guimarães rosa e budismo

Upload: raffaela-souza

Post on 13-Jan-2016

18 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Guimarães Rosa Índia Budismo Grande Sertão: Veredas.

TRANSCRIPT

  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS

    FACULDADE DE LETRAS

    BRUNO MAZOLINI DE BARROS

    A EXISTNCIA ILUSRIA DO DIABO EM GRANDE SERTO: VEREDAS: RASTROS BUDISTAS NA OBRA DE JOO GUIMARES ROSA

    Porto Alegre 2014

  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS

    FACULDADE DE LETRAS

    BRUNO MAZOLINI DE BARROS

    A EXISTNCIA ILUSRIA DO DIABO EM GRANDE SERTO: VEREDAS: RASTROS BUDISTAS NA OBRA DE JOO GUIMARES ROSA

    Dissertao apresentada como requisito para a obteno do grau de Mestre em Letras, rea de concentrao Teoria da Literatura, pelo Programa de Ps-Graduao da Faculdade de Letras da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul.

    Orientadora: Profa. Dra. Ana Maria Lisboa de Mello

    Porto Alegre 2014

  • BRUNO MAZOLINI DE BARROS

    A EXISTNCIA ILUSRIA DO DIABO EM GRANDE SERTO: VEREDAS: RASTROS BUDISTAS NA OBRA DE JOO GUIMARES ROSA

    Dissertao apresentada como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre em Letras, rea de concentrao Teoria da Literatura, pelo Programa de Ps-Graduao da Faculdade de Letras da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul.

    Aprovada em ___ de _____________ de 2014.

    BANCA EXAMINADORA:

    ___________________________________________ Profa. Dra. Ana Maria Lisboa de Mello (Orientadora) PUCRS

    ___________________________________________ Profa. Dra Maria Tereza Amodeo PUCRS

    ___________________________________________ Prof. Dr. Demtrio Alves Paz - UFFS

    Porto Alegre 2014

  • Para Andra Lima, Jane Tromge e Jigme Tromge.

    Sempre.

  • AGRADECIMENTOS

    De maneira geral, a todos dos meus pais at algum profissional da sade

    desconhecido que possibilitaram a sustentao da minha vida, das mais

    diferentes maneiras, ao longo de quase trinta anos, especialmente em 2012.

    A todos os professores que, generosamente, dispuseram do seu vigor,

    conhecimento e compaixo para fazer com que uma criana que no sabia ler

    conseguisse construir algum conhecimento para dar rumo sua prpria vida. Em

    especial, aos professores budistas que ainda no abandonaram um estudante de

    capacidade e conduta duvidosas como eu.

    A todos os professores da FACCAT, especialmente Profa. Luciane Wagner

    Raupp, o dedicado suporte no desenvolvimento inicial deste projeto, como um

    trabalho de concluso de curso.

    Profa. Ana Maria Lisboa de Mello, a coragem em aceitar a proposta para a

    dissertao, a pacincia com o orientando e o encanto que gera toda vez que fala de

    qualquer texto literrio.

    Profa. Maria Eunice, com grande admirao.

    Ao Prof. Carlos Reis, a erudio, clareza e disponibilidade.

    Ao Prof. Ricardo Kralik, os produtivos encontros lusitanos.

    Profa. Maria Tereza Amodeo, Profa. Regina Kohlrausch e ao Prof.

    Ricardo Barberena.

    A todos os colegas que, junto aos professores, tornaram as aulas verdadeiras

    aulas; que foram companheiros seja para discutir um texto literrio, seja para fazer

    uma visita.

    Aos funcionrios da PUCRS e CAPES, o financiamento da bolsa.

    Ao Dr. Charles Reidner, Dra. Beatriz Seligman e, especialmente, Dra.

    Andra Moretto. A todos os enfermeiros e funcionrios da Santa Casa e do Instituto

    Kaplan.

    A todos que fizeram com que eu chegasse em Porto Alegre a cada semana.

    A todos que me hospedaram na cidade nestes dois anos: Dbora, Nenung,

    Helena, Luciano, Letcia, Graa, Edleusa, Rita, Fbio.

  • Mas o dono do stio, que no sabia ler nem escrever, assim mesmo possua um livro, capeado em couro, que se chamava

    o Senclr das Ilhas, e que pedi para deletrear nos meus descansos. Foi o primeiro desses que encontrei, de romance,

    porque antes eu s tinha conhecido livros de estudo. Nele achei outras verdades, muito extraordinrias.

    Grande serto: veredas, Joo Guimares Rosa

    Mas tem que ser assim: s podemos compreender o essencial partindo dos detalhes, esta a experincia que tirei tanto dos

    livros como da vida. preciso conhecer todos os detalhes, porque nunca se pode saber qual ser importante depois, e

    que palavras esclarecero alguma coisa.

    As brasas, Sndor Mrai

  • RESUMO

    O presente trabalho tem como objetivo investigar os rastros de budismo em

    produes de Joo Guimares Rosa, como alguns poemas de Magma, o conto

    Minha gente, de Sagarana, o prefcio Aletria e Hermenutica, de Tutamia, e a

    narrativa Cipango, de Ave, Palavra, e, com base nelas, demonstrar a presena de

    um aspecto da filosofia budista a ideia de existncia ilusria dos fenmenos

    em Grande serto: veredas, condensado em um raciocnio de Riobaldo sobre a

    existncia do diabo. Lidas atravs do conceito de paradigma indicirio de Carlo

    Ginzburg, em que informaes marginais de uma obra podem revelar um dado

    maior, as referncias ao Buda e ao budismo, apontadas nessa pesquisa, explicitaro

    que a presena budista no meramente perifrica na obra do autor, mas, inclusive,

    significativa para a construo de uma proposta de leitura de Grande serto:

    veredas.

    Palavras-chave: Grande serto: veredas. Joo Guimares Rosa. Budismo. Iluso.

  • ABSTRACT

    The present study aims to investigate the traces of Buddhism in the work of Joo

    Guimares Rosa, as in some poems of Magma, in the short story "Minha gente",

    from Sagarana, in the preface "Aletria e Hermenutica", from Tutamia, and in the

    narrative "Cipango" of Ave, Palavra, and, based on them, demonstrate the presence

    of one aspect of Buddhist philosophy the idea of the illusory existence of

    phenomena in Grande serto: veredas, condensed in a reasoning of Riobaldo on

    the existence of the devil. Read through the concept of evidence paradigm of Carlo

    Ginzburg, in which marginal data of a work may reveal a larger information, the

    references to Buddha and Buddhism, which are highlighted in this research, would

    spell out that the Buddhist presence is not merely peripheral on the work of the

    author, but is even significant for the construction of a reading proposal for Grande

    serto: veredas.

    Keywords: Grande serto: veredas; Joo Guimares Rosa; Buddhism; Illusion

  • SUMRIO

    1 INTRODUO: UMA MANEIRA DE LIDAR COM O BUDISMO NO SERTO ..... 9 2 PEGADAS DE BUDA NO SERTO ...................................................................... 16 2.1 RASTROS NAS VEREDAS ................................................................................ 16 2.2 O PACTO DE GUIMARES ROSA COM O BUDISMO ..................................... 21 2.2.1 Tutamia: a orientao .................................................................................. 23 2.2.2 Magma: o Oriente na poesia ......................................................................... 27 2.2.3 Sagarana: Buda no meio da nossa gente .................................................... 34 2.2.4 Ave, palavra: Buda no cerrado ..................................................................... 38 3 DIABO E BUDA NO REDEMUNHO DE GRANDE SERTO: VEREDAS ............ 41 3.1 OS POSSVEIS CAMINHOS DO DEMO ............................................................ 41 3.2 UM BUDISMO QUE CABE NO SERTO ........................................................... 44 4 (DES)CRENA DE RIOBALDO ACERCA DA EXISTNCIA DO DIABO ............ 54 4.1 O DIABO NO EXISTE ....................................................................................... 54 4.2 O DIABO EXISTE ................................................................................................ 57 5 A MEDIDA DA EXISTNCIA DO DIABO ............................................................... 61 5.1. A VISO BUDISTA NO SERTO ...................................................................... 62 5.1.1 Diabo composto ............................................................................................. 62 5.1.2 Diabo dependente .......................................................................................... 65 5.1.3 Diabo impermanente ...................................................................................... 67 5.2 RIOBALDO: SERTANEJO ERUDITO? ............................................................... 70 5.2.1 Conscincia da impermanncia de tudo .......................................................... 73 5.2.2 A existncia ilusria do diabo ........................................................................... 76 6 UM JAGUNO DE INSIGHTS ............................................................................... 80 6.1 CONFLITOS E TRANSFORMAES ................................................................ 84 6.2 TUDO ILUSRIO ............................................................................................. 88 7 CONCLUSO: RIOS DE INTERPRETAO ....................................................... 92 REFERNCIAS ......................................................................................................... 97

  • 9

    1 INTRODUO: UMA MANEIRA DE LIDAR COM O BUDISMO NO SERTO

    O quo inusitado, ou descabido, pode ser afirmar que o raciocnio do famoso

    jaguno de Grande serto: veredas (2006) , no mnimo, muito prximo da viso

    budista sobre a existncia dos fenmenos? Como, no interior de Minas Gerais,

    Riobaldo vai articular um pensamento formalizado sculos antes, na ndia?

    Em primeiro lugar, a apario de Buda e do budismo em literatura de lngua

    portuguesa no algo to incomum. Ela observada em produes literrias que

    datam, pelo menos, desde o sculo XIX, atravessando o sculo XX e chegando ao

    sculo XXI. Mesmo que bastante incidentais tanto em relao ao texto em que

    aparecem quanto obra de alguns autores essas aparies demonstram como

    isso no algo particular obra de Guimares Rosa, e que Buda j tem um

    caminho, mesmo que curto e um tanto discreto, na literatura de lngua portuguesa.

    Em Portugal, em A correspondncia de Fradique Mendes, de Ea de Queiroz

    (2009), o narrador discute a possvel superioridade do entendimento do budismo

    acerca da bondade em relao ao cristianismo. Ainda no sculo XIX, no Brasil,

    pode-se apontar o caso dos poemas de Eu, de Augusto dos Anjos (2010), no qual

    cinco referncias explcitas podem ser identificadas.

    No sculo XX, o texto de Fernando Pessoa (1995) intitulado Sakyamuni,

    postumamente publicado, em que o poeta portugus trata de alguns aspectos da

    doutrina budista, pode ser um exemplo da presena de Buda na literatura de lngua

    portuguesa. Outro caso a discreta apario no poema Ex-voto, em Orculos de

    maio, de Adlia Prado (1999), em que o eu-lrico confessa a incapacidade de se

    tornar budista. H a referncia tambm no poema Sem budismo, de Distrado

    venceremos, de Paulo Leminski (2013). Um caso na prosa brasileira, por exemplo,

    o romance de Joo Ubaldo Ribeiro (1999), A casa dos budas ditosos, cuja narradora

    no deixa de explicitar o impacto que esttuas de budas, que viu em um templo

    chins, causaram em sua vida esse templo d nome ao romance.

