, o co-construtivismo de Valsiner, a teoria do desenvolvimento cogniti-vo de Nelson, o estruturalismo da Escola de Praga, todos com-partilham dos mesmos pressupostos ontológicos sobre a realida-de. Esses pressupostos incluem, por exemplo, a interdependên-cia da cultura e da mente individual; seu co-desenvolvimento; a interdependência entre pensamento/pensar e linguagem/falar. Os pressupostos ontológicos são o fundamento de nosso racioci-nar e muitas vezes eles são Implícitos, não-verbalizados - ou

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mesmo difíceis de verbalizar. Contudo, eles dividem nitidamente esses enfoques, daqueles que estão baseados em entidades dis-cretas, processos isolados, pro cessamento da informação, rela-ções causa-efeito. Em outras palavras, esses pressupostos onto-lógicos especificam as diferenças entre o paradigma dialéti-co/dialógico, por um lado, e o paradigma platônico/cartesiano, por outro. Ainda mais, eles também os distinguem de enfoques tais como pós-modernismo e construcionismo e, de modo parti-cular, das formas “escuras” de construcionismo, para empregar o termo de Danziger (1997).

1.4. Representações sociais, Piaget e Vygotsky

IM - O que diferencia entre os enfoques específicos, no para-digma dialético/dialógico, é a elaboração epistemológica de al-guns temas básicos, o foco que dirigem para questões particulares e o privilegiamento de fenômenos específicos. Foi por isso que falei antes sobre as diferenças entre a teoria das representações sociais e a fenomenologia, com respeito a suas diferenças episte-mológicas, mas os pressupostos ontológicos subjacentes presumi-velmente permanecem os mesmos. Poder-se-ia fazer uma análise semelhante com respeito às representações sociais e outros en fo-ques, dentro do mesmo paradigma. Isso me leva a outra influência, na origem de suas idéias sobre representações sociais, que é tam-bém discutida em seu trabalho sobre Piaget & Vygotsky (ver ca p. 6 neste volume). Você deixa muito claro que Piaget sempre desem-penhou um papel importante na sua vida intelectual. Pode ria fa-lar algo sobre isso?

SM - Se me voltar e lançar um olhar para o caminho que con-duz à teoria das representações sociais, ele me parece estranha-mente curto, embora mais complexo que eu pensava quando nos-sa conversação começou. Disse-lhe como e por que meu trabalho sobre a escala de Guttman e meu interesse na cibernética e comu-nicação fixaram minha mente na noção de representação. É claro, naquele tempo ela era imprecisa e meramente intuitiva. Depois me concentrei, por algum tempo, na questão da “matéria-prima” da psicologia social e na descobe rta que essa “matéria-prima” é o senso comum. Vi a psicologia social como uma ciência genética, ou do desenvolvimento, como a gênese do senso comum, do sen so comum moderno, isto é, a vi como a transformação do conheci-mento cientifico em conhecimento do senso comum. E isso estava relacionado a todas essas questões epistemológicas de que nós

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estivemos falando. Chegou, então, a difícil questão: que idéia, que conceito seria útil, para se estudar o senso comum? Quando digo que estava procurando uma idéia, ou conceito, não quero dizer uma noção que poderia ser empregada apenas para se colar nela o rótulo “social”, como quando se diz cognição social, atitude indi-vidual, ou construção individual. Quero dizer uma idéia, ou concei-to, que tem um sentido teórico, baseado em uma demonstração de que o conhecimento, ou pensamento, é necessariamente social, do mesmo modo que na fisica, quando você demonstra que a matéria tem de ser necessariamente atómica. De tudo o que conheço, tais conceitos ou idéias são muito raros em nosso campo. E isso não deixa de ter suas conseqüências para o valor das teorias.

Aqui chega Piaget. Ele não escreveu apenas sobre psicologia infantil, ele também escreveu muito sobre a história e a epistemo-logia da ciência e até mesmo sobre as relações entre lógica e so -ciedade. Lendo Piaget, ocorreu-me que ele estudou o senso co-mum das crianças, do mesmo modo que eu estava tentando estu-dar o senso comum dos adultos. Esse foi o primeiro elo. Descobri depois que seu método de estudar crianças através das observa-ções e entrevistas focais poderia servir-me do mesmo modo. Esse foi o segundo elo. Envolvendo-me em seu trabalho, comecei a in-vestigar seus sistemas teóricos, o sentido dos conceitos que ele empregou, sua lógica, se você quiser. E aqui encontrei de novo a representação, dessa vez não apenas como uma noção, mas como uma idéia teórica. E isso, literalmente, mudou minha maneira de pensar. Como você sabe, na cultura européia e quando nós estu damos psicologia, nós compreendemos o pensamento com o au-xilio de duas distinções, a distinção ser humano/animal e a distin-cão ser humano/máquina. A partir desse ponto, eu compreendi o pensamento através de uma terceira distinção, a distinção socie-dade/indivíduo, que se tornou, para mim, a distinção básica. Acon-teceu então que, tendo-a descoberto em Piaget, eu me perguntei se a idéia de representação social, ou coletiva, não poderia se tor-nar o coração da teoria que procurava. Isso me ocupou por dois ou três anos.

Olhando retrospectivamente, descobri algum mérito em se-guir as idéias de Piaget naquele momento especifico. Não era ape-nas um jovem pesquisador, em uma situação não definida, mas também um estrangeiro. Quando Piaget chegou a Paris, contudo, em 1953/1954 (que era quando estava me fazendo essas pergun-tas), como um sucessor de Merleau-Ponty na cadeira de psicologia

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infantil, o mínimo que se poderia dizer é que ele não tinha muitos admiradores. Merleau-Ponty não disse coisas muito interessantes sobre suas idéias e pessoas influentes, como Fraisse ou Zazzo, que era um aluno de Wallon, tinham pouca simpatia pelas idéias de Piaget. Ele estava, por isso, de certo modo isolado. Talvez tenha sido isso o que me incitou a ler mais sobre seu trabalho. Além dis-so, ele me causava uma forte impressão quando eu o via no Café Bazar.

IM - Mas você já se referiu a Durkheim na La Psychanalyse. Está dizendo que ele não foi muito importante na teoria das repre-sentações sociais?

SM - Não diria que Durkheim não foi muito importante, mas eu li muito pouco dele, além de seu trabalho sobre representações individuais e coletivas. Naquele tempo, seu trabalho e o de sua es-cola não eram tão populares como o são hoje. Lévy-Bruhl vivia em um ostracismo, como vive até hoje. O livro La Pensée sauvage (O pensamento selvagem), de Levi-Strauss (1962/1966), foi escrito contra ele. Desse modo, comecei a ler seriamente a obra dos pais dessas idéias, Durkheim e Lévy-Bruhl, na década de 1980, quando eu escrevi The Invention of Society e compreendi o que eles esta-vam querendo dizer. Além disso, Piaget tomou seus conceitos e muitos pontos de vista teóricos, por exemplo, sobre o pensamento simbólico e o julgamento moral, de Durkheim. De certo modo, re-cebi a herança de Durkheim e de Lévy-Bruhl sem estar consciente disso. É como um estrangeiro que chega a um país, aprende sua língua, adota seus costumes e inconscientemente absorve sua his-tória, seu caráter tradicional - dos quais ele vai tomar consciência somente mais tarde. Eu sou um francês, nest-ce pas? Além disso, Piaget significou para mim algo mais. Como disse antes, na minha idade da inocência não tinha uma visão concreta do que é uma psicologia social ou do que deveria ser. No começo de meus estu-dos, trabalhei como pesquisador assistente em psicologia ex-perimental. E alguns pesquisadores me disseram que psicologia social era um ramo da psicologia experimental em que não acredi-tei e que não respondia a minhas aspirações. Parei de trabalhar como pesquisador assistente e encontrei um trabalho como tutor em uma família. Isso me deixou algum tempo para pensar sobre qual poderia ser a alternativa. E, à medida que ia me familiarizan-do com a psicologia infantil de Piaget, tinha a impressão de desco-brir o que a psicologia social pode ser. Isso quer dizer: a psicologia social não é uma ciência de funções isoladas - motivação, percep-

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ção - mas uma ciência do todo dos indivíduos, ou dos grupos, na continuidade da psicologia infantil. É uma ciência do desenvolvi-mento, da mudança, não das reações a ambientes fixos. Não sei se posso encontrar as palavras exatas para expressar a você essa vi-são que me possuiu, há quarenta anos. Não estou certo que, mes-mo hoje, eu tenha outra de que eu mais gostasse.

1.5. Representações sociais e crenças

IM- Você descreve brilhantemente, em Chronique des années égarées, seu primeiro encontro com Pensées, de Pascal, quando você tinha 18 anos. Descreve os inícios de seu interesse nas idéias que o preocuparam desde então (Moscovici, 1997: 286). Interessei-me muito por aquela passagem na Chronique, não apenas porque ela é escrita linda e poeticamente, mas também porque você ex-pressa ali intuições psicossociais profundas, que se ligam clara-mente às representações sociais. Primeiro, você mostra explicita-mente que a leitura dos Pensées marcou a origem de seu interesse em psicologia social. De modo especifico, lendo a afirmação de Pas-cal “crer é importante” e seu argumento subjacente a essa afir-mação, fez com que você pensasse que não se pode conhecer, ou agir, ou criar algo, sem crer. Como você diz, é a crença que incen-deia as idéias e as palavras. Fundamentalmente, você distinguiu entre dois “impulsos” principais, o religioso e o artístico. O primeiro separa os seres humanos dos deuses, o último os envolve no tra-balho, na matéria, na tecnologia, na medicina e nas práticas sociais. Contudo, ao invés de se abrir à ciência, o que a modernidade reali-zou, com a secularização da religião, foi preparar uma era de novos mitos. O nazismo amalgamou religião, poesia, folclore em novos mitos e, além do mais, ele tornou as ciências, tais como a biologia e a medicina, parte de seus novos mitos. Gostaria de citar aqui da Chronique des années égarées (p. 288-289):

Creio que lembro um dos meus pontos de partida. A ciência

é uma forma moderna de “impulso” artístico. É um tipo de

arte, se pensarmos sobre a extraordinária inventividade

nas ciências matemáticas e f ísicas, sobre a natureza extra-

ordinária de suas idéias do universo e suas descobertas

materiais_ Outro ponto de partida é que a ciência foi co n-

taminada pela religião. Em vez de incluir os seres humanos

na natureza, ela exige sua exclusão. Essa é uma de suas il u-

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sões, um de seus perigos. Para dizer isso bem simples-

mente, em vez de afirmar-se como uma ars vivendr, ela

permitiu ser assimilada a uma am moriendi.

Nessa passagem, pode-se ver claramente a ligação entre suas idéias sobre história e filosofia da ciência expressas em Essai sur I”histoire humaine de Ia nature (Moscovici, 1968/1977) e suas idéias sobre co nhecimento e fé, como você as desenvolveu em La Psychanalyse.

SM - É um tópico que sempre me preocupou, mas eu não sei como falar sobre ele como um psicólogo social. Conhecimento e crença são conceitos opostos que formam um par, como razão e fé. Eles podem ter o mesmo conteúdo, mas qualidades diferentes. Pen-se em uma idéia muito popular, que é, de certo modo, o principio da modernidade: há progresso humano. Em um contexto, ela pode ser considerada como uma questão de conhecimento. Grandes pensa-dores tentaram comprová-la, ou falsificá-la, estabelecer seu domí-nio de validade dizendo, por exemplo, que há progresso na ciência, mas não moralidade e assim por diante. Em outro contexto, pode-mos considerar a idéia de que há progresso humano como sendo uma questão de crença. Nesse caso, ela exige compromisso com a modernidade e uma confiança no esforço humano. É uma questão de lutar por um futuro melhor. O que foi chamado de religião do progresso foi formado através de tal compromisso e confiança. Se a idéia de que há progresso humano se refere, em um caso, ao conhe-cimento e em outro, à crença, ela pode ser negada do mesmo modo, nesses dois casos. No primeiro você tem de apresentar evidência e argumentos para negá-la. No segundo caso, você tem de apresentar uma imagem oposta crença, uma crença na tradição, uma imagem de algum passado idílico, com o qual as pessoas estão compromis-sadas e em elas confiam, quando refletem sobre sua crença. A fim de negar a crença, é necessário opor-lhe outra imagem, mas não argumentos ou observação. Provas a favor, ou contra, numa crença, são secundarias. Provas da existência de Deus provavelmente con-verteram poucos cristãos ou judeus. Na verdade, não é difícil ser convertido e crer; é mais difícil parar de crer, mesmo se alguém tem boas razões para fazer isso.

Não vou esboçar uma filosofia para você, ou mesmo uma teo-ria. Desde minha juventude - e você deve ter lido o porquê em mi-nha autobiografia - me preocupei com o poder da crença, entre ou-tras coisas, pois durante a guerra pude ver o poder aterrador do nacionalismo e do racismo. Embora eles fossem apresentados

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como tendo fundamento em conhecimento biológico e etnológi-co, eles se mostraram como sendo crenças políticas ou religio-sas da mesma natureza. Penso que não se pode separar conhe-cimento e crença por longo tempo. Mesmo um filósofo como Bertrand Russel reconheceu a natureza misteriosa e a centrali-dade da crença em cada aspecto da vida mental. O que poderia eu acrescentar ao que ele disse: “Crer parece ser a coisa mais mental que nós fazemos, a forma mais remota do que é feito pela simples razão de fazer. O conjunto da vida intelectual co n-siste de crença.” E William James, no seu famoso artigo “A Von-tade de Crer”, argumenta que crença é essencial à ação. Tudo o que está contido na nossa crença é uma idéia e ela, por sua vez, pode ser viva ou morta. E se é viva ou morta, pode ser avaliado pela prontidão em agir. Para mim, o racismo e tudo o mais, foi sempre uma questão de crença das massas, não de pré-conceito ou estereótipos, etc. Os que mobilizaram as pessoas para criar esse mundo moderno, ao menos é assim que eu os vejo, coloca-ram a si mesmos essa pergunta de Platão: “Como pode alguém dar às idéias filosóficas o poder de idéias mincas, isto é, como pode alguém dar ás idéias cientificas o poder de idéias re-ligiosas?” Toquei sobre essa interrogação em The Age of the -Crowd (A era da multidão), (Moscovici, 1985) e principalmente em The Invention of Society (A criação da sociedade), (Moscovi-ci, 1988/1993). Ali quis mostrar que, apesar da tendência para racionalizar e secularizar, a sociedade moderna é, como qual-quer sociedade, uma máquina para fazer deuses (que era o titu-lo francês do livro, La Machine à faire dieux). E eu defendo que se, em última análise, a principal explicação para os fenômenos sociais, as de Weber e Durkheim, por exemplo, são psicossoci-ais, isso é devido ao fato de que eles consideram os indivíduos sozinhos, ou juntos, como homines credentes, homens de cren-ças. Há muitas pessoas que querem crer e não conseguem. Eles não experienciam isso corno um triunfo, mas como uma tragé-dia. É uma pena que nós olhemos para os sujeitos vindo a nos-sos laboratórios como indivíduos “uni-dimensionais”, como pequenos robôs, com computadores em vez de mentes e nós provavelmente fazemos a mesma coisa fora do laboratório. Nós esquecemos aquilo que faz a riqueza e o tormento de suas vi-das, o que realmente interessa a eles.

