renato russo e suas mÚsicas: pontes literÁrias,...

67
RENATO RUSSO E SUAS MÚSICAS: PONTES LITERÁRIAS, SOCIAIS E MÍTICAS. Autora: Mariana Denize Muniz Bezerra Porto Alegre/2006

Upload: hadiep

Post on 09-Dec-2018

219 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

RENATO RUSSO E SUAS MÚSICAS: PONTES LITERÁRIAS, SOCIAIS E MÍTICAS.

Autora: Mariana Denize Muniz Bezerra

Porto Alegre/2006

Renato Russo é um ícone claro do rock brasileiro. Sua banda

surgiu na década de 80 na cidade de Brasília, a capital do Brasil.

Com um ritmo aguçado de crítica social Renato Russo alçou sua

banda às paradas de sucesso em todo o Brasil. Legião Urbana foi

uma das bandas mais importantes do movimento conhecido como

BRock. Surgiu em Brasília em 1983.

A origem do grupo se deu a partir da banda punk intitulada

Aborto Elétrico, integrada por Renato Russo. Juntaram-se com

Dado Vilalobos e o baterista Marcelo Bonfá para construir assim o

Legião Urbana. Tocavam em Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo.

Em um dos shows da banda, no Circo Voador no Rio de Janeiro,

lançaram o hit “Que país é esse?” com uma letra crítica e bastante

contundente sobre a sociedade brasileira.

A partir daí se tornaram uma das bandas mais famosas da

década de 80 e 90. Saindo da área midiática podemos assim

analisar a composição de grande cantor. As composições de

Renato Russo revisitaram vários temas: desde amor à crítica social.

Renato Russo sempre se interessou pelos mais variados temas. Lia

muito, sabia várias línguas. Tornou-se um exímio conhecedor dos

mais variados assuntos. Inspirou-se no movimento punk da

Inglaterra buscando assim a raiz de sua critica social manifestadas

em varias musicas compostas por ele mais tarde. Em 1978 ele

conhece André Petrorius e Felipe Lemos, dando inicio assim às

primeiras idéias de criar a banda Aborto Elétrico.

Renato Manfredini Junior nasceu em março de 1960 no Rio

de Janeiro. Morou na ilha do governador e no bairro Leopoldina.

Filho de um economista do Banco do Brasil e de uma professora de

inglês teve uma infância tranqüila e de classe média. Adquiriu assim

muito estudo. Aos sete anos mudou-se para Nova Iorque

acompanhando o pai num curso. Foi nessa época que ele e sua

irmã ampliaram seus conhecimentos na língua inglesa.

Retornaram ao Brasil e foram morar em Brasília. Na capital

começava a fase mais difícil para Renato Russo. Em 1975, aos 15

anos, sofreu de epifisiolise, uma doença rara que atacava os ossos.

Voltou a caminhar aos 17. Gostava de ler e chegou a criar uma

banda fictícia que ele dizia ser seu alter-ego. O vocalista de sua

banda fictícia se chamava Eric Russel. O sobrenome era uma

homenagem ao filósofo Jean Jacques Rousseau e o filosofo

Bertrand Russel. Dessa mistura nasceria o sobrenome artístico do

cantor, Russo.

Trabalhou como professor de inglês, programador de radio e

jornalista. Deu aulas na Cultura Inglesa em Brasília. Fazia parte da

“turma da colina”, rapazes e moças que se reuniam em um conjunto

de prédios construídos para abrigar professores e funcionários da

Universidade de Brasília. Nesse meio, surgidos dentro do

movimento punk, nasceram suas músicas e a banda.

Freqüentava festas e tinha acesso à cultura musical, discos

importados etc. O gosto geral de Renato Russo sempre foi o punk.

Ouvia também rock progressivo como Genises e Yes. Sua banda

teve influencias do The Clash e do Eddie and The hot Rods.

O primeiro cd da banda foi lançado em 1985 e se chamava

Legião Urbana. Os hits desse cd foram as musicas: Será; Ainda é

cedo e Geração Coca-cola, músicas essas que serão analisadas na

sua composição lírica e formal.

1. SERÁ:

A música “Será” tem letra de Renato Russo e música de dado

Villa-Lobos, Renato Russo e Marcelo Bonfá. A musica apresenta 4

estrofes e 1 refrão. Vamos analisar a primeira estrofe:

Tire suas mãos de mim

Eu não pertenço a você

Não é me dominado assim

Que você vai me entender

Eu posso estar sozinho

Mas eu sei muito bem aonde estou

Você pode até duvidar

Acho que isso não é amor.

O começo da estrofe marca uma negação de uma ação, se

destaca os verbos tirar e pertencer. Nesse momento, se mostra

uma situação de poder ocorrendo entre duas pessoas. Traz a tona

a relação entre duas pessoas, ainda sem sexos definidos. Durante

toda a estrofe mostra a luta de uma da pessoas contra a dominação

de outra. O mais interessante que se percebe que a ambigüidade

de sexos também cria uma situação onde não se sabe se trata de

uma relação entre namorados ou entre pais e filhos. Renato Russo

usa muito da ambigüidade e da ironia em suas músicas. Ao final da

primeira estrofe se mostra o sentimento de amor, fazendo ligação

para a próxima estrofe da canção.

Será isso imaginação?

Será que nada vai acontecer?

Será que é tudo isso em vão?

Será que vamos conseguir vencer?

Na segunda estrofe percebe-se um excesso de perguntas. As

perguntas surgem no momento de dúvida, de busca de

conhecimento sobre o mundo. Nessa estrofe percebe-se um tom

mais coletivo com o uso do termo vamos. Mais uma vez mostra um

momento de intimismo onde duas pessoas ou mais se perguntam

sobre os caminhos da vida ou da relação entre os seres humanos.

Nos perderemos entre monstros

Da nossa própria criação

Serão noites inteiras

Talvez por medo da escuridão

Ficaremos acordados

Imaginando alguma solução

Prá que esse nosso egoísmo

Não destrua nosso coração.

Na terceira estrofe se mostra um processo de perturbação

causada por um movimento social ou por uma situação criada pelo

mundo. Mostra uma situação de crise causada pela própria

humanidade. Os substantivos monstros, criação, noite, escuridão e

egoísmo mostram um aspecto depressivo de ver o mundo. Ao

mesmo tempo questionador do mundo que está vigente, com todas

as suas injustiças. As palavras solução e coração criam uma rima

simples retomando a uma esperança da situação atual se reverter,

mantendo assim a beleza dos sentimentos puros, como o amor

citado nas estrofes anteriores.

Brigar prá quê

Se é sem querer

Quem é que vai

Nos proteger?

Sera que vamos ter que responder

Pelos erros a mais

Eu e você?

A última estrofe retoma o ato de discussão entre dois seres

que acontece na primeira estrofe. Os questionamentos sobre a vida

continuam nessa estrofe. As perguntas são relacionadas a relação

de duas pessoas, sempre questionando o caso da perda de algo

puro e bonito que existe entre as pessoas. Ao mesmo tempo, os

verbos proteger e responder suscitam seres frágeis, que precisam

de outros para viver. Mais uma vez, suscita questões existenciais

do homem como a instabilidade emocional e a fragilidade diante

das dificuldades naturais da vida.

2. AINDA É CEDO:

A música a seguir também teve letra de Renato Russo. O

tema central é sobre a relação de duas pessoas, nesse caso é

mostrado o sexo de uma delas. O narrador se mostra um ser

masculino e o objeto de suas súplicas é uma menina. Analisemos a

primeira estrofe.

Uma menina me ensinou Quase tudo o que eu sei Era quase escravidão Mas ela me tratava como um rei Ela fazia muitos planos Eu isso queria estar ali Sempre ao lado dela Eu não tinha aonde ir

Na primeira frase se percebe mais uma vez de uma relação

de poder entre duas pessoas. Ao dizer que uma menina me ensinou

mostra uma visão de tutora de uma pessoa, sucitando assim

discussões sobre poder e persuasão. Na frase era quase

escravidão se prova essa situação de poder entre os dois. O

narrador se encontra numa situação em que uma menina lhe

ensinou coisas sobre a vida. E desse conhecimento a menina em

questão tornou-o um escravo dela.

A relação ambígua entre os dois se prova na frase ela me

tratava como um rei. Apesar de ser escravo dela, ela o tratava como

um rei, mostrando a oposição entre os dois termos. Ao final, o

narrador diz que não tinha aonde ir provando a dependência deste

para com a menina em questão comprovando mais uma vez uma

relação de dependência entre os dois. Ao mesmo tempo que a

menina o fazia escravo, o tratava como um rei, mostrando assim a

dependência de ambos e vice-versa.

Mas, egoísta que eu sou,

Me esqueci de ajudar

A ela como ela me ajudou

E não quis me separar.

Ela também estava perdida

E por isso se agarrava a mim também

Eu me agarrava nela

Porque eu não tinha mais ninguém.

A segunda estrofe é a mais interessante da composição. O

narrador nessa estrofe mostra uma reversão dos papeis antes

tomados no início da música. O narrador ao dizer egoísta que eu

sou afirma que tal tomou uma atitude egocêntrica diante da menina.

Na segunda frase ao dizer que esqueci de ajudar / a ela como ela

me ajudou mostra a dificuldade do narrador de retribuir ao que a

menina lhe proporcionou. E, como num estão de elucidação da

questão do relacionamento entre os dois, ele afirma que ela

também estava perdida como ele. E nisso, ambos de reconhecem

como dependentes de um e de outro. E afirma ao final que não

tinha mais ninguém.

E eu dizia: - Ainda é cedo cedo cedo cedo cedo

Sei que ela terminou

O que eu não comecei

E o que ela descobriu

Eu aprendi também, eu sei.

Ela falou: - Você tem medo.

Ai eu disse: - Quem tem medo é você.

Falamos o que não devia

Nunca ser dito por ninguém

Ela me disse: "- Eu não sei mais o que eu sinto por você.

Vamos dar um tempo, um dia a gente se vê."

Nesse trecho percebe-se o fim do relacionamento entre as

duas pessoas descritas na letra, mostrando a fragilidade de ambos.

Tal fragilidade ocorre principalmente em relacionamentos amorosos

e o trecho falamos o que não devia mostra a irracionalidade do ser

humano ao se deparar com seus sentimentos e principalmente a

falta de conhecimento de como lidar com sentimentos

contraditórios.

O uso do advérbio nunca traz a idéia de temporalidade,

mostrando a relação de tempo entre o que havia acontecido na vida

do casal até aquele momento, marcando assim aquele momento

como um marco. A dúvida também é destacada no trecho eu não

sei o que eu sinto por você transparecendo a mutabilidade do ser

humano e sua característica inerentemente instável.

Renato Russo com suas musicas fazia sucesso entre os

jovens exatamente por mostrar o lado humano das pessoas, as

relações amorosas, a crítica social emergente e principalmente o

aspecto depressivo de se enfrentar a realidade. Sabe-se que a

adolescência é uma fase em que o jovem precisa se firmar e se

formar enquanto pessoa. É uma época de dúvidas e descobertas. E

isso Renato Russo soube passar em suas músicas de forma muito

interessante.

3. GERAÇÃO COCA-COLA:

Ao mesmo tempo em que o cantor escrevia músicas

sentimentais, ele também abordava a situação social do Brasil em

suas composições. Abordaremos agora a música que leva o nome

de Geração Coca-Cola, que faz alusão ao refrigerante mais vendido

no mundo.

Quando nascemos fomos programados A receber o que vocês nos empurraram Com os enlatados dos USA, de 9 às 6. Desde pequenos nós comemos lixo Comercial e industrial Mas agora chegou nossa vez Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês.

Na primeira estrofe se percebe a alusão à um grupo social,

principalmente a juventude que tem acesso ao refrigerante, público-

alvo do produto. No trecho com os enlatados dos USA se mostra a

dominação cultural norte-americana sobre o país. Ao dizer que

desde pequenos nós comemos lixo destaca a pobreza ainda

remanescente no nosso país, pobreza essa não material, e sim de

falta de idéias e a aceitação de tudo que vem de fora,

desvalorizando assim a cultura nacional.

É destacado também o tipo de lixo consumido pelos jovens

brasileiros com os adjetivos comercial e industrial. Como um

chamativo de luta para os jovens no trecho mas agora chegou

nossa vez chama os jovens para a luta contra a dominação norte

americana na sociedade brasileira. E como num ato de revolta o

trecho termina com a frase: vamos cuspir de volta o lixo em cima de

vocês.

Somos os filhos da revolução Somos burgueses sem religião Nós somos o futuro da nação Geração Coca-Cola.