    No sculo XXI, em apenas uma dcada, as aparies persistem: em

    Monglia, de Bernardo Carvalho (2003), o narrador observa a peculiar manifestao

    do budismo no pas asitico que d ttulo ao texto. Em Barba ensopada de sangue, a

    personagem que no reconhece face nenhuma, nem a prpria, criada por Daniel

    Galera (2012), entra em contato e questiona alguns pontos dos ensinamentos de

    Buda no balnerio de Garopaba, em Santa Catarina. J em Hani, um ex-monge

  • 10

    budista do Vietn e seu objeto de f cruzam a vida do protagonista David, filho de

    brasileiro, em Chicago, no romance de Adriana Lisboa (2013)1.

    Em segundo lugar, a presena budista em Grande serto: veredas j foi

    indicada por relevantes estudiosos da obra do autor mineiro. Antes de enumerar

    alguns desses apontamentos, no entanto, vale observar as diferentes linhas de

    estudos que predominam em relao ao romance de Guimares Rosa e como a

    proposta de analisar o raciocnio de Riobaldo, alinhada filosofia budista, pode

    seguir veredas j mapeadas.

    Wille Bolle (2004), em grandeserto.br, prope demonstrar como o romance de

    Joo Guimares Rosa um retrato do Brasil, um romance de formao do pas. A

    fim de situar sua prpria proposta no quadro de estudos sobre Grande serto:

    veredas, Bolle sistematiza o que seriam as cinco abordagens recorrentes sobre a

    obra de Guimares Rosa.

    A primeira maneira de abordagem composta pelas linhas de estudos

    lingusticos e estilsticos, que visam subsidiar a interpretao do texto. A segunda,

    pelas abordagens de gnero, composio e estrutura textuais, que buscam dar

    conta da intertextualidade e situar o texto no universo literrio. A terceira, pela crtica

    gentica, que busca elucidar o processo de criao da obra. A quarta, pelas

    interpretaes esotricas, mitolgicas e metafsicas. A quinta, pelas interpretaes

    sociolgicas, histricas e polticas.

    Para Bolle, nos ltimos anos, houve uma polarizao dessas duas ltimas

    linhas, sendo a quarta uma tendncia recorrente na interpretao do romance. O

    autor afirma, por exemplo, que na questo de anlise sobre o pacto com o diabo, at

    a apresentao de seu trabalho, a anlise histrica foi eclipsada por uma

    sobrevalorizao dos aspectos existenciais, esotricos, msticos e metafsicos

    (BOLLE, 2004, p. 147).

    Provavelmente, a princpio, este trabalho poderia ser encaixado na quarta

    categoria, pelo fato de abordar a questo da presena de elementos budistas na

    obra de Guimares Rosa. No entanto, este estudo no se resume a isso, visto que

    questes intertextuais e de composio da obra tambm foram levadas em

    considerao na anlise das referncias budistas, alm de elementos de estudos 1 Esses so apenas exemplos que visam ilustrar a presena de elementos budistas na produo literria em portugus, e esta breve enumerao no se prope a abarcar a totalidade de obras com esse tipo de elementos e, muito menos, julgar a importncia deles na interpretao de cada um desses textos.

  • 11

    lingusticos terem sido usados como suporte na interpretao. H, ainda, o fato de

    que alguns apontamentos que do suporte a esta dissertao vm de estudiosos

    que Bolle exemplifica como representantes de grupos de interpretaes

    sociolgicas, como Walnice Galvo, pioneira nesse tipo de crtica.

    Por um lado, por diversos motivos, no se prope aqui um ensaio com a

    abrangncia do estudo de Bolle (2004, p. 148), o qual visa extrair dos elementos

    esotricos, mticos e metafsicos conhecimentos histricos, polticos e sociais; por

    outro, com a presente proposta, mais elementos so explicitados para que outras

    interpretaes e estudos possam surgir e, talvez, outros conhecimentos histricos,

    polticos e sociais possam, futuramente, ser extrados das obras de Guimares

    Rosa.

    O estudioso alemo, explicitando uma das bases de sua proposta de

    interpretao de Grande serto: veredas, traz Os sertes como uma obra precursora

    do romance de Rosa e afirma:

    No est em jogo, bem entendido, nenhuma relao causal, gentica ou determinista entre as duas obras, algo que possa ser empiricamente comprovado, mas uma afinidade eletiva, uma relao intertextual, cujo pano de fundo so dimenses mais abrangentes, como a questo do gnero retratos do Brasil e um presumvel projeto emancipatrio da literatura brasileira. Assim concebido, o mtodo comparado e contrastivo pode se tornar um procedimento heurstico bastante frutfero nesta anlise e interpretao do romance de Guimares Rosa (BOLLE, 2004, p. 30).

    Este trabalho prope, em certa medida, algo semelhante ao que Bolle

    realizou, apesar de os dois estudos estarem em campos diferentes e de possurem

    abrangncias especficas. No se busca comprovar, aqui, com total certeza, que

    budismo o que Riobaldo diz, apesar de serem evidentes as marcas de budismo em

    outros textos do autor mineiro. Ou seja, no o ponto afirmar que Guimares Rosa

    usou, indubitavelmente, budismo na composio do romance. No entanto, seguindo

    marcas budistas na obra do autor e estabelecendo relaes intertextuais, prope-se

    ento uma outra interpretao, e no uma leitura absoluta e redutora, sobre a forma

    como o diabo existe em Grande serto: veredas e sobre como isso construdo,

    tanto dentro do prprio romance quanto, de certa forma, em um panorama de textos

    do autor.

    Raffaela

    RaffaelaNotaBem como pretendido por mim e com apoio na hermenutica de Gadamer e com os nveis, dentre eles o subliminar, apontado pelo meu orientador Dilip Loundo em Dilogos Tropicais.

  • 12

    Dessa maneira, usando de diferentes linhas de abordagem crtica da obra do

    autor mineiro, alm de dados explcitos de sua poesia e narrativa, pode-se identificar

    uma sinalizao de que Buda deixou pegadas no serto de Guimares Rosa.

    O primeiro exemplo de como essa presena budista na produo do mineiro

    j foi indicada pela fortuna crtica a obra As formas do falso, de Walnice Galvo

    (1972), autora representante tanto de leituras de crtica gentica quanto sociolgicas

    de Grande serto: veredas. Em seu estudo, Galvo (1972, p. 14) afirma que

    Riobaldo detm uma concepo metafsica veiculada pelo espiritismo popular, mas

    que tem a sofisticao do budismo e das ideias de Herclito e que as diversas

    histrias que se emaranham no incio do romance como a de Joo Pind e de

    Maria Mutema lembram alguns textos budistas e confucianos.

    Joo Adolfo Hansen (apud DICK; FACHIN, 2008), outro estudioso da obra de

    Joo Guimares Rosa, ao ser perguntado sobre como essa narrativa dialoga com

    outras obras, afirma que h [...] muita coisa oriental, hindusta, budista etc. no

    romance. Tanto Hansen quanto Galvo no apontam direta e extensivamente ou

    porque no se propem ou porque no era relevante no momento em questo, para

    os seus estudos o que h de budismo e como isso est articulado na obra do

    autor mineiro.

    J Francis Utza (1994) o faz, de certa maneira, quando explicita relaes do

    budismo zen com o Aikid como as noes de Budos em personagens

    secundrias da obra. Mas essas relaes, assim como as personagens que cita, so

    pouco relevantes no entendimento da obra como um todo por meio da filosofia

    budista, pois lidam com situaes ou personagens bem pontuais do romance, e no

    com um escopo maior. Para Utza (1994, p. 167), Vupes, o alemo, porta valores

    da filosofia dos Budos: embora domine perfeitamente as tcnicas, conhece a

    superioridade do esprito sobre a fora bruta e, como os monges zen, se desloca

    sem armas. Outro personagem o do-Zabudo, cujas caractersticas e o prprio

    nome trazem marcas dos Budos e do zazen2.

    A presena budista em Grande serto: veredas, no entanto, no se restringe

    noo de Budos e construo de uma personagem secundria do romance. H, no

    raciocnio de Riobaldo sobre a existncia do diabo, uma familiaridade grande com

    2 A ideia de Budos, ou o caminho do combate, est presente, por exemplo, na base filosfica de artes marciais como o Aikid, e est calcada na busca da superao da dualidade vencedor-vencido. Zazen a disciplina meditativa do budismo zen.

  • 13

    um aspecto da filosofia budista desenvolvido extensivamente pela escola filosfica

    indiana Madhyamika.3 Essa viso budista possui nuanas complexas no s

    filosficas, mas tambm histrico-culturais e, aqui, a fim de explicitar a presena

    da viso budista no romance, s um recorte da filosofia ser tomado como objeto de

    estudo. Basicamente, essa escola filosfica vai refutar argumentos ao invs de

    propor ideias em si que postulam a existncia ou uma no existncia intrnseca

    dos fenmenos. Uma das formas de refutao a essas postulaes a anlise das

    caractersticas de permanncia, de dependncia e de composio dos fenmenos,

    que, se no possurem essas trs qualidades, so considerados desprovidos de

    uma existncia verdadeira.

    Essas trs caractersticas so as mesmas que Riobaldo analisa no diabo, j no

    incio do romance. Porm, chegar concluso ou ao mero apontamento de que o

    raciocnio do jaguno Riobaldo sobre a existncia do diabo muito prximo do

    seno o prprio raciocnio budista sobre a existncia dos fenmenos uma tarefa

    relativamente arriscada. Porque fogem vista do leitor, e do prprio pesquisador,

    todas as estratgias de construo ficcional e toda a bagagem intelectual de Joo

    Guimares Rosa, e, assim, realizar a aproximao entre uma narrativa Roseana e

    um aspecto da filosofia budista significa tentar desbravar um terreno delicado,

    veredas talvez infindveis, bastante perigosas.

    Perpassam tanto o romance quanto o restante da obra do autor elementos

    culturais, religiosos e filosficos das mais diversas origens, e a explicitao desse

    raciocnio budista em Grande serto: veredas no visa anular a coerncia dessas

    outras vises ou negar a presena delas no romance. De qualquer maneira, no h

    como afirmar categoricamente que filosofia budista o que Riobaldo articula ao seu

    interlocutor. H, porm, como Carlo Ginzburg (1989) sugere em Sinais: razes de

    um paradigma indicirio, captulo de Mitos, emblemas e sinais: morfologia e histria,

    o caminho de seguir, pelas obras do escritor mineiro, rastros, indcios que do

    suporte a essa proposta. Segui-los no significa, no entanto, somente us-los para

    levantar a hiptese: como o prprio historiador italiano declara, esses rastros so a

    confirmao da hiptese em si.

    Assim sendo, a primeira parte deste trabalho corresponde ao mapeamento dos

    3 Ou Caminho do Meio. Proeminente escola filosfica budista estabelecida por Nagarjuna, no sculo II, na ndia. Faz parte da base filosficas de tradies budistas do Japo, da China e do Tibete, por exemplo.

  • 14

    rastros. O critrio de seleo em relao a eles foi o fato de serem referncias

    explcitas ao budismo. Isso significa que no foram levadas em considerao, como

    presena budista na obra do autor, possveis interpretaes de algum texto, mas

    somente ndices compostos pelas palavras Buda, budismo, zen etc.