Vamos um pouco mais adiante. Se é verdade que o senso comum é uma forma de conhecimento, ao mesmo tempo ele se

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mostra contendo numerosas crenças. Como podemos reconhe-ce-las? O simples fato de que algumas proposições são assumi-das como dadas e por isso se acredita nelas, é um indicador. Além disso, elas estão misturadas com valores e atitudes que não são discutidos, que é até mesmo proibido discutir, de tal modo que as conclusões que nós tiramos de alguma informa-ção, ou idéias, são, por assim dizer, já aceitas de antemão. Nesse caso, nós tentamos confirmá-las a qualquer custo, o que se tem observado nos estudos antropológicos ou experimentais. Atra-vés da crença, o indivíduo, ou grupo, não se relaciona como um sujeito se relaciona com um objeto, um observador com uma paisagem; ele está conectado com o mundo como um ator com o personagem que ele encarna, um ho mem com sua casa, uma pessoa com sua identidade. As representações sociais, que são identificadas no senso comum, são análo gas a paradigmas que, contrariamente aos paradigmas científicos, são construídos parcialmente por crenças baseadas na fé e parcialmente por elementos de conhecimento baseados na verdade. E pelo fato de conterem crenças, validá-los se mostra como um processo longo, incerto, pois os paradigmas não podem ser nem confi r-mados, nem negados. A origem de uma represent ação social não é puramente raciocínio ou informação, mas ela pode estar muitas vezes em oposição ostensiva a principios de raciocínio ou informação. Se ela está fixada, como disse Peirce, ou enrai-zada na cultura, na linguagem, então nós absorvemos represe n-tações sociais, começando na infância, juntamente com outros elementos de nossa cultura e com nossa língua materna.

Longe de apenas registrar dados, ou sistematizar fatos, e-las (as representações sociais) são ferramentas mentais, ope-rando na própria experiencia, conformando o contexto em que os fenômenos estão radicados. Talvez isso também explique por que dire- rentes tipos de conhecimento e representações podem coexistir] juntos. Ainda mais, eles não eliminam antigos tipos de conhecimento e representações, mesmo se velhos e novos tipos se contradigam. Como observaram Stéphane Lau-rent na França, ou McCloskey, Caramazzo e Green nos EE.UU., a física do senso comum continua a ser usada mesmo por indiví-duos que conhecem muito bem a física científica. Por exemplo, eles podem aplicar a teoria medieval do movimento, a fim de descrever e explicar o movimento de um corpo físico. Não há nada de surpreendente sobre os achados desses experimentos,

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nem significam eles que nossa física popu lar está baseada na irracionalidade. Eles confirmam o que nós discutimos nos se-minários de Koyré.

E depois o lingüista Leonard Talmy mostrou que essa teo-ria medieval do movimento também inspira nossa linguagem. Quando nós dizemos que o vento fez com que a bola continuas-se a rolar, nós representamos a bola como tendo uma tendência interna ao repouso. Ele podia também ter mostrado que os i n-gleses, entre os quais a teoria de Newton nasceu, costumavam dizer que o sol nunca se punha em seu império, o que se refere à teoria de Ptolomeu. Lingüistas como Talmy supõem, correta-mente na minha opinião, que representações compartilhadas governam o sentido da linguagem - e não de outra maneira.

É claro, podemos encontrar representações sociais que são mais abstratas, mais impessoais e outras que são mais concre-tas e pessoais. Isso, de fato, é muito conhecido, de tal modo que nós podemos falar, por exemplo, de cognições quentes e frias. Mas eu penso que, do ponto de vista social, o que está em jogo aqui é o grau de presença, ou de força, da crença. Por isso, ta l-vez seja melhor falar, corno fez William James, do grau em que essas representações estão vivas ou mortas; as pessoas acredi-tam, ou não acreditam nelas, em determinado momento. Sendo assim, duvido que possamos realmente compreender a vida mental dos indivíduos ou grupos, se nós menosprezarmos o cruzamento híbrido de fé e conhecimento, a mistura daquilo que é considerado verdadeiro porque nós nele acreditamos e aquilo em que nós acreditamos porque o consideramos verda-deiro. A pobreza do cognitivismo não é que ele ignore o senti-do; ele deixa fora as crenças.

1.6. Representações coletivas e sociais

IM - Fica claro, a partir de seu trabalho sobre Vygotsky e Pia-get (ver capitulo 6, neste volume), que se pode distinguir entre duas tradições de pesquisa, com respeito à génese do conceito de representações sociais. Uma provém de Durkheim e continua através de Piaget. A outra provém de Lévy-Bruhl e continua através de Vygotsky. Como você apontou, embora te-nha tomado o termo de Piaget e o referisse a Durkheim já na La Psychanalyse, entendo que em sua perspectiva teórica e empí-rica ele está aliado a Lévy-Bruin e Vygotsky. Você mostrou que há uma diferença fundamental entre essas duas tradições e ela

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se refere { dicotomia • continuidade/descontinuidade. Do meu ponto de vista, é então fundamental que essa diferença coloque essas duas tradições de representações sociais em paradigmas científicos muito diferentes, no sentido de Kuhn. Tentarei ex-plicar.

Em sua crítica a Durkheim (Moscovici, 1984), você mos-trou que ele era fiel à tradição kantiana e tinha uma concepção muito estática de representações. Por conseguinte, embora na teorização de Durkheim houvesse preocupação tanto com a sociedade como com o indivíduo, foi a inabilidade de Kant em dominar o conceito de interdependência dialética, ou co-construção, que tomou as representações de Durkheim tão es-táticas. Você mostrou, em seu artigo de 1998, que Piaget seguiu o racionalismo de Durkheim que, de fato, era o racionalismo kantiano. O conceito de estrutura de Piaget não é mais que uma reorganização dos elementos preexistentes dentro de um todo interligado. Esse conceito pré-dialético de estrutura, que e n-contramos em Piaget, no estruturalismo fran cês e talvez no dinamarquês, é nitidamente diferente do estrutura lismo da Escola de Praga, que é dialético e dinâmico. Acrescenta ria que a noção de universais cognitivos e lingüísticos se adapta à pers-pectiva pré-dialética. Desse modo, como pode essa perspecti va explicar, em termos gerais, a noção de desenvolvimento? O” conceito de continuidade implica que a criança se desenvolve até a idade adulta, através de estágios, através de uma série de opera- i ções intermediadas e mutuamente interligadas. Esses estágios se desdobram de uma maneira semelhante, mesmo se você estudat crianças em Genebra, Pads, Nova Iorque ou Mos-cou (Piaget 197O/1972),”. o que dá crédito a operações unive r-salmente válidas.

A noção de descontinuidade, contudo, é mais que apenas; uma oposição a continuidade. Continuidade/descontinuidade, para; mim, reflete pressupostos ontológicos de dialéti-ca/dialogismo, como mencionei antes: a interdependência da cultura e da mente do indivíduo; seu co-desenvolvimento; a interdependência entre pensamento/pensar e linguagem/falar. Podemos encontrar, diria, alguns desses pressupostos em Levy-Bruhl e todos eles em Vygotsky. Podemos falar sobre transfo r-mações qualitativas de algo, somente se assumirmos uma estru-tura aberta, isto é, uma co mplementaridade da estrutura com seu contexto relevante. E foi isso que Luria e Vygotsky tenta-

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ram investigar em Uzbekistão, na década de 193O (ver Luria & Vygotsky, 1976; 1979). Isso é tam-bem compatível com o que você disse sobre Lévy-Bruhl: “Do mesmo modo que a teoria da relatividade de Einstein naquele tempo, a hipótese de Lévy-Bruhl destruiu a ideia kantiana de que as catego rias da mente humana eram as mesmas em todos os tempos e em todos os lugares” (ver capítulo 6 deste livro). A estrutura cognitiva e a cultura se constituem mutuamente.

As pessoas perguntam muitas vezes: Qual é a diferença en-tre o conceito de representação social de Moscovici e o de Du r-kheim? Espero, por isso, que uma resposta a essa questão fique agora clara. Estudando representações sociais, devemos estu-dar tanto a cultura, como a mente do indivíduo.

A não ser que a distinção entre os conceitos Dur-kheim/Piaget e Lévy-BruhlNygostsky de representação social seja entendida, nós podemos celebrar o aniversário de cem anos do termo “representa-cão coletiva ou social” e ainda es-tarmos escondendo algo muito mais fundamental: as diferenças paradigmáticas entre os dois conceitos de representações soci-ais ou coletivas. Embora você diga, em seu artigo sobre esse assunto, que a diferença entre esses dois enfoques está na gê-nese das representações sociais, mas não em sua natureza, eu iria argumentar que, de fato, a diferença na génese leva a uma diferença na natureza dessas representações sociais. Isso é, em termos das diferenças em sua base ontológica.

Os psicólogos sociais, muitas vezes, fazem a pergunta com respeito à diferença entre representa ções sociais e coletivas. Por exemplo, no seu artigo magistral, Rob Farr (1998) está pre-ocupado com temas históricos, que cercam as noções de “repre-sentações coletivas” e “representações sociais” e com seu em-prego. Essas questões históricas são importantes e necessitam ser conhecidas. Poderia comentar sobre esse assunto?

SM- Por favor, não espere que eu jamais seja capaz de ex-plicar a diferença entre “coletivo” e “social”. Suponho que de-vam existir algumas diferenças, mas é preciso olhar no dicioná-rio, porque eu não as encontro em nenhum trabalho de qual-quer pensador digno de consideração, inclusive Durkheim. A maior parte das vezes, as duas palavras são usadas como sinô-nimas. Eu prefiro, contudo, usar apenas “social” , por que ele se

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refere a uma noção clara, aquela da sociedade, a uma idéia de diferenciação, de redes de pessoas e suas interações. No século dezenove, a palavra “coletivo” era muito comum, sugerindo a imagem de um amontoado de pessoas, um agregado de indivi-duos formando um todo. Daí o termo “psicologia coletiva”, que não era muito distinta da “psicologia da massa”. Não vejo a questão histórica muito claramente. Mas eu posso construir dois cenários. O primeiro, o cenário de Mauss, está ligado á es-cola de Durkheim. O próprio Durkheim conservou o social e o psicológico juntos. Depois de sua morte, Mauss insistiu mais na especificidade do social e assumiu uma posição muito critica com relação a Lévy-Bruhl, a quem considerou como insuficie n-temente social, porque ele era muito psicológico. O ser coletivo estava, para Bruhl, nesse lado da barreira, pois ele era “insensi-vel” à singularidade dos grupos sociais. O outro cenário, o cená-rio de Moscovici, se quiser, tem a ver com relações entre socie-dade e cultura. Em The Invention of Society, distingui entre “so-ciedades vividas” e “sociedades concebidas”. Brevemente, po-deria dizer que na primeira, culturas, tradições, rituais, credos simbólicos, etc. eram a matriz da sociedade. Na última, é o co n-trario, sociedade é a matriz e aia sua cultura. Você po de encon-trar um ponto de vista semelhante no livro de Raymond Willi-ams Culture: “ O caráter social da produção cultural, que é evi-dente em todos os periodos e formas, é agora mais diretamente ativo e inescapável, que em to das as culturas anteriormente desenvolvidas” (Williams, 1989: 3O). Arriscaria eu dizer que não tenho realmente muita fé em nenhum desses cenários? Eu respeito muito o trabalho histórico de Faz[. Uma vez ou outra, contudo, a multiplicação de distinções cessa de ter a fecundida-de que supostamente deveria. Através de todo meu trabalho, permaneci fiel à navalha de Guilherme de O ccam: não se deve multiplicar conceitos sem necessidade. Não se deve fazer com mais o que se pode fazer com menos.

2. A teoria das representações sociais e a teoria da mudança social

IDA - Gostaria de the perguntar sobre um tema que é de grande interesse para muitos psicólogos sociais. Pode explicar qual a relação, se houver, entre as duas maiores áreas de seu trabalho: a teoria das representações sociais e a teoria da mu-dança social - ou, como a última é, muitas vezes, chamada, a

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teoria da influência da minoria? Penso que, em geral, os psicó-logos sociais olham para essas duas teorias como áreas inde-pendentes de seu trabalho. Aqueles que pesquisam representa-ções sociais não estão normalmente interessados nos processos de influência social. Ainda mais, essas duas áreas são, muitas vezes, ensinadas por diferentes professores, em cursos de gra-duação de psicologia social. Contudo, vejo uma unidade concei-tual importante, subjacente a essas duas áreas.

SM- De muitos modos, a teoria das representações sociais e a teoria da inovação, como ela deveria ser chamada com mais propriedade, pertencem a diferentes campos da psicologia so-cial, respondem a diferentes questões e se relacionam a áreas distintas de minha experiência de vida. Eu não apenas pertenci a uma minoria discriminada, também criei um movimento de minoria, como conto em minha autobiografia. Basicamente, as minorias são consideradas como existindo na fronteira social, ou mesmo fora dela. A situação de uma minoria é a situação de um grupo ao qual foi negada autonomia e responsabilidade, que não tem a confiança, nem é reconhecido por outros grupos, ta n-to porque ele é dominado, ou devido a sua posição dissidente, herética, etc. Tal grupo não se reconhece nos sistemas existe n-tes de poder, crença e não representa tal sistema para ninguém. A fim de fornecer um sistema diferente de crenças, de obter poder ou se tornar um modelo para outros, tal grupo tem de ser capaz de influenciar os outros, mudando sua maneira de ver e/ou agir, até que chegue ao ponto de se tomar uma maioria. As minorias não são os únicos inovado res, porém, através da his-tória, elas se mostraram, muitas vezes, como os principais a-gentes de inovação na arte, ciência, politica e assim por diante. Por isso, a questão teórica e prática, com respei to a minorias, é a pergunta de Gibbon: como foi possivel, a um pu nhado de cris-tãos, tornar-se uma Igreja e conseguir uma mudança tão ingen-te e, aparentemente, impo ssível na história romana? Em outras palavras: como as minorias agem para ter um impacto, como são elas capazes de converter e recrutar pessoas e transfor mar a estrutura social? Apresentei uma discussão dessa teoria em outro lugar e não vou repeti-la aqui. Permanece, contudo, o fato que sempre me preocupou. Veja você, meu primeiro estudo em psicologia foi, ele mesmo, um estudo de inovação e mudança so-cial (Moscovici, 1961).

