relaÇÕes sociais em trÊs narrativas de guimarÃes rosa

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Scripta Uniandrade, v. 17, n. 2 (2019) Revista da Pós-Graduação em Letras – UNIANDRADE Curitiba, Paraná, Brasil ALVES, Ricardo Luiz Pedrosa. Relações sociais em três narrativas de Guimarães Rosa. Scripta Uniandrade, v. 17, n. 2 (2019), p. 229-250. Curitiba, Paraná, Brasil Data de edição: 03 set. 2019. 229 RELAÇÕES SOCIAIS EM TRÊS NARRATIVAS DE GUIMARÃES ROSA Dr. RICARDO LUIZ PEDROSA ALVES Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO) Guarapuava, Paraná, Brasil ([email protected]) RESUMO: O artigo analisa as relações sociais em três narrativas de Guimarães Rosa: o romance Grande sertão: veredas e os contos “Meu tio o Iauaretê” e “Famigerado”. A leitura das relações sociais sob contexto rural ocorre pela investigação das mediações da voz narrativa, a partir das interlocuções sociais propostas nas três ficções. A centralidade do narrador e a dialética com o interlocutor são elementos deste estudo, apontando a contradição social nas falsas interlocuções representadas ficcionalmente. O artigo também discute as concepções a respeito das relações sociais em Guimarães Rosa nas análises de Willi Bolle, Roberto Schwarz, Walnice Galvão, Antonio Candido, Ángel Rama, Luís Augusto Fischer, Ana Paula Pacheco e Luís Bueno. Palavras-chave: Guimarães Rosa. Relações sociais. Mediação narrativa. Rural. Artigo recebido em: 27 maio 2019 Aceito em: 29 jun. 2019.

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Scripta Uniandrade, v. 17, n. 2 (2019) Revista da Pós-Graduação em Letras – UNIANDRADE

Curitiba, Paraná, Brasil

ALVES, Ricardo Luiz Pedrosa. Relações sociais em três narrativas de Guimarães Rosa. Scripta Uniandrade, v. 17, n. 2 (2019), p. 229-250.

Curitiba, Paraná, Brasil Data de edição: 03 set. 2019.

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RELAÇÕES SOCIAIS EM TRÊS NARRATIVAS DE GUIMARÃES ROSA

Dr. RICARDO LUIZ PEDROSA ALVES

Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO)

Guarapuava, Paraná, Brasil

([email protected])

RESUMO: O artigo analisa as relações sociais em três narrativas de Guimarães Rosa:

o romance Grande sertão: veredas e os contos “Meu tio o Iauaretê” e “Famigerado”. A

leitura das relações sociais sob contexto rural ocorre pela investigação das mediações

da voz narrativa, a partir das interlocuções sociais propostas nas três ficções. A

centralidade do narrador e a dialética com o interlocutor são elementos deste estudo,

apontando a contradição social nas falsas interlocuções representadas ficcionalmente.

O artigo também discute as concepções a respeito das relações sociais em Guimarães

Rosa nas análises de Willi Bolle, Roberto Schwarz, Walnice Galvão, Antonio Candido,

Ángel Rama, Luís Augusto Fischer, Ana Paula Pacheco e Luís Bueno.

Palavras-chave: Guimarães Rosa. Relações sociais. Mediação narrativa. Rural.

Artigo recebido em: 27 maio 2019 Aceito em: 29 jun. 2019.

Scripta Uniandrade, v. 17, n. 2 (2019) Revista da Pós-Graduação em Letras – UNIANDRADE

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SOCIAL RELATIONS IN THREE NARRATIVES BY GUIMARÃES ROSA

ABSTRACT: The article analyzes the social relations in three narratives by Guimarães

Rosa: the novel Grande sertão: veredas and the short stories “Meu tio o Iauaretê” and

“Famigerado”. The reading of social relations in rural contexts occurs through the

investigation of the mediations assumed by the narrative voices, analysed from the

social interlocutions proposed in the three fictional narratives. The centrality of the

narrator and the dialectic with the interlocutor are elements discussed in this study,

pointing to social contradiction in the false utterances fictionally represented. The

present article also discusses the social relations in Guimarães Rosa considering the

works by Willi Bolle, Roberto Schwarz, Walnice Galvão, Antonio Candido, Ángel Rama,

Luís Augusto Fischer, Ana Paula Pacheco and Luís Bueno.

Keywords: Guimarães Rosa. Social relations. Narrative mediation. Rural.

Este artigo almeja discutir as relações sociais em três narrativas de

Guimarães Rosa: o romance Grande sertão: veredas, de 1956, e os contos

“Meu tio o Iauaretê”, de Estas estórias, de 1969, e “Famigerado”, de Primeiras

estórias, de 1962. Nos limites disponíveis, descartaremos de imediato as

óbvias diferenças de gênero textual e extensão das narrativas. Importa-nos é

que as três peças impõem a mediação narrativa como refração da

representação. Essa mediação é semelhante, em termos operacionais, mas não

ideológicos, em Grande sertão: veredas e em “Meu tio o Iauaretê”, onde é mais

desapercebida, pois o interlocutor é apenas referido, mas diferente em

“Famigerado”, cuja mediação retoma ironicamente as opacidades de uma

literatura regionalista anterior. Quando Antonio Candido escreve que a leitura

do romance de Rosa deve ser feita fora dos “hábitos realistas, dominantes em

nossa ficção” (CANDIDO, 1964, p. 123), operando a partir do “universo

autônomo” criado pelo romancista, abre-se o caminho para o estudo do

romance e dos contos a partir da operação narrativa, social em sua medula,

que permitiu aquela autonomização diante do realismo. Pretendemos iniciar o

estudo das relações sociais em dois pontos: na reflexão que as narrativas

possibilitam quanto às relações sociais (ao situarem interlocuções refratando

discursos sociais); na operação intelectual diante das formas culturais (o

escritor como mediador), dimensão menos importante para o presente texto.

De fato, sentimos aqui apenas iniciar a visualização de múltiplos problemas

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suscitados pela leitura social da literatura de Guimarães Rosa. Por fim,

entende-se que esse primeiro passo exige ao menos uma discreta discussão

com significativa seleta de análises.

Em comum, as três narrativas apresentam narradores em situação de

interlocução com seu suposto oposto social. Nessa estrutura de interlocução

(montada sobre monólogos, com a exceção de trechos de “Famigerado”), é

possível ler uma síntese de enredos semelhantes: o diálogo social, em suas

aproximações e impossibilidades. Um estudo de relações sociais nas três

narrativas deve partir da constatação de que a composição formal das

interlocuções inventa discussões sociais no espaço extra-estético. A

centralidade do narrador, a dialética com o interlocutor, a dialética

interiorizada de coragem e medo, são elementos deste estudo. Até que ponto o

arbítrio dos narradores, por exemplo, é absoluto? O essencial das situações,

sobre as quais em geral são feitas as leituras críticas quanto à representação,

relaciona-se como com a condução, a reflexão e o arranjo narrativos? Como se

relacionam a dicção e a confiabilidade dos narradores? Não é intenção aqui

esgotar tais questionamentos: apenas os apontamos como caminhos para se

prosseguir na discussão.