No trecho somos os filhos da revolução o autor faz alusão à

revolução francesa, época em que a sociedade francesa se voltou

contra a monarquia em busca de um governo mais democrático e

igualitário. Mas, no mesmo trecho, Renato reclama da situação

social e poltica brasileira com o trecho nós somos o futuro da

nação, frase essa muito vinculada na imprensa brasileira querendo

vincular a idéia que o Brasil é um país ainda novo e que tem um

futuro brilhante, sem prestar atenção nas atrocidades e injustiças do

presente. A Geração Coca-Cola citada seria os jovens se voltando

contra a dominação acima explicada.

Depois de vinte anos na escola Não é difícil aprender Todas as manhas do jogo sujo Não é assim que tem que ser? Vamos fazer nosso dever de casa E aí então, vocês vão ver Suas crianças derrubando reis Fazer com‚dia no cinema com as suas leis.

Esse trecho é o mais interessante da composição pois traz

várias imagens e respostas sobre a dominação cultural norte

americana. Ao dizer depois de vinte anos na escola é mostrada a

idade em que a juventude precisa estar ciente da realidade e se

colocar de forma critica diante desta. O jovem, com 20 anos, já tem

conhecimento suficiente do mundo para formar sua crítica social

sobre seu país.

Além disso, no trecho Não é difícil aprender mostra a

ingenuidade do jogo dos americanos a fim de buscar a alienação do

jovem. Mais uma vez incitando o jovem à luta no trecho suas

crianças derrubando reis alude aos jovens críticos que tirarão do

poder aqueles que os subestimaram. E, como retrato de

independência, o cinema seria feito mostrando o fim da dominação

norte-americana. O cinema surgiu nos Estados Unidos e se tornou

um veículo da ideologia norte-americana.

4. BAADER-MEINHOF BLUES

Tal música agora a ser analisada fala um pouco sobre a

violência e o cotidiano das pessoas. Analisemos então:

A violência é tão fascinante

E nossas vidas são tão normais

E você passa de noite e sempre vê

Apartamentos acessos

Tudo parece ser tão real

Mas você viu esse filme também.

Na primeira estrofe se caracteriza a violência como algo

fascinante. O autor mostra que a vida, em sua normalidade, com

seu cotidiano, não espera que a violêcia entre em nossas vidas. O

cotidiano é mostrado nas frases: apartamentos acessos/ tudo

parece real.

Andando nas ruas

Pensei que podia ouvir

Alguém me chamando

Dizendo meu nome.

JÁ estou cheio de me sentir vazio

Meu corpo é quente e estou sentindo frio

Todo mundo sabe e ninguém quer mais saber

Afinal, amar ao próximo é tão demode.

O sentimento de amor ao próximo é o núcleo das estrofes

acima. Apesar do cotidiano e das pessoas, com a violência, fica

difícil praticar a tolerância num mundo tão desigual e cheio de

injustiças. O ser humano padece como diz na frase: Já estou cheio

de me sentir vazio/ meu corpo é quente e estou sentindo frio. A

oposição quente/frio mostra bem o lado da vida da pessoa e a

vontade de mudar enquanto a frieza traz a tona as injustiças e as

tristezas do dia a dia. E termina por afirmar o amor ao próximo

como um sentimento fora de moda (démodé).

Essa justiça desafinada

É tão humana e tão errada

Nós assistimos televisão também

Qual é a diferença?

Não estatize meus sentimentos

Prá seu governo,

O meu estado é independente

As estrofes finais concluem a revolta do ser humano em

relação à sociedade em que vive. Ao dizer essa justiça desafinada

mostra o quanto a realidade esta dissonante ao que o cidadão

merece enquanto respeito e qualidade de vida. Por fim, reclama

também do governo , instituição importante nas mudanças mas que

hoje em dia anda muito passiva, apenas atendendo às demandas

de outros países sem pensar em ser povo. De forma bem resumida,

Renato Russo escreveu essa música a fim de continuar criticando a

situação do Brasil como um todo, colocando o jovem a pensar e se

tornar agente crítico de seu país.

5. QUASE SEM QUERER:

O cd Legião Urbana 2 foi gravado de janeiro a março de 1986.

O cd foi lançado em 1986. E apresenta os mais variados temas nas

músicas: tom religioso, crítica social e sentimentos como angústia,

amor e amizade. Comecemos a analisar a música Quase sem

querer com letra de Renato Russo.

Tenho andado distraído, Impaciente e indeciso E ainda estou confuso. Isso que agora é diferente: Estou tão tranqüilo E tão contente.

O trecho é composto por vários adjetivos: distraído,

impaciente, indeciso, confuso, tranqüilo e contente. Mostra assim

um ser que certas horas está feliz, em outras esta triste e dentro

dessa ambigüidade de sentimentos tenta se encontrar. O trecho

tenho andado distraído mostra a distração da pessoa ao caminhar

pela vida e ao se encontrar tão confuso em relação aos seus

sentimentos. O título da música Quase sem querer alude à

ambigüidade inerente à música. O advérbio quase mostra a não

conclusão de algo e sem querer quer dizer o ato irracional, não-

pensado, a ação sem pensar na reação. E por toda a letra da

música percebe-se o tom de irracionalidade e ambigüidade de

sentimentos em relação à vida.

Quantas chances desperdicei

Quando o que eu mais queria

Era provar pra todo o mundo

Que eu não precisava

Provar nada pra ninguém.

Nesse trecho se percebe o momento de afirmação que todo

jovem precisa passar para entender o mundo em que vive. No

trecho quantas chances desperdicei mostra o curso normal da vida

das pessoas com seus obstáculos e descobertas. No trecho quando

o que eu mais queria/era provar pra todo mundo o verbo provar

retrata bem esse processo de afirmação que o jovem tem que viver.

Desse processo de afirmação prepara-se o futuro adulto, com sua

personalidade e estruturas.

Me fiz em mil pedaços

Prá você juntar

E queria sempre achar

Explicação pro que eu sentia.

Como um anjo caído

Fiz questão de esquecer

Que mentir prá si mesmo

É sempre a pior mentira.

Mas não sou mais

Tão criança a ponto de saber

Tudo.

Neste trecho, o processo de descoberta e afirmação do jovem

continua. No trecho me fiz em mil pedaços/ pra você juntar faz uma

metáfora intrigante sobre as tentativas normais do jovem de se

separar dos pais para buscar sua própria imagem. E o verbo juntar

mostra que esse processo é feito junto com a atitude dos pais, que

precisam ajudar seus filhos a encontrar seus próprios caminhos.

Já no trecho Eu queria sempre achar explicação pro que eu

sentia mostra o caminho que o jovem percorre pra entender o que

sente, mesmo com suas ambigüidades e dificuldades normais de

qualquer jovem. O aspecto da mentira entra como núcleo nesse

processo de descoberta e de passagem de jovem para criança. O

ser jovem ainda não sabe o que quer, usa de mentiras para

descobrir caminhos e verdade, por mais contraditório que seja esse

processo. Essa música mostra bem isso e Renato Russo soube

captar muito bem a personalidade da juventude brasileira com seus

dilemas e problemas.

Já não me preocupo

Se eu não sei porquê às vezes o que eu vejo

Quase ninguém vê

E eu sei que você sabe

Quase sem querer

Que eu vejo o mesmo que você.

Nesse trecho, a frase se eu não sei porquê às vezes o que eu

vejo/ quase ninguém vê surge o aspecto de busca do jovem em se

descobrir e construindo imagens que só os jovens tem em seu

mundo. Mostra as peculiaridades de cada um, com seus sonhos e

vivência, que é individual a cada um. E ao final do trecho se destaca

o papel dos pais em participar desse mundo e ao mesmo tempo

respeitando-o sem julgar ou prejudicar os filhos nas descobertas da

vida.

Tão correto e tão bonito: O infinito é realmente Um dos deuses mais lindos. Sei que às vezes uso Palavras repetidas Mas quais são as palavras Que nunca são ditas?

Neste trecho da música faz alusão à várias imagens literárias

e da cultura universal como os deuses, o infinito e o poder das

palavras. De forma simplificada e bastante forte constrói a imagem

do infinito como algo correto e bonito. Dessa descoberta os deuses

também são lindos. O poder da palavra entra no momento de saída

da oralidade para a literalidade, para o estado de contar para outro

a descoberta que fez. Ao final conclui esse processo sobre o poder

da palavra ao dizer mas quais são as palavras / que nunca são

ditas ?, valorizando o poder da palavra e o seu uso. A lírica desta

música especificamente é muito bem construída, criando metáforas

fortes e principalmente mostrando os caminhos de descobertas que

todo ser humano passa na vida.

6. EDUARDO E MÔNICA

Eduardo e Mônica é uma outra bela música de Renato Russo

e fala sobre a juventude de Brasília. De forma bastante suave e

conhecedor da realidade brasiliense o poeta passa para a

composição o grande conhecimento que sempre teve sobre o jovem

brasileiro. Vamos a análise:

Quem um dia ira dizer Que existe razão Nas coisas feitas pelo coração? E quem ira dizer Que não existe razão?

Neste primeiro trecho se cria uma oposição entre dois

substantivos razão e coração. Devido à natureza irracional dos

sentimentos vemos que ocorre uma oposição entre o que o coração

sente e o que o cérebro pensa. Tal oposição vai seguir durante toda

a composição mostrando as divergências e as convergências que a

razão e o coração constroem dentro do ser humano.

Eduardo abriu os olhos mas não quis se levantar: Ficou deitado e viu que horas eram Enquanto Mônica tomava um conhaque, Noutro canto da cidade, Como eles disseram.

Nesse momento os dois personagens a ser caracterizados

são apresentados: Eduardo e Mônica. Como num flash

cinematográfico, se mostra dois momentos: o de Eduardo em casa

e de Mônica em outro lugar da cidade tomando um conhaque.

Ambos se conhecem e marcaram um encontro. Ainda não se sabe

a idade de cada um ou o que fazem na vida, só se sabe que moram

na mesma cidade. Esse clima de suspense já é criado a fim de

fazer com que na música surjam imagens fortes a fim de

caracterizar o casal, levando em conta a relação razão/coração

criada no começo da composição.

Eduardo e Mônica um dia se encontraram sem querer E conversaram muito mesmo prá tentar se conhecer. Foi um carinha do cursinho do Eduardo que disse: "- Tem uma festa legal e a gente quer se divertir." Festa estranha, com gente esquisita: "- Eu não estou legal. Não aguento mais birita." E a Mônica riu e quis saber um pouco mais Sobre o boyzinho que tentava impressionar E o Eduardo, meio tonto, isso pensava em ir prá casa: "- É quase duas, eu vou me ferrar."

A partir dessa parte da música se percebe uma localização

temática da música com a realidade da juventude brasiliense da

década de 80, época em que Renato Russo morou na capital do

país. No trecho e conversaram muito mesmo pra tentar se conhecer

traz uma ligação com o início da música e ao fato de ocorrer o

encontro entre os dois personagens. A partir da frase Foi um cara

do cursinho do Eduardo que disse/ tem uma festa legal e a gente

quer se divertir mostra bem a realidade da juventude de Brasília, se

preparando para o vestibular das faculdades na capital.

No trecho sobre o boyzinho que tentava impressionar retrata a

imagem que Mônica compõe de Eduardo adequando essa imagem

a vida que ele leva na cidade, o tipo de lugares que freqüenta, o

estilo de música etc. Em Brasília, como em qualquer outra cidade,

existem grupos de jovens que se identificam pelo jeito de se vestir,

pelo estilo de saídas etc. Por ser uma cidade ainda nova e sempre

recebendo pessoas dos mais variados estados o fator da busca de

identidade do grupo se intensifica ainda mais entre os jovens

brasilienses. Se percebe até agora na composição a colocação de

diferenças entre os dois personagens e ao mesmo tempo a

intencionalidade de ambos se conhecerem, apesar das diferenças

de cada um.

Eduardo e Mônica trocaram telefone Depois telefonaram e decidiram se encontrar. O Eduardo sugeriu uma lanchonete Mas a Mônica queria ver o filme do Godard.

O encontro ocorre e na frase O Eduardo sugeriu uma

lanchonete/ mas a mônica queria ver o filme do Godard se percebe

de forma clara as diferenças entre os dois. Eduardo faz parte de um

mundo mais juvenil, com uma rotina de cursos e lanchonetes.

Enquanto Mônica parece ser uma mulher antenada com aspectos

culturais como cinema (filme de Godard) e outros assuntos mais

adultos, saindo um pouco da jovialidade marcante de Eduardo.

