Scripta Uniandrade, v. 17, n. 2 (2019) Revista da Pós-Graduação em Letras – UNIANDRADE
Curitiba, Paraná, Brasil
ALVES, Ricardo Luiz Pedrosa. Relações sociais em três narrativas de Guimarães Rosa. Scripta Uniandrade, v. 17, n. 2 (2019), p. 229-250.
Curitiba, Paraná, Brasil Data de edição: 03 set. 2019.
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RELAÇÕES SOCIAIS EM TRÊS NARRATIVAS DE GUIMARÃES ROSA
Dr. RICARDO LUIZ PEDROSA ALVES
Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO)
Guarapuava, Paraná, Brasil
RESUMO: O artigo analisa as relações sociais em três narrativas de Guimarães Rosa:
o romance Grande sertão: veredas e os contos “Meu tio o Iauaretê” e “Famigerado”. A
leitura das relações sociais sob contexto rural ocorre pela investigação das mediações
da voz narrativa, a partir das interlocuções sociais propostas nas três ficções. A
centralidade do narrador e a dialética com o interlocutor são elementos deste estudo,
apontando a contradição social nas falsas interlocuções representadas ficcionalmente.
O artigo também discute as concepções a respeito das relações sociais em Guimarães
Rosa nas análises de Willi Bolle, Roberto Schwarz, Walnice Galvão, Antonio Candido,
Ángel Rama, Luís Augusto Fischer, Ana Paula Pacheco e Luís Bueno.
Palavras-chave: Guimarães Rosa. Relações sociais. Mediação narrativa. Rural.
Artigo recebido em: 27 maio 2019 Aceito em: 29 jun. 2019.
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Curitiba, Paraná, Brasil Data de edição: 03 set. 2019.
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SOCIAL RELATIONS IN THREE NARRATIVES BY GUIMARÃES ROSA
ABSTRACT: The article analyzes the social relations in three narratives by Guimarães
Rosa: the novel Grande sertão: veredas and the short stories “Meu tio o Iauaretê” and
“Famigerado”. The reading of social relations in rural contexts occurs through the
investigation of the mediations assumed by the narrative voices, analysed from the
social interlocutions proposed in the three fictional narratives. The centrality of the
narrator and the dialectic with the interlocutor are elements discussed in this study,
pointing to social contradiction in the false utterances fictionally represented. The
present article also discusses the social relations in Guimarães Rosa considering the
works by Willi Bolle, Roberto Schwarz, Walnice Galvão, Antonio Candido, Ángel Rama,
Luís Augusto Fischer, Ana Paula Pacheco and Luís Bueno.
Keywords: Guimarães Rosa. Social relations. Narrative mediation. Rural.
Este artigo almeja discutir as relações sociais em três narrativas de
Guimarães Rosa: o romance Grande sertão: veredas, de 1956, e os contos
“Meu tio o Iauaretê”, de Estas estórias, de 1969, e “Famigerado”, de Primeiras
estórias, de 1962. Nos limites disponíveis, descartaremos de imediato as
óbvias diferenças de gênero textual e extensão das narrativas. Importa-nos é
que as três peças impõem a mediação narrativa como refração da
representação. Essa mediação é semelhante, em termos operacionais, mas não
ideológicos, em Grande sertão: veredas e em “Meu tio o Iauaretê”, onde é mais
desapercebida, pois o interlocutor é apenas referido, mas diferente em
“Famigerado”, cuja mediação retoma ironicamente as opacidades de uma
literatura regionalista anterior. Quando Antonio Candido escreve que a leitura
do romance de Rosa deve ser feita fora dos “hábitos realistas, dominantes em
nossa ficção” (CANDIDO, 1964, p. 123), operando a partir do “universo
autônomo” criado pelo romancista, abre-se o caminho para o estudo do
romance e dos contos a partir da operação narrativa, social em sua medula,
que permitiu aquela autonomização diante do realismo. Pretendemos iniciar o
estudo das relações sociais em dois pontos: na reflexão que as narrativas
possibilitam quanto às relações sociais (ao situarem interlocuções refratando
discursos sociais); na operação intelectual diante das formas culturais (o
escritor como mediador), dimensão menos importante para o presente texto.
De fato, sentimos aqui apenas iniciar a visualização de múltiplos problemas
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suscitados pela leitura social da literatura de Guimarães Rosa. Por fim,
entende-se que esse primeiro passo exige ao menos uma discreta discussão
com significativa seleta de análises.
Em comum, as três narrativas apresentam narradores em situação de
interlocução com seu suposto oposto social. Nessa estrutura de interlocução
(montada sobre monólogos, com a exceção de trechos de “Famigerado”), é
possível ler uma síntese de enredos semelhantes: o diálogo social, em suas
aproximações e impossibilidades. Um estudo de relações sociais nas três
narrativas deve partir da constatação de que a composição formal das
interlocuções inventa discussões sociais no espaço extra-estético. A
centralidade do narrador, a dialética com o interlocutor, a dialética
interiorizada de coragem e medo, são elementos deste estudo. Até que ponto o
arbítrio dos narradores, por exemplo, é absoluto? O essencial das situações,
sobre as quais em geral são feitas as leituras críticas quanto à representação,
relaciona-se como com a condução, a reflexão e o arranjo narrativos? Como se
relacionam a dicção e a confiabilidade dos narradores? Não é intenção aqui
esgotar tais questionamentos: apenas os apontamos como caminhos para se
prosseguir na discussão.
Centraremos nossa leitura pela verificação da relação entre as
narrativas e a condição rural. Trata-se da leitura da dialética brasileira entre
mundo rural e modernidade. Em Grande sertão: veredas o sistema de poder
rural (os grandes fazendeiros na manipulação do sistema da jagunçagem) é
uma força que tenta organizar o sertão, o espaço indomado e a gente a ser
submetida, embora este lhe escape (mas não para Riobaldo, enfim
proprietário). A modernidade comparece criticamente na “papagaiagem”
discursiva de Zé Bebelo e, principalmente, personificada no interlocutor
(mesmo aqui precisaríamos relativizar, pois este homem urbano é também um
aventureiro – e não um turista – que parte para conhecer o sertão), também
inquiridor e orientador, particularmente quanto ao ajuste da retórica do
narrador. O rural enquanto paisagem, no entanto, surge mais discretamente
no texto, aprendida a lição de contenção junto aos romancistas de 1930: o
destaque contrastivo vai para as topografias e o mapeamento lírico da
natureza. O discurso rural, desse modo, tem como tarefa encantar a cidade
ficcional personificada na interlocução, para que se absolva o passado (o que
se fez, indivíduo rural, do passado) socialmente. Usa-se, para tanto, uma
cordialidade irônica de matuto falso-sonso, repleta de humildade, valorações
da cultura letrada e justificação religiosa.
Começamos pelo conto “Meu tio o Iauaretê”, possivelmente escrito antes
mesmo de Grande sertão: veredas, embora relegado a publicação póstuma.
Grande é a semelhança com o romance, o que nos levará a aproximações entre
as duas narrativas. Nos dois monólogos sob contexto dialógico, a conversa é
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intuída, mas o Outro (o civilizado) tem a voz cassada. Até que ponto esse
silêncio do interlocutor e suas insinuações nas estratégias discursivas não são
elementos a serem considerados na investigação da voz narrativa? Como são
vistos os interlocutores por Riobaldo e Bacuriquirepa? Como eles afetam os
narradores? Estamos diante de seres da modernidade contraditória
submetidos à audição: os interlocutores são, em parte, juízes das histórias de
vida dos narradores. Uma escuta etnográfica e observadora no romance
(mesmo que se insinue inicialmente, com um tom galhofeiro, ser ela a
personificação do diabo vindo cobrar o pactário); e sendo assassina e
profissional – logo, dividida entre o irracional e o racional – ao mesmo tempo,
no conto “Meu tio o Iauretê”.