Estudando a penetração da psicanálise na sociedade fran-

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cesa, também estudei, em certo sentido, a penetração das idéias de uma minoria que era desconsiderada nos meios científicos, políticos e religiosos. Ela era até mesmo uma teoria estrangeira, não-francesa. O que não se deve esquecer, contudo, é o fato de que, ao mesmo tempo em que prosseguia no meu trabalho de campo na psicanálise, realizei um estudo de comunidade sobre as conseqüências psicológicas da mudança industrial. Como você sabe, naquele tempo o Doutorado de Estado, na França, consistia em duas teses, a tese principal e a t ese complementar. O estudo da representação social da psicanálise foi minha pri-meira tese, orientada pelo Professor Lagache e minha tese complementar foi esse estudo de comunidade, orientada pelo Professor Stoetzel. Na década de 195O, era muito comum, para um psicólogo social, trabalhar tanto na pesquisa pura, como na aplicada.

IM - Não sabia disso.

SM - Naquele tempo, o problema principal, na França, era o problema da re-conversão, isto é, a mudança das áreas indus-triais tradicionais antigas, em áreas modernas. Criei uma equi-pe de pesquisa que incluía seis ou sete psicólogos, um sociólogo e um economista interessado nesse trabalho, que continuou por vários anos, nas áreas de mineração e na área têxtil. Os resulta-dos desse trabalho foram publicados em uma série de livros. Minha primeira pesquisa teve lugar em uma pequena região, famosa não apenas por sua indústria, isto é, por fabricar cha-péus, mas também por seu passado socialista e sindical. Como qualquer psicólogo social daquele tempo, comecei com ten tati-vas de detectar a resistência à mudança e superar essa resis-tência, de tal modo que a região e sua indústria pudessem se modernizar. Nesse microcosmo, des cobri que a resistência à mudança não era o problema. Também observei que se uma mudança, em uma comunidade, acontece, é porque uma mino-ria ou várias minorias são capazes de manter um conflito e ne-gociar uma solução para esse conflito, em relação ao poder que elas encontram e por que elas são capazes de levar a po pulação à frente.

Naquele tempo, estava associado a Claude Faucheux, que conhecia Festinger e outros psicólogos sociais ingleses e dos EE.UU., que trabalhavam em dinâmica de grupo. Ele se interes-sou no meu trabalho, inclusive nos meus estudos em história da ciência e fez-me ler a literatura sobre dinâmica de grupos e

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sobre influência social. Com base nessa leitura, cheguei à co n-clusão que a psicologia social não estava tanto interessada com ações de minorias, ou com a mudança levada a efeito por um grupo minoritário. Sua preocupação principal era descobrir como um individuo, ou um divergente, é mudado por um grupo e como se torna um membro “normal” do grupo. Isso é o que Claude Faucheux e eu chamamos de distorção da conformidade. Em outras palavras, a psicologia social estava principalmente interessada em conformidade e influência social era sinônimo de conformidade social. A parir dal e no curso dos anos segui n-tes, esse trabalho deu uma reviravolta sistemática e na verdade se transformou em uma teoria.

IM - Gostaria de apontar para uma questão que, penso, di-ferencia seu enfoque, no estudo da influência social, desde o inicio.. Aquelas teorias tradicionais da influência, baseadas em modelos funcionais unidirecionais, não são teorias sociais do conhecimento - seja do conhecimento leigo ou c ientifico ou do senso comum. Não apenas a palavra “conhecimento” nunca é mencionada ali, mas nem são as preocupações com conformi-dade em geral, tipicalidades abstratas tais como normas, po n-tos de vista, comportamento, atitudes gerais e assim por diante. Em contraste a isso, a teoria das representações sociais esteve interessada, desde o início, em identificar o conteúdo do conhe-cimento do senso comum e olhai para os modos como ele se expressa na linguagem e comunicação. Do mesmo modo, a teo-ria da inovação. como você mostrou antes, está interessada com a difusão do conhecimento cientifico e outros tipos de conhe-cimento institucionalizado, em senso comum. Em outras pala-vras, ambas as teorias estão preocupadas com o conhecimento das maiorias e das minorias. Fico pensando se você não gosta-ria de comentar sobre o papel do conhecimento na teoria da influência.

2.1. Influência social e a circulação do conhecimento

SM - Não posso discutir aqui longamente o fenômeno do de-senvolvimento e circulação do conhecimento dentro da sociedade. Até onde saiba, três modelos foram propostos e foram difundidos:

1. Difusão através do “contágio”, começando por Le Bon.

2. Propagação das idéias através da “imitação”. Aceitar uma opinião ou informação e torná-la minha, significa

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imitar e imitar é repetir, reproduzir em si mesmo o que apareceu em algumas outras mentes. Do mesmo modo que individuos ou grupos inferiores imitam individuos ou grupos superiores, as idéias dominantes de nosso tempo, que são reproduzidas, são as dos grupos domi-nantes, instrumentos que os possibi lita manter seu po-der e tais idéias serão disseminadas.

3. O terceiro modo é o da conformidade. De acordo com e-le, o surgimento e a desaparição de idéias não depende de serem evidentes ou absurdas, mas da conformidade e do grau de oposição que elas enfrentam, dependendo da sua con-cordância, ou discordância, com as idéias ado-tadas pela maioria, ou pela autoridade. Esse modelo é, sem dúvida, verdadeiro, mas permanece inócuo, como uma tautologia.

O que faltou, aparentemente, a esses modelos foi tensão, um intercâmbio entre o emissor e o receptor do conhecimento. A difu-são é aqui reduzida a uma série infindável de escolhas individuais e aceitação de conhecimento. No momento em que você passa de` uma visão individualista para uma visão social de circulação do conhecimento e linguagens você tende a ver esse processo como umprocesso de comunicação, no decurso do qual a informação é transmitida e transformada. Então a comunicação é oral, como no caso do senso comum, seu meio é fa parole, conversação (falada). Temos aqui um quarto modelo, o da comunicação, que tentei ela-borar.

Alguém pode supor que na ciência e na filosofia a acentuação é colocada em ações de elaboração individual do conhecimento; no senso comum, é o contrário, pois o acento é nas ações difundi-das de um conhecimento compartilhado, em um determinado tempo. Ainda mais, toda teoria cientifica ou filosófica tende a se tornar primeiro o senso comum de um grupo restrito, de uma mi-noria, que é então distribuído, em conexão com a vida prática, através da maioria da sociedade, onde ele se torna senso comum, com um conteúdo renovado e uma nova maneira de pensar. Em uma carta escrita a Necker em 1775, Diderot afirmava: “A opinião, essa entidade móvel, cuja força para o bem ou o mal todos nós co-nhecemos é, na sua origem, nada mais que o efeito de um peque no número de homens que falam depois de pensar e formam, con-tinuamente, em vários pontos da sociedade, centros de instrução, de onde provêm os erros, as verdades fundamentadas e gradual-

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mente alcançam os últimos confins da cidade onde elas se estabe-lecem como artigos de fe.”

A partir desses comentários, você pode ver como é delineado o modelo de comunicação. Em primeiro lugar, temos aqui a difu-são a partir do “inventor” ou, falando de maneira geral, da minoria de cientistas, filósofos, etc. para a maioria, um processo no decur-so do qual ocorre o que nós chamamos de popularização do co-nhecimento. Essa é a primeira transformação de uma idéia nova, estranha ou esotérica, pelo e no ambiente social. Em seguida, ago-ra circulando dentro da maioria, a idéia nova, estranha ou eso-térica, interfere em ideais existentes, toma-se o foco da conversa-ção, do debate e do resto. O efeito dessas conversações e debates é reforçar, intensificar e levar a efeito toda idéia, ou item, de co-nhecimento circulando na sociedade, tanto novos, como velhos. Uma vez que as coisas esotéricas e estranhas se tenham tornado estáveis e familiares, grupos de especialistas populares, ou cren-tes, são formados. A partir dessas comunicações, entendimentos ou desentendimentos, a partir de numerosas transformações e re-formulações, algo novo é criado nas conversações e debates, isto e, uma nova representação partilhada do senso comum, com seu próprio estilo e conteúdo. O próprio conteúdo, as vezes, mudou a tal modo que não podemos reconhecê-lo, mesmo que o nome te-nha permanecido inalterado, por exemplo, o nome e a noção de “seleção natural”, que foi transportada da biologia evolucionista, para a evolução dos fenômenos psicológicos ou sociais. Mas o in-divíduo, ou a minoria inicial, não estão imunes às pressões da maioria. Isso os leva a se ajustarem ao senso comum, tanto mos-trando sua relutância em expressar suas novas idéias, como propondo-as de tal modo que não se confrontem às idéias religio-sas, ou opiniões politicas, o modo prevalecente de pensar de seus compatriotas. Uma das conclusões a que foi possivel chegar desse modelo foi que, em confronto com uma concepção generalizada, o - senso comum não é menos vulnerável á mudança continua pelos ;. processos sociais e comunicativos, do que qualquer outro tipo de “. conhecimento ou crença. Você tem aqui uma imagem simplifica-da daquilo que eu chamei de uma “sociedade pensante”.

Demos um passo à frente. Como disse antes, nós geralmente i separamos a comunicação, isto é, a transmissão da informação, da influência, cujo objetivo é conseguir o consentimento de alguém. Mas ainda permanece um conflito na difusão do conhecimento, um conflito entre o novo e o antigo, entre idéias esotéricas e exóti-

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cas, que cada partido quer impor, através de estratégias de persu-asão. Como disse Parsons, dentro de um comunicador, há um ,”. “persuasor Intrínseco”. E Berkeley observou, há muito tempo, que essa distinção é, em grande parte, artificial, porque não há comu-nicação sem intenção persuasiva: “A comunicação de idéias mar-cada por palavras não é o fim principal e único da linguagem, co-mo se supõe comumente. Há outros fins, como o levantar deter-minadas paixões, incitar ou afastar de uma ação, colocar a mente de acordo com alguma disposição específica”. No modelo comu-nicativo que descrevi, distinguimos duas direções, por onde circu-la e e transformado o conhecimento: a primeira vai da ciência, filo-sofia, etc. em direção ao senso comum e a segunda, do senso co-mum em direção à ciência e a outras formas de conhecimento. No primeiro caso, podemos falar de inovação e no segundo caso, de conservação, ou conformidade.

Por conseguinte, o primeiro movimento, na teoria da influên-cia, foi distinguir entre esses dois processos: inovação e conformi-dade, o que abriu um novo campo de fenômenos para exploração psicossocial, que até então se tinha interessado na conformidade. Nunca pude entender por que o reconhecimento desses dois pro-cessos complementares fundamentais enfrentou tanta oposição. Seria devido á autonomia da inovação? Seria devido à dualidade dos processos de influência? Ou se sentiu a necessidade de resta-belecer o status quo ante, afim de tornar a inovação um caso parti-cular de conformidade? Na verdade, uma dualidade semelhante existe na física entre o principio da entropia e o principio da con-servação, na linguagem entre o que Zipf chamou de forças de uni-ficação, as forças da diversidade e na filosofia da ciência entre o que Kuhn chamou de ciência revolucionária e ciência normal, etc. Sejam quais tenham sido as razões para tal oposição, isso resultou na manutenção do antigo modelo que nunca reconheceu as duas fontes de influência: de um lado a influência da minoria, que A se conformar a uma minoria e do outro lado a influência da maioria, que significa se conformar a uma maioria. A inovação, com suas características originais e seu campo de fenômenos específicos, é mantida fora da psicologia social. Talvez as pessoas acreditem, bem lá no fundo, que o “animal social”, para emprestar uma fór-mula popular de Aronson, é um animal que se conforma.

Vamos esquecer isso e retornar a nossos processos e especi-almente às noções de minoria e maioria. Diria que, através das diferentes culturas, podem-se encontrar alguns tipos representa-

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donais que, de acordo com a linguagem política, foram rotulados de maioria e minoria, mas que têm uma intima semelhança asso-ciada, na cabeça das pessoas, com ortodoxia e heresia, academicis-mo e vanguarda, normalidade e desvio comportamental, obediên-cia e dissidência, autóctone e estrangeiro, etc. Dentro dessa dia-de, há uma invisivel e sempre presente representação de cultura, das categorias muito efetivas que são revividas ao serem atribuídas a um papel, a uma mensagem e assim por diante. Obviamente, po-demos simbolizá-las por números, ou por nomes. Contudo, o que interessa não são números (que percentagem de opinião, ou de votos, constitui uma maioria, ou minoria?), ou nomes, mas os tipos representacionais que são ativos. Eu sabia que um dia iriam me pedir que explicasse através de que índice empírico eu defino uma minoria, mas é difícil enumerar todos os indices dispersos, quan-do se lida com essas representações que são tanto típicas, como compostas, à la Galton.

IM- Como você colocou, uma minoria não pode ser definida independentemente de seu contexto social. Uma minoria, como quaisquer outros conceitos societais, por exemplo, uma represen-tação social, uma estrutura, urn processo, urn indivíduo e assim por diante, são todos termos relacionais que podem ser definidos apenas em relação a algo. Isso não significa, é claro, um relativis-mo, que é coisa diferente, que nós não podemos levantar aqui.

SM - Inovação nas minorias não é algo que eu inventei; ela e-xiste lá, na vida social, é um thema cultural para grupos em sua representação de suas origens - pense no julgamento de Sócrates, de Cristo, de Galileu ou Giordano Bruno. O fenômeno é ampla-mente descrito na antropologia, economia, história e assim por di-ante. Por isso, o que me espantou naquele tempo e naquela idade foi ser perguntado como eu definia a minoria. As minorias são definidas de acordo com situações históricas e modelos culturais. E às vezes me admiro por que as pessoas as podem tomar em um sentido puramente numérico. Há muito tempo dei o exempla das mulheres, mostrando claramente que ser uma minoria não signifi-ca sempre ser menos numeroso. Uma maioria pode também ser entendida legalmente, culturalmente, como menor. Em francês eu cunhei a palavra mineurité, em inglês poder-se-ia chamá-la de uma minor-ity (em português, menor-idade).