Se encontraram então no parque da cidade A Mônica de moto e o Eduardo de camelo.

O Eduardo achou estranho e melhor não comentar Mas a menina tinha tinta no cabelo.

Já na estrofe acima se percebe a alusão a lugares de Brasília

como o Parque da cidade, até hoje ponto de encontro da juventude

brasiliense que busca manter a forma e a saúde. Um fator

interessante nessa estrofe ocorre na surpresa de Eduardo ao

perceber a tinta no cabelo de Mônica. Tal fator mostra mais uma

vez um lado mais conservador de Eduardo enquanto Mônica é

colocada através de uma imagem de liberdade, conhecimento e

maturidade.

Eduardo e Mônica eram nada parecidos Ela era de Leão e ele tinha dezesseis. Ela fazia Medicina e falava alemão E ele ainda nas aulinhas de inglês. Ela gostava do Bandeira e do Bauhaus, De Van Gogh e dos Mutantes, De Caetano e de Rimbaud E o Eduardo gostava de novela E jogava futebol-de-botão com a seu avô. Ela falava coisas sobre o Planalto Central, Também magia e meditação. E o Eduardo ainda estava No esquema "escola - cinema - clube - televisão."

Nas estrofes acima fica comprovada a falta de conexão em

alguns aspectos dos dois personagens. Na frase Eduardo e Mônica

eram nada parecidos prova esse aspecto. Logo após, ao dizer a

idade de Eduardo fica comprovada a juventude de Eduardo

enquanto Mônica seguia o caminho da faculdade (ela fazia

Medicina e fala alemão).

Toda essa contraposição dos gostos e jeitos de cada um é

colocada nessa parte da composição musical. Mônica falava dos

mais variados assuntos, desde meditação a coisas do Planalto

Central enquanto Eduardo falava de trivialidades e mantinha a sua

rotina (escola – cinema – clube – televisão).

Nessa parte da estrofe fica característica um fator bastante

perculiar da juventude brasiliense. Por ser uma cidade nova,

Brasília ainda apresenta poucas opções de diversões para seus

habitantes. Construída de forma setorizada, as pessoas acabam se

deslocando da mesma forma, em setores. Ao resumir a vida de

Eduardo entre escola, cinema, clube e televisão o compositor esta

fazendo uma crítica ao estilo de vida da juventude brasiliense. É

uma cidade que não apresenta muitas pessoas nas ruas,

passeando, procurando lugares novos, ou freqüentando bares. Não

é uma cidade com um ritmo parecido aos das outras capitais mais

antigas no Brasil.

E, mesmo com tudo diferente, Veio mesmo, de repente, Uma vontade de se ver E os dois se encontravam todo dia E a vontade crescia, Como tinha de ser.

A partir dessa estrofe o sentimento entre os dois se completa

pois provam que apesar das diferenças passam a estar juntos. O

sentimento do amor citado no começo da composição mostra que

apesar da razão ver as diferenças entre os dois, o coração acaba

por se apaixonar, o coração se entrega ao sentimento, superando

as diferenças de cada um.

Eduardo e Mônica fizeram natação, fotografia, Teatro e artesanato e foram viajar. A Mônica explicava pro Eduardo Coisas sobre o céu, a terra, a água e o ar: Ele aprendeu a beber, deixou o cabelo crescer E decidiu trabalhar;

E ela se formou no mesmo mês Em que ele passou no vestibular. E os dois comemoraram juntos E também brigaram juntos, muitas vezes depois. E todo mundo diz que ele completa ela e vice-versa, Que nem feijão com arroz. Construíram uma casa uns dois anos atrás Mais ou menos quando os gêmeos vieram Batalharam grana e seguraram legal A barra mais pesada que tiveram.

Logo após a confirmação do sentimento entre os dois e a

superação de suas diferenças, os personagens começam a viver

uma bonita relação de amor. Eduardo se forma, passa n o

vestibular, comemoram juntos as conquistas dele. Mônica, com sua

inteligência e sagacidade, sempre interessada pelos mais variados

assunto ajuda Eduardo em suas novas descobertas. Os verbos

trabalhar, decidiu, comemoraram, brigaram, construíram,

batalharam e tiveram fazem um apanhado de todo um caminho de

descobertas que o casal promoveu juntos.

Eduardo e Mônica voltaram prá Brasília

E a nossa amizade da saudade no verão.

Só que nessas f‚rias não vão viajar

Porque o filhinho do Eduardo tá de recuperação.

E quem um dia ira dizer

Que existe razão

Nas coisas feitas pelo o coração?

E quem ira dizer

Que não existe razão?

Ao final da música, as últimas estrofes destacam o papel do

narrador dentro da história por ele contada na composição. Mostra

que o narrador é amigo do casal e esse, está de fora, vendo a

relação dos dois. E continua se perguntando sobre a contraposição

entre a razão e coração, provando que a racionalidade natural do

ser humano abre brechas para que o coração aja, fazendo com que

abandonemos a racionalidade por alguns instantes. Renato Russo,

em suas composições, sempre trabalhou com a idéia da salvação

pelo amor, a salvação pelo sentimento, sendo o sentir a única forma

de legitimação da realidade, aludindo aos poemas de Fernando

Pessoa, poeta bastante lido por Renato Russo durante sua

juventude.

7. ÌNDIOS

A música índios é uma das mais belas composições de

Renato Russo. É toda composta com várias imagens históricas,

relatando a dominação cultural da Europa sobre a América, partindo

de uma visão geral (América) para uma visão específica (Brasil).

Vejamos a análise das estrofes:

Quem me dera, ao menos uma vez Ter de volta todo o ouro que entreguei A quem conseguiu me convencer Que era prova de amizade Se alguém levasse embora até o que eu não tinha. Quem me dera, ao menos uma vez, Esquecer que acreditei que era por brincadeira Que se cortava sempre um pano-de-chão De linho nobre e pura seda.

As estrofes começam com a expressão quem me dera, dando

um aspecto de lembrança ao narrador dos fatos na composição.

Por toda a composição o narrador foi criado a fim de parecer um

índio comentando sobre a dominação que seu povo sofreu nas

Américas. O aspecto do ouro, amizade, brincadeira, pura seda, traz

a tona o aspecto de convencimento usado pelos europeus,

apresentando aos índios seda e linho a fim de chamar atenção

daquele povo ao que eles chamavam de civilização.

Quem me dera, ao menos uma vez,

Explicar o que ninguém consegue entender:

Que o que aconteceu ainda está por vir

E o futuro não é mais como era antigamente.

Quem me dera, ao menos uma vez,

Provar que quem tem mais do que precisa ter

Quase sempre se convence que não tem o bastante

E fala demais, por não ter nada a dizer

Nas estrofes acima o que se destaca é a contraposição entre

os verbos explicar e acontecer e provar e dizer. Na primeira

oposição se vê a vontade que o índio, hoje, tem que mostrar a

civilização brasileira ou latina o que aconteceu com seu povo. Mas,

o que realmente aconteceu, como genocídios e mortes, são fatos

muitas vezes apagados dos livros e documentos da história. O índio

perdeu seu espaço de reivindicação assim como perdeu seu

espaço de memória dentro do âmbito da conjuntura política atual.

Já a segunda oposição, entre os verbos provar e dizer mostra

a vontade do índio de falar ao mundo e ser ouvido. Porém, o que

acontece é uma total marginalização do índio em seus direitos.

Renato Russo faz uma crítica aos povos americanos, e também à

sociedade brasileira que não respeita o índio na sua individualidade

e na sua importância histórica.

Quem me dera, ao menos uma vez,

Que o mais simples fosse visto como o mais importante,

Mas nos deram espelhos

E vimos uma mundo doente.

Na frase mas nos deram espelhos faz alusão ao modo de

convencimento usado pelos europeus chegados em terras

americanas, cedendo quinquilharias como espelhos para que os

índios estranhassem ou se sentissem comprados. Dessa forma, o

mundo deles passava a ser manipulado pelos europeus. A

manipulação muitas vezes era pacífica, pois alguns índios cederam

à dominação enquanto outros ditos mais “rebeldes” eram mortos ou

presos.

Quem me dera, ao menos uma vez,

Entender como isso

Deus ao mesmo tempo é três

E esse mesmo Deus foi morto por vocês

É isso maldade então, deixar um Deus tão triste.

Já nessa estrofe o principal ponto é a discussão religiosa. A

catequização dos índios foi também uma forma de dominação

européia, já que os índios tinham suas próprias crenças e tradições,

bem diferente da tradição cristã européia. A dúvida é mostrada no

trecho entender como isso/ Deus ao mesmo tempo é três. O

narrador é criado como um índio esclarecido e crítico de sua

posição na história, se perguntando sobre os caminhos tomados

pela história.

Eu quis o perigo e até sangrei sozinho.

Entenda - assim pude trazer você de volta para mim,

Quando descobri que é sempre isso você

Que me entende do início ao fim

E é isso você que tem a cura do meu vício

De insistir nessa saudade que eu sinto

De tudo que eu ainda não vi.

A partir da estrofe a música toma um tom mais intimista e

melancólico. O narrador afirma as dificuldades que passou e que

com outra pessoa ao seu lado ele estaria melhor. E resume seu

sentimento de amor como um misto de amor e perda, saudade e

recordação, como mostrado na frase: E é isso você que tem a cura

do meu vício / de insistir nessa saudade que eu sinto/ de tudo que

eu ainda não vi.

A saudade acontece, porém o eu lírico sente falta também das

coisas que não conheceu ou lhe foram negados em conhecer. Faz

uma alusão também à vida dos índios em países americanos

mostrando o aspecto dominante a qualquer custo, sem respeitar

aspectos culturais ou religiosos.

Quem me dera, ao menos uma vez,

Acreditar por um instante em tudo que existe

E acreditar que o mundo é perfeito

E que todas as pessoas são felizes.

Nessa estrofe se destaca o instinto de esperança perdida no

narrador. Apesar de ter sofrido enquanto povo, ainda quer acreditar

num mundo perfeito. Porém o que se vê não é felicidade ou

perfeição.

O esclarecimento crítico se mostra mais uma vez através de

uma fuga da realidade. Imaginando um mundo perfeito não

precisaria ver as atrocidades que os índios sofreram. Porém, o

passado já aconteceu e isso não se pode mais mudar.

Quem me dera, ao menos uma vez,

Fazer com que o mundo saiba que seu nome

Esta em tudo e mesmo assim

Ninguém lhe diz ao menos obrigado.

Quem me dera, ao menos uma vez,

Como a mais bela tribo, dos mais belos índios,

Não ser atacado por ser inocente.

Imagens como tribo e índios são trazidas nessa estrofe. O

narrador afirma a possibilidade do mundo respeitar a natureza dos

índios, agradecendo pela sua contribuição na história e na formação

dos povos americanos. Mas, logo se encaminhando ao final da

estrofe, percebe a falta de educação das pessoas em relação ao

índio com a frase: ninguém lhe diz ao menos obrigado. A inocência

é mostrada como característica natural dos índios que moravam

nas Américas, porém, a inocência foi a principal arma contra eles

próprios.

Nos deram espelhos e vimos um mundo doente

- Tentei chorar e não consegui

A música termina com uma bela afirmação, retomando o

acesso dos índios ao espelho, objeto da civilização cedido pelos

europeus como presente. O sofrimento surge ao afirmar que o

choro não é mais suficiente para mostrar a grande decepção do

índios em relação à histórica dizimação de seu povo: tentei chorar e

não consegui. O eu lírico da composição perdeu a própria

capacidade de se emocionar, pois o que aconteceu não muda mais,

destacando mais uma vez o esclarecimento crítico do narrador.

8. FAROESTE CABLOCO

Faroeste Cabloco foi e é até hoje umas das músicas mais

tocadas da banda. Conta a história de um personagem que sai da

Bahia em busca de emprego na capital do Brasil. Durante toda a

composição, espaços e ações são construídos a fim de mostrar a

vida e o sofrimento do migrante brasileiro. A migração é destacada

com suas verdades colocando aquele que ouve a música num

processo de pensamento sobre a situação social do Brasil. Vamos à

análise das estrofes:

Não tinha medo o tal João de Santo Cristo

Era o que todos diziam quando ele se perdeu

Deixou prá trás todo o marasmo da fazenda

Só prá sentir no seu sangue o ódio que Jesus lhe deu

Quando criança só pensava em ser bandido

Ainda mais quando com tiro de soldado o pai morreu

Era o terror da cercania onde morava

E na escola até o professor com ele aprendeu

O personagem é apresentado com o nome de João de Santo

Cristo. Na segunda frase dizem que tal nome lhe era dado porque

os outros lhe chamavam assim quando ele se perdeu. Mostra que o

personagem saiu do marasmo do interior e foi buscar vida na

cidade. Alguns sonhos de criança são relatados como na frase:

quando criança só pensava em ser bandido / ainda mais quando

com tiro de soldado o pai morreu . Nessa última frase, conta-se um

fato familiar do personagem, marcante fato, que o fez tomar atitudes

em busca de justiça mostrando um país falho em relação ao

cuidado da segurança com seu povo. Na última frase faz alusão ao

professor e à escola, dizendo que ambos aprenderam com João,

passando a idéia de que João era uma pessoa que conhecia a vida,

na sua prática, nas tristezas e nas dificuldades, longe dos

problemas idealizados em livros de escola, afastados do dia-a-dia

dos alunos.

