guimarães rosa e o canto da desrazão

9
Guimarães Rosa e o canto da desrazão GUIMARÃES ROSA

Upload: bruna-novaes

Post on 02-Jan-2016

39 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

Page 1: Guimarães Rosa e o canto da desrazão

Guimarães Rosa e o canto da desrazão

GU

IMA

ES

RO

SA

Page 2: Guimarães Rosa e o canto da desrazão

Yudith RosenbaumPsicóloga. Doutora em Letras (Teoria Literária e Literatura Comparada) pela Universidade de São Paulo. Professora de

Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo.

GU

IMA

ES

RO

SA

Page 3: Guimarães Rosa e o canto da desrazão

www.fatea.br/angulo152

GU

IMA

ES

RO

SA

As relações entre psicanálise e arte, mais es-pecialmente a literatura, constituem uma interface das mais ricas para se pensar a dinâmica do sujeito, seus limites e possibilidades, seus extremos na dor e no êxtase. Apesar de Freud não ter simpatizado com a arte moderna, sabemos que as vanguardas artísticas e literárias do século XX foram fortemente influenciadas pelas noções psicanalíticas, até por-que no período entre guerras nascia um novo câ-none estético que se rebelava contra as formas es-tabelecidas da racionalidade, pregando a libertação de fontes inconscientes (sobretudo o surrealismo, o expressionismo ou mesmo o dadaísmo). Mas, como afirma Perrone-Moisés (2002), “é pelo fato de lidar sempre com metáforas que a literatura não precisou esperar a psicanálise para dizer o inconsciente e seu complexo funcionamento”. Justamente porque o discurso literário não é nem teórico nem explica-tivo, mas condensado e cifrado simbolicamente, é que se torna possível, segundo a ensaísta, atingir o inconsciente dos leitores na sua verdade indizível pela ciência.

Dentro do território dos encontros do discurso literário com o psicanalítico, a desrazão surge como uma figura privilegiada. Há inúmeros autores que transitam pelos destroços da subjetividade, dando expressão artística tanto aos naufrágios psíquicos quanto às reparações e resgates possíveis. Pen-

ResumoO presente artigo pretende discutir três contos de Guimarães Rosa, do livro Primeiras Estórias, em torno da temática da desrazão e suas diferenciações com a loucura. Parte-se de algumas considerações psicanalíticas sobre as relações entre arte e patologia, do ponto de vista da criação, para em seguida focalizar nos contos o modo como as personagens expressam um território não abarcável pela ciência positiva, a que Foucault denominou “Pensamento do Fora”. Entre a sanidade domesticada e a loucura, Rosa dá voz à desrazão em personagens de um sertão desconhecido.

PalavRas chaveGuimarães Rosa; Loucura; Desrazão.

abstRactThis paper discusses three short stories from Guimarães Rosa’s book Primeiras Estórias, concerning the idea of unreason and its differences in relation to madness. Starting from some psychoanalytical considerations about the links between art and pathology, from the point of view of the creative mind, the author observes that the characters in Rosa’s short stories are the expression of a psychological territory that positive science is unable to map, which was named “the thinking from outwards” by Foucault. Between a tamed mental sanity and madness, Rosa gives voice to the unreason of his characters in an unknown inward landscape.

KeywoRdsGuimarães Rosa; Madness; Unreason.

semos, por exemplo, em Clarice Lispector e o seu mundo das feridas abertas, dos estados de limiar (que lembram os do “pré-psicótico”) que se abrem para suas personagens em momentos fugazes e ba-nais do dia-a-dia, fazendo com que a alma diária se perca – como na personagem Ana, do conto “Amor”, despertada para a sua escuridão por um cego mas-cando chiclete no ponto do bonde. Em certa altura, lemos a frase: “O que o cego desencadeara caberia nos seus dias?” (LISPECTOR, 1991, p. 40), problema-tizando a dialética entre a vida da normalidade e a potência imprevista do inconsciente. Tudo isso, ex-presso numa linguagem visceral, desmascarando a face ideológica e envernizada do mundo cotidiano.

