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REPENSANDO O PODER JUDICIÁRIO: OS SISTEMAS DE SELEÇÃO DE JUIZES E SUAS IMPLICAÇÕES 1 Claudia Rosane Roesler * RESUMO O artigo analisa os sistemas de seleção dos juizes nas democracias constitucionais, relacionando-o com os desafios e as transformações pelas quais passa o Poder Judiciário. Para tanto expõe sinteticamente a complexa posição assumida pelo Poder Judiciário nas referidas democracias, descrevendo em seguida os sistemas de seleção forjados historicamente e apresentando ao leitor uma análise das vantagens e desvantagens que cada modelo apresenta. Encerra-se apontando a necessidade de prever sistemas de formação inicial, continuada e de controle do desempenho das atividades judiciais a fim de garantir que as tarefas atribuídas ao Poder Judiciário sejam desempenhadas adequadamente nos quadros dos sistemas jurídicos contemporâneos. PALAVRAS-CHAVE PODER JUDICIÁRIO; SELEÇÃO DOS JUIZES; FORMAÇÃO DOS JUIZES; TRANSFORMAÇÃO DO ESTADO; DEMOCRACIAS CONSTITUCIONAIS. 1 O presente artigo é parte de uma pesquisa sobre o sistema de seleção e formação dos juizes na Espanha. A pesquisa contou com o apoio da CAPES, na forma de bolsa de estágio pós-doutoral na Universidade de Alicante, Espanha, no período de janeiro a julho de 2006. Agradeço especialmente a colaboração de Perfecto Andrés Ibañez, Manuel Atienza e Josep Aguiló Regla que discutiram comigo os temas aqui abordados. Doutora em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo- USP. Pós-doutora em Filosofia do Direito pela Universidad de Alicante, Espanha. Professora dos cursos de graduação em Direito, Mestrado em Ciência Jurídica e Mestrado Profissional em Gestão de Políticas Públicas da Universidade do Vale do Itajaí-UNIVALI e do curso de graduação em Direito do Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina-CESUSC. 5624

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REPENSANDO O PODER JUDICIÁRIO: OS SISTEMAS DE SELEÇÃO DE

JUIZES E SUAS IMPLICAÇÕES1

Claudia Rosane Roesler∗

RESUMO

O artigo analisa os sistemas de seleção dos juizes nas democracias constitucionais,

relacionando-o com os desafios e as transformações pelas quais passa o Poder Judiciário.

Para tanto expõe sinteticamente a complexa posição assumida pelo Poder Judiciário nas

referidas democracias, descrevendo em seguida os sistemas de seleção forjados

historicamente e apresentando ao leitor uma análise das vantagens e desvantagens que cada

modelo apresenta. Encerra-se apontando a necessidade de prever sistemas de formação

inicial, continuada e de controle do desempenho das atividades judiciais a fim de garantir

que as tarefas atribuídas ao Poder Judiciário sejam desempenhadas adequadamente nos

quadros dos sistemas jurídicos contemporâneos.

PALAVRAS-CHAVE

PODER JUDICIÁRIO; SELEÇÃO DOS JUIZES; FORMAÇÃO DOS JUIZES;

TRANSFORMAÇÃO DO ESTADO; DEMOCRACIAS CONSTITUCIONAIS.

1 O presente artigo é parte de uma pesquisa sobre o sistema de seleção e formação dos juizes na Espanha. A pesquisa contou com o apoio da CAPES, na forma de bolsa de estágio pós-doutoral na Universidade de Alicante, Espanha, no período de janeiro a julho de 2006. Agradeço especialmente a colaboração de Perfecto Andrés Ibañez, Manuel Atienza e Josep Aguiló Regla que discutiram comigo os temas aqui abordados. Doutora em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo-USP. Pós-doutora em Filosofia do Direito pela Universidad de Alicante, Espanha. Professora dos cursos de graduação em Direito, Mestrado em Ciência Jurídica e Mestrado Profissional em Gestão de Políticas Públicas da Universidade do Vale do Itajaí-UNIVALI e do curso de graduação em Direito do Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina-CESUSC.

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ABSTRACT

This paper analyses the judge selection system in constitutional democracies and how it

relates to the challenges and transformations which the Judiciary is undergoing. The paper

presents a brief explanation of the complex position taken on by the Judiciary in the

constitutional democracies mentioned, and then continues to detail the development of the

recruitment systems over time and analyses the advantages and disadvantages of each

model. It concludes by pointing out the need for initial and ongoing training systems and

regular professional assessment to ensure the tasks assigned to the Judiciary may be

adequately carried out in contemporary legal systems.

KEYWORDS

JUDICIARY POWER; JUDGE’S RECRUITMENT; JUDGE’S BACKGROUND;

STATE’S TRANSFORMATION; CONSTITUTIONAL DEMOCRACIES.

