religião e magia no antigo egito - trecho
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O Antigo Egito será sempre um dos períodos mais fascinantes da história da Humanidade. Primeiro pela riqueza cultural, mas principalmente por todo mistério que o envolve. Em Religião e Magia no Antigo Egito, Rosalie David apresenta esse mundo intrigante e complexo, desde os oráculos e os videntes, os deuses e as deusas, até os cultos dos animais sagrados, os templos e os rituais da vida após a morte.TRANSCRIPT
R O S A L I E D A V I D
Religião e Magia noANTIGo eGITo
Tradução
Angela Machado
17ª prova
ABERTURA-d 13.07.11 13:30 Page 3
O MEIO AMBIENTE
O Egito é uma terra de contrastes marcantes, e o ambiente e as forças
naturais sempre exerceram um forte impacto sobre a vida e as crenças do
povo. Todos os dias, ele observava o ciclo imutável da passagem do sol:
a cada noite o sol morria, porém renascia no horizonte ao amanhecer e
prosseguia em seu curso celeste durante o dia, criando e sustentando a vida
na terra. Da mesma maneira, no ciclo anual das estações, observavam-se
a morte e a destruição regulares da vegetação em virtude do ressecamento
da terra, o que, por sua vez, era seguido pela inundação do rio Nilo, que
revivia e fazia renascer as plantas e as sementes. Essas duas grandes forças
de vida — o sol e o rio — seguiam os padrões de vida, morte e renasci-
mento que provavelmente inspiraram nos egípcios a crença muito clara de
que a existência humana de cada indivíduo refletia esses mesmos ciclos
naturais envolvendo a vida, a morte e a continuação da vida após a morte.
17ª prova
CAPÍTULO 1
A Criação da Civilização Egípcia
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Os antigos egípcios acreditavam que o Nilo — sua fonte de vida —
tinha origem no outro mundo. A inundação do rio era considerada tam-
bém um presente divino, pois o nível não podia ser controlado artificial-
mente, e cada subida era esperada com ansiedade: se o rio não subisse
(embora isso nunca tenha acontecido), eles temiam que houvesse fome e
morte generalizadas, e certamente aconteciam inundações excessivas que
varriam casas e plantações, assim como níveis baixos que resultavam em
seca, fome e desastres.
A bênção do Nilo era caprichosa e não controlável, situação somente
retificada nos tempos modernos por meio da construção de uma série de
barragens ao longo do rio, culminando com a Represa de Assuã. Isso per-
mite que um grande volume de água fique retido no lago Nasser, atrás da
represa, e que depois seja liberado, quando necessário, para a irrigação
da terra e para o suprimento da eletricidade das cidades e aldeias no Vale.
Na Antiguidade, é evidente que as crenças religiosas das pessoas eram
profundamente influenciadas não somente pela natureza mutável desse
ambiente mas também pela previsibilidade geral do clima. Existe também
a luz solar quase perpétua no sul, com praticamente nenhuma chuva
(sem contar com algumas tempestades inesperadas que podem causar
destruição), e temperaturas mais brandas no norte, acompanhadas de
algumas chuvas de inverno no Delta setentrional. Mesmo quando as altas
temperaturas do verão atingem o sul, o clima é suportável por causa da
secura da atmosfera. Entre março e maio, os ventos do sul ou do sudoeste
(o cansim) podem trazer tempestades de areia.
Evidentemente, esse clima geralmente agradável e que trazia poucas
surpresas, junto com a regularidade da inundação do Nilo e suas conse-
quências, influenciaram fortemente o tipo de religião que emergiu ali: um
padrão estruturado de ideias que foi projetado para perpetuar o princípio
de Ma’at, a deusa da ordem e do equilíbrio no universo, e desafiar e sub-
verter continuamente as forças do caos.