Já pelo lado das superações da dor psíquica e física, cabe lembrar o poeta Manuel Bandeira e sua saudável elaboração das perdas melancólicas. A “vida que poderia ter sido e que não foi”1, no verso famoso do poeta, acabou por preencher uma obra inteira, sublimando-se no universo da fantasia poé-tica. Trata-se, então, de uma poesia que fez do ócio e da desesperança uma fonte inesgotável de cria-tividade. No poema Gesso, por exemplo, Bandeira mostra a dinâmica dos processos de destruição e de reconstrução do sujeito em sua relação com objetos perdidos. Ao derrubar e despedaçar uma velha es-tatuazinha de gesso “muito branco, as linhas muito puras”, carcomida pelo tempo, o eu lírico se ajoe-

Page 4: Guimarães Rosa e o canto da desrazão

153ângulo 115, out./dez., 2008,

GU

IMA

ES

RO

SA

lha e recolhe os “tristes fragmentos”, recompondo “a figurinha que chorava”. Os últimos três versos são intraduzíveis: “Hoje este gessozinho comercial/ É tocante e vive, e me fez agora refletir/ que só é verdadeiramente vivo o que já sofreu”2. A operação humana (e humilde) restaura o ser destroçado pela força devastadora do tempo e imprime a marca da experiência viva ao que antes da “queda” (nos sen-tidos literal e simbólico) era imagem “pura” e pre-servada do embate com a realidade.

Já em Guimarães Rosa, autor sobre o qual nos deteremos, as forças de desagregação do sujeito en-contram modos inusitados de superação, saídas im-previsíveis. O estilo singular do autor se revela no modo como revitaliza a palavra, desautomatizando a linguagem viciada e anestesiada. O objetivo desse breve estudo será acompanhar, em três contos do livro Primeiras estórias (Soroco, sua mãe, sua filha, A menina de lá e a terceira margem do rio), o es-paço aberto por Rosa para habitantes diferentes, ex-traordinários e marginais, que nos ensinam a lidar com o enigma da desrazão em sua fronteira com a loucura. Para isso, pretendo servir-me do ensaio de Perrone-Moisés, já citado, que abre o caminho das questões que busco acompanhar aqui. Além dele, inspiro-me no texto Da loucura à desrazão, de Peter Pal Pelbart (1993), que discrimina esses termos do ponto-de-vista filosófico e psicanalítico, iluminando uma possibilidade de leitura dos contos de Rosa.

Mas antes de entrar nos textos escolhidos, gos-taria de abordar inicialmente o campo do processo de criação artística e suas relações com a patologia, acreditando que esse pano de fundo dará suporte aos comentários analíticos da segunda parte. Não penso em teorizar sobre esse tema tão deslizante, tão pouco seguro para nos aventurarmos de forma cien-tífica ou investigativa. Quero, antes, trazer alguns exemplos de artistas diversos em épocas distintas, que parecem dizer algo em comum, transpirando uma mesma idéia. Em seguida, passaria aos textos rosianos e a forma como nos lança para as questões humanas fundamentais.

a doR e a aRte

Ainda que a dor reduza o homem ao silêncio, um deus me deu o poder de exprimir aquilo que sofro.

Goethe

Começo com uma história referente ao pintor cubista Pablo Picasso. Quem nos conta é Segal (1993, p. 100-101) no livro Sonho, Fantasia e Arte:

Quando aos 19 anos visitou Madrid, Picasso en-trou numa depressão profunda que durou cerca de um ano. Essa depressão parece ter sido estimulada ao ver uma arte verdadeiramente grandiosa, que ele sentiu que não conseguiria igualar - particu-larmente a de Velasquez. Na velhice, ele pintou o magnífico quadro Las Meninas, em que fragmen-tou, desmantelou e em seguida reconstruiu a seu próprio modo o quadro de Velasquez. É como se ele tivesse levado anos para reconstruir o que em sua mente quis fragmentar ou fragmentou dentro de si, em sua depressão dos 19 anos. Quando ten-tou essa reconstrução, ele produziu uma obra tão original e imortal quanto o próprio Velasquez.

A conclusão da autora é que “resolve-se a destruição na restauração da forma”, o que, de certo modo, coincide com o poema de Bandeira citado acima.

Um outro exemplo sobre os criadores e suas obsessões vem de uma jovem pintora sueca, Ruth Kjär, que também sofria de depressões recorrentes, nas quais sentia seu interior ser penetrado por um espaço vazio. Narra ainda Segal (1993, p. 95):

Certo dia, um quadro que ela tinha sob emprésti-mo foi tomado de volta pelo pintor e ela não pôde suportar o espaço vazio na parede. Diz seu bió-grafo: Na parede havia um espaço vazio que, de algum modo inexplicável, parecia coincidir com o espaço vazio em seu interior [...] O espaço vazio ar-reganhava os dentes sobre ela de modo hediondo.

Segundo o biógrafo, a intolerância a essa la-cuna irremovível impeliu-a a pintar, dando início a uma carreira de êxito como pintora.