Walnice Galvão (1978, p. 34) aponta várias coincidências entre o conto
e o romance, ambos abrindo a explanação com o mesmo achado formal: teria
sido este achado a causa do engavetamento do conto? Ela chega a uma
convincente concepção do papel do interlocutor como simultaneamente
mediador e receptor do discurso, comparando o romance ao conto:
O brilhante feito de conseguir pôr uma fala que flui ininterruptamente da boca
de um narrador, que é o outro... (...) Em ambos os casos, o narrador-
protagonista tem sua alteridade marcada com relação ao interlocutor que é
homem da cidade e portador dos signos da urbanidade, nem sertanejo num
caso, nem meio-índio no outro. Evitando o contraste de discursos, o
interlocutor nunca fala, mas é colocado na fala do outro por meio de
interpelações e respostas a hipotéticas perguntas. Assim, a fala só
indiretamente se dirige ao leitor, apesar de, em ambos os casos, ser um
monólogo direto iniciado por um travessão: seu alvo é o interlocutor presente
na situação criada, e só dali ela inflete na direção do leitor. Este,
evidentemente, está colocado para cá do interlocutor, e recebe pela mediação
deste o monólogo a ele destinado.
Destacando outras semelhanças, Galvão não comenta a talvez principal
delas no plano do enredo, pois, em comum com o romance, o conto traz uma
história de interdição: o homoerotismo no romance, a zoofilia e o incesto no
conto. São histórias que os narradores “precisam” contar, são culpas eróticas
inseparáveis do narrar: “Onça fêmea mais bonita é Maria-Maria... Eh, mecê
quer saber? Não, isso eu não conto. Conto não, de jeito nenhum... Mecê quer
saber muita coisa!” (ROSA, 1969, p. 134). No entanto, Bacuriquirepa contará
tudo em detalhes, bem como o fez Riobaldo, a despeito do anticlímax com que
o ex-jagunço compõe a revelação de gênero de Diadorim. A catarse vem da
transparência (e mesmo distância, como sugere Riobaldo) desses
interlocutores? Há transparência nesses interlocutores? O interlocutor de
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Riobaldo precisa provar, de início, estar distante da crença no diabo. O de
“Meu tio o Iauaretê” tem o tempo todo seus movimentos de ameaça
comentados pelo narrador. A mediação é objetiva, mas instável.
O mérito da leitura de Galvão é inegável e consiste na relevância que dá
à mediação narrativa: o discurso tem o leitor numa segunda mira. O achado
de Rosa, portanto, é esse afastamento do leitor em nome da verossimilhança
do interlocutor, quase literalmente construída “nonada”. Em “Meu tio o
Iauaretê”, a posição rural está sobreposta à posição selvagem, o que modifica
sua relação contraditória com a modernidade. Não à toa, Walnice Galvão
desenvolve longa argumentação em torno ao cru e ao cozido em alegoria na
narrativa. O jagunço-onça, no entanto, não está muito distante,
funcionalmente, do jagunço letrado Riobaldo, o ser que passou de “homem
provisório” a latifundiário. Ambos são casos extremos, exceções:
Bacuriquirepa é uma das últimas onças, e Riobaldo é um dos últimos daquele
sertão inacessível enquanto experiência ao interlocutor urbano. Além disso,
quase nenhum ex-onceiro se torna onça, nem quase nenhum jagunço se torna
latifundiário. São experiências das radicais da ruralidade e, para além dessa
condição de exemplaridade (superando, portanto, o típico), há a literalizar os
textos o isomorfismo da posição social em relação ao rural e ao conjunto de
movimentação e organização da exposição temporal das falas.
A representação (o fazer-se ouvinte dos interlocutores de Grande sertão:
veredas e “Meu tio o Iauaretê”) está em relação direta com a orientação do
retrato de pacto fáustico e de metamorfose mítica que perfazem os narradores.
Retrato, aqui, como a estilização de dados formativos de uma identidade que é
sempre movente, isto é, identidade como travessia, em formação. Tal noção
formativa, note-se é importante para a discussão das narrativas de Rosa.
Aquela incompletude formativa é, em parte, a marca do romance de formação
(Bildungsroman). Willi Bolle (2004) e Marcus Mazzari (2010) discutem Grande
sertão: veredas à luz do problema. O narrador que conta sua experiência
diante do mundo, propondo-a exemplar, embora pouquíssimo confiável, conta
de maneira fragmentada seu caminho para a socialização. A discussão aqui
pode recair na dupla opção hermenêutica: pacto fáustico, mesmo que
potencialização do que já dispunha o indivíduo, como propõe Mazzari, ou deus
ex machina da ascensão social do herói herdeiro – embora essa opção possa
ser inviabilizada pelo casamento por interesse pecuniário que realiza Riobaldo
com Otacília. Essa condição típica do romance de formação (o estar encaixado
na “prosa do mundo” hegeliana), composta pela figura do acúmulo de relações
(discursos) sociais com uma perspectiva sempre cindida entre a simpatia e a
ironia reflexiva é também a conformação estilizada de uma formação política e
de sua historiografia, seu retrato (no limite, nacional, embora, para Rosa, o
“sertão” também seja “o mundo”). Bolle propõe esse retrato nacional como
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criptografado numa série de redes temáticas em discussão alegórica com uma
concepção e uma proposta, desencantada, de país, cuja utopia única é a
linguagem.
Entendendo formação nacional como sedimentação de experiências,
seriação nas ideias e vida cultural orgânica, à maneira do que se propõe em
Sentido da formação, de Paulo Arantes e Otília Arantes (1997), pode-se dizer
que ocorre a dissolução da formação em “Meu tio o Iauaretê”. Há uma dupla
deformação: a regressão do onceiro em onça, a regressão da própria linguagem
ao inarticulado. Segundo Galvão: “(...) a própria personagem constrói o enredo
numa fala ininterrupta, que insula o conto nos limites de uma só noite. Assim
o vemos, recebendo como leitores sua fala emitida para outra personagem que
nunca interfere e com quem ele conversa...” (GALVÃO, 1978, p. 13). Segundo
Galvão, a fala sai, inicialmente, “desarticulada e sonsa” (GALVÃO, 1978, p.
24), com as informações sendo reveladas paulatinamente, sob o influxo da
cachaça, que desfaz a censura inicial. Em termos, pois o personagem começa
também perguntando, já desconfiado, logo, atento. Bacuriquirepa é um ser
dividido, cujas reflexões girariam em torno da cisão mãe-natureza e pai-
violência rural. A cisão com o branco é uma cisão que ele traz em si, o que
torna mais complexa a polarização índio-onça versus branco-interlocutor.
Embora tenha tido vários nomes, o narrador diz não carecer mais de nome: ele
os sabe, mas os abandonou, portanto, não se identificando com nenhum deles
e com todos (“eu tenho todo nome”).