    A pesquisa lida com rastros de budismo em poemas de Magma (1997), em

    uma novela de Sagarana (2001b), em um prefcio de Tutamia (2001c) e em uma

    narrativa de Ave, palavra (2001a). Cada uma dessas marcas budistas no texto de

    Guimares Rosa possui um grau de importncia diferente; no entanto, tomando-as

    em conjunto, elas parecem apresentar o seguinte padro, que se provou til na

    anlise da identificao de um possvel raciocnio budista nas divagaes de

    Riobaldo sobre a existncia do diabo: a possibilidade da presena do elemento

    oriental no serto, a presena de um narrador erudito e o fato de o elemento oriental

    estar ligado a um processo de transformao. Esse padro aparece tambm em

    Orientao, conto de Tutamia, que narra a passagem de um chins pelo interior

    de Minas Gerais.

    Na segunda parte, abordada a questo da presena do diabo no romance e a

    forma de budismo que d suporte anlise proposta. O diabo, no romance de

    Guimares Rosa, como apontado por crticos como Antonio Candido, Walnice

    Galvo, Kathrin Rosenfield, tem um papel crucial no texto, e a presena dele no

    significativa somente como elemento folclrico ou religioso. Em Grande serto:

    veredas, o diabo o elemento que, ao ser analisado por Riobaldo, desencadeia

    questionamentos profundos no ex-jaguno.

    Esses questionamentos so os que podem ser tomados como uma possvel

    presena budista no romance. Para melhor analis-los, ainda na segunda parte, h

    uma apresentao de o que poderia ser a base do budismo e dos apontamentos da

    escola filosfica Madhyamaka.

    Aps a identificao dos rastros, a delimitao de seus padres e do

    esclarecimento tanto da faceta do budismo quanto da faceta do diabo, chega-se ao

    corpo principal da dissertao: a discusso sobre a forma como o diabo existe,

    segundo o raciocnio de Riobaldo, em Grande serto: veredas. Pretende-se mostrar,

    no presente estudo, um fundamento para o raciocnio, um recorte especfico que

    representaria a anlise do jaguno sobre a existncia ilusria do diabo. medida

    que essa base explicitada, ela precisa ser confrontada com os argumentos

    budistas. Esse confrontamento o que poder proporcionar uma melhor visibilidade

    RaffaelaRealce

  • 15

    presena do conceito budista de iluso no romance de Guimares Rosa.

    Ainda nesse momento do trabalho, ser discutido o tipo de erudio de

    Riobaldo, o tipo de conhecimento e mtodo que permitiria um jaguno raciocinar de

    modo semelhante filosofia Madhyamaka. Alm disso, outros insights de Riobaldo

    sero abordados, alinhados a algumas ideias budistas.

    Amealhando todos esses dados, pode-se chegar s seguintes questes: isso

    tudo compromete a interpretao do romance? Como? Ou essas questes no

    passam de um detalhe irrelevante na obra do autor? Com o alinhamento da proposta

    de anlise da existncia do diabo, uma questo crucial do romance, ao raciocnio

    budista sobre a existncia ilusria dos fenmenos, outros elementos de Grande

    serto: veredas e a prpria interpretao da narrativa ganham outro significado,

    explicitando, assim, a fora polissmica da literatura de Joo Guimares Rosa.

  • 16

    2 PEGADAS DE BUDA NO SERTO

    Era uma silenciosa invaso. Cipango, Ave, palavra, Joo Guimares Rosa

    2.1 RASTROS NAS VEREDAS

    Carlo Ginzburg (1989), em Sinais: razes de um paradigma indicirio, captulo

    de Mitos, emblemas e sinais: morfologia e histria, explica como seguir rastros , na

    verdade, um modelo epistemolgico ou mesmo um paradigma de pesquisa. O

    formalizador desse mtodo ainda usado na histria da arte seria Giovani

    Morelli, quem sistematizou e usou esse modelo no sculo XIX.

    Morelli desejava atribuir aos quadros de museus europeus muitos sem

    assinatura, outros repintados ou mal conservados, e de difcil distino entre o

    original e sua cpia os seus verdadeiros autores. Para tanto, ele indicava que se

    basear nas caractersticas mais comuns e identificveis das obras do artista o

    caminho normalmente tomado no poderia ser a melhor opo, visto que elas

    so, talvez, as mais imitveis. O italiano afirmava que o ideal seria prestar ateno

    nos pormenores pouco chamativos, detalhes e dados que no corresponderiam aos

    aspectos mais comuns da obra ou da tendncia esttica a qual o artista estaria

    engajado. Assim, ao dar valor a esses detalhes em relao ao conjunto da obra, era

    possvel ento revelar a autoria de uma determinada pea.

    O conhecedor de arte seria como Sherlock Holmes, o detetive de Conan Doyle,

    que desvenda o crime por meio de dados que so imperceptveis maioria das

    pessoas. Mas Ginzburg ressalta que o mtodo no to ingnuo quanto parece. O

    autor d destaque relao que Sigmund Freud (1995, p. 228) estabelece entre a

    psicanlise e o paradigma de Morelli em O Moiss de Michelangelo:

    Parece-me que seu mtodo de investigao tem estreita relao com a tcnica da psicanlise, que tambm est acostumada a adivinhar coisas secretas e ocultas a partir de aspectos menosprezados ou inobservados, do monte de lixo, por assim dizer, de nossas observaes.

    Esse mtodo detetivesco que lida com informaes marginais uma

    abordagem muito prxima da psicanlise o que vai embasar a aproximao

    entre o raciocnio de Riobaldo e um aspecto da filosofia budista.

    Os ensaios de Morelli continham a proposta de:

  • 17

    (...) um mtodo interpretativo centrado sobre os resduos, sobre os dados marginais, considerados reveladores. Desse modo, os pormenores normalmente considerados sem importncia, ou at triviais, baixos, forneciam a chave para aceder aos produtos mais elevados do esprito humano (GINZBURG, 1989, p. 149-150).

    Nada mais residual do que a presena do budismo na obra de um autor cujas

    referncias eruditas como as filosficas e as literrias e as populares a

    pitoresca cultura do serto tm projeo e reconhecimento vlidos tanto para

    leitores comuns quanto para a crtica especializada. Essa residualidade que

    aparece em Sagarana e em Tutamia, por exemplo a que vai, junto com

    elementos do prprio romance, legitimar a interpretao de um dos questionamentos

    do esprito humano que surgiram ao longo da histria a real existncia ou a no

    existncia dos fenmenos , que est corporificado, no caso, em Grande serto:

    veredas, na figura do diabo.

    Juntar rastros e chegar a uma concluso por meio deles o que o gesto

    talvez mais antigo da histria intelectual do gnero humano: o do caador agachado

    na lama, que escruta as pistas da presa (GINZBURG, 1989, p. 154) gerar,

    segundo Ginzburg (1989, p. 152), um saber venatrio, que a capacidade de, a

    partir de dados aparentemente negligenciveis, remontar a uma realidade complexa

    no experimentvel diretamente. Assim, essa decifrao de cunho venatrio se d

    por meio da anlise da parte pelo todo ou do efeito pela causa. Vrios indcios da

    presena de budismo na obra de Guimares Rosa legitimam uma interpretao de

    uma das facetas do romance do autor.

    Apesar de o mtodo de Morelli ter sido bastante criticado na poca, embora

    tivesse sido operado com frequncia, mas de no ter sido teorizado formalmente at

    os escritos do italiano, Ginzburg ressalta que esse mtodo base de muitas

    disciplinas indicirias reconhecidas, como a medicina, a paleontologia, a filologia e a

    crtica textual, por exemplo.

    O autor salienta tambm a diferena entre seguir meros rastros e pegadas para

    caar e a anlise da escrita, das pinturas e dos discursos, nos quais o mtodo de

    Morelli se prope a revelar um sinal mais certo da individualidade do artista

    (GINZBURG, 1989, 171). Este no o caso, no momento, mas sim seguir os rastros

    do budismo na obra de Guimares Rosa para elucidar um raciocnio de Riobaldo

    sobre a existncia do diabo. No entanto, no se deixa de explicitar, indiretamente, o

    RaffaelaRealce

    RaffaelaNotaSer que esses resduos precisam necessariamente estabelecer uma ligao ou uma concluso no pensamento mais completo e complexo presente no romance Grande Serto? Ou, poderamos considerar que esses rastros so por si prprios grandes expresses da filosofia budista e indiana?

  • 18

    que talvez possa ser uma caracterstica peculiar do autor.

    Outro dado que Ginzburg levanta sobre o paradigma indicirio a possibilidade

    do rigor nesse tipo de investigao; rigor que, desde Galileu, tem orientao

    quantitativa e antropocntrica e coloca as cincias humanas no dilema entre a

    fragilidade de uma cincia pouco vigorosa, com resultados relevantes, em relao a

    uma cincia forte, com resultados irrelevantes. De qualquer forma, o autor acredita

    que, seja para seguir os rastros de um animal ou para analisar uma obra de arte, o

    paradigma indicirio tem um rigor flexvel que inelimitvel, visto que:

    (...) suas regras no se prestam a ser formalizadas nem ditas. Ningum aprende o ofcio de conhecedor ou diagnosticador limitando-se a pr em prtica regras preexistentes. Nesse tipo de conhecimento entram em jogo (diz-se normalmente) elementos imponderveis: faro, golpe de vista, intuio (GINZBURG, 1989, p. 179).

    Ginzburg tem conscincia de que o termo intuio perigoso, mas frisa que,

    no contexto do paradigma indicirio, ele se refere intuio baixa, em oposio

    intuio alta. Esta ltima, limitada a alguns indivduos, seria uma forma de

    conhecimento superior no compartilhada por todos. No entanto, a aplicao do

    paradigma indicirio por meio da intuio baixa, que no tem nada a ver com a

    intuio suprassensvel dos vrios irracionalismos dos sculos XIX e XX

    (GINZBURG, 1989, p. 179). Segundo o autor, essa intuio baixa est difundida por

    todo o mundo, sem qualquer barreira geogrfica, histrica, tnica, sexual ou de

    classe e, por isso, no pertence a um homem especfico.

    por meio desse paradigma, percebendo rastros e processos regulares na

    obra de Guimares Rosa, que se pode confrontar o raciocnio do jaguno Riobaldo

    com a filosofia budista que questiona a maneira como tudo existe. Os rastros,

    cronologicamente, esto em Magma, Sagarana, Tutamia e em Ave, palavra. Todos

    eles, alm de dados do prprio romance do autor mineiro, permitem aproximar um

    raciocnio budista a um raciocnio de Riobaldo sobre a existncia do diabo.

    O que significa, porm, para a crtica literria, encontrar rastros budistas na

    obra de Guimares Rosa, que eclodem em outra interpretao sobre a existncia do

    diabo e talvez de todo o romance em si?

    Para Barthes (2009, p. 161), a crtica uma metalinguagem que se debrua

    primeiramente sobre o objeto discurso e no sobre o objeto mundo, seja

    imaginvel ou no; isso significa que a proposta da crtica no absolutamente

    RaffaelaRealce

    RaffaelaNotaIrei aprofundar mais minhas leituras nestes e em outros textos citados, entretanto, penso no quo seria interessante um trabalho focado nestes rastros e no apenas em como eles corroboram uma tese preconcebida.