INTRODUÇÃO

O presente artigo versa sobre um tema bastante descuidado na literatura jurídica e

das ciências sociais no Brasil: os mecanismos de seleção e de formação dos membros do

Poder Judiciário, especialmente os juizes. Qualquer levantamento bibliográfico que se faça

retornará como resultado um retrato bastante similar: uma quantidade razoável de pequenos

textos de opinião e quase nenhum estudo mais aprofundado. A previsão, no bojo da

Reforma do Judiciário iniciada pela EC 45/2004, da obrigatoriedade dos cursos de

formação inicial para o vitaliciamento dos juizes e dos cursos de formação continuada

como mecanismo de aferição de seu desempenho com vistas à promoção na carreira,

suscitou, como seria de se esperar, alguma reflexão e tem levado os diversos segmentos do

Judiciário brasileiro a intensificar os contatos com as escolas de formação estrangeiras,

especialmente as européias. Estamos longe, no entanto, de possuir uma discussão sólida

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que ampare a escolha de alternativas de modo a evitar a simples transposição dos modelos

de outros países e/ou repetir os seus eventuais defeitos.

A mesma constatação vale para a história do Poder Judiciário no Brasil, objeto

pouquíssimo estudado pelos juristas e pelos cientistas sociais. Como discutir o sistema de

formação inicial, continuada ou a seleção de nossos juizes se sabemos tão pouco sobre

como fazemos e fizemos essas tarefas ao longo dos anos? Como avaliar os resultados

obtidos pelas experiências das escolas de formação estrangeiras se não temos conhecimento

sobre a nossa própria realidade e, portanto, não sabemos o que podemos precisar?

A discussão dos sistemas de seleção dos membros do Poder Judiciário nas

democracias constitucionais, embora ainda bastante descuidado na bibliografia

especializada, vem ganhando destaque. Uma explicação intuitiva desse destaque pode ser

encontrada rapidamente se atentarmos para o protagonismo que o Poder Judiciário adquiriu

no funcionamento cotidiano das referidas democracias, nas quais, por mandamento

constitucional, atua como uma espécie de árbitro e garantidor dos processos de governo e

de produção legislativa.

O presente artigo analisa esse contexto de transformações do papel do Poder

Judiciário para, logo em seguida, colocá-lo em relação com o tema dos mecanismos

concretos de seleção dos juizes. Mais do que uma visão detalhada dos referidos

mecanismos, procura fornecer ao leitor um panorama geral sobre as questões que se

colocam quando se pensa nas vantagens e desvantagens dos sistemas historicamente

construídos.

Para atingir esse objetivo, a análise inicia por uma sintética exposição das razões

pelas quais se pode considerar complexa a posição do Poder Judiciário nos sistemas

jurídicos e políticos das Sociedades contemporâneas. Mais do que uma discussão

aprofundada, trata-se de construir um pano de fundo em referência ao qual possa ser

analisado o tema especifico desse artigo. No item seguinte descrevem-se as tipologias que

classificam os sistemas de seleção de juizes e se analisa brevemente o seu surgimento

histórico. No terceiro item apresentam-se as vantagens e desvantagens de cada sistema de

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seleção. Nas considerações finais é ressaltada a necessidade de se debater os mecanismos

de formação inicial, continuada e de acompanhamento das atividades judiciais a fim de

garantir um desempenho das tarefas atribuídas ao Poder Judiciário adequado aos

parâmetros dos sistemas jurídicos contemporâneos.

1 A COMPLEXIDADE DO PAPEL DESEMPENHADO PELO PODER JUDICIÁRIO

Como bem resumem Pederzoli e Guarnieri (1999), as modificações que as

Sociedades contemporâneas enfrentam e que afetam a posição do Poder Judiciário são

amplas e multifacetadas. Se, de um lado, podemos apontar uma mudança quantitativa na

legislação, com o fenômeno que se conhece por “inflação legislativa”, também é correto

vincular essa mudança quantitativa a uma outra de ordem qualitativa que se manifesta na

produção de normas com características muito mais abertas e com as quais se transfere ao

Poder Judiciário não mais o dever de “reparar” uma situação, voltando-se ao passado, mas

de perseguir e atingir certos fins colocados como socialmente válidos e importantes.

A passagem de um Estado Liberal, com a sua típica filosofia do laissez-faire, como

destacam os autores mencionados acima, a uma atitude claramente interventiva do Estado

de Bem-Estar Social, leva a uma situação na qual não há praticamente nenhum assunto

pertinente ao convívio social no qual o Poder Judiciário não possa vir a emitir juízos.