Essa visão, evidentemente kleiniana3, da obra como reparação de processos destrutivos incons-cientes parece se confirmar, entre outras, na fra-se do poeta alemão Rilke : “A beleza é o princípio do terror que mal somos capazes de suportar”. Também Nietzsche corrobora essa noção quando afirma que a arte clássica (nada mais apolíneo e equilibrado) nos ensinou que não há superfícies verdadeiramente belas sem profundezas terríveis.

Compõe, ainda, esse pequeno inventário, que evoca as fontes mais primitivas da arte, um co-mentário do escultor Rodin (apud SEGAL, 1993, p. 100) em 1911:

Chamamos de feio o que é informe, insano, que sugere doença, sofrimento, destruição, o que é

p. 150-158.

Page 5: Guimarães Rosa e o canto da desrazão

www.fatea.br/angulo154

GU

IMA

ES

RO

SA

contrário à regularidade – sinal de saúde [...] Cha-mamos também de feio o imoral, o vicioso, o cri-minoso e toda anormalidade que produz o mal – a alma do parricida, o traidor, o egoísta [...] Mas dei-xe que um grande artista consiga apropriar-se des-sa feiúra. Imediatamente ele a transfigura – com um toque de sua varinha mágica ele a transforma em beleza.

Certamente, a magia nas mãos do artista é o trabalho da forma. Nem sempre, porém, o processo de transposição em símbolo dos fantasmas terríveis que atormentam a alma de um escritor o redime de sua patologia. Assim como temos Picasso e Kjär, capazes de transmutar suas obsessões em arte e por ela “livrar-se” de núcleos obsedantes, do outro lado, avistamos Van Gogh, Artaud, Strindberg, que não foram salvos pela obra realizada. O que define um caminho ou outro talvez encerre um mistério insondável. Seja como for, o que se figura na obra está além do caráter meramente pessoal do drama do artista e suas possíveis patologias ganham uma simbolização universal. O quadro Guernica, para continuar com Picasso, supera não só a inserção histórica da guerra civil espanhola, que o determina diretamente, como também as possíveis fantasias arcaicas de destruição do seu autor biograficamente considerado. O quadro dá forma às fragmentações e aos horrores de todos nós. Aqui, diferentemente do que pensa Freud (1976a) no texto Escritores criativos e devaneios, de 1908, o modo construtivo da obra não representa mero prazer preliminar que nos distrai para a liberação pulsional. A forma da obra é a es-sência mesma dessa liberação, pois sem ela teríamos uma confissão, um diário, um manifesto, um trata-do, um texto programático e não uma obra-de-arte.

as teRceiRas maRgens

É sob esse prisma que eu gostaria de puxar o fio dos contos de Guimarães Rosa e comentá-los brevemente.

O título do primeiro conto que nos interessa, Soroco, sua mãe, sua filha, gera de imediato um es-tranhamento do nome que carrega em si o oco, o buraco, a falta, a solidão de um homem só, que pede socorro, quase anagrama da palavra “Soroco”.

Sua estória é sombria. Ele está levando a mãe e a filha, enlouquecidas, para embarcarem no trem rumo ao hospício de Barbacena. O vagão estava parado no “desvio de dentro”, o que já antecipa a trajetória desviante das mulheres. A exclusão social,

marca do tratamento dado à loucura desde o sécu-lo XVII, aparece em vários detalhes, como mostra Perrone-Moisés (2002): as duas mulheres iam “para longe, para sempre”; o vagão tem grades “feito as de cadeia, para os presos”, dando o caráter de pri-são para o hospício. Como se não bastasse, o vagão está ao lado do curral de embarque dos bois, perto dos empilhados de lenha. A condição animal das doentes é clara.

Na seqüência, diz o narrador: “O carro lembra-va um canoão no seco, navio” (ROSA, 1968, p. 18). Na análise que faz desse conto, Perrone-Moisés (2002) mostra que “a comparação com o navio remete, em nossa cultura, à Nau dos loucos, tema recorrente das obras artísticas da Idade Média. O navio repre-senta a exclusão, o distanciamento, a separação. Os que nele vão se tornam socialmente “ninguém”, e ninguém em particular quer responsabilizar-se pela extradição: “não sendo de ninguém”4. A prosa poé-tica de Rosa diz mais sobre o vagão/navio: “A gente olhava: nas reluzências do ar, parecia que ele estava torto, que na pontas se empinava”(ROSA, 1968, p. 18). O caráter não-linear da loucura, que “entorta” e não se ordena pelos parâmetros racionais, bem como o empinar de um cavalo, metáfora da força irracional, estão condensados nessa frase.