A dialética central no diálogo social frustrado é aquela que envolve
medo e coragem (assunto tão tematizado por Riobaldo e tema central de
“Famigerado”). Em “Meu tio o Iauaretê”, a conversa segue diferentes planos,
como ou da discordância: “Nhem? É, mecê é quem tá falando. Eu acho triste
não. Acho bonito não. É, é como é, mesmo, que nem todo lugar” (ROSA, 1969,
p. 132). Ou do interrogatório: “De verdade. Tou falando verdade!... Aqui não
vem ninguém, é muito custoso” (ROSA, 1969, p. 131). Há também o plano do
duelo, como nesse caso em que o narrador passa da descrição da caça para
vários “mecê” dirigidos ao interlocutor: “Todo movimento de caça a gente tem
que aprender. Eu sei como mecê mexe mão, que cê olha pra baixo ou pra riba,
já sei quanto tempo mecê leva pra pular, se carecer. Sei em que perna
primeiro é que mecê levanta” (ROSA, 1969, p. 136). O interlocutor está sempre
presente, orientando a narrativa. Há um momento, porém, em que o diálogo
social (mesmo que hostil) é definitivamente rompido. Na medida em que vai se
assumindo como homem-onça, Bacuriquirepa assume também seus atos
homicidas (o que se faz verossímil pela instigação da bebida). Ele vai
recontando as histórias e se afastando do interlocutor. O discurso se torna
impositivo, a condução passa a ser a da metamorfose para o confronto
inevitável. Entram marcas linguísticas de condução e de temporalização como
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“Ói”, “Eh”, “Aí”, “Manhã cedo”, “De noite”, “Quando”, “O dia todo”: ele passa a
narrar, desdenhando a conversa, já rompida com a confissão dos crimes.
Traído pela boca (à maneira também do Damázio de “Famigerado”, conto que
mostra como o conflito social é vencido por aquele, a elite, que sabe controlar
a fala), a metamorfose é inevitável. Perfaz-se um longo arco de narração e
volta-se, na última página, ao tempo da enunciação, acirrando-se e
resolvendo-se violentamente o conflito. Há uma suspensão necessária,
portanto, da interlocução: por momentos, a narração se faz fora da injunção
da modernização e da palavra da lei. O rural (asselvajado) é assumido aqui
como telurismo irracional, no discurso do desvio.
É possível fazer uma leitura ideológica do texto? Temos, em “Meu tio o
Iauaretê”, um narrador que conduz um monólogo-diálogo no qual conta sua
história de conversão ao mundo selvagem, um mundo supostamente mais
puro, onde a morte é, por assim dizer, da ordem da natureza. No entanto,
quem guia o discurso desse narrador? Não se pode descartar a injunção da
embriaguez, situação que torna fragmentário e esquivo o discurso. Porém, o
mais importante para uma leitura de ideologia talvez seja a presença do
interlocutor, do homem branco cujas perguntas são parcialmente repetidas
pelo narrador. O discurso do narrador se faz numa conversa. Este é um ponto
que a monologação parece disfarçar. A condução daquilo que se apresenta (e
que cada vez se apresenta mais) é feita pela presença do interlocutor que veio
completar o trabalho sujo da instalação da modernidade. São suas perguntas
de representante da civilização (daquele que compra a morte das onças,
daquele que investiga a morte dos homens e que as discrimina entre legítimas
ou não) que orientam o discurso e o desfecho. As mudanças no discurso, os
nós que orientam seu andamento naquele ou nesse sentido, dão-se a partir de
interrogações que o ex-caçador de onça repete, culminando na catarse
narrativa, quando se abandona a tentativa do diálogo. O que se encobre aí,
portanto, em termos sociais? A discussão talvez devesse ser reencaminhada:
de que lado está a violência? No lado felino representado pelo ex-caçador ou
no lado dos caçadores, do preto que se apossa do rancho e exige o trabalho do
ex-caçador, da ocupação fundiária e da exploração sexual da mulher? Estes
últimos são os detentores da nomeação e da ocupação, o lado do revólver; o
primeiro, o homem-onça, perde mesmo seu nome. Mesmo o fato de nomear as
onças escapa à ordem da dominação, pois, segundo quer dizer, aqueles nomes
já eram delas antes que ele as nomeasse. Não há nele, também, posse: ele está
equiparado ao ambiente, despojado mesmo do desejo sexual humano.
Passemos à discussão de “Famigerado”, antes de retomarmos Grande
sertão: veredas. Em “Famigerado” parece haver uma despedida do rural. Um
homem da cidade conta ter sido surpreendido em casa por um tropel. Um
“cara de nenhum amigo” o aborda. Outros três, testemunhas “tristes”, ficam
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num bolo. Intui que seriam prisioneiros, não sequazes do outro. O narrador
vai se constituindo corajoso: inicia por um “Tomei-me nos nervos” (ROSA,
1998, p. 13); no outro parágrafo vem:
Senti que não me ficava útil dar cara amena, mostras de temeroso. Eu não
tinha arma ao alcance. Tivesse, também, não adiantava. Com um pingo no i,
ele me dissolvia. O medo é a extrema ignorância em momento muito agudo. O
medo O. O medo me miava. Convidei-o a desmontar, a entrar.
O narrador quer se mostrar sábio e, embora confesse a violência (não
ter a arma ao alcance), o que o aproxima do mundo do jagunço, tem
sentimentos ambivalentes, ora refletindo sobre o medo, ora o confessando.
Esta narrativa parece girar num outro eixo, portanto: aqui nos é revelado,
pelas ações, comentários e reflexões do narrador, o mecanismo mental da elite
para o convívio com a brutalidade que a serve. A aliança entre modernidade e
brutalidade fica evidenciada como um jogo de avanços e recuos, num pacto
entre iguais em que um dá as ordens. A reprodução da desigualdade social se
dá em torno do treinamento científico da observação dos dados fisiológicos (o
gestual do jagunço, o suor do cavalo etc.), treinamento que se evidencia como
posição de classe. Esse treinamento envolve também o controle da fala pelo
conhecimento técnico: o poder saber como se manipula a linguagem
estabelece um padrão desigual de relação social.
Vejamos o funcionamento de tal disciplina social. O narrador, médico,
comenta um gesto do oponente: “decerto relaxava o corpo para dar-se mais à
ingente tarefa de pensar.” O texto vem talhado no vocabulário da personagem,
com termos menos comuns, como “sequazes”, “ingente”, “farroma”, “farrusca”,
mostrando o poder de manipulação da linguagem. O narrador estabelece sua
defesa em termos racionais: “Muito de macio, mentalmente, comecei a me
organizar.” (ROSA, 1998, p. 14). Os mundos em disputa são o da velocidade
brusca (desde a chegada, de cavalo suado), de quem precisa espaçar a voz
para alcançar a calma, que pode reagir inopinadamente, e o mundo da astúcia
da racionalidade urbana, marcada pelo cálculo, previsão, sobriedade. Um
mundo de quem corre atrás da história contra um mundo de quem já está
empossado no presente.