Ademais, a natureza diversa de muitos dos conflitos que a regulação jurídica do Estado de

Bem-Estar Social impõe acarreta uma mudança no peso e no valor das decisões judiciais,

cujos efeitos podem alcançar não apenas as partes diretamente envolvidas no processo, mas

toda uma parcela da Sociedade. (PEDERZOLI; GUARNIERI, 1999)

As fronteiras entre administração, legislação e jurisdição tendem a se mostrar menos

nítidas e a conseqüência prática imediata disso é que o Poder Judiciário se transforma

também em responsável pelas modificações sociais e pela implementação das políticas

públicas prescritas na Constituição. Sua atividade passa a ser, nestes, termos, de muito

maior visibilidade e de muito maior responsabilidade política. A doutrina clássica da

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separação de poderes perde seu potencial explicativo e a compreensão da divisão de

poderes no Estado requer que se analise de modo mais detido e em relação com os

múltiplos arranjos institucionais possíveis, as tarefas cumpridas pelo Poder Judiciário nas

Sociedades contemporâneas. 2

Essa aproximação do Poder Judiciário ao Executivo e ao Legislativo não nos deve

fazer perder de vista, no entanto, a sua qualidade de interventor que tem de ser provocado,

ou seja, de que mesmo quando atua nessas novas funções, o Poder Judiciário não o faz com

a sua própria iniciativa, mas depende de uma provocação externa para que possa agir. O

grau de provocação a que é submetido, depende, por sua vez, de um complexo emaranhado

de fatores econômicos, sociais e políticos, dentre eles a sua capacidade relativa de “dar

respostas” aos problemas que lhe são apresentados em comparação ou em contraposição

com os outros órgãos do Estado, bem como o grau de litigiosidade (que está relacionado

com questões histórico-culturais) da Sociedade na qual se insere. (PEDERZOLI;

GUARNIERI, 1999)

A realidade complexa que cerca o Poder Judiciário pode ser colocada, portanto, nos

seguintes termos: é um ator político na medida em que tem a responsabilidade de buscar

fins sociais determinados na Constituição e controlar o cumprimento de funções políticas e

de execução de programas dos outros poderes; é um ator passivo, ou seja, que necessita ser

provocado; é um corpo coletivo, mas expressa uma parte considerável de sua atividade em

decisões individuais, das quais, no entanto, se cobra coerência com o conjunto das decisões

tomadas pelo corpo a que pertence; trabalha com um emaranhado legislativo cuja coerência

e acessibilidade estão sobejamente conhecidas como precárias.

2 Segundo Pederzoli e Guarnieri, 1999, p. 21: “El hecho de que el juez sea también un legislador se considera ya hoy como una ‘obvia banalidad’ (Cappelletti, 1998: p.14). Los ámbitos de discrecionalidad de que dispone y las mismas características del procedimiento de decisión le llevan de hecho a participar en la formulación de las políticas públicas. Igualmente se ha visto que hoy es más difícil distinguir entre jurisdicción y administración, sobre todo en lo que se refiere al impacto producido por las sentencias. Desde este punto de vista, la versión tradicional de la doctrina de la separación de poderes ya sufre una erosión visible. […] Y desde esta perspectiva si se quiere evaluar el papel que de hecho ha asumido la justicia, el reparto formal de las competencias es hoy un punto de referencia mucho menos útil que antaño: el sistema judicial tiende a actuar, en efecto, como una estructura multifuncional, que presenta numerosas áreas de superposición con las actividades demandas a las otras instituciones políticas.”

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Essa visibilidade política e social do Poder Judiciário traz consigo um debate

importante sobre a função judicial e seus limites e provoca nova série de indagações de

caráter prático: Quem são os juizes? Como são recrutados? Quais os mecanismos de

avaliação e controle de sua atividade jurisdicional? Como medimos a qualidade dos

“serviços” prestados pelos órgãos judiciais?3

Como resume Guarnieri (2001) a relação entre qualidade da prestação jurisdicional

e as modalidades de seleção ou a formação que recebem os juizes, pode ser vista de pelo

menos três importantes ângulos. Em primeiro lugar, as modalidades pelas quais se

escolhem e formam os membros do Poder Judiciário revestem-se de uma especial

importância para o funcionamento do sistema jurídico e refletem-se na qualidade global da

justiça, o que significa dizer que para melhorar a prestação jurisdicional não basta que

pensemos em como organizar melhor os tribunais, se não incluímos nessa reflexão a

necessária qualificação profissional dos juizes que os compõem.

Em segundo lugar, se pensamos de um ponto de vista macro, o modo pelo qual são

selecionados os membros do Poder Judiciário atua diretamente sobre o perfil de juiz que se

produzirá e, a partir daí, sobre a concepção do Direito, do seu papel como juiz, da natureza

e dos limites da sua função, que terá não apenas o juiz em sua dimensão singular, mas o

próprio corpo judicial. 4

3 Ressaltando as implicações teóricas e práticas de pesquisas sobre essa temática, afirma Di Federico, 2005, p. V: “A research on the functioning of recruitment, professional evaluation, career, and discipline of judges and prosecutors in different countries has both scientific and practical implications. In analyzing and comparing those features in various judicial systems, the values of independence and impartiality are in many ways revealed in their multifaceted aspects. In fact, the higher the actual guarantees of professional qualifications in the various systems, the higher also are the guarantees of independent and impartial behaviour of the judge (insofar as his technical preparation and his deeply rooted professional values make him far less likely to be receptive to improper external influences).”4 Neste sentido, afirma Guarnieri, 2001, p. 26-27: “En efecto, aunque es verdad que no existe una relación estrecha entre características socioeconómicas, actitudes de los jueces y sus decisiones, los mecanismos de reclutamiento condicionan de todos os modos las características generales del cuerpo judicial, el tipo de juez e en definitiva la concepción del papel de este último que tiende a prevalecer dentro de la magistratura (MURPHY y TANENHAUS, 1972; GIBSON, 1983). Sobre todo, puesto que en los regímenes democráticos los jueces tras ser designados gozan de garantías de independencia cada vez mayores, su comportamiento depende cada vez menos de la influencia del gobierno o de los superiores jerárquicos y cada vez más de la concepción que se tenga del propio papel y en general de los valores que tienden a compartir. Por ello en estos términos se puede decir que las modalidades de reclutamiento de los jueces influyen en sus decisiones.”