Ia prá igreja só prá roubar o dinheiro

Que as velhinhas colocavam na caixinha do altar

Sentia mesmo que era mesmo diferente

Sentia que aquilo ali não era o seu lugar

Ele queria sair para ver o mar

E as coisas que ele via na televisão

Juntou dinheiro para poder viajar

E de escolha própria escolheu a solidão

Na segunda estrofe o relato sobre as ações de João continua.

Cita as idas à igreja feitas pelo personagem apenas com o intuito de

roubar o dinheiro que as velhinhas colocavam na caixinha do altar.

Desse fato, mostra que o personagem se encontrava marginalizado

dentro da sua pequena cidade, não se identificava com as pessoas

que iam a igreja por exemplo. Mostra-se assim uma personalidade

questionadora e revoltada com alguns fatos da situação atual de

sua cidade. E a prova de que estava cansado daquela cidade está

na frase: sentia que aquilo ali não era o seu lugar.

O sentimento de não-pertencimento é bastante forte nesta

composição. Por toda a composição, o personagem, mesmo na

cidade grande (Brasília) ainda se sente marginalizado e procura

formas de fazer parte da grande massa. O que acontece hoje no

Brasil é uma eterna busca de pertencimento do cidadão, muitos

apelam para a violência e para o roubo para ter aquilo que não

podem ter, vivemos num país desigual e isso é uma idéia concreta

na música faroeste cabloco.

Apesar de não concordar com idéias das pessoas onde

morava ele continua a ter sonhos. Seus sonhos são citados nas

ultimas frases da estrofe: ele queria sair pra ver o mar/ e as coisas

que ele via na televisão. E partiu para sua jornada em busca de

outros sonhos e caminhos pelo país.

Comia todas as menininhas da cidade

De tanto brincar de médico aos doze era professor

Aos quinze foi mandado pro reformatório

Onde aumentou seu ódio diante de tanto terror

Não entendia como a vida funcionava

Descriminação por causa da sua classe e sua cor

Ficou cansado de tentar achar resposta

E comprou uma passagem foi direto a Salvador

Nas duas estrofes acima percebe-se dois temas centrais: a

precocidade e o preconceito. Na primeira parte ao dizer comia todas

as menininhas da cidade mostra a realidade social da pequena

cidade: meninas que muitas vezes são regradas pelos pais mas não

formam um senso crítico sobre gravidez, sexo e outros assuntos

relacionados à sexualidade. Isso não ocorre apenas com meninas,

mas também com meninos. A falta de informação de torna geral,

fazendo com que conheçam o sexo cedo demais, sem pensar a

respeito do assunto ou se proteger. A frase: de tanto brincar de

médico aos doze era professor mostra que ele desde cedo já

conhecia as artes do amor, do sexo. O fator reformatório traz a tona

novamente a revolta que ele sente do mundo em que vive, virando

assim o motor que o leva a sair daquela pequena cidade.

Na frase: Não entendia como a vida funcionava

Descriminação por causa da sua classe e sua cor mostra o início de

um processo de esclarecimento sobre sua etnia e sua posição na

sociedade. Faz alusão a sua cor, colocando em xeque a questão do

preconceito racial ainda presente na sociedade brasileira. Mostra

que ele buscava as respostas ali naquela cidade e partiu para

buscar tais respostas em Salvador.

E lá chegando foi tomar um cafezinho

E encontrou um boiadeiro com quem foi falar

E o boiadeiro tinha uma passagem

Ia perder a viagem mas João foi lhe salvar:

Dizia ele "- Estou indo prá Brasília Nesse país lugar melhor não há

Tô precisando visitar a minha filha

Eu fico aqui e você vai no meu lugar"

O processo de migração de João é mostrado na estrofe acima

na frase: estou indo pra Brasília. Nesse país lugar melhor não dá. O

boiadeiro iria lhe dar uma carona até a capital.

E João aceitou sua proposta

E num ônibus entrou no Planalto Central

Ele ficou bestificado com a cidade

Saindo da rodoviária viu as luzes de natal

"- Meu Deus mas que cidade linda!

No Ano Novo eu começo a trabalhar"

Cortar madeira aprendiz de carpinteiro

João parte para o planalto central. Mostra-se assim a época

em que Brasília foi criada, vista assim como o eldorado do Brasil.

Brasília foi criada com o intuito de demonstrar a modernidade do

país. Apesar disso, Jucelino Kubtcheck, criador da capital, usou de

vários empréstimos norte-americano para construir a nova capital.

Ironia do destino mas o país continuava sofrendo com a dominação

política e econômica de outros países. João se mostra fascinado

com a cidade, apesar de tudo.

Ganhava cem mil pro mês em Taguatinga

Na sexta feira foi prá zona da cidade

Gastar todo o seu dinheiro de rapaz trabalhador

E conhecia muita gente interessante

Até um neto bastardo do seu bisavô

Um peruano que vivia na Bolívia

E muitas coisas trazia de lá

Seu nome era Pablo e ele dizia

Que um negócio ele ia começar

Nesta estrofe mostra o dia a dia de João na capital. Passou a

morar em Taguatinga, importante cidade-satélite do Distrito Federal.

Ia para a zona gastar o dinheiro do seu trabalho. Conheceu

pessoas que viviam na cidade, os tipos mais variados: peruanos,

bolivianos. Outro fator importante é a iniciação na vida do tráfico ao

dizer: e muitas coisas trazia de lá/ seu nome era Pablo e ele dizia/

que um negócio ele ia começar.

E Santo Cristo até a morte trabalhava

Mas o dinheiro não dava prá ele se alimentar

E ouvia às sete horas o noticiário

Que dizia sempre que seu ministro ia ajudar

Mas ele não queria mais conversa

E decidiu que como Pablo ele ia se virar

Elaborou mais uma vez seu plano santo

E sem ser crucificado a plantação foi começar

João buscou em Brasília a forma de crescer na vida, porem se

deparou que na capital ainda sofria com a marginalização. Nesta

estrofe mostra a dificuldade de João em conseguir se manter na

capital, a capital de maior custo de vida do país. O noticiário mostra

a política e os fatos porem os pobres continuam mais pobres e o

ricos mais ricos. Renato Russo insere uma crítica ao setor social e

econômico do Brasil a fim de demonstrar a dificuldade de uma

grande maioria de brasileiros manterem uma qualidade de vida

digna.

Dessa forma, João parte para a ilegalidade. Na frase: e

decidiu que como Pablo ele iria se virar. E partiu para o tráfico a fim

de conseguir um dinheiro rápido para suprir suas necessidades.

Logo, logo os maluco da cidade

Souberam da novidade "- Tem bagulho bom ai!"

E João de Santo Cristo ficou rico

E acabou com todos os traficantes dali

Fez amigos, freqüentava a Asa Norte

Ia prá festa de Rock prá se libertar

Mas de repente

Sob um má influência dos boyzinhos da cidade

Começou a roubar

João passa a frequentar bairros mais abastados de Brasília,

mais especificamente no Plano Piloto, setores como a asa norte, a

asa sul, etc. Nas festas de rock achava a forma de vender a droga e

muitos boyzinhos compravam com ele. Na estrofe mostra a

influencia das pessoas do crime nas atitudes de João, como é visto

na frase: sob uma má influência dos boyzinhos da cidade/ começou

a roubar.

Já no primeiro roubo ele dançou

E pro inferno ele foi pela primeira vez

Violência e estupro do seu corpo

"- Vocês vão ver, eu vou pegar vocês!"

Agora Santo Cristo era bandido

Destemido e temido no Distrito Federal

Não tinha nenhum medo de polícia

Capitão ou traficante, Playboy ou general

Em tais estrofes mostra a realidade dos crimes em que João

entrou. Diz que: já no primeiro roubo ele dançou/e pro inferno ele foi

pela primeira vez mostra que a vida do crime não era fácil. Violência

e estrupo foram algumas das conseqüências, fazendo com que a

revolta de João aumentasse. Aos poucos ganhou fama no mundo

crime se tornando um criminoso temido no Distrito Federal. E assim,

foi garantindo seu lugar na sociedade, apesar de estar ainda à

margem desta.

O problema dos narcóticos no Brasil envolve desde camadas

mais altas até os mais pobres. Dessa forma, Renato Russo escreve

na música os mais variados tipos de pessoas que procuravam João

como: capitão ou traficante, playboy ou general. Mostra-se assim

que o problema está em todas as camadas, há inserido enquanto

vício ou negócio bastante lucrativo para alguns.

Foi quando conheceu uma menina

E de todos os seus pecados ele se arrependeu

Maria Lúcia era uma menina linda

E o coração dele prá ela o Santo Cristo prometeu

Ele dizia que queria se casar

E carpinteiro ele voltou a ser

"- Maria Lúcia eu prá sempre vou te amar

E um filho com você eu quero ter"

Nessa estrofe fica clara a idéia de redenção pelo amor.

Renato Russo, como sempre foi muito estudioso e leitor dos mais

variados autores da literatura mundial traz um aspecto medieval à

suas músicas: a salvação pelo amor. As canções da Idade Média,

cantadas pelos menestréis eram feitas a fim de valorizar a mulher e

buscavam no amor a salvação da vida, correndo contra as injustiças

normais da vida. O ser humano seria salvo apenas pelo sentimento

puro, representado pelo amor. E João não foge disso, conhece uma

menina e se apaixona. Com Maria Lúcia busca “entrar nos eixos” e

um filho seria a prova de sua redenção.

O tempo passa e um dia vem na porta um senhor de alta classe com dinheiro na

mão

E ele faz uma proposta indecorosa

E diz que espera uma resposta, uma resposta de João

"- Não boto bomba em banca de jornal

E nem em colégio de criança

Isso eu não faço não

E não protejo general de dez estrelas

Que fica atrás da mesa com o cú na mão

E é melhor o senhor sair da minha casa

Nunca brinque com um peixe de ascendente escorpião"

Mas antes de sair, com ódio no olhar

O velho disse: "- Você perdeu a sua vida, meu irmão!"

A estrofe acima se situa na época da Ditadura militar, já que

em Brasilia a força do movimento foi bem grande. João se recusa a

trabalhar a favor dos militares, mesmo sabendo que sofreria

conseqüências fortes. O caminho de João na capital já estava

marcado após a negação da ordem dada pelo general.

"- Você perdeu a sua vida, meu irmão"

"- Você perdeu a sua vida, meu irmão"

Essas palavras vão entrar no coração

"- Eu vou sofrer as conseqüências como um cão."

Não é que o Santo Cristo estava certo

Seu futuro era incerto

E ele não foi trabalhar

Se embebedou e no meio da bebedeira

Descobriu que tinha outro trabalhando em seu lugar

Falou com Pablo que queria um parceiro

Que também tinha dinheiro e queria se armar

Pablo trazia o contrabando da Bolívia

E Santo Cristo revendia em Planaltina

A partir desse momento da composição, João começa a sofrer

as conseqüências de ter se envolvido no mundo da ilegalidade do

tráfico. Recebe e faz ameaças, começa a lutar para sobreviver

dentro desse mundo específico dos crimes e do tráfico. Como diz a

frase: seu futuro era incerto. A partir do momento em que começa a

querer se firmar dentro do mundo da ilegalidade, seu futuro não tem

mais rota. Abandona aos poucos o trabalho e começa a beber, se

envolvendo ainda mais com o tráfico e com o mundo do crime.

Mas acontece que um tal de Jeremias

Traficante de renome apareceu por lá

Ficou sabendo dos planos de Santo Cristo

E decidiu que com João ele ia acabar.