O oponente começa a perguntar. Reticências. Entra em cena um
comentário do narrador-doutor. Este descreve o oponente de modo a justificar
para o leitor a solução que dará ao caso: a justificativa de classe da astúcia e
do chiste se faz em nome da ameaça da violência “para cada momento”, “sem
medida e sem certeza”. Há uma avaliação do potencial irracional da violência
do jagunço, descrito como “(...) gente brava. Aquele propunha sangue, em suas
tenções” (ROSA, 1998, p. 14). Quando o visitante se identifica, o nome
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Damázio é identificado como o de criminoso famoso. Estaria retirado da
profissão violenta, mas a desconfiança não desgruda do anfitrião: “Fie-se,
porém, quem, em tais tréguas de pantera?” (ROSA, 1998, p. 15). A
identificação com o sobrinho do Iauaretê é imediata aqui, apenas está
invertido o ponto de vista. Segue-se a concentrada descrição dos modos com
que Damázio completa sua pergunta. Inicialmente, abrupto, fala de um
problema com um “moço do Governo”. Interrompe “com arranco”, talvez
arrependido e pensa numa estratégia. Sabemos que a obteve com a seguinte
descrição: “Do que, se resolveu. Levantou as feições. Se é que se riu: aquela
crueldade de dentes” (ROSA, 1998, p. 15). Ficamos sabendo que tinha um
“orgulho indeciso.” Passa a monologar a fim de ludibriar o anfitrião, “como
dificultação”. Há, portanto, toda uma leitura física do procedimento mental de
Damázio, dado de imediato pelo narrador como dissimulador: “Assim no
fechar-se com o jogo, sonso, no me iludir, ele enigmava” (ROSA, 1998, p. 15).
De repente, porém, vem a questão quanto ao sentido de “famigerado”, palavra
que a fala de Damázio associa a termos como “família” e “gerado” (uma ofensa
contra a honra, portanto).
Damázio explica que veio de longe só para obter a resposta, não
havendo ninguém capaz na sua região, apenas o padre, mas “eles logo
engambelam” (ROSA, 1998, p. 16). Supostamente, portanto, deposita cega
confiança na transparência do doutor da cidade. Sente-se que a questão de
Damázio é ter de voltar a matar se estiver confirmada sua suspeita de ofensa
embutida na palavra, tanto é que não a repete: “Agora, se me faz mercê,
vosmecê me fale, no pau da peroba, no aperfeiçoado: o que é que é, o que já
lhe perguntei?” (p. 16). Segue-se uma longa hesitação, agora do doutor,
tentando sondar a resposta desejada: “Tinha eu que descobrir a cara” (p. 16).
Dois recursos são operados, os dois dilatando a resposta, evitando-a: primeiro,
a dupla repetição da pergunta (“Famigerado?”); depois, a recusa do sermo
humilis, escorando-se na fala difícil. A dúvida de Damázio é se o termo é
“ofensa”, “caçoável”, “farsância”. A resposta neutra encobre o sentido negativo
da fama atribuída ao “famigerado”.
Obviamente a resposta satisfaz a Damázio, que “exultante”, desagrava-
se. Agradece ao doutor: “Disse: -- ‘Não há como que as grandezas machas
duma pessoa instruída!’” (ROSA, 1998, p. 16). Insinua-se mesmo, ao final,
após a dispensa das testemunhas, uma aproximação doméstica entre os dois
mundos, embora saibamos da articulação cínica do narrador, justificada pela
figuração do atraso em forma de violência “irracional” representada em
Damázio. Presente em um livro repleto de “estórias” com crianças, poderia ser
esperada uma infantilização da figura de Damázio. No entanto, a única
aproximação possível se dá na irracionalidade que parece orientar os gestos
bruscos do interlocutor jagunço. Em Rosa, a situação não deixa de ser a da
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encenação de um duelo da força bruta (que tem sua astúcia desvendada
fisiológica e analiticamente pelo narrador) com a orientação que o medo dá à
prudência racional do douto narrador. No conto “Famigerado”, insinua-se
mesmo uma aproximação doméstica entre a violência e a ciência. O clímax
esperado (o enfrentamento), “é um anticlímax, com a construção intensificante
do suspense sendo desmanchada, porque o que se aguardava não sobrevém;
ao contrário, falha e frustra a expectativa do leitor” (GALVÃO, 2006, p. 168).
Aquela aproximação entre ciência e violência, no entanto, é crítica? Talvez
Rosa opere como escreveu Ana Paula Pacheco: “(...) lança ao infinito e à
conciliação formal contradições sociais irreconciliáveis” (PACHECO, 2009, p.
132). Pacheco propõe a leitura do conto como “jogo de astúcia” cuja conclusão
é a humilhação do jagunço. O chiste e o humor seriam armas contra o medo:
O humor é aqui uma vingança do riso sobre o medo, mas não só. Como já
sugerimos, contando o ocorrido, o narrador domina definitivamente o jagunço,
fazendo dele objeto de derrisão para o leitor. A marca de distinção da resolução
espirituosa – acessível a quem compreende o jogo armado na letra – desvela
que se trata de uma conversa entre pares. (...) No entanto, fazer o interrogante
de bobo (“tese para alto rir”) e exibir-se ao leitor parece algo menos ingênuo do
que o prazer de dizer de modo cifrado o que não podia dizer às claras (afinal,
mesmo narrar o caso já é redobrar o feito). (PACHECO, 2009, p. 137)
Pacheco conclui sua análise com a definição de civilidade brutal:
mostrar o Outro e rir dele. Embora não discordemos do todo da argumentação
de Pacheco, gostaríamos de voltar nossa atenção em outra direção: o conto
apresenta um retrato convincente da aliança perversa de racionalidade e
brutalidade. E há ironia na caracterização do doutor, o que indica a marcação
moral de Rosa: ele não apenas usa vocabulário pedante, como se percebe o
diabolismo de sua linguagem e de sua astúcia. Também não vemos ironia em
relação ao falar de Damázio. Há até o inverso, pois ao referir o saber do doutor
como “grandezas machas”, a ironia parece estar sendo apontada para o
próprio narrador. Essa questão é uma das mais importantes abordadas por
Rosa: falar de relações sociais em sua obra implica em discutir seu lugar na
articulação da voz do Outro, do homem rural.
Duas das principais realizações de Guimarães Rosa (Grande sertão:
veredas e “Meu tio o Iauaretê”) fazem falar as personagens do mundo não-
moderno (parcialmente identificado ao mundo rural, no conto). No romance,
de modo ambíguo, pois Riobaldo, ex-miserável, professor, herdeiro, jagunço,
latifundiário, tem uma existência social bastante complexa, embora emita seu
discurso como proprietário. Tem, assim, uma vida dividida entre a violência e
a introjeção do discurso do poder, entre a contemplação desinteressada da
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beleza natural e a frustração enquanto letrado, entre a religião e o cálculo. Ele
também não escreve, como os narradores fazendeiros de Graciliano Ramos e
de José Lins do Rego: ele fala um texto com grande consciência de
composição. No conto, por sua vez, temos uma língua de índio, branco e bicho
apresentando-nos o discurso de um homem que ajudou a instalar a
modernidade (ao matar as onças de uma área), e que agora é descartado pela
mesma modernidade (por ter se tornado, em alegoria, a última onça).
Essa especificidade da mediação deve ser guardada para a leitura do
romance de Rosa. Para entrarmos em Grande sertão: veredas seria útil
também a leitura de um treco de Roberto Schwarz. Ele enfatiza em Conversa
sobre “Duas Meninas” um caminho ainda em construção para a crítica
literária:
A sociedade brasileira é evidentemente sui generis, diferente das outras por
causa da parte que o trabalho escravo teve em sua formação. Ela tem um
sistema de relações sociais próprio, mas não ocorreu à crítica que esse sistema
tivesse potência estruturante do ponto de vista estético. Ora, um bom escritor
desenvolve as relações sociais inscritas em seu material – situações,
linguagem, tradição etc. – segundo um fio próprio, quer dizer, próprio às
relações e próprio ao escritor: um fio que é de livre invenção, mas nem por isso
é arbitrário. A retomada e a exploração literária, em verso quanto em prosa, da
especificidade das relações sociais brasileiras até aqui praticamente não foi
objeto de pesquisa. Insisto nisso porque vejo aí um programa de estudos.”