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Em terceiro lugar, as modalidades de recrutamento interferem diretamente na

independência e imparcialidade dos juizes, as quais condicionam a qualidade da prestação

jurisdicional, especialmente em circunstâncias como as atuais, nas quais uma parte

considerável da atividade judicial desenvolve-se controlando a constitucionalidade e a

legalidade da atividade da administração pública e da produção legislativa. Assim, sistemas

de recrutamento que privilegiam a capacidade profissional reforçam a independência ao

produzir uma maior identificação com a função profissional exercida e diminuem o papel

de influencias impróprias de caráter externo. (GUARNIERI, 2001).

2 OS SISTEMAS DE SELEÇÃO HISTORICAMENTE SURGIDOS

Atendendo a uma perspectiva histórica tal como a proposta por Van Caenegem

(1991), podemos observar que a história européia mostra uma lenta mas inexorável

passagem do poder de julgar das mãos dos leigos às mãos dos juristas, entendidos em

sentido amplo como conhecedores do direito, e em seguida à profissionalização,

compreendida como o dedicar-se tão somente às tarefas pertinentes à instituição judiciária.5

Van Caenegem (1991, p. 127 e ss.) propõe uma tipologia para estudar a evolução

histórica européia a partir do momento em que predominou a profissionalização, nos

seguintes termos: Tipo 1, nomeação pela autoridade política mais alta; Tipo 2, eleições

populares; Tipo 3, os juizes constituem uma casta advinda da aristocracia e da pequena

nobreza ou adquirem o cargo em um sistema baseado em procedimentos censitários (ser

proprietários etc.). Utilizando esse esquema geral, o autor repassa rapidamente a história

européia e demonstra que em termos formais a prevalência nos países europeus foi a do

tipo 1, ou seja, a nomeação por parte do Rei, que, contudo, foi lentamente deslizando para

um controle das nomeações por parte da própria elite profissional judiciária. A situação

atual, no entanto, aponta bem mais para uma mistura dos três tipos que comparecem nos

5 É necessário observar, no entanto, que isso é mais bem uma generalização do que uma afirmação fática, pois em praticamente todos os países ocidentais há alguma forma de atuação de tribunais constituídos por jurados leigos e atualmente em países como a Inglaterra um importante papel é destinado aos juizes de paz, dos quais não se exige nem dedicação exclusiva nem formação jurídica em sentido estrito. Sobre isso, vide Van Caenegem, 1991, p. 126 e ss.

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diversos países em diferentes graus, evidentemente que com as adaptações necessárias aos

contextos políticos de Estados democráticos.6

Outra tipologia que pode nos auxiliar a compreender as diferentes soluções

históricas intentadas para a seleção dos juízes nos regimes políticos democráticos é a

proposta por Guarnieri (2001) com três tipos básicos: a designação por parte do Legislativo,

do Executivo ou de ambos; a eleição direta pelos cidadãos; o concurso público, seguido ou

não de um período de experiência prática inicial. A prevalência de um ou de outro sistema

depende em larga medida da tradição jurídica de cada país e de seu processo de formação

dos órgãos estatais.

É possível verificar que nos países da Europa continental a função judicial

incorporou-se historicamente ao aparato estatal e acabou tornando-se parte da

administração pública7. Na Inglaterra8 e em alguns países da common law, herdeiros da

experiência inglesa, ao contrário, os juizes nunca foram perfeitamente incorporados ao

corpo administrativo do Estado. Nos Estados Unidos da América, por conta da precoce

democratização do sistema político, produzida antes da profissionalização dos aparatos

públicos, há uma maior difusão do sistema de eleição direta e um maior papel das

instituições políticas na escolha dos membros do Poder Judicial. (GUARNIERI, 2001)9.