  • 19

    descobrir verdades mas somente validades. Assim, baseando-se em rastros

    budistas na obra de Guimares Rosa, cabvel propor uma leitura vlida de Grande

    serto: veredas. No entanto, por si s, esses vestgios de budismo no eliminam

    outras propostas de leitura do romance, j realizadas. O argumento de Barthes

    (2009, p. 161, grifos do autor) , novamente, pertinente nessa situao:

    Pode-se dizer que a tarefa da crtica (esta a nica garantia de sua universalidade) puramente formal: no consiste em descobrir, na obra ou no autor observado, alguma coisa escondido, de profundo, de secreto, que teria passado desapercebida at ento (por que milagre? somos ns mais perspicazes que nossos predecessores?), mas somente em ajustar, como um bom marceneiro que aproxima apalpando inteligentemente duas peas de um mvel complicado, a linguagem que lhe fornece a sua poca (existencialismo, marxismo, psicanlise) linguagem, isto , ao sistema formal de constrangimentos lgicos elaborados pelo prprio autor segundo sua prpria poca.

    Caso no sejam apontados os dados budistas propostos aqui, a leitura de

    Grande serto: veredas no estar prejudicada. Apont-los no desvendar um

    segredo essencial do romance. Caso esses dados sejam trazidos tona, outra

    leitura surge, por exemplo, quando os rastros so coletados e o raciocnio de

    Riobaldo sobre a existncia do diabo alinhado, ou ajustado, como Barthes declara,

    a um aspecto da filosofia budista. No entanto, isso no uma proposta reveladora

    crucial ao entendimento do romance, que elimina interpretaes diversas, sejam de

    fundo cabalstico, cristo, histrico ou sociolgico. Se, no tempo de Barthes, a poca

    fornecia linguagens como o existencialismo e a psicanlise aos crticos, a poca

    atual fornece linguagens com a filosofia budista, mesmo que no extensivamente,

    como as citadas anteriormente. De qualquer forma, ao que tudo indica, ao se levar

    em conta o que os rastros levantados explicitam, essa linguagem j estava

    disponvel, de diferentes formas, para Guimares Rosa.

    Assim, a presena budista na saga de Riobaldo uma confirmao, entre

    tantas outras, que revela o que Barthes (2007, p. 17-18) declara como as trs foras

    da literatura, que se realizam completamente em Grande serto: veredas. Em Aula,

    a famosa aula inaugural no Colgio de Frana em 1977, o crtico afirma que a

    primeira fora da literatura est no fato de que

  • 20

    (...) todas as cincias esto presentes no monumento literrio. nesse sentido que se pode dizer que a literatura, quaisquer que sejam as escolas em nome das quais ela se declara, absolutamente, categoricamente realista: ela a realidade, isto , o prprio fulgor real. Entretanto, e nisso verdadeiramente enciclopdica, a literatura faz girar os saberes, no fixa, no fetichiza nenhum deles; ela lhes d um lugar indireto, e esse indireto precioso.

    Pelos indcios, pelas formas como eles se manifestam nas narrativas do autor

    mineiro, o budismo est, nesse lugar indireto, em Grande serto: veredas. No se

    sabe se foi colocado intencionalmente no romance; de qualquer forma, est l,

    revelado por meio do paradigma indicirio.

    A segunda fora da literatura a capacidade de representao. Para Barthes

    (2007, p. 21),

    Desde tempos antigos at as tentativas da vanguarda, a literatura se afaina na representao de alguma coisa. O qu? Direi brutamente: o real. O real no representvel, e porque os homens querem constantemente represent-lo por palavras que h uma histria da literatura.

    O que Riobaldo uma criao artstica tanto questiona sobre o diabo, ao

    aproximar o raciocnio do jaguno com a filosofia budista? A incapacidade de se

    apreender o real do diabo, de se condensar uma possvel essncia ou natureza da

    existncia do diabo, da ausncia desse real, visto que, como Barthes afirma, o

    real no pode ser representvel. Ainda para Barthes (2007, p. 27-28), a terceira

    fora

    (...) consiste em jogar com os signos em vez de destru-los, em coloc-los numa maquinaria de linguagem cujos breques e travas de segurana arrebentaram, em suma, em instituir no prprio seio da linguagem servil uma verdadeira heteronmia das coisas.

    A articulao entre o raciocnio de Riobaldo e o budismo mostra como mais um

    jogo de signos ocorre com as palavras nonada e travessia que, alinhados

    anlise da essncia do diabo, do outro significado ao romance , s duas estrelas

    na constelao de jogos lingusticos que Guimares Rosa criou para expressar o

    real no representvel em lngua portuguesa. Lngua que, como as outras,

    segundo Barthes, desptica, controladora, mas, no romance do autor mineiro, tem

    o poder subvertido; em Grande serto: veredas, a lngua trapaceada, ela

    literatura.

    RaffaelaRealce

    RaffaelaNotaAcho importante o achado desses indcios, ou seja, alguma indicao da relao entre autor/obra com a cultura indiana, mas pelo que entendi, devo me debruar no no texto, mas na filosofia e seu impacto na literatura estudada, no caso, de Guimares.

  • 21

    2.2 O PACTO DE GUIMARES ROSA COM O BUDISMO

    O famoso estudo de Antonio Candido (1983, p. 294), O homem dos avessos,

    anuncia que h tudo para quem souber ler em Grande serto: veredas. Leituras

    sobre a presena do Oriente no romance e em outras obras de Joo Guimares

    Rosa so recorrentes na fortuna crtica do autor. Em entrevistas, narrativas e em

    outras fontes como cartas, depoimentos de familiares e investigao do seu

    esplio , alm dos prprios estudos crticos, encontram-se sempre menes e

    anlises ligadas a algum elemento originrio principalmente da ndia, da China ou do

    Japo nos textos de Guimares Rosa.

    Em narrativas s a ttulo de ilustrao, e no de anlise, neste momento

    pode-se citar a presena do imigrante chins em Orientao e do imigrante

    japons em Cipango. Nos poemas de Magma, h diversas referncias ao Oriente4

    e at mesmo o uso de uma forma potica tradicionalmente japonesa, o haicai.

    Em uma das cartas ao tradutor italiano de Corpo de Baile, Guimares Rosa

    explicita algumas de suas leituras:

    Ora, voc j notou, decerto, que, como eu, os meus livros, em essncia so antiintelectuais, diferem o altssimo primado da intuio, da revelao, da inspirao, sobre o bruxulear presunoso da inteligncia reflexiva, da razo, a megera cartesiana. Quero ficar com o Tao, com os Vedas e Upanixades, com os Evangelistas e So Paulo, com Plato, com Plotino, com Bergson, com Berdiaeff com Cristo, principalmente (BIZZARRI apud ROSENFIELD, 2006a, p. 113).

    Em depoimento concedido ao Simpsio Internacional em Comemorao ao

    Centenrio de Joo Guimares Rosa, realizado em Berlim, a filha do autor mineiro,

    Vilma Guimares Rosa (2009, p. 315), afirma que, mesmo sendo o pai catlico, ele

    era ecumnico no seu respeito s outras religies, tendo investigado sobre todas

    elas. Ao que os rastros na obra do autor indicam, o budismo est presente nesse

    grupo de religies. Na famosa entrevista a Gnter Lorenz (1983, p. 82), enquanto

    debatem a noo de existncia de uma brasilidade, Guimares Rosa explicita uma

    postura particular em relao religiosidade:

    4 Toda vez que se falar em Oriente no presente texto, a referncia ao Extremo Oriente, ou sia Oriental.

    RaffaelaRealce

    RaffaelaNotaFazer um apanhado de textos do prprio autor e daquele livro sobre depoimentos que est junto aos romances que tenho.

    RaffaelaRealce

    RaffaelaRealce

  • 22

    Outro exemplo, desta vez referente a mim mesmo, para que voc possa acreditar tranquilamente estou certo de que voc far esta pergunta durante nossa conversa, por isso antecipo a resposta. Eu no sei o que sou. Posso bem ser cristo de confisso sertanista, mas tambm pode ser que eu seja taosta maneira de Cordisburgo, ou um pago crente la Tolstoi.

    Na biblioteca do autor, em meio a obras filosficas, crists e judaicas, figuram

    obras hindus e uma obra do alemo Karl Neyman sobre Buda, Die Reden Gotamo

    Buddhas, publicada em 1924 (UTZA, 1994). Em diversos estudos, com diferentes

    nveis de enfoque e relevncia, autores apontam dados relativos presena de

    elementos orientais na obra de Guimares Rosa.

    Em Corpo de baile, podem-se destacar os textos Cara de bronze e Uma

    estria de amor. Suzi Frankl Sperber (1976) aponta diversas relaes entre

    passagens da primeira narrativa citada e elementos hindustas da obra Chndogya

    Upanishad5, presente na biblioteca do autor; j Heitor Martins (2000) explicita como

    h, na segunda, coexistindo com elementos platnicos, uma aluso a um famoso

    texto do budismo zen6.

    Acerca de Grande serto: veredas, Kathrin Rosenfield (2006b) indica que a

    tica de Riobaldo sobre o grupo de jagunos est alm da viso cavalheiresca j

    anunciada por outros estudiosos e se aproxima, muitas vezes, de uma

    representao muito semelhante a dos gandhravas, mitolgicos seres celestiais da

    ndia.

    Utza (1994 e 2009) explica e analisa extensivamente dados relacionados ao

    taosmo e ao hindusmo no romance de Guimares Rosa e como eles aparecem na

    formao de personagens e de nomes e na descrio de espaos da narrativa. Alm

    disso, revela essa presena no s em narrativas, mas tambm em depoimentos

    pblicos e privados do autor.

    Se, por um lado, a possibilidade da existncia de um raciocnio budista em

    Grande serto: veredas pode ser considerada um tanto inslita, por outro,

    completamente possvel, ao se levar em considerao, alm do j citado

    anteriormente, outros dados da obra do autor e do prprio romance. O que pode ser

    observado sobre a presena de elementos orientais em geral na obra de Guimares

    Rosa vale tambm para os elementos budistas, especificamente: Como de

    5 Upanixade so cada um dos livros que contm comentrios, instrues e explicaes sobre os Vedas. 6 Texto formalizado por Kakuan Shien no sculo VII, no qual uma personagem est em busca de um boi que, na verdade, nunca sumiu (MARTINS, 2000).

    RaffaelaRealce

    RaffaelaRealce

    RaffaelaRealce

  • 23

    costume, o escritor espalhou pelo seu discurso vrios ndices, a partir dos quais

    qualquer ouvinte-leitor atento pode ter condies de construir, pedra por pedra, a

    globalidade do sentido que fora voluntariamente ocultado (UTZA, 1994, p. 42).

    Como extrair, justificar ou revelar a forma como essa presena budista ocorre

    nos textos rosianos? Uma proposta de rumo para essa investigao para se

    construir pedra por pedra, como declarou Utza, ou para se seguir cada um dos

    rastros, indcios, como Ginzburg (1989) sugere consiste em investigar os

    seguintes elementos encontrados no conto Orientao, de Tutamia: (1) a

    possibilidade da presena do Oriente no serto; (2) a relao desse elemento com

    uma forma de transformao junto ao conflito desse dado oriental com outro

    elemento, geralmente do prprio serto; e (3) a presena de um narrador erudito que

    traz ou explicita o elemento do Oriente na narrativa.