(SCHWARZ, 1999, p. 230)
Retomamos também um apontamento de Luís Augusto Fischer (apud
CEVASCO; OHATA, 2007), destacando a insuficiência dos estudos (de
Schwarz, inclusive) da literatura rural na crítica materialista. Um problema do
mundo rural em relação ao marxismo está no positivismo internacionalista do
marxismo ortodoxo, pouco aberto para a heterogeneidade das reivindicações e
dos discursos locais, cuja especificidade é reduzida em nome da abstração dos
subalternos em geral. O argumento de Fischer é o de que a crítica de
esquerda, ao associar o processo revolucionário à captação do “novo”,
desdenhou das experiências de ficcionalização rural, dada como ultrapassada
ou mesmo regressiva. Schwarz e a esquerda não estariam abertos à visão do
novo no âmbito mesmo do rural (ou talvez como marca indelével de nossa
contradição específica formativa). A questão talvez não seja bem essa: a
dificuldade está em verificar a composição contraditória que o novo estabelece
com as temporalidades lentas do mundo rural. Entre as conquistas da
literatura rural, Fischer destaca duas: “(...) a problematização da posição do
narrador e a capacidade de renovar a linguagem da língua em que é escrito o
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texto...” (FISCHER apud CEVASCO; OHATA, 2007, p. 89). Segundo Fischer, a
leitura que Schwarz faz do romance de Rosa despreza a referencialidade rural,
em opções como a algebrização do andamento sintático do livro. A leitura do
narrador é particularmente problemática, na medida em que Schwarz parece
ter desconsiderado o filtro social que aquele impõe ao relato. Que nos fiquem
essas lições de Fischer para o melhor entendimento da especificidade de uma
experiência histórica estilizada pela articulação narrativa.
As falsas conversas das três narrativas (no romance, um interlocutor
que fica mudo por três dias e centenas de páginas e, nos contos, duas falsas
soluções: uma pela violência e a outra pelo ludíbrio) articulam a
impossibilidade do diálogo entre iguais, projetando uma imagem negativa e
crítica da construção do contrato social brasileiro. A cordialidade subjacente
ao romance é obtida por dois recursos: um interlocutor mudo, que deverá
supostamente pensar e textualizar a experiência de formação
simultaneamente social e demoníaca de Riobaldo; um narrador “jagunço-
letrado” (o termo é de Walnice Galvão), que, por isso mesmo, já textualizou em
narrativa sua experiência, já a tendo narrado, inclusive, antes, ao compadre
Quelemém. Se a dicotomia de origem não é tão evidenciada (ambos, a seu
modo, são letrados), a condução da história pelo narrador parcial
(supostamente, o Outro) através de estilizações operadas pelo escritor
Guimarães Rosa, apontam para uma convergência dialética entre atraso e
invenção. De fato, ao letrado jagunço não se concede a absolvição de,
pactuando com o poder, ser da ordem da violência. Ao mesmo tempo, porém,
não se abdica (no contexto da posição social do escritor) da contribuição
específica que o atraso pode ter para a invenção, tanto a linguística como a de
um outro contrato social, conduzido pela poesia. Não se estabelece conversa,
portanto, uma vez que a solução é falseada no plano da consciência, que
aceita a inevitabilidade do histórico.
O ensaio de Antonio Candido (“O homem dos avessos”, de 1964)
inaugurou a abordagem sócio-histórica sobre o romance de Rosa (a partir de
sua proposta, tivemos os trabalhos de Walnice Galvão, Willi Bolle, Heloísa
Starling etc.). O texto de Candido, porém, apoia-se em excesso na
generalização escorregadia quanto ao binômio observação-invenção: “Aos
poucos vemos surgir um universo fictício, à medida que a realidade geográfica
é recoberta pela natureza convencional” (CANDIDO, 1964, p. 124). Ou: “há um
homem fantástico a recobrir ou entremear o sertanejo real; há duas
humanidades que se comunicam livremente, pois os jagunços são e não são
reais” (CANDIDO, 1964, p. 129). Em outro ensaio (“A personagem do
romance”), Candido reitera sua avaliação, agora enfatizando o foco narrativo:
“A isto se junta a escolha do foco narrativo, -- o monólogo dum homem
rústico, cuja consciência serve de palco para os fatos que relata, e que os tinge
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com a sua própria visão, sem afinal ter certeza se o pacto ocorreu ou não”
(CANDIDO, 2002, p. 77). Parece mesmo haver uma dificuldade em se analisar
as relações sociais em Guimarães Rosa. O texto fundador de Candido define o
romance a partir da reversibilidade de suas ambiguidades: a constatação da
combinação de mito e logos não ajuda nosso entendimento neste artigo, muito
menos a identificação da estrutura narrativa aos romances de cavalaria.
Salva-se, para nossos propósitos, no texto de Candido, a ideia – não
desenvolvida por ele, mas em dia com as propostas mais recentes de Luís
Bueno (como em “Gerais e Mato Dentro: Minas em Guimarães Rosa e Cornélio
Penna”, ou em “Guimarães, Clarice e antes”) – quanto a uma concepção
marcada de telurismo irracional, onde tal telurismo pautaria a cosmovisão das
obras. Veja-se em Candido: “Produto do Sertão, a força do jagunço paladino
depende da força da terra; (...) mergulhando nas relações primordiais do
homem com a terra, que deve ser propiciada para viver e dar vida, como nos
ritos agrários” (CANDIDO, 1964, p. 134). Agora, em Bueno: “Há uma espécie
de telurismo aqui, portanto, que vai além da definição de dicionário, já que se
trata de relação de mão dupla, como se a influência do solo sobre seus
habitantes de alguma forma fosse devolvida ao próprio solo por esses
habitantes” (BUENO, 2009, p. 239).
Bueno participa de um novo esforço da crítica em ler socialmente a
literatura de Rosa. O trabalho mais completo nessa linha é o de Willi Bolle,
grandesertão.br (2004). Se em Bueno tínhamos um “Brasil em desequilíbrio”,
em Bolle a constatação, após a leitura da alegoria “criptografada” de Rosa em
seu romance, é de que o Brasil retratado pelo romancista padece de falta de
diálogo entre as classes. O trabalho de Bolle consegue articular múltiplas
abordagens do livro de Rosa, e quanto às relações sociais parece acertar ao
levar em conta a configuração narrativa. O que há de problemático em seu
trabalho parece ser a aproximação pouco mediada em relação aos discursos
do ensaísmo social brasileiro e às constituições do Brasil. Bolle concebe um
narrador de mediação, de transição (travessia) “entre as diferentes
mentalidades e linguagens: a sertaneja e a urbana, a coloquial e a erudita, a
oral e a escrita. Sua liberdade de transitar, seu jogo entre aproximação e
distanciamento, e sua ironia se expressam de várias formas” (BOLLE, 2004, p.