Atendendo a essa diversidade de experiências políticas e de organização judicial,

pode-se conceber, ainda que seja uma generalização, dois modelos básicos de recrutamento

dos membros do Poder Judiciário nas Sociedades democráticas constitucionais: o do juiz

“profissional”10, recrutado dentre membros bem-sucedidos de carreiras jurídicas e detentor 6 Veja-se, neste sentido, a análise do autor sobre a Bélgica, seu país de origem, a Inglaterra e os Estados Unidos, com base na mencionada tipologia. Van Caenegem, 1991, p. 130-131.7 Sinal evidente disso, como apontam Pederzoli e Guarnieri, 1999, p. 40, é o fato de que as formas de recrutamento dos funcionários públicos é praticamente a mesma que a dos juizes e membros do Ministério Público, ou seja, que a concepção predominante os identifica a todos como parte do Estado.8 Sobre as peculiaridades do sistema inglês, bastante diferente do sistema dos demais países europeus, pode-se consultar Pederzoli e Guarnieri, 1999, p. 34 e ss.9 No mesmo sentido, Van Caenegem 1991, p. 131, a partir de sua tipologia, afirma uma relativa prevalência do tipo 2 (eleições populares) nos Estados Unidos. Vide também Pederzoli e Guarnieri, 1999, p.36 e ss, para uma descrição mais detalhada dos mecanismos utilizados para a seleção dos juizes.10 Para auxiliar a visualizar melhor as implicações do modelo, pode-se utilizar a idade media dos ingressantes na magistratura, a qual se encontra na Inglaterra entre os 50 e os 60 anos e nos Estados Unidos, ao menos para a magistratura federal, mais prestigiada e importante do ponto de vista do sistema judicial, é menor do que na

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de uma experiência profissional que abaliza a sua nomeação ao cargo e legitima o exercício

da função jurisdicional, presente nos países vinculados à tradição da common law11; e o do

juiz “funcionário” que, mais característico dos países vinculados à tradição romano-

germânica, trabalha com sistemas de recrutamento baseados em concursos públicos e

aposta em um aprendizado da função no próprio exercício desta, dentro da organização

judicial, pois o perfil geral do juiz recrutado é o de um jovem bacharel em Direito, cuja

experiência profissional é pequena ou inexistente. (GUARNIERI, 2001)12

O modelo burocrático ou do juiz “funcionário” fica mais bem compreendido se

atentamos para a sua origem histórica, vinculada à reestruturação do Estado francês no

período revolucionário. Ele é, nesse sentindo, uma transcrição para fins de organização

judiciária, das polêmicas francesas da época e é comumente designado como modelo

napoleônico de Poder Judiciário. A influência do ideário francês levará consigo a

disseminação do modelo para outros países da família romano-germânica, o que explica a

presença de certa uniformidade na concepção da carreira judicial que nos permite falar em

um “modelo”.

Esse modelo, por sua vez, consubstancia-se, conforme aponta García Pascual

(1997), como uma combinação da doutrina revolucionária francesa e da institucionalização

de um quadro funcionarial técnico mais bem vinculado com a visão burocrática de Estado

do que com as suas raízes revolucionárias e liberais. O juiz era entendido (e recrutado) para

ser um funcionário do Estado encarregado da aplicação da legislação posta pelo Poder

Legislativo. O controle de seu recrutamento e a administração da sua carreira vinha

atribuído ao Poder Executivo, mostrando assim que, apesar da teoria de separação de

poderes ser utilizada como lugar comum a designar a natureza e os vínculos entre os

poderes do Estado, de fato o Poder Judiciário tinha pouco mais que o nome como poder

efetivamente independente. Inglaterra mas consideravelmente mais alta do que nos países da Europa continental. A respeito, vide Pederzoli e Guarnieri, 1999, p. 37-38.11 A propósito dessa característica, afirma Iñaki Agirreazkuenaga, 2004, p. 12: “Sin embargo, desde la perspectiva del sistema de nombramiento o elección de los jueces hay una clave que se repite de modo constante en los modelos de corte anglosajón, y es la exigencia de una variada y sólida experiencia práctica a todos quienes vayan a ejercer funciones judiciales.”12 Vide também em Pederzoli e Guarnieri, 1999, p. 63-64.

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O quadro acima esboçado fica mais claro se observarmos que a experiência

revolucionária francesa estava baseada em uma profunda desconfiança na atividade

judicial, cuja arbitrariedade e venalidade procurará controlar de todos os modos13,

produzindo, quase paradoxalmente, uma dominação e um enfraquecimento do Poder

Judicial em vão tentada pela monarquia absolutista.14

A caracterização de um juiz, portanto, seguia o que convencionalmente passou à

tradição do pensamento jurídico como “juiz boca-da-lei”, ou seja, um paradigma de atuação

em tudo mecânico e subordinado à legalidade estrita, que garantiria a neutralidade e a

apoliticidade (aparentes) necessárias ao bom funcionamento do Estado.

Se nos fixamos no modelo e nos perguntamos pelas causas que o explicam, teremos,

como bem resume García Pascual (1997) um quadro que pode ser sinteticamente resumido

como uma combinação dos seguintes fatores: a) a aparição dos códigos e das regras rígidas

para a atividade interpretativa; b) a disseminação das categorias dogmáticas da doutrina,

presentes, por exemplo, na Escola da Exegese; c) a subtração da atividade administrativa do

Estado do âmbito de julgamento da jurisdição ordinária; d) a inclusão do Poder Judiciário

no âmbito de controle do Poder Executivo.

