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Relato de Caso 1. Professor Adjunto da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e Preceptor Chefe da Residência de Gastroenterologia do Hospital Universitário (HU) - UFJF. 2. Médico(a) Residente em Gastroenterologia do HU- UFJF. 3. Médica especializanda em Gastroenterologia do HU - UFJF. 4. Médico Residente em Hepatologia do HU – UFJF. Endereço para correspondência: Rua Paulo de Souza Freire, 131/apto.401- Juiz de Fora - MG - CEP 36025-350/e-mail: [email protected]. Recebido em: 01/10/2015. Aprovado em: 12/11/2015. Síndrome LPAC: relato de caso FÁBIO HELENO DE LIMA PACE, 1 VOLNER SIQUEIRA DA SILVA, 2 AUREO AUGUSTO DE ALMEIDA DELGADO, 2 DANIELA GOMES DE SOUZA NASCIMENTO, 2 LUIZA HELENA DE SOUZA SEGREGIO, 2 THAIS MANSUR GHETTI COSTA, 2 CRISTIANA SILVA DE MELLO LANZIOTII DOS REIS, 3 MAYRA FIGUEIREDO DA SILVA, 3 TULIO VIEIRA MENDES 4 LPAC syndrome: case report Resumo Síndrome LPAC (Low Phospholipid-Associated Choleli- thiasis) é uma enfermidade rara, que cursa com mani- festações clínicas recorrentes relacionadas à litíase bi- liar, mesmo após colecistectomia em indivíduos jovens habitualmente com início dos sintomas antes dos 40 anos. Mutações no gene ABCB4 geram baixa concen- tração de fosfolipídios na secreção biliar, o que favorece a formação de cálculos de colesterol. Seu diagnóstico é estabelecido por critérios clínicos e o tratamento é fun- damentado no uso do ácido ursodesoxicólico (UDCA). O objetivo deste artigo é relatar o caso de um paciente com síndrome LPAC. Unitermos: Síndrome LPAC, Litíase Biliar, Gene ABCB4, Ácido Ursodesoxicólico Summary Achalasia is an uncommon disorder that affects about LPAC syndrome (Low phospholipid-associated cholelithiasis) is a rare illness that leads to recurrent clinical manifestations related to gallstones, even after cholecystectomy in young individuals, usually with on- set of symptoms before age 40. Mutations in the gene ABCB4 generate low concentration of phospholipids in bile secretion, which promotes the formation of cholesterol calculations. The diagnosis is established by clinical criteria and treatment is based on the use of ursodeoxycholic acid (UDCA). The objective of this paper is to report the case of a patient with LPAC syn- drome. Keywords: LPAC Syndrome, Gallstones, ABCB4 Gene, Ursodeoxycholic Acid. Introdução A síndrome LPAC (Low Phospholipid-Associated Chole- lithiasis) é caracterizada pelo aparecimento de manifes- tações clínicas recorrentes relacionadas à litíase biliar em pacientes já submetidos à colecistectomia, e geralmente acomete indivíduos jovens com início dos sintomas antes dos 40 anos de idade. Tem como base alterações (muta- ções) no gene ABCB4 (antes denominado MDR3). 1 GED gastroenterol. endosc. dig. 2015: 34(4):173-176 173 34(4):173-176

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Relato de Caso

1. Professor Adjunto da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e Preceptor Chefe da Residência de Gastroenterologia do Hospital Universitário (HU) - UFJF. 2. Médico(a) Residente em Gastroenterologia do HU- UFJF. 3. Médica especializanda em Gastroenterologia do HU - UFJF. 4. Médico Residente em Hepatologia do HU – UFJF. Endereço para correspondência: Rua Paulo de Souza Freire, 131/apto.401- Juiz de Fora - MG - CEP 36025-350/e-mail: [email protected]. Recebido em: 01/10/2015. Aprovado em: 12/11/2015.