Mas Pablo trouxe uma Winchester 22

E Santo Cristo já sabia atirar

E decidiu usar a arma só depois

Que Jeremias começasse a brigar

O encontro com Jeremias é o primeiro e principal problema

enfrentado por João, relatado na música. Jeremias é classificado

como: traficante de renome apareceu por lá/ ficou sabendo dos

planos de Santo Cristo. João já tinha a arma que Pablo havia lhe

dado e queria brigar para garantir seu espaço.

Jeremias maconheiro sem vergonha

Organizou a Roconha e fez todo mundo dançar

Desvirginava mocinhas inocentes

E dizia que era crente mas não sabia rezar

Nesta estrofe, continuam a personificação de Jeremias como

maconheiro, sem vergonha bem diferente de João. A Roconha era

um grupo de jovens que se metia no tráfico de drogas nos bairros

de Brasília. A historia de Jeremias, por ironia do destino, é muito

parecido com a de João. E o confronto entre os dois estava por vir.

Ambos precisavam desse confronto para se afirmar no grupo.

E Santo Cristo há muito não ia prá casa

E a saudade começou a apertar

"- Eu vou me embora, eu vou ver Maria Lúcia

Já está em tempo de a gente se casar"

Chegando em casa então ele chorou

E pro inferno ele foi pela segunda vez

Com Maria Lúcia Jeremias se casou

E um filho nela ele fez

Nesse ponto da composição se percebe a desilusão de João

ao ver que seu único amor, puro e salvador, já não era mais seu.

Ele via em Maria Lúcia sua redenção, tudo aquilo que ainda tinha

de bom para acreditar na vida e seguir o caminho da honestidade.

Porém, Jeremias estava com Maria Lúcia. Tal fato o marcou e o

deixou bastante revoltado. Além disso, Jeremias casou com ela e a

engravidou, deixando João sem chão.

Santo Cristo era só ódio pro dentro

E então o Jeremias prá um duelo ele chamou

"- Amanhã, as duas horas na Ceilândia

Em frente ao lote catorze é prá lá que eu vou

E você pode escolher as suas armas

Que eu acabo com você, seu porco traidor

E mato também Maria Lúcia

Aquela menina falsa prá que jurei o meu amor"

Na frase: Santo Cristo era só ódio por dentro/ E então

Jeremias pra um duelo ele chamou mostra bem a reação de João

em relação ao fato de Maria Lúcia o abandonar. Marcaram o

confronto em uma cidade satélite de Brasília, na Ceilândia e pra lá

partiram a fim de resolverem seus problemas um com o outro. Com

muita raiva, ele se sentia traído por Maria Lúcia: e mato também

Maria Lúcia / Aquela menina falsa pra que jurei o meu amor.

Percebe-se aqui que o céu de João era Maria Lúcia e o inferno era

viver no mundo das drogas, procurando formas de conseguir

dinheiro e viver.

E Santo Cristo não sabia o que fazer

Quando viu o repórter da televisão

Que a notícia do duelo na TV

Dizendo a hora o local e a razão

No sábado, então as duas horas

Todo o povo sem demora

Foi lá só prá assistir

Um homem que atirava pelas costas

E acertou o Santo Cristo

E começou a sorrir

Sentindo o sangue na garganta

João olhou as bandeirinhas

E o povo a aplaudir

E olhou pro sorveteiro

E prás câmeras e a gente da TV que filmava tudo ali

O confronto foi marcado e a TV aparece para ver aquilo.

Jeremias parte primeiro com sua ação, atirando em João ainda de

costas. João se sente traído duplamente: por Maria Lúcia e por

Jeremias estar atirando sem ele poder se defender (enquanto

estava de costas). O espetáculo da violência é visto pelas pessoas.

Os transeuntes nada sentem pelos dois que brigam, vêem aquilo

apenas como um espetáculo, ou como mais um crime na cidade.

Nas frases percebe-se a banalização da violência: e o povo a

aplaudir/ E pras câmeras e a gente da TV que filmava tudo ali.

Renato Russo, nessa música, faz uma importante crítica aos

meios de comunicação e principalmente à população que hoje não

vê mais o próximo como cidadão. Vivemos hoje fechados em

nossas casas, cuidando apenas de nossas vidas, sem nos

preocupar com a realidade lá fora, de pessoas iguais a nós. A TV

ajuda nessa banalização dos crimes ao mostrar sem criticar ou

propor mudanças, apenas como um frio espetáculo do cotidiano.

E se lembrou de quando era uma criança

E de tudo o que viveu até aqui

E decidiu entrar de vez naquela dança

"- Se a via-crucis virou circo, estou aqui."

Em tal estrofe João compara o espetáculo de violência ao

momento da crucificação de cristo. Faz-se assim alusão à aquele

que morreu em pró dos outros que ficavam no mundo, apesar da

maioria não ter lutado para defender Cristo. O próprio nome criado

por Renato Russo para o personagem, João de Santo Cristo, faz

alusão ao aspecto religioso. A música se assemelha a uma

reinterpretação da via crucis de Jesus Cristo na cidade grande, e

João seria Cristo.

E nisso o sol cegou seus olhos

E então Maria Lúcia ele reconheceu

Ela trazia a Winchester 22

A arma que seu primo Pablo lhe deu

"- Jeremias, eu sou homem.

Coisa que você não é

Eu não atiro pelas costas, não.

Olha prá cá filha da puta sem vergonha

Dá uma olhada no meu sangue

E vem sentir o teu perdão"

E Santo Cristo com a Winchester 22

Deu cinco tiros no bandido traidor

Maria Lúcia se arrependeu depois

E morreu junto com João, seu protetor

João ainda se levanta e dá tiros em Jeremias. Critica a

covardia daquele que lhe deu o tiro nas costas: Jeremias, eu sou

homem/ Coisa que você não é/ Eu não atiro pelas costas não. Maria

Lúcia tenta o salvar e sofre com os tiros também. A situação para

João fica ainda pior ao ver que sua amada também esta atingida.

Como num Romeu e Julieta urbano, a composição vai chegando ao

fim.

O povo declarava que João de Santo Cristo

Era santo porque sabia morrer

E a alta burguesia da cidade não acreditava na história

Que ele viram da TV

E João não conseguiu o que queria

Quando veio prá Brasília com o diabo ter

Ele queria era falar com o presidente

Prá ajudar toda essa gente que só faz

Sofrer

A crítica social da composição continua na ultima estrofe da

música quando a TV olha João e não entende seus motivos e sua

vinda para a capital. Critica também a alta burguesia que banaliza a

violência e apenas assiste a essa enquanto espetáculo: E a alta

burguesia da cidade não acreditava na historia/ que eles viram na

TV. João tinha a ingênua idéia de falar com o presidente a respeito

da vida sofrida dos brasileiros, seus amigos e familiares. Porém,

morreu e o que ganhou foi apenas uma noticia de óbito no jornal da

cidade.

O CD intitulado As Quatro Estações foi gravado e lançado em

1989. Apresentam música ainda com a crítica social forte,

marcante, criada por Renato Russo e o tema do amor e seus

confrontos entre sentimentos e razão.

9. HÁ TEMPOS

Nesta composição, Renato Russo trabalha com temas que

assolam a juventude: solidão, amizades, drogas. E começa

descrevendo as principais idéias nas primeiras estrofes.

Parece cocaína mas é só tristeza, talvez tua cidade. Muitos temores nascem do cansaço e da solidão E o descompasso e o desperdício herdeiros são Agora da virtude que perdemos.

Nesse trecho o autor analisa a situação urbana e seu

cotidiano. Os substantivos descompasso e desperdício mostram

bem a realidade urbana, com seus engarrafamentos, e pessoas

correndo. Faz alusão ao passado abadonado ao dizer: agora da

virtude que perdemos.

Há tempos tive um sonho Não me lembro não me lembro

Tua tristeza é tão exata E hoje o dia é tão bonito Já estamos acostumados A não temos mais nem isso.

Entrando num clima intimista, o narrador começa a falar sobre

os sentimentos que tomam conta do seu ser: tristeza, não-costume.

Para ele, os sentimentos são reais e concretos, apesar do dia

parecer bonito. E ainda afirma a dureza do mundo ao dizer que não

existe esses sentimentos no cotidiano atribulado das pessoas: a

não temos mais nem isso.

Os sonhos vêm e os sonhos vão O resto é imperfeito.

Disseste que se tua voz tivesse força igual À imensa dor que sentes Teu grito acordaria Não só a tua casa Mas a vizinhança inteira.

Tal sentimento de revolta e crítica com o cotidiano pode se

tornar um grito de rebeldia, ou de aviso à aqueles que se encontram

inertes, passivos. Na frase: Disseste que se tua voz tivesse força

igual / À imensa dor que sentes mostra a grandeza da revolta e dos

sentimentos do narrador, tão grande que ultrapassa os limites de

ser o corpo. Renato Russo sempre teve em sua voz o auto-falante

capaz de falar de sua revolta, de sua crítica, e ele sabia do poder da

voz e do poder de suas músicas. No trecho: teu grito acordaria/ não

só a tua casa/ mas a vizinhança inteira mostra bem a força da voz e

da revolta na busca de tirar uma maioria da passividade, buscando

levar as pessoas aos questionamentos sobre a vida e sobre o

cotidiano.

E há tempos nem os santos têm ao certo A medida da maldade Há tempos são os jovens que adoecem Há tempos o encanto está ausente E há ferrugem nos sorrisos E só o acaso estende os braços A quem procura abrigo e proteção.

Se encaminhando para as ultimas estrofes da composição

vemos a força de algumas metáforas como: Há tempos são os

jovens que adoecem / há tempos o encanto está ausente/ E há

ferrugem nos sorrisos. Tais metáforas mostram a decadência em

todas as esferas, desde da juventude ate os idosos, mostrando que

a decadência do mundo é transmitida para as pessoas. Destaca

também a falta de cordialidade e ajuda do ser humano, hoje

fechado apenas no seu mundo individual, pensando egoisticamente

em si só: A quem procura abrigo e proteção (apesar das pessoas

estenderem o braço).

Meu amor, disciplina é liberdade Compaixão é fortaleza Ter bondade é ter coragem E ela disse: - Lá em casa tem um poço mas a água é muito limpa.

Na ultima estrofe da musica, o compositor mostra o resumo

de suas idéias e sonhos, também usando metáforas fortes como:

Compaixão é fortaleza, ter bondade é ter coragem. E traz a imagem

do poço, que armazena água, simbolizando segredos e

esquecimento, pois a água do poço fica ali, para sempre,

esquecida. Segundo o Dicionário de Sonhos escrito por Pedro de

Lara, a imagem do poço quer dizer: perigo, necessidade, ameaça,

intrigas, decadência moral, poço simboliza perigo, jazigo de

impureza. A partir dessa imagem vemos que o poço simboliza algo

guardado, escondido, sujo. Porem, o narrador cria um paradoxo,

dizendo que a água do poço está limpa, mostrando que tal poço

guarda segredos, porém a limpidez da água representa beleza

guardada, aspectos bons, etc.

Mais uma vez Renato Russo cria novas intepretações para

velhas imagens, revisitando mitos a fim de mostrar que o mundo

não apenas o que vemos. Quer mostrar o mundo como algo

instável, sujeito as mais variadas forças e sentimentos, e o ser

humano teria assim um papel renovado, não o de apenas viver seu

cotidiano e sim de questionar e reconstruir imagens sobre o mundo

e sobre a vida.

10. PAIS E FILHOS

A música a seguir faz uma metáfora da relação dos pais com

os filhos e vice versa. Mostra o que cada um (pais e filhos) imagina

um do outro e as dificuldades de entendimento entre os dois, que

parte para algo universal como o entendimento do ser humano com

o outro.

Estátuas e cofres e paredes pintadas Ninguém sabe o que aconteceu Ela se jogou da janela do quinto andar Nada é fácil de entender.

Dorme agora: É só o vento lá fora.

Nessa estrofe se destaca a conseqüência de uma situação: o

suicídio de alguém. O suicídio é uma morte sozinha e bastante

questionável em suas razoes. Varias razoes tomam conta da mente

de um suicida, desde os problemas que enfrenta em vida até o

abandono da vida através do ato de se matar. O ser coloca fim na

própria vida. Tal fato traz grandes questionamentos existenciais e

filosóficos. No trecho: Não é fácil de entender/ dorme agora/ é só o

vento lá fora mostra a situação daqueles que ficam em vida

relembrando daquele que se foi buscando razoes racionais para se

entender a morte.

Quero colo Vou fugir de casa Posso dormir aqui com vocês? Estou com medo Tive um pesadelo Só vou voltar depois das três.

Nessa estrofe se encontra a oposição entre sonho e pesadelo.