A certa altura, diz o narrador:

a filha –a moça – tinha pegado a cantar, levantan-do os braços, a cantiga não vigorava certa, nem no tom nem no se dizer das palavras – o nenhum. A moça punha os olhos no alto, que nem os santos e os espantados, vinha enfeitiçada de disparates, num aspecto de admiração (ROSA, 1968, p. 19).

O lugar da loucura aparece aqui entre o es-panto e a santidade e se apresenta por um cantar único e incompreensível. O narrador se esforça por determinar o indeterminável na feliz expressão: “o nenhum”; a substantivação do pronome indefinido poderia aludir, como sugere Perrone-Moisés, para a tópica psíquica do inconsciente, que está em todos os lugares e em lugar nenhum.

Mais adiante lemos que a cara da moça era um “repouso estatelado”, como se a loucura fosse o congelamento de um espanto. O narrador explica que a filha “não queria dar-se em espetáculo, mas representava as outroras grandezas, impossíveis” (ROSA, 1968, p. 20).

Não será a loucura justamente essa atualização de um passado imaginário, glórias antigas não vi-vidas, lugar da idealização impossível que não se processou? A expressão condensada diz mais do que mil teorias e faz o texto ressoar múltiplas sig-

Page 6: Guimarães Rosa e o canto da desrazão

155ângulo 115, out./dez., 2008,

GU

IMA

ES

RO

SA

nificações. Mas o movimento que me interessa des-tacar aqui é o contágio desse canto enlouquecido. A mãe, com um “amor extremoso”, começa a cantar a mesma cantiga da filha: “Agora elas cantavam junto, não paravam de cantar”.

Depois de embarcá-las, Soroco começa a voltar para casa.

Mas, parou. Em tanto que se esquisitou, parecia que ia perder o de si, parar de ser. Assim num ex-cesso de espírito, fora de sentido. E foi o que não se podia prevenir: quem ia fazer siso naquilo? Num rompido – ele começou a cantar. Alteado, forte, mas sozinho para si – e era a cantiga, mesma, de desatino, que as duas tanto tinham cantado. Can-tava continuando (ROSA, 1968, p. 21).

Como sempre, as reviravoltas em Guimarães Rosa se dão num repente, de forma supreendente e inesperada (“quem ia fazer siso naquilo?”) (BOSI, 2008, p. 19-50). Soroco não está mais só. Ele guarda o canto da mãe e da filha e se sente forte. No seu ato desatinado, ele continua o que a linhagem feminina, materna e filial, deixou. É dele também esse exces-so de espírito preenchendo o seu oco. Estar fora de sentido parece ser um momento de plenitude, o ins-tante em que a arte acontece (aqui figurada na canti-ga), situada entre a realidade imperativa e limitante, e o mundo imaginário impossível. Lembro aqui o texto de Freud O interesse da psicanálise, de 1913, em que ele afirma que a arte forma um reino interme-diário entre a realidade que faz barreira ao desejo e o mundo imaginário que o realiza. Nesse conto, como nos exemplos de artistas na primeira parte, a arte novamente se alimenta da loucura como fonte de criação, habitando a fronteira entre o real deman-dante e a fantasia escapista. Ou melhor: o que era, sim, loucura nas mulheres, transmuta-se em desrazão nos outros, viabilizando o contato e a comunicação coletiva (FREUD, 1976b, p. 222-223).

É exatamente essa a diferença apontada por Pelbart (1993) que nos permite discriminar dois ter-ritórios psíquicos distintos; desrazão e loucura. Para a visão foucaultiana do autor, nossa cultura vem mudando a relação que mantém com aquilo que ela exclui. “O que está mudando, no fundo, é a relação do homem com sua alteridade”, diz Pelbart (1993, p. 93-94). A loucura, “enquanto fato social, objeto de exclusão, de internamento e de intervenção, já teria representado o encobrimento e o desvanecimento de uma forma de alteridade todavia mais extrema e irredutível: a Desrazão” (PELBART, 1993, p. 94). Relacionar-se com o exterior ao homem, com o que

ele não é, deu-se num trânsito bem maior até a Ida-de Clássica. A partir dali, esse “Exterior“ (que, se-gundo o autor, poderia ser chamado de “Caos do Mundo, Aventura da linguagem, Estranheza da Na-tureza, Transcendência do Divino, Fúria da Morte, Sagrado dos Elementos, Bestialidade do Humano etc”) ficou aprisionado num “personagem social recluso” (PELBART, 1993, p. 94-95). Pelbart (1993, p. 95) afirma, ainda, que a “modernidade, tornando tudo familiar, aprendeu a domesticar o Estranho, seja sob o modo de tutela clínica, da dominação téc-nica ou da oposição antitética”.

