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Renato Roque Pinto da Siva, LPC, FLUP 1. Introdução O nosso relatório de leitura incidirá sobre o poema “Coração” de Carlos de Oliveira, incluído no seu segundo livro de poemas, Mãe Pobre, de 1945 1 . 1.1. Carlos de Oliveira e o neo-realismo A poesia de Carlos de Oliveira, e em particular a sua poesia da década de 40, tem de ser entendida no contexto do Estado Novo e do movimento neo-realista, de que o poeta foi um dos membros mais destacados. Procuraremos assim, nesta curta introdução ao nosso relatório, fazer apenas uma brevíssima contextualização, que nos ajude a fazer a interpretação do poema. A poesia neo-realista nasce durante a guerra civil espanhola e na eminência da segunda guerra mundial e assume-se claramente como uma poesia de resistência e de luta anti-fascista. O neo-realismo resulta de uma vontade colectiva de um conjunto de autores, que partilhavam uma concepção marxista do mundo, de juntar a sua voz à voz de um povo sofrido e injustiçado, num tempo de perseguição e de repressão policial ferozes, em que essa tomada de posição era muito difícil e obrigava a muitos sacrifícios. Mas o neo-realismo, apesar de ter por detrás uma forte base ideológica, nunca conseguiu uma unidade efectiva no plano estético, unidade que deveria assentar num conjunto de regras muito rígidas, segundo alguns dos seus membros mais ortodoxos. Sempre se evidenciou uma dificuldade em transformar a unidade ideológica, que existia entre os neo-realistas, numa poética una neo-realista. Essa dificuldade latente materializava-se na 1 Este livro foi posteriormente reeditado, incluído nas antologias poéticas Poesias de 1961e Trabalho Poético de 1976, e, de facto, a versão que analisaremos é a que foi publicada em 1976. 1

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Renato Roque Pinto da Siva, LPC, FLUP

1. Introdução

O nosso relatório de leitura incidirá sobre o poema “Coração” de Carlos de Oliveira, incluído no

seu segundo livro de poemas, Mãe Pobre, de 19451.

1.1. Carlos de Oliveira e o neo-realismo

A poesia de Carlos de Oliveira, e em particular a sua poesia da década de 40, tem de ser

entendida no contexto do Estado Novo e do movimento neo-realista, de que o poeta foi um dos

membros mais destacados. Procuraremos assim, nesta curta introdução ao nosso relatório, fazer

apenas uma brevíssima contextualização, que nos ajude a fazer a interpretação do poema.

A poesia neo-realista nasce durante a guerra civil espanhola e na eminência da segunda guerra

mundial e assume-se claramente como uma poesia de resistência e de luta anti-fascista. O neo-

realismo resulta de uma vontade colectiva de um conjunto de autores, que partilhavam uma

concepção marxista do mundo, de juntar a sua voz à voz de um povo sofrido e injustiçado, num

tempo de perseguição e de repressão policial ferozes, em que essa tomada de posição era muito

difícil e obrigava a muitos sacrifícios.

Mas o neo-realismo, apesar de ter por detrás uma forte base ideológica, nunca conseguiu uma

unidade efectiva no plano estético, unidade que deveria assentar num conjunto de regras muito

rígidas, segundo alguns dos seus membros mais ortodoxos. Sempre se evidenciou uma

dificuldade em transformar a unidade ideológica, que existia entre os neo-realistas, numa poética

una neo-realista. Essa dificuldade latente materializava-se na presença permanente, ao longo do

tempo, de um espectro, a que Rosa Maria Martelo chama “o livro-a-haver” (MARTELO 1996: 153).

Perante cada novo livro publicado, havia o reconhecimento de alguma crítica, vinda precisamente

do núcleo duro dos próprios neo-realistas, de que aquele livro ainda não era o que se esperava da

poesia neo-realista; ou porque aqui e ali o individualismo do poeta o traía, ou porque a linguagem

ainda não era suficientemente acessível ao povo, ou porque apresentava um perigoso excesso de

virtuosismo. E o neo-realismo continuava órfão desse “livro-a-haver”.

Na verdade, como reconhecem muitos estudiosos do neo-realismo2, o movimento foi mesmo

caracterizado, desde o início, por uma forte luta interna, reflectindo visões muito diferentes

acerca da arte e da literatura. E entre os autores, que contestaram a visão simples e mecanicista do

neo-realismo e que defenderam o papel da arte como forma suprema de conhecimento e de

criação, estava certamente Carlos de Oliveira.