A teoria da representação social que delineei acima pergunta

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e responde á questão: “O que é conhecimento partilhado?” Ela de-volve ao conhecimento seu caráter de uma ideia-modelo, mais ou menos padronizada. Tais representações servem ás pessoas, por um lado, comoparadigmas na comunicação e, por outro lado, como meios de orientação prática. Sendo assim, as bases para um dis-curso sobre a natureza do conhecimento humano aqui sugeridas., como você pode ver, mudaram. Em primeiro lugar, o conhecimen-to como concebido aqui, é um processo de luta e persuasão no curso da história humana, não um processo de aprendizagem rea-lizado pela pessoa singular, que se supôe adquirir conhecimento, através da informação privada. Essa é uma concepção das teorias de conhecimento tradicional que ou desprezam, ou constroem um mundo à parte do conhecimento e da comunicação comum. Esse conhecimento, como quaisquer outros tipos de conhecimento mais exóticos, que um dia ou outro são incluídos no discurso pú-blico, levanta outra questão: como o conhecimento é partilhado? Como pode uma única idéia, um ponto de vista particular, que pode parecer uma obsessão de um individuo singular, até o mo-mento em que mergulha na corrente central do desenvolvimento do conhecimento humano, como pode ele fazer uma passagem para se tomar uma obsessão coletiva? Isso aconteceu no caso do marxismo, da teoria da evolução, da psicanálise e da teoria da re-latividade. Contudo, essa passagem não foi um milagre, mas ape-nas um exemplo de como essas minorias mantiveram um conflito com a oposição, como elas viram a hostilidade dos “homens” e como elas os converteram “para essa nova visão ou idéia”, de a-cordo com a dinâmica que expliquei, espero, através da teoria da inovação.

2.2. A interdependência minoria/maioria

IM - Vou expressar minha hipótese sobre essa oposição, que vejo como uma dificuldade em compreender a idéia de pensar em totalidade. Começo citando de seu livro sobre Social Influence and Social Change (Moscovici, 1976). Você enfatizou ali que os proces-sos de influência estão baseados em duas idéias inter-relaciona-das. Em primeiro lugar, a influência é exercida em duas direções e é reciproca: “da maioria em direção à minoria e da minoria em di-reção á maioria”. Em segundo lugar, seguindo do primeiro, “cada parte de um grupo deve ser considerado como emitindo e rece-bendo influência simultaneamente (...I cada individuo ou subgru-

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po I...1 está ao mesmo tempo sendo influenciado, ou influencian-do, outros ao mesmo tempo, sempre que ocorre influência.” Am-bas as idéias, de reciprocidade e simultaneidade, criaram uma dificuldade conceptual para a psicologia social em voga, porque elas pertencem - eu diria - a uma maneira de pensar dialética, ou dialógica. Uma teoria de interação entre entidades foi um conceito difícil para a psicologia social dominante daquele tempo, porque seu pressuposto fundamental era o da existência de entidades dis-cretas que, por uma razão ou outra, podem entrar em interação. Para você, ao contrário, o ponto de partida era uma diade, o da maioria/minoria: um componente não tem sentido sem o outro componente. Eles são mutuamente interdependentes, como figura e fundo, porque a maioria é definida em termos da minoria e a minoria em termos da maioria. Como você diz, essa noção de reci-procidade - ou complementaridade - foi empregada desde muito tempo na física. Bohr introduziu esse principio em sua tentativa de resolver o problema de como atribuir propriedades contrá rias aos objetos, isto é, propriedades à semelhança de ondas, proprie-dades à semelhança de partículas. Essa relação interna - uma ten-são - dentro da diade é um pressuposto para a mudança social. Contudo, esse conceito era estranho às teorias tradicionais da influência. Seu ponto de partida era o de duas entidades interde-pendentes: maioria e minoria. Desse modo, as teorias de influên-cia baseadas na conformidade começaram com uma norma, de um lado, e um individuo desviaste, de outro. O problema para o psicó-logo social era como juntá-los: você os junta através da influência na entidade mais fraca: unidirecionalmente, pelo fluxo da maioria para a minoria.

O segundo ponto que gostaria de apresentar segue desse pri-meiro. Se você tem um modelo baseado em entidades separadas, então a idéia de simultaneidade da influência é impossível de ser concebida. Esse foi também o problema na hngüistica, baseada em opostos como entidades independentes, da tradição de Saus sure. Roman Jakobson (1987) criticou a tese de Saussure, que atribuía aos sons da linguagem linearidade mensurável apenas em uma direção. Como ele mostrou, os sons eram definidos em termos de seqüencialidade meramente temporal e não pela simulta neidade. Ao invés disso, Jakobson viu os sons da linguagem em termos de oposições interdependentes. Nós estamos falando aqui sobre uma dificuldade teórica que provém de dois paradigmas alternativos: um baseado na noção de entidades discretas e o outro baseado em

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interdependências. Embora em linhas teóricas, o que você propôs na teoria da inovação tem uma longa tradição, de Hegel através, por exemplo, de Mead, Vygotsky, Baldwin e os lingüistas da Escola de Praga, na psicologia social empírica foi uma nova concepção e, por isso, difícil de ser compreendida.

IM - Há um ponto a mais. Eu me perguntei: como uma teoria tão estranha e perturbadora como a psicanálise, defendida por um grupo tão pequeno, altera o senso comum? Obviamente, outras pessoas, por exemplo aquelas que trabalham no campo da crença ou ciência, fizeram essa pergunta antes de mim. Você sabe que essa foi a pergunta de Heisenberg: “Devemos perguntar como um tão pequeno grupo de fisicos foi capaz de forçar o outro para essas mudanças na estrutura da ciência e do pensamento.” Ele conside-rou que essa era a pergunta principal para se compreender as re-voluções cientificas.

Bem agora, para não vagar por muito longe de sua pergunta, qual a relação entre a teoria das representações sociais e a teoria da inovação, há aqui um outro ponto: as representações de grupos que constituem um tipo ou outro têm, sem dúvida, alguma impor-tância na comunicação da influência. Isso se refere a tipos que são normalmente descritos como antagônicos ou alternativos. Como entender a relutância que pessoas, especialmente nos EE.UU., ti-vetam contra esse aspecto perturbador e incômodo das minorias? Os EE.UU. é o pais dos imigrantes; houve ali dissidentes religiosos, não-conformistas, pensadores independentes. Lendo o livro Tan-glewood Tales, de Hawthorne, pode-se ver que a vida religiosa dos EE.UU. esteve repleta de heresias e luta contra as heresias, sem mencionar a desobediência civil e assim por diante. Esse pano de fundo da teoria da inovação, do sentido das minorias e maiorias, não despertou a atenção quando falei la sobre isso. Há algum tem-po fiz uma análise literária de The Scarlet Letter, do ponto de vista de minha teoria, do mesmo modo que fiz sobre Ala recherche du temps perdu, de Proust, ou melhor, de um aspecto limitado desse trabalho (Moscovici, 1986; ver também capitulo 5 neste volume).

2.3 Estilo comportamental

SM - Chego agora a um ponto mais preciso de convergência entre as duas teorias. Como você sabe, respondi ã pergunta sobre que ajuda a uma minoria pode ter influência, dizendo que não é

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seu prestigio, poder ou capacidade, mas seu estilo de comporta-mento. É o estilo comportamental que leva a outras pessoas a in-tenção do ator, a influencia, seu grau de firmeza de convicção, de-terminação, consistência, coragem, etc. O estilo comportamental, contudo, para que tenha efeito, deve ser entendido pela maioria, que deve compartilhar a mesma representação desse estilo como-a minoria, a fim de detectar sua mesma estrutura e dar-lhe o mes-mo sentido. É como observar alguém que está em um palco, por exemplo, um teatro chinês, ou representando através de gestos. A fim de apreciar a mimica, as pessoas devem partilhar a represen-ta-cão do que esses gestos e ações significam, de outro modo essas pessoas vão parecer loucas ou ridículas. Por exemplo, se sou con-sistente quando expresso minhas idéias sobre a teoria das repre-sentações sociais, há alguma possibilidade de que as pessoas irão perceber a firmeza de meu compromisso intelectual. É exatamente por isso que dissidentes como Havel. Sakharov e outros foram tão eficientes em sua oposição ao regime.

IM - O estilo comportamental nos traz de volta ao conheci-mento do senso comum. Nossas representações de outras pes soas, em termos de motivos, intenções, fins e razões, estão tão enraiza-das em nossa realidade social, que nós temos a tendência de per-ceber suas ações diretamente como tendo um significado par-ticular - mais do que interpretá-las. Do mesmo modo, temos uma boa imagem de como somos percebidos por outros e por isso nós podemos aplicar estratégias que reforcem percepções particula-res. Essa é uma boa psicologia social da parte das minorias e é uma aplicação do principio de Hegel do reconhecimento.

SM - Não é apenas uma aplicação do princípio de Hegel. No l i-vro sobre que você falou (Moscovici, 1976), desenvolvi uma teo-ria, arrisco-me chamá-la assim, do reconhecimento. Mostrei que é isso que as minorias procuram. Elas de fato têm acesso a uma e-xistência própria e à vontade de se tomarem maioria, somente na medida em que são reconhecidas por outros grupos. Falei com Henri Tajfel sobre essas minorias sociais, tornando a hipótese mais precisa, dizendo que a necessidade de reconhecimento social está no coração da inovação, é seu motor, por assim dizer, do mesmo modo que a necessidade de semelhança social é o motor da conformidade. Pois um indivíduo que está incerto sobre suas opiniões ou julgamentos, procurará reduzir essa incerteza compa-rando-os às opiniões e julgamentos da maioria. Nós mesmos veri-ficamos essa hipótese no estudo com Genevieve Paicheler, que foi

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publicado no primeiro livro por Henri Tajtel sobre a diferença entre grupos (Moscovici & Paicheler, 1978).

Você vê, eu penso que em psicologia social há duas orienta-ções, no estudo das relações entre grupos. Uma é a orientação de Sherif, com respeito à relação de grupos “in” e “ out” e a outra é a orientação de Lewin em Resolving Social Conflicts (1948), com

respeito às relações entre maiorias e minorias, ou melhor, entre um grupo que se representa como sendo a maioria e outro como sendo a minoria, ou vice-versa. Dependendo do que alguém se re-presenta ser, ele busca reconhecimento, ou se compara com outro. Mas de qualquer maneira que um grupo representar a si mesmo, ele somente pode comunicar, ou influenciar, se ele adotar um esti-lo comportamental. Estilos compo rtamentais são comporta-mentos simbólicos. Em um estilo comportamental, uma ação e uma representação estão associadas, conferindo sentido e rele-vância comunicativa. Isso pode ser e foi questionado. Contudo, a Professora Wendy Wood e seus colegas mostraram, em uma bri-lhante meta-análise com um grande número de experimentos,que os estilos comportamentais, particularmente a consistência, de fato desempenham um papel causal que a teoria lhes confere.

Falei, até demais, muitas vezes, da tendência de cortar teorias e até mesmo pior, de cortar fenômenos em fatias. A mesma coisa aconteceu com a teoria da inovação: minorias, conversão, mudan-ça de atitude, etc. foram consideradas fatias independentes da in-fluência. Por que isso foi feito e com que conseqüências, não está claro, ou parece claro demais. Isso não significa que a teoria não tenha feito progresso notável. Estudos empíricos fascinantes fo-ram levados a efeito e novas idéias foram propostas. Mas, você vê, ás vezes me sinto distante, até mesmo ultrapassado. Para mim, os experimentos são parte da ars inveniendi, a arte da descoberta, mais que a arte da prova e a explicação não é tudo, nem a coisa principal, na ciência. O que está ai para ser explicado deve primei-ro ser cuidadosamente descrito. Meu prazer, quando estou fazen-do experimentos, é descobrir novos e estranhos fenômenos; por exempla, a pesquisa sobre fenómenos de polarização de grupos, com Mariza Zavalloni (Moscovici & Zavalloni, 1969), entre outros.

IM - Então, é o estilo comportamental que liga diretamente as duas teorias, a teoria das representações sociais e a da inovação. Você estudou estilo comportamental e consistência não apenas no laboratório, mas também entre dissidentes.

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2.4. Dissidentes como uma minoria

SM - Sim. Os dissidentes escolheram consistência porque eles sabiam o que a consistência representa para os outros e o que o compromisso representa para os outros. Desse modo, estilos com-portamentais provem do estudo das representações sociais; sub-jacentes a isso tudo, nós temos representações de intenção, de comportamento, de regras de comportamento, etc. e você pode dizer que isso resulta em representação. Se nós não tivermos a mesma representação, então o estilo comportamental não tem efeito.

IM - O estilo comportamental está baseado na consistência e na repetição. A repetição é algo muito importante no desenvolvi-mento da representação. Você discute esse ponto em La Psychaly-se, como um modo de mostrar como a propaganda tenta mudar a representação. Desse modo, poder-se-ia ver esse papel do estilo comportamental de duas maneiras, primeiro, como uma represen-tação compartilhada, como uma expressão de objetivos, intenções, motivos que são compreendidos por outros; e segundo, como uma atividade consistente e repetitiva, que dá força a esses objetivos, intenções e motivos.

SM - Não pensei sobre isso, mas é verdade.

IM - Eu me pergunto se a essa altura você não poderia dizer algo sobre o estudo sobre dissidentes, porque seu excelente en-saio sobre Solzhenitsyn e Tvardovsky é conhecido apenas aos leitores franceses. Você o escreveu depois que a edição inglesa de Social Influence and Social Change (1976) tinha sido publicada e ele está incluido na versão francesa de seu livro intitulado Psycho-logie des minorités actives (Moscovici, 1979) que, de algum modo, expressa mais apropriadamente o enfoque principal do livro.

SM - Uma coisa que queria mostrar, nesse estudo, era que, uma vez que você está na posição de um dissidente, sua maneira de pensar, seu estilo de relações ou de comportamento mudam totalmente. Pude ver a que ponto o estilo comportamental é con-sistente em relação ao clima psicológico ou ã situação e As perso-nalidades implicadas. No ensaio sobre Solzhenitsyn e Tvardovsky, escrevi sobre pessoas que, em um tempo de um grande experi-mento histórico, foram indivíduos fortes e muito proeminentes, profundamente conscientes do que eles estavam fazendo e do que

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estava acontecendo social e politicamente. Ambos tinham objeti-vos pelos quais eles lutaram. Sua dramática relação revelou mui-tos aspectos da influência que eles exerceram um sobre o outro e achei isso iluminador. Essa foi também uma ocasião para confir-mar a hipótese sobre conflito e conversão. Dessa maneira, até cer-to ponto eles me forneceram subsidio teórico. Esses dois persona-gens - e por personagem eu quero dizer alguém que faz o que pen-sa e pensa o que ele faz - expressam a relação entre a atividade mental e a comportamental. “Desde que escrevi esse ensaio, traba-lhei sobre um terceiro personagem e fiz anotações sobre ele” . Sa-kharov. Ele é um personagem muito interessante. Ele tinha escrito suas memórias e comecei a trabalhar sobre elas. Você vê, então, que eu penso que a análise de textos literários, baseada em dissi-dentes, é um modo de progredir no estudo das minorias. Experi-mentos de laboratório poderiam, às vezes, transformar-se em não mais que uma série de pequenos estudos, um conduzindo ao ou-tro, um sendo um refinamento do anterior e assim por diante, todos juntos não sendo mais que uma espécie de trabalho intelec-tual fechado.