Síndrome LPAC: relato de caso

Fábio heleno de liMa PaCe,1 Volner Siqueira da SilVa,2 aureo auGuSto de alMeida delGado,2 daniela GoMeS de Souza naSCiMento,2 luiza helena de Souza SeGreGio,2 thaiS ManSur Ghetti CoSta,2 CriStiana SilVa de Mello lanziotii doS reiS,3 Mayra FiGueiredo da SilVa,3 tulio Vieira MendeS4

LPAC syndrome: case report

Resumo

Síndrome LPAC (Low Phospholipid-Associated Choleli-thiasis) é uma enfermidade rara, que cursa com mani-festações clínicas recorrentes relacionadas à litíase bi-liar, mesmo após colecistectomia em indivíduos jovens habitualmente com início dos sintomas antes dos 40 anos. Mutações no gene ABCB4 geram baixa concen-tração de fosfolipídios na secreção biliar, o que favorece a formação de cálculos de colesterol. Seu diagnóstico é estabelecido por critérios clínicos e o tratamento é fun-damentado no uso do ácido ursodesoxicólico (UDCA). O objetivo deste artigo é relatar o caso de um paciente com síndrome LPAC.

Unitermos: Síndrome LPAC, Litíase Biliar, Gene ABCB4, Ácido Ursodesoxicólico

Summary

Achalasia is an uncommon disorder that affects about LPAC syndrome (Low phospholipid-associated cholelithiasis) is a rare illness that leads to recurrent clinical manifestations related to gallstones, even after

cholecystectomy in young individuals, usually with on-

set of symptoms before age 40. Mutations in the gene

ABCB4 generate low concentration of phospholipids

in bile secretion, which promotes the formation of

cholesterol calculations. The diagnosis is established

by clinical criteria and treatment is based on the use

of ursodeoxycholic acid (UDCA). The objective of this

paper is to report the case of a patient with LPAC syn-

drome.

Keywords: LPAC Syndrome, Gallstones, ABCB4

Gene, Ursodeoxycholic Acid.

Introdução

A síndrome LPAC (Low Phospholipid-Associated Chole-lithiasis) é caracterizada pelo aparecimento de manifes-tações clínicas recorrentes relacionadas à litíase biliar em pacientes já submetidos à colecistectomia, e geralmente acomete indivíduos jovens com início dos sintomas antes dos 40 anos de idade. Tem como base alterações (muta-ções) no gene ABCB4 (antes denominado MDR3).1

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Foi descrito pela primeira vez por Rosmoduc et al. em 2001 e, desde então, diversos casos têm sido descritos, nenhum deles no Brasil. Embora de prevalência ainda incerta, estima--se que 5% de todos os pacientes com colelitíase sintomática tenham síndrome LPAC.2

Tem, como mecanismo fi siopatogênico, a baixa produção de fosfolípides na secreção biliar, responsáveis pela solubiliza-ção dos cristais de colesterol na bile e, portanto, sua defi ci-ência favorece a formação de cálculos de colesterol. Além disso, os fosfolípides efetuam papel protetor do epitélio biliar contra a ação detergente dos sais biliares e sua falta ocasio-nará dano ao epitélio biliar e colestase.1-3

O diagnóstico da síndrome é presuntivo e deve ser sempre lembrado naqueles pacientes com persistência de manifesta-ções clínicas associadas à litíase biliar (cólica biliar, icterícia, colangite, pancreatite biliar) pós-colecistectomia, sobretudo em indivíduos com idade inferior a 40 anos.