1 Este livro foi posteriormente reeditado, incluído nas antologias poéticas Poesias de 1961e Trabalho Poético de 1976, e, de facto, a versão que analisaremos é a que foi publicada em 1976.2 “…a polémica já está instalada no âmago da elaboração estética marxista “ (PITA, 2002, pp 225,241), escreve o autor do ensaio, acerca da luta interna no seio dos neo-realistas desde a década de 40.

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Carlos de Oliveira, desde muito cedo, na busca literária permanente que marca toda a sua vida

por uma poética nova neo-realista, rompe com o espartilho que lhe pretendiam impor. Por isso

foi, e ainda na década de 40, objecto de alguma contestação, quando publicou o poema “Noite

Inquieta”, incluído no seu livro Colheita Perdida de 1948, que Rosa Maria Martelo considera

como “provavelmente a mais perfeita concretização do lirismo coral neo-realista”(MARTELO

1996: 306). O poeta foi já aí acusado de “pender para uma entrega aos valores da escuridão” ao

abandonar o tom eufórico que se “exigia” aos neo-realistas. Veremos que talvez já se possam

vislumbrar no poema a analisar esses “valores da escuridão”.

A verdade é que a escrita e a poética do autor vão evoluir rapidamente ao longo do tempo, quer

nas temáticas quer na forma de escrever, com “ padrões de inovação que lhe valeram

frequentemente o epíteto de ‘formalista’, ou ‘estilista’”(MARTELO 1996: 23), gerando novas

desconfianças e novos desconfortos, ainda que o autor se se tenha mantido sempre fiel no plano

ideológico, aos valores marxistas, sempre do lado dos injustiçados e explorados.

Mas o texto que vamos analisar é de um livro de 1945, e portanto anterior a grande parte desta

história, que nos ocuparia mais do que o espaço de que dispomos para escrever este pequeno

relatório, e que aqui apenas referimos porque nos serve para contextualizar a obra e o poema.

2. A leitura do poema “Coração” de Carlos de Oliveira

Antes de analisarmos o poema, será interessante olharmos rapidamente para o livro de que o

poema faz parte.

2.1 O livro Mãe Pobre

Comecemos pelo título do livro a que o poema pertence, Mãe Pobre, porque parece ser difícil

encontrar título mais neo-realista. Socorramo-nos do que escreveu Rosa Mara Martelo sobre a

origem desse título.

O título definitivo tem origem em "Mãe Pobre", poema publicado por Carlos de Oliveira um pouco antes, em Outubro de 1945, no n° 949 da Seara Nova, onde acompanhava a notação musical de Fernando Lopes Graça e era apresentado como parte integrante do livro Marchas, Danças e Canções. Nesta obra, publicada no ano seguinte e rapidamente apreendida pela PIDE, a música de Lopes Graça combinava-se com os versos de vários poetas (Cochofel, Namorado, Mário Dionísio, entre outros), e "Mãe Pobre" reaparecia com a indicação da supressão de uma estrofe, cortada pela censura aquando da primeira publicação, na Seara Nova. No entanto, a Seara Nova iludira a censura e mantivera a segunda quadra, discretamente reproduzida no entrelinhado da partitura musical, onde podiam ler-se, além da primeira estrofe, os versos censurados da estrofe. (MARTELO 1996: 280)

A história é muito interessante, sobretudo porque nos dá, em algumas, poucas pinceladas, o

ambiente que rodeava o autor quando o livro foi publicado. Para Rosa Maria Martelo o livro Mãe

Pobre integra-se num conjunto de três obras, as três primeiras publicadas pelo autor, a que ela

chama o primeiro andamento da poética do autor.

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Os três livros de poemas publicadas por Carlos de Oliveira entre 1942 e 1948 são aproximavam sob diversos aspectos, ao mesmo tempo que deixam compreender, sobretudo por quanto também os distingue entre si, os sentidos em que há-de evoluir a obra poética do escritor. Dos três, Mãe Pobre é, certamente, aquele em que é mais perceptível o esforço de corresponder a (e contribuir para) uma poética caracterizável como neo-realista. (MARTELO 1996: 265)

Carlos Nogueira, concorda com Rosa Maria Martelo e classifica Mãe Pobre como o livro onde

melhor se pode identificar um “popularismo neo-realista articulado com uma dimensão épica e

trágica” (NOGUEIRA 2011:40). Esta dimensão trágica da poesia de Carlos de Oliveira também é

realçada por Rosa Maria Martelo, citando Eduardo Lourenço; o poema Odes do mesmo livro,

Mãe Pobre, serve – lhes precisamente como evidência.