    Ginzburg (1989), como j mencionado, afirma que no h regras prontas nem

    metodologia padronizada para a anlise dos indcios. Assim, esses trs elementos

    presentes em Tutamia so, aqui, uma espcie de linhas-guia para seguir as

    pegadas de Buda e de sua filosofia na literatura de Guimares Rosa e explicitar,

    assim, a maneira pela qual o budismo est presente em Grande serto: veredas.

    O conto Orientao foi publicado posteriormente ao romance e s outras

    produes em que se identificam dados orientais e budistas, e casa uma dessas

    presenas possui variaes particulares ou tem todas essas caractersticas. De

    qualquer maneira, produes do autor de diferentes perodos comportaram, em

    diversos nveis, a presena de Buda ou de sua filosofia dentro da poesia ou dentro

    da narrativa de Guimares Rosa.

    2.2.1 Tutamia: a orientao

    Orientao traz a histria de Quim e Rita. Yao Tsing-Lao um chins que

    chega ao interior de Minas Gerais e que se estabelece como cozinheiro na casa do

    engenheiro local. Depois de algum tempo, o chins, que passa a ser conhecido

    como Quim, consegue desenvolver uma atividade prpria e at se casa com uma

    sertaneja, Rita Rola.

    No se sabe qual o motivo da vinda de Yao Tsing-Lao para o interior de

    Minas Gerais, entretanto ele esteve l, por mais absurdo que isso possa parecer.

    Yao Tsing-Lao chegou, viveu e partiu do serto. Como diz o narrador, em puridade

    RaffaelaRealce

    RaffaelaRealce

  • 24

    de verdade consciente da inusitabilidade de o que est contando , um chins

    viveu no interior de Minas Gerais.

    O Oriente cabe na narrativa no s por meio da presena de uma

    personagem chinesa, mas pelo prprio lxico do discurso. O narrador de

    Orientao injeta em todo o relato, do comeo ao fim, elementos que remetem

    China: pio, bambus, plvora, porcelana, seda, drago, bssola. Assim, na narrativa

    ocidental desse narrador, no h somente a histria de um oriental no serto, mas

    tambm elementos orientais com uma funo. A presena desse lxico parece ser

    uma tentativa de manter o interlocutor ligado ao Oriente (assim como Rita Rola

    mantm-se conectada tambm), de maneira que a imagem do local de origem de

    Quim no fosse esquecido, mas permanecesse no interior de Minas Gerais, como

    permaneceu no de Rita.

    Alm disso, Yao Tsing-Lao no foi sempre o mesmo, assim como alguns dos

    que o conheceram, durante a sua passagem pelo interior do Brasil. Em sua nova

    terra, ele sofreu uma primeira transformao: o nome dele foi facilitado para

    Joaquim (ROSA, 2001c, p. 160), um nome em portugus, ganhando, dessa

    maneira, uma forma local. Mais tarde, passa a ser chamado de Quim, ainda mais

    familiar e informal, o que demonstra familiaridade com ele por parte de quem o

    denomina dessa maneira. Depois do trabalho de cozinheiro, Quim prosperou e

    tornou-se um pequeno produtor rural, e passou a ser conhecido como Se Quim.

    Para cada nome, um homem diferente: Yao Tsing-Lao chins, Quim cozinheiro, Se

    Quim proprietrio de chcara. medida que ele assume novos papis na sociedade

    para a qual migrou, ganha nomes diferentes e, nesse conto, medida que ele ganha

    mais status na sociedade, mais local e significativo o nome do imigrante. Yao

    Tsing-Lao est totalmente integrado ao serto, j faz parte da cor local, no

    aparecendo como aliengena ou contraditrio a esse espao.

    A moa com quem o imigrante se casou Feia, de se ter pena de seu

    espelho (ROSA, 2001c, p. 161) , no que alcanou o aparelho fonador de seu

    amante, no mais Rita Rola, e sim Lola ou Lita. A partir da transformao do

    nome, como ocorreu com o companheiro, vieram outras, concomitantemente: A

    gente achava-a de melhor parecer, seno formosura (ROSA, 2001c, p. 161). Depois

    do incio do processo de metamorfose da moa, depois de ela semelhar mesmo

    Lola-a-Lita (ROSA, 2001c, p. 161), ela passou a ser denominada pelo narrador por

    variaes como a Rola, Lolalita, Rola-a-Rita, Rita a Rola e Lola Lita, e no

  • 25

    mais por Rita Rola, seu nome original. medida que vai se modificando mais, o

    nome vai variando tambm, e assim ela j no a mesma do incio do conto.

    A transformao que havia comeado com a paixo, quando a forma de Rita

    Tomava porcelana, terracota, ao menos; ou recortada em fosco marfim, mudada de

    cpula a fundo (ROSA, 2001c, p. 161), com a separao de Quim, intensifica-se: a

    sertaneja assumiu trejeitos orientais, calada levemente, no sbrio e ciente, e s rir

    (ROSA, 2001c, p. 163). At o modo de andar mudou, e tinha passo enfeitadinho,

    emendado, reto, propinhos p e p (ROSA, 2001c, p. 163). No conto, Quim e Rita

    transformaram-se: Rita, casando-se com ele, integra-o completamente sociedade

    local e, mais tarde, leva o marido a deixar o local; e ele mesmo que, no final,

    involuntariamente torna-a mais chinesa do que nunca.

    O elemento oriental no serto no est somente sofrendo transformaes,

    ganhando a cor local, mas tambm gerando transformaes em outros. Depois de

    se casarem, Quim (que, curiosamente, casou-se de gravata, um elemento de

    vesturio tipicamente ocidental) ensinava modos e vestia Rita com indumentrias

    orientais: seda, leques. O relacionamento dos dois, no entanto, no suportou

    diferenas culturais, e o primeiro motivo de embate que aparece no conto foi o fato

    de que a esposa achava que o que h de mais humano a gente se sentar numa

    cadeira (ROSA, 2001c, p. 162). Foi difcil para Rita compreender um hbito que o

    chins provavelmente mantinha: o de sentar-se de pernas cruzadas ou ficar de

    ccoras. H uma incompatibilidade desse hbito oriental com o que a moa

    interiorana acredita. Depois do conflito, Quim desaparece, e Rita fica com saudades

    e empreende, sozinha, a mudana que o marido talvez ficasse feliz em ver.

    Outro dado que precisa ser observado a certa carga de erudio que o

    narrador de Orientao possui. A partir da variao fontica gerada pela pronncia

    do nome de Rita pelo chins, ele aplica na sertaneja, que se orientaliza, brincando

    com o nome dela, a sombra da personagem de uma famosa obra da literatura

    ocidental: Lolita. Esse jogo com Lolita revela outros dados: a histria contada

    depois de 1955, ou seja, depois da publicao do livro de Vladimir Nabokov, tendo

    em vista que a expresso lolita passa a ser aplicada para caracterizar determinado

    comportamento e tipo de mulher, a partir da publicao do romance. Alm disso, o

    mais importante, revela o nvel de instruo do narrador: se ele sabe aplicar o termo,

    pode ter lido o livro. Claro que o modo de ser lolita no est atrelado ao tempo e ao

    espao, mas , na narrativa, um cone cultural do Ocidente, aplicado a uma mulher

  • 26

    que est em processo de orientalizao. , de certa forma, como se Oriente e

    Ocidente no pudessem se separar: ao mesmo tempo em que se torna cada vez

    mais chinesa, um cone da cultura ocidental faz parte de sua caracterizao.

    O narrador ainda joga, em mais um sinal de erudio, com a famosa

    expresso latina veni, vidi, vici. Na narrativa, ela aparece como vindo, vivido, ido

    (ROSA, 2001c, p. 160), o que no deixa de aplicar, novamente, uma nova sombra

    ocidental dessa vez, a sombra de Csar em uma personagem oriental do

    conto.

    Tutamia, no entanto, no proporciona somente Orientao, mas um outro

    dado mais revelador: a presena de um mecanismo semelhante ao do koan do

    budismo zen em anedotas. Segundo o autor mineiro, em Aletria e Hermenutica,

    um dos prefcios da obra, as anedotas especialmente as que ele denomina

    anedotas de abstrao , por meio do humor, podem conduzir a certa

    transcendncia. Em relao ao humor, isso ocorre especialmente porque escanha

    os planos da lgica, propondo-nos realidade superior e dimenses para mgicos

    novos sistemas de pensamento (ROSA, 2001c, p. 30).

    Para ele, a quebra da lgica que ocorre nessas anedotas guarda semelhana

    com o mtodo budista, particular da tradio zen, conhecido como koan. No

    budismo zen, tradio tipicamente japonesa, o koan uma histria, uma afirmao

    ou pergunta absurda ou contraditria, inacessvel ao modo de pensar convencional

    (MATTIS-NAMGYEL, 2010). A ttulo de quebrar conceitos e paradigmas do

    estudante, o mestre zen apresenta ao aluno um koan, um enigma, sobre o qual o

    discpulo precisa meditar, e a funo desse tipo de questionamento explicada pelo

    prprio Guimares Rosa (2001c, p. 35, grifo do autor), em uma nota do prefcio:

    Sem resposta, s ardilosa, [uma das anedotas contada no prefcio] lembra clebre koan: Atravessa uma moa a rua; ela a irm mais velha, ou a caula? Apondo a mente problemas sem sadas, desses, o que o zenista pretende atingir o satori, iluminao, estado aberto s intuies e reais percepes.

    Esse prefcio e os outros, segundo Utza (1994, p. 28) so apresentados

    como intervenes diretas aos textos de Tutamia. Apesar de o prefcio parecer

    fazer somente uma referncia discreta a esse mtodo budista, ela tem significativa

    importncia. Diz Utza (1994, p. 28):

  • 27

    Jogadas em notas de rodap, e portanto marginalizadas num texto por definio fora do texto, as observaes sobre o zen mostram-se essenciais para a compreenso deste primeiro prefcio: todas as histrias de loucos, palavras infantis, e outras incurses no absurdo, fora da lgica convencional, so, na verdade, koans suscetveis de facultar o acesso realidade superior.

    Tanto o ponto feito pelo autor mineiro quanto o feito pelo estudioso francs

    podem ser brevemente ilustrados com elementos de Orientao. O humor aparece

    na descrio inicial de Rita, que era Feia, de se ter pena de seu espelho. To feia,

    com fossas nasais (ROSA, 2001c, p. 161). Ocorre tambm quando o narrador

    descreve, sem deixar de explicitar o mgico da ocorrncia, o incio da transformao

    que Rita passa a sofrer: No que o chino imprimira mgica vital, viva vista: ela,

    um angu grosso em frma de pudim (ROSA, 2001c, p. 161). O narrador no

    esconde, usando de humor na descrio da moa, o absurdo da feiura e da

    metamorfose. Ao final do conto, Rita est chinesa: alcana um estado que revela

    tanto transcendncia quanto um disparate em relao logica corrente de como as

    coisas funcionam.