IM - Essas análises literárias são estudos sociopsicológicos imaginativos de grande valor. Mas são seus experimentos sobre minorias, que influenciaram os psicólogos sociais. Os psicólogos podem realizar estudos experimentais relativamente simples e bem arrumados e podem procurar por variáveis que Moscovici não levou em consideração, confirmar e desconfirmar Moscovici nessas variáveis; eles podem aperfeiçoar esses experimentos, me-lhorá-los e assim por diante. Em outras palavras, eles podem levar adiante a “ciência normal”, para empregar o termo de Kuhn. Eu di-ria que, de fato, todo livro-texto dos EE.UU. fala sobre seus estudos em influência da minoria.

SM - Mas não sobre inovação.

IM - Não sobre inovação. Esses experimentos podem ser vis-tos como a outra face dos experimentos em mudança social.

SM - Para mim, estudos dentro ou fora do laboratório têm o mesmo valor. Apenas considerações heurísticas decidem que tipo é apropriado para que fenômenos. A criação de novas idéias e no-

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vos fenômenos é o que nós estamos procurando e até mesmo sen-do pagos por isso. Os métodos são apenas meios para um fim. Se eles se tornam um fim, ou um critério da seleção dos tópicos e idéias, então eles são apenas outra forma de censura profissional. Então, você pode me chamar de oportunista metodológico e eu não me sentirei ofendido. Retornando aos dissidentes, eles fize-ram escolhas consistentes e recusam qualquer compromisso, por-que eles sabem que, aos olhos de outras pessoas, isso representa uma nova atitude e uma expressão de oposição, o sinal que indica que eles pensam de maneira diferente. Somente os comunistas fiéis, ou o “colaborador” compromissado, se comportou de uma maneira inconsistente nos julgamentos públicos, às vezes se opon-do, às vezes aceitando as acusações do advogado. Não havia dúvi-da quanto a isso, como Yakir diz em suas memórias, devido às pressões físicas e morais da policia, às quais todos os dissidentes estavam submetidos. Sendo assim, se os dissidentes não tivessem compartilhado as mesmas representações de estilo comportamen-tal com a maioria das pessoas e não tivessem tido alguma idéia sobre seus efeitos, eles não teriam escolhido isso como uma estra-tégia e nunca teriam convertido tantas pessoas que, por sua vez, influenciaram a outros.

Os estudos de laboratório são interessantes, porque eles po-dem fornecer uma análise mais detalhada dos fenômenos específi-cos. Aprendi muito tarde como fazer experimentos, embora tives-se uma noção de sua função a partir do meu conhecimento da his-tória da ciência. Aprendi que o ingrediente principal de um experi-mento é uma hipótese, uma hipótese que faz com que você com-preenda os fenômenos sob uma luz diferente. Há algum tempo, enviei um artigo para uma revista e um dos revisores disse que não tinha feito um esforço para falsificar minha hipótese. Muitas pessoas pensam que o dito de Karl Popper era “Falsifique idéias.” Na minha opinião, seu dito era: “Falsifique idéias arrojadas.” E idéias arrojadas são raras. Com respeito às outras, às mais co-muns, confirmá-las, ou falsificá-las, não faz nenhuma diferença. E mesmo com respeito às idéias anojadas, você tem de ser cuidado-so. Elas não podem ser fácil e prontamente submetidas a um teste experimental rigoroso; isso iria matá-las. Quando a biologia mole-cular estava in statu nascendi, um de seus pioneiros, Delbruck, recomendou a regra de deixar uma abertura, embora limitada, na apreciação de seus resultados, penso que essa é uma regra sábia.

Lembro que discuti isso com Leon Festinger, que também

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pensou que quando nós abrimos um novo campo de pesquisa, ou lidamos com fenômenos complexos, as pessoas e as revistas têm de mostrar mais flexibilidade do que sua prática normal. Penso que a revisão de Asch sobre a teoria da dissonância, que terminou com o julgamento “não provada”, já estava no fundo de sua mente. De qualquer modo, aprendi como fazer experimentos, porque eles oferecem uma possibilidade estimulante de explorar novos fe-nômenos, não porque eles são o método científico. Contudo, sem-pre senti a necessidade de procurar seu sentido e validade no con-texto social ou histórico. É por isso que coletei alguns materiais sobre dissidentes que eram acessiveis em francês e inglês. E o resultado foi o artigo sobre Solzhenitsyn e Tva rdovsky, em que coloquei a diferença entre uma minoria dissidente e uma minoria de comportamento desviante, que são muitas vezes confundidas.

IM - Poderia explicar a diferença entre esses dois conceitos?

SM- Um dissidente é uma pessoa que rompeu com uma insti-tuição, ou com uma minoria e propõe uma visão alternativa, luta por ela. Um indivíduo com comportamento desviante é alguém, ou um subgrupo, que se afasta da instituição, ou da maioria, mas con-tinua a compartilhar seus pontos de vista e suas normas. Solzhe-nistsyn queria subverter o marxismo e abolir o regime soviético. Tvardovsky tentou criticar, liberalizá-los, a fim de melhorar sua sociedade. Solzhenitsyn foi exilado e Tvardovsky “apenas” des-provido de suas funções no partido e de editor de NovyMir. É claro que esse tipo de explicação e de fenómeno não pode ser testado em um laboratório. Há uma defasagem enorme entre tentar mu-dar a mente de alguém sobre cores, por um lado, e mudar a mente de um dissidente sobre suas crenças com respeito ao comunismo, por outro lado. A teoria lida melhor com esse tipo de defasagem e sai enriquecida por ela.

IM- Bem, você não pode estudar tais questões em um labora-tório porque o trabalho de dissidentes é um processo longo - e tais processos são estudados em termos de representações sociais, Nos laboratórios se estudam coisas diferentes.

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SM - Elas são coisas diferentes, mas marcadas pelo mesmo referencial teórico e relacionadas à mesma teoria.

Há, portanto, alguns pequenos elos entre elas e espero que outros venham construir mais alguns; por exemplo, poder-se-ia pensar em um processo de gênese de um novo movimento social. Se uma minoria quer criar um movimento, mudar sua posição na sociedade e tornar-se ativa, ela tem de propor uma representação social alternativa. Subseqüentemente, ela tem de se comunicar, implementar uma estratégia de persuasão a fim de recrutar novos membros e influenciar a maneira de pensar e agir da maioria. Em Social Influence and Social Change (1976), tentei construir uma psicologia de minorias ativas, como uma contrapartida à psicolo-gia das massas, sobre-quem mais tarde escrevi outro livro, The Age of the Crowd (1985), como você sabe. Uma vez superado o que Norbert Elias chamou de accademismus, “a projeção das divi-sões acadêmicas e conseqüentes rivalidades no projeto de pesqui-sa dos departamentos”, a psicologia social é, na sua base, nada mais que um casamento entre a psicologia das minorias ativas e a psicologia das massas. Com essas duas psicologias, a alquimia social constrói tudo o mais: identidades, grupos, comportamentos coletivos, estereótipos, discurso e assim por diante. Você tem de acreditar em sua estrela da sorte, a fim de materializar rapida-mente seus sonhos, procurar uma resposta às perguntas que sur-giram no decurso de sua vida. Eu não sou particularmente um indivíduo otimista. Mas digo a mim mesmo que devo ter acredita-do em minha estrela da sorte ao ir em busca dessas teorias, perse-gui-las por tão longo tempo, a fim de procurar uma resposta ao que me assombrou por anos, a fim de dar sentido a minha experi-ência. Consegui, ou não, aos olhos de outros? Não compete a mim responder. De qualquer modo, elas me ajudaram a criar uma com-preensão melhor do mundo em que vivi e naquele em que esta-mos vivendo.

Finalmente, gostaria de lhe dizer que a teoria da influência exercida entre uma minoria e uma maioria, não nasceu da corren-te de pesquisa sobre influência (Sherif, Asch, etc.), mas da pesqui-sa sobre dinâmica de grupo. Como você sabe, por vinte anos ao menos, o grupo tinha desaparecido da psicologia social. Preencher esse vácuo de fenômenos e noções bem estabelecidos, heurísticos, será uma tarefa árdua. Seja como for, nós continuamos a pesquisa sobre dinâmica de grupo da escola de Lewin, em duas direções. De um lado, mencionaria os estudos sobre inovação e criatividade,

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estendendo nossa crítica à maneira como o comportamento des-viante e a ação das minorias, em um grupo, era concebida. Por outro lado, posso mencionar a pesquisa que levou à descoberta, com Mariza Zavalloni, da polarização do grupo (Moscovici & Zaval-loni, 1969), algo que não apenas me trouxe grande felicidade, mas foi também um dos fenômenos que me deu muita satisfação, tanto no plano estético, como no intelectual. Não apenas porque ele é fone e atraente, mas também porque ele está no coração da teoria das decisões coletivas (Moscovici & Doi-se, 1994), cujo primeiro esboço pode ser encontrado em Lewin e Sherif. A teoria trata da mudança nas preferências, as atitudes induzidas no e pelo grupo, através da participação e do envolvimento normativo de seus membros. Dada a coerência e fecundidade da teoria, foi pos-sível formulá-la em termos físico-matemáticos (Moscovici & Ga-lam, 1991), o que permite lançar uma nova luz so bre a dinâmica do grupo, a gênese das minorias e maiorias, as relações entre in-fluência e poder e, algo notável, sobre a evolução dos grupos. Gos-tei muito dela, porque leva à frente pontos fortes da pesquisa de Lewin sobre mudança dentro do grupo e da pesquisa de Sherif sobre envolvimento e mudança de atitude.

Porém, logo que transformamos a polarização do grupo em um fenômeno intra-individual, não apenas a teoria perdeu sua be-leza mas, além disso, o interesse, a centralidade do fenômeno fo-ram perdidos. No tempo de sua descoberta nós a consideramos como uma das principais contribuições da psicologia social expe-rimental européia. Isso foi assim porque o laboratório de Bristol, graças aos importantes estudos de Colin Fraser, tomou parte nele, como também, se lembro bem, o laboratório fundado por Martin Ide em Mannheim. Lembre-se que, naquele tempo, nós estáva mos muito ocupados, construindo conscientemente uma psicologia social na Europa. Pode ser ilustrativo você saber que em uma reu-nião Henri Tajfel disse: “OK. Nós temos algo parecido com uma interessante dinâmica de grupo. Agora, como Sherif depois de Le-win, nós necessitamos também de algo parecido a uma interes-sante dinâmica intergrupal.” Não conhecia essa relação, que ele me explicou em detalhe. Esse foi um dos motivos para seu envol-vimento naquilo que se tomaria seu trabalho de toda a vida e uma das teorias mais originais nessa área. E meu laboratório tentou contribuir com esse trabalho. Era muito excitante construir um campo científico na Europa, arranhando as extremidades, por as-sim dizer. Na verdade, isso é história. Mas lamento isso e não con-

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segui entender como é possível conceber uma psicologia social sem sociedade e sem o grupo, quero dizer, sem interação. Ou co-mo outras pessoas fora da área podem acreditar no valor de tal psicologia social. Isso não é uma questão de anti-individualismo e tudo isso. Simplesmente, as palavras ainda têm seu sentido e os campos científicos sua lógica. De minha parte pessoal, sinto-me muito triste com respeito a esse encolhimento, a essa perda de tempo, que me proporcionou muita alegria e confiança nas possi-bilidades da psicologia social poder se envolver com problemas muito importantes.

2.5. O modelo genético

IM - Você explicou a relação entre a teoria da inovação e a te-oria das representações sociais de duas maneiras básicas. A pri-meira, que ambas as teorias estão interessadas na mudança social. As representações sociais estão, muitas vezes, interessadas em fenômenos macrossociais, que são de natureza duradoura e tais fenômenos são dificeis de estudar em laboratório. São as minorias que levam à frente a mudança social, introduzindo inovações. A segunda maneira, que existe uma noção de estilo comportamental, comum a ambas as teorias.

Contudo, iria dizer que é no modelo genético onde você apre-senta uma perspectiva muito nova em psicologia social e isso é algo que os livros-texto dos EE.UU. evitam discutir. Eles falam so-bre influência da minoria, mas nunca sobre a questão teórica que está subjacente ao modelo genético.

No meu entender, o que é totalmente esquecido é a Parte I de seu livro sobre minorias, que tem o título de “Influência social do ponto de vista funcionalista” e Parte II, “Influência social do ponto de vista genético”. Como falamos antes sobre isso, você apresenta os processos de influência da maioria e da minoria não como dois processos separados, mas como duas facetas de influência, que são mutuamente interdependentes. Você coloca claramente ali essa diferença essencial entre os modelos funcionalista e genético (Moscovici, 1976: 6). Para o primeiro modelo, o sistema social e o ambiente são dados, para o último, eles são produtos; para o pri-meiro, o acento está na dependência dos indivíduos do grupo e

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sua reação social a ele, enquanto que para o último o acento está na interdependência entre os dois; para o primeiro, os indivíduos e o grupo tendem a se adaptar, enquanto que para o último eles crescem. Crescer significa aqui, por exemplo, o desenvolvimento da capacidade de criar novas maneiras de pensar, de definir seus limites, de modificar o ambiente e ampliar a rede de relações so-ciais, embora eu pense que é importante enfatizar que “cresci-mento” realmente significa “co-crescimento”, isto é, crescimento de ambas as partes na diade indivíduo/grupo, ou minori-a/maioria.

SM - Claro, não pensei que o modelo genético esteja especifi-camente relacionado à influência ou às representações sociais. Éuma concepção subjacente a ambos os fenômenos e, na verdade, ele expressa o objetivo da ciência. Por exemplo, quando compre-endi que o senso comum é a area privilegiada da psicologia social, a primeira coisa com a qual me interessei, a primeira pergunta que fiz a mim mesmo, foi descobrir como o senso comum é cons-truído, como ele chega a existir e como ele acaba, para empregar as palavras de Aristóteles. Devo colocar explicitamente o que disse implicitamente muitas vezes: o conceito de senso comum está ancorado na comunicação; e comunicação implica uma criativida-de semelhante à da linguagem, à la Humboldt, ou à transformação, ao desenvolvimento de um nível de conhecimento a outro. Desse modo, a prática humana tem acesso a questões que estiveram an-tes inacessíveis.