Tornando-se cada vez mais perceptível uma outra dimensão do rigor nesta obra: a sua profunda tragicidade. Não apenas pela dimensão do trágico neo-realista identificado por Eduardo Lourenço como uma espécie de voluntária auto-mutilação do «mais visceral de si em nome de uma ‘luz’ que a voz inconfundível [do poeta] nomeia com perfeita intuição uma blasfémia» num poema de Mãe Pobre, mas principalmente, pela tensão entre esta opção inicial e tudo quanto vem depois e culmina na indeterminação do último poema de Pastoral”. (MARTELO 2002: 15,24)

Mas se Mãe Pobre pode ser considerado o livro onde é mais evidente “o popularismo neo-

realista”, muitos são os estudiosos da obra de Carlos de Oliveira que lhe reconhecem já o carácter

profundamente inovador que marcaria toda a obra do autor: “uma assinalável revolução estética

ao nível das relações entre o culto e o popular”( NOGUEIRA, 2011,46).

Estaremos portanto, em Mãe Pobre, perante uma obra onde serão perceptíveis algumas das

características de uma poética chamada neo-realista, ainda que, como vimos, essa visão algo

compartimentada e estereotipada tenha sido contestada no seio do próprio movimento neo-

realista, e em particular pelo próprio Carlos de Oliveira.

2.2 O poema “Coração”

Comecemos por uma análise do poema “Coração” no seu conjunto. O poema abre o livro Mãe

Pobre e é constituído por quatro textos: a) no primeiro, constituído por dois conjuntos de seis

versos e um de cinco, o poeta coloca a sua “Tosca e rude poesia”, ao serviço da luta (do canto),

“a cantar o génio do povo”, ou seja, assume o compromisso de colocar a sua voz ao lado da voz

do povo; pode considerar-se este primeiro texto como um metatexto que enuncia e anuncia os

vectores fundamentais de Mãe Pobre: uma poesia “tosca” e “rude” ao serviço do povo; constrói-

se desde este primeiro texto uma ligação afectiva e ideológica entre o “eu” do poeta e o colectivo

“nós”, “somos os humilhados/ cristos desta paixão” através de uma dramatização e de um

expressionismo exacerbados, recorrendo à figura de Cristo b) no segundo texto, uma simples

quadra, o poeta chama o povo que chora, “Olhos do povo, que cismais chorando”, para o calor

que lhe secará o coração – e é este “coração” que dá o nome ao poema – “da chuva quem em nós

chora”, o que parece ser uma metáfora para um apelo à unidade na luta, capaz de transformar o

choro em esperança; c) o terceiro texto junta três estrofes de cinco versos e traz consigo uma 3

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referência explícita à Gândara, terra pobre onde Carlos de Oliveira viveu a sua infância e

juventude; parece ser ao mesmo tempo uma proclamação de esperança e de fé no sonho: “onde

houver um sonho/ para ser sonhado/ está meu coração, e a expressão de um certo desalento:

“Quem soprou na gândara / a última chama?”; d) o último texto é constituído por três grupos de

quatro versos, e parece começar por ser um apelo à não desistência na luta: “Canta na noite,

sentimento da terra/ ou morreste, flor estranha?”, mas, ao mesmo tempo, parece também assumir

uma certa desesperança: “… E sei lá bem / se inda persistes / minha incólume esperança”. Esta

desesperança acentua-se (?) nos últimos versos "… me pergunto/ se é morte ou a manhã que

espero”.

Podemos então constatar, após uma primeira leitura, que no poema o poeta se coloca do lado da

luta do povo, mas onde já parece assumir em alguns versos um tom, em que se pode ler um certo

desalento e tristeza, os tais “valores da escuridão”, que se acentuariam em livros posteriores.

Tentemos agora descobrir no poema algumas daquelas características que são apresentadas

muitas vezes como as que identificam a poesia neo-realista: a) o lirismo coral, b) a utilização de

um texto acessível, o empolamento imperativo e exclamativo do discurso, a opção pelo canto, a

nível formal c) o recurso a um léxico característico.

A) Havia nos poetas neo-realistas, como resultado da sua determinação em escrever poesia de

combate, como contraponto ao individualismo da poesia romântica, a procura de uma poesia em

nome do colectivo, transformando muitas vezes o “eu poético”, introspectivo, lírico, no “outro”

ou sobretudo no “nós”, introduzindo uma espécie de poesia coral.