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Egito
Ábidos
Armant
Esna
el-Kab
Tebas
NagadaQuseir
MAR
VERMELHO
DE
SE
RT
O O
RIE
NT
AL
Rio N
i l o
DESERTO
OCIDENTAL
Primeira Catarata
Elefantina
ALTO EGITO
Assuã
Kom Ombo
Edfu
Denderah
Akhmim
MAR MEDITERRÂNEO
BAIXO
EGITO
DELTA
Tuna el-Gebel
el-Ashmunein
Meir
Assiut
Deir el-Gebrawi
Tell el-Amarna
Beni Hasan
Lahun
Meidum
O FaiumSaqqara
Abusir
Gizé
Tell el-Yahudiyah
Mênfis
Tell Basta
Tânis
Buto
Damieta
Alexandria
Roseta
GO
LFO
DE
SUEZ
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A primeira evidência da religião ocorreu entre as comunidades neo-
líticas (c. 5000 a c. 4000 a.C.), que se estabeleceram, desenvolveram
assentamentos e se sustentaram cultivando grãos e domesticando animais.
A área tinha sido habitada anteriormente, durante o período Paleolítico
(antes de c. 5000 a.C.), e evidências arqueológicas indicam que, na época,
o povo ocupou os contrafortes na periferia do Vale do Nilo, onde caçavam.
Entretanto, não podemos tirar conclusões sobre a sua organização ou
crenças religiosas e costumes nesse período.
Provavelmente, o fator único mais importante do desenvolvimento do
Egito foi o Nilo, o grande rio que nasce bem ao sul do país, três graus ao sul
do Equador, na região dos Grandes Lagos. Atualmente, em seu curso supe-
rior, é chamado de Nilo da Montanha; porém, quando se junta com o Bahr
el-Ghazel, ele é conhecido como Nilo Branco. O Nilo Azul, que nasce no
lago Tara, nas terras altas da Etiópia, une-se ao Nilo Branco em Cartum,
no Sudão. Entre Cartum, que é a capital moderna do Sudão, e Assuã, a
cidade mais meridional do Egito, o curso do rio é interrompido por seis
cataratas. Elas não são cachoeiras ou quedas-d’água, mas locais onde o rio
não cavou um canal definido na pedra, e aglomerados de rochas ficam espa-
lhados na largura do rio, diminuindo a correnteza, e na Quarta, Segunda e
Primeira Catarata, impedindo seriamente o fluxo do tráfego no rio.
Na época histórica, a fronteira meridional original do Egito foi fixada
na Primeira Catarata, que fica logo ao sul da cidade de Elefantina (onde se
encontra agora Assuã). Tempos mais tarde (no Médio e no Novo Impérios),
os egípcios a empurraram para o sul e subjugaram a população local para
assegurar o acesso ao granito e ao ouro da Núbia (uma área que atualmen-
te forma a parte setentrional do Sudão e o distrito meridional do Egito).
Ao norte de Assuã, o rio flui ininterrupto em seu curso (cerca de
1.130 km) para a costa do Mediterrâneo, embora atualmente seja inter-
ceptado por uma série de represas e eclusas. O território pelo qual ele
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Baixo Egito
Bahara el-Manzala
Bahara el-Borullus
Beni Suef
KahunLahun
Hawara
Meidum
Birket Qarun
Oásis do Faium el-Lisht
Mênfis
Dahshur
SaqqaraAbusir
Abu Ghurab
Zawiyet el-’Aryan
Gizé
Cairo
Heliópolis
Tell el-Yahudiyah
Tura
Tell el-Maskhuta
Tell el-Dab’a
Qantir
Tânis
Tell Basta
DELTA DO NILO
Saís
BusírisXois
Buto
Damieta
Roseta
MAR MEDITERRÂNEO
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passa consiste em duas regiões distintas — o Vale e o Delta. O Vale é a pas-
sagem através da qual o rio forçou o seu caminho da África Central para
o norte. No Egito, esse corredor tem cerca de 800 km de comprimento
e geralmente varia de 9 a 20 km de largura, embora, em algumas partes,
haja penhascos rochosos escarpados em ambos os lados que descem
abruptamente para a margem do rio.
Em outras partes, ele passa por uma planície de campos e pastos que
fornece uma rica faixa de terra cultivada que pode ser lavrada até uma dis-
tância máxima de aproximadamente 20 km. Essa planície finalmente atinge
o deserto em ambos os lados, onde existe uma linha fina e clara de demar-
cação: ali é possível ficar com um pé no deserto e outro na terra cultivada.