O Pensamento do Fora, termo que o autor reme-te a Maurice Blanchot (que cunhou a expressão “o Fora”) e a Foucault (que o desdobrou em “O Pensa-mento do Fora”) estaria, no mundo contemporâneo, na experiência do acaso e do desconhecido que a arte consagra, e se diferenciaria do que chamamos de loucura. Sobre essa “assustadora vizinhança”, Pelbart (1993, p. 96) afirma:

O Pensamento do Fora é aquele que se expõe às forças do Fora, mas que mantém com ele uma re-lação de vaivém, de troca, de trânsito, de aventura. É o pensamento que não burocratiza o Acaso com cálculos de probabilidade, que faz da Ruína uma linha de fuga micropolítica, que transforma a For-ça em intensidade e que não recorta o Desconheci-do com o bisturi da racionalidade explicativa.

Pensando nesse tênue limite entre enlouqueci-mento e desrazão, voltemos ao conto. Da filha para a mãe e desta para Soroco, a corrente da loucura, transmitida pelo canto, percorre os laços familiares e se transmuta em um “Canto do Fora” (aproveitan-do a expressão de Foucault). Quem imaginava que a comunidade estaria livre do mal ao exorcizá-lo para fora da cidade se surpreende ao ouvir a cantiga. He-rança que se renova nos que ficam. E como se não bastasse, é o povo, a gente da cidade, que adere ao canto coletivo:

E foi sem combinação, nem ninguém entendia o que se fizesse: todos, de uma vez, de dó do Soroco, principiaram também a acompanhar aquele canto sem razão. E com as vozes tão altas! Todos cami-nhando, com ele, Soroco, e canta que cantando, atrás dele, os mais de detrás quase que corriam, ninguém deixasse de cantar. Foi o de não sair mais da memória. Foi um caso sem comparação (ROSA, 1968, p. 21).

Esse canto do povoado dá o que pensar. O “desvio de dentro”, na verdade, é de todos. A des-

p. 150-158.

Page 7: Guimarães Rosa e o canto da desrazão

www.fatea.br/angulo156

GU

IMA

ES

RO

SA

razão, que se fez loucura nas mulheres5, pertence a cada um de nós e o conto, com seu canto, nos per-mite perceber isso. Também é verdade que a música das mulheres reaviva as nossas “grandezas impos-síveis” de outrora, que pertencem à nossa memó-ria, individual e coletiva. Antes, elas eram, na boca miúda do povo, “transtornadas pobrezinhas”. Ago-ra, arma-se uma enorme procissão, que ritualiza e organiza o desatino na forma de um canto coletivo, para “não sair mais da memória”. No lugar do es-quecimento, o canto abre espaço para as vozes fora de sentido. Como quer Freud, o inconsciente encon-tra na arte uma forma de expressão que o resguarda da loucura.

O final do conto é pungente, porque a “gente” a que se refere o narrador parece também incluir a nós, leitores que passam a cantar também ao lado de Soroco: “A gente estava levando agora o Soroco para a casa dele, de verdade. A gente, com ele, ia até aon-de que ia aquela cantiga” (ROSA, 1968, p.21). Após a segregação social das doidas na “nau dos loucos”, os sãos que ficaram se unem e entoam o mesmo can-to, abrindo espaço dentro da cultura para a desra-zão e seu saber.

Guimarães Rosa consegue, na verdade, des-patologizar o patológico, quando admite sua ex-pressão coletiva e convoca a todos para uma leitura amorosa do desviante. No momento em que o ser-tão se moderniza (décadas de 50/60, quando os con-tos de Primeiras Estórias são escritos), não há mais espaço para o patológico humanizado, incorporado à comunidade, como o sagrado nos tempos arcaicos. Barbacena é o destino da clausura dessas mulheres, mas o povoado provinciano, isolado e distante, ain-da acolhe o canto e se irmana em torno de Soroco, o órfão sem herdeiros. O elo partido pela ida das mulheres se re-liga numa nova família, unida justa-mente no estranho canto da desrazão.