    Dessa maneira, Orientao, assim como Aletria e Hermenutica, pstumos

    a outras obras de Guimares Rosa, nas quais a presena budista pode ser apontada

    ou inferida, revela algumas veredas a serem seguidas na aproximao (ou que

    justificam essa aproximao) de um raciocnio do jaguno Riobaldo sobre a

    existncia do diabo com a viso de uma escola filosfica budista sobre a existncia

    dos fenmenos. No entanto, antes de Grande serto: veredas, j no incio de sua

    apario no cenrio literrio, marcas de budismo podem ser identificadas nos

    escritos de Guimares Rosa.

    2.2.2 Magma: o Oriente na poesia

    Os poemas de Magma j apresentam, talvez cronologicamente, na produo

    do autor que vm a pblico, de alguma maneira, as primeiras marcas de budismo na

    obra de Joo Guimares Rosa. Por ter caractersticas prprias de uma obra potica,

    a anlise dessa primeira obra no corresponde completamente aos dados

    levantados em Orientao. De qualquer forma, Oriente e budismo esto dentro de

    Magma.

    Premiado pela Academia Brasileira de Letras em 1936, a obra, s publicada

    postumamente, , segundo o parecer da comisso julgadora, poesia centrfuga,

    RaffaelaRealce

  • 28

    universalizadora, capaz de dar ao resto do mundo uma sntese perfeita do que

    temos e somos. H a, vivo de beleza, todo o Brasil: a sua terra, a sua gente, a sua

    alma, o seu bem e o seu mal (ALMEIDA, 1997, p. 6). O Brasil de Magna, no

    entanto, no s o de Iara, bois e da Serra da Mantiqueira, tambm composto de

    formas, imagens e personagens que no so locais.

    A prpria Academia Brasileira de Letras cita a utilizao do haicai pelo autor,

    mas a presena do Oriente na obra no ocorre somente por meio da forma potica.

    Alm dela, observam-se elementos oriundos da ndia, do Japo e da China: dentro

    do Brasil de Magma cabem muitas outras culturas, como se percebe nos poemas

    Amarelo, Azul, Na Mantiqueira, Pudor estico, Justificao, Delrio e

    Necrpole. Neles, h claras referncias a outras cores no originalmente

    brasileiras, como o parecer do prmio aponta. Na poesia do autor, aparece a

    possibilidade da existncia do Oriente no Brasil, algo que ser recorrente tambm

    em sua prosa.

    Amarelo (ROSA, 1997, p. 55) sobre o trabalho de um pintor da China:

    Kuang-Ling, pintor chins de mscara de cera, feliz de pio, e brio de drages, molha o pincel na gua de ocre do Huang-Ho, e, entre lanternas de seda, pinta e repinta, durante trinta anos, sulfreos e asiticos girassis, na incrvel porcelana de um jarro dos Ming...

    O poema est permeado de elementos relativos ao pas do pintor: pio,

    drages, lanternas de seda, vaso de porcelana, alm, claro, da dinastia Ming e do

    famoso Rio Amarelo (Huang-ho), um dos principais da China. A presena no s

    temtica, mas lexical tambm, como em Orientao.

    Em Azul (ROSA, 1997, p. 57), uma pea tpica do vesturio japons, citada:

    o quimono.

    Uma vanessa tropical travou na campnula de uma ipomia o vo oscilatrio e helicoidal. Dobra o quimono de franjas sinuosas, [...]

  • 29

    J em Na Mantiqueira (ROSA, 1997, p. 70), h meno a um elemento

    facilmente identificvel da flora oriental:

    Por entre as ameias da cordilheira dormida, a lua se esgueira, como um ltus branco, na serra de dorso de um crocodilo, brincando de esconder.

    Ao descrever o luar de uma das mais conhecidas formaes do relevo

    brasileiro, a Serra da Mantiqueira, o eu-lrico deste poema compara o astro a um

    ltus branco. Essa planta, no extremo Oriente, usada na alimentao, na medicina

    e possui tambm um valor significativo na cultura e em religies asiticas. Aqui, h

    uma caracterstica que est presente em outras obras do autor: um elemento

    estrangeiro agregado ao local, um pouco do Oriente no cu do Brasil.

    Em Pudor estico (ROSA, 1997, p. 72), aparece uma meno a uma frmula

    particular de suicdio: o hara-kiri. Esse tipo de suicdio, praticado por samurais no

    perodo medieval japons, que se d em nome da honra (TAKEI; KAWAL; MORI,

    2000), mencionado no poema:

    Acuado entre brasas um escorpio volve o dardo e faz o hara-kiri...

    Em Justificao (ROSA, 1997, p. 78) aparece a grande cadeia de montanhas

    da sia: o Himalaia.

    Ponham o Amazonas ao p do Himalaia, e ali nascer, depressa, uma raa de homens pequeninos...

    O eu-lrico sugere o que Guimares Rosa faz em sua obra: unir um elemento

    ocidental o rio Amazonas com um oriental o Himalaia. Ao sugerir essa

    juno, parece haver uma justificativa ao fato de algumas tribos nativas do

    Amazonas guardarem semelhana (devido estatura e aos olhos puxados) com

    alguns povos asiticos. como se, de certa forma, a sia estivesse nesse interior

    do Brasil, que a Amaznia.

    Elementos que tipicamente so remetidos aos chineses tambm aparecem no

    RaffaelaRealce

    RaffaelaNotaAtentar-se para o fato da adaptao que o autor possivelmente faz de elementos brasileiros em lugar de indianos e outros, num paralelo com a ideia de adaptao ocorrida nas fbulas e seus animais e moral tpicos de cada regio e citada por Dilip Loundo em Dilogos Tropicais.

  • 30

    poema Delrio (ROSA, 1997, p. 89, grifo nosso):

    No sentes na tua boca um gosto de papoulas?... Passa o leno de seda de tuas mos sobre minha fronte, e no me digas nada: a febre est, baixinho, ao meu ouvido, falando de ti...

    A papoula e a seda esto muito associadas cultura chinesa. A papoula,

    apesar de ser encontrada tambm no Leste europeu, est ligada principalmente ao

    pio, que, por sua vez, est relacionado s famosas Guerras do pio entre a China

    e a Inglaterra no sculo XIX. A seda outro elemento popular da cultura chinesa que

    ganhou o Ocidente e d nome at a uma famosa rota comercial que surgiu entre a

    sia e a Europa: a Rota da Seda. Apesar de essa rota referir-se ao sculo XIX, esse

    percurso j abarcava grande movimentao de comerciantes, peregrinos e

    conquistadores entre o sculo I e o sculo XV (PALAZZO, 2009). Tanto a papoula

    quanto a seda passaram a fazer parte da cultura ocidental, assim como os

    elementos orientais, em Magma, passam a fazer parte do Brasil. Em algumas obras

    posteriores a esses poemas, a rota, na obra de Guimares Rosa, no entanto, no

    a da seda, Ocidente-Oriente: como acontece em Orientao e em Cipango, de

    Ave, palavra, a rota passa a ser Oriente-Ocidente.

    Depois de referncias China e ao Japo, outra figura da cultura indiana

    aparece em um poema de Guimares Rosa, desta vez, o deus hindu Vichnu, em

    Necrpole (ROSA, 1997, p. 129):

    [...] E, de monte para monte, se transmitem transcendncias absurdas: o problema dado ao elefante Iriarte pelo Deus Vichnu...

    O deus Vichnu tem o epteto de o Mantenedor do universo e, juntamente com

    Brama e Indra, completa a trade de deuses mais importantes do hindusmo

    (CAMPBELL, 1994). No poema, o homem, ao escavar montes, trabalha

    transformando o mundo, assim como o deus Vichnu tem como funo trabalhar o

    universo, fazer a manuteno do universo. Em Magma, o autor faz a manuteno do

    que Brasil, acrescentando elementos que no so os tipicamente usados para

    representar a sua terra, a sua gente, a sua alma.

    Raffaela

  • 31

    O Buda, uma das famosas figuras da ndia e fortemente presente tambm

    na China e no Japo citado como um elemento de comparao em

    Caranguejo (ROSA, 1997, p. 44):

    Caranguejo sujo, desconforme, como um atarracado Buda roxo ou um dolo asteca...

    Uma das mais representativas personagens do Oriente assimilada ao

    caranguejo, animal tpico da fauna do litoral brasileiro. Ocorre, como nos outros

    poemas, uma integrao do elemento oriental paisagem local. Buda parece figurar

    tambm em Elegia (ROSA, 1997, p. 50, grifo nosso):

    Teu sorriso abriu como uma anmona entre as covinhas do rosto infantil. Estavas de pijama verde, nas almofadas verdes, os pezinhos nus, as pernas cruzadas, pequenina, como um dolo de jade que teve por modelo uma princesa anamita.

    dolo, no poema, pode ser associado famosa esttua de Buda de jade da

    Tailndia que, por ser verde, conhecida como Buda de Esmeralda , j que a

    menina est sentada, de pernas cruzadas, vestida de verde. Essa esttua foi levada

    do Laos de volta Tailndia na segunda metade do sculo XVIII e est abrigada no

    complexo de templos de Wat Phra Kaew, em Bangkok (WILLIANS et al., 2009). No

    entanto, pode ser tambm uma referncia a outras duas famosas esttuas de Buda,

    tambm de jade, de um antigo templo de Shanghai, fundado em 1882 e destrudo

    por um incndio. As duas esttuas, provenientes da Birmnia, foram resgatadas e

    esto no novo templo, fundado em 1918 (TRANJAN, 2008). A mulher est descala

    e de pernas cruzadas, como o Buda normalmente representado em esttuas. De

    qualquer forma, novamente, a imagem de Buda est presente em um dos poemas

    de Magma.