No vértice do Delta, onde os conquistadores árabes fundaram poste-
riormente a cidade do Cairo, no século VII a.C., os antigos egípcios esta-
beleceram a sua primeira capital na cidade de Mênfis (“Paredes Brancas”)
em c. 3100 a.C. A necessidade de controlar o Vale do Nilo, no sul, e o
Delta, no norte, foi, sem dúvida, o fator principal por trás da escolha dessa
localização para as duas capitais.
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Pintura em tumba mostra o cultivo das sementes: arar, cavar, semear e cobrir com a terra.Um homem sedento bebe da pele de um animal suspensa em uma árvore.
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No norte, o Delta (um triângulo invertido de terra cultivada) apre-
senta uma perspectiva totalmente diferente. Ali, a zona rural se desdobra
em leque sobre uma área de aproximadamente 160 km de comprimento
e 320 km de largura em seu perímetro mais setentrional, no Mediter-
râneo. Essa área plana e baixa inclui terra, lagunas, canais e praias, mas,
como grande parte é composta de pântano inundado, somente algumas
áreas podem ser cultivadas. Ali, atualmente, crescem frutas e plantações
de algodão, em particular. Nesse ponto, o Nilo se abre em dois braços
principais e em vários outros menores e finalmente encontra o
Mediterrâneo em Roseta, no Delta ocidental, e em Damieta, no leste.
O Vale e o Delta são, portanto, distintos, mas interdependentes, e um
não pode sobreviver sem o outro. O Nilo é a grande força unificadora, e,
na verdade, sem a existência desse rio, o Egito seria simplesmente um
deserto. As fronteiras políticas do Egito moderno formam uma grande área
retangular, porém, sem contar com a parte do Delta e da terra cultivada em
ambos os lados do Nilo, o restante é deserto. A chuva no Egito sempre foi
insignificante: as chuvas de inverno do Mediterrâneo atingem a parte norte
do Delta, mas, no sul do país, a chuva é uma ocorrência excepcional.
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Na Antiguidade, a agricultura dependia da inundação anual do Nilo;
essa enchente tornava o Egito habitável e possibilitava que as plantações
crescessem e os animais fossem criados ao longo das margens e em partes
do Delta. Nessas regiões, foram estabelecidos os primeiros centros de
habitação. Na verdade, a situação do Egito foi mais bem descrita nas palavras
do antigo escritor Hecateu, que sustentou que o país era literalmente
“uma dádiva do Nilo”. Como um rio, o Nilo sempre intrigou historiadores
e geógrafos. Sendo o rio mais longo na África, ele corre de sul para norte,
e a localização da sua nascente e a causa das suas inundações intrigaram
vários escritores e exploradores antigos. Quando gregos e romanos come-
çaram a visitar o Egito como turistas e exploradores, eles especularam
sobre a nascente do rio e a causa da inundação.
O mais famoso entre esses escritores, Heródoto, expressou a sua
ignorância dos fatos: “Não consegui informação alguma dos sacerdotes
nem de outras pessoas sobre a razão pela qual o Nilo se comporta preci-
samente dessa maneira. O que desejei particularmente saber era por que
as águas começam a subir no solstício do verão, continuam por cerca de
cem dias e depois retroagem no final desse período, permanecendo
baixas durante o inverno até o retorno do solstício do verão no ano
seguinte.” Mas ele foi informado pelos sacerdotes egípcios (e suas pró-
prias observações o levaram a concordar com essa conclusão) sobre a
maior parte do país ter sido construída com o lodo do rio.
Atualmente, sabe-se que a inundação tem sido causada pelas chuvas
que caem nas terras altas da Etiópia e que alimentam o Nilo, ocasionando
a elevação e o aumento de volume. Até este século, a subsequente
inundação das margens do rio depositava um lodo escuro e rico sobre o
solo ressecado, o que criava condições excelentes de fertilidade para a
semeadura dos grãos. Esse milagre anual se inicia com as chuvas pesadas
de junho a setembro na Etiópia; até a última parte do século XX, quando
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Pintura em tumba mostra um homem e sua família em uma caçada a aves selvagens nospântanos. Áreas do Egito alimentadas pelos canais possuíam densa vegetação, onde as pes-soas ricas podiam caçar e pescar.