Centraremos nossa leitura pela verificação da relação entre as

narrativas e a condição rural. Trata-se da leitura da dialética brasileira entre

mundo rural e modernidade. Em Grande sertão: veredas o sistema de poder

rural (os grandes fazendeiros na manipulação do sistema da jagunçagem) é

uma força que tenta organizar o sertão, o espaço indomado e a gente a ser

submetida, embora este lhe escape (mas não para Riobaldo, enfim

proprietário). A modernidade comparece criticamente na “papagaiagem”

discursiva de Zé Bebelo e, principalmente, personificada no interlocutor

(mesmo aqui precisaríamos relativizar, pois este homem urbano é também um

aventureiro – e não um turista – que parte para conhecer o sertão), também

inquiridor e orientador, particularmente quanto ao ajuste da retórica do

narrador. O rural enquanto paisagem, no entanto, surge mais discretamente

no texto, aprendida a lição de contenção junto aos romancistas de 1930: o

destaque contrastivo vai para as topografias e o mapeamento lírico da

natureza. O discurso rural, desse modo, tem como tarefa encantar a cidade

ficcional personificada na interlocução, para que se absolva o passado (o que

se fez, indivíduo rural, do passado) socialmente. Usa-se, para tanto, uma

cordialidade irônica de matuto falso-sonso, repleta de humildade, valorações

da cultura letrada e justificação religiosa.

Começamos pelo conto “Meu tio o Iauaretê”, possivelmente escrito antes

mesmo de Grande sertão: veredas, embora relegado a publicação póstuma.

Grande é a semelhança com o romance, o que nos levará a aproximações entre

as duas narrativas. Nos dois monólogos sob contexto dialógico, a conversa é

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intuída, mas o Outro (o civilizado) tem a voz cassada. Até que ponto esse

silêncio do interlocutor e suas insinuações nas estratégias discursivas não são

elementos a serem considerados na investigação da voz narrativa? Como são

vistos os interlocutores por Riobaldo e Bacuriquirepa? Como eles afetam os

narradores? Estamos diante de seres da modernidade contraditória

submetidos à audição: os interlocutores são, em parte, juízes das histórias de

vida dos narradores. Uma escuta etnográfica e observadora no romance

(mesmo que se insinue inicialmente, com um tom galhofeiro, ser ela a

personificação do diabo vindo cobrar o pactário); e sendo assassina e

profissional – logo, dividida entre o irracional e o racional – ao mesmo tempo,

no conto “Meu tio o Iauretê”.

Walnice Galvão (1978, p. 34) aponta várias coincidências entre o conto

e o romance, ambos abrindo a explanação com o mesmo achado formal: teria

sido este achado a causa do engavetamento do conto? Ela chega a uma

convincente concepção do papel do interlocutor como simultaneamente

mediador e receptor do discurso, comparando o romance ao conto:

O brilhante feito de conseguir pôr uma fala que flui ininterruptamente da boca

de um narrador, que é o outro... (...) Em ambos os casos, o narrador-

protagonista tem sua alteridade marcada com relação ao interlocutor que é

homem da cidade e portador dos signos da urbanidade, nem sertanejo num

caso, nem meio-índio no outro. Evitando o contraste de discursos, o

interlocutor nunca fala, mas é colocado na fala do outro por meio de

interpelações e respostas a hipotéticas perguntas. Assim, a fala só

indiretamente se dirige ao leitor, apesar de, em ambos os casos, ser um

monólogo direto iniciado por um travessão: seu alvo é o interlocutor presente

na situação criada, e só dali ela inflete na direção do leitor. Este,

evidentemente, está colocado para cá do interlocutor, e recebe pela mediação

deste o monólogo a ele destinado.

Destacando outras semelhanças, Galvão não comenta a talvez principal

delas no plano do enredo, pois, em comum com o romance, o conto traz uma

história de interdição: o homoerotismo no romance, a zoofilia e o incesto no

conto. São histórias que os narradores “precisam” contar, são culpas eróticas

inseparáveis do narrar: “Onça fêmea mais bonita é Maria-Maria... Eh, mecê

quer saber? Não, isso eu não conto. Conto não, de jeito nenhum... Mecê quer

saber muita coisa!” (ROSA, 1969, p. 134). No entanto, Bacuriquirepa contará

tudo em detalhes, bem como o fez Riobaldo, a despeito do anticlímax com que

o ex-jagunço compõe a revelação de gênero de Diadorim. A catarse vem da

transparência (e mesmo distância, como sugere Riobaldo) desses

interlocutores? Há transparência nesses interlocutores? O interlocutor de

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Riobaldo precisa provar, de início, estar distante da crença no diabo. O de

“Meu tio o Iauaretê” tem o tempo todo seus movimentos de ameaça

comentados pelo narrador. A mediação é objetiva, mas instável.

O mérito da leitura de Galvão é inegável e consiste na relevância que dá

à mediação narrativa: o discurso tem o leitor numa segunda mira. O achado

de Rosa, portanto, é esse afastamento do leitor em nome da verossimilhança

do interlocutor, quase literalmente construída “nonada”. Em “Meu tio o

Iauaretê”, a posição rural está sobreposta à posição selvagem, o que modifica

sua relação contraditória com a modernidade. Não à toa, Walnice Galvão

desenvolve longa argumentação em torno ao cru e ao cozido em alegoria na

narrativa. O jagunço-onça, no entanto, não está muito distante,

funcionalmente, do jagunço letrado Riobaldo, o ser que passou de “homem

provisório” a latifundiário. Ambos são casos extremos, exceções:

Bacuriquirepa é uma das últimas onças, e Riobaldo é um dos últimos daquele

sertão inacessível enquanto experiência ao interlocutor urbano. Além disso,

quase nenhum ex-onceiro se torna onça, nem quase nenhum jagunço se torna

latifundiário. São experiências das radicais da ruralidade e, para além dessa

condição de exemplaridade (superando, portanto, o típico), há a literalizar os

textos o isomorfismo da posição social em relação ao rural e ao conjunto de

movimentação e organização da exposição temporal das falas.

A representação (o fazer-se ouvinte dos interlocutores de Grande sertão:

veredas e “Meu tio o Iauaretê”) está em relação direta com a orientação do

retrato de pacto fáustico e de metamorfose mítica que perfazem os narradores.

Retrato, aqui, como a estilização de dados formativos de uma identidade que é

sempre movente, isto é, identidade como travessia, em formação. Tal noção

formativa, note-se é importante para a discussão das narrativas de Rosa.

Aquela incompletude formativa é, em parte, a marca do romance de formação

(Bildungsroman). Willi Bolle (2004) e Marcus Mazzari (2010) discutem Grande

sertão: veredas à luz do problema. O narrador que conta sua experiência

diante do mundo, propondo-a exemplar, embora pouquíssimo confiável, conta

de maneira fragmentada seu caminho para a socialização. A discussão aqui

pode recair na dupla opção hermenêutica: pacto fáustico, mesmo que

potencialização do que já dispunha o indivíduo, como propõe Mazzari, ou deus

ex machina da ascensão social do herói herdeiro – embora essa opção possa

ser inviabilizada pelo casamento por interesse pecuniário que realiza Riobaldo

com Otacília. Essa condição típica do romance de formação (o estar encaixado

na “prosa do mundo” hegeliana), composta pela figura do acúmulo de relações

(discursos) sociais com uma perspectiva sempre cindida entre a simpatia e a

ironia reflexiva é também a conformação estilizada de uma formação política e

de sua historiografia, seu retrato (no limite, nacional, embora, para Rosa, o

“sertão” também seja “o mundo”). Bolle propõe esse retrato nacional como

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criptografado numa série de redes temáticas em discussão alegórica com uma

concepção e uma proposta, desencantada, de país, cuja utopia única é a

linguagem.

Entendendo formação nacional como sedimentação de experiências,

seriação nas ideias e vida cultural orgânica, à maneira do que se propõe em

Sentido da formação, de Paulo Arantes e Otília Arantes (1997), pode-se dizer

que ocorre a dissolução da formação em “Meu tio o Iauaretê”. Há uma dupla

deformação: a regressão do onceiro em onça, a regressão da própria linguagem

ao inarticulado. Segundo Galvão: “(...) a própria personagem constrói o enredo

numa fala ininterrupta, que insula o conto nos limites de uma só noite. Assim

o vemos, recebendo como leitores sua fala emitida para outra personagem que

nunca interfere e com quem ele conversa...” (GALVÃO, 1978, p. 13). Segundo

Galvão, a fala sai, inicialmente, “desarticulada e sonsa” (GALVÃO, 1978, p.