3 AS VANTAGENS E DESVANTAGENS DOS SISTEMAS DE SELEÇÃO SURGIDOS HISTORICAMENTE

13 Para a reconstrução do ideário revolucionário francês sobre o papel e os limites do Poder Judiciário, vide García Pascual, 1997, especialmente p. 09-113.14 Segundo Ibáñez e Movilla Alvarez, 1986, p. 41: “La Constitución del año VIII (1799) abandona el sistema de reclutamiento de los jueces por sufragio, para optar por la designación gubernamental y su organización burocrática como ‘carrera’. Por otra parte, como ha escrito Calamandrei, ‘poco a poco, inconscientemente, el Tribunal de Casación, creado como órgano de control negativo, puesto al margen del ordenamiento judicial, se transforma en un órgano jurisdiccional, colocado en la cúspide de las jerarquías judiciales, como regulador positivo de la jurisprudencia.’. ‘El proyecto, en vano perseguido por la monarquía absoluta, encontró por el contrario – a juicio de Giuliani y Picardi – una completa realización en la legislación napoleónica’, y ello se hizo posible mediante la reorganización de los jueces de acuerdo con el modelo burocrático como cuerpo de funcionarios, concentrando en el ejecutivo los mecanismos de selección y avance profesional, y estableciendo el correspondiente dispositivo disciplinario. Estructurando a la magistratura en ‘une série d’echelons…, quelque peu analogues à ceux que l’on recontre dans l’armée.’.

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Evidentemente que ambos os sistemas abordados acima podem ser elogiados ou

criticados segundo se ressaltem as suas características específicas. Assim, se parece

razoável supor que o sistema de recrutamento de juizes dentre profissionais experimentados

oferece vantagens óbvias, pois permite lidar com candidatos que são submetidos a uma

avaliação mais duradoura de suas capacidades profissionais e de suas características

psicológicas, e, portanto, garantiria uma qualidade maior para os membros da magistratura,

também é verdade que se nas avaliações interferem condicionamentos de caráter

clientelista, essa avaliação positiva teria de ser matizada.

É de se considerar, ainda, que em um sistema dessa ordem, o seu bom

funcionamento depende em larga medida da presença abundante de bons candidatos

dispostos a integrar os quadros da magistratura em detrimento das carreiras nas quais já

consolidaram suas trajetórias profissionais, ou seja, é preciso, para que se possa escolher os

melhores, que eles estejam dispostos a apresentarem-se para ocupar as vagas disponíveis e

que a magistratura seja capaz de atraí-los e mantê-los.

Por fim, deve-se atentar para o fato de que a circunstância de se recrutar

profissionais “formados” tende a reproduzir as características já presentes nas profissões

jurídicas, o que pode significar um problema, especialmente se o grupo dos “recrutáveis” é

bastante restrito, como no caso inglês15. Corre-se o risco, neste sentido, de contar com um

corpo judicial cujo perfil esteja bastante distante do perfil médio da população do país e que

possui pouca permeabilidade às minorias étnicas ou a grupos sociais menos favorecidos

historicamente. 16

15 Considerando as características do sistema jurídico inglês e a recusa de codificar o Direito, Van Caenegem (1991, p.46) assim se expressa: “La magistratura inglese è tradizionalmente conservatrice, perche i giudici venivano i vengono reclutati fra le file dei più noti avvocati, che per tradizione provengono dalla piccola nobiltà e dall’alta borghesia. Questo processo si è svolto in diverse maniere: in modo palese nel passato, quando l’accesso alle Inns of Court era chiuso per legge a coloro che non facevano parte dell’aristocrazia o della piccola nobiltá, e in modo piú sottile in epoche successive, quando si sceglieva tra i pochi che potevano permettersi un’instruzione in una scuola pubblica e ad Oxford o Cambridge.”16 Neste sentido, afirma Guarnieri, 2001, p.29, ao explicitar os problemas apontados ao sistema inglês de recrutamento: “Por ejemplo, hay pocas mujeres jueces así como hay pocos jueces pertenecientes a minorías étnicas. De hecho, el acceso a la profesión forense requiere un largo periodo de prácticas, que a menudo no son retribuidas, hecho que no puede dejar de tener una repercusión negativa para aquellos que proceden de familias de condición social modesta – y las minorías étnicas se encuentran a menudo entre ellas – o también para las mujeres, que a menudo, en la primera fase de su carrera profesional, tienen que hacerse cargo de criar a sus hijos.”.

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Se avaliarmos o sistema burocrático, que acima chamamos de modelo do juiz

“funcionário”, incorporado às estruturas estatais e participante de uma carreira estruturada,

os prós e contras também resultam bastante significativos. De um lado, uma seleção

baseada em provas, escritas ou orais, que avaliem os conhecimentos técnicos deve levar a

uma escolha dos melhores capacitados tecnicamente para a função, bem como evitar

ingerências externas de caráter político ou abertamente clientelistas. Por outro, uma

sistemática de seleção como os concursos públicos torna difícil avaliar as condições reais

de capacidade para o exercício da atividade judicial, pois acaba por privilegiar a resposta a

uma gama mais ou menos ampla de questões, em um momento localizado no tempo, a

partir do qual, se o resultado é aceitável, considera-se a pessoa como incluída em uma

categoria profissional cujas atribuições são de alta responsabilidade política e social, muitas

vezes com a vitaliciedade no cargo e com poucos (ou nenhum) mecanismos efetivos de

formação inicial ou continuada.

