relaÇÕes etnicorraciais, constitucionalismo e polÍticas afirmativas: desconstituindo mitos e...

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FACULDADE METROPOLITANA DA GRANDE RECIFE Curso de Direito Jonathan Reginnie de Sena Lima RELAÇÕES ETNICORRACIAIS, CONSTITUCIONALISMO E POLÍTICAS AFIRMATIVAS: Desconstituindo mitos e legislando para a justiça social Jaboatão dos Guararapes PE 2014

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Page 1: RELAÇÕES ETNICORRACIAIS, CONSTITUCIONALISMO E POLÍTICAS AFIRMATIVAS: Desconstituindo mitos e legislando para a justiça social

FACULDADE METROPOLITANA DA GRANDE RECIFE

Curso de Direito

Jonathan Reginnie de Sena Lima

RELAÇÕES ETNICORRACIAIS, CONSTITUCIONALISMO E

POLÍTICAS AFIRMATIVAS:

Desconstituindo mitos e legislando para a justiça social

Jaboatão dos Guararapes – PE

2014

Page 2: RELAÇÕES ETNICORRACIAIS, CONSTITUCIONALISMO E POLÍTICAS AFIRMATIVAS: Desconstituindo mitos e legislando para a justiça social

Jonathan Reginnie de Sena Lima

RELAÇÕES ETNICORRACIAIS, CONSTITUCIONALISMO E

POLÍTICAS AFIRMATIVAS:

Desconstituindo mitos e legislando para a justiça social

Monografia apresentada à Supervisão de

Monografia do curso de Direito da Faculdade

Metropolitana da Grande Recife, como

requisito final de avaliação para obtenção do

título de Bacharel em Direito, sob orientação

da professora MSc. Renata Dayanne.

Jaboatão dos Guararapes – PE

2014

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Jonathan Reginnie de Sena Lima

RELAÇÕES ETNICORRACIAIS, CONSTITUCIONALISMO E

POLÍTICAS AFIRMATIVAS:

Desconstituindo mitos e legislando para a justiça social

BANCA EXAMINADORA

Orientador:

____________________________________

Prof.ª MSc. Renata Dayane

Faculdade Metropolitana

Examinadores:

____________________________________

Prof. MSc. Lucas Leite

Faculdade Metropolitana

____________________________________

Prof.ª Dra. Denise Maria Botelho

Universidade Federal Rural de Pernambuco

(UFRPE)

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Aos meus pais, amigos e familiares por todo amor, carinho e

cuidados que sempre tiveram por mim.

À professora Expedita Helena de Almeida, minha querida

tia Dita, in memorian, pelo grande exemplo em vida de que

amar o próximo é uma necessidade de quem está

comprometido com o pleno desenvolvimento individual e

coletivo dos indivíduos.

Aos professores que tive ao longo da vida, em especial aos

das séries iniciais, porque em muito contribuíram para que

eu pudesse ter hoje o arcabouço teórico que possuo. Um

lastro mínimo, mas que julgo ser considerável, frente ao

estado inicial de sentir e conhecer o mundo e na imanência

da ignorância aos conceitos mais refinados na época de

outrora (ignorância tomada em seu sentido formal de

ignorar algumas coisas); e ainda agora aos professores

universitários pelo fato de continuar o trabalho de

investigação estimulado pela conjuntura de que estando

ainda a ignorar determinados conhecimentos, permanecia

escravo de minha própria vacuidão. Àqueles que sempre

suplantam o estímulo da curiosidade, objetivando continuar

com a busca visando saciar esta minha sede pelo saber, digo

mais, pelos diversos saberes na vida.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus por ter me proporcionado a experiência da vida, por ter me dado

tantas possibilidades de evolução ao longo dessa minha jornada terrena, por ter colocado em

meu caminho verdadeiros anjos, os quais, pelas leis universais da afinidade, pude chamar de

irmãos, familiares e amigos.

À toda espiritualidade amiga que muito têm propiciado o desenvolvimento em minha

caminhada terrena e me livrado de tantos males, dos quais tenho plena consciência hoje.

Agradeço em especial aos irmãos espirituais Tupi, Sol Nascente, Dr. Nolasco e irmão Jubiabá

bem como à toda a equipe do Dr. Bezerra de Menezes que muito têm vibrado no sentido de

favorecer meu desenvolvimento completo como ser humano.

Aos meus pais, os professores José Reginaldo de Lima e Jucedi Batista de Sena Lima,

por serem exemplos de vida, amor e de retidão, que dedicaram parte de suas vidas à

manutenção da minha vida e das minhas necessidades mais essenciais.

À minha avó, Severina Francisca de Sena, a famosa parteira Dona Biu – esposa do

enfermeiro Camões, meu avô – por sua coragem, força e fé, me ensinando os maiores valores

que uma pessoa pode ter: a sinceridade, simplicidade, honestidade e humildade.

À minha irmã, Jenniffer Reginny de Sena Lima, por ter estado comigo durante a

caminhada, nem sempre em concordância e harmonia, mas conforme a necessidade de

aprendizagem de nossos espíritos que, não à toa, vieram juntos nesta reencarnação.

Aos meus companheiros de jornada nesta caminhada acadêmica que muito vibraram

positivamente para que houvesse em mim um nível mínimo, mas considerável, de evolução

espiritual, intelectual e afetiva, em especial a Amanda Matias, Daniela da Costa Silva, Isabela

Souza, Claudiane Caroline, Amanda Queiroz, Aline Souza, Deise Vicente, Roberta Serrano,

Júlia Tenório, Noélia Carolina, Caroliny Rodrigues, Íris Barbosa, Cristiane Oliveira, Myrleide

Bias Nascimento, Jéssica Espíndola, Rôsecler Batista, Aline Flôr, Géssyca Sena, Cecília

Gouveia, Patrícia Silva, Gleycekely Mendes, Naara Barros, Valeska Souza, Ana Victória,

Romário Nunes, Barbara Lacerda, Nathalia Almeida, Andreza Monteiro, Missilene Maria

Costa, Andrêtta Melo, Isabel Farias, Mylenna Aguiar, Alexsandra Lima, Nathalia Vilela,

Natália Duque, Alline Pricila, Gerlane Dayana, Elizabethe Pedra Rica, Dherley Valentim,

Flavia Vasconcelos e Dayane França que muito ajudaram na construção desta monografia e

nas infinitas (re)construções do meu eu neste mundo.

Aos meus segundos pais em vida, D. Cici Costa e Sr. Ednaldo Silva, e aos irmãos em

vida que adquiri: Ednaldo Jr. e Ednardo, que muito me ensinaram sobre amizade, amor,

carinho e caridade, me elevando a uma concepção de mundo além das fronteiras materiais.

Agradeço, enfim, pelos cuidados que tiveram e têm por mim, física e espiritualmente, mesmo

residindo em Salvador-BA, lembrando sempre da frase que Seu Ednaldo tão sabiamente

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costuma me dizer, ao lembrar-se do Sereníssimo irmão Jair Tércio: “não há distância para os

que se amam”. Paz, luz e muita harmonia a vocês!

Às professoras Renata Dayanne (FMGR) e Denise Botelho (UFRPE), mentoras

intelectuais às quais tenho grande apreço, pelo enorme empenho em desvendar-me um

universo realista e pluralista dentro da perspectiva jurídico-constitucional e das relações

etnicorraciais, dando margem e base à construção deste trabalho.

Ao professor Lucas Leite por, na fase final deste trabalho, assumir a responsabilidade

de avaliá-lo e deparar-se com uma temática que lhe é muito salutar e comunicar abertamente o

esforço por ele assumido e por mim defendido da necessidade de, em um curso como o

Direito, formarmos não apenas técnicos mas, acima de tudo, pensadores.

Aos professores Jefferson Dalamura e Maxwell Medeiros pelo seu verdadeiro

sacerdócio no magistério, desvendando o Direito e suas implicações mais elementares na vida

social, por seu compromisso ético e sua coragem de, em tempos de transição de valores,

manter-se firme nos propósitos de educar para além de uma categoria de pensamentos que

aprisionem, ensinando a olhar para fora das caixas espistemológicas e mostrando uma

infinidade de conexões entre as diversas áreas do conhecimento. Mestres, se hoje tenho numa

possibilidade de ver para fora da caixa de meu conhecimento, é por influencia de vocês.

Ao professor Paulo de Jesus (UFRPE) pelo seu empenho em desvendar-me os

caminhos e a trajetória da pesquisa e suas implicações para a vida do ser humano, mostrando

sempre que uma complexidade de saberes pode ser abordada de maneira simples e bela, mas

nunca simplista. Por seu carinho e energia sempre muito positiva, irradiando a mais refinada

luz de Jesus, nosso irmão maior, meus mais sinceros agradecimentos.

Ao professor Manoel Uchoa (FMGR) que, com suas discussões empreendidas nas

disciplinas Ciência Política e Teoria Geral do Estado (CP e TGE) e Filosofia Jurídica,

permitiram-me grande amadurecimento na esfera crítica do Direito, enxergando-o como

esfera complexa donde se desenvolvem as relações sociais sob o aspecto mais relevante das

relações de poder, buscando paulatinamente alcançar a criticidade, ainda que com muito

esforço e pequenos avanços, que, na aplicabilidade prática em minha vida, resultaram de

grande importância intelectual na minha formação universitária.

À professora Natália Barroca (FMGR) pela sua disponibilidade em ajudar o próximo,

pelo seu zelo em suas atividades (docentes, de pesquisa e forense), além de sua capacidade

extraordinária de raciocínio e de estímulo em conduzir pessoas ao caminho do conhecimento.

Em tempo, agradeço pelas boas discussões através das mídias sociais em meio virtual, tão

importantes na ausência das conversas presenciais. Agradeço por todo carinho e por todo

estímulo à minha formação, aproveitando pra adiantar que esse é o primeiro passo de uma

longa caminhada!

Ao professor Ronildo Oliveira, professor e Presidente do Conselho Municipal de

Educação e do Conselho do FUNDEB de Jaboatão dos Guararapes-PE, amado mestre, que

muito contribuiu em discussões acerca de temas que se constituíram como fundamentais ao

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desenvolvimento deste texto, por nossas conversas, curtas, mas intensas em conteúdos, e pelo

incentivo sempre grande no sentido de que eu pudesse caminhar em uma versão mais

completa e aprofundada em relação aos estudos das realidades etnicorraciais e das religiões

tradicionais de terreiro.

A todos que participaram da pesquisa de campo e que facilitaram as informações em

relação aos dados essenciais que tornaram esta pesquisa um diferencial em sua busca de

escutar muito mais do que impor os conceitos já predeterminados, contidos em outros autores.

Ao Dr. Paulo Mendes e à Dra. Fernanda Barros pelo empenho em moldar-me junto às

questões do universo do Direito, prezando sempre pela retidão, pela ética e pela efetivação da

justiça, em seu sentido mais sublime, a justiça social; aplicada indistintamente, tanto quando

do período de estágio na Defensoria Pública de Pernambuco (DPPE) – Núcleo de Jaboatão

dos Guararapes – quanto na experiência forense junto ao Sindicato dos Trabalhadores em

Educação do Município de Jaboatão dos Guararapes (SINPROJA).

Aos meus irmãos e amigos escoteiros, com quem pude aprender a simplicidade das

coisas boas da vida, a disciplina e o respeito com o próximo e comigo mesmo promovendo

uma lição ímpar de cidadania ativa e democrática registrando aqui meus votos mais sinceros,

em especial, aos Chefes Saulo Ricardo, Jamerson Severo, Rute Gomes, Bianca Arruda,

Antuany Felipe, Jair José, Luiz Adones, Thompson Douglas, Ivanildo Soares, Cleivisson

Euclides, Jullyana Ribeiro, Claudia Maria (AL), Mauricio Nascimento (AL), Jorge Luis (AL),

Eduardo (AL), Luciano Pracílio (BA), Wendell Dantas (RN), Valdênia Ribeiro Pires (DF) e

Paulo Henrique (MG) que compartilharam comigo grandes momentos dentro e fora do

Movimento Escoteiro. Meus fraternos abraços, forte aperto de canhota e Sempre Alerta Para

Servir! A Lona está sempre preparada para agir e se reunir!

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"Temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos

inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa

igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma

igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença

que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades."

Boaventura de Sá Souza, 1995.

“Há um senhor de engenho morando em cada brasileiro,

adormecido. Vez por outra ele acorda, diz que está presente,

se manifesta e adormece de novo, em sono leve.”

Luiz Antonio Simas, 2012.

“Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele,

por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as

pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar

podem ser ensinadas a amar!”

Nelson Mandela, 2008.

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RESUMO

O Brasil, ao longo de sua história de pouco mais de cinco séculos de invasão portuguesa (ou

descobrimento, como queiram assim chamar), veio suplantando uma ideologia

segregacionista, impondo uma postura eurocêntrica e restringindo (quando não anulando) o

acesso aos direitos mais básicos do indivíduo a alguns seres humanos, escolhendo os sujeitos

passíveis do alcance das políticas públicas institucionais mediante a disseminação de diversos

preconceitos e discriminações apoiadas, inclusive, através da legislação e, com o decorrer dos

tempos, tendo sido embasada nas pesquisas das diversas áreas da ciência, em especial às

ciências médicas, que disseminaram uma intensa política de diferenciação “fenotípica”

mediante uma efetiva e nebulosa taxonomia das raças.

Neste sentido, é deveras importante a observância deste jogo histórico nas relações sociais

para que as implicações existentes na vida dos sujeitos sejam tomadas em sua complexidade

habitual, sem que haja reducionismos hipócritas ou a utilização de instrumentos silenciadores

socialmente constituídos e largamente disseminados pelo senso comum, estando cada vez

mais arraigado nas mentes do ser humano e aprisionando cada vez mais vítimas e agressores a

uma lógica que foge da normalidade, que abomina a moralidade e que se funda em uma noção

parca, sem o mínimo de consistência científica.

Assim sendo, é apenas utilizando-se do processo histórico como chave hermenêutica, (com

maior ênfase a partir de 1988, com a promulgação da Constituição da República Federativa do

Brasil e através da edição de leis posteriores), é que poderemos alcançar um patamar de

reflexão sobre o panorama da realidade sócio histórica em nossa nação, através de uma

abordagem multifocal, analisando tanto as relações verticais (do Estado para o indivíduo)

quanto horizontais (entre indivíduos da mesma espécie – pessoas naturais – em suas relações

civis e políticas) e a organização de estratégias seguras de enfrentamento às desigualdades

sociais que não alimentem ou reproduzam a lógica inquestionável do status quo, ainda vigente

em nosso país.

É até perceptível que, nos anos atuais, vemos a existência de um movimento, lento, mas

extremamente significativo; isto é, surge uma tentativa mirrada e ainda pouco efetiva por

parte do Estado, mediante a utilização de políticas de ações afirmativas que objetivam a

desconstituição do padrão social estático do poder reconhecido pelas relações etnicorraciais,

tendentes a ser extremamente verticalizadas, denotando verdadeiros estames sociais; sendo a

população europeia em especial denominada como sendo merecedora de honrarias pelos

grandes feitos documentados na historiografia adotada como oficial, montando uma

verdadeira quimera branco-europeia em terras brasileiras em detrimento dos povos nativos e

demais povos que compuseram nossa história, em especial do povo negro, que sempre foi

alijado das riquezas econômicas e dos conhecimentos estruturais/intelectuais do País.

As cotas constituem, de fato, um esforço para modificar o sistema jurídico e social imposto

mediante a formulação de instrumentos efetivos de discriminação positiva, isto é, de

empoderamento às classes que historicamente vieram sendo suplantadas em diversos tipos de

comportamento excludentes, inclusive no que se refere à educação formal, tão bem quista em

nosso meio social, concebida, de forma geral, como fator preponderante ao estabelecimento

do sucesso ou fracasso individual em nossa sociedade.

Palavras Chaves: Relações Etnicorraciais; Educação; Afrodescendente; Negro; Políticas

Afirmativas; Cotas; Meritocracia; Isonomia, Constitucionalismo.

Área de Concentração: Direito Constitucional, Sociologia Jurídica, Filosofia Jurídica.

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ABSTRACT

Brazil, throughout its history of little more than five centuries of Portuguese invasion (or

discovery, whatever you want to call it that) came supplanting one segregationist ideology,

imposing a Eurocentric posture and restricting (if not canceling) access to the most basic

rights the individual to some humans, selecting the subjects likely the reach of institutional

policies through the dissemination of various prejudices and discriminations supported,

including through legislation, and with the passage of time, having been grounded in research

of various areas of science especially in medical sciences, which spread an intense political

differentiation "phenotypic" through effective and fuzzy taxonomy of races.

In this sense, it is extremely important to observe this historic game in social relations for

existing implications in subjects' lives are taken in its usual complexity, without reductionism

hypocrites or use of silencers instruments socially constituted and widely disseminated by

common sense, being increasingly ingrained in the minds of human beings and increasingly

trapping victims and aggressors to a logic that escapes the normal range, which abhors

morality which is founded on a meager notion, without the slightest scientific consistency .

Therefore, it is only using the historical process as a hermeneutical key (with greater emphasis

since 1988 , with the promulgation of the Constitution of the Federative Republic of Brazil

and through editing later laws) , can we achieve a level of reflection on the historical

panorama of social reality in our nation, through a multifocal approach, analyzing both

vertical relations (from the state to the individual) and horizontal (between individuals of the

same species - individuals - in their civil and political relations) and the organization of safe

coping strategies to social inequalities that do not feed or reproduce the unquestionable logic

of the status quo, still prevailing in our country.

It is noticeable that even in the current year, we see the existence of a movement, slow, but

extremely significant, that is, a withered attempt arises and still ineffective by the state ,

through the use of affirmative action policies that aim to deconstitution static social standard

recognized by etnicorraciais power relations, tending to be highly vertically integrated,

denoting true social stamens; being named European population in particular as being worthy

of honor by great deeds documented in official historiography adopted as riding a real

chimera white European in Brazilian land to the detriment of indigenous peoples and other

peoples that made up our history, especially the black people, which has always been

jettisoned economic wealth and structural / intellectual knowledge of the country.

Quotas are, in fact, an effort to modify the legal and social system imposed by formulating

effective instruments of positive discrimination, ie empowerment classes that historically

came being supplanted in many types of exclusionary conduct, including those regards, as

well conquest formal education in our social environment, designed, generally, as leading to

the establishment of individual success or failure factor in our society.

Keywords: Ethnic and Race Relations; Education; Afrodescendant; Black; Policy Statements;

Quotas; Meritocracy; Equality; Constitutionalism.

Concentration Area: Constitutional Law, Sociology of Law, Legal Philosophy.

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LISTA DE QUADROS

Figura 1 Organização dos Direitos Humanos dispostos em 5 categorias, conforme sua matriz

axiológica. ................................................................................................................................ 30

Figura 2 Eixos sob os quais se deu a maioria das investidas históricas de

preconceitos/discriminações na sociedade brasileira. .............................................................. 42

Figura 3 Matriz sociológica disseminada no senso comum da população brasileira,

desenvolvida desde a colonização. ........................................................................................... 44

Figura 4 Gráfico com os homicídios em 2010 segundo pesquisas realizadas pelo Instituto de

Pesquisas Econômicas Aplicadas. IPEA, 2011. ....................................................................... 46

Figura 5 Renda média por relação gênero e pertencimento etnicorracial. IPEA, 2010. .......... 47

Figura 6 Taxa média de desemprego por relação gênero e pertencimento etnicorracial. IPEA,

2010. ......................................................................................................................................... 47

Figura 7 Quantidade de anos em formação escolar por gênero e pertencimento etnicorracial.

IPEA, 2010. .............................................................................................................................. 48

Figura 8 Esquema demonstrando a teoria tridimensional do Direito do professor Miguel

Reale. ........................................................................................................................................ 63

Figura 9 Correntes do Direito quanto à sua observação da manutenção das estruturas de poder.

.................................................................................................................................................. 69

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LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

CF/88 – Constituição da República Federativa do Brasil. 1988

STF – Supremo Tribunal Federal

M.N.U. – Movimento Negro Unificado

D.H. – Direitos Humanos

DEM – Partido Democratas

A.G.U. – Advocacia Geral da União

ADIN – Ação Direta de Inconstitucionalidade

ADPF – Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental

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SUMÁRIO

RESUMO 9

ABSTRACT 10

LISTA DE QUADROS 11

LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS 12

INTRODUÇÃO 16

Metodologia: uma viagem para além das fronteiras da superficialidade 19

Justificativa 21

Os capítulos 22

Capítulo I – Igualdade: Uma breve discussão acerca das dimensões práticas deste instituto 23

TÍTULO I - DA IGUALDADE FORMAL 27

TÍTULO II - DA IGUALDADE MATERIAL OU REAL 28

Capítulo II - Construção de uma visão afro-brasileira 31

TÍTULO I - IDENTIDADE NEGRA 33

TÍTULO II - A POPULAÇÃO NEGRA E OS DESVIOS HABITUAIS: POLÍTICAS PÚBLICAS EDUCACIONAIS

DE DESVALORIZAÇÃO E SILENCIAMENTOS 39

TÍTULO III – O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O ABRANDAMENTO DAS DISCRIMINAÇÕES 48

Capítulo III - Políticas afirmativas 52

TÍTULO I – DA AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA 56

TÍTULO II – POLÍTICAS AFIRMATIVAS DE COTAS ETNICORRACIAIS 56

Seção A – Da inexistência de desafio em virtude da relativa imprecisão de padrões

objetivos em classificar o ser negro para as políticas afirmativas 61

TÍTULO III - MERITOCRACIA E POLÍTICAS AFIRMATIVAS ETNICORRACIAIS 64

Capítulo IV - O Direito enquanto tecnologia social de instrumentalização e promoção da

igualdade 68

SEÇÃO I – UM BREVE ESTUDO SOBRE O DIREITO E A EFETIVAÇÃO DA JUSTIÇA 69

Subseção A - Direito objetivo e direito subjetivo: estranhamento ou interdependência?70

Subseção B - A forma e o direito objetivo 70

Subseção C - O direito subjetivo e a procura da satisfação do bem da vida 71

SEÇÃO II - DA LEGISLAÇÃO NACIONAL QUE DOUTRINA AS MATÉRIAS DE INCIDÊNCIA

ETNICORRACIAL E DE PROMOÇÃO DA IGUALDADE 72

Subseção A - Lei 10.558/02 72

Subseção B - Lei 10.639/03 72

Subseção C - Lei 11.645/08 72

Subseção D - Lei 12.288/10 73

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Capítulo V - O pleno sobre a ADPF 186/2012, seus principais atores e o posicionamento do

Supremo Tribunal Federal (STF) quanto à constitucionalidade das políticas afirmativas de

cotas 74

1. Advogada Roberta Fragoso Menezes Kaufmann 74

2. Procuradora Federal Indira Ernesto Silva Quaresma 76

3. Representante da A.G.U. Dr. Luis Inácio Lucena Adams 78

4. Advogada Juliana Ferreira Correia 80

5. Advogada Vanda Maria Gomes Siqueira 81

6. Advogado Ophir Cavalcante 82

7. Ministro Luiz Fux 82

8. Ministro Joaquim Barbosa 83

9. Ministro Cezar Peluso 85

10. Ministro Gilmar Mendes 86

11. Ministro Marco Aurélio 87

ANÁLISE DE DOCUMENTOS JURÍDICOS 90

ANÁLISE DOS RESULTADOS DA PESQUISA DE CAMPO 92

1. Questionário 92

Abordagem Qualitativa 92

Análises individuais 92

Indivíduo A 92

Indivíduo B 92

Indivíduo C 93

Indivíduo D 94

Indivíduo E 94

Indivíduo F 95

Indivíduo G 96

Comentários 97

Abordagem Quantitativa 97

Gráficos 97

2. Entrevistas 99

Abordagem Qualitativa 99

Comentários 106

Abordagem Quantitativa 106

Gráficos 106

CONSIDERAÇÕES FINAIS 109

REFERÊNCIAS 112

APÊNDICE A 117

APÊNDICE B 119

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APÊNDICE C 121

APÊNDICE D 122

ANEXO A 123

ANEXO B 125

ANEXO C 126

ANEXO D 128

ANEXO E 133

ANEXO F 134

ANEXO G 135

ANEXO H 139

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INTRODUÇÃO

Este trabalho tem por objetivo analisar as interfaces existentes entre as relações

etnicorraciais, a percepção diferenciada da legislação pátria decorrente do advento da Carta

Constitucional de 1988 e a efetividade das políticas afirmativas, com ênfase àquelas cujos

objetos de concentração sejam as relações etnicorraciais e a promoção efetiva da igualdade

etnicorracial em sua esfera material. Analisar relações sociais em uma sociedade que é

projetada como heteronormativa, machista, patriarcal, judaico-cristã (católica ou protestante),

intolerante, preconceituosa e que guarda em sua gênese uma força segregadora e

padronizadora de alta pressão intrínseca, sendo dotada de instrumentos de precisão histórica

que, na verdade, buscam silenciar todo tipo de diferenciação é ter uma análise em mente que

vise perceber as particularidades e as projeções nesta teia de relações há muito estabelecidas.

Ir em sentido diametralmente oposto ao que é tratado como natural em um processo de

acomodação social, visando a desconstrução destes padrões altamente complexos, é trazer à

tona a necessidade de promover uma ação jurídica, e porque não pedagógica, no sentido de

desconstituir todos os malefícios decorrentes de pouco mais de cinco séculos de dominação e

silenciamentos em nosso País, percebendo que nestes movimentos históricos ao longo deste

lapso temporal houve, na verdade, a mudança estrutural e nominal dos sujeitos dominadores e

das formas de dominação em favor da perpetuação das relações sociais doentias de submissão

e vulnerabilidade, restando quase imóveis os produtos danosos destas relações.

Deve-se analisar que o peso de nossa balança vem historicamente sendo ampliado e as

tensões sociais cada vez mais sendo despendidas, buscando observar que o Direito deve ser

tão preciso na aferição dos direitos dos indivíduos quanto efetivo quando da utilização de sua

espada no cumprimento dos mandamentos. Ora, em sendo o direito (positivo ou

consuetudinário) omisso ou arcaico, perde-se no tempo e vira letra morta; perde-se na história

dos homens mediante atrofia por desuso. Neste sentido, se faz necessário que o Direito, na

qualidade de tecnologia social, possa adequar-se à realidade e às necessidades que emergem

das ânsias da sociedade em transformar determinados institutos, à medida em que modifica

sua matriz axiológica em velocidade mais rápida que atualiza sua matriz jurídica. Importante,

a partir daí empreendermos um pequeno estudo da história do País, fazendo-se tão logo

quanto necessário a organização das estruturas que mantiveram, ao longo do tempo, uma

relação muito particular de permanências e rupturas.

É factual que, no decurso do lapso temporal decorrido da expansão marítima

comercial europeia até os dias atuais, houve um movimento acelerado de imposição da cultura

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e dos valores eurocêntricos, no sentido unilateral, que inicialmente partia da metrópole para a

colônia (nos tempos longínquos), até as superpotências econômicas para os países emergentes

ou em desenvolvimento, na contemporaneidade.

Com efeito sui generis, no Brasil os mecanismos de discriminação se fizeram

presentes desde a gênese da colonização e se mantém, embora atualmente resguardando-se de

maneira pouco mais sutil – inclusive sendo denominada por alguns de humor negro (e

restando importante a carga negativa que o termo negro tem tomado em algumas situações

linguísticas), no que se refere à promoção das desigualdades sociais, com ênfase à

desigualdade de natureza etnicorracial e suas implicações sociais, econômicas e escolares.

Nas palavras de Jonathan Reginnie de Sena Lima (2012-a), ao analisar a sociedade em

suas tendências históricas e sociológicas, percebe-se a existência de um mecanismo complexo

de alta eficiência de segregação. Portanto, vejamos:

Em sua breve história, a humanidade indubitavelmente tem feito grandes

descobertas tecno-científicas e, durante o período da pós-modernidade, vem

desenvolvendo um amplo e sofisticado sistema de reconhecimento sócio

antropológico decorrente dos debates filosóficos acerca da essência humana e sua

relação proximal com o direito (iniciada com um caráter mais político na

Antiguidade Clássica e posteriormente passando a tomar uma roupagem mais

humanística quando da época do Iluminismo), perpassando desde questões mais

elementares da política social até os mais complexos conceitos relativos à identidade

social como noções de reconhecimento/pertencimento a um grupo social,

características e processos de inclusão/exclusão em grupos sociais diversos,

ocorridos com maior intensidade nas décadas finais do século XX sob a alçada dos

conceitos-chave da psicologia social.

À parcela da população mais pobre da sociedade brasileira, nos diversos tempos

históricos, foi reservado todo tipo de sofrimentos, silenciamentos e invisibilidades,

verdadeiras máculas sociais visando unicamente à sobrepujança da cultura burguesa europeia

do século XVI em desfavor da cultura indígena nacional que vieram perdurando e incidindo

sobre as demais culturas que entraram em contato com a nossa matriz até meados do século

XIX. Perceba-se, como o conquistador/dominador/invasor no processo imperialista de

expansão de suas zonas de influência, cujas fronteiras extrapolavam os seus próprios

territórios continentais, precisavam, decerto, de instrumentos que buscassem mutilar e

silenciar os elementos culturais mais influentes a fim de que se dissipasse a força motriz das

culturas nativas e que fosse possível enxertar muito mais facilmente as considerações, valores

e costumes europeus em terras alienígenas.

Sob estes mesmo aportes, os ideais discriminatórios vieram, permanecendo até os dias

atuais, impingindo situação econômico-financeira precária aos afrodescendentes que, desde a

abolição através da Lei Áurea em 1888, foram colocados em situação de miserabilidade e

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invisibilidade através de políticas públicas discriminatórias, causando precariedade econômica

e gerando, portanto, um sentimento de repulsa que não permitia ao negro ingressar de maneira

satisfatória no convívio social, fomentando ainda mais os princípios de estratificação social,

baseados, em dados gerais, por instrumentos de natureza sexista/de gênero, de origem,

etnicorracial, ao nível de instrução ou até ao pertencimento de determinada zona econômico-

financeira, haja visto que em nosso país a miserabilidade está muito ligada também à origem e

ao pertencimento etnicorracial, lembrando-se que, como veremos a seguir, a percepção

decorre de ideais minimalistas e descontextualizadas que se embasam num corolário de

supremacia branco-europeia.

É necessário analisar então as palavras de Silvia Maria Vieira dos Santos (2011, pág.

36) para buscar entender um pouco da matriz sociológica de nosso país:

A sociedade brasileira, racista e colonialista utiliza a educação como um mecanismo

de naturalização da cosmovisão eurocêntrica, tratando-a como única possível. Desse

modo, a contribuição dos africanos e afrobrasileiros na história do Brasil é

inviabilizada. A ausência e as distorções desta história nos levam ao

desconhecimento e desvalorização de nossas raízes africanas, contribuindo

diretamente para o enraizamento das idéias racistas em nosso país. Em

contraposição a esses pensamentos estão as africanidades, elementos e

manifestações da diversidade cultural africana ressignificadas na cultura brasileira.

Assim doutrina o jurista Rudolf Von Ihering (2009, págs. 27 e 28) em seu livro A Luta

pelo Direito:

Com o decorrer do tempo os interesses de milhares de indivíduos e de classes

inteiras prendem-se ao direito existente, por maneira tal, que este não poderá ser

nunca abolido sem os irritar fortemente. Discutir a disposição ou a instituição do

direito é declarar guerra a todos esses interesses, é arrancar um pólipo que está preso

por mil braços. Pela ação natural do instinto de conservação, toda tentativa desse

gênero provoca a mais viva resistência dos interesses ameaçados. Daí uma luta na

qual, como em todas as lutas, não é o peso das razões mas o poder relativo das

forças postas em presença que faz pender a balança e que produz frequentemente

resultado igual ao paralelogramo das forças, isto é, um desvio da linha direita no

sentido diagonal.

É a única maneira de explicar como algumas instituições, muito tempo depois de

condenadas pela opinião pública, conseguem muitas vezes prolongar a vida. O que

as mantém não é a força de inércia da história, mas a força de resistência dos

interesses defendendo a sua posse.

Em todos os casos em que o direito existente encontra esse sustentáculo no interesse,

o direito novo não pode chegar a introduzir-se, senão à custa de uma luta que por

vezes se prolonga durante mais de um século e que atinge o mais alto grau de

intensidade quando os interesses tomaram a forma de direitos adquiridos. Veem-se

então em presença dois partidos, tomando por divisa a santidade do direito; um

arvora a bandeira do direito histórico, do direito do passado, o outro a do direito que,

dia a dia, se vai formando, dia a dia, vai rejuvenescendo, do direito primordial que a

humanidade tem de se regenerar constantemente.

Buscar desfazer os desfavores históricos é, na verdade, perceber a existência de lutas

sociais, da necessidade de garantir um Estado Democrático de Direito que assegure aos seus

cidadãos e partícipes um nível de segurança jurídica mínima ao efetivo exercício de sua

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cidadania. Cidadania ativa, sem limites, numa sociedade pluralista e fraterna que consiga

adotar em seu interior as idiossincrasias dos seus integrantes sem que se possa desconsiderar

as particularidades de cada indivíduo. Permitir a visibilidade (ainda que legalmente forçadas

através da edição de Políticas afirmativas – como é o exemplo da Lei 12.288/10 - Estatuto da

Igualdade Racial) é entender uma realidade que urge por ser mudada, por uma identidade que

necessita ser reforçada e por um espaço de ação social que precisa ser conquistado e

garantido.