40). Bolle também destaca o narrador como mediador social. Para ele, há, por
exemplo, o tom da narrativa. O narrador, em atitude humilde, engrandece o
interlocutor, numa fingida ignorância, o tempo todo contrastada com os apelos
àquilo que certamente o interlocutor desconhece. Nisso também, o apelo à
colaboração do leitor. Outra conclusão de Bolle parte da análise do monólogo
por Roberto Schwarz:
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Um segundo elemento irônico está na construção da situação narrativa em
forma de “um monólogo inserto em situação dialógica”. A ironia está no fato de
o sertanejo ser o dono absoluto da fala, enquanto o doutor da cidade fica
reduzido ao papel de mero ouvinte. Assim, a situação narrativa em Grande
Sertão: Veredas configura-se como o exato oposto do ensaio historiográfico de
Euclides, em que o letrado enquanto representante da elite modernizadora
monopoliza o discurso. A inversão dos papéis costumeiros é um estratagema de
Guimarães Rosa para chamar a atenção sobre o desequilíbrio de falas entre as
forças sociais. (BOLLE, 2004, p. 40)
Além disso, o narrador é irônico: “A terceira forma de ironia é a auto-
ironia do narrador. Na base de sua fala está um constante questionamento do
próprio narrar” (BOLLE, 2004, p. 41). Dando-se aí uma tensão entre o tempo
narrado e o tempo da narração. O narrador, ainda segundo Bolle, é um
comentarista dos diversos discursos sociais em conflito. Tendemos a
concordar com essa visão do narrador irônico e auto-irônico de Bolle. No
entanto, parece faltar ao monumental ensaio consagrado ao romance de Rosa
a leitura da intervenção ideológica mediadora operada pelo próprio
romancista, ao sugerir a inevitabilidade da presença do interlocutor para que
o monólogo ocorra e seja adequadamente, não só textualizado, como, e
principalmente, julgado. O monólogo, como também em “Meu tio o Iauaretê”,
faz-se em função do interlocutor representante da modernização. Bolle, como
vimos, não considera decisiva a presença do interlocutor como instrumento de
refratação da cosmovisão de Riobaldo:
Enquanto jagunço letrado, o narrador rosiano pertence simultaneamente ao
universo da violência (no meio rural) e à classe culta (urbana). Ele realiza
assim um trabalho de mediação entre duas esferas culturais muito diferentes;
ao mesmo tempo é capaz de distanciar-se criticamente de cada uma delas. (...)
o narrador rosiano, dialético e luciférico, é construído de tal modo que ele se
situa ao mesmo tempo dentro e fora do sistema de poder. É o que lhe permite
articular reflexões mais agudas sobre o sistema; sobre o intelectual, mais ou
menos comprometido com esse sistema; e também, e sobretudo, sobre as
representações do sistema de poder no imaginário dos sertanejos. (BOLLE,
2004, p. 142-143)
Para nossos objetivos, o ensaio clássico de Walnice Galvão é mais
instrutivo, pois mais centrado na mediação que na alegoria. As relações
sociais são uma das determinações imediatas da obra de Guimarães Rosa,
segundo Galvão. Dentre outros aspectos relevantes (o geográfico, o mítico, o
metafísico), ela defende um espaço para os estudos da “alteridade de classe”:
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“que mostra os jagunços como soldados rasos versus os comandantes
latifundiários, ou, em outros termos, a plebe versus a oligarquia” (GALVÃO,
2006, p. 145). Em As formas do falso, Galvão enuncia sua leitura da matéria
do romance de Rosa:
O romance mostra como a condição do sertanejo pobre é radicalmente
ambígua, como sua dispensabilidade redunda em dependência, sua liberdade
em submissão; isto se passa, todavia, fora de sua consciência. É Riobaldo, o
narrador-personagem que, tendo uma vida dividida em duas partes – como
membro da plebe rural quando menino e quando jagunço, como membro da
camada dominante quando jovem e quando velho – tem distância crítica para
perceber a ambigüidade da condição do pobre, pacífico ou guerreiro conforme
sirva aos interesses de quem manda. (GALVÃO, 1986, p .12)
Não basta constatar, no entanto, esse caráter mediador do narrador, o
de um latifundiário, ex-jagunço, “letrado irrealizado”: a situação narrativa não
se resume ao foco, uma vez que este articula um diálogo com uma presença
moderna. Galvão, no entanto, aponta também para a ambiguidade central da
obra (embora seu estudo careça do aprofundamento dessa constatação), a da
posição do escritor que “apreende as tensões da realidade como ambiguidades
sem radicalizá-las em contradições, é, afinal, a posição do intelectual
brasileiro que se delineia” (GALVÃO, 1986, p. 14). Nossa proposta centra-se na
leitura da contradição social no âmbito da interlocução enquanto mediação
representada, querendo apontar polos que sofrem múltiplas composições nas
três narrativas em questão (pobre-rico, rico-rico, jagunço letrado-doutor,
jagunço-doutor, caçador de onças-caçador de homens, onça-homem,
natureza-cultura etc.). A interlocução, notadamente, pressupõe uma
mediação.
Para continuarmos a leitura da mediação no romance seria interessante
observar as referências do narrador em algumas situações: a própria
narrativa, a narração, o narrador, seu interlocutor e, enfim, o lugar da cultura
letrada. Por questões de espaço, façamos apenas uma breve leitura do início
do romance. O interlocutor é sempre respeitosamente chamado de “senhor”. O
visitante, que apenas escuta, pode ser o diabo (uma vez que entra em cena
junto com o bezerro “erroso”). Até que ponto essa aliança perpetrada por
Riobaldo entre o latifúndio e a modernidade que o escuta não implica num
outro pacto demoníaco? É o que sugere, como chiste, afirmando e negando, o
narrador: “Ou, também, quem sabe – sem ofensas – não terá sido, por um
exemplo, até mesmo o senhor quem se anunciou assim, quando passou por lá,
por prazido divertimento engraçado” (ROSA, 2006, p. 9). A especulação surge
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para o narrador quando sua condição passa à aposentadoria. O anfitrião
sonda o visitante: será ele o diabo, qual seu interesse no diabo?
A situação: o visitante vai ouvir toda a confissão de Riobaldo, durante
três dias ininterruptos, pois se a narrativa é comentada, não é, por outro lado,
nunca interrompida. O visitante nega crer no diabo. Se ele é o diabo e veio
cobrar de Riobaldo, a situação perde um pouco do impacto na medida em que
Riobaldo já contou toda a sua história para Quelemém. Tenta-se, ao mesmo
tempo, sondar o visitante, o que sugere algum receio, e impor-lhe algum medo,
como quando ele vai sendo perguntado sobre situações demoníacas: “Agora, o
senhor já viu uma estranhez?” (ROSA, 2006, p. 11). O interlocutor, nesse
início, é intensamente demandado pela fala: sempre “o senhor” “não duvide”,
“imagine”, “o que acha?”, “mire veja”. Quando se refere à sua cultura, o
narrador é ambíguo: rebaixa-se, inicialmente (“sou só um sertanejo”) para
depois se elevar (“eu merecia de ir para cursar latim”). Dois índices de
esperteza também aparecem: ele era “ladino” e hoje aprecia os “exemplos” dos
religiosos que lê no almanaque, sendo citado o “exemplo” de “missionário
esperto engambelando os índios” (ROSA, 2006, p. 15). Riobaldo se acha um
homem de exceção: “O senhor saiba: eu toda a minha vida pensei por mim,
forro, sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo. Divêrjo de todo o mundo...
Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa” (ROSA, 2006, p.