Mostra o jovem querendo colo, ajuda dos pais. Mostra o jovem

como um ser frágil, em formação. O medo é prova dessa fragilidade

ao dizer: estou com medo / tive um pesadelo. A fuga se mostra

atraente no momento em que não se quer enfrentar com

maturidade os problemas: vou fugir de casa. Porém, a fuga não é a

resolução dos problemas.

Meu filho vai ter nome de santo Quero o nome mais bonito.

É preciso amar as pessoas Como se não houvesse amanhã Porque se você parar para pensar, Na verdade não há.

A religiosidade é bastante presente nas composições de

Renato Russo. Ao dizer que meu filho vai ter nome de santo é a

vontade instintiva do ser humano de se equiparar aos santos.

Porem, o ser humano, nas suas fragilidades e principalmente na

sua imperfeição, nunca será igual aos santos. Os santos foram

criados como um contraponto da humanidade, mostrando que o ser

humano, apesar de suas deficiências naturais de caráter, deve

buscar a perfeição dos santos. E todo pai vê no filho sua forma de

redenção e ligação espiritual com o mundo, o filho seria seu fruto no

mundo, gerado de forma carnal e espirtiual ao mesmo tempo.

O amor incondicional dos pais em relação aos filhos também

é dito nessa composição. Os pais amam incondicionalmente seus

filhos, como se não houvesse amanhã. Os filhos, muitas vezes, se

colocam contra seus pais. A composição recomenda que o amor

deve sempre existir apesar dos problemas passados ou dos

problemas que poderão surgir no futuro. A composição faz uma

Ode ao momento presente.

Me diz porque é que o céu é azul Me explica a grande fúria do mundo São meus filhos que tomam conta de mim Eu moro com a minha mãe Mas meu pai vem me visitar Eu moro na rua, não tenho ninguém Eu moro em qualquer lugar Já morei em tanta casa que nem me lembro mais, Eu moro com meus pais.

Num momento de questionamento sobre as coisas da vida, a

estrofe destaca as dúvidas do ser humano: me diz porque é que o

céu é azul/ me explica a grande fúria do mundo/ são meus filhos

que tomam conta de mim. Nesses trechos o jovem esta

amadurecendo idéias sobre o mundo e sobre sua família.

Depois há um relato da modernidade das relações familiares

hoje: eu moro com a minha mãe/ mas meu pai vem me visitar/ eu

moro na rua, não tenho ninguém/ eu moro em qualquer lugar/ já

morei em tanta casa que nem lembro mais/ eu moro com meus pais

sintetizam a modernidade, com pais separados, filhos

abandonados, filhos que moram com as avós e assim por diante.

Mostra a flexibilidade das relações familiares e ao mesmo tempo os

mesmos questionamentos que toma conta da relação de filho com

pai, questionamentos sobre a vida.

É preciso amar as pessoas Como se não houvesse amanhã Porque se você parar para pensar, Na verdade não há. Sou uma gota d’água Sou um grão de areia Você me diz que seus pais não entendem Mas você não entende seus pais

Você culpa seus pais por tudo E isso é absurdo: são crianças como você

O que você vai ser quando você crescer?

O fim da música é a parte mais bela da composição. As

seguintes metáforas: sou uma gota dagua/ sou um grão de areia/

mas você não entende seus pais/ são crianças como você mostram

exatamente o que representa a relação pai-filho na vida de qualquer

ser humano. A gota dagua seria a composição da imensidão, seria

um filho no meio de tantos filhos, tantos problemas, tantas famílias.

Mostra que os problemas e questionamentos humanos ocorrem a

séculos, de geração em geração. E que pais também passaram por

momentos de questionamentos quando jovens.

A reclamação dos filhos em relação aos pais mostra um

egoísmo de não tentar entender os pais, de buscar conversar com

os pais, pois esses também foram jovens um dia. A culpa reina

como soberana numa relação em que os filhos apenas querem

receber atenção. Porém, os pais também merecem o entendimento

dos seus filhos.

11. QUANDO O SOL BATER NA JANELA DO SEU QUARTO

Nessa música percebesse a presença da natureza

relacionando a vida do ser humano em consonância com os fatos

da vida. Mais uma vez, Renato Russo nos mostra visões bem

peculiares sobre a realidade das coisas.

Quando o sol bater Na janela do teu quarto Lembra e vê Que o caminho é um só.

Nesse trecho o sol marca o momento de recordação do

narrador. O sol bater/ na janela do teu quarto alude a um momento

de lembrança sobre algo que aconteceu, sobre os caminhos que a

vida nos proporciona.

Porque esperar se podemos começar tudo de novo Agora mesmo A humanidade é desumana Mas ainda temos chance O sol nasce pra todos Só não sabe quem não quer.

Nesta estrofe o narrador afirma que na vida tudo pode

começar de novo. Mesmo analisando a humanidade, com suas

deficiências e injustiças, a esperança ainda existe como se mostra

no trecho: Mas ainda temos chance / o sol nasce para todos / só

não sabe quem não quer. Usando de frases otimistas, a

composição vai montando uma revelação otimista sobre a vida e

sobre como levar a vida e o cotidiano.

Até bem pouco tempo atrás Poderíamos mudar o mundo Quem roubou nossa coragem? Tudo é dor E toda dor vem do desejo De não sentimos dor.

Já nesta estrofe o eu lírico faz uma pequena crítica ao

momento histórico vivido por ele, ao dizer que? Até bem pouco

tempo atrás/ poderíamos mudar o mundo/ quem roubou nossa

coragem. Ao usar o substantivo coragem junto ao verbo roubar

mostra exatamente o que acontece no momento atual, com os

jovens inertes, sem saber o que acontece na política do seu país,

se colocando alheio a qualquer questionamento social ou político,

tornando-se apenas uma massa de consumidores, sem questionar

padrões ou comportamentos. Inconscientemente, se sente dor / e

toda dor vem do desejo / de não sentimos dor. Nesse trecho o eu

lírico quer mostrar que o ser humano não busca o sofrimento, mas

quando se depara com ele, a dor aumenta não pela intensidade

natural da dor e sim pela vontade do homem de não sofrer, pois não

somos acostumados a sentir dor ou enfrentar situações de risco em

nossas vidas. Renato Russo analisa que tais situações de risco

ocorrem todo dia, no trabalho, em casa, na escola, na família, e que

o ser humano tem que aprender junto com a dor, e vê-la como algo

inerente da nossa capacidade de enfrentar o mundo.

Quando o sol bater Na janela do teu quarto Lembra e vê Que o caminho é um só.

Ele termina a música retomando à primeira estrofe, mostrando

que o caminho é um só se for seguido respeitando as pessoas e

buscando sempre o bem estar humano. A música é uma grande

metáfora sobre os caminhos da humanidade e as atitudes do

homem diante dos problemas existentes e muitas vezes causados

por nós mesmos.

12. MONTE CASTELO

Monte Castelo é mais uma bela composição de Renato

Russo, cheia de intertextos retirados de poemas de Luis Vaz de

Camões, grande poeta português e escritor da grande obra Os

Lusíadas. Assim como Camões, Renato Russo sempre colocou o

amor e os sentimentos humanos em suas músicas a fim de criar

críticas, metáforas e significações para um sentimento tão bom e ao

mesmo tempo tão contraditório em sua natureza. Como a busca de

qualquer ser humano é a de entender o que nos leva a amar,

Renato Russo soube expressar essa dúvida humana de forma

muito precisa nessa composição. Vamos a análise:

Ainda que eu falasse a língua dos homens E falasse a língua dos anjos, Sem amor eu nada seria.

Nesta estrofe se destaca a frase: ainda que eu falasse a

língua dos homens dando ênfase ao poder da linguagem, essencial

para o homem viver e expressar suas concepções de mundo. A

língua é diversa no mundo, mas o sentimento amor é sempre o

mesmo, na sua mesma natureza bela e instigante. E ele completa

nesta estrofe a valoração do amor: sem amor eu nada seria.

Outra imagem importante a ser analisada nessa estrofe é a do

anjo. Ao dizer E falasse a língua dos anjos ele quer fazer um

paralelo ao mundo que não existe, ao mundo dos céus, aquele que

o homem em sua crença religiosa busca enquanto perfeição. O anjo

seria a materialização do poder dos céus, do infinito. Além disso, o

anjo ligaria o homem (na terra) a Deus (no céu). O proprio dicionário

Houaiss diz: o anjo seria o mensageiro celestial entre Deus e os

homens. Tal mensageiro, através da linguagem, mostra o que há de

mais divino do amor. Interessante também é analisar a idéia do

cupido que seria o anjo que representa o amor. Só que o cupido

seria o Deus do amor, apesar de não ser citado na música, também

alude à mitologia grega com seus significados abrangentes.

É só o amor, é só o amor Que conhece o que é verdade O amor é bom, não quer o mal Não sente inveja ou se envaidece.

O amor é venerado enquanto a única verdade que o homem

tem acesso em vida. E nesta estrofe começa a intertextualidade

com o poema de Camões. Ao dizer que o amor é bom, não quer o

mal/ não sente inveja ou se envaidece mostra que o sentimento

toma conta do ser humano no que há de mais puro, sem mentiras

ou máscaras.

Amor é fogo que arde sem se ver É ferida que dói e não se sente É um contentamento descontente É dor que desatina sem doer.

O poema de Luis de Camões leva o nome de Amor é um fogo

que arde sem se ver, frase usada na música analisada. E Renato

Russo usa toda uma estrofe do soneto, que trata exatamente da

contradição do amor: amor é fogo que arde sem se ver/ é ferida que

dói e não se sente/ é um contentamento descontente/ é dor que

desatina sem doer. Tal estrofe representa o primeiro quarteto do

soneto em questão de Luiz Vaz de Camões, poeta português que

viveu em Lisboa entre 1524 e 1580.

Mais uma vez se mostra a intertextualidade criada por Renato

ao escrever suas músicas, mostrando sua alta cultura e

principalmente sua busca em entender as coisas do mundo e do ser

humano.

É um não querer mais do que bem querer É solitário andar por entre a gente É um não contentar-se de contente É cuidar que se ganha em se perder.

É um estar-se preso por vontade É servir a que vence, o vencedor; É um ter com quem nos mata a lealdade. Tão contrário a si é o mesmo amor.

As duas estrofes acima foram retiradas do soneto de Camões.

Apenas a frase: Tão contrário a si é o mesmo amor foi criada por

Renato Russo. O amor continua sendo mostrado como um

sentimento de natureza contraditória, pois mostra que o homem,

apesar de sofrer, quer sentir o amor, e precisa do amor para

continuar vivendo. Mostra também o insaciável desejo de sempre

amar, ou sempre estar amando, sendo esse desejo o que o liga

com a perfeição dos céus, de Deus.

A lealdade com aquele que o mata também é uma bela

comparação ao ver que o ser amado mata de amor aquele que o

ama. Todo dia é uma pequena morte que acontece, e um novo

amor que se constrói, pois a vida não se repete. O aspecto único da

vida também é citado nessa música, ao mostrar que a vida deve ser

vivida, pois ela é apenas uma.

Estou acordado e todos dormem Todos dormem todos dormem Agora vejo em parte Mas então veremos face a face.

Neste trecho o narrador afirma que não vê a completude do

amor, vê apenas partes do grande sentimento. Mas, que em algum

momento, na morte ou em vida, se sentir o amor em sua plenitude,

verá de frente esse sentimento tão contraditório e tão belo.

É só o amor, é só o amor, Que conhece o que é verdade.

Ainda que eu falasse a língua dos homens E falasse a língua dos anjos, Sem amor eu nada seria.

E ao final ele retoma as primeiras estrofes, relembrando a

natureza do amor e o poder da linguagem em relação à análise da

existência do homem.

13. MENINOS E MENINAS

Meninos e meninas é uma música muito interessante para se

analisar a natureza do jovem. A música traz um pouco da discussão

sobre o que é ser diferente em nossa sociedade. Traz para a

discussão temas como: sexualidade, religião, idade, sentimentos,

gerações etc. Faz um apanhado metafórico sobre o que viver em

sociedade e sobre as imagens que os outros fazem de si e de

outras pessoas.

Quero me encontrar mas não sei onde estou Vem comigo procurar algum lugar mais calmo Longe dessa confusão E dessa gente que não se respeita Tenho quase certeza que eu Não sou daqui.

Já na primeira estrofe da música percebe-se o estranhamento

do narrador em ficar em certos lugares, na vontade de se encontrar,

apesar de não saber onde está. Tal estranhamento ainda não é

mostrado em todas as suas razões, apenas é colocado como um

sentimento que existe. Durante a música, as razoes que levam o

narrador a sentir tal estranhamento, são colocadas em discussão.