São critérios diagnósticos adicionais o achado de litíase ou lama biliar na árvore biliar intra-hepática, antecedentes de colestase intra-hepática da gravidez e história familiar delitíase biliar em parentes de primeiro grau.1,2,4,5 Além da idade inferior a 40 anos, a ocorrência de litíase biliar intra-hepática são as principais características da síndrome e estão presen-tes em 80-85% dos casos.2

O diagnóstico diferencial deve ser feito principalmente com doença de Caroli e colangite esclerosante primária.1,2 O trata-mento clínico da LPAC se baseia no uso a longo prazo do áci-do ursodesoxicólico (UDCA), estando associado à preven-ção das complicações biliares e ao controle dos sintomas.1-4

Relato de caso

N.O.A, 47 anos, natural e procedente de Juiz de Fora. Foiadmitida no Serviço de Gastroenterologia do Hospital Uni-versitário da Universidade Federal de Juiz de Fora, em no-vembro de 2014, com queixa de dor abdominal em epigás-trio e hipocôndrio direito, contínua, tipo aperto, irradiada para escápula direita há cerca de 5 dias. Negava febre ou icterícia.

Ao exame físico encontrava-se em bom estado geral, hipo-corado +/4, hidratada, anicterica, afebril, normocárdica, nor-motensa, eupneica e com abdome globoso, fl ácido, com mo-derada dor à palpação de hipocôndrio direito, sem sinais de irritação peritoneal e sem massas. Os exames laboratoriais à admissão evidenciaram: Hb 9,0g/dl, VCM 75fl , HCM 23pg,

leucócitos 4970uL, bastões 2%, FA 517U/L, GGT 472U/L, AST:105U/L, ALT:64U/L, BbT 0,5mg/dl, lipase 52U/L, ami-lase 13U/L. A pesquisa do anti-HCV, HBsAg, anti-HBs, FAN, AML, e AMA foi negativa.

Realizado ultrassonografi a de abdome que mostrou múlti-plos cálculos em topografi a de via biliar intra-hepática (fi g.1).

A colangioressonância magnética demonstrou dilatação de vias biliares intra e extra-hepáticas com presença de cálcu-los em via biliar intra-hepática e porção distal do colédoco, além de sinais compatíveis com processo infl amatório/infec-cioso em via biliar (colangite).

Como antecedentes relevantes, havia apresentado episódio de pancreatite aguda biliar com 33 anos de idade (2000), quando foi submetida à colecistectomia após resolução do quadro de pancreatite. Cerca de 8 anos após a colecistecto-mia (2008) apresentou novo episódio de pancreatite aguda biliar com evolução clínica satisfatória. Durante suas duas gestações apresentou prurido que desapareceu após o par-to, o que sugere colestase intra-hepática da gravidez. Como história familiar, o seu irmão foi colecistectomizado aos 30 anos de idade após episódio de colecistite aguda litiásica. Iniciada antibioticoterapia com ciprofl oxacino e metronida-

Figura 1 - Ultrassonografi a de abdome.

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F. h. L. PaCe, V. S. SiLVa, a. a. a. deLgado, d. g. S. naSCiMento, L. h. S. Segregio, t. M. g. CoSta, C. S. M. L. reiS, M. F. SiLVa, t. V. MendeS

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zol, e indicada a realização de colangiopancreatografia retró-grada endoscópica (CPRE), durante a qual foi realizada es-fincterectomia com retirada de cálculos do colédoco e com saída de pequena quantidade de secreção biliar purulenta. Baseado nos critérios clínicos, o diagnóstico de síndrome LPAC foi estabelecido e recomendado o uso do ácido urso-desoxicólico 10 mg/kg.

Discussão

A síndrome LPAC foi inicialmente descrita na França, em 2001, por Rosmorduc, Hermelin e Poupon. É causada por mutações no gene ABCB4, fundamental no transporte de fosfatidilcolina na bile. Até o momento, a síndrome LPAC é considerada rara, com prevalência estimada de 5% de to-dos os casos de colelitíase sintomática.2 No entanto, em estudo recente, realizado na França, no qual foram avaliadas 60 mulheres com idade inferior a 30 anos e com colelitíase sintomática, foi demonstrado que 23% das pacientes apre-sentavam síndrome LPAC.6

Embora com pequeno número de pacientes, tais achados colocam em questionamento a real prevalência desta sín-drome. O fato de ser pouco conhecida pode em parte jus-tificar a sua baixa prevalência. Estudos adicionais com um maior número de pacientes e em diferentes populações são necessários.