Tentei mostrar que há um modelo funcionalista subjacente às teorias de conhecimento e influência em psicologia social e pensei que esse modelo deveria ser substituído pelo modelo genético; isso quer dizer, por um modelo que considera a sociedade como uma rede mais ou menos estruturada e que vê as relações se cons-truindo, não como já construídas. Nesse modelo, a influência so-cial é vista como uma ação ou negociação recíproca, não como uma forma de pressão exercida pelo grupo sobre o indivíduo, para restabelecer o equilíbrio.

Na verdade, tudo isso deve ser discutido mais longamente e em maior detalhe, o que iria exigir mais tempo. Há relações entre o modelo que proponho e a idéia de Giddens de estruturação, ou o modelo de Vygotsky de desenvolvimento. Penso que algumas cri-ticas sobre a reciprocidade maioria/minoria nem sempre enten-deram a questão que estava sendo discutida. Elas não parecem estar interessadas na minha opinião, nem solicitam uma réplica.

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Sempre tive a impressão que algumas pessoas pensam que não sei ler, ou não entendo inglês. Desse modo eles me atribuem opiniões, ou fazem julgamentos sobre meus pensamentos, como fazem os antropólogos, escrevendo artigos sobre os pensamentos dos assim chamados primitivos, acreditando que eles não vão ler o que foi escrito sobre eles. Isso é porque eu vivo na França? Consideradas todas as coisas, eles dizem o que querem e estão simplesmente satisfeitos em concordar entre si. Lamento essa situação, mais por causa do clima intelectual da disciplina, do que por mim mesmo. O que interessa e o que permanece conosco é o que traz novas idéias e novos fenômenos. E isso A diferente da mera polêmica, que não é sempre agradável. Quero simplesmente dizer que, por detrás das objeções de alguns e da ironia de outros, subjaz o modelo fun-cionalista, não mencionado, mas sempre presente, que correspon-de ao nosso positivismo e empiricismo espontâneos e a uma re-presentação especifica de sociedade. Isso explica sua ex-traordinária persistência, bem como a das noções que dele deri-vam para nossa disciplina. É um modelo estático, mecanicista, com uma preferência por modelos automáticos repetitivos. Eu sou atraída por fenômenos dinâmicos, noções geradoras e o estudo dos fenômenos in statu nascendi. Esse é, em poucas palavras, o espírito do modelo genético.

IM - Sim. Certamente concordo com seu diagnóstico - na ver-dade, há alguns anos expressei, de maneira semelhante, a nature-za oculta de nosso pensamento “cartesiano”, isto é, estático. Con-tudo, embora a concepção sobre aquilo em que o modelo genético está baseado, tenha uma validade geral nas ciências, incluindo as ciências naturais, é importante mostrar que você foi o primeiro a introduzi-lo na psicologia social empírica.

Para mim, teoricamente, o modelo genético subjaz também á teoria das representações sociais, por que ali também nós temos a relação entre maioria, seja qual for e minoria. Essa interdependên-cia mútua, contudo, é difícil de captar no laboratório, porque tal processo é complexo e a longo prazo. Podemos examinar apenas partes desse processo e colocá-las junto, apenas mais tarde. Por exempla, pode-se demonstrar, no laboratório, a operação do estilo comportamental, mas sua força e conseqüências formidáveis nas atividades de um dissidente e seu efeito no regime totalitário não são, seguramente, matéria de um experimento de laboratório. Se alguém quisesse estudar influência social no laboratório, deveria, provavelmente, fazer algo mais, deveria também mostrar como as

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maiorias e minorias conseguem essa mudança social.

SM - Isso é difícil de estudar no laboratório.

IM - Exatamente e é por isso que pensei que o estudo das re-presentações e da influência é complementar, nessa maneira. Pen-so igualmente que é difícil estudar representações no laboratório. Você deu alguns exemplos quando você fez isso com Fau cheux. Penso que esses exemplos, contudo, são de natureza dife rente, por que você já sabe o que é uma representação.

3. Representações sociais, a teoria da inovação, lingua-gem e comunicação

IM- Parsons (1968) nos lembra da ênfase de Durkheim sobre a natureza simbólica das representações coletivas e sociais. Para um sistema ser simbólico, deve ser cultural e social e a linguagem, aponta Parsons, é aqui o protótipo. No nosso diálogo, hoje, a ques-tão da relação entre representações sociais e linguagem apareceu em diversas ocasiões. A linguagem e a comunicação são parte de sua definição original de representações sociais, como você a a-presenta em La Psychanalyse. Pode-se, contudo, voltar mais atrás. Você descreve, na Chronique des années égarées, suas observações de conversações na Itália, antes de você virá França. Naquele tem-po, você não falava italiano, como você comentou em suas obser-vações como “minha escola Berlitz para o italiano” (Moscovici, 1997: 5O6). Ritmo do movimento do corpo, nuanças no tom da voz, interdependência entre gestos e palavras, seu efeito no pen-samento - tudo isso parece ter levado á convicção da “importância da conversação em minha teoria de representações sociais” (ibid.: 5O6). O mesmo tema, a importância da comunicação no desenvol-vimento do conhecimento na -ciéncia humana, é também enfati-zado em seu Essai sur I”histoire humaine de la nature (1968/1977). Por isso, nosso diálogo, hoje, estaria incompleto sem que toquemos na interdependência entre linguagem e repre-sentações sociais.

SM - Oh, eu sabia que você iria levantar essa questão. Foi fun-damental, desde o inicio, estabelecer a relação entre comunicação

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e representações sociais. Uma condiciona a outra, porque nós não podemos comunicar, sem que partilhemos determinadas repre-sentações e uma representação é compartilhada e entra na nossa herança social, quando ela se torna um objeto de interesse e de co-municação. Sem isso seríamos levados á atrofia e, no final, tudo desapareceria. Por isso, em La Psychanalyse, diferenciei entre três sistemas de comunicação - difusão, propagação e propaganda - de acordo com a fonte, o objetivo e a lógica das mensagens. Se lembro bem, esses foram os primeiros artigos que publiquei em psicologia social. Seguramente, isso precedeu a moda da semiática; era antes de descobrir Bakhtin. Hoje eu falo sobre gêneros de comunicação. A conversação é o primeiro género de comunicação em que, coma sugeri desde o inicio, o conhecimento do senso comum é formado. Os outros três, difusão, propagação e propagam da, são gêneros secundários de comunicação e eles são, infelizmente, muito menos estudados. Seguindo essa idéia, devemos olhar formas de pensa-mento ou conhecimento, como inseparáveis da linguagem e da forma do gênero de comunicação. Claro que isso é o pano de fundo (background), para usar o termo de Searle, de uma visão particu-lar. Uma das idéias mais gerais, sobre a qual nunca parei de pen-sar, desde o dia em que descobri Tarde, é a da ciência comparativa da conversação em diferentes culturas, de acordo com a postura dos corpos; as regras que alguém tem de respeitar, as relações entre sexos e assim por diante. E imaginei minha hipótese, basea-do na comparação dos modos de falar e o conhecimento. Realizei, então, dois ou três estudos, que enriqueceram minha hipótese inicial sobre as respectivas posições dos corpos - por exemplo, de costas, etc. - e as características sintáticas da língua falada, ou das idéias expressas. Na Bélgica, meu colega Bernard Rimé desenvol-veu esse tipo de estudo e vejo que, mais recentemente, Robert Kraus, na Columbia University, se interessou pelos mesmos fenô-menos. Apesar dos esforços de Rommetveit e meus próprios, na Europa e de Robert Kraus nos EE.UU., a linguagem ainda não tem um lugar na psicologia social, como se as pessoas não pensassem com palavras e locuções, mas com “bits” de informação, seja o que isso queira significar, como se eles não se engajassem em um diá-logo e nunca tivessem um mo nólogo interno - na verdade, o monó-logo interno foi apelidado de ruminação. A introdução da lingua-gem na psicologia social, o estudo dos seres humanos depois, e não antes, deles terem descoberto essa maravilhosa habilidade da fala, foi um sonho agradável - e continuou assim.

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É correto afirmar que, quando as pessoas falam sobre La Psy-chanalyse, eles se concentram na representação e se esquecem da segunda parte do livro, que trata de comunicação e linguagem. Como você disse, prestei atenção não apenas às mudanças nos conteúdos, mas também às mudanças na maneira como as pessoas falam sobre ele. Se nós estamos interessados no pensamento soci-al, não podemos apenas imaginar pessoas ruminando informação, ou ruminando conhecimento, como se eles fossem mudos, ou não tivessem corpo. Minha hipótese em la Psychanalyse foi que exis-tem diferentes sistemas de comunicação e conversação em niveis interpessoais, do mesmo modo que há difusão, propagação e pro-paganda em nível da “massa”; e que suas “regras” ou lógica con-formam essas representações sociais de maneiras especificas. A psicanálise foi não apenas tirada dos livros e tornada pública. Ha-via uma luta cultural, os comunistas lutavam contra ela, a Igreja Católica sutil e consistentemente resistia a ela e construía uma representação inócua bastante diferente. Foi somente na década de 197O que a situação mudou, quando a psicanálise de tornou quase que uma religião civiL Mostrei como as prá ticas sociais se tornaram relacionadas, por exemplo, a falas sobre cura e confis-são, como essas práticas expressam suas representações em lin-guagem e como a própria linguagem, ao mesmo tempo, vai mu-dando. Para mim, comunicação é parte do estudo das representa-ções, porque as representações são geradas nesse pro cesso de comunicação e depois, claro, são expressas através da linguagem. Sempre pensei que a conversação é algo muito básico para a psi-cologia social. Esse ponto de vista era - e ainda é - algumas vezes, ridicularizado, no sentido de que conversação foi pensada como sendo algo em si mesma, algo pendurado metafisicamente em si mesma. Foi nesse contexto do estudo da comunica ção, que come-cei a pensar sobre lutas culturais - o que os alemães chamam kul-turkampf - algo como uma “luta de idéias” e essas têm lugar no campo da comunicação, na formação de representação social. Por-tanto, uma representação social não é uma coisa tranqüila, consis-tindo de um objeto e uma ciência e a transforma ção desse objeto. Normalmente, há uma espécie de batalha ideológica, uma batalha de idéias e tais batalhas são importantes mesmo na ciência. Como disse Einstein, a única diferença entre uma ciência e uma guerra é que na ciência você não mata pessoas; as pessoas não morrem na batalha cientifica das idéias. Penso que o que está faltando muito na psicologia social de hoje é uma preocupação com a luta das idéias.

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IM - Estudar representações sociais da psicanálise, portanto, foi particularmente importante, porque essa questão era relevan-te naquela ocasião, estava em seus começos, era saliente. Estava, por assim dizer, na linguagem e na comunicação da época. Quando meus colegas e eu começamos a pesquisar, depois do fim do co-munismo na Europa Central e do Leste, em 199O, sobre as repre-sentações sociais da democracia, não conhecia nada sobre sua análise da linguagem em La Psychanalyse. Mas nossas questões eram semelhantes ás suas: a propaganda comunista, durante qua-renta anos no poder, conseguiu mudar as representações sociais da democracia? Do mesmo modo que em seu estudo da psicanáli-se, assim também a palavra “democracia” foi particularizada, fo-ram-lhe dados sentidos ideológicos específicos que, contudo, ob-tiveram um significado ideológico global, por exemplo, “ democra-cia burguesa”, “democracia soviética” e assim por diante. Foi então que Ragnar Rommetveit chamou minha atenção para o trabalho do filósofo Ame Naess, sobre a análise semântica da democracia. Naess fez sua pesquisa como parte do estudo da Unesco durante a Guerra Fria, em 195O.O objetivo desse estudo era, através da compreensão dos sentidos da palavra empregados pelas ideo-logias rivais do Leste socialista e do Oeste capitalista, diminuir a tensão internacional. Naess observou que os políticos soviéticos nunca empregavam o termo “democracia” sem um adjetivo, refe-rindo-se ou a “democracia proletária” ou “democracia capitalista” e assim por diante, sendo que “democracia soviética” estava no cume de todas as democracias possiveis. Conseqüentemente, eles obviamente empregavam as mesmas regras da propaganda que você descreve em La Psychanalyse.

3.1. Persuasão e propaganda

SM - Podemos considerar a teoria da inovação como um a-profundamento da teoria da comunicação, que me cativou naquele tempo e ainda me cativa Infelizmente, as pessoas têm apenas um interesse marginal nela. Muitos dos psicólogos que conheço sepa-ram o fenômeno da comunicação do fenômeno da influência. Mes-mo que entenda suas razões para proceder assim, não penso que essas razões sejam convincentes. Sob muitos aspectos, considero a distinção entre esses dois fenõmenos como artificial. Toda men-sagem, toda emissão lingüística, está baseada em uma intenção

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persuasiva. Não é essa a idéia inerente ao modelo de comunicação apresentado por Grice? Minha teoria é uma teoria da influência; mas, pelo mesmo motivo, é uma teoria do processo comunicat ivo que normalmente acontece entre os partidários e os opositores de diferentes pontos de vista. É assim que a apliquei quando fazia parte da criação do movimento ecológico na Europa e algumas pessoas a aceitaram como expressando a psicologia daqueles que fizeram parte do movimento. Tive sorte em propor teorias sobre aquilo que é considerado como o fenômeno básico na psicologia social. Penso, contudo, que devemos fazer um esforço para unifi-car os conceitos e fenômenos, para colocar um fim a subdivisões que subsistiram por trinta ou quarenta anos e, de certo modo, usar a navalha de Occam para noções como atitude, influências normativas e informacionais, preconceito e muitas outras, mesmo que eu, como outros, tenhamos trabalhado com elas. Essas noções não me parecem ter mais valor heuristico. Esse comentário não me ajudará a conquistar amigos, mas estou convencido de que é isso que temos de fazer.

IM - Você mostrou que, quando nós falamos sobre influência e comunicação, temos de distinguir o problema da persuasão dos gêneros de comunicação. Não tenho clareza sobre essa distinção.

SM - Tentarei explicar. A comunicação é um processo social e uma instituição social. Mudar as mentes das pessoas é apenas uma parte dela, mas não é o objetivo desse processo. Você pode dizer que rezar é um género de comunicação, é muito importante, é a cura da alma. Rezar muda as mentes das pessoas, mas não é o ob-jetivo real desse gênero de comunicação. Agora, a persuasão é a parte do processo que está relacionada com a mudança das pes-soas; você tem de ter uma idéia da estrutura da cultura, da estru-tura do grupo que usa a instituição de comunicação continua. Te-mos instituições de comunicação; uma escola é uma instituição de comunicação. Dependendo de ser ela bem-sucedida, ou não, ela tem determinada estrutura; a certa altura, você pode se perguntar se ela é bem-sucedida, se ela muda e esse é um problema de per-suasão.