cá e lá

Passo, agora, ao conto A menina de lá, que também revela um ser à margem do rio corrente, di-ferente do convencional. A menina do título morava “atrás da serra do Mim, quase no meio de um bre-jo de água limpa, lugar chamdo o Temor-de-Deus” (ROSA, 1968, p. 22). Seu apelido é “Nhinhinha”, mi-úda, cabeçudota e com olhos enormes. “Ninguém entende muita coisa que ela fala” por conta do “es-quisito do juízo ou enfeitado do sentido”. De novo, estamos às voltas com seres insólitos, originais, dotados de traços extraordinários ou pouco usuais. Rosa tem predileção por personagens anormais, de-

mentes, cegos, aleijões, crianças (LIMA, 1983). Pa-rece que todos eles acenam para realidades invisí-veis aos demais, como o guia cego de Ana, do conto amor mencionado no início. O efeito nos leitores é de perplexidade, confronto com o que desconhece-mos, com regiões distantes de uma racionalidade confortável, ainda que sufocante e restrita.

Aqui, a protagonista conhece lugares que nin-guém alcança. Aos quatro anos, ela “não incomo-dava ninguém, e não se fazia notada, a não ser pela perfeita calma, imobilidade e silêncios” (ROSA, 1968, p. 22). Esse ser de silêncios fazia referências a “estórias, absurdas, vagas, tudo muito curto: da abelha que se voou para uma nuvem; de uma por-ção de meninas e meninos sentados a uma mesa de doces, comprida, comprida, por tempo que nem se acabava: ou da precisão de se fazer lista das coisas todas que dia por dia a gente vem perdendo. Só a pura vida” (ROSA, 1968, p. 22). Nhinhinha era “su-asibilíssima, inábil como uma flor”. Suas frases in-compreendidas, porém, parecem carregadas de sig-nificação: “Tudo nascendo”, “A gente não vê quando o vento se acaba...”, “O Passarinho desapareceu de cantar”. “Eu quero ir para lá”. Já não estaria, Nhi-nhinha, neste lá que de cá não atentamos? Que ou-tro lugar seria esse, a partir do qual ela emite suas palavras, que não o inconsciente que nos constituiu como sujeitos quando dele nos afastamos pelo re-calque? Se for assim, Nhinhinha seria uma espécie de pré-sujeito, aquém e além da aculturação. Dife-rentemente da loucura da mãe e da filha de Soroco, aqui a personagem se aproxima da desrazão como se lhe pertencesse por natureza e não por refúgio ou escape.

Figurando esse “lugar nenhum” que nos ha-bita, Nhinhinha é pura contemplação, não visa a qualquer objetivo utilitário. Ela consome o feijão, o angu, a abóbora com “artística lentidão”. Quando lhe perguntavam o que está fazendo, ela respondia “alongada, sorrida, moduladamente: Eu... to-u...fa-a-zendo”. Fazia vácuos. Seria mesmo o seu tanto to-linha?” (ROSA, 1968, p. 23).

Com a graça da linguagem, Rosa nos apresenta um ser que está no aqui e no agora do seu presente, o que o gerúndio confirma (o verbo “fazendo” no modo intransitivo). Ela representa uma totalidade que ainda não foi rompida pela civilização. É uma espécie de unidade perdida para onde queremos voltar. Ela parece habitar o “Pensamento do Fora”, mencionado acima, vivendo a gratuidade do instan-te, de onde nascem a contemplação e a arte.

Ela é vida pura, não maculada, não contami-nada pela finalidade dos atos. Nhinhinha não se “importava com os acontecimentos”, Seu estado é

Page 8: Guimarães Rosa e o canto da desrazão

157ângulo 115, out./dez., 2008,

GU

IMA

ES

RO

SA

atemporal. O contraste com nosso saber funcional e interessado é evidente. Ela nos ensina uma entrega à vida que só o desapego possibilita. Sua palavra, de tão intensamente colada às coisas que evoca, passa a realizar desejos como a magia de um “abre-te Sésa-mo”. Essa palavra mágica, como não poderia deixar de ser, é também a palavra poética, “palavra-coisa”, no dizer de Sartre, palavra que não se submete ao referente externo, palavra autônoma, que aponta para si mesma, para sua origem.

Os desejos de Nhinhinha, contudo, são sim-ples: uma pamonhinha de goiaba, um sapo... Tan-to que seus pais queriam que ela desejasse a chuva para o povoado seco. “Mas, não pode, ué...”, dizia ela. “Deixa, deixa”, falava. O desejo verdadeiro vem de um lugar que não é o da demanda, diria Lacan. “Mas daí a duas manhãs quis: queria o arco-íris. Choveu” (ROSA, 1968, p. 25).