Como ressalta Guarnieri (2001), vários são os problemas a serem enfrentados pelos

sistemas burocráticos de recrutamento. Em primeiro lugar, a dificuldade em implantar-se

um mecanismo que permita alcançar os objetivos institucionais da magistratura e que

implica em obter um comportamento mais ou menos uniforme de seus membros. Isso se

consegue, afirma o autor, por uma combinação em graus variados, de duas opções: um

recrutamento inicial altamente exigente que garanta a qualidade da pessoa que se recruta ou

uma ênfase no treinamento e na comprovação das qualidades buscadas por meio de uma

sistemática de sanções positivas e negativas capazes de estimular os comportamentos

desejados pela organização. A estruturação da carreira e dos mecanismos de avaliação para

a progressão nela17, bem como as estruturas de formação continuada que se podem vincular

a isso são, portanto, fundamentais nesse contexto.

Em segundo lugar, a circunstância de que o modelo suponha um perfil generalista

de juiz, capaz de desempenhar muitas funções e de conhecer (e bem) todos os ramos do

17 É de se registrar, neste sentido, a experiência italiana, que aboliu a carreira judicial enquanto um escalonamento de tipo hierárquico-burocrático, num esforço de democratização do Poder Judiciário. Sobre a experiência italiana muito se produziu em termos de análise, mas pode-se consultar, para uma idéia geral de como funciona o sistema, a Pederzoli, 2001 e a Di Federico, 2005, p. 127 e ss.

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Direito18. Por fim, mas não por último em grau de importância, a problemática nascida da

formação técnico-jurídica altamente legalista que marca os sistemas de ensino do Direito

dos países nos quais se utiliza o modelo de juiz “funcionário” e que estão francamente

inadequados ao perfil que as Constituições desses mesmos sistemas jurídicos exigem. 19

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A origem histórica do sistema de seleção denominado de burocrático ou do juiz

“funcionário” como se viu acima, deixou marcas indeléveis e se tal desenho institucional

foi adequado um dia, certamente deixou de sê-lo com as transformações sofridas pelo

Estado e pela Sociedade contemporâneos.

Um sistema de recrutamento que buscava um perfil de juiz “boca-da-lei”,

certamente está pouco adequado para as novas necessidades dos sistemas jurídicos

contemporâneos, visto que não se espera que o juiz contemporâneo seja apenas a “boca-da-

lei”. De outra parte, a constitucionalização de todo o Direito, a abertura principiológica

deste e o crescimento do controle da atividade dos outros poderes pelo Judiciário trazem à

tona a necessidade inquestionável de se preparar e bem os profissionais que exercerão essas

atividades, dada a sua relevância social e política.

18 Neste sentido, afirma Pederzoli, 2001, p. 83: “Por último, en estos contextos, las estructuras organizativas tienen aún la impronta de modelos culturales expresados por la ciencia jurídica – el carácter sistemático y autosuficiente de esta disciplina, la idea de un juez ‘omnisciente’ que debería ser capaz de abarcar a todas las ramas del Derecho – y que deja todavía vislumbrar una cierta desconfianza respecto a la especialización de las asignaturas no jurídicas. Así el generalismo sigue impregnando no sólo la formación universitaria sino también la práctica y las propias modalidades de asignación a las funciones de los magistrados.”19 Resumindo os traços característicos da função judicial presentes na Constituição espanhola de 1978, Jiménez Asensio, 2001, p. 166, assim os define: “A mi juicio, sin introducirme ahora en mayores detalles, es preceptivo detenerse en cinco grandes elementos que definen actualmente la posición institucional del juez en nuestro sistema constitucional y estos son los siguientes: a) el juez como ‘juez de legalidad’ y, como consecuencia obligada, las insuficiencias que esta tradicional definición presenta en nuestros días; b) el juez como ‘garante de los derechos fundamentales’ de los ciudadanos, esto es, su configuración como primer eslabón en el refuerzo de su posición constitucional; c) el juez ordinario como juez de la constitucionalidad, lo que supone un segundo e importante refuerzo de su posición constitucional; d) el juez español como juez del Derecho comunitario, con su innegable dimensión europea o supranacional; y e) el juez español como poder que actúa en el marco de un Estado compuesto que se caracteriza por la pluralidad de ordenamientos, por el pluralismo lingüístico y, en fin, por aunar en su seno diferentes sensibilidades culturales y políticas.” (grifos do autor).

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A dimensão política da atividade judicial, seu caráter valorativo e a implementação

de um padrão ético de conduta profissional que auxilie a controlar a discricionariedade e a

evitar o abuso de poder são, sem dúvida, uma tarefa necessária para os sistemas jurídicos

contemporâneos.