Perceber que existem movimentos antagônicos de submissão e de

revolução/resistência e que é essa alteridade que mostra historicamente a força metódica dos

institutos sociais intrínsecos da matriz ideológica nacional é perceber discursos por trás de

atitudes e de diversas práticas (inclusive daqueles atos praticados pela Administração Pública,

personificada pelos seus agentes com poder administrativo ou não de gestão), de tal maneira

que é possível sentir as mais diversas tensões se instaurando em nosso cotidiano. Buscar

editar políticas de igualdade racial que visem à desconstrução das muitas ideologias lesivas é

um ato que almeja a resolução de conflitos históricos e de tensões sociais diversas cujo

nascedouro se estabelece na visão higienista, eugênica e na percepção de uma pseudo-

gradatização das manifestações etnicorraciais, principalmente no que se refere à cor da pele e

às manifestações sociais das classes tidas como menos favorecidas dentro da nossa sociedade.

Sobremaneira, é esta luta pelo direito que tem permitido a ascensão e o

empoderamento da população afrodescendente a espaços de poder antes publicamente

negados. A essa luta é necessário somar a importância que tem o Movimento Negro Unificado

e alguns setores da sociedade civil organizada que tem como fundamento, como marco

teórico a necessidade, antes de tudo conceitual e atitudinal, quanto à necessidade de adoção de

uma política, de fato, eficaz em sua proteção e que desempenhe papel significativo na

erradicação das discriminações depreciativas em favor de uma situação que privilegie sim a

força da diversidade, a aprendizagem na diferença, encarada não como ausência de

características padronizadas, mas como fundamentos valorativos que refletem a

personalidade, a história e o lugar social que os atores sociais depreendem.

Metodologia: uma viagem para além das fronteiras da superficialidade

Esta pesquisa organiza-se com maior intensidade ancorada no método histórico e

monográfico, conforme entendimento de Mario Sergio Michaliszyn e Ricardo Tomasini

(2009, pág. 50). Apresentou-se como problemática desta monografia o seguinte

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questionamento: Como as políticas afirmativas, em especial as políticas de cotas

etnicorraciais, são utilizadas em Pernambuco com vistas a promover a igualdade de

oportunidades?

Daí surgiu a necessidade factual de investigar, a título de objetivo geral, a natureza das

políticas afirmativas, em especial as políticas de cotas que versam sobre o mote das relações

etnicorraciais, observando como a sua implantação vem promovendo a igualdade de

oportunidades em Pernambuco, utilizando-se, para tal os seguintes objetivos específicos:

I. Analisar historicamente, a formação do povo brasileiro e as relações de poder fundadas

em um ideal de institucionalização cujo objetivo se funda em perceber as

idiossincrasias do contexto social no Brasil através de um dégradée etnicorracial e suas

implicações no que se referem aos graus de vulnerabilidade e invisibilidade social

decorrentes da historicidade pátria;

II. Observar quais os princípios normativos constantes à Constituição da República

Federativa do Brasil, promulgada em 1988 (CF/1988), visando, desde já, perceber

como as relações etnicorraciais e as instituições políticas institucionalizam neste Estado

democrático de Direito, a edição de políticas públicas que buscam demonstram maior

ou menor grau de empoderamento a determinados grupos sociais, percebendo como é

negado aos demais.

III. Analisar, na prática, o universo das políticas e ações afirmativas e suas implicações

socioantropológicas no sentido de promover a igualdade etnicorracial, conforme Lei nº

12.288/10 – Estatuto da Igualdade Racial;

IV. Dar elementos suficientes que permitam aos indivíduos tornarem-se sujeitos capazes de

desconstruir a ideologia impregnada de silenciamentos e supressões decorrentes da

democracia racial e da meritocracia.

Por isto busca-se, através de uma abordagem mista, que congrega tanto elementos da

pesquisa quantitativa quanto da qualitativa, analisar a força dos argumentos e a consistência

da temática aqui exposta visando, desde já a importância de uma modificação conceitual e

atitudinal com relação às populações negras e afrodescendentes em solo pátrio, promovendo

uma integração e não uma inserção que não assegura nenhum tipo de Direito. Sendo assim,

escolheu-se como instrumentos de pesquisa:

1. Pesquisa teórico-bibliográfica

Pesquisas em livros, artigos (científicos ou de opinião), notícias e sites especializados

de internet sob os tópicos basilares que possuem as prerrogativas materiais nestes

méritos.

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2. Pesquisa documental

Pesquisas em documentos jurídicos, quais sejam a Constituição, leis

infraconstitucionais, decretos, portarias, jurisprudências, doutrinas e demais fontes

materiais do Direito.

3. Entrevistas

Entrevistar pessoas de diversas áreas buscando mostrar abordagens que possam

mostrar a complexidade do tema e as interfaces das vulnerabilidades dos indivíduos

negros e sua possível ascensão social mediante o acesso e permanência na

universidade.

4. Questionários

Executar, com universitários das redes privada e pública, questionário sobre suas

percepções de raça/cor/etnia e quais são suas aspirações/frustrações no que se refere às

políticas afirmativas de cotas raciais, buscando perceber suas visões de mundo e os

possíveis caminhos a serem trilhados a partir deste novo modelo de instrumento de

promoção da igualdade.

Justificativa

Este trabalho tem por escopo compreender como funciona o mecanismo do

preconceito e da discriminação etnicorraciais, analisar suas implicações históricas e

antropológicas como fator de segregação pautadas num ideal de sociedade heteronormativa,

machista, branca e letrada buscando perceber a existência (e a urgência) da necessidade de

agir. Um agir diferente que possibilite a supremacia do pluralismo e da diversidade conforme

aduz a CF/88, perpassando, inclusive, pela promoção de políticas públicas de promoção da

igualdade etnicorracial, como são as políticas afirmativas de cotas que tenham por objetivo

minar institutos historicamente galgados na desigualdade etnicorracial e na intolerância.

Assim sendo, perceber a necessidade de desconstruir um ideal lesivo e potencialmente

destrutivo das identidades pessoais é atender aos ideais constitucionais que regem nosso País,

visando reduzir as incoerências suplantadas na matriz sociológica brasileira visando construir

uma sociedade justa e fraterna dentro dos moldes de um Estado Democrático de Direito como

nos assegura nossa Carta Constitucional. Importante é também salientar que as políticas de

ação afirmativa de cotas promovem a igualdade de oportunidades mas não garantem a

igualdade de permanência em espaços de poder anteriormente renegados aos setores alijados

da sociedade brasileira, isto porque na lógica segregacionista brasileira existe uma série de

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interditos que extrapolam a dimensão do simples acesso e revelam-se como verdadeiras

barreiras ao desfazimento dos efeitos do sistema escravista (sutil mas ainda vigente) em nosso

País.

Os capítulos

Esta monografia arranja-se com a seguinte disposição: no Capítulo I trataremos acerca

do tema central sob o qual diverge grande parte da doutrina – a igualdade – analisando,

inclusive as diversas acepções que este termo pode ter nas mais diversas aplicações na vida

dos indivíduos. O Capitulo II tem como objetivo fala sobre a construção de uma percepção de

vida que consiga dar aos indivíduos negros uma nova forma de organizar suas perspectivas de

organização social e política através do que denominou-se de africanidades, isto é, a

valorização e estímulo aos valores afro-positivos como elemento fundamental no combate às

discriminações (que encontra-se indiscutivelmente indissociada da dimensão gênero, relações

etnicorraciais e relação de poder na sociedade brasileira). Ainda neste capítulo analisamos,

através de uma breve discussão, o mito da democracia racial e como este vem sendo

percebido e mantido com grande força pela sociedade, buscando perceber esta dimensão,

ainda arcaica, em nossa sociedade. O Capítulo III abarca o elemento principal deste trabalho e

suas implicações, quais sejam as políticas afirmativas de cotas enquanto gênero de promoção

de igualdade e, analisando com mais profundidade, em espécie com a ótica que reveste de

particularidade as relações etnicorraciais em nosso País. No capítulo V, temos uma breve

discussão sobre a natureza do Direito e sua necessidade de promover um fim social. Isto

significa que existe a necessidade de promoção de igualdade, em especial à etnicorracial pela

natureza deste trabalho monográfico, como função social. No capítulo VI, abordam-se alguns

trechos do Julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF)

impetrada no Supremo Tribunal Federal (STF) pelo Partido Democratas, com vistas a

invalidar as políticas que versavam sobre a ascenção dos indivíduos que se autodeclaravam

negros no espaço universitário.

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Capítulo I – Igualdade: Uma breve discussão acerca das dimensões práticas deste instituto

Não é razoável afirmar que os homens nascem livres e iguais em direito, mas sim

que nascem partícipes de uma coletividade e sujeitos, assim, a todas as obrigações

que subentendem a manutenção e desenvolvimento da vida coletiva.

Por outro lado, a igualdade absoluta de todos os homens, que constitui premissa

lógica da doutrina individualista, revela-se contraditória, na prática. Os homens,

muito longe de serem iguais, são essencialmente diferentes entre si, e essas

diferenças, por sua vez, acentuam-se conforme o grau de civilização da sociedade.

Os homens devem ser tradados de modo diverso, porque são diferentes; o seu estado

jurídico, representante da sua situação enquanto referencial na relação com seus

semelhantes, deve alternar-se para cada um em particular, uma vez que cada um, em

relação a todos, manifesta-se de forma essencialmente diferente. Se uma doutrina

adota como lógica definida a igualdade absoluta e matemática dos homens, ela se

opõe à realidade e por isso deve ser prescindida.

(Léon Duguit, 2011, pág. 30 )

Inicialmente deve-se entender igualdade como um conceito histórico, e, portanto,

aberto a diversas interpretações de acordo com a região geográfica, o período histórico, a

cultura e a sociedade em que se está imerso. Na sociedade pós-moderna, subsiste o princípio

da igualdade idealizado e formalizado, positivamente, através de um dispositivo hipotético

enunciado, de maneira genérica, nos termos do caput do artigo 5º da C.F./88 com a seguinte

redação: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se

aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à

liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...]”. Esta visão, enunciada na

Constituição Federal de 1988, está partindo do ponto de vista meramente jurídico, isto é, de

uma dimensão formal que percebe no cidadão brasileiro (nato ou naturalizado) ou que os

estrangeiros (de passagem ou residentes no país) a possibilidade de acesso à jurisdição estatal

em virtude de descumprimento ou por qualquer vezo mandamental que tenda a contrariar

parcial ou totalmente a esfera de efetivação dos Direitos Humanos (DH).

Diz Adalberto Fraga Veríssimo Junior (2009):

[...] deve-se dizer que o principio de isonomia, igualdade perante a lei, que é

garantido e estendido a todos os brasileiros mediante o artigo 5º da atual

Constituição Federal Brasileira, no qual descreve que todos os cidadãos brasileiros e

estrangeiros residentes no Brasil, são titulares dos mesmos direitos e deveres perante

juízo, sem distinção de qualquer natureza, não vem sendo corretamente aplicado.

Neste momento vale lembrar que o artigo 206, I, da CF/88 assegura “a igualdade de

condições para o acesso e permanência na escola”, sendo que todos os candidatos

que almejarem uma vaga em uma universidade poderão fazê-lo mediante sistema

universal, no qual todos terão a mesma oportunidade e condições para o ingresso na

vida acadêmica.

Resta o entendimento, após uma longa análise, de que a percepção de que esta

enunciação do artigo 5º da CF/88 exprime, se analisado mediante a utilização de uma

hermenêutica meramente gramatical ou literal esbarra em diversos empecilhos pragmáticos e

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conceituais. Isto implica que se se procede uma observação criteriosa mediante uma exegese

mais complexa chegamos ao entendimento da existência de determinadas dimensões

importantes sociais quais sejam biológicas, sociológicas e psicológicas, tomadas aqui como se

fossem exteriores à dimensão jurídica mas que influenciam intensamente na percepção da

função social do Direito. Devemos compreender o campo de atuação das entidades públicas,

principalmente àquelas de Direito como responsáveis correspondentes à formação das

diversas identidades sociais que influenciam (direta e indiretamente) também no

desenvolvimento dos diversos papéis sociais que os indivíduos desempenham nesta

sociedade, sabendo-se, inclusive que essas discussões acerca da psicologia social e suas

implicações é contemporânea ao surgimento da Carta Constitucional em 1988. Isso significa

que as particularidades foram padronizadas e que os indivíduos, a partir dali seriam

considerados como um produto, um modelo ideal, e não como sujeitos ativos no mundo,

enquanto modificadores de realidades fruto também deste Estado Democrático de Direito

ainda embrionário, ainda frágil e em plena construção.

Potyara A. P. Pereira (2013), ao tratar sobre igualdade à luz da teoria marxista nos diz:

Apesar de a teoria marxiana não tratar explicitamente de política social, pelo menos

um motivo justifica a adoção dessa teoria como referência para análise desta

temática, qual seja: o fato de a desigualdade social, relacionada à aparição e

manutenção de um proletariado indigente, sob o influxo da exploração burguesa, ter

constituído a base de sustentação empírica da empresa teórica e política marxiana.

Assim sendo, não se pode dizer que inexistem, em Marx, contribuições que ajudem

a elucidar o movimento real da política social capitalista, já que os fundamentos das

análises marxianas sobre acumulação do capital e dominação do Estado burguês

continuam historicamente confirmados e estão no âmago da explicação do

surgimento dessa política.

Além disso, em seus estudos filosóficos, a questão da igualdade e da liberdade é

recorrentemente contemplada, o que, de par com o tratamento científico conferido a

esta questão em sua obra O capital – cujo primeiro volume foi escrito em 1867 –

permite a constatação do comprometimento intelectual e moral de Marx com o tema

do bem-estar social.

As suas teorias da revolução e da ditadura do proletariado, passando pela extinção

do Estado, do capital, das classes sociais, não apenas erigiram-se sobre a realidade

da desigualdade social capitalista, como se assentaram na sua concepção de

igualdade que lastreou toda a sua obra. Em vista disso, pode-se chegar à seguinte

ilação: sendo a desigualdade o fato justificador da política social burguesa e a

igualdade o seu parâmetro idealizado, nenhuma teoria poderia fornecer maiores

subsídios à crítica dessa política do que a marxiana.

Afirma-nos Raquel Santos de Santana (2010) que:

A inclusão do sistema de cotas nas universidades públicas, na verdade, pode ser feita

por conta da autonomia garantida a tais instituições pelo artigo 207 da Constituição

Federal, o qual confere essa autonomia no âmbito didático-científico, administrativo,

e de gestão financeira e patrimonial, proporcionando a elaboração, por parte das

universidades, de normas e regulamentos próprios, inclusive o sistema de reserva de

vagas, não havendo necessidade de lei em sentido estrito para que tal sistema seja

instituído em alguma universidade.

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Nesse sentido, a Jurisprudência do Tribunal Regional Federal da 5º Região tem se

inclinado de modo a atestar a independência das universidades no tocante à

apreciação do sistema de cotas, em virtude dessa autonomia que lhes é própria,

restringindo a manifestação do Poder Judiciário apenas em caso de ilegalidade por

parte da universidade na aplicação do procedimento [...]

Decorre deste raciocínio uma perspectiva de inclusão que estará além das projeções

tímidas e escravizadoras da meritocracia clássica e do mero proselitismo judicial. Como este é

o ponto de torque deste trabalho monográfico, vez que se deve primar pela necessidade de

modificação do status quo que, infelizmente, vige em nosso país, percebe-se a necessidade de

trazer à lume um novo ideário que pudesse assim da rconta: resolveu-se expressar, para fins

de chave hermenêutica desta monografia, um conceito no qual por igualdade entende-se uma

condição hipotética, uma situação ideal, portanto não realista se observada com os ditames da

conjuntura atual que nos encontramos, estando distante dos termos da nossa realidade social,

uma vez que trata-se de uma abstração em função de uma ideologia na qual seja permitida

partir da função de um Estado garantidor pelo menos dos direitos fundamentais, mediante

uma visão particular do mundo em que se considerem em todas as pessoas e suas

potencialidades básicas e não se baseando-se apenas sob um proselitismo jurídico, altamente

formalista e pouco garantista de uma igualdade enunciativa e sem iniciativas reais. Sobre este

assunto, é de fato importante poder perceber este novo olhar como sendo um olhar possível,

possível à medida em que se criam instrumentos mais eficazes à garantia da efetivação dos

Direitos, que sejam tidos em sua dimensão jusnaturalista ou pós-positivista.

Assim sendo, Delcele Mascarenhas Queiroz e Jocélio Teles dos Santos (2006)

comentam:

Nesse sentido, nos propomos, inicialmente, a comparar dois cenários: o atual,

expresso nos resultados da pesquisa acima referida, e o de 1995, quando foi

realizada, pelo DataFolha, a pesquisa “Racismo cordial”, isto é, em um momento em

que não havia a adoção do sistema de cotas por universidades públicas do país. A

comparação entre estes cenários pretende evidenciar as mudanças que vêm

ocorrendo na percepção dos brasileiros acerca das políticas públicas no país. Num

segundo momento, demonstraremos o que significou, em termos de impacto, a

adoção de uma política de ações afirmativas na Universidade Federal da Bahia

(UFBA).

O que demonstram as informações da década de 1990a? Quando a pesquisa de 1995

formulou a indagação sobre a reserva de vagas para negros na educação e no

mercado de trabalho, inserida no tópico “atitudes e convivência inter-racial”, os

resultados demonstraram que 49% dos entrevistados discordavam e 48%

concordavam com a proposta. Entre os homens, o percentual de pretos e pardos que

discordavam diferia em um ponto percentual (47% e 48%); a proporção de brancos

era mais elevada: 53%. Entre as mulheres, o percentual de rejeição era também

elevado e variava, racialmente, mais que entre os homens (40% entre os pretos; 46%

entre os pardos e 58% entre os brancos).

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Na mesma perspectiva, Léon Duguit (2011, pág. 30) nos fala, acerca da problemática

da igualdade, que:

Não é razoável afirmar que os homens nascem livres e iguais em direito, mas sim

que nascem partícipes de uma coletividade e sujeitos, assim, a todas as obrigações

que subentendem a manutenção e desenvolvimento da vida coletiva.

Por outro lado, a igualdade absoluta de todos os homens, que constitui premissa

lógica da doutrina individualista, revela-se contraditória, na prática. Os homens,

muito longe de serem iguais, são essencialmente diferentes entre si, e essas

diferenças, por sua vez, acentuam-se conforme o grau de civilização da sociedade.

Os homens devem ser tradados de modo diverso, porque são diferentes; o seu estado

jurídico, representante da sua situação enquanto referencial na relação com seus

semelhantes, deve alternar-se para cada um em particular, uma vez que cada um, em

relação a todos, manifesta-se de forma essencialmente diferente. Se uma doutrina

adota como lógica definida a igualdade absoluta e matemática dos homens, ela se

opõe à realidade e por isso deve ser prescindida.

A doutrina individualista conduz assim à noção de um direito ideal, absoluto,

análogo em todos os tempos e em todos os países, e do qual os homens se

aproximariam cada vez mais, mesmo considerando eventuais regressões. Entretanto,

a noção de um direito ideal e absoluto não pode ser aceita cientificamente. O direito

resulta da evolução humana, fenómenos físicos, mas, como eles, não se aproxima de

um ideal ou absoluto.

Igualdade é um instituto jurídico, e, principalmente, constitui também uma perspectiva

social que busca garantir, quando se fala, por exemplo, nas políticas públicas governamentais

instituídas em forma das políticas de Estado (em sentido mais amplo que as políticas de

governo, que são planejadas para um mandato), como um instrumento que permita o acesso,

mas que também garanta a permanência dos indivíduos em determinados espaços de poder

antes renegados. Ora, essa contingencia de embargos ao desenvolvimento socioeconômico

dos indivíduos em situação de vulnerabilidade, promovida pela ação ou omissão do Estado,

deve ser sumariamente revertida mediante um procedimento (inclusive legislativo) de

desconstituição das relações jurídicas e sociais desiguais e degradantes. Neste sentido,

argumenta Alvaro dos Santos Maciel (2010):

“A igualdade constitui o signo fundamental da democracia”[i]. Pode-se afirmar

ainda, que é o tronco, a espinha dorsal de uma sociedade democrática. O princípio

da isonomia, por sua vez, é advento do cotidiano humano e, portanto, reflexo dos

valores costumeticamente construídos pelos grupos sociais no transcorrer da

existência humana. Em verdade, as sociedades estão em sucessivos processos de

transformações, tornando, assim, mutável o conceito de igualdade tanto em relação à

época, ou em relação a determinado grupo. Diante dessa mutabilidade, o que se

entende como igualdade jurídica em determinado país pode não ser da mesma forma

entendida em outro país e ainda, a isonomia de tempos passados pode não equivaler

ao que se entende por igualdade hodiernamente e tampouco servir como parâmetros

efetivos para calcar previsões do que será ela em tempos vindouros.

É válido ressaltar também que o princípio da igualdade reveste-se de grande

importância social e jurídica. Destarte, é imperioso admitir que a modernidade

demanda estudos e transformações concretas na cultura da sociedade, contrapondo a

idéia de que no presente “o direito de igualdade não tem merecido tantos discursos

como a liberdade”.[ii]

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O Direito, como se constata, se utiliza dos critérios isonômicos para atingir a justiça,

determinando o equilíbrio, ou mesmo o desequilíbrio, uma vez que há desigualdades

provenientes de divergências políticas, econômicas, geográficas, culturais, enfim,

desigualdades humanas, que privam muitos até de ter as suas necessidades básicas

supridas.

Em síntese, deve-se pontuar a existência de classificações da igualdade quanto à sua

natureza: formal e material; quanto à eficiência dos instrumentos de efetivação: mediata ou

imediata; e quanto à prestação doa tutela estatal (positiva ou negativa), externando-se,

principalmente, quando da atividade dos órgãos e dos agentes do Estado bem como a dos

cidadãos coparticipes da sociedade. Relevanta ainda observar que esses elementos

socioantropológicos ligam-se, de maneira intrínseca, com a matriz sociológica de cada

sociedade. Desta forma é salutar analisar algumas considerações com relação aos conceitos

mais elementares da dinâmica social e das instituições jurídico-constitucionais.

TÍTULO I - DA IGUALDADE FORMAL

Há que se falar em igualdade formal quando estamos ligados à noção de uma justiça

pautada pelas normas jurídicas em vigência, isto é, regidas pelo juspositivismo jurídico,

movimento filosófico que se organiza como norma fundante do sistema jurídico nos países

que aceitam como sendo correto o sistema civil law, sistema que está presente desde a

fundação do Direito, vindo a ser reforçado com a intensa organização do Direito Moderno, em

meados do século XIX. Nesta compreensão, da qual comunga nossa Constituição no caput do

já emblemático artigo 5º que todos são iguais sem nenhuma distinção existe um fundamento

sociológico que pressupõe certo distanciamento do Estado em relação aos seus partícipes.

Ora, se essa assertiva meramente enunciativa de igualdade irrestrita for verdadeira, todas as

idiossincrasias e todos os processos identitários de alteridade na construção das diversas

identidades individuais tornam-se processos nulos na prática, vez que o objetivo é garantir um

ingresso virtual e uma projeção de cunho universalista e deveras opressor no sentido de trazer

uma ideologia que torna endógena uma “essência jurídica coletiva”, um “fundamento ou

dispositivo ideológico” que encontra-se em todos os seres humanos em desfavor de uma

postura que consiga enxergar no outro um sujeito ativo em suas relações sociais, que possui

crenças, medos e inseguranças para que se forje um indivíduo quase mitológico no sentido de

compreender as particularidades através de uma generalidade escusa, tratando como desvios,

erros, pecados, etc.

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Constituiu-se como sendo importante na medida em que fundamentou as bases do

Direito, mas hoje não simbolizam a real função do Direito nem conseguem contingenciar a

compreensão do ser humano como agente no mundo (vez que aprisiona, enclausura e silencia

as diferenças, tratando como desvios merecedores de castigo e vigilância).

TÍTULO II - DA IGUALDADE MATERIAL OU REAL

Nesta categoria, fundada na necessidade de assegurar um quadro mais realista que

permita uma garantia mais efetiva, ou seja, mais aplicável ao caso concreto que diz respeito à

efetivação dos Direitos, em especial aos Direitos Humanos, encontra-se apoiada sob o ideal

do tratamento igualitário aos indivíduos que se encontram sócio historicamente em estado de

igualdade e, tratando desigualmente àqueles a quem, por diversos fatores sociais, mantém-se

em patamares diferenciados de valoração social, em níveis diversos, gerando, um verdadeiro

dégradé social com inúmeros eixos que formam verdadeiros continua sociais, inter-

relacionando-se e formalizando determinadas relações sociais intraespecíficas. Ora, percebe-

se que há, no universo do Direito, a necessidade de efetivação dos direitos materiais, contidos

na Constituição, a nossa lei maior, vez que adotamo-la como sendo o topo da nossa hierarquia

jurídica em solo pátrio, bem como prezar pela observância dos demais ramos do Direito como

o Direito Civil, o Direito Penal, Direito Administrativo, do Consumidor, etc. Nosso

ordenamento jurídico e nosso sistema normativo devem ser respeitados, fazendo-se cumprir,

decerto, a função social que o Direito possui.

É seguro que o sistema jurídico nacional carece de instrumentos mais efetivos no

sentido de tornar a aplicação da lei e o atendimento às finalidades ali estipuladas como algo

tangível sem que se possa tergiversar sobre os possíveis efeitos danosos a contratio sensu da

lei quando esta é bem redigida, com termos que não ofereçam obscuridades ou contradições

lógicas, bem como as lacunas legislativas pelo simples fato de querer transgredir-se a lei. A

transgressão ai resta como uma verdadeira expressão do complexo hobbesiano que enuncia

uma situação na qual o homem retorna ao seu estado de natureza, ao que Thomas Hobbes

denominou de homo homini lupus, um homem capaz de cometer todo tipo de atrocidades

contra outros em função da busca pela saciedade de um direito ou uma vontade que julga mais

legítimo do que os demais indivíduos e, portanto, julga-se como completo merecedor de sua

atenção e desejo, não medindo esforços para conseguir aquele bem que deseja.

A nossa sociedade não deve se permitir entrar em um nível de retroação tal, em termos

sociais, que culmine num processo involutivo, tamanha atividade primitiva daqueles

indivíduos ou organizações que exercitam indiscriminadamente os direitos do passado em

Page 29: RELAÇÕES ETNICORRACIAIS, CONSTITUCIONALISMO E POLÍTICAS AFIRMATIVAS: Desconstituindo mitos e legislando para a justiça social

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desfavor das organizações sociologicamente recém constituídas. Sobremaneira, é

imensamente importante se fazer observar este campo onde se desenvolvem os mais

profundos embates sobre a profundidade destes confrontos, diz-nos Rudolph Von Ihering que:

A paz é o fim que o direito tem em vista, a luta é o meio de que se serve para

conseguir. Por muito tempo pois que o direito ainda esteja ameaçado pelos ataques

da injustiça- e assim acontecerá enquanto o mundo for mundo -, nunca ele poderá

subtrair a violência da luta. A vida do direito é uma luta: luta dos povos, do Estado,

das classes, dos indivíduos. (2009, pág. 23)

Importante é analisar neste discurso a presença da palavra violência, violência aqui

entendida em sentido lato, isto é, englobando tanto a violência física das reminiscências

históricas do que convencionou-se chamar “estado de natureza” advindo das maldades

intrínsecas conforme modelo hobbesiano quanto às violências psicológicas demandadas da

observação das mais diversas ideologias, como bem disse o autor retromencionado, “dos

povos, do Estado, das classes, dos indivíduos.”. Assim sendo, repousa nesta

complementaridade de entendimentos um pensamento de que o direito é, em seu estado mais

visceral, uma eterna luta ideológica entre os indivíduos ou grupos sociais, isto é um

instrumento fundamental de resolução de conflitos e promoção de paz e justiça social.

TÍTULO III - A IGUALDADE COMO DIREITO FUNDAMENTAL.

O direito à igualdade, formulado como instituto de Direito que se organiza em

observar a uma primeira vista como mecanismo sociológico e jurídico que sofreu, ao longo

dos tempos e sobre as diversas sociedades, a percepção da existência da necessidade de

criação de estratégias, inclusive legais, como foi outrora na lei de Talião e hoje sob os aportes

mais recentes na sociedade brasileira, para tentar julgar com critérios estipulados como

corretos.

Historicamente, à luz da normatividade dos Direitos Modernos, o direito à igualdade

encontra-se delineado na segunda dimensão na ótica de análise em categorias normativas dos

D.H.; isto significa, em dados específicos, que temos uma análise, de certa forma,

dimensional da representatividade qualitativa desta modalidade de formatação jurídica pátria,

conforme é possível analisar no diagrama a seguir:

Page 30: RELAÇÕES ETNICORRACIAIS, CONSTITUCIONALISMO E POLÍTICAS AFIRMATIVAS: Desconstituindo mitos e legislando para a justiça social

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Figura 1 Organização dos Direitos Humanos dispostos em 5 categorias, conforme sua matriz axiológica.

Entenda-se do diagrama acima que a organização da generalidade dos direitos

colacionados como pertencentes à modalidade de D.H. possui, intrinsecamente, algumas

noções essenciais ao entendimento do tema, que são a ideia de historicidade e contingência,

inerente aos Direitos Humanos, ou seja, existe uma interpretação de que, por serem frutos das

lutas e representarem expressão pungente das tensões sociais, merecem permanecer como

verdadeiros princípios, como elementos basilares do Direito Moderno Pátrio. Isto dá aos

Direitos Humanos uma perspectiva de primazia, de verdadeira prevalência a alguns direitos

que decorrem de uma versão meramente patrimonial e desconexa com as diversas

transformações sociais do nosso país. Sobre esta disciplina, assim diz LIMA (2012-a):

Em sua breve história, a humanidade indubitavelmente tem feito grandes

descobertas tecno-científicas e, durante o período da pós-modernidade, vem

desenvolvendo um amplo e sofisticado sistema de reconhecimento sócio

antropológico decorrente dos debates filosóficos acerca da essência humana e sua

relação proximal com o direito (iniciada com um caráter mais político na

Antiguidade Clássica e posteriormente passando a tomar uma roupagem mais

humanística quando da época do Iluminismo), perpassando desde questões mais

elementares da política social até os mais complexos conceitos relativos à identidade

social como noções de reconhecimento/pertencimento a um grupo social,

características e processos de inclusão/exclusão em grupos sociais diversos,

ocorridos com maior intensidade nas décadas finais do século XX sob a alçada dos

conceitos-chave da psicologia social.

Direitos de 1º Dimensão: Direitos de Liberdade

Direitos de 2ª Dimensão: Direitos Sociais

Direitos de 3ª Dimensão: Direitos de Proteção a terceiros ou de Fraternidade

Direitos de 4ª Dimensão: Direitos da Globalização

Direitos de 5ª Dimensão: Direitos Cibernético e da Biotecnologia

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31

Capítulo II - Construção de uma visão afro-brasileira

Eu vou contar pra vocês

Certa história do Brasil

Foi quando Cabral descobriu

Este país tropical

Um certo povo surgiu

Vindo de um certo lugar

Forçado a trabalhar neste imenso país

E era o chicote no ar

E era o chicote a estalar

E era o chicote a cortar

Era o chicote a sangrar

Um, dois, três até hoje dói

Um, dois, três, bateu mais de uma vez

Por isso é que a gente não tem vez

Por isso é que a gente sempre está

Do lado de fora

Por isso é que a gente sempre está

Lá na cozinha

Por isso é que a gente sempre está fazendo

O papel menor

O papel menor

O papel menor

Ou o papel pior

(História do Brasil – Edson Gomes)

Perceber a existência da necessidade de formatar uma nova organização identitária e

de estimular uma investigação pautada numa postura metodológica que incentive uma

abordagem afropositiva, conforme o entendimento de Carlos Serrano e Maurício Waldman

(2010) é analisar a complexidade interacional que existiu nas mais diversas searas da vida

social e conferir-lhes o devido valor às influências africanas em nossas vidas. Há, contudo,

uma tentativa desesperada de silenciar e tentar esquecer qualquer traço positivo na sociedade

brasileira, estratégia até muito bem articulada aos princípios falaciosos da meritocracia e da

utópica democracia racial brasileira.

Tiago de Melo Gomes (2003), ao analisar a matriz sociológica nacional diz:

estava-se a pouco mais de uma década do lançamento do clássico de Gilberto

Freyre, Casa-Grande & Senzala, obra que definiria os contornos do orgulho nacional

associado à ausência de preconceito racial e à idéia de que “somos todos mestiços,

se não no sangue, pelo menos na alma”. Mais que isso, parece claro que a obra

definitiva de Freyre se consagrou tanto pelo que tinha de novo, quanto por ecoar

todo um debate sobre a ausência de racismo no Brasil que floresceu ao longo do

período posterior à Primeira Guerra Mundial. Obviamente, a formulação dada por

Gilberto Freyre à questão da singularidade brasileira em termos de ausência de

preconceito racial não se encaixava necessariamente bem com diversas visões mais

conservadoras ou progressistas, mas é inegável que de certa forma sua obra acabou

por se tornar uma espécie de ponto de convergência de boa parte da discussão sobre

raça e nacionalidade no período anterior.

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O dilema entre o desejo de branquear a nação e o de preservar a visão do Brasil

como território livre de preconceitos raciais não era a única problemática envolvida

com a imigração dos afro-americanos. Havia um elemento complicador a alterar os

possíveis significados da questão: o fato de que o debate sobre a imigração afro-

americana se dava em uma arena transnacional.