IM - A persuasão e a propaganda estariam, então, no mes mo nível?

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SM - Não, não. A propaganda é algo que está nas instituições; a propaganda não é apenas “eu quero mudar as mentes das pes-soas,” ela é algo que uma instituição faz continuamente e mu dar as mentes das pessoas é parte disso. A propaganda procura manter a estrutura da instituição, manter a representação e manter a estru-tura social. Nós comunicamos, a sociedade tem de comunicar con-tinuamente, bem ou mal. Desse modo, as representa ções estão relacionadas com esse processo continuo de comunicação e mu-dar as opiniões é parte dele. Com brevidade, a propaganda e a oração são também rituais e sua função é manter a insti tuição, o partido, etc.

IM - Tentarei sintetizar o que entendi. A propaganda faz mui-tas coisas na sociedade, a fim de manter e fortificar as representa-ções sociais existentes - e também para criar novas representa-ções sociais. Antes, nesse diálogo, falávamos sobre a tentativa da imprensa comunista e da Igreja de criar novas representações sociais da psicanálise. Entre outras coisas que a propaganda faz, ela também muda as mentes das pessoas. Não é seu objetivo prin-cipal -embora esse possa ser um objetivo muito importante, como ambos, você e eu, experimentamos, vivendo em regimes totalitá-rios.

Em contraste, os processos de influência operam, em grande parte, através da comunicação persuasiva, sendo seu objetivo fun-damental mudar as mentes das pessoas, mas isso não seria plane-jado estrategicamente. No inicio você falava da ciência, ideologia e senso comum. Desse modo, em certo sentido, no co munismo e no marxismo a propaganda empregava tanto a ciência, como a ideo-logia, para seus propósitos. De fato, no bloco soviético havia a pro-fissão de “propagandista”, cuja tarefa era educar as pessoas no mandsmo-leninismo.

SM - Sim, mas era a instituição da sociedade, ou do partido. Era comunicação, como a oração é a comunicação da Igreja. Não era feita independentemente dessa instituição. Assim, quando você tenta compreender a propaganda, você deve olhar para tudo isso e não apenas para a mudança das mentes das pessoas. Propa-ganda é uma instituição e nós a experimentamos, por exemplo, na midia. A midia faz propaganda todo o tempo. Com respeito á psi-cologia social da influência, aqui nós estamos interessados apenas no problema de como esse processo de comunicação muda as mentes das pessoas. Nos estudos sobre influência da minoria, en-foquei principalmente a persuasão, como as minorias influenciam.

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O estudo de comunicação que realizei sobre psicanálise e propaganda não foi um estudo sobre persuasão, foi um estudo sobre certos géneros de comunicação, de certas instituições. Ao contrario, nos estudos sobre minorias, enfoquei outro aspecto da comunicação, a persuasão e a influência.

3.2. Representações sociais e construção social

IM - Você disse antes que não aceita apenas o falar por falar, como sendo a base da psicologia social, pendurada metafisicamen-te nela mesma. Isso me leva ao último ponto que gostaria de dis-cutir com você, isto é, às questões referentes á relação entre a teoria das representações sociais e da construção social. Quando emprego o termo “construção social”, devo ser mais específica: quero referir-me ao que hoje em dia é conhecido como constru-cionismo, relacionado a algumas formas “radicais” de análise de discurso. Ouvi, recentemente, afirmações - e penso que são escu-tadas sempre mais freqüentemente - que as representações soci-ais e a análise de discurso são semelhantes pelas seguintes razões: ambas se interessam pela linguagem; ambas são construtivistas; ambas se interessam pela crítica à ciência individualista e positi-vista. Do meu ponto de vista, essas semelhanças citadas são muito gerais para formar a base de quaisquer tentativas integrativas sérias. Gostaria de lembrar-lhe o que Kurt Danziger (1997) disse recentemente, sobre o construcionismo social, a análise de discur-so e sobre o pós-modernismo, em seu ensaio de revisão de onze livros escritos sobre o tema do construcionismo e outros assuntos relacionados, publicado em Theory and Psychology: “asimplicações relativistas de tratar todo conhecimento como localmente cons-truído impossibilitam o estabelecimento de qualquer agenda, seja ela a do objetivismo autoritário, ou a da emancipação.” Ele conti-nua dizendo que, no final das contas, nem fica claro por que al-guém deva preferir o construcionismo social ao empiricismo tra-dicional. Ainda mais, o construcionismo começou com uma critica e continuou como uma critica. Nesse sentido, ele é um parasita das teorias que ele critica. Como resulta do disso, ele dificilmente de-senvolve uma teoria concretamente estabelecida, que resista à critica.

SM - Diverti-me lendo a revisão de Danziger (1997) e vendo que, dos dois tópicos que ele escolheu, um se refere à lembrança coletiva e o outro à causalidade, os tópicos que foram fundamen-

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tados na idéia de representação por Halbwachs e por Fauconnet. A propósito, você sabe que Lévy-Bruhl foi considerado na França como sendo um psicólogo social, bem como Halbwachs?

Tenho muitas imagens de construcionismo social. Para come-çar, existe a posição irônica de Rorty e a tentativa de “desmasca-rar” algumas das categorias existentes, tais como crenças sobre ciência, sobre esquizofrenia, raça e assim por diante. Mas nunca fica claro o que ele desmascara, se é uma representação comparti-lhada, uma idéia, ou uma “coisa”, para tomar o termo de Lacan. Desmascarar é a visão de Mannheim, que foi praticada pelos inte-lectuais de esquerda. Isso é radical, ou pretende ser radical? Marx disse, em algum lugar, que ser radical significa ir às raízes, ser cri-tico e transformar sua crítica em uma arma política. Você leu mi-nha história autobiográfica e você sabe que foi isso que fiz. E mais tarde na vida, minha crítica com respeito à ciência, à natureza e á desigualdade das mulheres fez com que me tornasse um dos pio-neiros da ecologia política, participando ativamente em demons-trações contra as usinas nucleares e colocando-me como candida-to à eleição. Creio que as representações sociais implicam uma posição critica e não uma posição irônica, que pode levar a um en-gajamento prático. A teoria da influência da minoria, foi aplicada conscientemente por alguns dos movimentos “verdes”.

Em segundo lugar, vejo o construcionismo social como se o-pondo ao positivismo e promovendo uma técnica, especifica mente a análise de discurso. Francamente, o positivismo é uma posição que já morreu há muito tempo. Com respeito à análise de discurso, ela é perfeitamente compatível com a teoria das repre sentações sociais. Na verdade, a análise de discurso começou na porta ao lado de meu laboratório, com o trabalho de Pecheux e Henri. Foi aplicado ao estudo das representações sociais pelo próprio Pe-cheux. Isso não é de se admirar, pois Ragnar Rommet veit e eu fo-mos os dois primeiros psicólogos sociais a defender seriamente a integração da linguagem na psicologia social. Publiquei até mesmo o primeiro livro de leituras em inglês sobre psicologia social da linguagem. É verdade, contudo, que eu não subscrevo à fórmula “linguagem über alies”. Considero isso errado e nenhum pensador sério jamais aceitaria isso, incluindo Wittgenstein ou Austin.

Em terceiro lugar, não encontro nenhum trabalho convincen-te dizendo como nós construímos socialmente. Apenas através da conversação e negociação ao redor da posição na escala de poder? E como pode você construir algo, sem ter uma representação so-

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cial, mesmo uma utopia? Na minha experiência e visão da socie-dade, ela é algo sobremaneira poderoso e seria forçar demais re-duzi-la a operações interpessoais e negociações intersubjetivas. Escrevi sobre esse tópico em meu livro The Invention of Society, de modo que não vou repetir meus argumentos aqui.

Finalmente, sou muito relutante em aceitar que a ciência é, para emprestar uma frase de Hegel, “à noite todos os gatos são pardos”, significando que nada é ou verdadeiro ou falso, que todas as teorias e idéias têm o mesmo valor, ou melhor, não-valor. Curi-osamente, tem-se a impressão que, se a ciência se tomou uma ide-ologia, o que era ideologia foi substituído por conhecimento ou ciência Mas isso não é certo. Não tendo treino filosófico, não gos-taria de fazer um julgamento sobre aqueles que supostamente deveriam saber. Mas é verdade que algumas vezes, quando leio um desses livros, fico impressionado pelo caráter vigoroso de suas afirmações. Então lembro logo que a epistemologia também pode ser uma forma de censura que, em outros climas, pode ter custado a vida a muitos. Nos nossos tempos, ela apenas toca a questão do nosso ostracismo intelectual. Esse é um fato sociológico para você!

IM - Você se refere muitas vezes à criatividade do pesquisa-dor e à importância da descoberta de novos fenômenos, que você vê como sendo características da teoria das representações so -ciais. Poderia dizer algumas palavras sobre isso?

SM - Essa é uma questão de experiência pessoal e de escolha. Quando era moço, muitas pessoas na França estavam escrevendo artigos e livros sobre o que estava certo ou errado, o que era uma ciência critica ou uma ciência apologética, o que era psicologia social boa ou ruim e assim por diante. Embora tenha algumas i-déias sobre isso, raramente as expressei. Não acreditava - e ainda não acredito - que uma boa epistemologia, ou uma boa ideologia, leve à criatividade. Para mim, a ciência e a filosofia são formas de arte. Como artistas, os pesquisadores se esforçam para criar algu-ma coisa, para cunhar novas noções, descobrir fenômenos, inven-tar teorias ou práticas alternativas. Tais práticas criativas são, elas mesmas, uma critica das teorias e práticas existentes. Não se des-trói o que não se substitui. Esse foi o objetivo que coloquei para mim mesmo, quando me tornei um pesquisador: descobrir, inven-tar e ser critico através da realização de algo novo. Penso que se pode mudar a ciência social, a psicologia social, criando uma nova

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teoria e que a criação de uma nova teoria é, em si mesma, uma cri-tica Ainda mais, penso que a crítica sem uma teoria alternativa concreta não tem dentes, é algo fictício. Aqui, como em qualquer lugar, é verdade que “os homens fazem a história, mas eles não sa-bem que história eles fazem.”

IM - Que pensa você das pessoas que estão tentando colocar o contrucionismo e a análise de discurso junto com as representa-ções sociais?

SM - Fazem isso? Para o adorador da metáfora do computa-dor, todas essas tendências representam holismo, linguagem, sen-tido, quem sabe. Para outros, é apenas uma boa intenção_ Masco-mo diz o provérbio, “A estrada para o inferno está pavimentada com boas intenções.” Como posso saber se isso pode ser conse-guido de uma maneira criativa? O construcionismo é, na melhor das hipóteses, uma metateoria. A teoria das represen tações soci-ais, diria, pode ser vista em duas perspectivas. Primei ro, é uma teoria concebida para responder a questões específi cas, com res-peito a crenças e vínculos sociais e para descobrir novos fenóme-nos. Em segundo lugar, ela é também a base de uma psicologia social do conhecimento. Ela está interessada como pensamento do senso comum e com a linguagem e comunicação. Parsons nos lembra que a linguagem era um protótipo, integrando fenômenos culturais e individuais e que por isso ela era parte do estudo das representações coletivas e sociais, desde o inicio. A análise de dis-curso, por enquanto, não possui uma autêntica teoria do diálogo e da linguagem. A teoria das representações sociais está interessa-da, por um lado, com questões de vínculos sociais e da ação e, por outro lado, com o conhecimento social, comunicação e linguagem. Na minha opinião, a análise de discurso é uma parte dela. Af inal, você conhece essas questões melhor do que eu, você escreveu sobre isso.

4. A Associação Européia de Psicologia Social

IM - Falamos sobre seu trabalho como psicólogo social. Con-tudo, você influiu também no estabelecimento da Associação Eu-ropéia de Psicologia Social. Poderia dar alguns detalhes biográfi-

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cos com relação a essa parte de seu trabalho?

SM - Minha idade da inocência terminou no começo da déca-da de 196O, quando encontrei outros psicólogos sociais europeus e americanos que organizaram uma reunião em Sorrento, depois em Frascati, onde encontrei outros colegas. Suponho que você não esteja interessada em saber como fui eleito em Frascati para um comitê ad hoc, depois fiz a proposta para criar uma associação eu-ropéia, como um tipo de minoria ativa e me tornei seu primeiro presidente. Você está provavelmente interessada em escolhas mais substanciais. Deixa-me colocar a coisa da seguinte maneira. Os americanos que encontrei, pensavam sobre nós, psicólogos so-ciais europeus, em termos de duas tendências. A primeira, vamos chamá-la de tendência clone, era usar a Europa como um campo de estudos comparativos e generalização. Queriam assim treinar psicólogos sociais á sua imagem, que compartilhassem suas idéias e métodos, em síntese, criar um ramo da psicologia social ameri-cana na Europa. A segunda tendência, vamos chamá-la de ten-dência de disseminação, tentava principalmente nos ajudar a criar laboratórios, associar-se com aqueles que eram, supunham eles, psicólogos sociais criativos e deixá-los fazer o que julgassem útil. Para eles, é claro, o crescimento da psicologia social européia não significava o crescimento de teorias com validade apenas local; essas teorias deveriam se expandir no contexto das tradições de pesquisa e de pensamento, que eles sabiam serem especificas des-se contexto. Não quero nomear pessoas, mas Festinger defendia essa segunda tendência.

Lembro que o encontrei, Schachter e Lanzetta, no Hotel de la Ville, em Roma e discutimos isso. Concordamos que não se pode promover a pesquisa de uma ciência jovem, que apenas tomava corpo, mesmo nos EE.UU., somente através da imitação, somente importando idéias ou métodos. Eles eram até mesmo mais radi-cais que eu. Festinger disse, nós vamos ajudá-los a começar, que-rendo dizer, vocês criam seu campo e a associação da maneira de vocês e depois nós nos retiramos, institucionalmente falando. A principio, estava relutante, porque pensava que era muito bom para ser verdade e também por causa de algumas experiências an-teriores, que não quero mencionar. Os acontecimentos, contudo, mostraram que estava enganado. Tomei-me um membro do Co-mitê Transnacional de Psicologia Social, cujo presidente era Leon Festinger. Esse comitê foi muito ativo na criação da Associação Européia e, depois, na criação da Associação Latino-Americana.

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Tomei-me presidente quando, por razões institucionais, o comitê foi transferido do Social Science Research Council, em Nova Iorque, para a Unesco, em Paris. Durante esses anos, embora seus mem-bros mudassem, nós permanecemos um grupo ativo, amigo e pen-so que fizemos um trabalho razoavelmente bom.