De repente, Nhinhinha adoeceu e morreu. Em meio a comoção dos pais, precisavam encomendar o caixão. Tiantônia criou coragem e disse que Nhi-nhinha tinha antes falado despropositado desatino: “que queria um caixãozinho cor-de-roa, com enfei-tes verdes brilhantes”. Ela previra a própria morte. Ou a desejara? Mistérios rosianos. O que importa é que ela se foi sem que houvesse tempo de ser en-cerrada na personagem social do louco por algum doutor da cidade.

o enigma do Pai

Por fim, faço um breve comentário do conto a terceira margem do rio que, em certo sentido, é preparado pelo conto anterior, trazendo tam-bém um outro ser de silêncio. Como diz Galvão (1978, p. 37-41), “Às vezes, Guimarães Rosa escre-ve como quem está em estado de graça; ‘A Terceira Margem do Rio’ é um desses casos”.

O conto começa com o narrador/protagonista dizendo: “Nosso Pai era homem cumpridor, ordei-ro, positivo; e sido assim desde mocinho e meni-no, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação” (ROSA, 1968, p. 32). De novo, a razão sensata busca com-preender o que lhe escapa. Como pode um ser da ordem, positivo e cumpridor, deslocar-se das margens conhecidas e permanecer no meio do flu-xo do rio, na sua terceira margem, nesse lugar que não é, já que um rio tem duas margens, não três? O plural da primeira pessoa – “nosso pai”- uni-versaliza a personagem, iniciando o texto em tom de oração religiosa, um Pai-nosso que coletiviza a experiência inominável do pai. Sua decisão de

se lançar numa canoa eternamente, sem nenhum motivo decifrável, encerra um enigma insolúvel para os que ficam na margem do lado de cá: “A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente” (ROSA, 1968, p. 33). Pensou-se em doideira, promessa, lepra. Mas o pai permanece entre a loucura e a sanidade, como a emitir seus sinais e convocar a todos para que escutem seus próprios chamados, como ele atendeu ao seu. Nenhum discurso do mundo instituído, nem padre, nem soldado, nem jornalista, consegue demover o pai de seu rito sacrificial. Ele se en-trega ao desamparo, à fome a ao frio, reeditando no sertão mineiro o destino sagrado de outros incompreendidos, Buda, Jesus... O pai se liberta de sua dimensão carnal, buscando uma unidade anterior à queda, anterior à divisão da qual a pa-lavra é testemunha.

Ancorado em um espaço indefinido e incon-cebível para a razão positiva, esse pai habita uma negatividade radical, a julgar pela quantidade de negativas do texto: ”Nosso pai não dizia nada”, “Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhu-ma parte”6. Ele se faz presente nessa ausência e sua palavra se torna mais potente na mudez. Rosa parece crer numa comunicação que prescinde do código compartilhado, pois esse não alcança mais as verdades da alma. Há um voto de silêncio mis-terioso, que deixa o filho preso, fixado a esse pai inacessível. O conto desenha dois tipos de imobi-lidade: a do pai, sabedoria estável no devir móvel e sempre cambiante das águas, outro forte símbo-lo do inconsciente; a do filho, paralisado na culpa neurótica: “De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio – pondo perpétuo (ROSA, 1968, p. 36).” Os demais da família se mudaram, en-quanto o narrador envelheceu atrelado ao destino do pai: “Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu permaneci, com as bagagens da vida”(ROSA, 1968, p. 35).

Como interpretar o final do conto? O filho apela ao pai para que volte e deixe que ele tome o seu lugar na canoa; mas ao ver o pai enfim re-tornando, ele foge de pavor. Sua pergunta, “Sou homem, depois desse falimento?”, talvez devesse ser feita como afirmação: “Sou homem [só] depois desse falimento”7. Aqui a castração desse cordão umbilical com o pai é que permite que o filho so-breviva, que assuma a sua própria identidade, diferente da do pai, e se torne sujeito de sua histó-ria: narrador do próprio conto. O maior sacrifício é não ir para o rio no lugar do pai. A hora e a vez de cada um são insubstituíveis: “Mas, então, ao

p. 150-158.

Page 9: Guimarães Rosa e o canto da desrazão

www.fatea.br/angulo158

GU

IMA

ES

RO

SA

ReFeRênciAS

BOSI, Alfredo. céu, inferno. São Paulo: Duas Cidades: Ed. 34, 2008.

FREUD, S. Escritores criativos e devaneios [1908]. In: OBRAS completas: vol. 5. Rio de Janeiro: Imago, 1976a.