Como uma pesquisa recente demonstrou de forma bastante convincente (Seigel,

2001), parece claro que todo o desenrolar da questão racial brasileira se deu visando

um contexto transnacional, em que a suposta boa convivência entre raças diferentes

seria um elemento a colocar o Brasil em posição favorável no concerto das nações.

Neste caso particular, tal aspecto se acentua, já que não se tratava de africanos ou

afro-brasileiros, e sim de afro-americanos, de modo que seria de se esperar que

houvesse repercussões do problema em território norte-americano. Assim, os atores

da nossa trama desempenharam seus papéis não apenas pensando apenas no país em

que viviam, mas por certo também estavam atentos às repercussões de seus atos em

uma arena transnacional.

Assim, é certo que os brasileiros desejavam manter intacta sua imagem de “paraíso

racial”, mas isso tornava-se obviamente conflitante com os desejos expressos por

muitos de barrar a entrada destes imigrantes em potencial. Estudando tais discursos,

pretende-se lançar luz sobre a formação da idéia do Brasil como espaço privilegiado

da democracia racial, e os diversos matizes que esta idéia mais geral assumiu, desde

as formulações mais claramente adeptas do branqueamento, até visões mais

próximas de uma ideologia igualitária. No período tematizado, a idéia de democracia

racial estava em pleno processo de construção, e a questão da imigração era, sem

dúvida, um tema que revelava os meandros da negociação em curso sobre os

sentidos daquela idéia.

SERRANO e WALDMAN (2010, pag. 23) desmistificam a ideia do pertencimento da

África ao que se denominou de “polo da incivilidade”, atribuindo, inclusive em suas análises,

a perspectiva geográfica utilizada desde a expansão colonialista até os dias de hoje para tentar

fundamentar as praticas discriminatórias. Importante é também o desfazimento da ideia de

África enquanto unidade indissociável de identidades tribais e primitivas; passando-se a

perceber que o continente africano não mais como polo de civilizações arcaicas para o

continente que apresenta uma verdadeira riqueza social, constituindo mosaico pluriétnico,

com fundamentos social e antropológicos imensamente diversos. Assim dizem os autores:

Historicamente, o regime de estereotipias imposto à África foi reforçado pela

distância e relativo isolamento do continente para com o mundo europeu. A África,

e em particular a África Negra ou Subsaariana, constituía um domínio nebuloso

sobre o qual as informações eram fragmentárias e distorcidas, ocultando-se, para

completar, por trás de um deserto considerado impenetrável, o Saara. As imagens do

continente africano construídas pelo imaginário medieval suscitavam todo tipo de

objeções. Assolados pelo calor inclemente, os territórios meridionais estariam

infestados de monstros e de outros seres fabulosos, coabitando com grupos de semi-

humanos ou de humanos inferiores. Todavia, mesmo essas manifestações de vida

escasseariam consoante a proximidade com o Equador, onde os mares seriam

ferventes e abundariam rios de metal derretido. SERRANO e WALDMAN(2010,

pág. 27)

Ora, essa visão de uma África infértil e invencível, passa por um ‘imago mundi’,

termo de SERRANO e WALDMAN (et all), visão de mundo que atribui às terras tropicais

uma percepção negativa, reproduzindo acriticamente toda sorte de malogros. Durante muito

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tempo esta visão veio sendo disposta e difundida como uma visão correta; a única possível:

um dogma, uma verdade inquestionável. Decorre desta visão uma série de equívocos que

contrastam diametralmente com os dados geopolíticos factuais, não há continente mais rico

em recursos naturais, em diversidade etnicorracial e no que se refere à complexidade

identitária e seu respectivo arcabouço de pertencimento e diferenciação do que o continente

africano. Ainda assim é comum se ouvir a reprodução do senso comum, sem a devida reflexão

sobre o tema em tela.

Nos fala Alex Fabiano Maia de Barros (2011):

O Estado brasileiro foi formado por vários tipos de matrizes étnicas e culturais, o

que formou uma sociedade multicultural. Sua origem colonial trouxe como

conseqüência grave índice de desigualdades social. Deste modo, o povo brasileiro

foi construído historicamente com base na exploração econômica, na violência e na

escravidão que gerou modo de pensar e agir diferentes e desiguais.

Embarcados na África nos porões dos navios, os escravos viam ao Brasil e

trabalhavam em setores sofridos como no trabalho em plantações e nos engenhos,

onde se fabricava o açúcar. Houve uma época em que os colonos utilizaram os

índios na mão de obra, contudo, o resultado não foi muito bom, já que nas tribos o

trabalho pesado era feito pelas mulheres. Os compradores examinavam o escravo

Negro como quem compra um animal: perguntavam pela idade, verificavam seus

dentes estavam em bom estado ou se havia defeitos pelo corpo.

Esta concepção extremamente utilitarista e que trata, de certo modo, o negro enquanto

objeto de status ainda tem se mantido uma vez que paira no imaginário social, impregnado

inclusive pela difusão midiática, a ideia de que o negro é um ser que nasceu para assumir

papéis sociais de subalternidade principalmente quanto à questão dos espaços de poder nas

relações de trabalho e na aquisição da formação escolar/acadêmica.

Vejamos o que diz Waldemir Rosa (2011, pág. 112):

Ao propor uma abordagem sobre discriminação e desigualdade, o/a pesquisador/a

deve atentar-se ao fato de que, no campo das interações sociais, um indivíduo está

inserido em diversos campos de poder, ou melhor, em diversas redes em que lhe é

permitido, em maior ou menor medida, ter acesso a determinados “poderes”,

conforme padrões sociais que operam, até certo ponto, de forma alheia à vontade do

indivíduo. Os reflexos da colonialidade do poder, como uma experiência social que

não se extingue com o fim do colonialismo, bem como a descontinuidade e a

segregação territorial, as diferenças educacionais, de poder aquisitivo, de

ascendência racial e de pertencimento étnico, são elementos a serem considerados

nesta “cartografia do poder” que uma abordagem da discriminação e da

desigualdade deve revelar.

TÍTULO I - IDENTIDADE NEGRA

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Leonardo Avritzer e Lilian C. B. Gomes (2013) instigam o surgimento de uma

reflexão em cujo foco incidental se organiza em torna do eixo temático da construção e do

entendimento necessárias à compreensão do que é identidade e como se comportam os

diversos fatores que se ligam à identidade negra, inclusive a percepção do lugar do negro nos

mais diversos cenários a que poderá se encontrar, sobre este tema, assim abordaram os autores

retromencionados:

há uma desnaturalização do modo como essas relações raciais se construiriam,

através da desconstrução do mito da democracia racial. Nesse momento ocorre o

questionamento da hierarquização de status que se estabeleceu no Brasil, na qual o

branco aparece no topo da pirâmide. Também, passa a existir uma preocupação com

o estabelecimento de um estatuto legal no âmbito público e ou estatal² com a

introdução, na Constituição de 1988, de artigos voltados para direitos de viés racial

e, posteriormente, com a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial (2010). Para

esse momento de estabelecimento de parâmetros legais e públicos, nos parece que as

preocupações de Nancy Fraser auxiliam na compreensão do caso brasileiro.

Contudo, o forte trânsito que marcou as relações entre os diferentes grupos raciais

faz com que, para a efetivação da igualdade de status, seja necessário também

refletir sobre as questões do self, a experiência do racismo vivenciado no corpo e na

psique, desde os primeiros anos da infância (Cavalleiro, 2010), o que cria a

necessidade de mudanças no padrão das relações que se estabelecem no âmbito

social e privado. Assim, o desafio é garantir que esse reconhecimento, através do

estatuto legal no âmbito público, tenha impacto nas relações do âmbito social e

privado contribuindo para que se chegue ao momento da estima social, na qual a

igualdade e dignidade se constituam em elementos da estrutura de reconhecimento

(Honneth, 2003). (pág. 40)

Segundo Jonathan Reginnie de Sena Lima (2012-b), ao se analisar a questão da

identidade negra em nossa sociedade, alguns fatores tornam-se premente quanto ao exercício

lógico-argumentativo que sustentam grande parte da discussão acerca do tema construção e

reconhecimento das identidades culturais. Sob este aspecto, assim aponta o autor:

A questão da identidade negra é tema recorrente nos pensamentos diários na

sociedade brasileira por sua complexidade e necessidade de estudos aprofundados

com o objetivo de romper alguns preconceitos e interdições. No ramo acadêmico

este tema torna-se ainda mais interessante quando se analisa indivíduos que, em seu

desenvolvimento pessoal acabam assumindo uma postura política no sentido de

desenvolver mecanismos de ação no combate de discriminações com ênfase às

discriminações etnicorraciais. Em especial este artigo versará sobre aqueles

indivíduos que não são considerados negros por grande parte da população uma vez

que não trazem em si insígnias fenotípicas da negritude, mas que compartilham da

filosofia e dos mecanismos de reconhecimento identitário negro-africano de tal

maneira que estimula a relação proximal com a ancestralidade negra, buscando não

só proferir discursos, mas também exercitá-lo em sua práxis.

Analisar as interfaces da realidade sócio histórica da conjuntura do negro e

populações afrodescendentes no Brasil é necessário, buscando observar como as

noções e imagens preconceituosas interagem no que se refere à parcialização do

provimento de uma série de Direitos e Garantias Fundamentais, tratados aqui sob

um patamar de condições mínimas de vida, e por isso basilares, intensamente

reduzidas no que se pode conceber em comparação com as condições de oferta e

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manutenção dos mesmos direitos aos ditos brancos (eleitos historicamente como

classe socialmente dominante).

Dizer que inexistem preconceitos ou tentar realizar um processo denominado

vitimização aos sofredores das ofensas responsabilidade pelos efeitos sofridos disseminação

de ideologias que visam quase exclusivamente tornar esta organização social como um

elemento natural, isto é, fundamentar algozes atitudes em função de uma posição política

efetivamente negativa e ainda forçar-lhes a associação da negritude dos indivíduos aos valores

afronegativos, estimulando uma prática de desconstrução e fragilização da identidade

afrobrasileira. Estas práticas tem se tornado uma das estratégias mais utilizadas pelos

preconceituosos, tendo sido considerada até muito comum, vez que existe uma tendência de

que o “outro”, nas relações sociais, sempre deve ser responsabilizado pelos desvios do padrão

social imposto; em mesmo sentido em que ao autor da ofensa não deve ser responsabilizado

pela postura incoerente com as concepções de respeito às diferenças e à pluralidade que

deveriam ser adotadas na nossa sociedade uma vez que a prática deveriam ser norteada pelo

que a Constituição exige.

De extrema relevância se faz a reflexão acerca de temas basilares na sociologia

brasileira como o próprio papel da colonização para a organização e difusão de critérios e

conceitos muito equivocados no que se refere ao lugar dos brancos, negros, índios e mestiços

em tempos mais distantes; mas que, sem sombra de dúvidas, ainda perduram no imaginário

social da nossa atualidade conforme tem se visto tão intensamente nas mídias em casos cada

vez mais recorrentes de racismo/injúria qualificada. Para tanto, leia-se um breve trecho do

texto de Maria da Conceição dos Reis (2009):

[...]relembramos a realidade social brasileira que historicamente tem colocado as

pessoas de pele escura numa condição de inferioridade diante de outras pessoas que

não tem, por exemplo, os mesmos fenótipos. Ao longo da história vivida no Brasil,

a pessoa negra foi, e ainda há quem a considere, sinônimo de escravizada,

subordinada, marginalizada, entre tantas outras expressões e situações que são

apresentadas diante da sociedade numa condição de inferiorizadas.

Em busca de superação das desigualdades raciais e inclusão social no Brasil, através

de igualdade, espaços, políticas públicas ou ações afirmativas, as reivindicações do

povo negro não são novidades. Há registros de lutas desde a resistência da negritude

africana que foi trazida para o Brasil pelos navios negreiros para viverem na

escravidão e, mesmo com estas condições, a luta continuou. Como exemplo,

destacamos entre outros, o surgimento dos quilombos formados pelos negros (as)

que fugiam do cativeiro e construíam o seu espaço de liberdade. Desde então, a cada

momento, até os dias atuais, novas pessoas vão se identificando, se unindo e

fortalecendo o movimento de resistência, de luta e de orgulho do pertencimento ao

povo negro.

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Este pensamento nos mostra que, ao longo dos anos houve uma tentativa de fragilizar

e extinguir sumariamente a língua, as religiões e os diversos costumes e que, há algum tempo,

vem crescendo uma busca por afirmar os valores africanos e afrobrasileiros como forma de

buscar modificar este conceito afronegativo, estas décadas de exposição ao ridículo, de

subjulgamento das populações negróides em solo nacional.

Pensando historicamente a formação do próprio modo de pensar a África e o negro,

devemos ter em mente questões que iniciam o pensamento do combate das descriminações,

então, vejamos:

Compreender a África é sumamente um exercício crítico; Uma das suas metas

aponta para o desvendamento de realidades encobertas por mitos, ficções e imagens

fantasiosas. Indiscutivelmente, ainda que existam visões estereotipadas cultivadas

contra outros povos e regiões, a África, mais do que qualquer outro continente,

terminou encoberta por um véu de preconceitos que ainda hoje marcam a percepção

da sua realidade (WALDMAN, 2004 E 2008)

O imaginário europeu devotou para as terras africanas e para os seus habitantes um

amplo leque de injunções desqualificantes, muitas vezes respaldadas pelos

expoentes da chamada “grande intelectualidade europeia”. A África, condenada ao

papel de espaço periférico da humanidade, além de considerada desprovida de

interesse para a civiliação4, seria igualmente alheia a ela. (ANJOS, 1989, P.14) In:

SERRANO e WALDMAN (2010, pág. 21)

A expectativa de uma África que destoa das características mais pungentes através da

difusão de uma ideologia que organiza toda sorte de malefícios a um continente que guarda

boa parte das riquezas naturais e humanas, é insurgir uma perspectiva árida, inóspita e pouco

realista; é criar uma política de desfavor e desvalorização para somar-se àquelas já encontram-

se há muito instituídas, legal ou socialmente. Isto se mostra em virtude da difusão de uma

série de posturas afronegativas, veladas sob os aportes mais singulares ao redor dos séculos.

Talvez se tivéssemos vivido um estado em que, sendo separados por cores seríamos

devidamente rotulados, tipificados em raças ou em estratificações abertamente proclamadas,

como foi iniciado pelo pensamento do médico baiano Raimundo Nina Rodrigues (e não digo

que seja um modelo agradável ou desejável, mas visivelmente mais fácil de empreender

conteúdos procedimentais por parte do Estado no sentido de diminuir as desigualdades sociais

nas limitações da legislação de apartação) pudéssemos criar instrumentos mais efetivos ao

controle das desigualdades de mote etnicorracial, implementada em caráter permanente pelo

advento da carta constitucional de 1988.

Decorre deste pensamento que talvez este conflito, elevado à sua máxima figura de

tensão, teria estimulado a correta percepção dos instrumentos necessários ao controle das

desigualdades e do fortalecimento das identidades afro-brasileiras ou afro-indígenas em solo

pátrio. Com relação à força ideológica dos estudos empreendidos pelo Dr. Raimundo Nina

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Rodrigues, que defendia em uns de seus estudo, apoiado pelas teorias europeias desenvolvida

por Césare Lombroso, assim falou Telmo Renato da Silva Araújo:

No Brasil, a proclamação da República e o fim da escravidão foram fatos de extrema

importância na escolha de temas raciais entre os intelectuais que trabalhavam a

construção nacional. Viam-se diante da busca de formas para estruturação do Estado

e de construção dos aparatos necessários para seu funcionamento. Pensava-se a

economia, a política e a sociedade articuladas em torno de projetos nacionais.

As discussões sobre o futuro da nação tiveram como ponto importante a questão das

raças, em que os principais temas em questão estavam relacionados com a

“indolência” dos mestiços, com a “inferioridade” racial do negro e a

“degenerescência” do mulato. Esses temas tornaram-se argumentos constantes no

final do século XIX, para tentar explicar o entrave que se constituía para o tão

sonhado “progresso” da nação.

Em 1889, dois grupos discutiam as formas e os caminhos para consolidação do

Estado nacional brasileiro. De um lado uma oligarquia cafeicultora, setor

economicamente dominante, que progressivamente melhorava suas fazendas com o

incremento de novas técnicas agrícolas e que, com o fim da escravidão, buscava

alternativas para a mão-de-obra agrícola. Do outro, uma burguesia urbana, ávida por

“progresso” e “modernização”, vinculada ao fortalecimento do Estado; enquadram-

se neste, os liberais e os intelectuais da época.

Os primeiros mantiveram sua postura oligárquica, unindo com mais força a questão

política e econômica, deixando em muitos casos a questão racial para ser pensada

pelos “homens de ciência” da época. Em finais do século XIX, no contexto nacional

brasileiro esses homens de ciência realizavam discussões acerca da questão racial,

principalmente as propostas de imigração branca européia, o direcionamento da

saúde pública para o controle das ditas doenças tropicais, a higienização da

sociedade e a eugenia para o branqueamento da nação.

A compressão da realidade nacional, de sua história, traçadas pela elite intelectual

após a proclamação da República, estava muitas vezes influenciada pela

interpretação positivista biologizante que fazia uma analogia entre meio (aspectos

geográficos) e raça (aspectos biológicos).

Continua o autor, sobre este projeto sobre o qual a sociedade brasileira veio sendo

paulatinamente inserida, mas cujos efeitos insalubres são ainda hoje sentidos (em maior ou

menor grau) a depender do pertencimento etnicorracial e pela presença de alguns

determinantes fenotípicos:

Nos projetos para a construção nacional estava um conjunto de fatores necessários

para dar um sentido à nação desejada, isto é, uma nação “branca” com costumes e

modelos tipicamente europeus. Para isso, era necessária uma certa homogeneização

da nação. Intelectuais como Silvio Romero, Euclides da Cunha, Nina Rodrigues e

posteriormente Oliveira Vianna, buscavam criar um senso de nacionalidade,

respaldado na unidade étnica.

Tal pressuposto possuía um entrave, que não permitia ser trabalhado por esses

intelectuais sem um devido preconceito: a diversidade sócio-cultural, demarcada

pelas diferenças étnicas. Buscar uma unidade demandava buscar uma

homogeneidade; dessa forma a Europa tornava-se um exemplo, visto que era

considerada como homogênea e caracterizada pela preponderância branca.

Tal pressuposto possuía um entrave, que não permitia ser trabalhado por esses

intelectuais sem um devido preconceito: a diversidade sócio-cultural, demarcada

pelas diferenças étnicas. Buscar uma unidade demandava buscar uma

homogeneidade; dessa forma a Europa tornava-se um exemplo, visto que era

considerada como homogênea e caracterizada pela preponderância branca.

(ARAÚJO)

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A sociedade brasileira contemporânea, que ainda guarda em seu interior boa parte de

seu ideário discriminatório desde a colonização, com a entronização da ideologia difundida

pela Igreja Católica de “negros sem alma”, justificando a possibilidade de escravizar os

negros e de domesticar como cativos os povos nativos que não oferecessem grandes desafios

à implantação dos diversos elementos do sistema econômico de colônia de exploração

(erradicando aqueles que fossem resistentes), como foi em grande parte do Brasil, pelo menos

até a década de 30 do século XVI.

André Augusto Brandão e Mani Tebet A. de Marins (2007, pág.35), analisando a

questão da percepção dos sujeitos em relação ao seu pertencimento etnicorracial assim

afirmam:

Em resumo, a preferência pelo fenótipo como demarcador da autoclassificação

aparece nos três grupos, embora seja muito mais acentuada entre os pretos.

Separando especificamente o item cor da pele, vemos que este seria menos

importante que a origem familiar tanto para brancos como para pardos (entre esses

últimos com peso maior). Entre os pretos, por sua vez, a origem da família apresenta

o menor percentual de escolhas se comparados aos brancos e pardos.

Esses resultados parecem nos dizer que para os pretos a origem familiar é pouco

significativa frente à realidade do fenótipo. Já para os pardos, o fato de estarem

situados num plano fenotípico que no Brasil pode ser tomado como menos definido,

faz com que estes possam se prender menos ao fenótipo e em maior medida lançar

mão da origem familiar como critério de autoclassificação. Já os brancos quase se

dividem entre os dois critérios (exatamente porque sobre estes não recai a

discriminação de cor ou raça).

Esse padrão de respostas, porém, não pode ser separado da compreensão de como os

entrevistados avaliam ser a forma utilizada para classificar os outros. Assim, a

mesma tendência encontrada em cada grupo racial para sua autodefinição se

reproduz na forma como esses grupos atribuem importância aos critérios de

classificação de outro indivíduo: a cor da pele somada aos traços físicos chega a

53,14% dos respondentes pardos, a cerca de 60% dos brancos e a 70,77% dos pretos.

Mais uma vez vale ressaltar que apesar de os dados confirmarem a predominância

dos critérios de ‘marca’ (Nogueira, 1988; 1995), a origem familiar é sempre referida

em quantidade significativa e, portanto, não é esquecida ou anulada pelos

entrevistados.

Interessante parece a perspectiva de poder organizar os indivíduos em verdadeiras

“caixas raciais” e, decorrendo da mistura de elementos destas caixas, criando o que se

denominou de mestiços. Isto implicaria numa experiência “de natureza genética” ou

filogenética, em que se criaria uma nova espécie, que agregaria algumas características de

cada mas permaneceria externa a elas. Assim, criou-se uma nova classificação e foram

necessários estudos para o desenvolvimento dos aportes teóricos do que denominou-se de

fenômeno da mestiçagem, fenômeno que se exprimiria de acordo com dimensões biológicas e

sociológicas. Falou sobre a questão da mestiçagem, o próprio Dr. Raimundo Nina Rodrigues:

Page 39: RELAÇÕES ETNICORRACIAIS, CONSTITUCIONALISMO E POLÍTICAS AFIRMATIVAS: Desconstituindo mitos e legislando para a justiça social

39

Mestiçagem. - A mestiçagem humana é um problema biológico dos mais

apaixonantes intelectualmente e que tem o dom especial de suscitar sempre as

discussões mais ardentes.

A questão da unidade ou da multiplicidade da espécie humana, do monogenismo e

do poligenismo, que parece pertencer ao domínio das ciências naturais e apresentar

um interesse pura e exclusivamente antropológico, provoca as mais ardentes

disputas. No calor do debate, reconhecemos freqüentemente que nesta questão está

contida outra, transcendente, filosófica, e até teológica: a da origem natural ou

sobrenatural do homem, do transformismo ou da criação divina.

Ao aceitar como critério fundamental da espécie a fecundidade indefinida dos

cruzamentos, era natural que os poligenistas apoiassem o hibridismo dos

cruzamentos humanos, contra os monogenistas, que se esforçam por demonstrar a

viabilidade perfeita de todos os mestiços.

Assim, o critério de viabilidade e de capacidade dos mestiços foi posta no terreno

das ciências naturais. Tanto como para os animais, esse critério deveria ser a perfeita

eugenesia dos mestiços humanos, que uns apoiavam e os outros negavam.

Ora, o Dr. Rodrigues entendia ser o fenômeno da mistura das ‘raças’ um fenômeno

que trazia à sociedade uma série de malefícios, dado inclusive denominado em suas pesquisas

que levavam em consideração as características fenotípicas no sentido de tentar traçar

características patológicas, tendentes à criminologia em virtude desta miscigenação; enquanto

a “monogenia” seria um mecanismo de grande eficácia no sentido de promover uma

intervenção menos lesiva, criminalmente posta, como mecanismo de prevenção de

criminalidade.

TÍTULO II - A POPULAÇÃO NEGRA E OS DESVIOS HABITUAIS: POLÍTICAS PÚBLICAS EDUCACIONAIS

DE DESVALORIZAÇÃO E SILENCIAMENTOS

Cesare Beccaria (2012, pág. 9) diz que “Em toda sociedade humana, há um esforço

tendendo continuamente a conferir a uma parte o auge do poder e da felicidade e a reduzir a

outra à extrema fraqueza e miséria.” Há, contudo, na sociedade brasileira desde sua fundação

como colônia de exploração portuguesa, viu-se o destaque e a ascensão do branco europeu em

detrimento dos povos nativos e dos povos africanos trazidos em condições sub-humanas em

navios negreiros cujas condições sanitárias eram deploráveis e não passavam de meras

mercadorias na conjuntura nacional.

Advertem as professoras Denise Botelho e Juliana Cristina S. Santos sobre o papel das

esferas de exercício de poder no universo escolar como são os atos da gestão educacional que

deve se comportar no sentido de combater o racismo, uma vez que a educação é um

instrumento social de grande repercussão para a população vez que permite a introjeção de

valores (a depender da idade e do nível de maturidade intelectual e da quantidade e qualidade

das informações acessadas, quase nunca sem a resistência). Importante também é iniciar, nas

práticas educacionais, uma ideologia que, pregando igualdade, respeito e fraternidade em

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desfavor da reprodução de preconceitos, acabam por facilitar este combate às discriminações

e não apenas às discriminações etnicorraciais. Devemos, sempre que possível, enquanto

sujeitos integrantes do Estado Democrático de Direito, buscar empreender ações e disseminar

ideologias que procurem reverter as posturas intolerantes e segregadoras dentro das lógicas

segregacionistas de quaisquer espécies. Nas palavras das autoras:

O Brasil se constituiu enquanto nação através da exploração dos povos africanos e

indígenas que teve como consequência a exclusão destes segmentos populacionais

dos processos sociais de ascensão e dos bancos escolares. No entanto, a principal

característica dessa historia é a resistência. Resistência essa que sempre foi omitida

da historiografia oficial brasileira, que transmitia a imagem dos negros e indígenas

como seres passivos e animalizados que não lutavam pelos seus direitos e que foram

“salvos” pelos brancos abolicionistas. Diante deste processo de exclusão e

resistência, elegemos para desenvolver no presente texto como se deu o ingresso do

negro à educação escolar. (2011. págs. 60 e 61)

Ora, se a educação é um aparelho ideológico do Estado (como já enunciava o

sociólogo Max Webber), que busca construir uma lógica no educando, as políticas que

norteiam este aparelho refletem, decerto, a ideologia que a sociedade pretende passar. Se as

políticas públicas possuem um caráter eminentemente embranquecedor e intolerante, não se

abre espaço para que a pluralidade seja alcançada, à exceção do uso da força (quer intelectual

ou física), o que acaba por gerar algumas tensões de natureza exógena (mas não alienígena)

ao processo de ensino-aprendizagem. Perceba-se, portanto, que estas tensões são pequenos

recortes das tensões vividas no macrotecido social brasileiro reproduzido mediante uma lógica

aprisionadora que dá poucas chances do indivíduo alçar voos e libertar-se de suas amarras.

Esta situação é decorrente, sem dúvidas, o resultado da patologia social forçosamente

introduzida num tecido social já necrosado pelos anos de escravidão e silenciamentos; de

imposição da cultura e lógica europeias; de processos ilegítimos de julgamento e imposição

da culpabilidade e toda sorte de malefícios à população negra e indígena que veio despertando

uma série de movimentos que não culminaram apenas na libertação dos escravos ou na

instituição do Dia da Consciência Negra, mas que ainda hoje têm permanecido como ponto

central, verdadeira pedra de toque para as fundações mais solidas desta sociedade que visa um

dia tornar-se fraterna e igualitária nos termos da Constituição.

Resta ainda na memória sobre os ensinamentos mais elementares, ainda nos anos

iniciais do desenvolvimento escolar, sobre processos de mestiçagem, analisando a existência

de “raças puras” ou de elementos matriciais e seus desvios habituais decorrentes das relações

entre os povos (relações sociais, culturais, econômicas e, porque não, sexuais) analisando-se

figuras caricatas sob a nomenclatura de “brancos”, “negros” e “índios” e transformando os

indivíduos mestiços em verdadeiras equações genéticas deterministas, em que o cruzamento

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genético de “branco” com “negro” dá mulato; que “negro” com “índio” dá cafuzo e que

“índio” com “branco” dá mameluco e toda sorte de discriminações daqueles que não

pertenciam a nenhum dos universos matriciais e, dependendo de sua aparência, carregaria

mais ou menos o peso do jugo escravista-opressor.

Esse sistema arcaico de arranjos genéticos nos dava indícios, inclusive baseados nos

estudos científicos empreendidos pelo senhor Nina Rodrigues, médico e geneticista do século

XIX, de que os indivíduos classificados socialmente como brancos teriam sucesso uma vez

que traziam em sua estrutura molecular, expressos através de sua corporeidade, isto é, na

existência de seus traços físicos caucasianos, a imponência do povo dominador, isto é, a

“força intelectual” do povo branco no processo de desenvolvimento das questões sociais

fundamentais enquanto todos os demais seriam apenas subprodutos, escolhidos por Deus ou

pelo acaso da mestiçagem, que seriam naturalmente marginalizados sem que lhes fosse

permitido nenhum tipo de espaço para ascender socialmente, sendo-lhes imputada, social e

economicamente, uma posição de desprestígio, subalternidade e submissão.

Pensando ser o processo histórico de produção da historiografia como um movimento

dialético, um processo duplo no sentido de que exige uma postura diferenciada daquela

naturalmente empreendida na historia oficial, pelo vezo dos heróis europeus quase

divinizados, dos desbravadores e conquistadores de terras e povos intrépidos, entende-se que

os povos dominados são, de fato, povos que apresentaram resistências em rol macro, através

de grupos étnicos ou atos como formação de quilombos ou em uma escala individual, como

nos atos isolados que constantemente perpetravam.

Àqueles a quem a história chamou dominadores ou colonizadores, legitimou-se uma

lógica em que estenderam aos demais povos no processo da colonização uma visão

denominada eurocêntrica, visão esta que passou a dominar e nortear os interesses locais e a

finalizar os diversos processos civilizatórios, em especial no movimento de expansão

marítima moderna no continente americano (em especial à América do Sul) e africano.

Desde então criou-se uma cultura pautada no ataque quase indiscriminado a alguns

eixos centrais nesta discussão ora apreendida, sobre os quais sopesaram grande parte das

discriminações no sentido de promover uma abordagem pouco efetiva quanto ao exercício de

direitos e liberdades individuais e coletivas, tendo por objetivo excluir da convivência social

toda e qualquer espécie de variação (tratada como desvio ou defeito) do que estipulou-se

como sendo o resumo dos caracteres socialmente difundidos como corretos, apoiados,

inclusive, sob uma lógica religiosa e por diversos anos de práticas sociais de

dominação/subordinação em que se havia uma representação muito devastadora e radical para

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assegurar uma ordem fundada numa padronização que retira do sujeito todo tipo de

significação real de produção e aquisição de valores culturais plurais e diversos dentro de uma

mesma realidade.

Vejamos a seguir um esquema que representa a matriz sociológica básica do sistema

de discriminações negativas existentes em nosso País:

Figura 2 Eixos sob os quais se deu a maioria das investidas históricas de preconceitos/discriminações na sociedade

brasileira.

Entendendo ser geral a percepção da existência factual desta matriz das

discriminações, deve-se seguir no sentido inverso, ou seja, deve-se empreender uma jornada

no sentido de aumentar a percepção do real valor em favor do fortalecimento da identidade do

negro na sociedade, seu comprometimento no sentido de construir uma identidade nacional

que permita às demais etnias florescer em harmonia. Ora, o que não se pode é permitir dizer

que os negros ficaram em situação de privilégio ou sob qualquer tipo de tutela estatal ou

benesse desde os anos da Lei Áurea.

Durante a história do mundo, principalmente quando se fala no período colonialista e

neocolonialista, temos um intenso referencial da utilização de povos africanos nas

empreitadas de povos europeus e foi esta visão histórica de divulgação do opressor que

silenciou, por muito tempo, a história dos oprimidos. Mas necessário se faz esta

desconstrução teórica vez que, conceitualmente, ela é constitutivamente fragmentada, pouco

realista e muito parcial no sentido da reafirmação de uma pretensa supremacia europeia em

relação aos demais povos.

Nos fala sobre o tema Alexandre do Nascimento, no texto “As políticas de ação

afirmativa como instrumentos de universalização dos direitos” que:

Na atual agenda política brasileira, as chamadas ações afirmativas estão em

destaque. Durante e a campanha eleitoral, o atual presidente da república, a partir

dos diagnósticos e propostas apresentadas por organizações do movimento social

Sistema discriminatório

Gênero Raça/cor/etnia Sexualidade Nível de

escolaridade

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negro brasileiro, explicitou à sociedade através do documento “Brasil sem racismo”

o compromisso do seu governo com a redução (e superação) das imensas

desigualdades raciais. Segundo o documento, esse compromisso deve ser

consubstanciado através de políticas específicas, sem abandonar as políticas

universais. Esse compromisso é resultado da luta histórica do movimento social

negro que, como principal protagonista intelectual e militante do anti-racismo no

Brasil, trabalhou quase um século para que o racismo fosse reconhecido pela

sociedade e pelo Estado brasileiro. Somente na década de 1990 e após muita pressão do movimento negro, o governo

federal brasileiro, na gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso, decidiu

reconhecer publicamente a existência do racismo e suas consequências no Brasil,

dando início a um processo de discussão sobre o problema e implementando

algumas tímidas medidas de combate ao racismo.

Um dos resultados positivos dessa luta histórica é que hoje, mesmo com resistência

de alguns setores da sociedade, não é mais possível negar que o racismo é uma

questão presente na realidade concreta e que é necessário um amplo debate, tanto no

sentido da sua superação, quanto no sentido da superação das desigualdades raciais.