Há muitos psicólogos sociais que me consideram como um patriota europeu. Isso é cômico e tranqüilizador, dada minha vida nômade- É claro, gosto da Europa, seu estilo de vida, da riqueza de sua cultura, diversidade de pessoas e criatividade histórica. E Pa-ris não existe em nenhum outro continente e eu amo Paris. Mas o outro lado da moeda, na Europa, são suas tragédias, crueldades e guerras terríveis, que não são destruições criativas, mas destrui-ções tout court. Nossa atitude com relação a outras pessoas de-pende da história e depois da experiência. Para mim, os EE.UU. e os americanos não são nem qualquer pais, nem pessoas especifi-cas. Não foi em um campus que por primeiro encontrei alguns americanos, foi em Viena, Munique e também nos campos de re-fugiados, logo depois da II Grande Guerra. Meus sentimentos, mi-nhas impressões com respeito a eles, reto rnam àquelas experiên-cias. Como muitos outros europeus, devo a eles minha vida, mi nha liberdade e isso cria um elo cordial, uma gratidão eterna. Isso con-tinuou, pois compreendi uma porção de coisas com respeito à pesquisa em geral e à psicologia social em particular, graças a meus contatos e trabalho com eles. Não me teria tomado o mesmo homem e não teria trabalhado do mesmo modo, se não tivesse tanta sorte de encontrar e me ligar, em uma profunda amizade, com americanos tais como Festinger, Deutsch, Lanzetta, Schach-ter, Kelley, Berkowitz, Zajonc e muitos outros que me estimula-ram, me criticaram, mas que também levaram a sério o que estava fazendo e até mesmo me encorajaram a publicar em inglês algum trabalho de pesquisa in statu nascendi, como fez Berkowitz quan-do lhe falei do meu trabalho sobre linguagem e inovação.

E depois, de certo modo, tive uma carreira paralela nos EE.UU., na New School. Não há dúvida que temos certas afinidades

intelectuais e geracionais e uma libido sciendi que vai bem além de considerações de interesse ou carreira, o que não significa que nós temos a mesma visão de psicologia social, ou de problemas teóri-cos. Não diria, por exemplo, que a teoria das representações so -ciais, em especifico, era seu prato preferido. Mas nunca escutei al-guém me dizendo que ela é estúpida, européia, não científica, ou que não deveria prosseguir com ela. Penso que temos um respeito

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genuino uns pelos outros. Veja, vou contar-lhe uma anedota. Quando Faucheux e eu publicamos nosso primeiro artigo sobre in-fluência da minoria, ele provocou tanto curiosidade, como ceticis-mo. Mas, durante as férias de verão, Lanzetta organizou um tipo de seminário, em Dartmouth. E durante três semanas, cada tarde, nós discutimos as idéias e experimentos com respeito a essa for-ma de influência. Se lembro bem, entre os americanos estavam, além de Lanzetta, Brehm, Kelley, Sarah e Chuck Kiesler, que me ajudou a compreender mais claramente as questões teóricas e empíricas que poderiam ser colocadas.

Isso é para explicar quão estreitos eram os elos entre euro-peus e americanos e quanto quis trabalhar com eles. Afinal de contas, a psicologia social tinha apenas tomado corpo em uma disciplina autônoma e nós tínhamos um objetivo comum. Repito, havia diferenças de fato, mas olhando para trás algumas pessoas as exageraram, pois elas não conhecem o outro lado da moeda. Seja como for, ao menos foi assim que eu senti: os americanos não viam a Europa como um deserto intelectual, como nós não olhá-vamos para os EE.UU. como uma espécie de Mecca, para onde as pessoas tinham de fazer sua peregrinação para voltar como cren-tes qualificados. Isso pode ser creditado ao fato que nossos cole-gas americanos tinham sido alunos de professores europeus e nós já estaríamos muito avançados em nosso pensamento pessoal, já teríamos passado por experiências muito difíceis para desistir de idéias, de um estilo de pesquisa que nós estimávamos muito. Que-ríamos restaurar na Europa o tipo de vida científica que a guerra tinha interrompido e compensar por suas perdas em talento e idéias. Alguns americanos também esperavam e queriam isso. Apenas nesse sentido eu sou um europeu patriota. Nietzsche disse que, quando uma cultura imita a outra, ela imita suas piores qua-lidades. Isso é também verdade no que se refere à ciência. Tive sorte de conhecer os EE.UU. e os americanos mais profundamente, sem tentar imitá-los ou não imitá-los, simplesmente compreender e aprender por impregnação.

Não há dúvida que as coisas mudaram desde então e, talvez, como acontece muitas vezes, eles não acabaram sendo o que a gente gostaria que tivessem sido. Não fico sempre satisfeito com a maneira como minha pesquisa foi tratada e apropriada entre eles. Não penso que os americanos estejam prestando um serviço à psi-cologia social e a si mesmos, na sua maneira de considerar a pes-quisa que é feita em outros lugares, ou quando impõem uma uni-

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formidade prematura, um código profissional, regras de como se deve escrever e de iniciação que prejudicam muito a vida intelec-tual e impedem sua criatividade. Do mesmo modo, alguns colegas europeus não prestam serviço a nossa disciplina, quando pensam que vão ganhar mais respeitabilidade profissional e mais seguran-ça científica, pelo fato de seguir o padrão de uma ciência “norma-tizada”. Quero dizer, fazendo o que os cientistas fazem nos EE.UU. em certas ocasiões e sendo aprovados por eles. Isso simplifica a vida, mas essa prática tem como conseqüência o menosprezo da diversidade concreta das correntes de pesquisa, mesmo nos EE.UU. Caminhe pela Quinta Avenida, em Nova Iorque, da Univer-sidade de Nova Iorque até a Colúmbia, indo pela New School e o Graduate Center e você verá essa diversidade! Ao mesmo tempo, é um fato da vida, a americanização das ciências humanas, nas pala-vras de Mancas, é uma realidade da qual não podemos desviar os olhos. Estou, sim, persuadido de que, se não essa geração, outra irá dar-se conta que existem diferentes maneiras de encarar esse fato da história. E que é prejudicial, como também ilusório, como disse a nossos colegas americanos da Sociedade Americana de Psicologia Social, em Ohio, criar uma ciência para e em um único pais, como foi prejudicial e ilusório criar uma sociedade socialista em um único pais. Em todo empreendimento cientifico e es-pecialmente na ciência humana, a diversidade é um bem e a uni-formidade uma perda.

Sempre tentei encorajar tal diversidade, relacionada às tradi-ções culturais e de pesquisa, na rede de pessoas trabalhando nas representações sociais. E quando alguém me pede que lhe diga qual é a maneira “verdadeira” de fazer as coisas, minha resposta é que não sou o dono dos frutos da teoria. Nesse sentido, sou um europeu patriota. Gosto da diversidade de sua pesquisa e seus estilos epistemológicos, sua tradição de que um intelectual ainda fala e escreve em diversas línguas, seu respeito pela história e pelo trabalho das gerações passadas e muitas outras coisas desse tipo, que você também encontra nos EE.UU., se tiver um pouco de tem-po e olhar para as pessoas certas. É verdade, olhando para trás, a idéia da representação social é muito mais imbricada na tradição européia de ligar áreas científicas, antropologia, sociologia, histó-ria, lingüística, Piaget e Vygotsky e até mesmo psicologia social. Mas não vamos dar oportunidade a estereótipos.

Outro ponto biográfico está relacionado às representações sociais. Lembro a ocasião em que apresentei a teoria pela primei ra

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vez, em Sorrento, na primeira reunião de psicólogos sociais euro-peus, organizada por John Lanzetta. Hilda Himmelweit estava di-rigindo a sessão e meu inglês era terrível. Ninguém entendeu o que eu estava dizendo, mas minha fala foi seguida por uma discus-são muito entusiasmada, sobre o que meus colegas realmente entendiam a respeito de um teste projetivo. Foi assim que a teoria começou e se espalhou um pouco na França, depois em Bologna e, subseqüentemente, em Londres, através de Hilda, que ficou intri-gada com ela. Não que ela tenha entendido a teo ria, mas porque ela estava convencida de que eu não era total mente estúpido, en-tão ela pensou que provavelmente havia algo naquilo que eu esta-va dizendo.

5. O futuro da psicologia social

IM- Há algo mais que você gostaria de acrescentar para com-pletar esse diálogo?

SM - De certo modo, sou um chauvinista com respeito ã psi-cologia social, porque creio que ela é uma disciplina que realmen-te atinge os principais fenômenos históricos e culturais, fenôme-nos que são também sensíveis à política Gostaria de concluir esse diálogo, dizendo uma palavra sobre a última parte de sua primeira pergunta, que é uma questão de uma posição epistemológica. Fa-lando em termos gerais, como se podem combinar e unificar duas disciplinas, ou dois campos científicos? Obviamente, essa questão é relevante á psicologia social e ainda mais á teoria das represen-tações sociais. Para dizer a verdade, a idéia de psicologia social abarca um campo de conhecimento muito amplo, começando do referencial da sociologia e indo até o referencial da psicologia. E, conseqüentemente, alguns crêem que a teoria das representações sociais, devido a suas origens, deveria ser situada mais no primei-ro, do que no segundo referencial. Isso, contudo, pode con duzir a uma epistemologia reducionista, como foi o caso quando se pen-sou que a única maneira de nos aproximarmos de fenômenos de natureza complexa, seria situá-los em diferentes universos. Desse modo a psicologia foi reduzida a uma explicação social e a sociolo-gia, por sua vez, foi reduzida a uma explicação psicológica. Mas há ainda outra epistemologia que não tenta “reduzir”, mas procurar uma “comunalidade”, ou uma unidade entre disciplinas separadas, no estudo de certos fenômenos. O caso mais conhecido é o do ele-

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tromagnetismo. Por décadas, houve tentativas de reduzir, sem sucesso, modelos mecânicos, ou fenômenos mecânicos, a modelos elétricos. Finalmente, o modelo da relatividade unificou a ambos. Obviamente, eu não sou Einstein e a teoria das representações sociais não é a teoria da relatividade. Contudo, isso não me impe-de de considerar a psicologia social como uma disciplina que pro-cura descobrir unidade e “comunalidade” entre modelos de socio-logia e modelos de psicologia, com respeito a certos fenômenos que nem uma, nem outra, pode assumir sozinha, tais como, por exemplo, a comunicação da influência no estudo das redes sociais. Há um limite intrínseco à efetividade de qualquer redução, para a descoberta de novidade e, certamente, poderíamos fazer mais progresso, ou avançar melhor, juntando os recursos de dois ou três campos disciplinares, exatamente como foi o caso da ciberné-tica.

Em outras palavras, a condição ideal é aquela em que nós am-pliamos o escopo da psicologia social, não aquela em que nós divi-dimos o pão em duas metades, considerando duas subespeciali-dades, uma “psicologia sociológica” e uma “sociologia psicológica”. Não respondi, no passado, a afirmativas de que a teoria das repre-sentações sociais é mais uma forma sociológica de psicologia soci-al, do que uma forma psicológica de psicologia social, porque não queria complicar um debate já complexo. Mas não quero também que nossa teoria se retire da psicologia social para a sociologia, através de uma epistemologia reducionista, que é amplamente adotada. Um pensador proeminente, como Chomsky, rejeita essa postura por razões que merecem ser mencionadas. Em um livro recente sobre Language and Thought (1993: 8O), ele observa que: “o problema da ciência não é reducionismo, é unificação, que é algo muito diferente. Há maneiras diferentes de se olhar o mun do. Elas funcionam até onde conseguem, nós gostaríamos de integrá-las; mas redução não é um modo de integrá-las. E de fato, no de-curso da ciência moderna, isso raramente foi verdade.” Vista sob esta luz, é possível supor que a psicologia social não amadurecerá até que ela comece a considerar esse problema da unificação seri-amente. E voltando para onde nós começamos esse diálogo, a ida-de da inocência, penso que a teoria das representações sociais e comunicação, toca os principais fenômenos do campo da psico-logia social. Considero, portanto, a teoria das representações so-ciais como uma teoria unificadora do campo da psicologia social - o campo que surgiu, de longe, na minha idade da inocência - e

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mesmo uma teoria que caminha na direção de resolver seu pro-blema de unificação. Estou convencido, a partir de fundamentos teóricos, que é a única teoria que pode, hoje, unificar nossa disci-plina, profundamente fragmentada, que reduziu a humanidade de indivíduos e grupos sociais a algo abstrato, estereotipado e insig-nificante. O ser humano hoje, disse Kundera em algum lugar, se encontra em um verdadeiro redemoinho de reducionismo e nossa disciplina também contribui para isso, como se o ser humano não fosse complexo e cheio de contradições, não tivesse paixões e crenças, não estivesse sempre em tensão entre o conhecimento e a crença, tanto em sua vida pessoal, como nos movimentos sociais. Mas não quero fazer profecias sobre o futuro da psicologia social. Quero dizer, simplesmente, que a psicologia social poderia ocupar um lugar importante entre as ciências humanas e na sociedade e que ela deveria deixar o redemoinho do reducionismo e agarrar os fenômenos do pensamento e comunicação entre as pessoas em sua unidade, isto é, em sua existência confusa. Bem lá no fundo, aquilo em que sempre acreditei - e ainda acredito - é que a psico-logia social deveria lutar para ser uma espécie de antropologia de nossa cultura. Se isso for verdade, urn dia, então ela ha ocupar seu lugar como uma disciplina central, que todos nos sos clássicos pre-viram e profetizaram. Não lutar para que isso aconteça é não ter esperança.

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Desde a origem da investigação filosófica, a grande questão 8: como chegamos a conhecer, como formamos conceitos e ideias em nossa mente e qual 8 a correspondência entre essas ideias e a rea-lidade. No século XX, a sociologia do conhecimento refaz as

mesmas perguntas. Mas com acento diferente. A preocupação não é como o individuo conhece, mas como o individuo dentro do grupo e como o próprio grupo chegam ao conhecimento. Paralela-mente, a psicologia quer saber qual 8 o processo psíquico do co-nhecimento. Talvez a psicologia social, através do conceito de re-presentações sociais, tenha chegado a uma solução, a uma síntese. O conceito de representações sociais explica muitos pontos que permaneciam inexplicados, permite verificar como se formam os conhecimentos e, portanto, possibilita que programemos o proces-so.

FA

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Moscovici introduziu este conceito na psicologia social. Este livro reúne seus textos fundantes. Eis a contribuição e a importãncia desta obra.

Investigações em psicologia social

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REPRESENTAÇÕES

SOCIAIS

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