24), com as informações sendo reveladas paulatinamente, sob o influxo da

cachaça, que desfaz a censura inicial. Em termos, pois o personagem começa

também perguntando, já desconfiado, logo, atento. Bacuriquirepa é um ser

dividido, cujas reflexões girariam em torno da cisão mãe-natureza e pai-

violência rural. A cisão com o branco é uma cisão que ele traz em si, o que

torna mais complexa a polarização índio-onça versus branco-interlocutor.

Embora tenha tido vários nomes, o narrador diz não carecer mais de nome: ele

os sabe, mas os abandonou, portanto, não se identificando com nenhum deles

e com todos (“eu tenho todo nome”).

A dialética central no diálogo social frustrado é aquela que envolve

medo e coragem (assunto tão tematizado por Riobaldo e tema central de

“Famigerado”). Em “Meu tio o Iauaretê”, a conversa segue diferentes planos,

como ou da discordância: “Nhem? É, mecê é quem tá falando. Eu acho triste

não. Acho bonito não. É, é como é, mesmo, que nem todo lugar” (ROSA, 1969,

p. 132). Ou do interrogatório: “De verdade. Tou falando verdade!... Aqui não

vem ninguém, é muito custoso” (ROSA, 1969, p. 131). Há também o plano do

duelo, como nesse caso em que o narrador passa da descrição da caça para

vários “mecê” dirigidos ao interlocutor: “Todo movimento de caça a gente tem

que aprender. Eu sei como mecê mexe mão, que cê olha pra baixo ou pra riba,

já sei quanto tempo mecê leva pra pular, se carecer. Sei em que perna

primeiro é que mecê levanta” (ROSA, 1969, p. 136). O interlocutor está sempre

presente, orientando a narrativa. Há um momento, porém, em que o diálogo

social (mesmo que hostil) é definitivamente rompido. Na medida em que vai se

assumindo como homem-onça, Bacuriquirepa assume também seus atos

homicidas (o que se faz verossímil pela instigação da bebida). Ele vai

recontando as histórias e se afastando do interlocutor. O discurso se torna

impositivo, a condução passa a ser a da metamorfose para o confronto

inevitável. Entram marcas linguísticas de condução e de temporalização como

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“Ói”, “Eh”, “Aí”, “Manhã cedo”, “De noite”, “Quando”, “O dia todo”: ele passa a

narrar, desdenhando a conversa, já rompida com a confissão dos crimes.

Traído pela boca (à maneira também do Damázio de “Famigerado”, conto que

mostra como o conflito social é vencido por aquele, a elite, que sabe controlar

a fala), a metamorfose é inevitável. Perfaz-se um longo arco de narração e

volta-se, na última página, ao tempo da enunciação, acirrando-se e

resolvendo-se violentamente o conflito. Há uma suspensão necessária,

portanto, da interlocução: por momentos, a narração se faz fora da injunção

da modernização e da palavra da lei. O rural (asselvajado) é assumido aqui

como telurismo irracional, no discurso do desvio.

É possível fazer uma leitura ideológica do texto? Temos, em “Meu tio o

Iauaretê”, um narrador que conduz um monólogo-diálogo no qual conta sua

história de conversão ao mundo selvagem, um mundo supostamente mais

puro, onde a morte é, por assim dizer, da ordem da natureza. No entanto,

quem guia o discurso desse narrador? Não se pode descartar a injunção da

embriaguez, situação que torna fragmentário e esquivo o discurso. Porém, o

mais importante para uma leitura de ideologia talvez seja a presença do

interlocutor, do homem branco cujas perguntas são parcialmente repetidas

pelo narrador. O discurso do narrador se faz numa conversa. Este é um ponto

que a monologação parece disfarçar. A condução daquilo que se apresenta (e

que cada vez se apresenta mais) é feita pela presença do interlocutor que veio

completar o trabalho sujo da instalação da modernidade. São suas perguntas

de representante da civilização (daquele que compra a morte das onças,

daquele que investiga a morte dos homens e que as discrimina entre legítimas

ou não) que orientam o discurso e o desfecho. As mudanças no discurso, os

nós que orientam seu andamento naquele ou nesse sentido, dão-se a partir de

interrogações que o ex-caçador de onça repete, culminando na catarse

narrativa, quando se abandona a tentativa do diálogo. O que se encobre aí,

portanto, em termos sociais? A discussão talvez devesse ser reencaminhada:

de que lado está a violência? No lado felino representado pelo ex-caçador ou

no lado dos caçadores, do preto que se apossa do rancho e exige o trabalho do

ex-caçador, da ocupação fundiária e da exploração sexual da mulher? Estes

últimos são os detentores da nomeação e da ocupação, o lado do revólver; o

primeiro, o homem-onça, perde mesmo seu nome. Mesmo o fato de nomear as

onças escapa à ordem da dominação, pois, segundo quer dizer, aqueles nomes

já eram delas antes que ele as nomeasse. Não há nele, também, posse: ele está

equiparado ao ambiente, despojado mesmo do desejo sexual humano.

Passemos à discussão de “Famigerado”, antes de retomarmos Grande

sertão: veredas. Em “Famigerado” parece haver uma despedida do rural. Um

homem da cidade conta ter sido surpreendido em casa por um tropel. Um

“cara de nenhum amigo” o aborda. Outros três, testemunhas “tristes”, ficam

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num bolo. Intui que seriam prisioneiros, não sequazes do outro. O narrador

vai se constituindo corajoso: inicia por um “Tomei-me nos nervos” (ROSA,

1998, p. 13); no outro parágrafo vem:

Senti que não me ficava útil dar cara amena, mostras de temeroso. Eu não

tinha arma ao alcance. Tivesse, também, não adiantava. Com um pingo no i,

ele me dissolvia. O medo é a extrema ignorância em momento muito agudo. O

medo O. O medo me miava. Convidei-o a desmontar, a entrar.

O narrador quer se mostrar sábio e, embora confesse a violência (não

ter a arma ao alcance), o que o aproxima do mundo do jagunço, tem

sentimentos ambivalentes, ora refletindo sobre o medo, ora o confessando.

Esta narrativa parece girar num outro eixo, portanto: aqui nos é revelado,

pelas ações, comentários e reflexões do narrador, o mecanismo mental da elite

para o convívio com a brutalidade que a serve. A aliança entre modernidade e

brutalidade fica evidenciada como um jogo de avanços e recuos, num pacto

entre iguais em que um dá as ordens. A reprodução da desigualdade social se

dá em torno do treinamento científico da observação dos dados fisiológicos (o

gestual do jagunço, o suor do cavalo etc.), treinamento que se evidencia como

posição de classe. Esse treinamento envolve também o controle da fala pelo

conhecimento técnico: o poder saber como se manipula a linguagem

estabelece um padrão desigual de relação social.

Vejamos o funcionamento de tal disciplina social. O narrador, médico,

comenta um gesto do oponente: “decerto relaxava o corpo para dar-se mais à

ingente tarefa de pensar.” O texto vem talhado no vocabulário da personagem,

com termos menos comuns, como “sequazes”, “ingente”, “farroma”, “farrusca”,

mostrando o poder de manipulação da linguagem. O narrador estabelece sua

defesa em termos racionais: “Muito de macio, mentalmente, comecei a me

organizar.” (ROSA, 1998, p. 14). Os mundos em disputa são o da velocidade

brusca (desde a chegada, de cavalo suado), de quem precisa espaçar a voz

para alcançar a calma, que pode reagir inopinadamente, e o mundo da astúcia

da racionalidade urbana, marcada pelo cálculo, previsão, sobriedade. Um

mundo de quem corre atrás da história contra um mundo de quem já está

empossado no presente.