Esse é um tema relativamente novo no debate político no Brasil. Foi, portanto, a luta

do movimento negro que fez com que ganhasse espaço no debate sobre políticas

públicas o conceito de ação afirmativa – políticas temporárias e específicas de

promoção de igualdade de oportunidades de condições concretas de participação na

sociedade. Na perspectiva dos movimentos sociais, as ações afirmativas não são o

fim das lutas sociais anti-racistas – são as próprias lutas . E, como tais, são ações de

afirmação de identidade e produção de direitos. Como políticas públicas e

institucionais resultantes dessas lutas, as ações afirmativas constituem intervenções

nas instituições, com o objetivo de promover a diversidade sócio-cultural e a

igualdade de oportunidades entre os diversos grupos sociais – sobretudo entre os

grupos étnico-raciais de uma sociedade. A compreensão é a seguinte: no processo de

combate ao racismo, são necessárias políticas que devem ir além de leis que

proclamem a igualdade de todos e leis que visem punir as práticas racistas e

discriminatórias; essas políticas devem atacar as desigualdades raciais, com medidas

que intervenham diretamente nas instituições para garantir a presença dos grupos

sociais discriminados, como é o caso da população negra. Esse é o sentido das cotas

raciais (ponto mais polêmico do debate), dos programas educacionais (tais como

metodologias, currículos, revisão de livros didáticos e formação de educadores), das

políticas de acesso e permanência nas universidades e das políticas de valorização

cultural, todas defendidas pela maioria dos ativistas do movimento negro como

forma de integração da população negra, de superação de preconceitos e atitudes

discriminatórias e de recomposição das relações sociais.

O povo brasileiro, ao ser colonizado pelos portugueses, manteve grande parte desta

herança cultural eurocêntrica, e ainda hoje, traz intrinsecamente o ranço desta realidade

escravista e opressora, reproduzindo a todo momento a manutenção das desigualdades

enquanto sistema de validação das classes, da valorização da burguesia e enaltecimento de

uma nobreza cada vez menos presente. Assim sendo, é necessário que possamos ter bem

claros os ideais que nos são hodiernamente reforçados, ou seja, investigar e questionar qual o

fundamento ideológico está sendo consumido e reproduzido através das práticas e dos

discursos.

Abaixo um esquema que simboliza a matriz que engloba, em dados gerais, a força do

invasor branco, um traço pungente do escravismo e da colonização que, desde a “fundação”

do Brasil, vem sendo largamente difundido. No esquema tratam-se como sendo componentes

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de uma mesma lógica discriminatória os seguintes fatores: a) sexo; b) raça/cor/etnia; c)

sexualidade; d) nível de alfabetização; e) religião (fazendo-se saber que outros fatores podem

fazer parte deste esquema).

Figura 3 Matriz sociológica disseminada no senso comum da população brasileira, desenvolvida desde a colonização.

Isto porque subsiste no imaginário popular o engendramento dos continua da

vulnerabilidade. Não é de se espantar que esta matriz seja, na prática, tão fortemente

defendida por indivíduos que permanecem na ideologia da eugenia e da influência positiva

branca. Percebamos por alguns dados estatísticos, conforme depreende-se dos quadros abaixo,

a existência da vulnerabilidade:

Taxa de Homicídios

Unidade da Federação Negro Não Negro

Acre 18,0 12,9

Alagoas 80,5 4,6

Amapá 41,1 16,1

Amazonas 38,1 7,8

Bahia 47,3 11,3

Ceará 30,3 10,7

Distrito Federal 52,7 10,0

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Espírito Santo 65,0 17,4

Goiás 42,8 15,0

Maranhão 26,3 9,6

Mato Grosso 39,7 20,4

Mato Grosso do Sul 30,6 21,0

Minas Gerais 23,8 10,3

Pará 55,1 15,5

Paraíba 60,5 3,1

Paraná 22,6 38,7

Pernambuco 54,6 7,7

Piauí 14,9 7,0

Rio de Janeiro 41,0 21,2

Rio Grande do Norte 34,7 8,5

Rio Grande do Sul 25,1 17,9

Rondônia 39,5 24,9

Roraima 34,2 9,4

Santa Catarina 13,4 12,6

São Paulo 16,2 12,0

Sergipe 39,8 9,6

Tocantins 27,1 9,5

IPEA. Tabela sobre taxa de homicídios. 2011. Disponível em:

<http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/131119_tx_homicidio_uf.p

df>. Acessado em: 12/04/2014.

Importante é perceber que no Brasil, em especial no estado de Pernambuco, acontece

uma política social implícita de embranquecimento, conforme seja possível observar até

mesmo pela análise qualitativa dos dados estatísticos referentes à taxa de homicídios recém-

demonstrada. Isto porque em nossa realidade social, a taxa de mortes em relação à

característica fenotípica, a cor da pele é praticamente determinante dos negros e dos não-

negros tornando-se formações sociais estratificantes e denotando, decerto, construções

abissais, verdadeiros contrassensos jurídicos entre o que é pretendido na abstração legal e o

que acontece na realidade social pátria.

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É essencial a organização de uma política que permita aos negros uma visibilidade

positiva no sentido de que organizar a observação não só de sua permanência enquanto sujeito

que, de fato, é sujeito de direitos que merece respeito e, baseado nos dados estatísticos

levantados, requerem do Estado uma prestação positiva da tutela jurisdicional no sentido de

promover a igualdade de oportunidades não apenas numa perspectiva da meritocracia clássica

que se baseia em um critério pouco efetivo, mas que leve em consideração esta menção à

diversidade de sujeitos e de concepções, abarcando sempre que possível a multiplicidade de

panoramas que existem em nosso país. Vejamos, portanto, uma representação deste ideal de

embranquecimento da sociedade brasileira, não mais em forma de tabelas, mas utilizando de

um recurso que julgo aproximar ainda mais a visualização da realidade de um sistema racista

escamoteado sob outros problemas sociais ou naturalizado por infinidades de discursos vazios

de realidade e impregnados de ideologias paralisantes.

Figura 4 Gráfico com os homicídios em 2010 segundo pesquisas realizadas pelo Instituto de Pesquisas Econômicas

Aplicadas. IPEA, 2011.

Dos dados acima percebemos que em todos os estados do Brasil há uma taxa de

homicídios de negros que ultrapassam (alguns largamente) a taxa dos homicídios dos não

negros. Isto é, os dados estatísticos vêm a corroborar com o entendimento de que há, de fato,

um perfil racista, eugenista e higienista, isto porque se propõe a estabelecer uma relação de

embranquecimento na sociedade brasileira.

0

20

40

60

80

100

Acr

e

Ala

go

as

Am

apá

Am

azo

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Bah

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São

Pau

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Ser

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To

canti

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Taxa de Homicídios - 2010

Negros Não Negros

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Figura 5 Renda média por relação gênero e pertencimento etnicorracial. IPEA, 2010.

Figura 6 Taxa média de desemprego por relação gênero e pertencimento etnicorracial. IPEA, 2010.

0

200

400

600

800

1000

1200

1400

1600 1491

957

833,5

544,4

Renda média (em R$)

Homem branco

Mulher branca

Homem negro

Mulher negra

0,00%

2,00%

4,00%

6,00%

8,00%

10,00%

12,00%

14,00%

5,30%

6,60%

9,20%

12,50%

Taxa de desemprego (em percentual)

Homem branco

Mulher branca

Homem negro

Mulher negra

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Figura 7 Quantidade de anos em formação escolar por gênero e pertencimento etnicorracial. IPEA, 2010.

Dos dados acima depreende-se de maneira muito clara a disparidade existente entre as

categorias raça/cor/etnia e a questão do papel essencial do gênero em nossa sociedade,

mostrando, inclusive, que esta interseção é ainda mais cruel no sentido de vitimizar de

maneira mais intensa às mulheres negras e a colocá-las em situação ainda mais intensa neste

dégradée social. Importante é também se analisar que, em dados gerais, as mulheres mantém

mais escolaridade do que os homens e que os brancos mantém-se em situação mais

privilegiada frente aos negros.

TÍTULO III – O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O ABRANDAMENTO DAS DISCRIMINAÇÕES

Em nossa sociedade veio sendo disseminada uma ideologia silenciosa, mas

perniciosamente agressiva: o mito da democracia racial, ainda hoje tão invocado em diversos

discursos que, iniciados pelo sociólogo Gilberto Freyre em sua obra Casa-Grande & Senzala,

mostra uma perspectiva de embranquecimento/branqueamento da sociedade brasileira em prol

de uma mestiçagem generalista em que pesem positivamente os aspectos europeus vindos

com os dominadores/colonizadores.

Ronaldo Sales Jr. (2006) assim diz em seu texto, Democracia racial: o não-dito racista:

No plano das práticas sociais cotidianas, consolidou-se o que denomino

“cordialidade racial”. A “cordialidade” das relações raciais brasileiras é expressão da

estabilidade da desigualdade e da hierarquia raciais, que diminuem o nível de tensão

racial. A cordialidade não é para “negros impertinentes”.

0

1

2

3

4

5

6

7

8

9

10 8,8

9,7

6,8

7,8

Educação escolar (em anos)

Homem branco

Mulher branca

Homem negro

Mulher negra

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As relações cordiais são fruto de regras de sociabilidade que estabelecem uma

reciprocidade assimétrica que, uma vez rompida, justifica a “suspensão” do trato

amistoso e a adoção de práticas violentas.

Isto implica numa postura simbólica de uma estrutura muito particular inerente ao

sistema brasileiro de organização social, fundamentada nas discriminações, a tal ponto de

buscar justificar socialmente os casos de racismo e inverter o rol de expressões negativas, de

condução não respeitosa, uma relação de tolerância da qual se está quase sempre em sinal de

alerta, disposto a suspender os “protocolos de cordialidade” que o autor retromencionado

aduz. Na música Identidade, o poeta Jorge Aragão mostra este lugar direcionado aos negros e

como esta realidade afro negativa, discriminatória negativamente vem sendo impostas aos

povos afrodescendentes. Portanto, vejamos:

Elevador é quase um templo

Exemplo pra minar teu sono

Sai desse compromisso

Não vai no de serviço

Se o social tem dono, não vai...

Quem cede a vez não quer vitória

Somos herança da memória

Temos a cor da noite

Filhos de todo açoite

Fato real de nossa história

(2x)

Se o preto de alma branca pra você

É o exemplo da dignidade

Não nos ajuda, só nos faz sofrer

Nem resgata nossa identidade

Dentro desta letra percebemos a tentativa de expor o abrandamento do racismo que,

mesmo operante, é percebido como algo menor, uma questão meramente histórica sem

grandes reverberações, a exemplo da utilização dos elevadores de serviço pelos negros porque

os elevadores sociais tem os brancos como donos ou quando utiliza-se a expressão “negro de

alma branca” para designar-se a algum negro que possua características positivas como sendo

características eminentemente ligadas à branquitude. O abandono deste estado de “inércia

cordial” faz aflorar o senhor de engenho, o capataz, o capitão-do-mato que mora em nosso

interior, conforme bem expressa o texto de Luiz Antônio Simas, intitulado O senhor de

engenho dentro de nós (2010). BERNARDINO (2002), ao versar sobre o mote da democracia

racial, introduz a noção de que:

A crença no mito da democracia racial é estruturante do sentimento de nacionalidade

brasileiro, a ponto de operar uma rara concordância valorativa entre as diferentes

camadas sociais que formam a sociedade nacional. A título de exemplo, em pesquisa

realizada no Distrito Federal, acerca do perfil valorativo de brasileiros agregados a

partir da renda familiar, nível de escolaridade e local de moradia, Souza (1997)

constatou que entre os brasileiros que com põem a camada/classe média e os que

formam a camada/classe baixa existe uma clara linha demarcatória em relação ao

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preconceito contra a mulher, ao pobre, ao nordestino e aos homossexuais; de tal

forma que entre os primeiros essas formas de preconceito apresentam um baixo

índice, enquanto entre os últimos apresentam um alto índice. A conclusão da

pesquisa é que o preconceito em relação à mulher, ao pobre, ao nordestino e aos

homossexuais é inversamente proporcional ao rendimento, ao grau de escolaridade e

à qualidade de vida proporcionada pelo local de moradia. Porém, o interessante vem

no que segue: enquanto nas referidas formas de preconceito há uma nítida separação

entre classe média alta e classe baixa, o mesmo não se aplica quando se investiga o

preconceito racial. Em vez da separação valorativa, encontramos uma concordância

entre esses dois segmentos na condenação do preconceito racial e na valorização da

miscigenação. A referida pesquisa constatou que tanto entre classe média alta quanto

entre a classe baixa o índice de discordância em relação às seguintes perguntas eram

significativamente altos: “o negro só é bom em música e esporte?’’ e “alguns

cientistas afirmam que os brancos são mais inteligentes que os negros”

(Souza,1997:117-143). Obviamente, a conclusão a que podemos chegar não é que

não existe preconceito racial no Brasil, mas que o brasileiro tem “preconceito de não

ter preconceito”, como assinalou Florestan Fernandes (1972:23-26). Daí, então, a

necessidade de não confundir o ato de responder a um questionário, quando

freqüentemente todos os entrevista dos expressam muito mais um desejo, com a

prática que muitos destes entrevistados possam ter. Ou seja, é necessário estar atento

à distância que existe entre a fala consciente, no caso daqueles que estão

respondendo a um questionário, e a prática e a fala cotidiana que muitas vezes não

são avaliadas pela consciência.

Portanto, é importantíssimo desconstruir determinadas ideologias altamente alienantes

que visam, no mais das vezes, silenciar as diferenças e jogar no outro toda a responsabilidade

de seus fracassos, como se o sistema social e econômico não fosse realmente responsável

pelas mazelas sociais que vem sendo desenvolvidas ao longo de nossa história, executando

friamente o processo de vitimização daqueles que sofrem os atentados. É bastante corriqueiro

até ouvirmos nas ruas ou em nosso próprio convívio familiar/escolar ou no trabalho pessoas

dizendo que tudo o que conseguiram foi por seus méritos e que se o outro não conseguiu é

porque não quer ou não se interessa para aquilo, eximindo o Estado e a sociedade da

responsabilidade de promover um processo efetivo de inclusão, notando-se que a sociedade se

utiliza de critérios discriminatórios para delinear o papel e o espaço dos atores sociais na

conjuntura de cada realidade.

Adverte-nos ainda SALES JR. (2006) ao que denominou de cordialidade racial, uma

tolerância que não respeita, que não integra:

A cordialidade, por meio do não-dito racista, faz com que a discriminação social não

seja atribuída à “raça” e, caso isso ocorra, a discriminação seja vista como episódica

e marginal, subjetiva e idiossincrática. Todavia, a cordialidade não se confunde com

gentileza, mas se expressa nas próprias formas de agressividade, reduzindo as

relações de poder a relações pessoais e informais, relações privadas. A relação entre

cordialidade e agressividade é importante na constituição dos laços pessoais, como

processo de individuação e diferenciação que conduz ao laço pessoal nas relações

familiares e ao de amizade nas relações de trabalho, dentre outras. O não-dito, por

exemplo, se efetiva não apenas nas piadas ou nos eufemismos, mas também na

injúria racial. Em termos lingüísticos, a cordialidade, como veremos mais adiante, se

expressa em modalizações afetivas, por meio de valores e práticas personalistas,

privadas e informais que ocupam os espaços e aparelhos institucionais formais e

públicos.

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Nessa forma de relações raciais, trata-se da estigmatização como microtécnica

política do corpo, (re)produzindo, distribuindo e consumindo suas marcas, odores,

cores, texturas, gostos, fluxos, gestos, gozos etc. Dessa forma é que se opõem, como

“raças”, dois organismos, “branco” e “negro”, como acessos diferentes dos

indivíduos aos seus “próprios” corpos e, a partir daí, aos demais bens sociais.

Porém, aqueles elementos, ou objetos parciais (estigmas) destacados de um fundo

corporal impessoal, não têm o mesmo estatuto. A cor da pele ocupa o lugar do

significante central que conecta, organiza e totaliza todos os demais elementos. A

cor torna-se sinédoque das relações raciais.”

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Capítulo III - Políticas afirmativas

Um país que crianças elimina

Que não ouve o clamor dos esquecidos

Onde nunca os humildes são ouvidos

E uma elite sem Deus é quem domina

Que permite um estupro em cada esquina

E a certeza da dúvida infeliz

Onde quem tem razão baixa a cerviz

E massacram-se o negro e a mulher

Pode ser o país de quem quiser

Mas não é, com certeza, o meu país.

Um país onde as leis são descartáveis

Pela ausência de códigos corretos

Com quarenta milhões de analfabetos

E maior multidão de miseráveis

Um país onde os homens confiáveis

Não têm voz, não têm vez, nem diretriz

Mas corruptos têm voz e vez e bis

E o respaldo de estímulo incomum

Pode ser o país de qualquer um

Mas não é, com certeza, o meu país.

(O Meu País – Flávio José)

Thiago Lauria (2006), ao se debruçar sobre a natureza das políticas afirmativas tece o

seguinte comentário, entendendo que as cotas “consistem em intervenções governamentais

diretas, extremas, em uma determinada realidade social, com o fim de promover a igualdade

material dentro de um cenário de preconceito.” Isto implica em uma prestação positiva do

Estado em relação aos seus cidadãos. É, portanto, uma modalidade de política pública, de

caráter temporário, que visa a reduzir as desigualdades. Dentro desta lógica, é preciso

entender os instrumentos político-jurídicos como sendo proposições que o Estado acaba por

adotar para que haja uma efetiva gestão dos recursos econômicos e, através da regulação

estatal na atividade legiferante que, de certa forma, disciplina a vida dos indivíduos, ou seja, é

um meio que permite a rápida atuação do Estado em relação ao atendimento às demandas

sociais compreendidas como fruto de tensões de grupos sociais que, se não são opostos,

divergem em muitos pontos.

O Grupo de Estudos Multidisciplinares de Ação Afirmativa (GEMAA) da UFRJ, no

texto, O que são ações afirmativas (2011) assim conceitua políticas afirmativas:

Ações afirmativas são políticas focais que alocam recursos em benefício de pessoas

pertencentes a grupos discriminados e vitimados pela exclusão sócio-econômica no

passado ou no presente. Trata-se de medidas que têm como objetivo combater

discriminações étnicas, raciais, religiosas, de gênero ou de casta, aumentando a

participação de minorias no processo político, no acesso à educação, saúde,

emprego, bens materiais, redes de proteção social e/ou no reconhecimento cultural.

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Entre as medidas que podemos classificar como ações afirmativas podemos

mencionar: incremento da contratação e promoção de membros de grupos

discriminados no emprego e na educação por via de metas, cotas, bônus ou fundos

de estímulo; bolsas de estudo; empréstimos e preferência em contratos públicos;

determinação de metas ou cotas mínimas de participação na mídia, na política e

outros âmbitos; reparações financeiras; distribuição de terras e habitação; medidas

de proteção a estilos de vida ameaçados; e políticas de valorização identitária.

Sob essa rubrica podemos, portanto, incluir medidas que englobam tanto a

promoção da igualdade material e de direitos básicos de cidadania como também

formas de valorização étnica e cultural. Esses procedimentos podem ser de iniciativa

e âmbito de aplicação público ou privado, e adotados de forma voluntária e

descentralizada ou por determinação legal.

A ação afirmativa se diferencia das políticas puramente anti-discriminatórias por

atuar preventivamente em favor de indivíduos que potencialmente são

discriminados, o que pode ser entendido tanto como uma prevenção à discriminação

quanto como uma reparação de seus efeitos. Políticas puramente anti-

discriminatórias, por outro lado, atuam apenas por meio de repressão aos

discriminadores ou de conscientização dos indivíduos que podem vir a praticar atos

discriminatórios.

No debate público e acadêmico, a ação afirmativa com freqüência assume um

significado mais restrito, sendo entendida como uma política cujo objetivo é

assegurar o acesso a posições sociais importantes a membros de grupos que, na

ausência dessa medida, permaneceriam excluídos. Nesse sentido, seu principal

objetivo seria combater desigualdades e dessegregar as elites, tornando sua

composição mais representativa do perfil demográfico da sociedade.

Conforme Carlos Serrano e Maurício Waldman (2010, pág. 19):

“Dificilmente é possível descartar aspectos propriamente sociais que impregna as

questões de mote racial. Tanto essa argumentação procede que ninguém pode negar

o fato de os afrodescendentes serem tão incomuns entre os mais bem aquinhoados

da população brasileira”

Ora, sendo assim, se faz necessária uma observação muito intensa nesta questão quase

incontroversa, vez que a dimensão sociológica é deveras intensa nas práticas inclusivas ou na

fundamentação das práticas discriminatórias. Percebamos então uma dimensão importante

quanto à perspectiva jurídica da formatação e edição de normas infraconstitucionais de

promoção da igualdade, conforme enuncia Antonio Sérgio Alfredo Guimarães (2006):

Segundo Donna Van Cott (2000), esse modelo constitucional, que pode ser chamado

de multicultural, tem as seguintes características: 1) reconhecimento formal da

natureza multicultural de suas sociedades e da existência de povos indígenas como

coletividades sociais e subestatais distintas; 2) reconhecimento das leis

consuetudinárias dos povos indígenas como leis públicas e oficiais; 3) direito à

propriedade coletiva com restrição à alienação ou divisão de terras comunitárias; 4)

status oficial para línguas indígenas em unidades territoriais de residência; e 5)

garantia à educação bilíngüe. No caso brasileiro, precisaríamos acrescentar um sexto

elemento ao modelo: reconhecimento do racismo como um problema nacional.

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Ora, essas reformas constitucionais foram quase que imediatamente seguidas ou

ocorreram concomitantemente à introdução de políticas neoliberais, no campo social

e econômico.

Resta observar que as políticas afirmativas devem constituir não apenas um

instrumento de natureza perene e imutável, constituído em rol definitivo, mas um elemento

transitório que permita a descontinuação de uma realidade desigual em virtude da manutenção

do status quo de uma parcela socialmente destacada, mas quantitativamente ínfima da

população. É necessário entender as políticas afirmativas como veículos que permitirão, senão

erradicar boa parte dos malefícios sociais, promover possibilidade jurídica de redução drástica

das desigualdades.

Importante ressaltar que políticas afirmativas existem há muitos anos; permitiram, por

exemplo, a inserção de categorias sociais que, anteriormente, estavam à margem dos olhos

dos representantes do Poder Público como as mulheres, os deficientes, etc. Não caberá a nós,

pela ausência de tempo disponível, adentrar com muita propriedade em nenhuma delas, visto

que nosso corte epistemológico se deu a inserção e a ascensão sobre as populações

afrobrasileiras observando, assim que possível, como se deu seu acesso a alguns espaços de

poder, haja visto que em pleno século XXI ainda nos restam diversas problemáticas de

natureza etnicorracial, senão vejamos o que diz o artigo intitulado Ser negro no Brasil,

postado no endereço eletrônico do Instituto Geledés:

Ser negro no Brasil de hoje requer de uma assumir posturas e tomar atitudes

extremamente mordaz, a fim de que possa sobreviver às estruturas racistas

existentes. SOUZA (1983) nos diz que ser negro no Brasil, é tornar-se negro, “é

tomar posse dessa consciência e criar uma nova consciência que reassegure o

respeito às diferenças e que reafirme uma dignidade alheia a qualquer tipo de

exploração”. Requer entender as bases racialistas sobre as quais a nossa sociedade

está apoiada, e assim poder confrontá-las numa postura consciente a qual devemos

estar sempre atentas.

Quanto a isso, concordo plenamente. Precisamos, sim, tomar posse de uma

consciência que ultrapasse as barreiras sociais de existência do indivíduo.

Mas é notório dizer que as assimetrias sociais existentes no Brasil, por conta do seu

percurso histórico de colonialismo e escravidão que perdurou por mais de trezentos

anos, estão imbricadas com as assimetrias raciais, e isso é uma marca inegável na

nossa historiografia.

Em meio às discussões e conquistas que vem sendo alcançadas, devo dizer que

muito tem sido feito para a garantia do direito à cidadania de pessoas negras.

Mas, para além do que disse SOUZA (1983), devo confessar o que perpassa no ato

de ser negro no Brasil de hoje, e para isso sugiro que assistam aos dois vídeos

abaixo, para entender parte da minha crítica ácida e mordaz ao sentido que se toma o

fato de ser negro no Brasil.

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Ao se falar em cotas etnicorraciais, deve-se, inicialmente, buscar observar como se

fundamenta toda a base, jurídica e filosófica, que permite a sua existência fática. Por isso,

devem ser analisadas questões elementares que sustentam todo ideário de igualdade mediante

uma postura política que organize, de maneira satisfatória, os instrumentos em função da

promoção da igualdade de gênero, raça/cor/etnia, regionais, etc. Para assegurar que as

desigualdades possam ser minoradas, o constituinte originário decidiu trazer à lume sua

observação vanguardista quando, por exemplo, denominou um dos pilares com o termo

autonomia universitária, localizada na CF/88 no art. 207.

Assim nos fala Petrônio Domingues (2005), quanto às cotas:

Como reverter esse quadro de injustiça e desigualdades raciais? Do ponto de vista

conjuntural, a saída que se vislumbra é a defesa de um amplo programa de ações

afirmativas. Mas, afinal, o que são ações afirmativas? A expressão “ação afirmativa”

foi criada pelo presidente dos Estados Unidos J. F. Kennedy, em 1963, significando

“um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou

voluntário, concebidas com vistas ao combate da discriminação de raça, gênero etc.,

bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado”

(Gomes, 2001). No entanto, é mister contextualizar o seu surgimento. As ações

afirmativas não foram dadas pela elite branca dos Estados Unidos; pelo contrário,

elas foram conquistadas pelo movimento negro daquele país, após décadas de lutas

pelos direitos civis.

Segundo Joaquim Barbosa Gomes (2001, p. 6-7), os objetivos das ações afirmativas

são: induzir transformações de ordem cultural, pedagógica e psicológica, visando a

tirar do imaginário coletivo a idéia de supremacia racial versus subordinação racial

e/ou de gênero; coibir a discriminação do presente; eliminar os efeitos persistentes

(psicológicos, culturais e comportamentais) da discriminação do passado, que

tendem a se perpetuar e que se revelam na discriminação estrutural; implantar a

diversidade e ampliar a representatividade dos grupos minoritários nos diversos

setores; criar as chamadas personalidades emblemáticas, para servirem de exemplo

às gerações mais jovens e mostrar a elas que podem investir em educação, porque

teriam espaço.

Alguns indicadores apontam que as ações afirmativas proporcionam benefícios

insofismáveis.

Edward Telles (2003, p. 279) demonstra que, em Razão de tais ações, houve uma

diminuição da desigualdade racial nos Estados Unidos (entre 1960 e 1996) e, no

Brasil, para o mesmo período, houve um aumento da distância entre negros e

brancos, por exemplo, no mercado de trabalho. Após uma pesquisa acurada acerca

de programas do mesmo gênero, os economistas H. Holzer e D. Newhart

concluíram:

a) a ação afirmativa promove uma justiça distributiva, ao aumentar o nível de

emprego entre mulheres e minorias nas organizações que a utilizam;

b) patrões que utilizam a ação afirmativa recrutam e selecionam com mais

cuidado, buscando empregados de modo mais amplo e avaliando-os segundo mais

critérios;

c) patrões engajados na ação afirmativa não perdem em nada no grau de

execução do trabalho pelos empregados. Se há alguma diferença, ela tende a ser que

minorias e mulheres têm uma performance melhor, mesmo em casos em que as

credenciais do homem branco eram superiores, pois ao utilizar uma gama mais

ampla de critérios na contratação, outros atributos foram descobertos.

Entre as políticas de ações afirmativas que vêm sendo experimentadas no Brasil, a

mais polêmica é o programa de cotas para negros. Na verdade, as cotas constituem

mecanismos extremos de ação afirmativa: é a reserva de um percentual determinado

de vagas para um grupo específico da população (negros, mulheres, gays, entre

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outros), principalmente no acesso à universidade, ao mercado de trabalho e à

representação política.

O Brasil já dispõe de diversas leis fundadas no princípio das ações afirmativas. Tais

leis reconhecem o direito à diferença de tratamento legal para grupos que sofreram

(e sofrem) discriminação negativa, sendo desfavorecidos na sociedade brasileira.

TÍTULO I – DA AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA

Há de se falar, quando da efetiva análise sobre as políticas afirmativas de quaisquer

gêneros, sob a incidência na esfera de ensino universitária, devemos observar os critérios no

que se refere a um princípio fundamental quanto à estrutura da educação nacional,

denominado autonomia universitária, sustentada nos aportes legais do inciso I do art. 226 da

CF/88. Neste dispositivo temos a expressa vontade do legislador constitucional originário em

dar às universidades (na figura de seus administradores) a possibilidade de gerir as demandas

de acordo com as necessidades específicas de cada realidade. Ora, este simples deslocamento

de competência deu aos reitores e representantes de áreas ou departamentos certa autonomia

no sentido tanto de dotação orçamentária quanto da edição de instrumentos políticos no

sentido de, dentro dos limites legais, permitir-lhes certa discricionariedade quanto aos projetos

e às formas de implementação caso não houvesse nenhuma orientação em como fazê-lo pela

legislação federal extravagante.

TÍTULO II – POLÍTICAS AFIRMATIVAS DE COTAS ETNICORRACIAIS

As políticas afirmativas são um conjunto de ações que o Estado, utilizando-se das suas

atribuições de promotor e garantidor de igualdade em consonância com o princípio da

autonomia universitária, empreende alguns projetos no sentido de tentar desconstruir alguns

conceitos equivocados que fundamentaram práticas sociais vazias de desrespeito estando

impregnadas de preconceitos e discriminações negativas. Trazendo estes aportes para as

políticas de ação afirmativa de mote etnicorracial tenta se trazer a lume a tentativa de

desconstituir as demandas sociais que vieram sendo contingenciadas desde os longínquos

tempos coloniais até a contemporaneidade. Esta organização implica, de maneira geral, na

destituição das relações de poder institucionalizadas.

Assim nos dizem Verônica Toste Daflon, João Ferres Júnior e Luiz Augusto Campos

(2013), quanto às ações afirmativas no ensino superior:

Apesar de transcorridos quase dez anos da implantação das primeiras políticas de

ação afirmativa em universidades brasileiras, ainda não há um balanço sistemático

sobre essas medidas. Com a aprovação da Lei n. 12.711, em 29 de agosto de 2012,

que criou uma política de reserva de vagas para alunos de escola pública, pretos e

pardos e indígenas em todo o sistema de educação superior e ensino médio federal,

a realidade das políticas de ação afirmativa no país tende a se alterar

significativamente. Isso torna ainda mais premente a tarefa de compreender o que foi

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feito até agora. As pesquisas disponíveis costumam focalizar experiências

específicas e explorar seus resultados de médio prazo (MATTOS, 2006;

BRANDÃO, 2007). Alguns relatórios descritivos do quadro mais geral estão

disponíveis (HERINGER, 2009), mas ainda são escassos os trabalhos que aliam à

compilação desses dados nacionais uma ambição analítica.

Na ausência de um retrato mais abrangente e detalhado da ação afirmativa no Brasil,

a tarefa de sumarizar para o público os aspectos procedimentais dessas políticas tem

sido deixada para a grande mídia.

Esta, com seus critérios próprios de noticiabilidade, produz representações

fortemente enviesadas da realidade (FERES JÚNIOR; DAFLON, 2009; FERES

JÚNIOR; CAMPOS; DAFLON, 2011). Os intelectuais públicos, por sua vez, com

frequência se baseiam nessas representações ao formularem crítica ou defesa das

políticas de ação afirmativa. Como resultado, boa parte do debate em torno dessas

medidas no Brasil se trava hoje em torno de problemas equívocos ou mesmo falsos.

Marcos Chor Maio e Ricardo Ventura Santos (2005), ao analisar as contas aplicadas

ao vestibular da UnB assim explicitam algumas das situações ocorridas no entorno do ano de

2004:

Para aqueles familiarizados com a história da antropologia e da medicina, a

descrição acima pode fazer lembrar práticas pretéritas, comuns entre o final do

século XIX e o início do século XX. Contudo, se adicionarmos alguns detalhes, a

distância entre o passado e o presente esmaece. As imagens que a comissão recebeu

para analisar foram obtidas através de uma câmera digital e gravadas em um CD.

Essa hibridação entre conceitualizações e tipologias raciais de um passado distante

com a modernidade da era digital aconteceu em maio-junho de 2004 na

Universidade de Brasília, como parte do processo seletivo do primeiro vestibular de

cotas raciais da instituição. Coube à comissão, designada pelas instâncias superiores

da UnB e da qual participavam inclusive professores universitários, determinar

quem eram os elegíveis, ou seja, os “negros” que poderiam concorrer às vagas

alocadas no sistema de cotas raciais.

O Brasil é um país neófito em políticas públicas no campo das ações afirmativas de

recorte racial. Não obstante, tem sido freqüente a implantação de sistemas de cotas

que, como observou Htun (2004, p. 60), constituem estratégias extremas de ação

afirmativa.

Não surpreendentemente, os eventos da UnB geraram acalorados debates no âmbito

da sociedade civil, com posicionamentos desde apoios explícitos, oriundos do

movimento negro e de setores da academia (Carneiro, 2004a, 2004b; Carvalho,

2004; Diniz; Medeiros, 2004; Féres Júnior, 2004; Segato, 2004) até críticas

veementes. Nesse caso, o vestibular da UnB chegou a ser rotulado de “tribunal das

raças” (Folha de São Paulo, 2004).