A opção pelo lirismo coral, comum certamente à maior parte dos poetas neo-realistas, e sem excluir a ocorrência de momentos solistas […] Mãe Pobre, a obra de Carlos de Oliveira onde a opção coral é mais coerente e consistente, nem por isso esta deixa de surgir como o resultado da acção da vontade sobre o desejo, da razão sobre o instinto. É como se ela se instalasse através de uma operação de denegação, isto é, como negação de uma pressuposição solista. (MARTELO 1996: 157)

Se confrontarmos o nosso poema com esta ideia, verificamos facilmente que o “eu” do poeta

aparece logo no primeiro poema do grupo de quatro, associado ao acto de escrita, “meus versos

plebeus”, mas esses versos logo se transformam em instrumentos de luta colectiva, o que implica

o surgimento do “nós”: “somos os humilhados” e “quanto mais nos gelar a frialdade”. E o poema

termina com os versos “mais e mais, génio do povo, / tu cantarás em mim”, como se desta vez o

“nós” ou o “vós” (o povo) se dissolvesse na voz do poeta, promovendo um todo único.

Como é próprio da epopeia, mas também do lirismo coral, o sujeito de enunciação não coincide com o sujeito de acção, que é plural ou colectivo, embora possa integrar-se nesse colectivo. Esse é um dos motivos pelos quais existe, em Mãe Pobre, uma oscilação constante entre a primeira pessoa do singular e a primeira pessoa do plural. (MARTELO 1996, 286)

O segundo poema do grupo de quatro é todo cantado no plural: “olhos do povo …da chuva que

em nós chora”.

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No terceiro poema regressa o “eu” do poeta: “abro-te os lençóis/ e dou-te a minha cama” ou “Vai

meu coração”, mas logo o poeta afirma que esse coração está “onde houver um sonho/ para ser

sonhado”, ou seja, junto do povo, regressando assim ao “nós”, apesar de não ser enunciado.

Finalmente, no quarto poema do grupo o “nós” regressa “Há tanto que chove e nós sem lenha”, e

se persiste o “eu” poético em ”E eu sei lá bem…vão-me doendo os olhos de serem tristes” é para

anunciar que os olhos do poeta esperam a morte ou a manhã. A manhã tem aqui, obviamente, um

sentido metafórico, como despertar de um novo dia, onde tudo seja diferente. A manhã ou a

morte.

B) Como afirma Rosa Maria Martelo, há também várias consequências ao nível formal da escrita,

determinadas pela procura de uma poesia de combate, apelativa e exortativa.

São várias as consequências da integração da função apelativa na poética neo-realista. Em primeiro lugar, implicou a adequação do discurso a um público que se pretendia vasto e que se sabia pouco preparado para a leitura da poesia; em segundo lugar conduziu ao empolamento imperativo e exclamativo do discurso e, finalmente, à opção pelo canto, no sentido mais restrito do termo, isto é, por uma poesia que previa, frequentemente, a declamação ou a adaptação a uma partitura musical. (MARTELO 1996: 144)

Este conjunto de características também parece vir à superfície no poema “Coração”, que adopta

soluções poéticas relativamente simples, recorrendo à rima como suporte do ritmo do poema,

onde a forma das estrofes se repete, usando quadras ou conjuntos de cinco e seis versos. Também

se sente o tal “empolamento imperativo e exclamativo do discurso” em muitos versos, e não é

certamente por acaso que descobrimos no poema, duas vezes, tempos do verbo cantar: “tu

cantarás em mim” no primeiro poema e “Canta na noite, sentimento da terra” no quarto poema.

Aliás, como vimos, o próprio título do livro deriva de um poema que fora utilizado numa canção

de Lopes Graça, reforçando essa opção pelo canto neste livro, que Rosa Maria Martelo realça.

Este diálogo entre o livro e um poema que iniludivelmente se inseria num programa de combate através do canto, onde poesia e música eram utilizadas com o objectivo de unir e consciencializar as massas populares na luta contra a opressão exercida pelo regime de Salazar, apenas vem reforçar e confirmar a existência de um intuito de intervenção social imediatista que é muito evidente na segunda recolha de poemas de Carlos de Oliveira. (MARTELO 1996, 282)

C) Outra característica que parece distinguir a poesia neo-realista é a utilização de um conjunto

lexical, que deriva directamente de uma concepção marxista do devir.