Na frase: tenho quase certeza que eu não sou daqui dá ênfase aos

questionamentos existenciais do narrador, de se deparar com um

mundo muito diferente do que ele espera, do que ele imagina,

buscando fugir dessa realidade ruim para algo diferente.

Acho que gosto de S. Paulo E gosto de S. João Gosto de S. Francisco E S. Sebastião E eu gosto de meninos e meninas.

Neste trecho percebe duas linhas de interpretação: a linha

religiosa e a linha tematizada pela descoberta da sexualidade. São

dois temas que tomam conta do mundo dos jovens. A relação com

a religião mostra o reconhecimento da natureza humana,

reconhecendo assim o contraponto da religião, que mostra o céu

enquanto redenção e os santos como representantes da perfeição

divina. Ao citar santos como: São Paulo, São João, São Francisco e

São Sebastião, o narrador quer especificar a característica de cada

um deles. De acordo com o livro Tarô dos Santos que faz uma

abordagem da característica mítica de cada santo, analisamos a

seguinte concepção: De todos os santos, São Francisco de Assis é

um dos mais amados. O seu exemplo de devoção altruísta ao

próximo tem sido inspiração para todas as gerações. Ele e São

Tomás são reconhecidos no panteão hindu como curandeiros e

mestres iluminados. É celebrados como aquele que cuida dos

animais e de toda a natureza.

Vemos assim, que o narrador quer destacar o altruísmo

exemplar do santo, mostrando uma característica que toda pessoa

deve ter na vida e na convivências com os seus semelhantes. Já

São Sebastião, de acordo com mitos portugueses, seria um rei

português que aclamado pelo seu povo que morreu na grande

batalha de Alcacer-Quibir. Sua morte ainda é uma incógnita na

historia portuguesa, pois muitos dizem que ele sumiu, já outros

dizem que ele morreu. Vive-se hoje do mito de São Sebastião,

como aquele que voltará para salvar Portugal. Já São João foi um

dos doze apóstolos de Cristo. Era o mais novo dos 12 apostolos,

Era solteiro e pescador. Ele era uma pessoa imaginativa e muito

respeitadora, ajudava o próximo e sempre estava ao lado de Jesus.

Dessa forma, faz alusão também a piedade e à honestidade de São

João.

São Paulo também era discípulo e apóstolo de Jesus, e foi

umas das figuras mais importantes para o desenvolvimento do

cristianismo. Era um homem culto e se destacava pela sua cultura e

erudição. Dessa forma, Renato Russo cita 4 grandes personagens

bíblicos a fim de traduzir os sentimentos e o poder da religião ainda

nos nossos dias.

Em relação ao tema da sexualidade, vemos na frase: e gosto

de meninos e meninas traz um tom de ambigüidade. A seguinte

frase mostra duas interpretações: o narrador gosta de ambos os

sexos porque todos são iguais e merecem o amor de Jesus ou a

compaixão de todos nós e a outra interpretação leva à questão da

descoberta da sexualidade, ocorrente na fase da juventude, onde

jovens beijam meninos e meninas, buscando entender a

sexualidade, descobrindo o desejo e a atração.

Vai ver que é assim mesmo e vai ser assim pra sempre Vai ficando complicado e ao mesmo tempo diferente Estou cansado de bater e ninguém abrir Você me deixou sentindo tanto frio Não sei mais o que dizer.

Nessa estrofe o narrador afirma a dificuldade de sobreviver

em sociedade, em que as pessoas não se ajudam e não se ouvem.

No trecho: Vai ver que é assim mesmo e vai ser assim pra sempre

mostra um pouco pessimismo diante do individualismo social. Na

frase: Estou cansando de bater e ninguém abrir também faz alusão

a falta de altruísmo das pessoas, bem diferente das características

dos santos citados por ele na música.

Te fiz comida Velei teu sono Fui teu amigo Te levei comigo e me diz: Pra mim o que é que ficou?

Nessa estrofe o narrador continua questionando a falta de

retribuição do ser humano. Muitas pessoas fazem de suas vidas o

cuidado com as outras, porém não recebem o mesmo em troca.

Me deixa ver como viver é bom Não é a vida como está e sim as coisas como são Você não quis tentar me ajudar Então a culpa é de quem? A culpa é de quem?

A mais bela estrofe na minha opinião é essa a ser analisada.

Ao dizer que: me deixa ver como viver é bom mostra a vontade do

eu lírico ver que o mundo ainda tem jeito, apesar das injustiças que

tomam conta de seu olhar. Na frase: Não é a vida como está e sim

as coisas como são o narrador quer mostrar que a vida muda

sempre, com seus fatos diferentes, porém, a in justiça prevalece,

mostrando que a natureza do mundo é ser injusto, apesar de existir

pessoas boas com a vontade de mudar. Os verbos estar e ser criam

uma relação precisa de mutabilidade e imutabilidade. A relação fica

entre justiça e injustiça, entre fatos e natureza do mundo.

A culpa surge. Freud já dizia que o ser humano é racional

devido a existência da culpa. O animal irracional, aquele que mata

para se alimentar, não se sente culpado ao matar outro ser para se

alimentar. Ele é movido pelo seu instinto primordial, o de se

alimentar, procriar e viver. Porém, o ser humano, exatamente por

ser racional e ter um intelecto moldado pelo meio social, muitas

vezes sente culpa. A culpa surge na educação familiar, no histórico

de vida do ser e até antes da pessoa nascer, ainda na barriga da

mãe. Mostra-se assim a influência de vários aspectos do ser

humano, e na construção desse ser dentro da sociedade.

O educador Sergio Luiz Giannico, em seu site sobre educação

fala um pouco sobre a culpa na educação do ser social:

Culpa é um sentimento que causa o ódio de si mesmo e com isso a autopunição e o desequilíbrio emocional. Isso acontece porque geralmente nasce de uma exigência, de algo que não queremos fazer e com isso nos leva a submissão. A culpa é o método mais eficaz de fazer com que uma pessoa se submeta aos caprichos ou desejos de outra pessoa. Esse

sentimento recebeu requintes medievais por muitas religiões, primeiro fantasiavam a culpa de forma a bater por dentro nas pessoas, depois garantiam que tinham o elixir do perdão ou da salvação, muitas vezes deixando o sentimento de fé em segundo plano.

A exigência de algo ou a cobrança que fazendo a nós

mesmos faz com que a culpa surja nas mais variadas relações

sociais. A anulação do próprio eu é comentada pelo educador:

Na medida que as pessoas culpáveis iam se frustrando em não conseguir ser o outro, iam conquistando mais submissão aumentando o sentimento de culpa e anulando seu próprio Eu. Conseqüentemente adquiriam uma personalidade robotizada ou de eterno revoltado

Mostra-se assim que a culpa é forma de controle social, de

manter as pessoas agindo sob as mesmas regras sociais. Porém,

se perde muito com a prática do sentimento de culpa. Renato

Russo questiona também essa perda, essa falta de sentimentos

puros no ser humano.

Eu canto em português errado Acho que o imperfeito não participa do passado Troco as pessoas Troco os pronomes.

Nessa estrofe o narrador faz referência à língua portuguesa e

seu poder social, ao dizer: eu canto em português errado ele quer

fazer alusão ao português falado, dito pelas pessoas, que foge das

regras gramaticais. Ele seria um ser que quer antes de tudo se

fazer entender, desvinculado às regras gramaticais que amarram o

uso da língua. E começa dizendo: acho que o imperfeito não

participa do passado faz alusão ao pretérito imperfeito que consta

em gramáticas do português. O narrador vê o passado como algo

que já passou, perfeito, redondo, que não voltará mais. Mostra-se

assim uma crítica às nomenclaturas gramaticais existentes.

Preciso de oxigênio Preciso ter amigos

Preciso ter dinheiro Preciso de carinho Acho que te amava Agora acho que te odeio São tudo pequenas coisas E tudo deve passar.

Destaca-se agora o uso do verbo precisar. O narrador quer

mostrar a necessidade do ser humano em sempre buscar formas de

se completar, de completar suas necessidades. Busca-se assim

necessidade em coisas materiais como dinheiro e em pessoas

como amigos e sentimentos como carinho. O oxigênio entra como o

combustível essencial da vida.

Na frase: Acho que te amava/ agora acho que te odeio mostra

a instabilidade do ser humano e a falta de certeza diante dos seus

sentimentos. O aspecto transitório da vida é visto na frase: e tudo

deve passar.

14. O TEATRO DOS VAMPIROS

A seguinte composição recebe um título que nos leva a uma

bela imagem: teatro dos vampiros. O teatro, a criação maior do

gênero da dramaturgia, recebe variadas discussões até hoje devido

seu caráter de transmitir as mais variadas idéias, usando atores,

dançarinos, se tornando palco das manifestações mais importantes

da cultura de qualquer povo. E os vampiros já um mito sagrado e

famoso da literatura mundial, carregando consigo mitos religiosos e

história. As estrofes da composição mostram sentimentos

contraditórios (bastantes presentes na imagem do vampiro) e nos

tablados de teatros.

Sempre precisei de um pouco de atenção Acho que não sei quem sou Só sei do que não gosto

E destes dias tão estranhos Fica a poeira se escondendo pelos cantos.

Ao dizer: sempre precisei de um pouco de atenção mostra o

jogo que o ator de teatro cria com seu público. A atenção do público

é essencial para que ele surja em cima do palco e passe sua

representação. E começa afirmando as certezas e seus desejos:

acho que não sei quem sou/ só sei do que não gosto. Os dias

estranhos colocam o ser a questionar seus sentimentos e sua visão

da sociedade. E o ato de conviver com a sociedade, com suas

mazelas e injustiças se resume na frase: fica a poeira se

escondendo pelos cantos.

Este é o nosso mundo: O que é demais nunca é o bastante E a primeira vez é sempre a última chance. Ninguém vê onde chegamos: Os assassinos estão livres, nós não estamos.

E nesta estrofe o mundo em que vivemos, em sua estrutura e

natureza, começa a ser questionado: este é o nosso mundo/ o que

é demais nunca é o bastante. O fato da vida ser apenas uma,

fazendo com que o ser humano tente apenas uma vez, sem poder

voltar atrás de suas decisões se resume a frase: e a primeira vez é

sempre a última chance. A injustiça se estabelece diante da

honestidade das pessoas: ninguém vê onde chegamos/ os

assassinos estão livres, nós não estamos. Quer dizer que a

liberdade de hoje esta contrária, sem a justiça eficiente vivemos

presos em nossas casas enquanto os ladrões estão soltos tentando

viver pelo crime.

Vamos sair - mas não temos mais dinheiro Os meus amigos todos estão procurando emprego Voltamos a viver como há dez anos atrás E a cada hora que passa Envelhecemos dez semanas.

Já nessa estrofe se destaca a realidade dos fatos, a juventude

que tem que se adequar ao mundo capitalista: vamos sair – mas

não temos mais dinheiro/ os meus amigos todos estão procurando

emprego/ voltamos a viver como há dez anos atrás. Tais frases

mostra o quanto a juventude tem data de validade para passar,

cedo os adolescentes já estão se preocupando com carreiras

profissionais, vestibulares, entrando na competição social que está

se tornando fator natural do mundo capitalista. A adequação se dá

através do dinheiro, da busca pelo emprego, na busca por melhores

condições financeiras já que o Estado abre mão de muitos direitos

que o cidadão merecia como moradia, justiça, saneamento básico.

Renato Russo faz uma crítica feroz à situação social do país. E o

envelhecimento precoce da juventude ele resumiu no trecho:

envelhecemos 10 semanas.

Vamos lá, tudo bem - eu só quero me divertir. Esquecer, dessa noite ter um lugar legal pra ir Já entregamos o alvo e a artilharia Comparamos nossas vidas E esperamos que um dia Nossas vidas possam se encontrar.

Nesta estrofe ele pede que o encontro entre as pessoas

aconteça, longe das mazelas sociais, longe dos problemas do

mundo. Na frase: vamos lá, tudo bem – eu só quero me divertir. Na

frase mostra a vontade de seguir, esquecer os problemas por

alguns minutos para sobreviver. O verbo esquecer é usado na

frase: esquecer, dessa noite ter um lugar legal pra ir. A imagem do

alvo e artilharia na frase: já entregamos o alvo e a artilharia faz

alusão à guerra que se trava todo dia, na rotina, no cotidiano. O

cotidiano ainda é a pior guerra do ser humano, porque a todo

momento os dias pedem novas atitudes, novas concepções, tudo

muda.E o trecho acaba em tom de esperança, em tom de encontro:

e esperamos que um dia/ nossas vidas possam se encontrar.