Hédio Silva Jr e Mario Rogério Silva, ao tratar sobre a importância da interrelação

estabelecida entre políticas de natureza pública e a condição destinada aos diversos grupos

etnicorraciais ressaltam a complexidade das interações e a necessidade de modificar a

situação preestabelecida pelo status quo. Assim sendo, os autores lançam o seguinte

questionamento:

A formulação e a operacionalização de políticas públicas de promoção da igualdade

racial esbarram em um obstáculo cuja superação é condição sine qua non para sua

consecução: a quase inexistência da informação cor/raça nos cadastros de pessoas,

empregados, servidores, usuários de serviços públicos e assim por diante. Que

razões teriam levado o Estado brasileiro ora a incluir, ora omitir a informação sobre

cor em determinados cadastros de pessoas, servidores e/ou usuários de serviços

públicos? (2010, pag. 33)

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É nítido o entendimento de que essa omissão do quesito ernicorracial em formulários e

na própria organização funcional dos serviços públicos tem se dado segundo especialistas,

pelo fato de o Poder Público buscar silenciar as diferenças e homogeneizar os indivíduos sob

uma perspectiva falaciosa através de uma mestiçagem ancestral, de um tronco filogenético

comum e da reprodução acrítica do mito da democracia racial brasileira. Ora, tão ambiciosa e

degradante ação gera uma obscuridade na visão realística, nos colocando como se em relação

puramente igual de ignorância e reprodução acrítica de preconceitos. É importante se fazer

observar a necessidade de iniciar um novo olhar sob uma ótica da compreensão das nuances

sócio históricas e dos diversos movimentos sociais de silenciamento advindos das classes

dominantes que transitam entre a repressão e a concessão de poderes mínimos às classes

dominadas com o objetivo de reduzir, ainda que parcialmente, as tensões sociais em prol da

manutenção de uma posição social imposta há muito e reproduzida sem a significação

necessária.

DAFLON, FERRES JÚNIOR e CAMPOS (2013) observam ainda que:

Outra dificuldade que surge quando se tenta traçar um panorama das ações

afirmativas se refere ao caráter fragmentado das políticas em voga na educação

superior brasileira. Até a aprovação da lei federal antes citada, a ação afirmativa se

disseminou pelo país de forma heterogênea, a partir de iniciativas locais, como leis

estaduais e deliberações de conselhos universitários.

Diante dessa lacuna, este artigo apresenta os principais resultados de um

levantamento das características das ações afirmativas em vigor nos processos

seletivos das universidades públicas brasileiras. Ele se baseia numa análise das leis,

regimentos e resoluções que instituíram e regulamentaram as ações afirmativas em

vigência em mais de 70 das 96 universidades públicas estaduais e federais do país.

Os dados foram coligidos por nosso grupo de pesquisa e constituem um esforço de

traçar um panorama do atual estado das políticas de inclusão no ensino superior

público. Entre as variáveis pesquisadas, intentamos estabelecer qual tipo de norma

que regulamenta essas políticas, os seus principais beneficiários, critérios de seleção

e potencial inclusivo, bem como o perfil regional e acadêmico das instituições que

as adotam.

Sabrina Moehlecke (2004) diz:

o ensino superior brasileiro continua aberto a poucos, isso se acentua drasticamente

no caso dos alunos negros. Apesar de comporem 45% dos brasileiros, a população

preta e parda (de acordo com a classificação do IBGE) que conclui o ensino superior

representa apenas 2% e 12% daquele total, respectivamente, comparado com 83% da

população branca.

O sistema de ensino superior brasileiro, nos debates atuais sobre sua reforma e

expansão, tem diante de si o desafio de encontrar soluções que respondam à questão

das desigualdades raciais no acesso às suas instituições e na permanência nelas.

Algumas ações vêm sendo experimentadas, como os cursinhos pré-vestibulares

comunitários para alunos negros e carentes, financiados pelo Ministério da

Educação ou por universidades; a oferta de bolsas de estudo; a isenção das taxas de

inscrição para o vestibular; e, inclusive, as chamadas políticas de cotas raciais ou

sociais que, apesar das controvérsias, já são utilizadas por sete universidades

públicas do país.

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A discussão sobre políticas para a igualdade racial, contudo, não é recente. Um

primeiro registro do que hoje chamamos de ação afirmativa data de 1968, quando o

Ministério do Trabalho manifestou-se em favor da criação de uma lei que obrigasse

empresas privadas a contratarem uma porcentagem de empregados negros.

Nos fala sobre estas implicações Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti (1995):

Ora, Castro Faria (op. cit., p. 91) destaca justamente Oracy Nogueira como exemplo

dessa incorporação germinativa. Sensível etnógrafo e competente pesquisador de campo,

Oracy não seria “um sociólogo como os outros”. Seus trabalhos sobre o preconceito racial

mostrariam bem “isto que estou chamando de antropologização da sociologia”.

É bem verdade, contudo, que essa época de “auspiciosa compenetração”, situada

entre os anos 40 e 60, ou os “antecessores” e a “atualidade”, conforme o esquema

apresentado acima, foi também perpassada por acirradas polêmicas em torno da

demarcação de fronteiras disciplinares. Esse tempo, “em que tudo se iniciava”(10)

foi também marcado pela exclusão-inclusão, qualificação-desqualificação de

modalidades de conhecimento. A criação e consolidação das instituições e as

inúmeras e marcantes iniciativas de trabalho são histórias pontilhadas de sucessos e

fracassos, encontros e desencontros entre redes de relações em formação. O diálogo

com Oracy Nogueira tem como pano de fundo a proposta de uma visão

compreensiva e plural do nosso campo de estudos.(11)

Não está em jogo, simplesmente, a necessidade de conhecermos instituições,

estudos e autores que, afinal, foram importantes para sua própria época. Como

alguns estudos sugerem (Peirano, 1992; Lippi, 1995; e Vilhena, 1995), os termos de

uma época podem nos dizer respeito diretamente, revelando a inevitável

arbitrariedade e o poder de definição da realidade de arranjos institucionais,

ampliando nosso horizonte de referências, permitindo que nos situemos melhor nos

termos de nossa própria época.

E ainda segue CAVALCANTI (1995) dizendo que “A conciliação e a expressão da

ambivalência subjacente se dá com o estabelecimento das relações jocosas, que permitem a

manifestação controlada da hostilidade, num composto de amizade e antagonismo: um brinca

ou caçoa e o outro não se ofende.” Em suma, isto significa que está sobrevindo uma tensão

superficial intensa, mesclada com uma organização “em tom humorístico” destas situações

tão conflitantes e negativas.

Pensar em políticas de ações afirmativas etnicorraciais é tomar um posicionamento de

contra hegemonia, que nos permite perceber que, em sendo a realidade sócio histórica uma

reprodução de padrões desiguais, o Estado e a sociedade civil organizada devem, de alguma

maneira, interferir visando chegar à garantia de igualdade elencada na própria Constituição

Federal (1988) no caput do seu artigo 5º. Ora, senão vejamos os argumentos que Hédio Silva

Jr. e Mário Rogério Silva explicitam:

O êxito da adoção do sistema de cotas nas universidades brasileiras vem fazendo

com que os opositores questionem as políticas de cotas utilizando o argumento da

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suposta ilegalidade do procedimento de classificação racial, inclusive disseminando

a idéia de que as cotas inaugurariam tal procedimento no país [...] (2010, pag. 53)

Neste sentido, cremos fielmente que se não é pelas políticas públicas em educação que

a modificação da realidade e a ascensão social e econômica poderão ser feitas, tampouco sem

elas haverá avanços tão significativos no sentido de promover a igualdade, uma vez que o

problema se encontra na própria gênese e na organização da sociedade brasileira, nos seus

vícios e seus preconceitos, nos seus anseios e na reprodução de seus discursos.

Pedro de Oliveira Filho (2009) diz:

Não obstante a emergência, nos últimos anos, de discursos diferencialistas no campo

do antirracismo, tanto o racismo quanto o antirracismo brasileiros são ainda

predominantemente universalistas. A dificuldade dos brasileiros para lidar com a

ideia de divisões culturais ou sociais baseadas na raça (Silva, 1998), a desconfiança

em relação ao modo bipolar de classificação racial adotado pelos norte-americanos

(Fry, 1995/1996; Oliveira Filho, 2005) e a hostilidade em relação à retórica dos

movimentos negros organizados (Guimarães, 1999) atestam a persistência do

universalismo como princípio organizador do discurso nacional sobre raças. Como

afirma Guimarães (1999, p.58): “nada fere mais a alma nacional, nada contraria mais

o profundo ideal de assimilação que o cultivo de diferenças”. Na verdade, o

argumento segundo o qual o Brasil seria uma democracia racial, criticado

pioneiramente por Florestan Fernandes (Fernandes, 1965), é usado frequentemente

no Brasil como premissa da afirmação de que o diferencialismo racial (ou políticas

públicas de caráter diferencialista) não faz o menor sentido no Brasil, uma vez que o

país não é caracterizado por divisões baseadas na raça.

Nesse contexto, a adoção de ações afirmativas como estratégia de combate às

diferenças socioeconômicas entre grupos racializados (grupos vistos como raças),

uma tendência das políticas públicas governamentais nos últimos anos, é bastante

suscetível a uma rejeição fundamentada em argumentos universalistas.

De fato, no caso específico do debate sobre as cotas, a mobilização de argumentos

universalistas é frequente, principalmente no meio acadêmico. Entende-se que o

discurso universalista (o antidiferencialismo), não obstante o potencial

emancipatório com que se apresenta frequentemente em discursos emitidos por

vozes do meio acadêmico e do povo, tem sido usado recorrentemente para obliterar

a intensidade e os efeitos perversos do racismo brasileiro e para desqualificar

políticas públicas que possam representar um avanço real na diminuição da

desigualdade racial.

Neste trabalho buscou-se um melhor entendimento das sutilezas ideológicas desse

discurso, analisando suas diferentes estratégias em relatos de brancos que se

contrapõem à adoção de cotas para afrodescendentes no Brasil.

É essencial que possamos observar que a polarização, decerto, simboliza os extremos

mas que os combinantes também, à medida de seus interditos, constituem-se enquanto

fundamentos sociais. Sabendo-se que, no Brasil, a mídia desempenha um papel quase ditador

de tendências. Nos fala, sobre o aspecto das cotas e sua divulgação midiática, numa

perspectiva muito particular Luiz Augusto Campos (2012), que diz:

Ao que parece, a polarização de posições que marca a controvérsia das cotas afetou

também as Ciências Sociais, ora dividindo tradições teóricas, ora dispondo em um

mesmo lado do debate intelectuais outrora portadores de perspectivas teóricas

díspares. Contudo, a despeito dessa aparente polarização, a leitura das diferentes

intervenções públicas dos cientistas sociais sobre o assunto indica que as

justificações arroladas são plurais. Em outros termos, esses intelectuais engajados na

polêmica defendem as cotas por diferentes motivos e, igualmente, criticam-nas por

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motivos diversos. Disso resulta um cenário curioso, nitidamente dividido entre

contrários e favoráveis, mas também atravessado por uma multiplicidade de

justificações em cada um dos “fronts”. Talvez por causa disso, chaves tradicionais

de interpretação dos conflitos políticos (como esquerda-direita, conservador-

progressista etc.), não têm sido suficientes para explicar o fundamento das

discordâncias presentes no debate.

Surge no seio do debate, no cerne da questão jurídica das cotas aos afrodescendentes

alguns argumentos largamente difundidos e tomados como sendo verdadeiros óbices à

condução da política de cotas, conforme vê-se a seguir.

Seção A – Da inexistência de desafio em virtude da relativa imprecisão de padrões objetivos

em classificar o ser negro para as políticas afirmativas

Importante é fundamentar, neste trabalho, uma visão que impera em diversos discursos

decorrentes, inicialmente, de uma perspectiva primitiva da genética como sendo uma relação

natural, uma equação matemática quase invariável que inviabilizaria a instituição de qualquer

tipo de política de promoção da igualdade etnicorracial em nosso País. Muito é dito que,

quando da utilização das políticas afirmativas de mote etnicorracial, esbarramos em um

verdadeiro muro para a efetivação desta política: a existência de uma imprecisão objetiva

quanto aos critérios relevantes de delimitação de quem é o beneficiário desta política; em

outras palavras, busca-se saber a classificação de que é negro e quem não é, como se houvesse

a necessidade de um sistema racializado, de fato, como é, por exemplo, o sistema

estadunidense/norte-americano de cotas, decorrente de uma organização social em guetos,

gangues e clãs em cujas principais áreas de influência para delinear o negro e um branco

decorre do distrito em que nasceu, sendo assim classificado pela literatura especializada como

“racismo de origem”.

Em nossa Carta Constitucional (C.F./88), fez-se, explicitamente, como critério básico

de pertencimento etnicorracial de classificação a menção à autodeterminação dos povos; ora,

se entendemos ser o texto constitucional o mais importante documento em uma sociedade de

Direito que adota o sistema de federação constitucional como forma de gestão do Estado, não

há porque da discordância ou da formatação de uma nova série de critérios que ferirá, decerto,

a estrutura idealizada pelo legislador originário em 1988.

Parece-nos forçosa a noção da criação de critérios que, de certa forma, podem

incentivar a segmentação mediante insígnias ou fatores fenotípicos, reforçando a ideia do

racismo de marca brasileiro. É imprecisa a ideia de que testes genéticos possam trazer a noção

de negritude, tal qual é expressa por inúmeros textos de tantos teóricos. Seria, com toda a

certeza, um retrocesso do ponto de vista social, uma tentativa ignóbil de silenciar e destituir

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de significado toda trajetória dos atores sociais que tanto lutaram pela elaboração de um

sistema afropositivo, de um sistema pátrio que pudesse englobar as africanidades como sendo

fundamento preponderante no desenvolvimento dos povos afro-indígenas, não porque os

segrega dos demais povos, mas porque congrega uma gama de valores que, longe de querer a

segregação estatal e a submissão dos povos eurodescendentes, preocupa-se mais na integração

dos povos e na força da união como viabilizador do progresso da nação.

Não podemos negar ou tentar silenciar anos de história de segregação, dominação,

vergonha e escárnio, que, ainda hoje, tendem a ser reproduzidas tão facilmente em expressões

e práticas sociais; essa possível imprecisão jurídica quanto ao indivíduo beneficiário desta

política afirmativa reflete, talvez, um medo muito maior do acesso ao negro a espaços de

poder do que a desconfiança de que qualquer um, declarando-se negro com o objetivo de

obter benesse, consiga esta ascensão. Como já dissemos anteriormente, ser negro no Brasil é

uma questão muito mais política que estética, é uma forma de ver e se ver no mundo. Em

havendo esse desacordo entre a declaração e o pertencimento, existe uma questão muito mais

de foro íntimo, uma questão moral, do que jurídica, de fato. Esse desacordo moral não pode

ser interpretado como desafio a ser vencido ou como elemento normativo de invalidação da

lei e desconstituição das lutas sociais.

Buscar entender a lógica de proteção que o legislador constitucional quis desenvolver

para que se organizasse uma sociedade como se diz no preâmbulo constitucional:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional

Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício

dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o

desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade

fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida,

na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias,

promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA

REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. (CF/88)

É preciso instrumentalizar todas as formas de efetivação das políticas no sentido de

tentar desconstituir uma interpretação que se embasa na mera literalidade, observado a

necessidade de desenvolver uma perspectiva que, necessariamente, deve passar por um

exercício intelectual que extrapole a simples interpretação literal, devendo ser aplicado um

sistema hermenêutico mais completo e complexo, a hermenêutica social ou sócio-histórica, de

tal maneira que consiga perceber as nuances de cada instrumento normativo em sua

generalidade e a aplicabilidade em seu foro particular, percebendo a relação que as partes

constitutivas mantém com o todo nesta construção de sentido do imperativo normativo.

É necessário, para que se organize uma nova metodologia em que o Direito se

configure enquanto instrumento de aplicação da jurisdição em resolver os conflitos da

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sociedade em que atua, à luz da teoria tridimensional do Direito do professor Miguel Reale,

no campo da epistemologia jurídica, analisar a sociedade enquanto objeto de cognição,

devendo-se constituir como elemento de investigação da seguinte forma: sob um determinado

fato de relevância jurídica deve-se observar os três aspectos principais condizentes com a

realidade social, cultural, política, econômica e jurídica da sociedade. Reale entendeu que o

Direito possui uma tríade para que se proceda uma análise, de fato, completa, uma

organização tripla que valida as disposições das situações de relevância jurídica analisando as

situações de Direito como sendo ao mesmo tempo a emissão de um juízo de valor, um fato

social e uma norma jurídica condizente à realidade sócio-histórica.

Figura 8 Esquema demonstrando a teoria tridimensional do Direito do professor Miguel Reale.

Sabendo-se que o direito é, também, elemento decorrente de um fato social, deve-se

saber que toda e qualquer instância de criação/reconhecimento do direito objetivo trará à

coletividade um sentimento/posicionamento, ou seja, um entendimento da situação quer de

concordância ou não, em que restará, como elemento de análise primária a experiência dos

sujeitos para fundamentar a interpretação da lei em questão.

Sendo assim, as políticas afirmativas etnicorraciais validam-se como instrumento de

desconstituição do status e da segregação naturalizada por anos de práticas políticas

discriminatórias.

Assim nos fala Ricardo Franklin Ferreira e Ricardo Mendes Mattos (2007):

Alunos, educadores, políticos, pesquisadores, líderes de movimentos sociais,

representantes de organizações da sociedade civil, reitores, jornalistas - diversos

personagens e uma só discussão: o sistema de cotas para afro-descendentes nas

universidades públicas. Tal discussão, muito longe de consensual, é permeada por

opiniões divergentes. Vantagens e desvantagens desse sistema são amplamente

analisadas com base em concepções diversas. Entretanto, uma faceta desse debate é

indubitável: a promoção de um diálogo aberto sobre as questões relacionadas aos afro-

descendentes, que tende ao rompimento com a dissimulada idéia de uma “democracia

racial” no Brasil.

Direito

Valor

Fato social

Norma

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Dizem ainda os autores acima mencionados:

Compreender qualquer processo humano que se dá em um determinado período

histórico implica compreender o próprio processo histórico que o constituiu.

Assim, para um trabalho que tem por objetivo configurar o campo de discussões

acerca do sistema de cotas para negros na universidade, faz-se necessário

compreendê-lo como parte de um conjunto de condições expresso através da vida

material, social e política desenvolvida historicamente pelo povo negro no Brasil.

O Brasil foi o país americano a escravizar o maior número de africanos (a partir de

1538), e o último do mundo cristão a abolir a escravidão, só o fazendo devido à

pressão exercida pela Inglaterra ao modelo vigente na época (Moura, 1988). Sua

história inicia-se num cenário mercantil, baseado num sistema escravagista,

sustentáculo da mão de obra do País por cerca de quatro séculos.

Tal período foi seguido por dois acontecimentos concomitantes, a Abolição e a

imigração de europeus para a substituição da mão de obra escrava, que

intensificaram as dificuldades na vida do afro-brasileiro, com sua peregrinação em

busca de sobrevivência, sem condições de competir no mercado de trabalho com os

imigrantes que passaram a fazer parte do novo cenário.

Em 1888, com a Abolição, podemos imaginar quantos africanos escravizados

deixaram as senzalas, sonhando com melhores dias, com a esperança de que, a partir

da assinatura da Lei Áurea, passariam a ter os mesmos direitos de todos os

brasileiros.

Porém, não foi o que aconteceu. Apesar de o Brasil ser um país que se declara de

democracia racial, não foi tomada nenhuma medida para cuidar de sua grande

população de ex-escravos e de seus descendentes, em sua maioria pobres e com

pouca instrução formal. Para Suplicy (2002), a abolição das leis escravistas não

significou, para os escravos, uma libertação.

Foram lançados num mercado despreparado para receber esse imenso contingente, e

os afro-brasileiros passaram a ser ainda mais desassistidos. Para esse autor, até os

dias atuais,os afro-brasileiros são a maioria da população que habita as favelas, os

vãos de viadutos, está nas filas de emprego, nas portas dos hospitais públicos, nos

presídios e sofre por questões ligadas a um profundo preconceito racial.

Fruto desse processo histórico na formação do brasileiro, a desqualificação

sistemática dos afro-descendentes, apesar de personagens fundamentais na

construção e no desenvolvimento do País, levou à veiculação de representações

sociais articuladas a valores, crenças e sentimentos negativos a respeito dos

membros desse grupo em diversas esferas da vida social, como no trabalho e na

educação.

Em outras palavras, foram criadas referências estigmatizantes de ordem física,

intelectual e social associadas à pessoa negra. Essas referências passaram a ser

socialmente legitimadas, tornando-se ‘verdades’ compartilhadas e difundidas pela

maioria da população. Tal processo levou os afro-descendentes a vivenciarem

situações de humilhação e desprestígio pessoal, que vieram a desencadear as

desvantagens por eles enfrentadas nas situações concretas do dia a dia (Ferreira,

2000; Ferreira, 2002; Ferreira e Camargo, 2001; Larkin Nascimento, 2003).

Na sociedade brasileira, apesar de já questionado, ainda hoje persiste o mito da

democracia racial, que permanece encobrindo, de maneira perversa, a discriminação

racial. Munanga (1999) argumenta acerca dessa temática dizendo que “o mito da

democracia racial tem como base a dupla mestiçagem biológica e cultural entre as

três raças originárias.” FERREIRA e MATTOS (2007)

TÍTULO III - MERITOCRACIA E POLÍTICAS AFIRMATIVAS ETNICORRACIAIS

Por meritocracia, o site dicionário online de português define:

Predominância dos que possuem méritos (numa sociedade, numa organização, num

grupo, num trabalho ou ofício etc); predomínio das pessoas que são mais

competentes e eficientes.

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Modo de seleção cujos preceitos se baseiam nos méritos pessoais daqueles que

participam.

Método que consiste na atribuição de recompensa aos que possuem méritos.

Esta categoria de discurso se integra, decerto, à lógica decorrente de uma interpretação

literal advinda do caput do art. 5º da Carta Constitucional de 1988 que diz: “Todos são iguais

perante a lei, sem distinção”. Ademais, é uma tentativa de manutenção do status quo da

parcela eleita como dominante em continuar a sujeição das camadas menos abastadas de

fortuna, acesso à educação ou a outros domínios estatais como segurança pública, saúde,

seguridade social, etc.

Amauri Mendes Pereira (2003), acerca da questão da formação da identidade nacional

em relação às políticas afirmativas de cotas nos apresenta as seguintes considerações:

[...] vale comparar a proposição de cotas para negros nas universidades brasileiras,

como os aviões que vieram derrubar as nossas torres gêmeas: a inquebrantável

harmonia/acomodação da democracia racial no Brasil. Foi grande a surpresa quando

o presidente da República tornou pública – em rede nacional, durante a Conferência

Mundial Contra o Racismo, realizada em 2001 – sua decisão autorizando a

delegação brasileira em Durban a defender a adoção de cotas para atenuar as

desigualdades raciais. No mesmo dia, e ainda sob o impacto da medida, o

Fantástico, programa das noites de domingo da Rede Globo, realizou uma enquete

entre os expectadores e confirmou o susto: a maioria era contrária às cotas.

O impacto fez tremer um dos suportes da identidade nacional brasileira. Tanto mais,

porque essa construção identitária vem ocorrendo em meio a tensões de variado tipo

e extensão, ao mesmo tempo de forma bem-sucedida, embora fragmentadamente.

Pode-se dizer que a maioria quer um país sem problemas raciais: para uns, isto

significa fazer “desaparecer” os negros, ou que eles “embranqueçam”, ou sejam

embranquecidos; para outros, o respeito à diferença de brancos, negros, indígenas,

orientais; para outros, ainda, a mestiçagem é que redimiria a todos... Outras

idealizações se somarão e/ou se mesclarão a estas. É um processo que engendra suas

próprias resoluções, efêmeras, seqüenciais, descontínuas.

Joaze Bernardino (2002) assim inicia acerca das reflexões introdutórias sobre o tema

da meritocracia:

A construção da nação brasileira está estruturada — dentre outras coisas — a partir

do mito da democracia racial. Uma parcela expressiva da sociedade brasileira com

partilha a crença de ter construído uma nação — diferentemente dos Estados Unidos

e da África do Sul, por exemplo — não caracterizada por conflitos raciais abertos.

Além disso, imagina-se que em nosso país as ascensões sociais do negro e do mulato

nunca estiveram bloqueadas por princípios legais tais como os conhecidos Jim Crow

e o Apartheid dos referidos países. Para os que imaginam e advogam a singularidade

paradisíaca brasileira, isto significa dizer que o critério racial jamais foi relevante

para definir as chances de qualquer pessoa no Brasil. Em outras palavras, ainda é

fortemente difundida no Brasil a crença de que a cultura brasileira antecipa a

possibilidade de um mundo sem raças.

Muitas pessoas dizem que, em sendo as pessoas, brasileiras ou estrangeiras residentes

no País, constitucionalmente constituídas como iguais, a perspectiva de promover qualquer

tipo de políticas afirmativas é, antes de tudo, promover e fundamentar desigualdades, isto

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torna-se ainda mais intenso quando se trata de matéria etnicorracial, isso porque se nós somos

iguais, não há motivos para estabelecer políticas públicas para a promoção de igualdade social

e desconstituição das diversas mazelas sociais. Parte-se então do pressuposto de que se somos

todos inteligentes, temos necessariamente as mesmas capacidades e aptidões, decorrendo daí

também o pensamento de que se não há nenhum tipo de mácula ligada aos fenótipos que

acabam por justificar a implementação de uma política afirmativa, o Brasil não deve interferir

nesta questão. Nas palavras de BERNARDINO (2002), um questionamento sobre a

capacidade de organização e fundamentação da democracia racial que induz à disseminação

das mais diversas falácias em meios sociais: “Numa nação imaginada como democrática na

questão racial, e erigida a partir desta crença, o que significa propor ações afirmativas para a

população negra?”. Significa, então, que a transgressão, o desrespeito à meritocracia (tomada

por muitos como verdadeiro fundamento primordial que sustenta o Estado brasileiro) é, na

verdade, uma tentativa de promover o acesso e legitimar o próprio texto constitucional.

Perceba, Janete Luzia Leite (2011) agrega também ao mote da questão das cotas para

negros uma perspectiva muito mais ligada à complexidade econômica e social diferenciando-

as das demais “classes de pessoas” envolvidas nesta realidade, realidade que se fundamenta

com as interfaces da vulnerabilidade social em nossa nação:

É notória a existência de desigualdades a serem enfrentadas pelos negros que, nesta

sociedade, possuem – na média geral – menos escolaridade, salário, saúde, emprego

e moradia que os brancos e asiáticos. Entrementes, não é suficiente ancorar a luta

contra o preconceito e a discriminação que atingem a população negra brasileira

com um imperativo moral que se estabelece exaltando a particularidade.

As especificidades precisam ser vistas também no que possuem em comum e, por

este prisma, é necessário considerar que as dificuldades encontradas pelos

estudantes negros são as mesmas enfrentadas por estudantes pobres, filhos de

trabalhadores não negros, que chegam às portas da universidade e não conseguem

adentrá-las, em função de uma educação formal deficitária, oferecida por uma rede

pública desqualificada pela falta de investimentos dos sucessivos governos. Também

eles são componentes de um segmento da sociedade que vive em precárias

condições socioeconômicas. Mesmo aqueles ferrenhos defensores das cotas – que

por vezes incorrem no equívoco de confundir racismo com acesso – reconhecem

esta realidade:

[...] Afinal, sejamos honestos, bons colégios, cursos de língua estrangeira, acesso às

salas de cinema, teatro e artes, colônias de férias, viagens familiares e escolares,

aquisição de jornais, revistas, material didático de bom e moderno conteúdo, manejo

regular de equipamentos como computador e acesso a redes de informação

disponíveis pela internet, ambiente domiciliar dotado de infraestrutura adequada à

realização das tarefas escolares é uma questão de classe e não, exata ou

exclusivamente, de mérito (CICONELLO, 2008, p. 2-3).

Diz ainda a autora supracitada que:

Está colocada, desta forma, a vigência da luta de classes, que só será superada por

uma ação anticapitalista que vise construir um projeto societário que, alternativo ao

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capitalismo, possa estender o direito a todos sob uma lógica centrada no Homem,

buscando sua emancipação.

Como já exposto, é justamente na área da Educação que as PAA têm obtido maior

eco. É também nela que não se encontra, em seu cerne, uma política que responda

aos interesses, e muito menos aos anseios da classe trabalhadora. O caráter ambíguo

desta proposta pode estar relacionado ao fato de que tais ações não se caracterizam

como uma política pública de cunho universal, porque diz promover o acesso de

parcela da população tradicionalmente discriminada sem, no entanto, capacitá-la

para desenvolver plenamente suas potencialidades, e muito menos prever

mecanismos para isso (GLÓRIA, 2006). Afinal, que tipo de mecanismos estão sendo

criados pelos defensores destas ações no interior das universidades para a

manutenção de estudantes cotistas até a conclusão de seus cursos superiores?

(LEITE, 2008). A não ser que se deseje chamar programas como o Afroatitude –

Programa Integrado de Ações Afirmativas para Negros, do Ministério da Saúde – de

Política de Assistência (ou permanência) Estudantil.

Perceba, pois, a importância desta iniciativa no sentido de tentar desconstituir essa

relação histórica e socialmente desigual, pautada ainda na racialização. Necessário é a

assunção de uma postura em favor de uma educação que liberte, que transforme os valores,

que permita a evolução (intelectual, social, profissional) que não aprisione em paradigmas ou

que transforme-os apenas em dados estatísticos. Para tal, nos diz LEITE, 2011:

Esse tratamento “preferencial” destinado àqueles que historicamente foram

marginalizados, coloca em questão, além dos aspectos citados, vários outros

relacionados ao acesso de grupos específicos (não só dos negros), uma vez que

apresenta um caráter contraditório: ao mesmo tempo em que propagandeia a

ampliação da oportunidade e ascensão social, reforça estereótipos já existentes de

falsas “inferioridades”. Isto porque, por meio da adoção de um percentual numérico,

cujo objetivo principal é garantir a presença de parcela da população socialmente

discriminada em diversas esferas da vida social – no caso em tela, na universidade –,

a política de cotas, lamentavelmente, acaba reforçando uma pretensa incapacidade

desses indivíduos, posto que se baseia na utilização do desprestígio como critério

específico. A decisão política de “reparar” os danos sofridos por segmentos sociais

não deve implicar em um conjunto de políticas ditas “afirmativas”. Nem, tampouco,

a luta em defesa de políticas específicas que acarretem a subestimação da

necessidade de se promover realmente uma luta em benefício destes grupos, até

porque este argumento mistifica e escamoteia a verdadeira gênese: a desigualdade de

classe que se deseja ver perpetuada. Assim, essa inclusão se daria permanentemente

em patamares subalternos à ordem e à classe dominante, anestesiando a percepção

do servilismo e da desigualdade. Teoricamente, essas políticas surgem para

privilegiar segmentos discriminados, mas na prática acabam dispensando um

tratamento desigual aos “desiguais”, na medida em que buscam promover a

igualdade de oportunidades por meio de ações igualmente discriminatórias que,

consequentemente, caracterizam (ou até mesmo reforçam) a inferioridade destes

segmentos.

Enquanto política de Estado (por ser fundamento da República a erradicação das

desigualdades), as cotas instrumentalizam a ascensão social e intelectual dos negros que,

desde os tempos mais antigos vem sendo negados ou recebendo serviços de qualidade

inferior.

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Capítulo IV - O Direito enquanto tecnologia social de instrumentalização e promoção da

igualdade

Queria ter o dom de poder cantar

Igual aos pássaros que Deus fez pra viver

Livre pra voar

Nesse azul sem dimensão

Queria ter poder pra poder fazer

Você às vezes dizer sim ao invés do não,

Pra fome, pra saúde, pra pobreza,

Pra miséria e educação

Vou mudar,

Um dia você mesmo vai dizer

Quem eras, quem tu sois, é uma miragem

Pode crer

Vou mudar,

Um dia você mesmo vai se ver

Diante do espelho do poder.

(Espelho do poder – Conde)

O Direito, enquanto tecnologia social que visa a proteção e a promoção de paz e

justiça social no Estado de bem estar social, introduz medida eficaz vez que se constitui como

instituto histórico no sentido de que indica, em sua quase unanimidade, assertivas em tom

imperativo de um corolário de fundamentos provenientes da sociedade da qual imergiu (na

totalidade ou de uma parcela que exerce maior poder político), e tem como fundamento inicial

a conjuntura da necessidade que o homem tem em manter uma estrutura de vida em

sociedade.

Ora, se esta premissa é verdadeira, encontramos um paradoxo no sentido de estipular

estamentos, castas, classes, grupos, clãs e outras tantas estruturas que, como podemos

observar pela simples e superficial análise histórica, têm se comportado de maneira quase

predatória no sentido de exterminar ou enfraquecer a influência de outros grupos sociais

estabelecidos sob um mesmo lócus e mesmo lapso temporal.

A existência de direitos, entendidos enquanto espaço formal de relações de poder se

constitui enquanto arena em que se digladiam, na melhor das hipóteses, dois grupos

geralmente opostos que polarizam-se da seguinte maneira:

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Figura 9 Correntes do Direito quanto à sua observação da manutenção das estruturas de poder.