15). De novo a ambiguidade quanto ao saber. Ao mesmo tempo em que
ressalta seus dotes reflexivos, sugere ingenuamente que o governo deveria
fixar uma lei negando a existência do diabo. Ele mesmo nega seu desejo: “Ah,
eu sei que não é possível. Não me assente o senhor por beócio. Uma coisa é
pôr ideias arranjadas, outra é lidar com país de pessoas, de carne e sangue, de
mil-e-tantas misérias...” (ROSA, 2006, p. 15). O que mostra que ele se esconde
também atrás de uma suposta ignorância. A operação inicial é importância,
configurando uma sondagem, pois mesmo já tendo ouvido do interlocutor a
negação da crença no demo, o narrador insiste: “Mas tem um porém:
pergunto: o senhor acredita, acha fio de verdade nessa parlanda, de com o
demônio se poder tratar pacto? Não, não é não? Sei que não há” (ROSA, 2006,
p. 24) É como se estivesse sondando também o modo como irá narrar sua
história na sequência, a fim de convencer o interlocutor do diabo (ou, noutro
movimento, de adequar sua história à suposta descrença do interlocutor).
Como o doutor nega, é elogiado, justificando-se seu saber por um desejo de
Riobaldo, o da instrução. A conversa volta-se para outro rumo: o narrador
insiste em que o doutor fique, três dias, ouvindo sua história. E diz não haver
mais o sertão que o doutor veio ver (mas que Riobaldo conhece: o sertão é,
pois, memória, narrativa).
Na associação de ideias, a paisagem sublime conduz a Diadorim e daí à
narração do passado, in media res. Estabelece-se um pacto: a distância que há
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entre o doutor visitante e Riobaldo vai servir a este como álibi para confessar
suas culpas. Além disso, o visitante é letrado, tendo negado o diabo (Riobaldo
procura se colocar ao lado do saber letrado, condenando o povo como
supersticioso, ignorante). É marcada uma diferença com o visitante: “Do sol e
tudo, o senhor pode completar, imaginado; o que não pode, para o senhor, é
ter sido, vivido” (ROSA, 2006, p. 51). Riobaldo tem a vantagem da presença: a
relação social, a dificuldade do diálogo entre as classes sociais vem expressa
na oposição complementar de experiência e texto.
Walnice Galvão explica assim a interlocução em Grande sertão: veredas:
O interlocutor é interpelado, sempre dentro da fala do narrador, por
“respostas” que o narrador dá a suas presumíveis perguntas, em geral
sugerindo pedidos de esclarecimento. E também por alusões a suas
características – como o uso de óculos e de uma caderneta de notas – ou a
seus gestos, como o escrever e desenhar continuamente ao anotar o que ouve.
(...) O monólogo funda a opção por um discurso “oral” que se expressa
mediante interjeições, torneios expeditivos, frases exclamativas e
interrogativas, períodos truncados e entrecortados. A opção pela fala é um feliz
achado, pois confere ao romance unidade estilística, abolindo a multiplicação
de recursos que obrigaria forçosamente a variação dos pontos de vista ou focos
narrativos. Pela boca de Riobaldo, são todas as personagens do romance que
falam. (GALVÃO, 2006, p. 165)
Ora, a exceção a este último dito é justamente o interlocutor. O
mecanismo do jagunço letrado narrador, é, segundo Galvão, uma vantagem,
ao eliminar o contraste típico da linguagem regionalista, “entre uma linguagem
pitoresca e folclórica que é a do sujeito analfabeto e outra que é apanágio da
classe a que pertence o escritor” (GALVÃO, 2006, p. 165). O narrador de Rosa
compõe a partir do rebaixamento social, mas com caráter de mediador (e o
caráter da prosa artística de Rosa, numa mediação em segundo grau).
Para corroborar essa orientação do sentido mediador do relato, pode-se
destacar também a relação de Riobaldo com os pobres e com os letrados (a
própria literatura, enfim). O povo “prascóvio” que acredita no demo, também é
o que “diverte demais com a baboseira, dum traque de jumento formam tufão
de ventania” (ROSA, 2006, p. 74). Vive advertindo o interlocutor quanto à sua
diferença com o povo. Ao mesmo tempo, há uma insatisfação com a própria
literatura, isto é, com os letrados. Em episódios como o de Davidão e Faustino,
ou quando Zé Bebelo dita as cartas para o Riobaldo “amanuense”, podem ser
detectados os estados mentais que emaranham literatura e experiência.
Apenas os apontamos aqui.
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No livro, como propõe Bolle (2004, p. 185), há duas retóricas
antagônicas, a da persuasão que constrói credibilidade e a busca ética da
justiça. Seria um narrador ambiguamente confiável, um narrador dialético,
onde a instância metanarrativa, que atua principalmente por montagens
contrastivas que conduzem às incongruências do narrador. Cria-se no
interlocutor (que media a narrativa para o leitor) uma atitude de benevolência
(credibilidade) a partir do rebaixamento, da dissimulação da eloquência.
Embora tenha autoridade (como latifundiário e como homem experiente), ele
passa o texto a dizer nada ter e nada saber (principalmente, pondo em dúvida
seu próprio contar). O contar é feito, nesse sentido, de interpelações da
cordialidade. O contar emaranhado, portanto, se dá mais concretude tanto ao
instante quanto ao encadeamento das cenas, também pode possibilitar uma
melhor defesa dos crimes (e do pacto) de Riobaldo. O interlocutor é, assim,
elogiado:
Eu sei que isto que estou dizendo é dificultoso, muito entrançado. Mas o
senhor vai avante. Invejo é a instrução que o senhor tem. Eu queria decifrar as
coisas que são importantes. E estou contando não é uma vida de sertanejo,
seja se for jagunço, mas a matéria vertente. (...) Sendo isto. Ao doido, doideiras
digo. Mas o senhor é homem sobrevindo, sensato, fiel como papel, o senhor me
ouve, pensa e repensa, e rediz, então me ajuda. Assim, é como conto. Antes
conto as coisas que formaram passado para mim com mais pertença. Vou lhe
falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém
ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas – e só essas poucas,
veredazinhas. O que muito lhe agradeço é a sua fineza de atenção. (ROSA,
2006, p. 100)
Trata-se do preâmbulo do narrador ao momento em que retoma sua
história a partir da adolescência, ao episódio da travessia no São Francisco
com o Menino (futuro Diadorim). Quem seriam essas “raríssimas pessoas”,
“veredazinhas”, que sabem do sertão? O que é este saber? Além disso, o
interlocutor se constrói, sob a ótica do narrador, como transparente, um juiz
que delega aos jurados a decisão (como faz Joca Ramiro): “fiel como papel”.
Papel que, no entanto, “rediz”, dando um sentido mais sapiente da
experiência: à matéria difusa, “vertente”, o letrado confere a ordem. Entramos
aqui, numa outra configuração das relações sociais, a envolver também as
relações culturais. Contar, seja aqui ou nos contos, é sempre manipular a
linguagem para se defender diante de um Outro. Vejamos o que escreve Ángel
Rama, em “Literatura e cultura” a respeito dessa relação tensa que conduz a
narração:
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Aqui está delineado o gênero peculiar do relato de Riobaldo, que Roberto
Schwarz reconheceu como uma fala que nasce de um interlocutor que a
promove, no que Unamuno teria definido sagazmente como um “monodiálogo”.