    Curiosamente, a imagem de algum sentado de pernas cruzadas j evocou

    outras vezes, em obras significativas da literatura ocidental, a figura de Buda. Isso

    pode significar que essa presena nos poemas de Guimares Rosa no um fato

    isolado na histria da literatura, no um fato totalmente particular da obra do

    RaffaelaRealce

    RaffaelaRealce

  • 32

    autor.7

    Na poesia brasileira, h, no mnimo, dois casos da presena de Buda, tambm

    com produes entre o sculo XIX e XX: Pedro Kilkerry e Augusto dos Anjos. O

    primeiro, poeta simbolista da Bahia com pouca projeo nacional, relaciona Buda ao

    silncio:

    No sei se mesmo a minha mo que molha A pena, ou mesmo o instinto que a tem presa. Penso um presente, num passado. E enfolha A natureza tua natureza. Mas um bulir das cousas... Comovido Pego da pena, iludo-me que trao A iluso de um sentido e outro sentido. To longe vai! To longe se aveluda esse teu passo, Asa que o ouvido anima... E a cmara muda. E a sala muda, muda... Afonamente rufa. A asa da rima Paira-me no ar. Quedo-me como um Buda Novo, um fantasma ao som que se aproxima. Cresce-me a estante como quem sacuda Um pesadelo de papis acima...8

    No trecho acima, do poema o silncio, Buda aparece em meio a

    expresses comuns filosofia que ele postula: iluso, o jogo ambguo com pena

    (como objeto para escrita e como tambm pesar e sofrimento) e com muda

    (como ausncia de palavras e som e tambm como o verbo mudar). Buda, depois

    de dias sentado em silncio, aps ter atingido a iluminao, rompe-o e expe seus

    ensinamentos (KHYENTSE, 2008), expondo outra faceta da realidade. Por isso o

    poema relacionou Buda e o silncio, visto que, quando este ltimo rompido, como

    Buda outrora o fez, outra maneira de encarar a realidade emergiu. 7 Na prosa ocidental, s a ttulo de exemplo, em O corao das trevas, de Joseph Conrad (2010, p. 14), romance de 1899, h uma referncia ao Buda logo no incio da obra: recomeou, erguendo um brao a partir do cotovelo com a palma da mo para cima de tal forma que, com as pernas dobradas diante de si, tinha a pose de um Buda pregando em roupas europeias e sem uma flor de ltus. O narrador tambm o faz no ltimo pargrafo do romance: Marlow silenciou e permaneceu sentado, afastado, indistinto e calado, na pose de um Buda meditando (CONRAD, 2010, p. 134). Toda a narrativa, toda a ao narrada o miolo do romance est compreendido por essa imagem de algum sentado como Buda. Ainda na literatura em lngua inglesa, entre o sculo XIX e XX, outra referncia a uma esttua de Buda vem de Henry James em Retrato de uma senhora. Uma das personagens do romance, Ralph, ao comentar sobre seu amigo, Lorde Warburton, diz: Eu, no lugar dele, seria to solene quanto uma esttua de Buda (JAMES, 2007, p. 97). A presena dessas imagens tm, em maior ou menor grau, implicaes na interpretao das personagens ou at mesmo do romance, dependendo do caso. Alm da j citada em Orientao, a participao de elementos budistas na prosa de Guimares Rosa ser analisada nos prximos subcaptulos e captulos. 8 Poema disponvel em: . Acesso em: 13 mar 2013.

  • 33

    O segundo, Augusto dos Anjos, poeta de repercusso nacional, faz, em pelo

    menos cinco poemas do livro Eu, menes ao Buda e ao budismo. Em As cismas

    do destino (ANJOS, 2010, p. 27) h duas:

    Pois quem no v a, em qualquer rua, Com a fina nitidez de um claro jorro, Na pacincia budista do cachorro A alma embrionria que no continua?!

    E ainda:

    Todos os personagens da tragdia, Cansados de viver na paz de Buda, Pareciam pedir com a boca muda A ganglionria clula intermdia.

    Outra apario ocorre no ttulo e tema do poema Budismo moderno (ANJOS,

    2010, p. 37), e outra em Os doentes (ANJOS, 2010, p. 45):

    E nua, aps baixar ao caos budista, Vem para aqui, nos braos de um canalha, Porque o madapolo para a mortalha Custa 1$200 ao lojista!

    Assim como nos poemas de Pedro Kilkerry, nos de Augusto dos Anjos, as

    referncias a Buda e ao budismo em Guimares Rosa esto relacionadas a

    elementos comuns da filosofia, como a pacincia, qualidade que deve ser cultivada

    pelo praticante budista; a paz, que no contexto budista pode estar ligada tanto

    qualidade de tranquilidade quanto noo de nirvana; e a ideia de transitoriedade e

    impermanncia de tudo, junto com a de morte. Essas contemplaes permeiam

    todos os poemas de Augusto dos Anjos citados e so pontos-chaves nos

    ensinamentos budistas.

    Em Magma, h, principalmente, a integrao de elementos do Oriente aos

    elementos do Brasil, mas no necessariamente uma integrao de uma filosofia

    budista como ocorre em Augusto dos Anjos, por exemplo ao texto. O conjunto

    de poemas traz o padro de coexistncia entre elementos locais e orientais que ir

    se repetir na obra do autor. Ao longo da produo artstica de Guimares Rosa, no

    entanto, ir se observar uma integrao cada vez maior do budismo a elementos

    ocidentais, brasileiros, locais.

    RaffaelaRealce

    RaffaelaRealce

    RaffaelaNotaNum pouco de li de alguns poemas de "Magma" notei, principalmente, a ideia da impermanncia de tudo e transitoriedade: "Gargalhada" e "Paraso Filosfico", por exemplo.

  • 34

    2.2.3 Sagarana: Buda no meio da nossa gente

    Em Sagarana, na narrativa Minha gente, a referncia ao Buda se expande um

    pouco alm das meras comparaes que se estabelecem nos poemas de Magma.

    No texto, no h somente um meno ao Buda, mas a supostas palavras do

    prncipe indiano tambm. A epgrafe da narrativa uma quadra intitulada Cantiga

    para treinar papagaio. O papagaio s repete as palavras, no tem conscincia do

    que significam. Guimares Rosa, no entanto, no repete os quatro versos atribudos

    a Buda como um papagaio o faria. Essa citao no um mero intertexto,

    despropositado; na narrativa, ela um elemento totalmente integrado ao do

    texto:

    Chove. Chuva. Moles massas. Tudo macio e escorregoso. Com o que proferiu Gotama Buddha, o pastor dos insones, sob outras bananeiras e mangueiras outras, longnquas: Aprende do rolar dos rios, dos regatos monteses, da queda das cascatas: tagarelante, ondeia o seu caudal - s o oceano silncio (ROSA, 2001b, p. 237).

    O autor usa neologismos, dado recorrente na obra dele, para apresentar Buda.

    Pastor pode ser tomado como aquele que guia, e, no contexto filosfico-religioso, o

    mestre, o professor. Insones uma referncia clara ao termo buda, que, em

    snscrito, significa aquele que despertou, o que acordou do sono da ignorncia.

    Assim, Buda, com o epteto de pastor dos insones, o mestre daqueles que no

    dormem mais em ignorncia. Ele atingiu a iluminao sob a rvore ficus religiosa,

    uma figueira. Mas referncias locais de rvores, as que poderiam estar ao redor da

    casa e prxima rede em que o narrador dormia, so a bananeira ou a mangueira.

    Usando essa estratgia do neologismo, que mais tarde se tornaria uma das marcas

    de sua obra, o autor traz Buda e sua filosofia para dentro de seu texto9.

    A quadra que o narrador atribui ao Buda, porm, no ocorre de maneira

    displicente. Ele prepara a apario dessas palavras de forma que fiquem

    9 vlido lembrar que, na mesma dcada em que Sagarana foi lanado, surgiu, nos Estados Unidos, um movimento que ficou conhecido como a Gerao Beat. Os escritores desse grupo, com destaque para Jack Kerouac e Allen Ginsberg, estudaram e incorporaram em suas obras elementos de vrias tradies espirituais e filosficas, principalmente do budismo. Kerouac sentiu-se atrado pelos conceitos budistas de sofrimento, de impermanncia e de natureza ilusria da vida (PROTHERO, 1991). De maneira diferente que esses escritores norte-americanos, o autor mineiro tambm incorpora, como v-se em Sagarana e em outras obras, alguns conceitos budistas aos seus textos.

    Raffaela

    RaffaelaRealce

  • 35

    naturalmente integradas narrativa e no paream estranhas ao leitor. J no

    comeo da novela, invoca indiretamente, por meio de Santana, a imagem de um

    meditador, contemplador, sob uma rvore:

    Santana se encaramujou: est ausente deste mundo, no departamento astral dos problemistas. E este deve ser um dos motivos da segurana com que ele enfrenta qualquer roda ou ambiente: haja algum seno, sejam os outros hostis ou estpidos, ou estpidos e hostis a um tempo, e Santana se encosta em qualquer parte, poste ou rvore, e problemiza, problemiza sem parar (ROSA, 2001b, p. 215).

    Outra ideia ou imagem de eremita meditador vem da curiosa descrio de um

    dos trs poos de um crrego da regio: Os poos grandes so apenas trs: o de

    cima serve de piscina para os camaradas; no do meio, de gua limosa, mora um

    jacar ermito, de vida profunda, que deve ser verde e talvez nem exista; o ltimo,

    aonde vamos, o poo (ROSA, 2001b, p. 228). A ideia a de um eremita, um

    solitrio que, dubiamente tem vida profunda: ou mora no fundo ou tem grande

    profundidade de ser. Buda, sozinho, como um eremita embaixo de uma rvore, teve

    insights profundos, atingiu a iluminao.

    Alm disso, mais a frente, ainda antes de mencionar Buda, h duas menes

    ao Oriente. Ao comentar sobre o gosto de Tio Emlio pela caa, declara: E, de tanto

    ver a paca apontar da espumarada do poo, bigoduda e ensaboada como um chins

    em cadeira de barbeiro... (ROSA, 2001b, p. 225). Logo na sequncia, quando

    descreve Maria Irma pela primeira vez, sobre os olhos: To lindos, que s podem

    ser os tais olhos sia-na-Amrica de uma pernambucana (ROSA, 2001b, p. 225).

    Essa segunda meno importante, visto que, ao longo da narrativa, o autor

    sempre destaca os diferentes olhares da prima, por quem se descobre apaixonado.

    Dessa forma, toda vez que ele fala nos olhos dela, essa primeira descrio est,

    indiretamente, espalhada pela narrativa inteira.

    Outro ponto a ser notado o fato de o trecho atribudo a Buda possuir

    elementos locais e recorrentes na novela; alm das bananeiras e mangueiras, h o

    rio, o regato, a cascata: O crrego, saindo da ipuera, um rego fino e reto (ROSA,

    2001b, p. 227); Havia uma cachoeira no rego, com a bica de bambu para o tubo de

    borracha (ROSA, 2001b, p. 239), Quando eu ia repetir o meu amor pela terceira

    vez, ela, com voz tnue como cascata de orvalho, de folhe em flor e flor em folha...

    (ROSA, 2001b, p. 244). O seguinte trecho que revela, de certa forma, essas

  • 36

    estratgias acima usadas na construo do texto:

    Porque todos os crregos aqui so misteriosos - somem-se solo a dentro, de repente, em fendas de calcrio, viajando, ora lguas, nos leitos subterrneos, e apontando, muito adiante, num arroto ou numa cascata de rasgo. Mas o mais enigmtico de todos este ribeiro, que s vezes sobe de nvel, sem chuvas, sem motivo anunciado, para minguar, de pronto, menos de uma hora depois (ROSA, 2001b, p. 231, grifo do autor).

    A apario das supostas palavras de Buda na narrativa alimentada por esses

    crregos que aparecem e somem no texto, que eclodem mais a frente como a

    citao atribuda ao Buda em si; ela semelhante ao ribeiro, ganhando destaque,

    surgindo inesperadamente no texto; a apario, porm, como demonstrado, tem

    motivos que a anunciam. Todos esses dados em conjunto do suporte para que a

    citao atribuda ao Buda e seu ensinamento no soem estranhos na narrativa, nem

    paream despropositados. Mas por que ela est no texto? Que funo poderia

    assumir?

    Essas possveis palavras de Buda, provavelmente, referem-se a ensinamentos

    de meditao shamata, o calmo permanecer. Em alguns ensinamentos sobre esse

    mtodo de meditao silenciosa, a pacificao que ocorre na mente, medida que

    se progride nessa prtica, pode ser dividida em cinco diferentes estgios:

    semelhante a uma cachoeira caindo de um penhasco; a um rio que corre por

    desfiladeiros na montanha; a um grande rio fluindo com facilidade; a um lago

    levemente agitado por ondulaes na superfcie; e, finalmente, uma meditao que

    semelhante um oceano sem ondas (KHYENTSE, 2013).