DUGUIT (2011, págs. 16 e 17) nos diz, acerca das concepções relativas ao Direito

que:

A existência de um direito é incontestável e, nesse sentido, até mesmo irremediável,

pois não se pode conceber a inexistência de um direito. A concepção de que o direito

só pode ser concebido como criação do Estado, restringindo seu surgimento ao dia

em que um Estado constituído o formulou ou, pelo menos, o sancionou, disseminou-

se sobretudo na Alemanha, sob a influencia de Hegel e Ihering. Segundo nos parece,

essa concepção deve ser energicamente repudiada. Ainda que não se possa admitir o

fundamento do direito anterior à criação do Estado, deve-se reconhecer, “como

postulado”, a existência de um direito superior e anterior ao Estado. É imperiosa nos

dias de hoje a prevalência de uma norma de direito que se imponha, rigorosamente,

tanto ao Estado, detentor da força, quanto aos indivíduos desse mesmo Estado.

Aliás, é bem possível comprovar a manifestação do direito num estágio anterior à

criação do Estado, ao qual, na verdade, se impõe.

Sendo assim, devemos analisar o Direito enquanto mecanismo social, porquanto nasça

de uma necessidade social, isto é, baseada numa concepção que congrega ao mesmo tempoa

dimensão real do clamor e da conjuntura social quanto da dimensão ideal, ou seja, num dever-

ser que o Estado impõe a seus partícipes em função de sua centralização política, legitimada

em virtude de um contrato social, conforme enunciado por Rousseau em livro homônimo, que

permite ao Estado ser um conglomerado de vontades que não se resume à soma das mesmas,

mas ao produto das vontades que potencializam a ação legítima do Estado.

SEÇÃO I – UM BREVE ESTUDO SOBRE O DIREITO E A EFETIVAÇÃO DA JUSTIÇA

O sistema jurídico pátrio em vigência, denominado sob o termo técnico-jurídico de

ordenamento jurídico, é um ramo de análise e aferição da capacidade de atuação do Estado e

Defensores do Direito anacrônico, ahistórico e

generalista

Defensores da vanguarda dinâmica dos Direitos enquanto casuístico e

fundado na lógica e nas lutas dos sujeitos da

sociedade

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seus coparticipes, expressando, decerto, uma categoria de elementos que permite a percepção

de elementos fundamentais da sociedade. Este sistema é, ao mesmo tempo, um conglomerado

de elementos que permitem tanto a organização em direitos quanto em obrigações que se

impõem sinalagmaticamente aos indivíduos de maneira particular e coletiva bem como um

sistema obrigacional que também recai sobre o Estado.

Decorre deste entendimento a noção de Estado Mediador, Estado Juiz e Estado

garantidor e Estado como sujeito de Direitos. Sabe-se que o fim social da existência da figura

do Estado é a proteção de seus cidadãos. Neste sistema o cidadão abre mão de boa parte de

suas liberdades em prol de receber segurança contra os excessos e arbitrariedades que

porventura poderia sofrer sob o efeito do que se denominou estado de natureza. Esta

abnegação implica que esta disposição implicou na redução das vulnerabilidades, isto porque,

numa perspectiva materialista, os recursos são escassos e os desejos humanos são infinitos e,

normalmente, contingentes.

Subseção A - Direito objetivo e direito subjetivo: estranhamento ou interdependência?

Sempre que possível, devemos analisar o Direito enquanto sistema metódico, embora

não sempre rígido (se olharmos, por exemplo, o direito consuetudinário em sua forma mais

tradicional – tendo a oralidade como veículo principal de transmissão dos dispositivos), que

se fundamenta em práticas sociais e em mandamentos que se constituem em circunscrições

hipotéticas, isto é, uma categoria lógica de dever-ser, uma conduta esperada pelo grupo,

sociedade ou pelo Estado dos seus integrantes. Pensando assim, existem, no direito, duas

dimensões essenciais à sua compreensão que seria a noção de que existem componentes que

se identificam mais com as premissas e as formas jurídicas, isto é, a lógica do processo

legiferante e seus dispositivos hipotéticos; enquanto a segunda preocupa-se com a

materialidade, com o fato constitutivo do direito, a situação jurígena, o nascedouro do direito

e as implicações de sua vastidão e aplicabilidade. É de fundamental importância ter a noção

de que os dois elementos devem ser mantidos em constante comunicação para evitar que a lei

seja formalmente válida e não tenha aplicação prática pela ausência de observação

sociológica, muito menos que ela esteja carregada de elementos sócio-histórico-filosóficos

mas desprovida de procedimentos formais que validem seu nascedouro e legitimidade.

Subseção B - A forma e o direito objetivo

O direito objetivo é uma faculdade do Estado, um poder-dever no sentido de enunciar

proposições de caráter genérico, aplicável aos cidadãos e, em alguns casos, aos estrangeiros

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(residentes no país ou em viagem) com o objetivo de reprimir ou incentivar determinadas

práticas sociais. Nesta simplória abordagem podemos perceber uma tendência à ausência de

limites legiferantes, sanadas mediante um elemento essencial, constitutivo e intrinsecamente

organizador do Direito Pós-Moderno: a forma. A forma é a estrutura, o procedimento, a

maneira de projetar e proceder; constituindo, portanto, uma característica fundamental na

organização da estrutura do direito brasileiro.

Tratam-se de dispositivos normativos que buscam atingir a todos, expressando,

decerto, um dever-ser que o Estado exige de seus cidadãos e se constituem em ações de

natureza jurisdicional, de prestação positiva ou negativa, de declaração ou constituição que o

Estado se compromete em exercer mediante a titularidade dos serviços de natureza

indispensável e em caráter de monopólio ou fiscalização. Neste mesmo sentido, parece

essencial a formatação, isto é, a existência de estruturas linguísticas, metalinguísticas e para-

linguísticas que, sob a denominação de técnica legislativa e pelos métodos de aplicação das

normas e suprimento de lacunas jurídicas e exegese se constituem como norteadores do

Estado. Decorre também da necessidade da criação de mecanismos que organizem todo o

sistema de Direito, à exemplo o Direito Instrumental ou Processual como plataforma que

permite aos direito material, quando descumprido, possua um método de requisição na esfera

jurisdicional.

Subseção C - O direito subjetivo e a procura da satisfação do bem da vida

Nesta seara de direitos, temos o atentado real ou iminente a uma necessidade, isto é,

uma ameaça ou um ato que contrarie a organização social do Estado, minando o acesso a um

direito ou a alguma situação em que se julgava ser necessária à manutenção da vida real. Esta

lesão ou ameaça constitui interesse ao individuo em situação de vulnerabilidade à medida em

que não se encontra em estado de normalidade e ao Estado como garantidor da manutenção da

ordem pública e da paz e justiça sociais.

A proteção do direito e a execução deste como garantia do exercício da jurisdição

estatal se encontram diretamente ligadas à noção da necessidade de, num Estado Democrático

de Direito, existir uma organização judiciária que permita não apenas a mera declaração de

direitos mas também sua efetivação. Ora saímos de um padrão eminentemente enunciativo

para outro que é, sem dúvidas um padrão mais ativo e garantista, conforme concordam os

constitucionalistas modernos, de promoção de Direitos.

Nos fala DUGUIT (2011, pág. 23) que:

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Ao nascer, o homem, em sua natureza de homem, desfruta de certos direitos

subjetivos, que constituem os “direitos individuais naturais”. O homem nasce

“livre”, isto é, desfruta o direito de desenvolver plenamente a sua atividade física,

intelectual e moral, e, nesse sentido, pertence-lhe o direito de desfrutar o produto

dessas atividades. Concebe-se, assim, para todos, a obrigação de respeitar no outro o

desenvolvimento pleno da atividade física, intelectual e moral e nessa obrigação

reside o próprio fundamento do direito, constituindo regra social.

SEÇÃO II - DA LEGISLAÇÃO NACIONAL QUE DOUTRINA AS MATÉRIAS DE INCIDÊNCIA

ETNICORRACIAL E DE PROMOÇÃO DA IGUALDADE

O legislador originário e infraconstitucional tem se esforçado na edição de leis que

visam a desconstituir as relações de ranço escravocrata em nosso País. Desde o preâmbulo

constitucional até as mais modernas legislações extravagantes, houve um salto qualitativo e

quantitativo, concorrentemente, que tem tentado derrubar os obstáculos que têm se

apresentado à promoção da igualdade de fato. Sendo assim, trazemos, a título de

exemplificação, as leis 10.558/02, 10.639/03, 11.645/08 e 12.288/10, cada uma a seguir

demonstrada:

Subseção A - Lei 10.558/02

Ementa: Cria o Programa Diversidade na Universidade, e dá outras providências.

Comentário: Cria o piloto que desencadearia no projeto das Leis de cotas

etnicorraciais que, junto com o mandamento constitucional, de maneira combinada, permitiu a

entrada de negros, índios e tantos outros povos segregados à este espaço formal de poder,

institucionalizado mediante as estruturas sociais e ideológicas fundantes.

Subseção B - Lei 10.639/03

Ementa: Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes

e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a

obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências.

Comentário: Instatui, a organização curricular e as indicações pedagógicas de inclusão

da matéria em sentido afropositivo visando minar as discriminações negativas e valorizar,

positivamente, o legado histórico dos povos africanos e a riqueza socioeconômica do

Continente Africano.

Subseção C - Lei 11.645/08

Ementa: Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei

no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional,

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para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e

Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.

Comentário: Esta Lei veio a reforçar a lei anterior, no sentido de ratificar a

obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afrobrasileiras e incluir neste rol de

conteúdos a História e Cultura dos povos nativos em tempos coloniais que, ainda hoje,

encontram-se deveras prejudicados, tendo, inclusive uma legislação extravagante que os rege,

não os permitindo de maneira expressa, em condições normais, ser direcionados pela Norma

Fundamental, a Constituição Federal.

Subseção D - Lei 12.288/10

Ementa: Institui o Estatuto da Igualdade Racial; altera as Leis nos

7.716, de 5 de

janeiro de 1989, 9.029, de 13 de abril de 1995, 7.347, de 24 de julho de 1985, e 10.778, de 24

de novembro de 2003.

Comentário: É um projeto de ação coletiva que busca a promover, de maneira

intensiva a igualdade racial, tema que, até hoje, é icônico e guarda sérias minúcias quanto à

sua efetividade prática e ao seu alcance político e jurídico vez que se transfigura na

organização dos mecanismos de intervenção estatal e do universo de ação da sociedade civil

organizada.

Nos fala, por fim, Luiz Fernando Martins da Silva (2010) que:

A questão racial no Brasil tornou-se palco das atenções da sociedade e do Estado,

notadamente após o presidente Fernando Henrique Cardoso reconhecer em 1995 que

havia racismo e desigualdades raciais no país, ato que se fez acompanhar das

primeiras políticas públicas específicas para a população negra objetivando a

superação deste quadro. Vale ressaltar que tudo isso foi produto das denúncias e das

reivindicações históricas e atuais do movimento negro e de setores progressistas da

sociedade civil.

Contudo, a implantação de políticas, programas, projetos e ações governamentais de

caráter afirmativo para negros resultaram em uma polêmica há muito não vista.

Pode-se dizer que um dos principais momentos dessas discussões ocorreu quando da

implantação, no ensino público superior, de reserva de vagas para negros na UERJ,

na UENF e na UNEB em 2003.

No campo jurídico a questão está distante de pacificação e de consenso, haja vista,

especialmente, a existência de ações judiciais que contestam a constitucionalidade

dessas medidas afirmativas.

Operadores do Direito, Professores e Pesquisadores da área jurídica divergem sobre

a oportunidade e a constitucionalidade das políticas implantadas pelo Estado

brasileiro por diversos motivos, dentre os quais: a violação do princípio da

igualdade, do mérito, da proporcionalidade, da Federação, da autonomia

universitária; e até mesmo a inexistência de critérios seguros ou científicos para se

identificar os beneficiários das medidas destinadas aos pardos e às pessoas com

deficiência. Outras críticas são dirigidas aos critérios adotados por algumas

universidades para selecionar e identificar os beneficiários das políticas afirmativas,

como ocorre no processo de seleção da Universidade de Brasília.

Demais disso, não podemos olvidar a insuficiente interdisciplinaridade existente

entre ciências jurídicas e ciências sociais no Brasil.

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Capítulo V - O pleno sobre a ADPF 186/2012, seus principais atores e o posicionamento do

Supremo Tribunal Federal (STF) quanto à constitucionalidade das políticas afirmativas de

cotas

Vivo tão feliz

Esse é o meu país

E todos que o amam

Sabem da sua fama

De país do carnaval

Da selva mundial

Do rei do futebol

Do "extermínio de menor"

Sabemos do presente

Qual será nosso futuro

Os menores estão morrendo

Que país inseguro

Eu já disse isso a você

Não adianta esquecer

Eu vou sempre te lembrar

Só me deixe expressar

Não canto só pra mim

Canto pra você

Igualdade e consciência

É o que nós devemos ter

O futuro é inseguro

O caminho é obscuro

Mas tem solução

Vamos todos dar as mãos

(Meu País - Devotos)

Em pleno o Supremo Tribunal Federal – STF, sob a presidência do então Ministro

Ayres Britto, se pronunciou quanto à constitucionalidade das políticas afirmativas de cotas,

uma vez que, através da propositura da Arguição de Descumprimento de Preceito

Fundamental (ADPF) de nº 186/2012, cujo relator, Ministro Ricardo Lewandowski, votou

pela improcedência total da ação em virtude da falta de materialidade da questão. Importante

é destacar e ressaltar a força dos argumentos de alguns dos ministros do STF, mediante a

transcrição de algumas das falas dos ministros e outros interessados, portanto vejamos:

1. Advogada Roberta Fragoso Menezes Kaufmann

A advogada representante do partido DEM-DF, partido que impetrou a ADPF no STF,

em uma de suas falas assim dispôs:

“A questão que aqui se coloca nesta ação é uma questão da mais alta relevância pro

Estado Brasileiro. O que se discute nesta ADPF é se nós queremos implementar no

Brasil um modelo de um Estado racializado, um modelo de Estado em que os

direitos das pessoas são divididos com base em um critério tênue, no Brasil, como é

a cor da pele. É importante destacar que em nenhum momento se questiona ou se

discute nessa ação a inconstitucionalidade de ações afirmativas como um gênero

para a integração necessária das diversas minorias. Não se discute também, nessa

ação, que o Brasil adote um modelo de Estado Social que, em oposição ao Estado

Liberal, objetiva justamente a criação de um país mais justo, mais igual, mais

solidário, mais fraterno. Não se discute também nessa ação a existência de racismo,

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de preconceito e de discriminação em relação aos negros na nossa sociedade. O que

se discute, evidentemente, é, qual é a melhor forma de integrar os negros no Brasil

porque todos nós queremos a integração dos negros, todos nós queremos a criação

de um País melhor. A diferença e o que nós colocamos aqui nesta ação é que em

todos os países que implementaram uma política de cotas de recorte exclusivamente

racial, e quando eu digo isso me refiro especificamente à política norte americana de

cotas raciais, à política instituída na África do Sul, à política também instituída em

Ruanda. Em todos esses países que implementaram cotas, houve antes um século de

segregação institucionalizado. Houve sempre a definição por meio de Lei daquele

que era o beneficiário da medida. A questão que se coloca não é superficial: se você

não tem um critério preciso para definir, no Brasil, quem é o pardo, quem é o

moreno, as consequências da implementação desta medida, por meio de leis que vão

criar categorias raciais no Brasil, podem ser mais desastrosas do que os eventuais

bônus que a política pode ocasionar.”

E continua a jurista mostrando um ponto de vista um tanto quanto equivocado quanto

às políticas afirmativas, no sentido de querer imputar uma série de comportamentos e

ideologias alienígenas às propostas jurídica e pedagógica da promoção da igualdade

etnicorracial através das políticas afirmativas em nossa sociedade. Ora, se sabemos que existe

racismo, preconceito e discriminação no Brasil, sabemos, por extensão, que existem setores

da sociedade que não buscarão desenvolver as potencialidades quer sejam de ordem

cognitiva/intelectual ou econômica em classes que a própria operadora do direito denominou

de minorias, por uma lógica em que o medo ou receio de perder seu status, sua posição atual

de benesses e privilégios é uma posição que legitima seus argumentos em desfavor do

crescimento geral de uma nação.

A advogada busca, através de uma análise comparativa com os outros países instituir

uma espécie de analogia às avessas, uma política repressiva advinda das cotas, uma situação

que nos parece pouco realista, mas muito fantasiosa em seus desdobramentos. Mesmo que no

Brasil não tenhamos implementado um sistema legal sobre discriminação, isto é, não tendo o

Estado brasileiro após 1988 assegurado uma postura de segregação, como se deu no

apartheid, sabemos que, na prática, essas posturas, contidas no imaginário social, vieram

sendo gradativa e fortemente reproduzidas. Não se trata, neste caso, de uma discussão sobre a

cor da pele, nem sobre a questão da ancestralidade, mas de uma série de caracteres fenotípicos

e genotípicos, em atuação conjunta, que denominam, no Brasil esta configuração do que é ser

negro e do que é ser branco no Brasil.

Relevanta, contudo, a advogada que:

“Não é preciso afirmar, mas a imposição de um modelo de Estado racializado, por

obvio, traz consequências perversas pra formação da identidade de uma nação. Você

cria, então, identidades paralelas, identidades bipolares. Você não cria um

sentimento de cultura nacional, você cria um sentimento de culturas segregadas

porque o critério não é objetivo. É diferente falar de cotas para deficientes físicos, é

diferente falar de cotas para idosos, é diferente falar de cotas pra gestantes porque

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existem critérios objetivos que definem os beneficiários. No Brasil, as cotas raciais,

tal como estão sendo impostas nas universidades, especialmente no caso da

universidade que está sendo impugnado, a UnB, as cotas estão sendo implementadas

por meios de tribunais raciais de composição secreta e que, com base em critérios

mágicos, místicos, definem a tênue diferença entre um moreno, um pardo e um

branco no Brasil.”.

Arremata ainda a Sra. Roberta Fragoso, em sua fala, a questão da diferenciação dos

pertencimentos etnicorraciais de gêmeos idênticos, univitelinos, que foram considerados de

pertencimento etnicorracial diferentes, caso que despertou, na opinião midiática, um enorme

contracenso quanto às questões de mote racial. Mas sabemos que pertencimento etnicorracial,

como já foi dito, não depende exclusivamente (ou melhor, quase independe) da sua

ontogênese, isto é, da sua origem familiar, de fato. Seu pertencimento etnicorracial muito se

espelha nas suas concepções de mundo, de ser e estar no mundo, suas relações com sua

ancestralidade à nível simbólico, seus conceitos, sua identidade cultural, de fato. E assim

conclui sua sustentação oral da seguinte maneira: “Senhores Ministros, Senhoras Ministras,

não existe racismo bom, não existe racismo politicamente correto. Todo racismo é perverso e

precisa ser evitado.”

Se existe esta concepção tão bem formada pela eminente jurista, porque devemos

tratar as políticas inclusivas como sendo medida paliativa, como uma manobra política que

visa única e exclusivamente angariar votos e prejudicar outras classes que, se não se sentem

incomodadas, acabam lesadas grandemente pela supressão de diversas histórias locais em prol

de uma identidade nacional tida como coesa, se sabemos que existem, dentro de um mesmo

estado e entre as regiões do Brasil, um verdadeiro mosaico cultural, uma série de estilos, de

pronuncias de vernáculos e verbetes utilizados. Ora, desconsiderar essa visão é fadar qualquer

estudo sistemático ao fracasso pela ausência de elementos fundamentais às considerações

mais relevantes: a construção, consolidação e diferenciação de uma cultura local, nacional e

universal.

2. Procuradora Federal Indira Ernesto Silva Quaresma

A Procuradora Federal, Dra. Indira Ernesto, que representava ali o Conselho de

Ensino, Pesquisa e Extensão da Universidade de Brasília, o Reitor da Universidade de

Brasília e o Centro de Seleções de Promoção de Eventos da Universidade de Brasília, em seu

discurso despertou algumas falas, e destacou algumas falhas, sobre o pilar central do elemento

material da discussão da constitucionalidade da ADPF em questão, essa pseudo-aceitação que

girou em torno das políticas afirmativas de cotas no mesmo tempo em que havia um

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movimento diametralmente oposto no sentido de vitimizar a população negra com relação aos

efeitos da segregação e o valor do mesmo na sociedade. Vejamos algumas de suas falas:

“A Lei Áurea não teve o condão de transformar ‘coisa’ em gente da noite pro dia.

Ela não conseguiu apagar do imaginário coletivo, nem de brancos, nem de negros,

mais de 350 anos de história e cultura de escravidão.Ela não avançou no sentido de

dar o mínimo de condições para que negros e negras começassem a trilhar um

verdadeiro caminho de igualdade formal e material. Deixar os negros à própria sorte

foi, sim, vontade governamental. Aos negros negou-se terras e educação, as duas

únicas formas de ascensão social e promoção da dignidade da pessoa humana na

época em uma franca política de branqueamento da população brasileira, optou-se

por trazer imigrantes europeus, que chegaram aqui tão pobres quanto os nossos

negros, mas deu-se àqueles o que se negou a estes. E os europeus vicejaram e sem

duvida alguma foram responsáveis por nos alçar ao patamar de país moderno, mas

os negros foram alijados das riquezas econômicas e intelectuais do País. Quase 124

anos após a abolição os dados estatísticos de instituições sérias, públicas e privadas,

demonstram, sob qualquer perspectiva ou fator analisado que ser negro no Brasil

continua sendo motivo para continuar alijado das riquezas econômicas e

intelectuais. Nós vivemos anos no domínio de um mito, de uma ilusão, de uma

hipocrisia – democracia racial – que nos impediu de termos uma visão nítida sobre a

situação do negro no País. E ainda hoje, quando todos os indicadores sociais e

econômicos retumbam que essa democracia racial não existe, e nunca existiu, a

quem insista em tentar oblibilar o debate,escamoteando o racismo sob a pobreza.

Falar abertamente sobre racismo no Brasil parece que toca os medos mais

profundos. Por outro lado, não enfrentar a questão tem sido uma das razões do

fracasso do nosso projeto de uma nação livre, justa, solidária, fraterna. Racismo,

pobreza e desigualdade e sexismo estão na base das questões estruturantes do País.

A forma de enfrentar cada um desses problemas é diferente, mas o primeiro passo,

na solução da sua resolução é identificar sua existência.”

Importantíssimo é se fazer notar que essas questões, relativas ao enfrentamento às

desigualdades é um compromisso social do Estado, constituindo-se como uma verdadeira

prestação positiva do Estado em relação aos indivíduos. Continua a Procuradora:

“Paulo, o apóstolo, disse que a letra mata, mas o espírito vivifica. A UnB vivificou o

principio da igualdade, materializando-o e se dispôs a ser agente de transformação

do perfil educacional dos negros da comunidade brasiliense com respaldo

constitucional da autonomia universitária. Claro que não foi processo simples nem

ainda não o é.”

Ressalta ainda a ilustre Procuradora, que esta questão levantada na ADPF 186 incide,

de fato, na existência de um sistema legitimado na ideologia tradicional e nas legislações que

não conseguiram ultrapassar as barreiras tradicionais do racismo institucionalizado.

“Isso na verdade são as chamadas áreas duras e moles das relações raciais no Brasil.

Os antropólogos dizem que nas áreas duras a cor da pessoa tem maior importância,

ao passo que nas moles não. As áreas duras são trabalho, universidade e mercado

matrimonial, e as áreas moles são ligadas ao domínio da cultura, do lazer e da

religião. Carlos Hasenbalg diz que é na complexa inter-relação família, educação e

mercado de trabalho que se define o lugar que as pessoas irão ocupar na hierarquia

social. E é aqui que para a maioria dos negros se estrutura suas condições de

exclusão e subordinação. Racismo não se opera apenas na forma da violência, da

segregação, do apartheid, ou de plaquinhas...”

Pensando assim, vemos que nessa complexidade habitual que emana, de fato, das

relações sociais em nosso País, encontra-se uma percepção tão intensa quanto malévola, ao

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ponto de experimentarmos uma relação quase odiosa de supressão e de uma democracia

falaciosa, uma democracia planejada para o fracasso em que essa alteridade é sempre

interpretada como instrumento de reafirmação de estruturação de classes pensada para uma

sociedade estática, de matriz rígida ou semi-rígida, cuja efetivação cativa do poder senhorial

ainda se mantém na estreita relação entre brancos e negros.

“Oracy Nogueira diz que o racismo no Brasil é de marca, não é de origem.

Observem-se os fenótipos,e não os genótipos, para nós, brasileiros, pouco importa se

há uma gota de sangue de um negro em um branco ou se há sessenta, setenta por

cento de DNA europeu em Neguinho da Beija-Flor e em Dayanne dos Santos. Nós

não podemos achar que as ciências naturais tem supremacia sobre as ciências

sociais. O fato das ciências naturais dizerem hoje que a espécie Homo Sapiens não é

dividida em raças, não justifica o fim das ações afirmativas. A um porque há cerca

de setenta anos atrás o discurso das ciências naturais era outro; a outro porque o

racismo é um fato da vida em sociedade, um problema absoluto das ciências sociais

e nelas há de encontrar seu fim. O que é incontroverso é que a comunidade negra

brasileira precisa urgentemente de personalidades emblemáticas, se permite usar

uma expressão de Vossa Excelência, Ministro Joaquim Barbosa, há um consenso na

sociologia que o negro no Brasil só experimenta a ascensão social forte pelo futebol,

pela música e pelo narcotráfico. Excelências, se o menino for perna-de-pau e a

menina não tiver talento pra música e ambos não forem capturados pelo canto da

sereia do narcotráfico, que tipo de emprego eles terão? E eu vos respondo: do tipo

braçal, do tipo de pouco desafio intelectual, do tipo de baixa remuneração. Que tipo

de motivação eles terão se olham para os profissionais de sucesso, e não me refiro

aqui às celebridades, e não veem ninguém da sua cor. O que fazer com esse

sentimento, não, sentimento não, com esse pensamento derrotista de “estudar e ser

Doutor não é pra mim”. Quando um jovem negro vence na vida pelo estudo, ele

desperta nos seus pares um sentimento de “se ele conseguiu, eu também posso” e

isso é inspirador; isso é resgate de autoestima, com um diploma na mão, onde quer

que esse jovem obtenha colocação, ele fará diferença, senão outra, a diferença da sua

presença. Quanto ao mérito acadêmico, o Autor quer nos fazer crer que aprovados

no vestibular tradicional merecem mais os benefícios sociais que o curso superior

em universidade federal proporciona, ou pior, que são legitimados para tais

benefícios porque nasceram brancos ou em família de poder aquisitivo mais

adequados a uma vida saudável e quem não nasceu nessas condições merece estar

onde está. No caso da clivagem racial, essa percepção é socialmente desastrosa, pois

pesa sobre a população negra o estigma da incompetência construída pela ideologia

racista; e a sua ausência dos bancos universitários reforça todo o sistema de

segregação racial.”

3. Representante da A.G.U. Dr. Luis Inácio Lucena Adams

Representando a Advocacia Geral da União, este procurador marca, em sua fala, ideais

que compartilham da necessidade de uma visão mais realista e menos utópica ou

fundamentalista do Direito, no sentido de que a simples enunciação legislativa não garante as

melhorias ali expressas. Assim diz o eminente Advogado-geral da União:

[...] ela [a Constituição] ao mesmo tempo protege e defende a cultura negra, ela

defende a necessidade de preservar essa identidade, de buscar reforçar esta

identidade que é parte da nossa identidade nacional [...], mas ao mesmo tempo, o

Brasil, desde 68, já incorporava a necessidade de combater a discriminação, como

nós ratificamos a Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas

de Discriminação Racial, cuja cláusula segunda já dizia, e já apoiava a adoção de

medidas especiais com o objetivo e princípio de assegurar, de forma conveniente, o

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progresso de certos grupos sociais e étnicos, ou de indivíduos que incitem a proteção

para poderem gozarem e exercitarem os Direitos Humanos e as liberdades

fundamentais. O Brasil, sempre posicional, criou e participou deste compromisso,

mas na sua implementação nunca realizou; nunca efetivou esse combate desta

discriminação. Discriminação aqui, não é uma discriminação biológica é uma

confusão que esta Corte já superou, ao dizer que discriminação e racismo não é um

conceito biológico, quando nós referimos ao conceito biológico para identificar o

racismo, lembra aquela discussão do século XX, que procuravam identificar o

criminoso pelo tamanho do seu cérebro, pelas dimensões de seu cérebro. A questão

“racismo” é uma questão eminentemente cultural. Não é por menos que os Estados

Unidos, hoje o racismo não é, essencialmente, contra o negro, o racismo hoje é

contra o hispânico. É contra aquele que vive em condições que entraram nos Estados

Unidos, (os mexicanos, os centro-americanos), que migram para os Estados Unidos

e vivem em condições sub-humanas de ilegalidade.

De uma maneira muito especial, o membro da A.G.U., destaca que, ao contrário da

realidade cultural dos Estados Unidos, no panorama brasileiro existe uma consciência muito

mais voltada ao exercício visual fenotípico pairando no imaginário social, dando aí sua

proporção para a dificuldade de erradicação deste mal, e diz que:

[...] ela não está presente em instrumentos formais, ela está presente exatamente na

reprodução cultural, na forma como esse país se estabelece. E é por isso que o

governo Lula e já com a Presidente Dilma, adotaram, no Brasil, a necessidade de um

Estado Brasileiro que está focado para esta função, com uma Secretaria que busca a

integrar as diversas culturas raciais do Brasil, a Secretaria de Relações de Igualdade

Racial; não uma Secretaria de racismo, como vem aqui defender de maneira muito

açodada e muito equivocada; é uma Secretaria que vem defender a igualdade, a

integração de todos os brasileiros, não negando a diferença, mas reconhecendo a

diferença e a partir do reconhecimento desta diferença, reafirmando os níveis

materiais, objetivos que têm que permitir essa integração da sociedade. E essa

integração passa por adoção, no Brasil, de políticas como essa, política afirmativa,

que está presente não apenas na Constituição: o Congresso Nacional vem adotando

isso, seja na lei 110.172/01, na lei 10.558/02, na lei 12.278/10, com o estatuto da

Igualdade Racial. O nosso legislador vem conhecendo essa realidade e ele responde

uma questão que é a questão que esta Corte responde e deve responder hoje: existe

ou não racismo no Brasil? E, se essa realidade de racismo provoca desigualdade

social, se ela jorra, se ela reproduz desigualdade racial? E essa realidade se faz

presente nos números [...]: assim é que, por exemplo, 50% da nossa população

compõe sim de negros e pardos, ao mesmo tempo, ao mesmo tempo, do ponto de

vista social, consideramos 10% dos mais pobres, que são aqueles que ganham até

setenta reais – que são os miseráveis – vamos ver que 11,5 milhões de brasileiros

negros e pardos compõem essa realidade; enquanto apenas 4 milhões de brancos

compõem essa faixa social.

Nesta perversa lógica matemática das pesquisas sociais encontradas em nosso país,

continua o jurista, que:

Para cada 2,7 pessoas brasileiras negras e pardas, nós temos 1 branco que está em

condição de miserável. Ao contrário, se nós considerarmos os mais ricos, 1% mais

ricos, 8% de pessoas pardas e 1,1% de pessoas negras contra 88,4% de pessoas

brancas. Então, sim, existe uma realidade social que reproduz e vem reproduzindo

uma realidade de descriminação.

Arremata sua sustentação com o seguinte argumento:

[...] não existem leis que proíbem o casamento de brancos com negros; não existe

uma lei que proíba ascensão social do negro no nosso país, mas existe uma relação

cultural que se reproduz há muitos anos, há séculos, que mantém essa relação numa

aparente – aparente democracia racial – uma aparente democracia racial, porque, na

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verdade, a realidade se reproduz numa conveniente permanência de estratificações

diferenciados em que elemento racial é um elemento que compõe essa realidade.

Não é o único, é verdade, mas é um elemento e ele tem que ser tratado; e se a

resposta reconhecidamente for que há discriminação, é, não só correto, como

imperativo que se apoie e se considere constitucional as políticas afirmativas de

conteúdo racial, exatamente porque elas vêm ao encontro do que a constituição

manda de combater a discriminação, porque discriminação não é só nas leis, mas

quando estão estabelecidos nas relações sociais, nas relações econômicas, nas

relações profissionais, como é reconhecida na relação ao negro, em relação à

mulher, é reconhecido em relação ao deficiente físico e assim por diante; por isso

que o Brasil, se quiser se tornar um Brasil, de fato integrado; um Brasil que se

considere como um país de primeiro mundo no sentido não nortista, mas no sentido

de um país líder, de exemplo para o resto do mundo, como país que reconhece e

valoriza o seu povo, ele precisa, é essencial que ele resgate, recupere e enfrente esses

desafios. E, ao enfrentá-lo, resgatem e reafirmem uma maior realidade de respeito

pela multicor e multiculturalidade que o Brasil possui.

4. Advogada Juliana Ferreira Correia

Na condição de amici curiae, defendendo os mesmos ideais propostos pelo impetrante

da ADPF, partido DEM, na condição de representante do Movimento Pardo-Mestiço

Brasileiro, a advogada traz em suas considerações diversas expressões que visam muito mais

criar um ambiente pouco salutar de diferenciação do que de integração, conforme vemos a

seguir:

“[...] como representante do Movimento Pardo Mestiço Brasileiro, não vim aqui

hoje, perante essa Corte, dizer o óbvio: que o sistema de cotas incita a segregação

dos universitários pela cor de sua pele, que confronta os princípios da igualdade e da

dignidade da pessoa humana; nem falarei sobre o absurdo de um tribunal racial, que

só prejudica os pardos; porque já foi brilhantemente exposto pela Doutora Roberta;

hoje me dedicarei a uma inovadora perspectiva. A respeito do ultimo Censo,

realizado em 2010, muitas notícias foram divulgadas; algumas, erroneamente,

afirmavam que a população negra, com o percentual de 50% superavam aqueles

declarados como brancos com 47%, como se o Brasil, Excelências, fosse uma nação

bicolor, em que só existissem negros e brancos. Esquecemos, então, de todos: dos

amarelos, dos índios, dos cafuzos, dos mamelucos, dos caboclos, esquecemos de

todos, pois o Brasil é dividido entre negros e brancos. Ora, Excelências, a realidade

é que a pesquisa do Censo realizada em 2010 apontou que a população brasileira é

composta de apenas 7% de negros; então, quem seria os outros 43%? Quem são

esses? De onde surgem? Estes são os pardos, ou denominados mestiços! Os pardos

compõem a miscigenação pontualmente conhecida como brasileira.”