"Esperança", "Manhã", "Futuro" ou "Amanhã" são algumas das lexicalizações poéticas da utopia decorrente da aceitação dos princípios do materialismo histórico. Este será, aliás, um dos aspectos mais problemáticos da poesia neo-realista, na medida em que traduz o modo como esta se apoia em quadros de referência externa, vendo drasticamente diminuída a função heurística inerente à poesia, ou abdicando dela e limitando-se à expressão de uma versão-de-mundo marxista, isto é, de um horizonte previamente descoberto. (MARTELO 1996: 141)

Encontramos: 1) “manhã”, precisamente no último verso do poema “a manhã que eu espero”,

como metáfora daquilo que o poeta espera como resultado da sua luta e dos seus versos; 2)

“esperança”, que aparece no quarto poema da série, no verso “minha incólume esperança”; 3)

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duas vezes a palavra “povo”, no primeiro poema, no verso “mais e mais, génio do povo”, e no

segundo poema, no verso “Olhos do povo que cismais chorando”.

3. A reescrita em Carlos de Oliveira

Não podemos terminar este curto relatório sem afirmar que o que escrevemos antes, acerca do

poema “Coração”, acerca do livro Mãe Pobre de que o poema faz parte, e acerca da poesia de

Carlos de Oliveira na década de 40, tem de ser visto com algum cuidado, e isto porque o poema e

todo o livro publicados na antologia Trabalho Poético foram sujeitos a um processo de reescrita

profunda, que caracteriza toda a obra do escritor.

Ficamos por exemplo a saber por Rosa de Maria Martelo que na antologia Poesias de 1961, o

autor exclui o primeiro texto do poema intitulado “Coração”, e que o substitui por um poema que

fora antes autónomo "Tosca e rude poesia”, que agora é o primeiro texto do poema que nós

analisámos. Percebemos assim que o poeta fez alterações de fundo, nalguns casos escreveu de

facto novos poemas. Poderíamos perguntarmo-nos por que motivo é excluído precisamente o

poema que dera origem ao título genérico “Coração”. Rosa Maria Martelo dá-nos uma

interpretação:

[o poema] … associava o populismo do tema com a retórica do expressionismo exclamativo e sangrento frequente na poesia neo-realista de Quarenta; e é, certamente, por isso que é excluído. Pode entrever-se o mesmo critério na reelaboração da terceira estrofe do poema "3”, também de "Coração". (MARTELO 1996: 359)

Versão 1945: Versão 1961: Caminheiro cansado Caminheiro cansado sem nenhum bordão, sem nenhum bordão, num tronco nodoso onde houver um sonho - sangrento e cravado - para ser sonhado está meu coração ! está meu coração !

Seria, por isso, com certeza muito interessante tentar fazer aqui a análise da evolução do poema

ao longo do tempo, e comparar as suas três versões3: a versão inicial no livro publicado em 45 e

as duas versões nas antologias de 61 e de 76, mas o espaço de que dispomos impede-nos de

sequer tentarmos fazê-lo.

4. Conclusões

O poema “Coração” de Carlos de Oliveira, mesmo na única versão que conhecemos

integralmente, reescrita e publicada na antologia de 1976, reúne um conjunto de características

que o podem tornar um exemplo da poesia neo-realista da década de 40: ao nível temático, formal

e do léxico utilizado.

3 Não possuímos as versões de 1945 e de 1961 do poema, excepto as partes reproduzidas por Rosa Maria Martelo no seu texto A Construção do Mundo na Poesia de Carlos de Oliveira.

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BIBLIOGRAFIA:

MARTELO, Rosa Maria, A Construção do Mundo na Poesia de Carlos de Oliveira, FLUP, 1996

MARTELO, Rosa Maria. A Perfeição da Escrita, CM-VFX, 2002

MARTELO, Rosa Maria. Casa Destruídas, FLUP, 2000

MARTELO, Rosa Maria. Em parte incerta, Campo das Letras, 2004

NOGUEIRA Carlos, Popularismo em Mãe Pobre de Carlos de Oliveira, BLO, 1 (2011), PP. 40-46 ISSN: 2173-0695

OLIVEIRA, Carlos, Aprendiz de Feiticeiro, CL, 2001

OLIVEIRA, Carlos, Trabalho Poético, CL, 2001

PITA, António Pedro, Conflito e Unidade no Neo-Realismo Português, Campo das Letras, 2002

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