Esse interlocutor que nunca fala, mas sem cuja existência o monólogo não
tomaria forma, fornece a incitação modernizadora que conhecemos por meio
das formas da “reportagem” para investigar uma cultura basicamente ágrafa,
que continua sendo transmitida pela via oral. (RAMA, 2001, p. 272)
A discussão de Rama nos possibilita ler as relações sociais em
dimensão mais temporal do que espacial. O escritor é mediador entre a
injunção modernizadora, de organização da dispersão inerente aos
pensamentos do Outro, aqueles pautados por uma cosmovisão mítica, e os
elementos mais radicais, proto-históricos, presentes nos referentes (o sertão, o
informante, as peripécias). A relação é a estabelecida entre a (suposta)
universalidade da cultura popular e a estilização textual modernista. Voltamos
a Rama, agora em “Os processos de transculturação na narrativa latino-
americana”:
Da “reimersão” nas fontes primigênias, surge uma intensificação de certos
valores peculiares, que às vezes parecem proceder de estratos aparentemente
ainda mais primitivos, mas que ostentam uma capacidade significativa que os
torna invulneráveis à corrosão das contribuições modernizadas. Para um
criador literário, trata-se exclusivamente de puras operações artísticas, mas
nelas está implícita uma prévia proposição cultural, resultado do conflito que
toda uma coletividade está vivendo. (RAMA, 2001, p. 215)
Ocorre que, no caso do romance, o que se estabelece é uma fictícia
defesa de Riobaldo (tanto quanto ao passado violento quanto ao perigo da
narrativa), operada por um mediador (o títere) da literatura culta. Assim, se
com o pacto Riobaldo torna-se de fato jagunço (pois deixa de duvidar), mas um
jagunço especial, pois chefe, resguardado do combate final, o que não é a
unificação artística dos autores dito transculturadores se não um pacto de
integração no nacional? Que operação é essa, a da organização literária do
narrar espontâneo, operando a literatura a partir daquele “pensar mítico”
também discutido por Rama? A mediação do escritor, nesse sentido, ganha o
contorno de um esforço formativo: a organização cultural colocando-se ao
dispor do acúmulo em sobreposição dos retratos nacionais. A perspectiva
dessa mestiçagem é a de um diálogo cordial de linguagens. A estetização da
representação, sob o pretexto de encenar tende a dissimular a auto-delegação.
O escritor (o intelectual) é seu operador necessário, ouvindo-recriando o
Outro). Trata-se do “(...) esforço para construir uma totalidade, dentro da qual
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ALVES, Ricardo Luiz Pedrosa. Relações sociais em três narrativas de Guimarães Rosa. Scripta Uniandrade, v. 17, n. 2 (2019), p. 229-250.
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se recuperam as formas desconexas e dispersivas da narração rural, mas
ajustadas a uma unificação que já procede do impacto modernizador” (RAMA,
2001, p. 273). Se a fala, como advertiu Walnice Galvão (1986, p. 70), é “o
grande unificador estilístico” do romance, ela não pertence integralmente a
Riobaldo. Além de composta pelo mediador, ela é, inclusive, orientada
ficcionalmente pela presença de um interlocutor. A situação narrativa é a do
tribunal da história, sendo o interlocutor, o juiz. Um estudo de relações sociais
nas narrativas de Rosa deve atender, necessariamente, portanto, a essa
injunção da literatura enquanto modernidade em choque com a oralidade.
As observações de Rama mostram que as relações sociais devem ser
lidas antes sobre a construção das formas culturais do que em retratos a
partir do conteúdo das narrativas. As formas culturais (inscritas na
materialidade do texto, como propôs Roberto Schwarz) falam melhor as
relações sociais: por exemplo, o que significa abordar sob o ângulo da
novidade estética (injunção modernizadora) o arcaísmo de linguagem? Nesse
sentido fica evidente a ironia com que se constrói o narrador em “Famigerado”:
trata-se de uma personificação social distante do interlocutor ideal composto
no romance de Rosa. O doutor do conto tem justamente uma distância culta e
jocosa que o doutor que ouve Riobaldo (e o transcreve) não tem. O olhar, no
conto, permanece diante de uma opacidade. A novidade da técnica do romance
implica numa outra proposta de cosmovisão. O conto, assim, parece um
retrocesso, evocando o mundo cindido de anteriores representações literárias
da ruralidade, como em Monteiro Lobato. O que redime Rosa dessa
comparação é justamente a história literária: não é possível ler aquele doutor
interpelado por Damázio como o “narrador sincero” de Lobato. Mais do que um
distanciamento (ironizado, em “Famigerado”), a proposta de abordagem
regionalista de Rosa implica na superação da lógica da palavra (presente nos
autores até os anos 1930, com seus glossários de termos regionais) pela lógica
da sintaxe, que é, também, uma lógica da cosmovisão, em relação dialética
com o impulso modernizador da invenção literária, e que traz outra
cosmovisão.
Para concluir, é importante ainda destacar que o princípio de
interlocução dos discursos sociais como estrutura narrativa é uma analogia e
não um retrato em relação ao princípio dos embates/diálogos sociais. Não se
deve duvidar do poder do silêncio desses interlocutores que refratam pela
modernidade o arcaísmo rural: afinal, é a modernidade que põe o jagunço
letrado a falar. Discordamos, portanto, de abordagens que concedam
demasiada idealização ao procedimento técnico de Guimarães Rosa, seja na
leitura alegórica do enredo, como procede Luiz Roncari (“O tribunal do sertão:
Os chefes”) quanto ao episódio do julgamento de Zé Bebelo, lido por ele como
utopia de uma modernidade que dá corpo no arcaico (aqui tendemos a
acompanhar a interpretação de Willi Bolle, que vê ali um falso contrato social
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de fundação nacional), ou como se procede quanto à voz narrativa, no ensaio
de Sandra G. Vasconcelos (“Vozes do centro e da periferia”): “(...) a adoção de
uma longa fala em primeira pessoa que, mesmo presumindo a presença de um
interlocutor, coloca-o em absoluto segundo plano ao dar voz ao protagonista e,
na prática, incorporar as intervenções do homem letrado e urbano à fala
sertaneja” (VASCONCELOS, 2008, p. 381).
Riobaldo só monologa pela instigação do doutor. Do mesmo modo, é só
nas páginas finais de “Meu tio o Iauretê” que o monólogo de Bacuriquirepa
ganha autonomia, onde ele passa a não conversar mais, narrando (negando a
interlocução) e encarnando (transubstancializando) o mito. Em “Famigerado”,
a posição de objetivação descritiva e jocosa do doutor da cidade é um gesto
calculado (explicitado para o leitor) diante da instabilidade arcaica da
violência. De resto, é importante lembrar que foi essa violência dos
desbravadores (dos que “limparam” o sertão de jagunços, onças e inimigos
políticos) que possibilitou a entrada em cena da cidade ou do observador-
participante que toma notas em Grande sertão: veredas. Ler as relações
sociais nas narrativas de Guimarães Rosa deve necessariamente ser um
exercício de leitura das mediações: mediação da linguagem, mediação da voz
narrativa, mediação da composição e mediação do autor enquanto agente nos
sistemas literário e ideológico.
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RICARDO LUIZ PEDROSA ALVES é doutor em Letras pela Universidade
Federal do Paraná (2016). É investigador junto aos grupos de pesquisa CNPq
“Literatura e modernidade” (UFPR) e “Intelectuais, ciência e nação”
(Unicentro). Atualmente pesquisa a recepção das literaturas africanas nas pós-
graduações brasileiras. Participou do livro Diálogos Interdisciplinares (2018) e
organizou o livro Diálogos com o pensamento social brasileiro (2019).