Evocando uma perspectiva que denominou de “verdadeiro genocídio racial”, disse

que, para que fosse possível alcançar a proposta das cotas, os pardos teriam de negar sua cor e

a sua identidade (que compreende ser, através de um pensamento muito particular, decorrente

de uma perfilhação fruto da cor do individuo). É importante saber que, ao contrário de outras

populações (não aqui reduzidas à prática da mestiçagem), o povo africano e os

afrodescendentes que trouxeram em si mais insígnias ou marcas negróides, acabaram por

sofrer uma carga infinitamente mais intensa de preconceitos e discriminações que a população

de outros pertencimentos. Não se propõe aqui uma perspectiva em que se deva ser revanchista

e fazer com que a pirâmide social, da qual já se retratou acima, seja invertida. Lembramos de

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Paulo Freire quando diz que, “quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é

virar opressor”

5. Advogada Vanda Maria Gomes Siqueira

Também na condição de amiga da corte (amici curiae), esta advogada vem no sentido

de endossar as palavras da advogada anterior, expressando, contudo, uma visão muito

particular, apoiada inclusive em um forte viés religioso de análise do mundo:

“olho para a plateia, vejo brancos, negros, ilustres juristas, e fiquei nervosa quando

vi os colegas que me antecederam porque eu sinto, nestes discursos, muito ódio, os

discursos estão polarizados. Eu quero trazer para esta Corte, que tem apreciado

questões fundamentais pra sociedade brasileira, e que diariamente pela TV Justiça o

povo ouvi os votos, os belos votos de Vossas Excelências, trazer uma reflexão. Há

necessidade sim, de ações afirmativas, sem dúvida alguma. Mas nós vivemos num

país continental onde as diferenças regionais são enormes e acentuadas.”

Resta, pela ilustre advogada, a percepção do desvirtuamento do espírito da lei de cotas

que, por não possuírem critérios objetivos fundamentam-sem em tribunais raciais que julgam

de maneira arbitrária, sem os critérios objetivos enunciados com clareza e de maneira geral à

toda a realidade universitária pública nacional, afirmando que o estabelecimento das cotas

depende dos critérios subjetivos enunciados mediante um ato administrativo que objetiva

fundamentar, principalmente na figura do reitor e sua ideologia política, uma orientação

normativa de caráter objetivo mediante a criação do instrumento norteador da implementação

das políticas afirmativas.

Diz ainda a amiga da Corte:

“[...] ontem disse o Ministro Ayres Brito que falou a Constituição tem o artigo 37

que estabelece como princípios a legalidade, impessoalidade, a moralidade, a

eficiência dos atos administrativos, e os agentes públicos não podem comportar-se

como se a universidade fosse o terreno da sua casa, não esqueci sua expressão-

dirigindo-se ao Ministro Ayres Brito-, como se fosse o terreno da sua casa, fazendo

e legislando com a velocidade dos ventos e criando injustiça e ódio onde não existia

antes. Eu tenho já, ao longo da minha vida como advogada, já ouvi milhares de

estudantes injustiçados. Eu sei da dor de um jovem que é preterido no concurso de

vestibular por notas não transparentes, com normas e documentos sigilosos que

ficam fechados a sete chaves nas reitorias e que é preciso medidas cautelares para

requisitar documentos como a Dra. Marga fez, a Desembargadora Marga, requisitou

documentos e esses documentos foram examinados eram 1450 cotistas em 2008 a

universidade apresentou apenas a documentação de 522 cotistas e o resto nunca mais

eu consegui ganhar. Desses 522 cotistas, eu mostrei numa audiência pública as

mansões onde moram os cotistas do Rio Grande do Sul, e não só do Rio Grande do

Sul, porque o critério não é mensurável, Excelências, o critério não fala em renda

como a lei do ProUni. Porque não aplicar a lei do ProUni que é muito mais justa e

reduz as desigualdades e possibilita o acesso com muito maior transparência e

inclusão aos estudantes negros? Porque se a maioria dos pobres são negros, é obvio

que se o critério for renda, os estudantes negros terão acesso aos bancos escolares,

independente de terem cursado escola privada ou pública, mas ninguém quer esse

critério porque existem interesses políticos, porque obviamente são lideranças de

ONG’s que pregam esse ódio racial e esta casa, comprometida com princípios

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constitucionais, da igualdade, da fraternidade, dos Direitos Humanos, da probidade

administrativa, não há de permitir essa divisão e muito menos incentivar o ódio que

não existe, não existia no Rio Grande do Sul e no resto do País até bem pouco

tempo.”

6. Advogado Ophir Cavalcante

O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), na condição de amigo da

Corte, portanto vejamos:

“As universidades brasileiras estavam reservadas, até então, para a classe econômica

mais abastada. Hoje as universidades brasileiras privilegiam também a questão

social, a questão econômica a partir da reserva de cotas. A Constituição que leio,

Senhores Ministros, é diferente, talvez, pelo olhar de tolerância, pelo olhar de buscar

a igualdade tão apregoada por todos deste País, a Constituição que leio é que prega a

paz, que prega a pacificação social; é diferente, certamente, da Constituição que é

lida pelos requerentes. Eu faço questão de destacar, ainda que em pouco tempo, que

esse foi o objetivo maior do constituinte ao destacar no preâmbulo da Constituição,

ao iniciar com o propósito do Brasil, ou daqueles que estavam outorgando a

Constituição, por uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. E dentro

dos princípios fundantes foi mais além no artigo 3º e, de uma forma muito clara, diz

que é fundamento da República construir uma sociedade livre ”

7. Ministro Luiz Fux

No pleno sobre as cotas de mote etnicorracial, o Ministro Luiz Fux se colocou no

sentido de defesa das cotas, fazendo uso das seguintes palavras:

“de tudo o quanto eu pude aprender ouvindo as vozes da rua, as vozes sociais, que

são fatores externos importantes, coadjuvados com a técnica constitucional, que

ontem foi tão bem evidenciada pelo Ministro Ricardo Lewandovski, no memorável

voto que tive o prazer imenso de assistir tudo até o final, e essa questão, muito

embora possa suscitar um desacordo moral razoável, ela suscita dois sentimentos

extremamente antagônicos que, aliás, eu vou me referir já a seguir: de um lado o

receio, de um outro, o orgulho.”

Em seu compromisso ético no exercício de sua função de Juiz do Tribunal

Constitucional, o Ministro justifica que, quanto às questões de natureza social, como foi o

julgamento das cotas etnicorraciais, ele busca, como método interpretativo, um viés mais

ligado à psicologia humana, notadamente em seu discurso quanto à justiça e as liberdades,

fazendo um resgate histórico conforme possamos analisar a seguir:

“Mas também havia mais alguma coisa que me ligava a esse ideal de justiça era

aquela percepção de que a supressão da liberdade quer seja de opinião, quer seja

uma liberdade física, é o que atinge o cerne da humanidade e pelo portal da alma dos

meus antepassados, eu verifiquei que havia alguma coisa de comum entre a causa

dos meus antepassados e a causa dos afrodescendentes. Então me lembrei que o

mesmo homem que se retirou de um estádio em Berlim no século passado pra não

ter que comemorar a vitória de Jesse Owens que vencera a corrida dos 100 metros,

200 metros, 400 metros e que superara os atletas de raça pura ariana, esse mesmo

homem fez com que os meus ancestrais assistissem uma escravidão nos campos de

concentração e experimentasse os horrores do Holocausto. Então verifiquei que era

mais do que uma luta pela justiça, era uma luta também por uma ideologia.

Evidentemente que também tenho orgulho de dizer que ambas as raças conseguiram

superar esses obstáculos e conseguiram superar os obstáculos, até então, já no plano

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de anais do caso hoje submetido à nossa jurisdição constitucional, um caso, repito,

que desperta receio e orgulho. Como receio é um sentimento menor, até porque esse

receio é fóbico na medida em que esse meu querido amigo, Luiz Alberto Py, me

permitiu a ideia de que se uma pessoa tem medo de atravessar a rua ela tem um

medo fundado porque ela tem medo de ser atropelada mas se uma pessoa tem medo

do mundo, ela não em medo; ela tem um estado patológico que a induz a isso.”

Acrescenta ainda o eminente jurista que:

“[...] diretamente no mérito eu destaco que a opressão racial dos anos da sociedade

escravocrata brasileira, ela deixou cicatrizes que se refletem, sobretudo, no campo

da escolaridade revelando graus alarmantes de diferenciação entre alunos brancos e

afrodescendentes, por isso que de escravos de um senhor esses últimos passaram a

ser escravos de um sistema. que institucionaliza desigualdades e se reveste de uma

violência simbólica semelhante ao trabalho cativo desenvolvendo uma consciência

falsa da realidade social enunciada por Florestan Fernandes na sua obra “Integração

do Negro na sociedade de classe”.”

O Ministro ainda pontua ao longo do seu voto algumas passagens que são de extrema

relevância em virtude da temática e da compreensão do tópico jurídico em questão. Vejamos,

portanto, alguns desses trechos:

“O princípio da diversidade, Senhor Presidente, converge para o desígnio

universitário acadêmico de promoção e integração racial, porquanto a norma

constitucional integrante do núcleo central da isonomia reclama, na visão

percuciente de Michael Sendel “um corpo estudantil com diversidade racial que

permite que os estudantes aprendam mais entre si do que se todos tivessem

antecedentes semelhantes.”. As minorias deveriam assumir posições de liderança na

vida pública e profissional, por isso que viria ao encontro do propósito cívico da

diversidade e contribuiria para o bem comum. No mesmo sentido, em lição

recentíssima da professora Tania Washington, que eu vou me permitir não me

alongar mais porque confesso que, de alguma maneira, essas perturbações vão

limitando um pouco a nossa capacidade de digressão. Mas eu vou dizer o que eu

tenho que dizer até o final que é importante dizer: o livre acesso à universidade

lastreado no principio abstrato da isonomia não restou capaz, por si só, de promover

a implementação do principio da diversidade, conforme assenta o Ministro Joaquim

Barbosa em Ações afirmativas: o principio fundamental à igualdade, Renovar 2001,

p. 12.”

O jurista ainda continua seu voto no sentido de abarcar a validade jurídica das cotas

mediante a explicação do respeito à própria pirâmide kelseniana vez que não há nenhum ftipo

de desvio, ao que denomina ser “prodigiosa” no cenário nacional esta política afirmativa

porque guarda interesses correlatos com a Constituição, com a legislação federal

extravagante, com as demais normas do direito e com os atos administrativos, atos jurídicos

secundários, em sua percepção.

8. Ministro Joaquim Barbosa

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O ilustre ministro, ao analisar o caso, pontua em sua fala alguns tópicos de extrema

relevância para o entendimento de que a questão etnicorracial, da maneira como era tratada

até então, constituía impedimento de atingimento aos princípios constitucionais que não mais

deveriam ser elementos meramente formais e sem aplicação para que se tornassem de fato um

instrumento de validação de uma sociedade melhor. Sendo assim, destacou o Ministro:

“O que penso ser essencial em matéria de, por exemplo, discriminação. Eu acho que

discriminação, como componente indissociável do relacionamento entre os seres

humanos, reveste-se de uma roupagem, e isto é muito importante: o que está em

jogo aqui é, numa certa medida, competição; é um aspecto competitivo que gere em

todas as sociedades. Quanto mais intensa a discriminação e mais poderosos os

mecanismos inerciais que impedem o seu combate, mais ampla se mostra a clivagem

entre o discriminador e o discriminado. Daí resulta, inevitavelmente, que aos

esforços de uns em prol da concretização de da igualdade se contraponham os

interesses de outros na manutenção do status quo. É natural, portanto, que as ações

afirmativas, mecanismo concebido com vistas a quebrar com esta dinâmica perversa,

sofram o influxo dessas forças contrapostas e atraiam considerável resistência,

sobretudo, é claro, da parte daqueles que, historicamente, se beneficiam ou se

beneficiaram da discriminação de que são vítimas os grupos minoritários. Essas

ações afirmativas se definem como políticas públicas voltadas, portanto, à

concretização do principio constitucional da igualdade material e a neutralização dos

efeitos que eu chamei a pouco de perversos da discriminação racial, da

discriminação de gênero, de idade, de origem nacional, de compleição física. Na sua

compreensão, a igualdade deixa de ser simplesmente um princípio jurídico a ser

respeitado por todos e passa a ser um objetivo constitucional a ser alcançado pelo

Estado e pela sociedade, impostas ou sugeridas por um Estado, e lembro aqui que

ação afirmativa não é medida proposta só por governos, muito pelo contrário, elas

podem ser propostas, e são propostas, por entidades de iniciativa privada.

Há, no Direito Comparado, vários casos de medidas de ação afirmativa desenhadas

pelo Poder Judiciário para, naqueles casos em que a discriminação é tão flagrante, a

exclusão é tão absoluta que o Judiciário não tem outra alternativa senão ele próprio

determinar, desenhar medidas de ação afirmativa como foi o caso, nos Estados

Unidos, especialmente em alguns estados do sul.

Então eu dizia, impostas ou sugeridas pelo Estado, por seus entes vinculados e até

mesmo por entidades privadas, essas medidas visam a combater não somente as

manifestações flagrantes de discriminação mas também a discriminação de fato – e o

que é que é a discriminação de fato? É aquela discriminação de fundo cultural como

é a brasileira, arraigada, estrutural, absolutamente enraizada na sociedade. Então de

tão enraizada que as pessoas nem a percebem. Ela se normaliza, torna-se uma coisa

natural – de cunho pedagógico e não raramente impregnadas de um caráter de

exemplaridade, da parte estável, claro, tem como meta também o engendramento de

transformações culturais e sociais importantes, aptas a inculcar, nos atores sociais, a

necessidade e a utilidade da observância de princípios, tais como os do pluralismo e

da diversidade nas mais diversas esferas do convívio humano. Constituem também,

por assim dizer, a mais eloquente manifestação da moderna ideia de Estado

promovente, ou seja, de um Estado que toma a iniciativa, que não acredita na força

invisível do mercado. É um Estado dirigente, digamos assim. Trata-se, em suma, de

um mecanismo sócio-jurídico destinado a viabilizar primordialmente harmonia e paz

social, diferentemente do que foi erroneamente sustentado da tribuna. Paz social

que, mais cedo ou mais tarde, se veria seriamente perturbada quando um grupo

social expressivo se vê eternamente à margem do processo produtivo, dos benefícios

do progresso. E visa também a robustecer o próprio desenvolvimento econômico do

País na medida em que a universalização do acesso à educação e ao mercado de

trabalho tem, naturalmente, como consequência inexorável o crescimento

macroeconômico, a ampliação de melhores áreas dos negócios, ou seja, o

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crescimento do País como um todo e esse seria um argumento de natureza

pragmática, se é que se pode dizer isso. Por outro lado não se deve perder de vista o

fato de que, e aqui é um outro argumento já agora de natureza política, não se pode

perder de vista o fato de que a história universal não registra na era contemporânea

nenhum exemplo de nação que tem se erguido de uma condição periférica à

condição de potência hegemônica e política, digna de respeito na cena internacional,

especialmente na política internacional, mantendo no plano doméstico uma política

de exclusão, aberta ou dissimulada, pouco importa, legal ou meramente estrutural ou

histórica, pouco importa, em relação a uma parcela expressiva da sua população e

lembro aqui o famoso caso Brown versus board of education dos Estados Unidos, na

Corte Suprema dos Estados Unidos era completamente favorável às vésperas do

julgamento, eram plenamente favorável à segregação das escolas públicas dos

Estados Unidos. Foi a liderança do então presidente da Corte, sob este argumento de

que os Estados Unidos era, e continuam a ser, o líder, o País-lider do mundo livre.

Ora, como é insustentável a posição de líder do mundo livre, mantendo uma situação

como aquela? Este foi um argumento decisivo do presidente da Corte para

convencer os seus colegas a mudar de posição e derrubar a política de segregação

racial então vigente no País.”

9. Ministro Cezar Peluso

O Ministro, que seguiu o voto do relator, Ministro Ricardo Lewandowski, expressou

suas considerações nas seguintes palavras:

“Deixando de lado considerações de ordem não jurídica, meta-jurídica, que, pela

natureza e delicadeza da matéria estão de fato envolvidas neste tema, eu quero me

concentrar numa questão que é o objeto do julgamento que é uma questão jurídica,

designadamente uma questão jurídico-constitucional que está em saber se as

chamadas ações afirmativas às quais a impugnada no caso faz parte, ofendem ou não

ofendem em particular o princípio constitucional da igualdade ou eventualmente

algum outro princípio constitucional. E pra dar esta resposta, parto de algumas

premissas: a primeira delas é de que, como todos sabemos, a despeito de, para efeito

de caráter didático, o princípio da igualdade seja tratado sob um aspecto formal, ora

sob um aspecto material, não há dúvida nenhuma que ele é um conceito unitário e

assume a função própria conforme a realidade sob a qual ele incida. Daí porque é

importante acentuar, sobretudo neste tema que o princípio da igualdade, implica a

necessidade jurídica não apenas da interpretação mas de uma produção normativa de

equiparação de situações que não podem ser desequiparadas sem uma razão lógico-

jurídica suficiente. Segunda premissa é esse fato sócio-histórico incontroverso, que é

aquilo que eu chamo o déficit educacional e cultural da etnia negra desde os

primórdios do processo histórico da vida brasileira, também conhecidíssimos, em

virtude das graves e conhecidas barreiras institucionais do acesso aos negros a fontes

da educação e da cultura. E aqui faço um relivro que me parece o centro do

raciocínio: o acesso da educação tem de ser visto aqui como um meio necessário,

um meio indispensável do acesso ou pelo menos da possibilidade mais efetiva de

acesso aos frutos do desenvolvimento social e econômico e, portanto, de uma

condição sociocultural que corresponda, vamos dizer, ao grande ideal da dignidade

da pessoa humana e, portanto, do projeto de vida de cada um. É esse acesso, ou mais

do que isso, as barreiras e as dificuldades opostos a esse acesso é que estão na causa,

ou pelo menos na causa fundamental ou numa causa preponderante do

desnivelamento social que implica esse tratamento desigual e, portanto, a própria

desigualação entre as pessoas no seio da sociedade. E em terceiro lugar, a terceira

premissa, é a existência de um dever que não é apenas ético, mas é também jurídico

assim do Estado como da sociedade perante tamanha desigualdade à luz dos

objetivos fundamentais da Constituição e da República, que está no artigo 3º da

Constituição, que se propõe a construir uma sociedade solidária; em segundo lugar a

erradicar a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e, em terceiro lugar,

promover o bem de todos sem preconceito de raça. São objetivos textuais da

Constituição. Diante deste princípio, a responsabilidade ética e jurídica do Estado e

da sociedade é adotar políticas públicas que correspondam ou que respondam a esse

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déficit histórico na tentativa de realizar um processo que, por definição, não se

realiza num dado momento mas vai, ao longo do tempo, sendo aperfeiçoado de

realizar essa igualdade material e portanto, desfazer essa injustiça histórica de que os

negros são vítimas no Brasil. Ora, basta uma visão sistemática da Constituição

Federal para perceber logo que ela tutela classes ou grupos em situação de

vulnerabilidade socioeconômica. Não preciso citar os casos das mulheres, os casos

dos menores, os casos dos hipossuficientes.

Há, portanto, um tratamento excepcional, concorde com o principio da igualdade,

em razão a tais pessoas pela própria Constituição Federal e, com base nela, na

legislação infraconstitucional, como também poderíamos citar o caso da Lei Maria

da Penha só pra mostrar como é legitimado do ponto de vista constitucional esse

olhar de proteção constitucional a certas situações de vulnerabilidade. E aqui eu

suscito um exemplo que mostra bem o alcance da constitucionalidade, resposta que

assume a ação afirmativa: se nós imaginássemos que as universidades públicas

fossem pagas, não fossem gratuitas, não ofenderia, a meu juízo, à Constituição que a

lei tivesse reservado uma cota de, por exemplo, 20% aos hipossuficientes ou pobres.

Que ofensa constitucional haveria neste caso?”

10. Ministro Gilmar Mendes

Logo após o momento do Ministro Cezar Peluso, o Ministro pede vênia para que possa

expor um dos motivos pelo qual o fizeram julgar sobre o elemento constitutivo da concessão

ou denegação da liminar requerida pelo DEM. Eis a fala do Ministro:

“Vossa Excelência me permite uma breve consideração? – perguntou ao Ministro

Cezar Peluso que consentiu - A questão que Vossa Excelência toca neste ponto,

porque isto foi objeto de preocupação quando da minha decisão da liminar nesta

ADPF, que é o número excessivamente reduzido de vagas em vários cursos. Eu

lembrava, está aqui presente o Reitor da Universidade de Brasília, que foi Diretor da

escola, lembrava da situação, por exemplo, da Faculdade de Direito da Universidade

de Brasília, que é objeto dessa discussão e que, para o curso diurno tinha, até

recentemente, apenas 50 vagas. Quer dizer um modelo então de ação afirmativa

obviamente opera nesse tipo de restrição. E ai, claro, nós sabemos que há todo um

esforço no sentido de expansão e esse quadro já até mudou, relativamente ao número

de vagas e há um esforço no sentido da expansão mas ainda assim nós continuamos

com um modelo extremamente restrito, até por uma cultura que domina as nossas

universidades.”

Importante salientar que, na fala deste constitucionalista, vê-se a busca pela resolução

destas tensões sociais, senão vejamos:

“Nós sabemos, por exemplo, que em alguns Estados da Federação, o Rio Grande do

Sul é um exemplo disto, nós temos hoje uma tensão em torno das cotas. Aqueles que

são contrários às cotas raciais e que professam essa posição sobre cotas

exclusivamente raciais, como este da UnB, sempre fazem a advertência de que nós

podemos estar introduzindo, a partir desta ideia de referencia racial, e o Rio Grande

do Sul, por exemplo, é uma referência quanto a isso, poderíamos estar introduzindo

a ideia mesmo de um certo racismo, de um certo preconceito em relação àqueles que

são beneficiários de cotas de modo que às vezes tá tocando num ponto

extremamente importante e que não deve passar ao largo da nossa análise que é o

próprio modelo étnico, como que se estrutura a universidade pública, como que se

discute o modelo gratuito de ensino. O Ministro Fux ressaltava esse aspecto e

alguém não passou ao lado de todas essas análises a partir do voto do Ministro

Lewandowski que há um grave problema aqui, que é o problema do acesso à

universidade pública e como se dá esse acesso; e por isso essas políticas de

compensação ou de ação afirmativa pelo modelo de vestibular. E o modelo de

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vestibular prestigia a quem no nosso sistema que já foi destacado? Por uma ironia do

nosso sistema, os alunos que passaram pelas escolas privadas e que por isso então

estão em condições, talvez, mais adequadas de passar no vestibular. Então veja a

ironia desse modelo e, obviamente que, uma das soluções é a expansão de vagas no

sistema público de ensino.”

11. Ministro Marco Aurélio

Conforme enuncia o Ministro em suas falas, existe uma necessidade de análise

bastante profunda para que não se procedam equívocos de ordem conceitual ou material nesta

seara. Senão vejamos:

“Antes de adentrar no voto propriamente dito, faço três observações: a primeira é que

se estivéssemos na Argentina, não estaríamos a discutir a matéria. Já que o ingresso no

país irmão independe da feitura do vestibular; segunda observação: reconheço a valia

da ação ajuizada, da arguição de descumprimento de preceito fundamental pelo

Democratas (DEM), no que viabilizou a discussão da matéria e a revelação à

sociedade brasileira da compreensão sob o âmbito constitucional da harmonia ou não

dos sistema de cotas com a nossa ordem jurídica. Terceira observação: não posso

deixar de cumprimentar a minha ex-assessora, a ex-Procuradora do Distrito Federal

pela coragem cívica demonstrada. Ninguém, absolutamente ninguém deste país, penso

presumido que normalmente ocorre, é a favor da discriminação racial. Presidente, vou

à quarta observação: ocupava a cadeira que hoje é ocupada por Vossa Excelência

quando tive oportunidade de aceitar um convite que me veio da minha ex-Corte, da

minha eterna Corte, o Tribunal Superior do Trabalho, para falar no seminário

‘Discriminação e sistema legal brasileiro’ tendo sido destacado para essa fala o tema

Ótica constitucional, igualdade e as ações afirmativas. Compareci prazerosamente

para discorrer sobre o tema, fazendo-o com desassombro, conforme aprendi a

proceder nesta passagem finita por aqui. Quando administrava o Tribunal,

coordenando os trabalhos do plenário, introduzi, em licitação verificada em edital, a

necessidade de empresas prestadoras de serviços se obrigarem a apresentar força de

trabalho tendo 30% dessa força reservados aos negros. Presidente, as Constituições

sempre versaram, com maior ou menor largueza sobre o tema da isonomia. Uma carta

de 1824, do Império, apenas se remetia o legislador originário à equidade. Na época,

convivíamos com a escravatura, e o escravo não era sequer considerado gente. Veio a

República, e na Constituição de 1891, previa-se, de forma categórica, que todos

seriam iguais perante a Lei. Mais do que isso, eliminaram-se privilégios decorrentes

do nascimento, desconheceram-se foros de nobreza, extinguiram-se ordens honoríficas

e todas as prerrogativas e regalias a elas inerentes, bem como títulos mobiliárquicos e

de Conselho. Permanecemos, todavia, com uma igualdade simplesmente formal. Na

Constituição de 1934, Constituição Popular, dispôs também que todos seriam iguais

perante a Lei e que não haveria privilégios nem condições por motivo de nascimento,

sexo, raça, profissões próprias ou dos pais, classes sociais, riqueza, crenças religiosas

ou ideais políticos ou ideias políticas. Essa Carta teve uma tênue virtude, revelando-

nos o outro lado da questão: é que a proibição relativa à discriminação mostrou-se

ainda simplesmente simbólica. O discurso oficial, à luz da Carta de 1934 foi o único e

ingênuo, afirmando-se que no território brasileiro inexistia a discriminação. Na

Constituição outorgada de 1937 pelo ditador Getulio Vargas, simplificou-se, talvez

por não se admitir a discriminação, o trato da matéria e proclamou-se simplesmente

que todos seriam iguais perante a lei. Nota-se até este momento um hiato entre o

Direito, proclamado como verdadeira maior, porquanto fixado na Constituição Federal

e a realidade dos fatos. Na progressista Constituição de 1946, reafirmou-se o principio

da igualdade, rechaçando-se preconceitos de raça e classe. Introduziu-se assim, no

cenário jurídico, por uma via indireta, a “lei do silêncio’ inviabilizando-se de uma

forma mais clara, mais incisiva, mais perceptível a repressão do preconceito. Na

vigência dessa Carta, veio à baila a Declaração Universal dos Direitos do Homem em

Dezembro de 1948, proclamou-se em bem som, em bem vernáculo, que todo homem

tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidas nesta Declaração,

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estou transcrevendo, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua,

opinião pública ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza , nascimento

ou qualquer outra condição, encerro aqui a transcrição. Admitiu-se aqui, no âmbito

internacional a verdadeira situação havida no Brasil em relação ao problema.

Percebeu-se a necessidade de se homenagear o princípio da realidade, o dia-a-dia da

vida em sociedade. No Brasil, a primeira lei penal sobre a discriminação surgiu em

1951, graças ao trabalho desenvolvido por dois grandes homens públicos: Afonso

Arinos e Gilberto Freyre. Só então se reconheceu a existência, no País, da

discriminação. Na Constituição de 1967 não se elevou, permaneceu-se na vala da

igualização simplesmente formal, dispondo-se que todos são iguais perante a lei, sem

distinção de sexo, raça, trabalho, credo religioso e convicções políticas. A Convenção

Internacional Sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial,

ratificada pelo Brasil em 26 de Março de 1968 dispôs: “Não serão consideradas

discriminação racial: as medidas especiais que adentrou-se, observo, o campo das

ações afirmativas, da efetividade maior da não-discriminação, continuo, as medidas

especiais tomadas com o único objetivo de assegurar o progresso adequado de certos

grupos raciais ou éticos ou de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser

necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo em exercício de

Direitos Humanos e liberdades. Direitos Humanos e liberdades, no sentido amplo,

fundamentais contanto que tais medidas não conduzam inconsequência. E hoje

observo que ainda estamos muito longe disso. A manutenção de direitos separados

para diferentes grupos raciais e não prossiga após terem sido alcançados os seus

objetivos. Na Constituição de 1969, a Emenda nº 1, que mostrou-se uma verdadeira

Constituição, repetiu-se o texto da Carta imediatamente anterior, proclamando-se, de

forma pedagógica (e o trecho encerra a principiologia), que não seria tolerada a

discriminação. Esse foi o quadro, Presidente, notado pelos constituintes de 88, a

evidenciar, como já afirmado, a igualização simplesmente formal até aqui. Igualdade

que fugia aos parâmetros necessários à correção de rombos. Na atual Constituição,

dita por Ulisses Guimarães cidadã, mas que até hoje a cena se mostra não por

deficiência do respectivo conteúdo, mas pela ausência de vontade política de

implementá-la, adotou-se pela primeira vez um preâmbulo o que é assintomático,

sinalizando uma nova direção. Uma mudança de postura no que revela que,

transcrevo, “Nós”, todos nós e não apenas os constituintes, já que eles agiram em

nosso nome, “representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional

Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício

dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o

desenvolvimento, a igualdade e a justiça como fatores supremos de uma sociedade

fraterna [...] na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das

controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus,” – é o que está no preâmbulo –

“a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.’

Então, a Lei Maior é aberta com um artigo que lhe revela o alcance, constam como

fundamentos da República brasileira a cidadania e a dignidade da pessoa humana e

não nos esqueçamos jamais de que os homens não são feitos para as leis; as leis é que

são feitas para os homens. Do artigo 3º mostrou-se insuficiente ao agasalho de uma

ação afirmativa; à percepção de que a única maneira de corrigir desigualdade é

colocar, de início, o peso da lei com a imperatividade que ela deve ter no mercado

desequilibrado a favor daquele que é discriminado, tratado de modo desigual. Nesse

preceito, são considerados como objetivos fundamentais de nossa República: 1º -

construir – prestem atenção a esse verbo: construir – uma sociedade livre, justa e

solidária; 2º - garantir o desenvolvimento nacional – novamente temos aqui um verbo

a conduzir não à atitude simplesmente prática mas à posição ativa; erradicar a pobreza

e assim reduzir as desigualdades sociais e regionais e, por ultimo, e que me interessa,

promover – ato positivo – promover o bem de todos sem preconceitos de origem, raça,

sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Pode-se dizer sem receio

de equivoco, que se passou de uma igualização, como disse, estática, meramente

negativa no que se previa à discriminação para uma igualização eficaz, dinâmica, já

que os verbos construir, garantir, erradicar e promover implicam mudança de ótica ao

denotar ação. Não basta não discriminar, é preciso viabilizar, e a Carta da República

oferece base para fazê-lo, as mesmas oportunidades. Aditou-se, como pagina virada, o

sistema simplesmente principiológico; a postura deve ser, acima de tudo, afirmativa,

Page 89: RELAÇÕES ETNICORRACIAIS, CONSTITUCIONALISMO E POLÍTICAS AFIRMATIVAS: Desconstituindo mitos e legislando para a justiça social

89

que fim um dado almejam estes dois artigos da Carta Federal senão a transformação

social com o objetivo de erradicar a pobreza, uma das maneiras de discriminação;

visando, acima de tudo, ao bem de todos e não apenas àqueles nascidos em berço de

ouro. No âmbito das relações internacionais, a Constituição de 1988 estabelece que

devem prevalecer as normas concernentes aos Direitos Humanos. Mais do que isso, no

artigo 4º, inciso VII, repudia-se o terrorismo, colocando-se no mesmo patamar o

racismo que é uma forma de terrorismo. Dispõe-se ainda sobre a cooperação a outros

povos para o progresso da humanidade.encontramos princípios, mais do que

princípios, autorizações para uma ação positiva e sabemos que os princípios tem

tríplice função: a informativa junto ao legislador ordinário; a normativa, para

sociedade como um todo e a interpretativa, considerados os operadores do Direito. No

campo dos Direitos e Garantias Fundamentais, deu-se ênfase maior à igualização ao

prever-se na cabeça do artigo 5º da Constituição Federal que ‘todos são iguais perante

a lei, sem distinção de qualquer natureza, assegurando-se aos brasileiros e estrangeiros

residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à

segurança e à propriedade.’ Seguem-se 78 incisos, cabendo destacar o inciso XLI,

segundo o qual ‘a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e

liberdades fundamentais’ e o inciso XLII ao prever que ‘a prática do racismo constitui

crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão nos termos da lei.’ não à

passagem do tempo nem o valor segurança jurídica – estabilidade nas relações

jurídicas suplantam a ênfase dada pelo legislador constituinte de 1988 a esse crime

odioso que é o crime racial. Mais ainda, de acordo com o parágrafo primeiro, do artigo

5º, ‘as normas definidoras dos Direitos e Garantias Fundamentais tem aplicação

imediata’.”