O oponente começa a perguntar. Reticências. Entra em cena um

comentário do narrador-doutor. Este descreve o oponente de modo a justificar

para o leitor a solução que dará ao caso: a justificativa de classe da astúcia e

do chiste se faz em nome da ameaça da violência “para cada momento”, “sem

medida e sem certeza”. Há uma avaliação do potencial irracional da violência

do jagunço, descrito como “(...) gente brava. Aquele propunha sangue, em suas

tenções” (ROSA, 1998, p. 14). Quando o visitante se identifica, o nome

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Damázio é identificado como o de criminoso famoso. Estaria retirado da

profissão violenta, mas a desconfiança não desgruda do anfitrião: “Fie-se,

porém, quem, em tais tréguas de pantera?” (ROSA, 1998, p. 15). A

identificação com o sobrinho do Iauaretê é imediata aqui, apenas está

invertido o ponto de vista. Segue-se a concentrada descrição dos modos com

que Damázio completa sua pergunta. Inicialmente, abrupto, fala de um

problema com um “moço do Governo”. Interrompe “com arranco”, talvez

arrependido e pensa numa estratégia. Sabemos que a obteve com a seguinte

descrição: “Do que, se resolveu. Levantou as feições. Se é que se riu: aquela

crueldade de dentes” (ROSA, 1998, p. 15). Ficamos sabendo que tinha um

“orgulho indeciso.” Passa a monologar a fim de ludibriar o anfitrião, “como

dificultação”. Há, portanto, toda uma leitura física do procedimento mental de

Damázio, dado de imediato pelo narrador como dissimulador: “Assim no

fechar-se com o jogo, sonso, no me iludir, ele enigmava” (ROSA, 1998, p. 15).

De repente, porém, vem a questão quanto ao sentido de “famigerado”, palavra

que a fala de Damázio associa a termos como “família” e “gerado” (uma ofensa

contra a honra, portanto).

Damázio explica que veio de longe só para obter a resposta, não

havendo ninguém capaz na sua região, apenas o padre, mas “eles logo

engambelam” (ROSA, 1998, p. 16). Supostamente, portanto, deposita cega

confiança na transparência do doutor da cidade. Sente-se que a questão de

Damázio é ter de voltar a matar se estiver confirmada sua suspeita de ofensa

embutida na palavra, tanto é que não a repete: “Agora, se me faz mercê,

vosmecê me fale, no pau da peroba, no aperfeiçoado: o que é que é, o que já

lhe perguntei?” (p. 16). Segue-se uma longa hesitação, agora do doutor,

tentando sondar a resposta desejada: “Tinha eu que descobrir a cara” (p. 16).

Dois recursos são operados, os dois dilatando a resposta, evitando-a: primeiro,

a dupla repetição da pergunta (“Famigerado?”); depois, a recusa do sermo

humilis, escorando-se na fala difícil. A dúvida de Damázio é se o termo é

“ofensa”, “caçoável”, “farsância”. A resposta neutra encobre o sentido negativo

da fama atribuída ao “famigerado”.

Obviamente a resposta satisfaz a Damázio, que “exultante”, desagrava-

se. Agradece ao doutor: “Disse: -- ‘Não há como que as grandezas machas

duma pessoa instruída!’” (ROSA, 1998, p. 16). Insinua-se mesmo, ao final,

após a dispensa das testemunhas, uma aproximação doméstica entre os dois

mundos, embora saibamos da articulação cínica do narrador, justificada pela

figuração do atraso em forma de violência “irracional” representada em

Damázio. Presente em um livro repleto de “estórias” com crianças, poderia ser

esperada uma infantilização da figura de Damázio. No entanto, a única

aproximação possível se dá na irracionalidade que parece orientar os gestos

bruscos do interlocutor jagunço. Em Rosa, a situação não deixa de ser a da

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ALVES, Ricardo Luiz Pedrosa. Relações sociais em três narrativas de Guimarães Rosa. Scripta Uniandrade, v. 17, n. 2 (2019), p. 229-250.

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encenação de um duelo da força bruta (que tem sua astúcia desvendada

fisiológica e analiticamente pelo narrador) com a orientação que o medo dá à

prudência racional do douto narrador. No conto “Famigerado”, insinua-se

mesmo uma aproximação doméstica entre a violência e a ciência. O clímax

esperado (o enfrentamento), “é um anticlímax, com a construção intensificante

do suspense sendo desmanchada, porque o que se aguardava não sobrevém;

ao contrário, falha e frustra a expectativa do leitor” (GALVÃO, 2006, p. 168).

Aquela aproximação entre ciência e violência, no entanto, é crítica? Talvez

Rosa opere como escreveu Ana Paula Pacheco: “(...) lança ao infinito e à

conciliação formal contradições sociais irreconciliáveis” (PACHECO, 2009, p.

132). Pacheco propõe a leitura do conto como “jogo de astúcia” cuja conclusão

é a humilhação do jagunço. O chiste e o humor seriam armas contra o medo:

O humor é aqui uma vingança do riso sobre o medo, mas não só. Como já

sugerimos, contando o ocorrido, o narrador domina definitivamente o jagunço,

fazendo dele objeto de derrisão para o leitor. A marca de distinção da resolução

espirituosa – acessível a quem compreende o jogo armado na letra – desvela

que se trata de uma conversa entre pares. (...) No entanto, fazer o interrogante

de bobo (“tese para alto rir”) e exibir-se ao leitor parece algo menos ingênuo do

que o prazer de dizer de modo cifrado o que não podia dizer às claras (afinal,

mesmo narrar o caso já é redobrar o feito). (PACHECO, 2009, p. 137)

Pacheco conclui sua análise com a definição de civilidade brutal:

mostrar o Outro e rir dele. Embora não discordemos do todo da argumentação

de Pacheco, gostaríamos de voltar nossa atenção em outra direção: o conto

apresenta um retrato convincente da aliança perversa de racionalidade e

brutalidade. E há ironia na caracterização do doutor, o que indica a marcação

moral de Rosa: ele não apenas usa vocabulário pedante, como se percebe o

diabolismo de sua linguagem e de sua astúcia. Também não vemos ironia em

relação ao falar de Damázio. Há até o inverso, pois ao referir o saber do doutor

como “grandezas machas”, a ironia parece estar sendo apontada para o

próprio narrador. Essa questão é uma das mais importantes abordadas por

Rosa: falar de relações sociais em sua obra implica em discutir seu lugar na

articulação da voz do Outro, do homem rural.

Duas das principais realizações de Guimarães Rosa (Grande sertão:

veredas e “Meu tio o Iauaretê”) fazem falar as personagens do mundo não-

moderno (parcialmente identificado ao mundo rural, no conto). No romance,

de modo ambíguo, pois Riobaldo, ex-miserável, professor, herdeiro, jagunço,

latifundiário, tem uma existência social bastante complexa, embora emita seu

discurso como proprietário. Tem, assim, uma vida dividida entre a violência e

a introjeção do discurso do poder, entre a contemplação desinteressada da

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beleza natural e a frustração enquanto letrado, entre a religião e o cálculo. Ele

também não escreve, como os narradores fazendeiros de Graciliano Ramos e

de José Lins do Rego: ele fala um texto com grande consciência de

composição. No conto, por sua vez, temos uma língua de índio, branco e bicho

apresentando-nos o discurso de um homem que ajudou a instalar a

modernidade (ao matar as onças de uma área), e que agora é descartado pela

mesma modernidade (por ter se tornado, em alegoria, a última onça).