A complexidade que se entrevê na análise realizada evidencia claramente que, mais

do que simplesmente avaliar a sistemática de recrutamento, faz-se necessário também

avaliar se e como os juizes recém-recrutados são formados, ou seja, a existência e as

características de sistemas de formação que denominaremos de “inicial” por estarem

adstritas ao período no qual os recrutados ainda não exercem as suas funções típicas ou não

as exercem de maneira plena e autônoma. Integrados ao quadro funcional e gozando da

plenitude das garantias e arcando com as responsabilidades da função, cabe agora verificar

se e como se prevê formas de acompanhamento do cumprimento da função, bem como

mecanismos de formação que denominaremos “continuada” para designarmos aquelas

atividades formativas que coincidem com o pleno exercício da função jurisdicional.

As vantagens e desvantagens que se pode encontrar em cada um dos sistemas de

recrutamento historicamente surgidos são matizadas, como se pode facilmente concluir,

pela formulação de políticas de formação inicial, de formação continuada e de controle da

atividade jurisdicional. Mais do que o simples processo de escolha dos futuros juizes, a

discussão acima realizada aponta claramente para o fato de que há de se pensar e debater

seriamente essas políticas a fim de garantir um Poder Judiciário adaptado às exigências dos

sistemas jurídicos contemporâneos.

A previsão, na Emenda Constitucional 45 de 2004 da obrigatoriedade da formação

inicial e da formação continuada põe o tema na ordem do dia no Brasil. Já não era sem

tempo. A exemplo do que ocorre em outros países que partilham com o Brasil o modelo

burocrático de seleção de juizes, há que se desenhar cuidadosamente as políticas de

formação inicial, continuada e de controle da atividade judicial. Discutir que perfil de juiz

temos e que formação gostaríamos que tivesse é um pequeno primeiro passo nessa direção.

5637

Se não há grande dificuldade em localizar o sistema de seleção brasileiro dentre os

do modelo burocrático, necessário se faz, no entanto, investigar os mecanismos concretos

historicamente empregados, bem como a configuração atual da seleção, a fim de

compreender como os problemas acima apontados aparecem na realidade brasileira do

Poder Judiciário. Do mesmo modo, cabe verificar como e em que medida iniciativas de

formação continuada e de formação inicial vem sendo tomadas, em cumprimento ao

disposto na EC 45/2004.

A exemplo do que ocorreu em muitos paises da família romano-germânica, a

previsão dos concursos públicos como mecanismo de seleção no Brasil aconteceu no

momento histórico em que se buscou uma maior profissionalização do serviço público20,

exigindo-se a apresentação de conhecimentos técnicos específicos que o concurso deveria

aferir, bem como evitando o alinhamento meramente político do juiz a determinados

interesses. Se na década de 1930, quando foi instituído o concurso público no Brasil, isso

era a praxe estabelecida dentre os paises similares em termos de sistema jurídico, logo em

seguida esses mesmos países desenvolverão iniciativas institucionais de formação inicial e

continuada mediante a criação de escolas de formação. Neste sentido, a escola espanhola é

criada pela ditadura franquista em 1944 e a escola francesa é instaurada em 195821.

No Brasil nada disso ocorreu de modo sistemático ou planejado. O mais próximo da

experiência de escolas de formação que tivemos até recentemente foram as escolas criadas

pelos tribunais e pelas associações estaduais ou federais de juizes, cujo perfil se delineou

em torno da preparação para os concursos de acesso à magistratura. Cursos esses, diga-se

de passagem, tornados um mecanismo de socialização importante e não devidamente

analisado dos futuros integrantes da magistratura e, além disso, um excelente modo de

financiamento das próprias escolas de magistratura.

20 Assim, por exemplo, a literatura espanhola registra que a criação do sistema de concurso público, previsto pela Constituição de 1869 e regulamentado por lei em 1870, atendia a um desejo de profissionalização e estabilidade para o serviço público que deveria ocasionar uma maior eficiência. Neste sentido JIMENEZ ASENSIO, 2001.21 Sobre o sistema francês pode-se consultar: DÍEZ-PICAZO, 2001, p. 41-56.

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Neste sentido o levantamento realizado por Targa (2006) confirma que a maior

parte das escolas existentes tem um importante foco de atividade na preparação dos

candidatos à magistratura, oferecendo regularmente cursos de preparação enquanto

dedicam uma pequena parte de sua atenção aos cursos de formação, inicial ou continuada,

dos magistrados.

Na ausência de informações mais amplas e de uma discussão bem realizada, a

implementação das exigências da Emenda Constitucional 45/2004 corre o risco de ser

efetivada sem que a comunidade jurídica e a sociedade brasileira possam opinar sobre os

seus rumos, reforçando, aliás, uma tendência corporativista de considerar que os assuntos

pertinentes à seleção e formação de juizes dizem respeito e devem ser tratados

exclusivamente interna corporis.

A relevância do papel cumprido pelo Poder Judiciário nas democracias ocidentais e

a complexidade das questões que apontamos, ainda que brevemente, ao longo de nossa

análise mostram que este tema não pode e nem deve ser tratado como um assunto técnico-

burocrático.

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