O diagnóstico da LPAC se fundamenta na presença dos seguintes critérios clínicos (quadro 1): colelitíase sintomá-tica antes dos 40 anos de idade, recorrência de sintomas biliares após colecistectomia, evidência de litíase ou lama bi-liar intra-hepática, antecedentes de colestase intra-hepática da gravidez e história familiar de litíase biliar em parentes de primeiro grau.1,2,4,5

Uma revisão recente sugere que o diagnóstico deve ser suspeitado quando, pelo menos, dois destes critérios estão presentes.2 Outras características que corroboram o diag-nóstico é a elevação dos níveis de GGT e uma boa resposta ao uso do UDCA.4

Em pacientes com quadro clínico compatível e achados de imagem característicos, o diagnóstico pode ser estabelecido com segurança e a terapia com UDCA pode ser iniciada sem exames adicionais.2

Com relação ao diagnóstico da referida paciente, este foi estabelecido baseado na presença de todos os cinco crité-rios da síndrome, o que provavelmente prescinde a identifi-cação das alterações genéticas.

A pesquisa de mutações no gene ABCB4 deve ser utilizada para confirmação do diagnóstico em casos menos típicos. O diagnóstico genético do caso index permitiria o rastrea-mento familiar, o que por sua vez implicaria na instituição precoce do tratamento e possivelmente na prevenção das complicações.1-3 Entretanto, cabe ressaltar que, com as técnicas atuais, a identificação de mutações no gene ABCB4, ocorre em 60% a 65% dos pacientes.1,3

Tal fato se deve, provavelmente, por defeitos em regiões do gene ainda não identificados ou devido à participação de outros genes como o transportador de ácido biliar ou de colesterol.1

Recentemente, foi descrito um caso de síndrome LPAC ocasionada pela deleção na região exon 4 do gene ABCB4, associada à hepatite C.5 Tais dados reforçam a necessida-de de mais estudos que busquem determinar o espectro de alterações genéticas na síndrome LPAC.

O tratamento clínico da LPAC se fundamenta no uso prolon-gado do UDCA.1-4 A dose média utilizada é de 600mg/d (7-10 mg/kg), o que habitualmente é suficiente para proporcio-nar o desaparecimento rápido e sustentado dos sintomas.2 A dissolução dos cálculos biliares intra-hepáticos e a rever-são da dilatação da árvore biliar intra-hepática foram obser-vados após três anos de uso do UDCA.4

A redução da saturação dos cristais de colesterol na bile, o aumento da secreção de fosfolipídios e diminuição da sua degradação, a redução de citocinas pro-inflamatórias e de ácidos biliares hidrofóbicos (tóxicos) e o aumento dos hidro-fílicos (protetores) representam os possíveis mecanismos de ação do ácido ursodesoxicólico na síndrome LPAC.1,2,4

Quadro 1 - Crítérios clínicos para o diagnóstico presuntivo.*

Critérios diagnósticos

Colelitíase sintomática antes dos 40 anos de idade

Recorrência de sintoma biliar mesmo após colecistectomia

Achado de litíase ou lama biliar intra-hepático

História prévia de colestase intra-hepática da gravidez

História familiar de litíase biliar em parentes de primeiro grau

* A presença de 2 dos critérios faz o diagnóstico presuntivo.2

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Este parece ser o primeiro caso relatado de síndrome LPAC no Brasil. Uma vez que o diagnóstico é baseado em critérios clínicos de fácil obtenção, o conhecimento da existência da síndrome e o alto grau de suspeição diante de casos suspei-tos são fundamentais para a identificação de novos casos.

Referências

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5. Fombuena B, Ampuero J, Álvarez L, Aparcero R, Llor-

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