Essa especificidade da mediação deve ser guardada para a leitura do

romance de Rosa. Para entrarmos em Grande sertão: veredas seria útil

também a leitura de um treco de Roberto Schwarz. Ele enfatiza em Conversa

sobre “Duas Meninas” um caminho ainda em construção para a crítica

literária:

A sociedade brasileira é evidentemente sui generis, diferente das outras por

causa da parte que o trabalho escravo teve em sua formação. Ela tem um

sistema de relações sociais próprio, mas não ocorreu à crítica que esse sistema

tivesse potência estruturante do ponto de vista estético. Ora, um bom escritor

desenvolve as relações sociais inscritas em seu material – situações,

linguagem, tradição etc. – segundo um fio próprio, quer dizer, próprio às

relações e próprio ao escritor: um fio que é de livre invenção, mas nem por isso

é arbitrário. A retomada e a exploração literária, em verso quanto em prosa, da

especificidade das relações sociais brasileiras até aqui praticamente não foi

objeto de pesquisa. Insisto nisso porque vejo aí um programa de estudos.”

(SCHWARZ, 1999, p. 230)

Retomamos também um apontamento de Luís Augusto Fischer (apud

CEVASCO; OHATA, 2007), destacando a insuficiência dos estudos (de

Schwarz, inclusive) da literatura rural na crítica materialista. Um problema do

mundo rural em relação ao marxismo está no positivismo internacionalista do

marxismo ortodoxo, pouco aberto para a heterogeneidade das reivindicações e

dos discursos locais, cuja especificidade é reduzida em nome da abstração dos

subalternos em geral. O argumento de Fischer é o de que a crítica de

esquerda, ao associar o processo revolucionário à captação do “novo”,

desdenhou das experiências de ficcionalização rural, dada como ultrapassada

ou mesmo regressiva. Schwarz e a esquerda não estariam abertos à visão do

novo no âmbito mesmo do rural (ou talvez como marca indelével de nossa

contradição específica formativa). A questão talvez não seja bem essa: a

dificuldade está em verificar a composição contraditória que o novo estabelece

com as temporalidades lentas do mundo rural. Entre as conquistas da

literatura rural, Fischer destaca duas: “(...) a problematização da posição do

narrador e a capacidade de renovar a linguagem da língua em que é escrito o

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texto...” (FISCHER apud CEVASCO; OHATA, 2007, p. 89). Segundo Fischer, a

leitura que Schwarz faz do romance de Rosa despreza a referencialidade rural,

em opções como a algebrização do andamento sintático do livro. A leitura do

narrador é particularmente problemática, na medida em que Schwarz parece

ter desconsiderado o filtro social que aquele impõe ao relato. Que nos fiquem

essas lições de Fischer para o melhor entendimento da especificidade de uma

experiência histórica estilizada pela articulação narrativa.

As falsas conversas das três narrativas (no romance, um interlocutor

que fica mudo por três dias e centenas de páginas e, nos contos, duas falsas

soluções: uma pela violência e a outra pelo ludíbrio) articulam a

impossibilidade do diálogo entre iguais, projetando uma imagem negativa e

crítica da construção do contrato social brasileiro. A cordialidade subjacente

ao romance é obtida por dois recursos: um interlocutor mudo, que deverá

supostamente pensar e textualizar a experiência de formação

simultaneamente social e demoníaca de Riobaldo; um narrador “jagunço-

letrado” (o termo é de Walnice Galvão), que, por isso mesmo, já textualizou em

narrativa sua experiência, já a tendo narrado, inclusive, antes, ao compadre

Quelemém. Se a dicotomia de origem não é tão evidenciada (ambos, a seu

modo, são letrados), a condução da história pelo narrador parcial

(supostamente, o Outro) através de estilizações operadas pelo escritor

Guimarães Rosa, apontam para uma convergência dialética entre atraso e

invenção. De fato, ao letrado jagunço não se concede a absolvição de,

pactuando com o poder, ser da ordem da violência. Ao mesmo tempo, porém,

não se abdica (no contexto da posição social do escritor) da contribuição

específica que o atraso pode ter para a invenção, tanto a linguística como a de

um outro contrato social, conduzido pela poesia. Não se estabelece conversa,

portanto, uma vez que a solução é falseada no plano da consciência, que

aceita a inevitabilidade do histórico.

O ensaio de Antonio Candido (“O homem dos avessos”, de 1964)

inaugurou a abordagem sócio-histórica sobre o romance de Rosa (a partir de

sua proposta, tivemos os trabalhos de Walnice Galvão, Willi Bolle, Heloísa

Starling etc.). O texto de Candido, porém, apoia-se em excesso na

generalização escorregadia quanto ao binômio observação-invenção: “Aos

poucos vemos surgir um universo fictício, à medida que a realidade geográfica

é recoberta pela natureza convencional” (CANDIDO, 1964, p. 124). Ou: “há um

homem fantástico a recobrir ou entremear o sertanejo real; há duas

humanidades que se comunicam livremente, pois os jagunços são e não são

reais” (CANDIDO, 1964, p. 129). Em outro ensaio (“A personagem do

romance”), Candido reitera sua avaliação, agora enfatizando o foco narrativo:

“A isto se junta a escolha do foco narrativo, -- o monólogo dum homem

rústico, cuja consciência serve de palco para os fatos que relata, e que os tinge

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com a sua própria visão, sem afinal ter certeza se o pacto ocorreu ou não”

(CANDIDO, 2002, p. 77). Parece mesmo haver uma dificuldade em se analisar

as relações sociais em Guimarães Rosa. O texto fundador de Candido define o

romance a partir da reversibilidade de suas ambiguidades: a constatação da

combinação de mito e logos não ajuda nosso entendimento neste artigo, muito

menos a identificação da estrutura narrativa aos romances de cavalaria.

Salva-se, para nossos propósitos, no texto de Candido, a ideia – não

desenvolvida por ele, mas em dia com as propostas mais recentes de Luís

Bueno (como em “Gerais e Mato Dentro: Minas em Guimarães Rosa e Cornélio

Penna”, ou em “Guimarães, Clarice e antes”) – quanto a uma concepção

marcada de telurismo irracional, onde tal telurismo pautaria a cosmovisão das

obras. Veja-se em Candido: “Produto do Sertão, a força do jagunço paladino

depende da força da terra; (...) mergulhando nas relações primordiais do

homem com a terra, que deve ser propiciada para viver e dar vida, como nos

ritos agrários” (CANDIDO, 1964, p. 134). Agora, em Bueno: “Há uma espécie

de telurismo aqui, portanto, que vai além da definição de dicionário, já que se

trata de relação de mão dupla, como se a influência do solo sobre seus

habitantes de alguma forma fosse devolvida ao próprio solo por esses

habitantes” (BUENO, 2009, p. 239).

Bueno participa de um novo esforço da crítica em ler socialmente a

literatura de Rosa. O trabalho mais completo nessa linha é o de Willi Bolle,

grandesertão.br (2004). Se em Bueno tínhamos um “Brasil em desequilíbrio”,

em Bolle a constatação, após a leitura da alegoria “criptografada” de Rosa em

seu romance, é de que o Brasil retratado pelo romancista padece de falta de

diálogo entre as classes. O trabalho de Bolle consegue articular múltiplas

abordagens do livro de Rosa, e quanto às relações sociais parece acertar ao

levar em conta a configuração narrativa. O que há de problemático em seu

trabalho parece ser a aproximação pouco mediada em relação aos discursos

do ensaísmo social brasileiro e às constituições do Brasil. Bolle concebe um

narrador de mediação, de transição (travessia) “entre as diferentes

mentalidades e linguagens: a sertaneja e a urbana, a coloquial e a erudita, a

oral e a escrita. Sua liberdade de transitar, seu jogo entre aproximação e

distanciamento, e sua ironia se expressam de várias formas” (BOLLE, 2004, p.