Quando me vi tendo de viver comigo apenas E com o mundo Você me veio como um sonho bom E me assustei

Nessa estrofe o narrador destaca a solidão e a melancolia

como características inerentes a ele. O sentimento de melancolia

sempre foi bastante discutido por filósofos e psicólogos. O filosofo

David Hume assumia a instabilidade do homem como a principal

razão que faz o homem se tornar um ser melancólico:

A condição debilitada, a fraqueza e a desordem das faculdades que devo utilizar em minhas investigações aumentam a minha apreensão. E a possibilidade de emendar e corrigir tais faculdades leva-me quase ao desespero, e quase a preferir perecer nas pedras em que me encontro no momento, do que aventurar-me na imensidão do alto mar. Esta súbita visão de perigo em enche de melancolia; e como ocorre com essa paixão, dentre todas as demais, perder-se em si mesma, eu não posso deixar de alimentar o meu desespero com todas essas reflexões desanimadoras que o presente assunto me oferece com tamanha abundância.

Dessa forma, se percebe que a melancolia aparece em

situações em que estamos alheios ao mundo exterior, quando nos

fechamos em nosso mundo interior. Soa como um egoísmo. Nesta

estrofe o narrador afirma: você me veio como um sonho bom/e me

assustei.

Não sou perfeito Eu não esqueço A riqueza que nós temos Ninguém consegue perceber E de pensar nisso tudo, eu, homem feito Tive medo e não consegui dormir.

Nesta estrofe ele continua questionando a instabilidade do ser

humanos, suas fraquezas ao dizer: não sou perfeito/ eu não

esqueço/ a riqueza que nós temos. O excesso do uso do verbo

esquecer mostra que o narrador não se cansa em lembrar, ter

recordações do que viveu, mostrando que o recordar esta também

inerente ao viver humano, pois a vida é transitória e relembrar é a

única forma que nos faz viver de novo algo que passou.

Vamos lá, tudo bem - eu só quero me divertir Esquecer, dessa noite ter um lugar legal p'rá ir Já entregamos o alvo e a artilharia Comparamos nossas vidas E mesmo assim, não tenho pena de ninguém.

A frase: e mesmo assim, não tenho pena de ninguém mostra

a piedade que o homem sente com o próximo. A piedade é um

sentimento ausente do mundo moderno. Atribulado em sua rotina, o

homem não sente pena do outro, não ajuda o outro. Renato Russo

discute o egoísmo e o processo de esquecimento do homem, em

relação aos outros semelhantes seus. É uma bela composição que

sucita grandes discussões.

15. VENTO NO LITORAL

Vento no Litoral é uma música bem sentimental, com

destaque ao eu lírico. Num tom de recordação e melancolia se

começa o relato sobre situações vividas.

De tarde quero descansar, chegar até a praia Ver se o vento ainda está forte E vai ser bom subir nas pedras. Sei que faço isso para esquecer Eu deixo a onda me acertar E o vento vai levando tudo embora

Neste trecho há uma consonância do ser com a natureza.

Mostra-se que a natureza, com suas pedras, vento, praia, faz com

que o eu lírico se sinta em contato com a natureza, se sinta mais

leve. Na frase: sei que faço isso para esquecer/ eu deixo a onda me

acertar mostra um lado de fuga da realidade, de se refugiar na

natureza para encontrar as respostas sobre alguns

questionamentos existenciais.

Agora está tão longe Vê, a linha do horizonte me distrai: Dos nossos planos é que tenho mais saudade, Quando olhávamos juntos na mesma direção.

Na frase: vê, a linha do horizonte me distrai traz a imagem do

horizonte, como se fosse a linha que corta dois mundos ou algo

inalcançável. Nesse momento o eu lírico ainda esta sendo levado

pelos seus devaneios e pensamentos. E traz consigo o momento da

recordação: dos nossos planos é que tenho mais saudade/ quando

olhávamos juntos na mesma direção.

Aonde está você agora Além de aqui dentro de mim?

Agimos certo sem querer Foi só o tempo que errou Vai ser difícil sem você Porque você está comigo o tempo todo.

Num processo de saudade e de lembrança a escritura da

composição trespassa por um processo de lembrança do que se

passou, do que ele viveu com alguém. Esse alguém não é

distinguido em nenhum dado técnico como idade, sexo etc. Há

sempre um destaque ao processo de recordação e saudade

daquele que não esta mais ao lado ou presente. O eu lírico fazia

planos de estar sempre com essa pessoa, porem a realidade não é

a que ele quer como dito na frase: vai ser difícil sem você/ porque

você está comigo o tempo todo. O tempo verbal presente e pretérito

é muito usado na composição para destacar o momento em que o

eu lírico perdeu a pessoa amada e o estado de recordar essa

pessoa, tornando-a presente em seus pensamentos mas não na

vida real ou no cotidiano.

Quando vejo o mar Existe algo que diz: - A vida continua e se entregar é uma bobagem.

A imagem do mar traz à tona a idéia de imensidão, de eterno,

de algo que não tem começo nem fim. Lara diz em seu livro sobre a

interpretação de imagens oníricas:

ver o mar revolto: vida agitada, problemas íntimos, desespero de causa. Calmo: romance e amor tranqüilo. O mar simboliza a paz, tormento, sexo. (p.194)

Dessa forma, percebe-se que o eu lírico vê o mar e associa

com sua vida, com o estado de seu espírito. A linha do horizonte,

destacada no começo da música mostra a relação do mar com o

horizonte, fazendo uma ponte com a vida e o futuro. A linha seria

aquilo que está além, que busca algo futuro. E o mar representa o

que se vive hoje, no agora, momentâneo.

Já que você não está aqui, O que posso fazer é cuidar de mim. Quero ser feliz ao menos. Lembra que o plano era ficarmos bem?

- Ei, olha só o que achei: cavalos-marinhos.

Sei que faço isso para esquecer Eu deixo a onda me acertar E o vento vai levando tudo embora.

Ao final da música o narrador continua em seu estado de

devaneio e recordação, repleto de melancolia. Afirma que busca a

felicidade apesar de tudo: o que posso fazer é cuidar de mim/ quero

ser feliz ao menos/ lembrar que o plano era ficarmos bem. De forma

otimista e sozinha, o narrado toma as rédeas dos planos que fez.

Continua observando a natureza, se comparando ao estado das

coisas: ei, olha só o que achei: cavalos-marinhos. E confirma que

seu estado melancólico existe como tática de esquecimento sobre o

que perdeu: sei que faço isso pra esquecer/ deixo a onda me

acertar. E o ritmo natural do mar, com maré e ondas, leva de forma

também natural as lembranças que retomam sua mente.

Vemos assim mais uma bela composição de Renato Russo,

usando imagens poéticas com variados significados quando usadas

nos mais variados contextos. Cada imagem representa algo

diferente, em cada gênero. E Renato Russo sabia muito bem migrar

pelos mais diversos temas: desde temas amorosos até a crítica

social e política.

16. O MUNDO ANDA TAO COMPLICADO

Na música O mundo anda tão complicado ocorre uma análise

do cotidiano cheio de tarefas do ser humano. Como que buscando

alternativas para fugir do caos, a composição mostra pessoas que

buscam significados existenciais além do que é dado pela

vulgaridade das coisas materiais. Percebe-se também nesta música

uma ode à simplicidade e a busca de uma vida simples e honesta.

Gosto de ver você dormir Que nem criança com a boca aberta O telefone chega sexta-feira Aperta o passo por causa da garoa Me empresta um par de meias A gente chega na sessão das dez Hoje eu acordo ao meio-dia Amanhã é a sua vez

A imagem da criança usada na frase: gosto de ver você

dormir/ que nem criança com a boca aberta faz alusão ao momento

em que somos seres frágeis e despreocupados com as obrigações

da vida. Na infância podemos curtir brincadeiras e aproveitar

momentos lúdicos e simples. Logo depois nas frases: o telefone

chega sexta-feira/ aperta o passo por causa da garoa/ me empresta

um par de meias associa a vida de duas pessoas, que estão

começando uma vida juntas, dividindo o dia a dia, os horários e as

coisas materiais como meias, telefone etc.

Os horários são colocados como marcos: meio dia, acordar

mostrando o cotidiano do ser humano, com suas tarefas e sempre

com o relógio a marcar os passos de cada um.

Vem cá meu bem, que é bom lhe ver O mundo anda tão complicado Que hoje eu quero fazer tudo por você.

Neste trecho o narrador destaca a vontade de sentir a

simplicidade da vida, fugir do mundo complicado. Na frase: vem cá

meu bem, que é bom lhe ver/ o mundo anda tão complicado mostra

o embate entre o cotidiano e a existência, aquilo que o homem luta

para conseguir como emprego, dinheiro, sobrevivência e o que

homem tem enquanto natureza existencial, procurando equilíbrio e

paz.

Temos que consertar o despertador E separar todas as ferramentas A mudança grande chegou Com o fogão e a geladeira e a televisão Não precisamos dormir no chão Até que é bom, mas a cama chegou na terça E na quinta chegou o som.

Neste trecho o eu lírico continua falando da rotina do casal

como algo bucólico e agradável. O cotidiano dos dois se torna

interessante nas pequenas ações de receber os objetos da nova

casa.

Sempre faço mil coisas ao mesmo tempo E até que é fácil acostumar-se com meu jeito Agora que temos nossa casa É a chave o que sempre esqueço.

Nessa estrofe mostra bem o momento que ambos estão

vivendo: o momento de morarem e compartilharem uma casa

juntos. As mudanças na vida são marcadas pelos esquecimentos

mas o eu lírico vê a nova casa e a nova rotina como algo bom.

Vamos chamar nossos amigos A gente faz uma feijoada Esquece um pouco do trabalho E fica de bate-papo. Temos a semana inteira pela frente Você me conta como foi seu dia E a gente diz um p’ro outro: - Estou com sono, vamos dormir!

As mudanças normais que ocorrem na rotina de um casal são

novamente mostradas. Antes, o casal de namorados não recebia os

amigos ou apenas se encontravam esporadicamente. Agora podem

dormir juntos, bater papo pela semana inteira e receber amigos.

Vem cá meu bem, que é bom lhe ver O mundo anda tão complicado Que hoje eu quero fazer tudo por você.

Quero ouvir uma canção de amor Que fale da minha situação De quem deixou a segurança do seu mundo Por amor Por amor.

A canção termina sugerindo a felicidade do narrador em viver

aqueles novos momentos com seu parceiro. Na frase: O mundo

anda tão complicado / que hoje eu quero fazer tudo por você mostra

que o eu lírico quer se afastar do cotidiano do trabalho ou dos

problemas e viver o cotidiano pessoal, com a sua ou o seu parceiro.

E diz: quero ouvir uma canção de amor / que fale da minha situação

/ de quem deixou a segurança do seu mundo / por amor , neste

trecho ele reafirma a mudança que se deu em sua vida, ao sair da

casa dos pais representando a segurança para poder viver com

uma pessoa ao seu lado, dividindo um lar e os problemas normais

que ocorrem no dia a dia de qualquer casal.

17. GIZ

Nessa composição percebe a imagem forte do giz que será

usada em várias situações dentro do texto. Vamos a análise:

E mesmo sem te ver Acho até que estou indo bem Só apareço, por assim dizer, Quando convém Aparecer ou quando quero.

Neste trecho passa um tom de dúvida e inconstância através

das frases: só apareço, por assim dizer, quando convém/ aparecer

ou quando quero dando destaque a individualidade do eu lírico e ao

momento de inconstância que poderia estar vivendo.

Desenho toda a calçada Acaba o giz, tem tijolo de construção Eu rabisco o sol que a chuva apagou

O giz aparece neste trecho como aquele que marca, que

desenha, que simboliza algo. O desenho por toda a calçada mostra

o eu lírico marcando sua posição, mostrando ao mundo exterior o

que pensa. O tijolo de construção simboliza a idéia da construção

eterna do ser humano, da vida concreta. E o giz continua mostrando

os sonhos e as idéias do eu lírico, ao desenhar sol apesar da chuva

que cai, que aos poucos apaga o sol imaginado pelo narrador.

Contrapõe-se assim a idéia de sonho e realidade, o giz desenha o

que se quer, o que se imagina, enquanto a chuva e o tijolo de

construção representam o mundo concreto, que apaga o sonho,

que apaga a imaginação.