FREUD, S. O interesse da psicanálise do ponto-de-vista da estética. In: ______. O interesse da Psicanálise. Rio de Ja-neiro: Imago, 1976b. (Obras Completas, v. 13).

GALVÃO, Walnice. Do lado de cá, In: ______. Mitológica rosiana. São Paulo: Ática, 1978.

KLEIN, Melanie. contribuições à Psicanálise. Tradução Mi-guel Maillet. 2. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1981.

LIMA, Luiz Costa. O mundo em perspectiva. In: COUTI-NHO, Eduardo (Org.). guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Ci-vilização Brasileira, 1983. (Fortuna crítica; 6)

LISPECTOR, Clarice. Laços de família. Rio de Janeiro: Fran-cisco Alves, 1991.

PELBART, Peter Pal. a nau do tempo rei: 7 ensaios sobre o tempo da loucura. Rio de Janeiro: Imago, 1993.

PERRONE-MOISÉS, Leyla. Para trás da serra do mim. scripta, Belo Horizonte, v. 5, n. 10, 2002.

RIVERA, Tânia. A terceira margem do rio: o pai e o gozo. In: ______. Guimarães Rosa e a psicanálise: ensaios sobre ima-gem e escrita. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p. 81-91.

ROSA, Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1968.

SEGAL, Hanna. Arte e posição depressiva. In: ______. so-nho, fantasia e arte. Tradução Belinda Mandelbaum. Rio de Janeiro: Imago, 1993.

n o ta s

1 O verso integra o poema “Pneumotórax”, do livro Libertinagem, de 1930.

2 O poema pertence ao livro O Ritmo Dissoluto (1924).

3 Melanie Klein, em seu texto “Situações de ansiedade infantil refletidas numa obra de arte e no impulso criador”, de 1929, estabelece uma relação entre o impulso criador e a necessidade de reparação do objeto interno destruído. O ensaio de Klein encontra-se em contribuições à Psicanálise, p.283-295.

5 A ensaísta chama atenção, também, para a inclusão do narrador nesse “a gente olhava”, marcando bem a tentativa de diferenciar os sãos dos loucos,

menos, que, no artigo da morte, peguem em mim e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro – o rio (ROSA, 1968, p. 37)”.

O que nos fica desses textos, entre tantas outras possibilidades de entendimento, é um convite para encontrarmos nessas personagens o que também nos constitui. Elas não têm nome. São todo mundo. O papel do estranho, do inusitado, do inominável, perdido no sertão mineiro, pobre e isolado, é reme-ter-nos à nossa condição humana, sempre precária e surpreendente. Esses Outros da obra de Rosa ha-bitam as terceiras margens de nós mesmos. Estão aí para fazer-nos ouvir, através das crianças, dos seres alógicos, das criaturas rústicas, algo que se encontra distante das nossas palavras sensatas.

Para Foucault, só nas obras literárias é possível ouvir plenamente a voz da desrazão. De fato, pela literatura podemos nos aproximar de forma menos defensiva desse território tão temido no cotidiano, justamente por aludir ao que está “atrás da Serra do Mim”. Para Pelbart (1993, p. 98), “é sempre por um triz que um desarrazoado fica louco ou que um delirante vira um pensador do fora, [...] como se fosse preciso quase enlouquecer para pensar arris-cadamente”. Pelo caminho proposto aqui, a obra de Rosa traz o canto da desrazão como espaço de um pensamento sem fronteiras, temido e desejado por todos nós.

“O Sr sabe o que é o silêncio? É a gente mesmo, demais.”

Riobaldo, em Grande sertão: veredas

separação sempre temerosa e tênue. Daí a atitude defensiva dos curiosos de “falar com sensatez, como sabendo mais do que os outros a prática do acontecer das coisas”. Rosa ,mostra-nos o temor dos sãos de se identificar com os loucos (PERRONE-MOISÉS, 2002, p. 212).

6 Segundo Pelbart (1993, p. 97), na loucura “o sujeito ficaria exposto sem proteção alguma à violência desse Fora, e sem condições de estabelecer com ele um vaivém ou uma relação”.

7 Esse aspecto foi notado em detalhes por Tânia Rivera, no ensaio “A terceira margem do rio: O pai e o gozo”, p. 81-91.

8 Agradeço a Noemi Jaffé por essa idéia de reverter a pergunta em afirmação, além de outras idéias que pude compartilhar sobre o autor em curso desenvolvido pela professora na Nau Estudos da linguagem, em 1999.