40). Bolle também destaca o narrador como mediador social. Para ele, há, por

exemplo, o tom da narrativa. O narrador, em atitude humilde, engrandece o

interlocutor, numa fingida ignorância, o tempo todo contrastada com os apelos

àquilo que certamente o interlocutor desconhece. Nisso também, o apelo à

colaboração do leitor. Outra conclusão de Bolle parte da análise do monólogo

por Roberto Schwarz:

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Um segundo elemento irônico está na construção da situação narrativa em

forma de “um monólogo inserto em situação dialógica”. A ironia está no fato de

o sertanejo ser o dono absoluto da fala, enquanto o doutor da cidade fica

reduzido ao papel de mero ouvinte. Assim, a situação narrativa em Grande

Sertão: Veredas configura-se como o exato oposto do ensaio historiográfico de

Euclides, em que o letrado enquanto representante da elite modernizadora

monopoliza o discurso. A inversão dos papéis costumeiros é um estratagema de

Guimarães Rosa para chamar a atenção sobre o desequilíbrio de falas entre as

forças sociais. (BOLLE, 2004, p. 40)

Além disso, o narrador é irônico: “A terceira forma de ironia é a auto-

ironia do narrador. Na base de sua fala está um constante questionamento do

próprio narrar” (BOLLE, 2004, p. 41). Dando-se aí uma tensão entre o tempo

narrado e o tempo da narração. O narrador, ainda segundo Bolle, é um

comentarista dos diversos discursos sociais em conflito. Tendemos a

concordar com essa visão do narrador irônico e auto-irônico de Bolle. No

entanto, parece faltar ao monumental ensaio consagrado ao romance de Rosa

a leitura da intervenção ideológica mediadora operada pelo próprio

romancista, ao sugerir a inevitabilidade da presença do interlocutor para que

o monólogo ocorra e seja adequadamente, não só textualizado, como, e

principalmente, julgado. O monólogo, como também em “Meu tio o Iauaretê”,

faz-se em função do interlocutor representante da modernização. Bolle, como

vimos, não considera decisiva a presença do interlocutor como instrumento de

refratação da cosmovisão de Riobaldo:

Enquanto jagunço letrado, o narrador rosiano pertence simultaneamente ao

universo da violência (no meio rural) e à classe culta (urbana). Ele realiza

assim um trabalho de mediação entre duas esferas culturais muito diferentes;

ao mesmo tempo é capaz de distanciar-se criticamente de cada uma delas. (...)

o narrador rosiano, dialético e luciférico, é construído de tal modo que ele se

situa ao mesmo tempo dentro e fora do sistema de poder. É o que lhe permite

articular reflexões mais agudas sobre o sistema; sobre o intelectual, mais ou

menos comprometido com esse sistema; e também, e sobretudo, sobre as

representações do sistema de poder no imaginário dos sertanejos. (BOLLE,

2004, p. 142-143)

Para nossos objetivos, o ensaio clássico de Walnice Galvão é mais

instrutivo, pois mais centrado na mediação que na alegoria. As relações

sociais são uma das determinações imediatas da obra de Guimarães Rosa,

segundo Galvão. Dentre outros aspectos relevantes (o geográfico, o mítico, o

metafísico), ela defende um espaço para os estudos da “alteridade de classe”:

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“que mostra os jagunços como soldados rasos versus os comandantes

latifundiários, ou, em outros termos, a plebe versus a oligarquia” (GALVÃO,

2006, p. 145). Em As formas do falso, Galvão enuncia sua leitura da matéria

do romance de Rosa:

O romance mostra como a condição do sertanejo pobre é radicalmente

ambígua, como sua dispensabilidade redunda em dependência, sua liberdade

em submissão; isto se passa, todavia, fora de sua consciência. É Riobaldo, o

narrador-personagem que, tendo uma vida dividida em duas partes – como

membro da plebe rural quando menino e quando jagunço, como membro da

camada dominante quando jovem e quando velho – tem distância crítica para

perceber a ambigüidade da condição do pobre, pacífico ou guerreiro conforme

sirva aos interesses de quem manda. (GALVÃO, 1986, p .12)

Não basta constatar, no entanto, esse caráter mediador do narrador, o

de um latifundiário, ex-jagunço, “letrado irrealizado”: a situação narrativa não

se resume ao foco, uma vez que este articula um diálogo com uma presença

moderna. Galvão, no entanto, aponta também para a ambiguidade central da

obra (embora seu estudo careça do aprofundamento dessa constatação), a da

posição do escritor que “apreende as tensões da realidade como ambiguidades

sem radicalizá-las em contradições, é, afinal, a posição do intelectual

brasileiro que se delineia” (GALVÃO, 1986, p. 14). Nossa proposta centra-se na

leitura da contradição social no âmbito da interlocução enquanto mediação

representada, querendo apontar polos que sofrem múltiplas composições nas

três narrativas em questão (pobre-rico, rico-rico, jagunço letrado-doutor,

jagunço-doutor, caçador de onças-caçador de homens, onça-homem,

natureza-cultura etc.). A interlocução, notadamente, pressupõe uma

mediação.

Para continuarmos a leitura da mediação no romance seria interessante

observar as referências do narrador em algumas situações: a própria

narrativa, a narração, o narrador, seu interlocutor e, enfim, o lugar da cultura

letrada. Por questões de espaço, façamos apenas uma breve leitura do início

do romance. O interlocutor é sempre respeitosamente chamado de “senhor”. O

visitante, que apenas escuta, pode ser o diabo (uma vez que entra em cena

junto com o bezerro “erroso”). Até que ponto essa aliança perpetrada por

Riobaldo entre o latifúndio e a modernidade que o escuta não implica num

outro pacto demoníaco? É o que sugere, como chiste, afirmando e negando, o

narrador: “Ou, também, quem sabe – sem ofensas – não terá sido, por um

exemplo, até mesmo o senhor quem se anunciou assim, quando passou por lá,

por prazido divertimento engraçado” (ROSA, 2006, p. 9). A especulação surge

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para o narrador quando sua condição passa à aposentadoria. O anfitrião

sonda o visitante: será ele o diabo, qual seu interesse no diabo?

A situação: o visitante vai ouvir toda a confissão de Riobaldo, durante

três dias ininterruptos, pois se a narrativa é comentada, não é, por outro lado,

nunca interrompida. O visitante nega crer no diabo. Se ele é o diabo e veio

cobrar de Riobaldo, a situação perde um pouco do impacto na medida em que

Riobaldo já contou toda a sua história para Quelemém. Tenta-se, ao mesmo

tempo, sondar o visitante, o que sugere algum receio, e impor-lhe algum medo,

como quando ele vai sendo perguntado sobre situações demoníacas: “Agora, o

senhor já viu uma estranhez?” (ROSA, 2006, p. 11). O interlocutor, nesse

início, é intensamente demandado pela fala: sempre “o senhor” “não duvide”,

“imagine”, “o que acha?”, “mire veja”. Quando se refere à sua cultura, o

narrador é ambíguo: rebaixa-se, inicialmente (“sou só um sertanejo”) para

depois se elevar (“eu merecia de ir para cursar latim”). Dois índices de

esperteza também aparecem: ele era “ladino” e hoje aprecia os “exemplos” dos

religiosos que lê no almanaque, sendo citado o “exemplo” de “missionário

esperto engambelando os índios” (ROSA, 2006, p. 15). Riobaldo se acha um

homem de exceção: “O senhor saiba: eu toda a minha vida pensei por mim,

forro, sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo. Divêrjo de todo o mundo...

Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa” (ROSA, 2006, p.

15). De novo a ambiguidade quanto ao saber. Ao mesmo tempo em que

ressalta seus dotes reflexivos, sugere ingenuamente que o governo deveria

fixar uma lei negando a existência do diabo. Ele mesmo nega seu desejo: “Ah,

eu sei que não é possível. Não me assente o senhor por beócio. Uma coisa é

pôr ideias arranjadas, outra é lidar com país de pessoas, de carne e sangue, de

mil-e-tantas misérias...” (ROSA, 2006, p. 15). O que mostra que ele se esconde

também atrás de uma suposta ignorância. A operação inicial é importância,

configurando uma sondagem, pois mesmo já tendo ouvido do interlocutor a

negação da crença no demo, o narrador insiste: “Mas tem um porém:

pergunto: o senhor acredita, acha fio de verdade nessa parlanda, de com o

demônio se poder tratar pacto? Não, não é não? Sei que não há” (ROSA, 2006,

p. 24) É como se estivesse sondando também o modo como irá narrar sua

história na sequência, a fim de convencer o interlocutor do diabo (ou, noutro

movimento, de adequar sua história à suposta descrença do interlocutor).

Como o doutor nega, é elogiado, justificando-se seu saber por um desejo de

Riobaldo, o da instrução. A conversa volta-se para outro rumo: o narrador

insiste em que o doutor fique, três dias, ouvindo sua história. E diz não haver

mais o sertão que o doutor veio ver (mas que Riobaldo conhece: o sertão é,

pois, memória, narrativa).

Na associação de ideias, a paisagem sublime conduz a Diadorim e daí à

narração do passado, in media res. Estabelece-se um pacto: a distância que há

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entre o doutor visitante e Riobaldo vai servir a este como álibi para confessar

suas culpas. Além disso, o visitante é letrado, tendo negado o diabo (Riobaldo

procura se colocar ao lado do saber letrado, condenando o povo como

supersticioso, ignorante). É marcada uma diferença com o visitante: “Do sol e

tudo, o senhor pode completar, imaginado; o que não pode, para o senhor, é

ter sido, vivido” (ROSA, 2006, p. 51). Riobaldo tem a vantagem da presença: a

relação social, a dificuldade do diálogo entre as classes sociais vem expressa

na oposição complementar de experiência e texto.

Walnice Galvão explica assim a interlocução em Grande sertão: veredas:

O interlocutor é interpelado, sempre dentro da fala do narrador, por

“respostas” que o narrador dá a suas presumíveis perguntas, em geral

sugerindo pedidos de esclarecimento. E também por alusões a suas

características – como o uso de óculos e de uma caderneta de notas – ou a

seus gestos, como o escrever e desenhar continuamente ao anotar o que ouve.

(...) O monólogo funda a opção por um discurso “oral” que se expressa

mediante interjeições, torneios expeditivos, frases exclamativas e

interrogativas, períodos truncados e entrecortados. A opção pela fala é um feliz

achado, pois confere ao romance unidade estilística, abolindo a multiplicação

de recursos que obrigaria forçosamente a variação dos pontos de vista ou focos

narrativos. Pela boca de Riobaldo, são todas as personagens do romance que

falam. (GALVÃO, 2006, p. 165)

Ora, a exceção a este último dito é justamente o interlocutor. O

mecanismo do jagunço letrado narrador, é, segundo Galvão, uma vantagem,

ao eliminar o contraste típico da linguagem regionalista, “entre uma linguagem

pitoresca e folclórica que é a do sujeito analfabeto e outra que é apanágio da

classe a que pertence o escritor” (GALVÃO, 2006, p. 165). O narrador de Rosa

compõe a partir do rebaixamento social, mas com caráter de mediador (e o

caráter da prosa artística de Rosa, numa mediação em segundo grau).

Para corroborar essa orientação do sentido mediador do relato, pode-se

destacar também a relação de Riobaldo com os pobres e com os letrados (a

própria literatura, enfim). O povo “prascóvio” que acredita no demo, também é

o que “diverte demais com a baboseira, dum traque de jumento formam tufão

de ventania” (ROSA, 2006, p. 74). Vive advertindo o interlocutor quanto à sua

diferença com o povo. Ao mesmo tempo, há uma insatisfação com a própria

literatura, isto é, com os letrados. Em episódios como o de Davidão e Faustino,

ou quando Zé Bebelo dita as cartas para o Riobaldo “amanuense”, podem ser

detectados os estados mentais que emaranham literatura e experiência.

Apenas os apontamos aqui.

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No livro, como propõe Bolle (2004, p. 185), há duas retóricas

antagônicas, a da persuasão que constrói credibilidade e a busca ética da

justiça. Seria um narrador ambiguamente confiável, um narrador dialético,

onde a instância metanarrativa, que atua principalmente por montagens

contrastivas que conduzem às incongruências do narrador. Cria-se no

interlocutor (que media a narrativa para o leitor) uma atitude de benevolência

(credibilidade) a partir do rebaixamento, da dissimulação da eloquência.

Embora tenha autoridade (como latifundiário e como homem experiente), ele

passa o texto a dizer nada ter e nada saber (principalmente, pondo em dúvida

seu próprio contar). O contar é feito, nesse sentido, de interpelações da

cordialidade. O contar emaranhado, portanto, se dá mais concretude tanto ao

instante quanto ao encadeamento das cenas, também pode possibilitar uma

melhor defesa dos crimes (e do pacto) de Riobaldo. O interlocutor é, assim,

elogiado:

Eu sei que isto que estou dizendo é dificultoso, muito entrançado. Mas o

senhor vai avante. Invejo é a instrução que o senhor tem. Eu queria decifrar as

coisas que são importantes. E estou contando não é uma vida de sertanejo,

seja se for jagunço, mas a matéria vertente. (...) Sendo isto. Ao doido, doideiras

digo. Mas o senhor é homem sobrevindo, sensato, fiel como papel, o senhor me

ouve, pensa e repensa, e rediz, então me ajuda. Assim, é como conto. Antes

conto as coisas que formaram passado para mim com mais pertença. Vou lhe

falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém

ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas – e só essas poucas,

veredazinhas. O que muito lhe agradeço é a sua fineza de atenção. (ROSA,

2006, p. 100)

Trata-se do preâmbulo do narrador ao momento em que retoma sua

história a partir da adolescência, ao episódio da travessia no São Francisco

com o Menino (futuro Diadorim). Quem seriam essas “raríssimas pessoas”,

“veredazinhas”, que sabem do sertão? O que é este saber? Além disso, o

interlocutor se constrói, sob a ótica do narrador, como transparente, um juiz

que delega aos jurados a decisão (como faz Joca Ramiro): “fiel como papel”.

Papel que, no entanto, “rediz”, dando um sentido mais sapiente da

experiência: à matéria difusa, “vertente”, o letrado confere a ordem. Entramos

aqui, numa outra configuração das relações sociais, a envolver também as

relações culturais. Contar, seja aqui ou nos contos, é sempre manipular a

linguagem para se defender diante de um Outro. Vejamos o que escreve Ángel

Rama, em “Literatura e cultura” a respeito dessa relação tensa que conduz a

narração:

Scripta Uniandrade, v. 17, n. 2 (2019) Revista da Pós-Graduação em Letras – UNIANDRADE

Curitiba, Paraná, Brasil

ALVES, Ricardo Luiz Pedrosa. Relações sociais em três narrativas de Guimarães Rosa. Scripta Uniandrade, v. 17, n. 2 (2019), p. 229-250.

Curitiba, Paraná, Brasil Data de edição: 03 set. 2019.