    De acordo com Khenchen Thrangu (1998), uma das experincias que ocorrem

    ao se praticar esse tipo de meditao que a mente, ao ficar estvel e relaxada,

    pode fazer com que o meditador experimente estgios sutis de prazer, que evoluem

    para estados significativos de bem-aventurana. No se deve, porm, segundo o

    autor, apegar-se a esses estados, para que o meditador no fique sob o poder

    delas.

    Sendo assim, o narrador lembra seja no sonho ou enquanto narra a

    experincia e usa dessas possveis palavras do Buda para demonstrar como

    chegou no estado de bem-aventurana e deleite que foi o sonho com as diferentes

    vnus, que culmina com a apario de uma vnus real, Maria Irma. Esse estado

    comea a ser narrado logo em sequncia citao do pastor dos insones: Mas,

    RaffaelaRealce

  • 37

    do mudo fundo, despontam formas, se alongam. Anfitrites dormidas, na concha da

    minha mo, e anadimenas a florirem da espuma (ROSA, 2001b, p. 237). Do

    estado de calma em que a mente est, surge o estado de prazer; das espumas do

    oceano calmo, surgem as vnus.

    A experincia que ele teve foi particular, interna: Meu esprito fumaceou, por

    ares de minha s posse (ROSA, 2001b, p. 238). E depois de ter vises de

    diferentes deusas, quem aparece Maria Irma. Tudo indica que o narrador apegou-

    se como Thrangu (1998) indica no fazer experincia do prazer que teve e

    que culminou com a apario da prima. Isso porque, a partir desse ponto da

    narrativa, ele est preso ao sentimento que tem por Maria Irma, e os jogos

    emocionais j se iniciam no primeiro dilogo, assim que ele acorda ou simplesmente

    sai da experincia. Ele pergunta para ela:

    a respeito... Bem, sobre... Voc quer saber se eu deixei algum amor, a esperar por mim? Se deixou, ou no, no me interessa... Ento, por que voc quis perguntar, prima? E por que foi que voc adivinhou a pergunta, primo? (ROSA, 2001b, p. 238)

    O que antes era s um interesse vago uma lembrana de namoro de

    infncia e uma experincia de prazer com um sonho , com o tempo, o narrador

    passou a estar sob o poder da atrao por Maria Irma, e com o estado mental

    totalmente dependente das atitudes da moa: O sorriso de Maria Irma era quase

    irnico. No me zanguei, mas tambm no gostei (ROSA, 2001b, p. 242). Quando

    ela recebe a visita de um homem, depois de sentir cime ao ver os dois juntos, ele

    concluiu: Entre Maria Irma e esse moo h qualquer coisa. Exaspero-me. Detesto-

    os! (ROSA, 2001b, p. 242). Mas, assim como toda a narrativa est permeada pelo

    fluxo contnuo de movimento das guas cascatas, rios, crregos e chuvas , as

    emoes do narrador ganham outro rumo e desguam em Armanda, amiga da

    prima. O sentimento do narrador por Maria Irma como o rio citado por ele, que, da

    mesma forma que sobe de nvel, esvai-se rapidamente.

    Dessa maneira, por meio dos neologismos, da preparao do texto e

    consequentemente do leitor para receber a informao e para relacionar a

    experincia do narrador a uma experincia descrita por Buda, a integrao do

    Oriente no interior de Minas Gerais no soa estranha: Buda e sua filosofia passam

    RaffaelaRealce

  • 38

    naturalmente a fazer parte da narrativa de Guimares Rosa, ambos no esto em

    uma dico estranha ao texto.

    Como em Orientao, vale notar que o narrador de Minha gente tem certa

    carga de erudio: ele sabe jogar xadrez, entende as citaes francesas de Santana

    e evoca as referncias literrias do amigo. Aqui, isso faz com que no soe estranho,

    nos locais e tempo em que vive e visita, o fato de ele conhecer Buda e seus

    ensinamentos. Alm disso, a citao atribuda a Buda est no momento de

    transformao do narrador: como mencionado, ele passa a estar sob as emoes

    que sente por Maria Irma, e ele tem conscincia disso.

    2.2.4 Ave, palavra: Buda no cerrado

    A obra pstuma Ave, palavra traz a narrativa Cipango, na qual algumas personagens so imigrantes japoneses que vivem de agricultura na regio de

    Campo Grande, MS. Alm da simpatia, do hbito de trabalhar e at da prpria

    decorao da casa Tudo ali dentro era inesperado e simples, mas de um simples

    diferente do nosso, desenrolado de velha sabedoria dos olhos (ROSA, 2001a, p.

    145) , o narrador observa em dois momentos da visita que faz colnia, a

    particularidade fsica de um chefe de famlia que encontra, o agricultor Takeshi

    Kumoitsuru.

    Primeiro, repara que esse japons tem Cabea raspada, com topete: cismo-o

    um sacerdote do xint ou budista, amigo da raposa branca. Seu sorriso no

    dissimula um aspecto apreensivo (ROSA, 2001a, p. 145). E, em seguida,

    complementa: E o homem figurava mesmo um buda-bonzo, ou xam monge, ou

    ds-c o que seja (ROSA, 2001a, p. 146). Nessa narrativa, uma figura central do

    universo budista evocada duas vezes para que o narrador consiga descrever a

    fisionomia de uma das personagens; a figura recorrente na memria do narrador.

    Novamente, o Oriente est integrado ao interior do Brasil: os agricultores

    japoneses esto adaptados e organizados na regio, alm de produzirem, pelo

    menos, o suficiente para se alimentarem bem. Quando um dos imigrantes reclamou

    sobre a dificuldade da vida ali, o narrador ratifica a informao: Nem h de estar

    pobre assim, comer ao dia seus trs arrozes (ROSA, 2001a, p. 145). Alm disso,

    levando em conta o narrado, no h conflito na convivncia ou na interao dos

    japoneses com o local ou com o grupo que os visita.

    RaffaelaRealce

    RaffaelaRealce

  • 39

    Se em Orientao o modo de Quim sentar trouxe desentendimentos, o

    narrador de Cipango descreve essa peculiaridade oriental com naturalidade. Ao

    falar sobre os imigrantes nos vages do trem, declara: Muitos, em geral as

    mulheres, se sentavam no cho, cruzando as pernas, aos cantos ou pelo corredor,

    gente que no se acostumava ainda a permanecer em cadeira ou banco (ROSA,

    2001a, p. 143). Isso era inadmissvel para Rita Rola.

    Nessa narrativa, assim como algumas das citadas anteriormente, o elemento

    oriental est ligado transformao de algo local. Neste caso, o local em si que se

    transforma, a paisagem do interior do Brasil perde sua particularidade e ganha ares

    orientais:

    Num raso pedao de terreno, verde-verde de todo plantado, luminoso de canaizinhos de irrigao, vamos trs pessoas, uma famlia. Paravam numa paisagem em seda. At no caminhar dos sulcos dgua no entremeio das midas culturas, na separao das poucas rvores mantidas, puderam os Sakamota impor a este cho um torcido toque de arte nipnica com sua assimetria intencional, recesso de calados espaos inventados e riscos que imveis guardam qualquer coisa do relmpago (ROSA, 2001a, p. 146).

    A paisagem do Centro-Oeste do Brasil torna-se paisagem em seda, sob

    influncia do trabalho praticamente artstico dos imigrantes na configurao da

    plantao. Eles transformaram o local, mesmo que s um pedao dele, apenas num

    raso pedao de terreno.

    O narrador, como o de Orientao e de Minha gente, no deixa de

    demonstrar certa erudio, que em Cipango revela-se por meio tanto do

    conhecimento de dados da imigrao japonesa quanto da prpria cultura nipnica.

    Ele sabe como se configurou a organizao dos japoneses: Parece que se agrupam

    segundo a procedncia: em Araatuba so quase todos de Kiu-Shiu, de Kagoshima;

    de Okinawa, aqui em Campo Grande (ROSA, 2001a, p. 143). Alm disso, conhece

    at o nome de um dos instrumentos de trabalho, uma espcie de faca, em japons:

    Com o ko-tch largo cutelo curto cortava cana para a vaca (ROSA, 2001a, p.

    145).

    Entre todas essas narrativas, Cipango a qual a presena de um elemento

    budista causa menos estranheza. Fazer referncia a Buda ao falar de uma visita a

    uma comunidade japonesa , de certa forma, esperado: o budismo faz parte da

    cultura e, caso alguma esttua, por exemplo, tivesse sido notada em um altar, isso

    seria completamente normal ou at bvio. De qualquer forma, interessante notar

  • 40

    que, nessa narrativa, h uma constatao e reiterao do narrador, como se

    quisesse deixar clara esta peculiaridade, sobre a aparncia meio enigmtica de

    Takeshi Kumoitsuru: ele se parecia, em um primeiro momento, que depois se

    confirma, um sacerdote budista. Alm disso, h a explicitao da transformao que

    o elemento oriental pode causar no local, mesmo que seja uma mudana na

    percepo do narrador em relao a um pequeno pedao da propriedade rural.

    Dessa forma, tendo rastreado pegadas de Buda em alguns textos de

    Guimares Rosa, e pelo fato de elas terem uma ocorrncia semelhante ao longo da

    obra do autor, a aproximao de um raciocnio de Riobaldo sobre a existncia do

    diabo com um aspecto da filosofia budista , no mnimo, cabvel, no s por esses

    rastros que existem, mas tambm pela prpria semelhana que guardam entre si.

    Como os crregos misteriosos citados em Minha gente, que ora esto aparentes,

    ora no, h um fluxo de aparies de Buda na obra do autor mineiro. Em Sagarana,

    Tutamia e Ave, palavra, as guas esto aparentes. Em Grande serto: veredas, no

    entanto, a presena se d como a do crrego subterrneo. Em um primeiro

    momento, o crrego parece no estar l, mas, ao se investigar, ser encontrado.

  • 41

    3 DIABO E BUDA NO REDEMUNHO DE GRANDE SERTO: VEREDAS

    Diabo, no Ocidente, figura muito potente no universo do cristianismo e no

    imaginrio popular, aparece, em Grande serto: veredas, envolvido em um

    raciocnio muito prximo de um outro, formalizado na ndia budista. O que poderia

    ser considerado uma contradio ou equvoco tomar uma figura crist e alinh-la

    a um pensamento oriental ganha outra medida quando observado que tanto o

    diabo quanto o budismo aparecem, no romance de Joo Guimares Rosa, com

    roupagens diferentes das comumente identificadas.

    3.1 OS POSSVEIS CAMINHOS DO DEMO

    Em As formas do falso, Walnice Galvo explicita como Grande serto:

    veredas construdo em cima de ambuiguidades. Para a autora, esse o esquema

    que organiza o romance, e tudo se passa como se ora fosse ora no fosse, as

    coisas s vezes so e s vezes no so (GALVO, 1972, p. 13). O diabo, na

    narrao, no deixa de estar sob este princpio. Por exemplo, entre tantas outras

    ambiguidades que o romance comporta, destacam-se: Riobaldo , ao mesmo

    tempo, filho de fazendeiro e jaguno, letrado e er