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a inundação avançava para o norte, ela atingia a Primeira Catarata na
quarta semana de junho. A altura total da água era visível no ápice do
Delta no final de setembro e, duas semanas depois, a inundação começava
a recuar. Por volta do final de outubro, o rio tinha retornado aos limites
das suas próprias margens e, no abril seguinte, atingiria o seu nível
mais baixo. A zona rural novamente se tornava ressequida até a repetição
do ciclo.
Na Antiguidade, acreditava-se que a enchente do Nilo era controlada
por duas “cavernas” ou “fontes”, e dois nilômetros (dispositivos para
medir e registrar os níveis da inundação) eram posicionados nas duas nas-
centes, em Assuã e ao sul do Cairo. Outros nilômetros eram posicionados
ao longo do Nilo. Em alguns desses locais, era realizado um ritual anual
para assegurar uma inundação satisfatória, quando alimentos, joias e ani-
mais para o sacrifício eram lançados ao rio. Além disso, para assegurar a
fertilidade do país, “bonecas” eram atiradas ao Nilo.
Embora o Nilo fosse o meio que trazia vida para o Egito, os egípcios
não parecem ter deificado o rio em qualquer momento da sua história.
O deus Hapi era uma personificação da inundação e não do Nilo. As figuras
obesas da fecundidade, que sobreviveram sob a forma de estátuas e como
deidades esculpidas em mesas de oferendas e em relevos murais nos templos
durante o período do Antigo Império até o período Romano, representam
os portadores de oferendas que trazem os produtos da terra.1 Em contraste,
a outra grande força de vida — o sol — tornou-se uma das maiores
deidades do Egito. Entretanto, os egípcios estavam profundamente cientes
de que uma colheita bem-sucedida dependia inteiramente da beneficência
divina, e Hapi e Osíris (o deus da vegetação e do renascimento) eram ado-
rados e solicitados para se obter uma inundação favorável.
O Nilo e a inundação exerceram um efeito profundo sobre a história,
a organização política e a religião do Egito. Bem no início da sua história, as
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Médio Egito
Bahr
Yus
efR
io N
i lo
el-Ashmunein
Tuna el-Gebel
Meir
Assiut
Deir el-Gebrawi
Tell el-Amarna
Deir el-Bersha
Speos Artemidos
Beni Hasan
Médio Egito
Oxirrinco
Heracleópolis Beni Suef
Sedment
KahunLahun
Hawara
Birket Qarun
O Faium
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comunidades espalhadas compreenderam que deveriam agir juntas e
tomar medidas que controlassem e regulassem a enchente. Para conseguir
benefícios para todos os assentamentos no Delta e no Vale do Nilo, era
essencial que se ajudassem entre si para organizar um sistema de irrigação
eficiente. Embora a geografia do Egito ditasse que as comunidades ficassem
espalhadas ao longo da extensão do rio, o objetivo comum da irrigação
forneceu uma força unificadora e certamente contribuiu para a criação final
de um estado político em c. 3100 a.C. A data exata em que a irrigação se
tornou uma característica central da agricultura do Nilo não é certa,
porém o rei Escorpião, que precedeu Menés, o unificador do Egito, é
mostrado em cenas esculpidas em uma cabeça de maça de Hiera-
cômpolis, realizando e talvez iniciando o processo de irrigação.
Os egípcios gradualmente desenvolveram um sistema complexo e
eficaz de irrigação que buscava utilizar a água e seus depósitos decorrentes
do lodo negro para cultivar a terra tanto quanto possível em ambos os
lados do rio. Conhecido como sistema “de bacia”, foi utilizado continua-
mente até cerca da metade do século XIX d.C. Diques de terra eram
construídos para dividir a terra em compartimentos ou “bacias” de tama-
nhos diferentes.
Quando o rio subia, uma série de canais direcionava a água para essas
bacias, de modo que a terra ficava inundada. Então, a água era retida ali
para que o lodo que carregava consigo ficasse depositado na terra.
Quando o rio recuava novamente, qualquer água remanescente era drenada,
e os fazendeiros podiam, então, arar a terra e plantar seus grãos. Era
necessária uma organização complexa de mão de obra e dos recursos para
construir e manter esse sistema, e os reis devotaram um esforço conside-
rável para assegurar que as represas e os diques fossem construídos, que
os canais fossem cavados e que o sistema fosse devidamente mantido.
Períodos de colapso político e econômico foram sempre acompanhados
da negligência do sistema de irrigação.
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