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Aqui está delineado o gênero peculiar do relato de Riobaldo, que Roberto

Schwarz reconheceu como uma fala que nasce de um interlocutor que a

promove, no que Unamuno teria definido sagazmente como um “monodiálogo”.

Esse interlocutor que nunca fala, mas sem cuja existência o monólogo não

tomaria forma, fornece a incitação modernizadora que conhecemos por meio

das formas da “reportagem” para investigar uma cultura basicamente ágrafa,

que continua sendo transmitida pela via oral. (RAMA, 2001, p. 272)

A discussão de Rama nos possibilita ler as relações sociais em

dimensão mais temporal do que espacial. O escritor é mediador entre a

injunção modernizadora, de organização da dispersão inerente aos

pensamentos do Outro, aqueles pautados por uma cosmovisão mítica, e os

elementos mais radicais, proto-históricos, presentes nos referentes (o sertão, o

informante, as peripécias). A relação é a estabelecida entre a (suposta)

universalidade da cultura popular e a estilização textual modernista. Voltamos

a Rama, agora em “Os processos de transculturação na narrativa latino-

americana”:

Da “reimersão” nas fontes primigênias, surge uma intensificação de certos

valores peculiares, que às vezes parecem proceder de estratos aparentemente

ainda mais primitivos, mas que ostentam uma capacidade significativa que os

torna invulneráveis à corrosão das contribuições modernizadas. Para um

criador literário, trata-se exclusivamente de puras operações artísticas, mas

nelas está implícita uma prévia proposição cultural, resultado do conflito que

toda uma coletividade está vivendo. (RAMA, 2001, p. 215)

Ocorre que, no caso do romance, o que se estabelece é uma fictícia

defesa de Riobaldo (tanto quanto ao passado violento quanto ao perigo da

narrativa), operada por um mediador (o títere) da literatura culta. Assim, se

com o pacto Riobaldo torna-se de fato jagunço (pois deixa de duvidar), mas um

jagunço especial, pois chefe, resguardado do combate final, o que não é a

unificação artística dos autores dito transculturadores se não um pacto de

integração no nacional? Que operação é essa, a da organização literária do

narrar espontâneo, operando a literatura a partir daquele “pensar mítico”

também discutido por Rama? A mediação do escritor, nesse sentido, ganha o

contorno de um esforço formativo: a organização cultural colocando-se ao

dispor do acúmulo em sobreposição dos retratos nacionais. A perspectiva

dessa mestiçagem é a de um diálogo cordial de linguagens. A estetização da

representação, sob o pretexto de encenar tende a dissimular a auto-delegação.

O escritor (o intelectual) é seu operador necessário, ouvindo-recriando o

Outro). Trata-se do “(...) esforço para construir uma totalidade, dentro da qual

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se recuperam as formas desconexas e dispersivas da narração rural, mas

ajustadas a uma unificação que já procede do impacto modernizador” (RAMA,

2001, p. 273). Se a fala, como advertiu Walnice Galvão (1986, p. 70), é “o

grande unificador estilístico” do romance, ela não pertence integralmente a

Riobaldo. Além de composta pelo mediador, ela é, inclusive, orientada

ficcionalmente pela presença de um interlocutor. A situação narrativa é a do

tribunal da história, sendo o interlocutor, o juiz. Um estudo de relações sociais

nas narrativas de Rosa deve atender, necessariamente, portanto, a essa

injunção da literatura enquanto modernidade em choque com a oralidade.

As observações de Rama mostram que as relações sociais devem ser

lidas antes sobre a construção das formas culturais do que em retratos a

partir do conteúdo das narrativas. As formas culturais (inscritas na

materialidade do texto, como propôs Roberto Schwarz) falam melhor as

relações sociais: por exemplo, o que significa abordar sob o ângulo da

novidade estética (injunção modernizadora) o arcaísmo de linguagem? Nesse

sentido fica evidente a ironia com que se constrói o narrador em “Famigerado”:

trata-se de uma personificação social distante do interlocutor ideal composto

no romance de Rosa. O doutor do conto tem justamente uma distância culta e

jocosa que o doutor que ouve Riobaldo (e o transcreve) não tem. O olhar, no

conto, permanece diante de uma opacidade. A novidade da técnica do romance

implica numa outra proposta de cosmovisão. O conto, assim, parece um

retrocesso, evocando o mundo cindido de anteriores representações literárias

da ruralidade, como em Monteiro Lobato. O que redime Rosa dessa

comparação é justamente a história literária: não é possível ler aquele doutor

interpelado por Damázio como o “narrador sincero” de Lobato. Mais do que um

distanciamento (ironizado, em “Famigerado”), a proposta de abordagem

regionalista de Rosa implica na superação da lógica da palavra (presente nos

autores até os anos 1930, com seus glossários de termos regionais) pela lógica

da sintaxe, que é, também, uma lógica da cosmovisão, em relação dialética

com o impulso modernizador da invenção literária, e que traz outra

cosmovisão.

Para concluir, é importante ainda destacar que o princípio de

interlocução dos discursos sociais como estrutura narrativa é uma analogia e

não um retrato em relação ao princípio dos embates/diálogos sociais. Não se

deve duvidar do poder do silêncio desses interlocutores que refratam pela

modernidade o arcaísmo rural: afinal, é a modernidade que põe o jagunço

letrado a falar. Discordamos, portanto, de abordagens que concedam

demasiada idealização ao procedimento técnico de Guimarães Rosa, seja na

leitura alegórica do enredo, como procede Luiz Roncari (“O tribunal do sertão:

Os chefes”) quanto ao episódio do julgamento de Zé Bebelo, lido por ele como

utopia de uma modernidade que dá corpo no arcaico (aqui tendemos a

acompanhar a interpretação de Willi Bolle, que vê ali um falso contrato social

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de fundação nacional), ou como se procede quanto à voz narrativa, no ensaio

de Sandra G. Vasconcelos (“Vozes do centro e da periferia”): “(...) a adoção de

uma longa fala em primeira pessoa que, mesmo presumindo a presença de um

interlocutor, coloca-o em absoluto segundo plano ao dar voz ao protagonista e,

na prática, incorporar as intervenções do homem letrado e urbano à fala

sertaneja” (VASCONCELOS, 2008, p. 381).

Riobaldo só monologa pela instigação do doutor. Do mesmo modo, é só

nas páginas finais de “Meu tio o Iauretê” que o monólogo de Bacuriquirepa

ganha autonomia, onde ele passa a não conversar mais, narrando (negando a

interlocução) e encarnando (transubstancializando) o mito. Em “Famigerado”,

a posição de objetivação descritiva e jocosa do doutor da cidade é um gesto

calculado (explicitado para o leitor) diante da instabilidade arcaica da

violência. De resto, é importante lembrar que foi essa violência dos

desbravadores (dos que “limparam” o sertão de jagunços, onças e inimigos

políticos) que possibilitou a entrada em cena da cidade ou do observador-

participante que toma notas em Grande sertão: veredas. Ler as relações

sociais nas narrativas de Guimarães Rosa deve necessariamente ser um

exercício de leitura das mediações: mediação da linguagem, mediação da voz

narrativa, mediação da composição e mediação do autor enquanto agente nos

sistemas literário e ideológico.

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RICARDO LUIZ PEDROSA ALVES é doutor em Letras pela Universidade

Federal do Paraná (2016). É investigador junto aos grupos de pesquisa CNPq

“Literatura e modernidade” (UFPR) e “Intelectuais, ciência e nação”

(Unicentro). Atualmente pesquisa a recepção das literaturas africanas nas pós-

graduações brasileiras. Participou do livro Diálogos Interdisciplinares (2018) e

organizou o livro Diálogos com o pensamento social brasileiro (2019).