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90

ANÁLISE DE DOCUMENTOS JURÍDICOS

Dados Gerais

Processo: REOMS 2390 MA 2010.37.00.002390-9

Relator(a): DESEMBARGADOR FEDERAL JIRAIR ARAM MEGUERIAN

Julgamento: 08/03/2013

Órgão Julgador: SEXTA TURMA

Publicação: e-DJF1 p.229 de 18/03/2013

Ementa ADMINISTRATIVO. AÇÕES AFIRMATIVAS. SISTEMA DE COTAS PARA NEGROS. NORMA INTERNA DE

SELEÇÃO EM AFRONTA À LEGISLAÇÃO NACIONAL. IMPOSSIBILIDADE. AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA

PRESERVADA. MANUTENÇÃO DO ALUNO NO CURSO DE GRADUAÇÃO.

I - O processo de seleção de estudantes pela via do sistema de cotas integra um conjunto de ações afirmativas

instrumentalizadas para a promoção da igualdade efetiva, respeitando o princípio da isonomia aristotélica em tratar

igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade. Assim, políticas deste jaez buscam

realinhar os meios de acessoe formas de competitividade a fim de assegurar condições para que grupos raciais, sociais ou

étnicos, bem como indivíduos que necessitam da proteção específica do Estado, possam exercer os direitos consagrados

na Constituiçãoda República e nos diversos documentos internacionais dos quais o Brasil é signatário, especialmente a

Convenção Internacional sobre Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, integrada em nosso ordenamento

jurídico pelo Decreto n. 65.810/1969. II - O art. 207 da Constituição Brasileira confere autonomia didático-científica, bem

como administrativa e de gestão financeira e patrimonial às universidades, o que lhes dá o direito de regulamentar seu

funcionamento e editar as regras de acesso ao ensino superior, nos termos da Lei n. 9.394/96. III - Entretanto, referida

autonomia não é absoluta, devendo estar adstrita às normas constitucionais e infralegais, de modo que se a lei nacional veda

tão-somente a ocupação simultânea de 2 (duas) vagas em curso de graduação de instituição superior pública, com vista à

democratização do acesso aquele ensino, não há que se estabelecer, para alunos cotistas, por norma interna, restrição para

aqueles que já concluíram graduação em universidade pública, de maneira a restar lídimo, pelo critério do merecimento, e

consoante as regras do sistema cotista, o direito do impetrante à matrícula no curso de graduação integrante da grade da

UFMA, para o qual foi aprovado pelo sistema seletivo do ENEM 2009. IV - Ademais, deferida a medida liminar desde o

primeiro semestre do ano de 2010, não se revela razoável, ante os esforços e dispêndios empreendidos até então para a

realização da graduação, a exclusão do impetrante do quadro discente da UFMA. V - Remessa oficial a que se nega

provimento.

Acórdão A Turma, por unanimidade, negou provimento à remessa oficial.

Dados Gerais

Processo: AC 5676 MG 2010.38.00.005676-9

Relator(a): DESEMBARGADOR FEDERAL JOÃO BATISTA MOREIRA

Julgamento: 21/09/2011

Órgão Julgador: QUINTA TURMA

Publicação: e-DJF1 p.608 de 30/09/2011

Ementa DIREITO CONSTITUCIONAL. ENSINO SUPERIOR. UNIVERSIDADE FEDERAL. INSTITUIÇÃO, POR

RESOLUÇÃO, DE COTAS PARA NEGROS E ÍNDIOS EGRESSOS DE ESCOLAS PÚBLICAS.

CONSTITUCIONALIDADE.

1. Objetiva-se assegurar pretenso direito a matrícula no curso para o qual o autor concorreu no vestibular de

2010 da Universidade Federa de Minas Gerais, eis que se insurge contra as regras do edital de fls. 29-48, em que

se instituiuPrograma de Bônus para candidatos que tenham cursado em escola pública ou que se autodeclarem

pardos ou pretos.

2. Na medida em que a Administração está, pela própria Constituição, vinculada diretamente a outros princípios

que não só o da legalidade, transparece não ser pela ausência de lei formal, salvo reserva constitucional

específica (não bastando a reserva genérica do art. 5º, II), que deixará de realizar as competências que lhe são

próprias.

3. Se a Constituição dá os fins, implicitamente oferece os meios, segundo o princípio dos poderes implícitos,

concebido por Marshall. Os preceitos constitucionais fundamentais, incluídos os relativos aos direitos

fundamentais sociais, têm eficácia direta e imediata. A constitucionalização da Administração "fornece

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91

fundamento de validade para a prática de atos de aplicação direta e imediata da Constituição, independentemente

da interposição do legislador ordinário" (Luís Roberto Barroso).

4. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil "erradicar a pobreza e a marginalização

e reduzir as desigualdades sociais e regionais" (art. 3º, III, da Constituição). Nesse rumo, os direitos e garantias

expressos na Constituição "não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos

tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte" (art. 5º, § 2º). A Constituição, ao

proteger os direitos decorrentes do regime e dos princípios, "evidentemente consagrou a existência de direitos

fundamentais não-escritos, que podem ser deduzidos, por via de ato interpretativo, com base nos direitos

fundamentais do 'catálogo', bem como no regime e nos princípios fundamentais da nossa Lei Suprema" (Ingo

Wolfgang Sarlet).

5. É o caso da necessidade de discriminação positiva dos negros e índios, cuja desigualdade histórica é óbvia,

dispensando até os dados estatísticos, além de reconhecida expressamente pela Constituição ao dedicar-lhes

capítulos específicos. Não se trata de discriminar com base na raça. A raça é apenas um índice, assim como a

circunstância de estudar em escola pública. O verdadeiro fator de discriminação é a situação social que se

esconde (melhor seria dizer "que se estampa") atrás da raça e da matrícula em escola pública. Há um critério

imediato - a raça - que é apenas meio para alcançar o fator realmente considerado - a inferioridade social.

6. Nas ações afirmativas não é possível ater-se a critérios matemáticos, próprios do Estado liberal, que tem como

valores o individualismo e a igualdade formal. Uma ou outra "injustiça" do ponto de vista individual é

inevitável, devendo ser tolerada em função da finalidade social (e muitas vezes experimental) da política pública.

7. Apelação a que se nega provimento.

Acórdão A Turma, por unanimidade, negou provimento à apelação.

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92

ANÁLISE DOS RESULTADOS DA PESQUISA DE CAMPO

1. Questionário

Abordagem Qualitativa

Dados

sociais

Sexo Cor/Etnia Idade Instituição Cotista Curso Período

Indivíduo

A

Feminino Parda 55

anos

Privada Não

respondeu

Direito 10º

Indivíduo

B

Masculino Branca 37

anos

Privada Não Direito 10º

Indivíduo

C

Masculino Branca 28

anos

Privada Não Direito 10º

Indivíduo

D

Feminino Parda 52

anos

Privada Não Direito 10º

Indivíduo

E

Feminino Caucasiana 33

anos

Privada Não Direito 10º

Indivíduo

F

Feminino Não

respondeu1

23

anos

Pública Não Pedagogia 7º

Indivíduo

G

Feminino Parda 25

anos

Pública Não Letras/

Licenciatura

em Língua

Portuguesa

Análises individuais

Indivíduo A

A Não respondeu

B Não

C Não respondeu

D Não respondeu

E É igual a desigualdade social.

F É o preconceito de frente.

G É a união de preconceito e racismo.

H Não

I Sim, um sistema antediscriminação, sistema igualitário.

J Não respondeu

K Ser gente.

L Não respondeu

M Não respondeu

N Não respondeu

O Igualdade para todos, oportunidades sem olhar raça, cor ou etnia.

Indivíduo B

1 Disse que sentia grande dificuldade na autodeclaração que não sabia se era branca ou se era negra, portanto não

preencheu este tópico.

Page 93: RELAÇÕES ETNICORRACIAIS, CONSTITUCIONALISMO E POLÍTICAS AFIRMATIVAS: Desconstituindo mitos e legislando para a justiça social

93

A São programas que buscam promover oportunidades e outros benefícios para pessoas

pertencentes a grupos específicos, alvo de discriminação.

B Devem existir para determinados grupos e em um período temporário com o propósito

de reduzir as desigualdades, porventura existentes, em um determinado povo.

C Sim. Concordo no sentido de o sistema de cotas ser um passo positivo, entretanto, não é

a principal solução existente.

D Ainda é uma igualdade relativa, apesar de ser um Direito Fundamental, o Estado ainda

não conseguiu alcançar este objetivo de igualar todos à lei.

E É um juízo de valor, pré-concebido, tornando-se numa atitude discriminatória contra as

pessoas, crenças, comportamento, tendências e sentimentos.

F É a convicção que o indivíduo tem sobre a superioridade de algumas raças, com base em

diferentes motivações, em especial as características físicas e outros traços do

comportamento humano.

G É o ato de considerar que certas características que uma pessoa tem são motivos para

que sejam vedados direitos que os outros tem.

H Sim.

I Sim. Entretanto, neste caso, a implantação de cotas acho que busca reduzir a

desigualdade existente.

J É um sistema de gestão que considera o mérito como aptidão, a razão principal para se

atingir posição de topo. O sistema meritocrático sem dúvida é o mais justo, no entanto, a

política de cotas se faz necessária no sistema atual.

K Os negros no Brasil ainda são vítimas de uma herança histórica advinda da escravidão.

A maior parte dos considerados de raça negra fazem parte da maioria da população de

baixa renda onde residem os piores indicadores sociais.

L Primeiro, acredito em uma educação publica de qualidade; segundo oferecimento de

oportunidades de emprego através do fortalecimento dos setores primário, secundário e

terciário.

M Não. As leis são um ponto positivo no sentido de levar ao conhecimento de todos o

porquê das desigualdades vistas hoje em relação a estas raças, mas outras políticas de

inclusão devem ser levadas em conta.

N Verdade é uma tentativa, entretanto é apenas uma lei. não vai mudar séculos de

distorção em relação a raça negra, indígena, etc.

O Sim. Entretanto com o parâmetro utilizado para de definir a qual raça pertencemos está

distante da realidade.

Indivíduo C

A É um meio de proteção da classe historicamente perseguida.

B Sim, existe uma sociedade dentro de outra sociedade no Brasil, onde a própria cultura

discrimina, o acesso aos direitos fundamentais destes cidadões. São os chamados de co-

cidadões.

C É um passo positivo no sentido de promover a inclusão de populações desfavoráveis.

D É verdade, se todos são iguais não pode haver um abismo entre cidadões e os co-

cidadões.

E É um ato de rejeição social de um indivíduo.

F É um ato de rejeitar uma raça/etnia.

G É um ato de transformar um indivíduo em criminoso por pura ideologia que contraria o

meio social.

H Sim, eles são discriminados, não alcançam postos sociais de prestígio.

Page 94: RELAÇÕES ETNICORRACIAIS, CONSTITUCIONALISMO E POLÍTICAS AFIRMATIVAS: Desconstituindo mitos e legislando para a justiça social

94

I Não, ele garante o acesso, e não regalias legais que possam privilegiar o cotista.

J Meritocracia é o ato de um cidadão colher frutos pelo seu próprio esforço, descrimina

os cotistas.

K Em suma, delimita claramente a cor “preta” como raça como estipado na cultura

brasileira.

L Não existe esta possibilidade, do contrário apenas atos governamentais para proteção

desses indivíduos.

M O povo brasileiro rejeita seu próprio povo, sua origem. O povo brasileiro origina-se dos

índios e dos negros.

N É um marco social de políticas públicas que estabelece ao menos um mínimo de

proteção.

O Sou a favor plenamente das cotas, não existe igualdade no Brasil.

Indivíduo D

A É uma garantia para pessoas que sofrem preconceito.

B Acredito que sim, antes eu acreditava que o fato de se estipular cotas já era um tipo de

preconceito, hoje eu vejo como um direito.

C Constitui um passo emportantíssimo que é promover a inclusão dos menos favorecidos,

isso é muito positivo.

D É verdadeira, mas não se pode negar que na vida a história é outra, não deveria haver

desigualdade mas na prática existe a começar pela desigualdade social.

E É a forma de menosprezar o outro.

F É a forma de rejeição com relação a raça/etnia.

G É um tipo de preconceito, é diminuir o outro.

H Existe para alguns, pessoas a roupa, a cor, resumindo a aparência traduz o que a pessoa

é, o que não tem nada haver tem tanta gente que bem afeiçoada que na verdade é

trapaceiro e vive de enganar os outros.

I Creio que não, é apenas uma questão social.

J A meritocracia nada mais é que o esforço, dedicação do indivíduo para com seu labor,

apenas uma limitação.

K Um negro é igual a qualquer cidadão seja qual for a cor da pele dele, mas infelizmente

ainda existe muito racismo em relação ao negro no Brasil, isso já foi muito pior mas

hoje está mais moderado.

L Como foi dito, anteriormente já foi muito pior, talvez ainda exista resistência

exatamente por causa do escravismo vivido por negros e também as origens faz com

que o próprio negro se sinta diferente.

M É importante estudar sobre a história, sobre a cultura de outras raças não vejo isso como

ligação ao negro tão pouco uma promoção de igualdade racial, enquanto se der ênfase a

questão da pele negra haverá discriminação isso é tão natural ser branco, pardo ou

negro, já que se fala em igualdade ela se dá simplesmente com o convívio a cor da pele

é apenas um detalhe.

N Responde a M e N (juntas) ver acima.

O Sou a favor, pois assim é assegurado o direito aos que tem necessitam e encontram

dificuldades.

Indivíduo E

Page 95: RELAÇÕES ETNICORRACIAIS, CONSTITUCIONALISMO E POLÍTICAS AFIRMATIVAS: Desconstituindo mitos e legislando para a justiça social

95

A É o quantitativo de cotas oficializada pelo governo para beneficiar a raça

afrodescendente.

B Não. Porque o sistema de cotas não estar havendo devido igualdade entre a raça branca

e a raça afrodescendente.

C Constituem um obstáculo para ao ingresso do não cotista que no caso seria a raça

branca.

D Verdadeira. Assim, a raça branca e os afrodescendente devem ser tratados com

igualdade de condições.

E Preconceito é um juízo preconcebido que manifesta numa atitude discriminatória,

perante pessoas, crianças, sentimentos e tendências de comportamento.

F O racismo consiste em crer que certas pessoas com base em características físicas como

a cor de pele e o aspecto de cabelo.

G Discriminação é o ato de considerar que certas características que uma pessoa tem são

motivos para que sejam vedados direitos que outros têm. É considerar que a diferença

implica diferentes direitos.

H Infelizmente ainda existe.

I Sim. Porque os brancos pobres vão se sentir descriminados pelo fato de não ter a

mesma.

J Oportunidade de igualdade, portanto, que tem mérito.

K Não respondeu

L Sim. Através de estudo e trabalho digno que as leis de hoje para o trabalhador é para

todas as raças.

M Não respondeu

N Apenas uma tentativa para diminuir a desigualdade social.

O Contra. Porque não estar havendo a mesma oportunidade para raça branca pobre.

Indivíduo F

A Políticas que visam diminuir a disparidade de desigualdades por cor/raça/etnia na

ocupação dos diversos espaços da sociedade.

B É histórica e real a segregação a qual (negros especificamente) grupos foram

submetidos dentro da sociedade brasileira por conta de cor/raça/etnia. Creio que essas

cotas devem existir nesse sentido para minorar as diferenças no acesso de

oportunidades. No entanto, em se tratando de Brasil, creio que seria justo que ela

também fosse atrelada a renda do cotista. Digo renda para seleção efetiva no sistema de

cotas.

C Creio que ambos. A medida que inclui essas populações desfavorecidas, diante de um

sistema educacional por exemplo, que não oferta amplas vagas a todos ela acaba

também por diminuir espaços para os não cotistas. E talvez seja esse o maior motivo de

não aceitação das cotas.

D Relativa. Pelo menos na prática é o que vimos. A depender de poder econômico, status

social, cor/raça/etnia, sexo, ligar, etc.

E É um pré julgamento que fazemos em cima de algo que não conhecemos ou de que

temos apenas conhecimento superficial. Esse julgamento é de cunho negativo.

F É o preconceito em ação diante do fator cor/raça/etnia com base na crença de que um

grupo racial é superior a outro.

G Discriminação é o ato (ação) de diferenciar, distinguir por alguma característica.

H Provavelmente sim.

I Não. Tenho uma opinião concluída quanto a isso. Mas creio que isso aconteceria diante

Page 96: RELAÇÕES ETNICORRACIAIS, CONSTITUCIONALISMO E POLÍTICAS AFIRMATIVAS: Desconstituindo mitos e legislando para a justiça social

96

da disseminação da ideia de que o cotista estaria tirando o lugar do não-cotista. Da cota

como um privilégio.

J Meritocracia é a ideologia de que se faz por ser merecedor. De que pelo esforço

conquistamos algo e é nosso mérito. Creio que a política afirmativa de cotas quebra

com essa lógica ao demonstrar/argumentar a necessidade de cotas para reparar uma

desigualdade, uma exclusão histórica.

K Enfrentar ainda preconceito e racismo. Significa também mais do que a cor da pele,mas

também o entendimento de que a miscigenação no país superou o quesito pele

(fenotípico).

L 1 – Educação que busque demonstrar/combater os resquícios da sociedade e das

estruturas sociais escravistas.

2 – Políticas afirmativas.

M Sim. São leis atuais e em consonância com princípios da democracia e respeito à

diversidade. A questão é que apenas elas existirem não dá conta de transformar

mentalidades. É preciso que elas sejam efetivamente praticadas e entendidas nas

escolas.

N Sim. Mas como as leis 20.639 e 11.645 desde que seja efetivamente cumprida.

O Sim. Mas creio que é importante junto a ela considerar também o fator econômico.

Ainda assim me ponho favorável por reconhecer as disparidades históricas que

envolvem cor/raça/etnia.

Indivíduo G

A Não muito, mas ultimamente mudei um pouco de posicionamento em relação a elas. O

país têm uma dívida tanto com a raça negra quanto com os alunos de escola pública,

cada um pelos seus motivos.

B Acredito que sim, pois sabe-se que ainda há muitos obstáculos para a entrada dos

negros na sociedade, que por vezes são vistos como dignos apenas de posições

inferiores, como uma nova escravidão cometida pelo preconceito e o racismo.

C Acho que é um passo positivo, sim, pois realmente os insere de forma mais justa num

espaço que seria mais limitado, pelo fato de a maioria deles ser de classe social mais

baixa, e por isso mesmo, uma educação de menor qualidade.

D É falsa, pois até mesmo os próprios cidadãos e a justiça julgam as pessoas de maneira

diferenciada, e por vezes pela “boa aparência”.

E É toda forma de repudiar algo sem conhecer e entender de fato.

F Preconceito com alguém de uma raça diferente, considerada inferior.

G Fazer distinção de alguém ou algum grupo, tentar deixá-lo à parte da sociedade.

H Sim, o racismo está enraizado em quase qualquer instituição. Claro que não se pode

generalizar quanto às pessoas que o praticam, mas é muito comum.

I Acho que sim, inclusive rolam comentários sarcásticos sobre quem entra por cotas. Mas

eu não concordo com isso.

J Defendem que subestima-se o negro de passar sem as cotas, além do que um branco

pode ser mais pobre que o negro e ainda assim conquistar a sua vaga pelo mérito, pelo

esforço. Era isso que eu também defendia quando era contra as cotas. Mas a questão é

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97

bem mais complexa que isso. Difícil cobrar mérito daquele que não tem sequer as

oportunidades de conquistá-los.

K Um grande desafio.

L Não sei se saberei citar as possibilidades, mas antes de tudo, temos que realmente tentar

superar os preconceitos que temos (todos tem ao menos resquícios de racismo, assim

que fomos criados) para chegar a pensar em todos como iguais. E as cotas também são

de grande ajuda para que, na prática, se chegue a essa igualdade.

M Desde que seguidas pelas instituições, são um passo dado sim.

N Enquanto não se tiver a noção de igualdade, é apenas uma tentativa.

O Sim, pois ainda há um grande caminho até conquistar a igualdade entre as raças, e as

cotas ajudam a inserir mais negros na universidade.

Comentários

Depreendeu-se do transcrito acima que, em vias gerais, houve uma série de elementos

que, decerto, faziam parte de uma ideologia que mesclava elementos do tradicionalismo

burguês e a própria prática da transformação, exigindo uma postura que visa-se a modificar a

situação que os sujeitos beneficiários das cotas sofreriam, divergindo, em parte sobre a

efetividade das políticas quanto aos critérios, restou, em absoluto a necessidade de modificar

as estruturas sociais patológicas de segregação e estimular uma postura que vise a dar

efetividade à política de promoção da igualdade entre os seres humanos que, antes de tudo,

deve ser mais que política, estando no rol das atribuições do condão da Lei.

Abordagem Quantitativa

Gráficos

0

0,2

0,4

0,6

0,8

1

1,2

1,4

1,6

1,8

2

Positivo Negativo

2

0

1

0 0

1 1

0 0 0 0 0

1 1

Relação entre posicionamento e idade dos

participantes da pesquisa

17 a 25 anos (1)

26 a 30 anos (1)

31 a 35 anos (1)

36 a 40 anos (1)

41 a 46 anos (0)

47 a 50 anos (0)

51 anos ou mais (2)

Page 98: RELAÇÕES ETNICORRACIAIS, CONSTITUCIONALISMO E POLÍTICAS AFIRMATIVAS: Desconstituindo mitos e legislando para a justiça social

98

0

0,5

1

1,5

2

2,5

3

Pertencimento etnicorracial

3

0

3

0 0

1

Do pertencimento etnicorracial dos sujeitos

dos questionários

Branco

Preto

Pardo

Vermelho

Amarelo

Não respondido

5

71%

2

29%

Posicionamento dos questionários quanto às

cotas etnicorraciais

A favor

Contra

Page 99: RELAÇÕES ETNICORRACIAIS, CONSTITUCIONALISMO E POLÍTICAS AFIRMATIVAS: Desconstituindo mitos e legislando para a justiça social

99

2. Entrevistas

Foram realizadas entrevistas com 05 (cinco) professores, para que esta pesquisa

pudesse se materializar, perspectiva que demandou tempo e requereu dos entrevistados o

acesso a diversos saberes sobre o tema aqui exposto. Diante deste ponto de vista, assim se

posicionaram os entrevistados:

Abordagem Qualitativa

2.1. Professor Ronildo Oliveira dos Nascimento

Dados pessoais

Nome: Ronildo Oliveira dos Nascimento

Sexo: Masculino Cor/Etnia: Negra Idade: 51 anos

Dados acadêmicos

Formação inicial: Licenciatura em Física pela UFPE. Possui Especialização. Não se encontra

exercendo, inclusive função de gestão escolar/coordenação pedagógica/assessoria pedagógica.

Dados profissionais

Análise das respostas

2

5

Rede de ensino

Pública

Particular/Privada

Page 100: RELAÇÕES ETNICORRACIAIS, CONSTITUCIONALISMO E POLÍTICAS AFIRMATIVAS: Desconstituindo mitos e legislando para a justiça social

100

A Entende-se por políticas afirmativas o conjunto de medidas voltadas a grupos

discriminados e vitimados pela exclusão social ocorridos no passado ou no presente. O

objetivo das ações afirmativas é eliminar as desigualdades e segregações, de forma que

não se mantenham grupos elitizados e grupos marginalizados na sociedade, ou seja,

busca-se uma composição diversificada onde não haja o predomínio de raças, etnias,

religiões, gênero, etc.

B Para o antropólogo Kabengele Munanga, professor titular da Faculdade de Filosofia,

Letras e Ciências Humanas da USP, não é fácil definir quem é negro no Brasil. Ele

classifica a questão como “problemática”, sobretudo quando se discutem políticas de

ação afirmativa. Negro no Brasil está relacionado com o reconhecimento da identidade

negra nas suas múltiplas dimensões e configurações.

C O questionamento formulado pode ser respondido através de dos dados estatísticos:

No Brasil, 51% da população são formados. Os negros representam 20% dos brasileiros

que ganham mais de 10 salários mínimos; representam 20% dos brasileiros que chegam

a fazer pós-graduação; 13% dos negros com idade a partir de 15 anos ainda são

analfabetos; negros são 75% das vítimas de assassinato. Percebe-se que o negro ainda

amarga uma discriminação, sendo necessária uma formação profissional para a sua

libertação.

D De acordo com o artigo 5º, parágrafo 1º, da Lei 12.288 (Estatuto da Igualdade Racial):

“Os programas de ação afirmativa constituir-se-ão em imediatas iniciativas reparatórias,

destinadas a iniciar a correção das distorções e desigualdades raciais derivadas da

escravidão e demais práticas discriminatórias racialmente adotadas, na esfera pública e

na esfera privada, durante o processo de formação social do Brasil e poderão utilizar-se

da estipulação de cotas para a consecução de seus objetivos”. Desta forma, as cotas são

um instrumento de ação afirmativa, que tem por objetivo corrigir as distorções e

discriminações raciais, são ações reparadoras.

E Verifica-se que os países se desenvolveram através da educação do seu povo, seja com

um curso técnico ou superior, ou seja, quanto mais instruído for o cidadão, mais

desenvolvido é o País. Sendo assim, a inserção dos negros nas universidades, nas

escolas técnicas e no serviço público, movimentará a engrenagem da economia,

diminuindo as desigualdades sociais.

F A questão poderá ser confrontada com a matéria publicada na revista IstoÉ, na edição nº

2.264, com o tema: Porque as cotas raciais deram certo no Brasil. Os autores

Page 101: RELAÇÕES ETNICORRACIAIS, CONSTITUCIONALISMO E POLÍTICAS AFIRMATIVAS: Desconstituindo mitos e legislando para a justiça social

101

comprovam que: “Segundo os dados do Sistema de Seleção Unificada, a nota de corte

para os candidatos convencionais à vaga de Medicina nas federais foi de 787,56

pontos.Para os cotistas foi de 761,67 pontos. A diferença entre eles, portanto, ficou

próxima de 3%.” E ainda acrescenta o entrevistado: “Na UERJ analisou as notas dos

seus alunos durante 5 anos. Os negros tiraram, em média, 6,41. Já os não-cotistas

marcaram 6,7 pontos”.

In fine, conclui: Meritocracia ou falta de oportunidade?

G No cotidiano, percebe-se que a igualdade posta no artigo 5º da Constituição corresponde

a um objetivo a ser alcançado pelos governos, pois, a desigualdade social, econômica, de

acesso, de direitos e deveres, é notória na vida da população, principalmente, da

população negra, através da história, desde a “abolição da escravatura”.

H Em médio prazo, deveria ter medidas jurídicas mais eficazes. Em longo prazo, só

através da educação às crianças.

I Sim, na formação continuada de matemática, através do FERERJ (Fórum Permanente de

Educação e Diversidade Etnicorracial de Jaboatão dos Guararapes) e um curso através

da Cor da Cultura.

J Sou a favor, por causa das desigualdades sociais e discriminação racial. Ou seja,

segundo o IPEA, 64% da população pobre são negras; 69% dos indigentes, são negros;

33 milhões de negros vivem em condições de pobreza e mais de 15 milhões vivem em

condições de miséria absoluta.

2.2. Professora Noélia Carolina Silva de Melo

Dados pessoais

Nome: Noélia Carolina Silva de Melo

Sexo: Feminino Cor/Etnia: Negra Idade: 22 anos

Dados acadêmicos

Formação inicial: Licenciatura em Pedagogia pela UFRPE

Dados profissionais

Leciona em escola particular há 04 (quatro) anos. Exercendo, inclusive função de gestão

escolar/coordenação pedagógica/assessoria pedagógica.

Page 102: RELAÇÕES ETNICORRACIAIS, CONSTITUCIONALISMO E POLÍTICAS AFIRMATIVAS: Desconstituindo mitos e legislando para a justiça social

102

Análise das respostas

A Políticas afirmativas, em minha opinião, são ações que servem para reparar danos e

incongruências sociais historicamente constituídas.

B Não devemos. Cada indivíduo deve se reconhecer como tal ou não. Obviamente, no

Brasil os sujeitos que apresentam traços fenotípicos específicos (exemplo: cor da pele

mais escura, cabelos cacheados ou crespos, entre outros) são normalmente denominados

de negro.

C Infelizmente, as negras e negros ainda ocupam um lugar de exclusão na sociedade

brasileira. Apesar dos avanços que a sociedade vem alcançando, no sentido de garantir

condições iguais para os indivíduos de diferentes etnias, o ranço histórico dos processos

de exclusão da população negra ainda se faz presente.

D Uma política afirmativa, apesar de visar diminuir certos danos aos remanescentes de

grupos discriminados, não reparará o que aconteceu no passado. Diante disto, a minha

concepção se aproxima do terceiro item (programa balizador a luz da lei 12.288). E Acredito que sim, para que a sociedade real brasileira esteja representada nas

universidades, nos empregos públicos e onde mais for necessário.

F A meritocracia, neste cenário, vem desassociada de uma análise social mais ampla, que

considere também, as condições diferenciadas de acesso à Educação Básica, assim como

também a diversidade dos sujeitos e conhecimentos presentes naquele espaço. Existe

uma cultura acadêmica, que privilegia os sujeitos inseridos na chamada “cultura

acadêmica” e que, ao analisarmos o histórico de tal processo, perceberemos que se trata

de um grupo muito reduzido, a chamada “elite financeira”.

G Na prática ainda não ocorre, mas acredito que é um objetivo a ser buscado sempre.

H A Educação. Educar, desde cedo, para as diversidades. Aliado a isso, as políticas

afirmativas.

I Sim. O curso, de forma geral, trabalha sob tal perspectiva. Tive também uma disciplina

específica sobre Educação Afro-brasileira.

J Sou favorável, pois tais políticas ainda são necessárias.

2.3. Professora Maria da Solidade de Menezes Cordeiro

Dados pessoais

Nome: Maria da Solidade de Menezes Cordeiro

Sexo: Feminino Cor/Etnia: Parda Idade: 55 anos

Dados acadêmicos

Formação inicial: Licenciatura em Pedagogia pela Faculdade de Filosofia de Caruaru. Possui

Especialização e, atualmente, encontra-se no Mestrado.

Dados profissionais

Leciona em escolas particulares e públicas há 34 (trinta e quatro) anos. Exercendo, inclusive

função de gestão escolar/coordenação pedagógica/assessoria pedagógica.

Page 103: RELAÇÕES ETNICORRACIAIS, CONSTITUCIONALISMO E POLÍTICAS AFIRMATIVAS: Desconstituindo mitos e legislando para a justiça social

103

Análise das respostas

A Elas têm a função de corrigir, resgatar ou restaurar classes sociais a partir da ingerência

dos Direitos Humanos em nossa sociedade.

B Pra mim, é complexo dizer quem realmente é negro no Brasil, devido à miscigenação.

Mas temos negros, sim, principalmente aqueles que vêm de uma ascendência de negros

africanos por parte de pai e mãe.

C A sociedade brasileira ainda discrimina o negro no Brasil por diversas concepções e

ações equivocadas, mesmo com todos os direitos que a Carta Magna nos garante para

todos os cidadãos e cidadãs, independente de etnia, credo ou classe social.

D Em parte, sou a favor das cotas, mas não efetivamente. Fazer justiça com os erros da

história para com os negros, ai sim, sou a favor. Mas, ao mesmo tempo, discordo que

estas cotas permaneçam por muito tempo pois a sociedade deve oportunizar aos negros,

aos índios, aos povos, enfim, o direito de exercer atividades públicas, direito do povo,

sem discriminação.

E Importância existe, sim. Porém, a abrangência dos negros no mercado de trabalho com

valorização e qualificação da mão-de-obra, ainda não.

F As leis devem ser cumpridas no âmbito das instituições, sem qualquer fiscalização. Sem

quaisquer rechaçamento por parte de quem as devem cumprir. Os beneficiados, por sua

vez, devem exigir os seus direitos no rigor da lei.

G Atualmente, essa igualdade, perante os negros, por exemplo, ainda está acontecendo de

forma (por uma minoria), pelas lutas dos grupos organizados que se mantém firmes e

fortes em exigir os direitos que lhes são devidos. Mas, na sociedade brasileira, em geral,

o racismo continua muito forte e resistente, tomando por base uma desconsideração aos

Direitos Humanos, porque para mim, raça só existe uma: a raça humana.

H Uma das maneiras de se lutar contra isso, é da própria sociedade civil, politizar-se e

participar de Fóruns etnicorraciais, eleger representantes negro atuantes da luta contra a

discriminação e segregação; exigir seus direitos com firmeza, utilizando-se das leis e

defesas daqueles mais fragilizados que não possuem ideais de luta, enfim, mobilizar-se

sempre em favor da causa.

I Só a partir de 2003 que obtive informações da Lei Federal 10.639/03 com sua resolução

do CNE/CEB, em capacitações sobre Direitos Humanos, com estudo da legislação, além

de seminários, Fóruns e exigência do cumprimento da mesma, no âmbito do ensino

fundamental (por ser inspetora escolar) das escolas da nossa rede municipal de ensino.

J Como já afirmei anteriormente, em parte sou a favor das cotas etnicorraciais, mas não

efetivamente. Eu creio que haverá um tempo que o Homem, despido de qualquer

natureza discriminativa, respeitará o negro, o índio, o quilombola, o estrangeiro, o

cigano, o pobre, o encarcerado, os órfãos, os idosos, os doentes, etc.

A partir da constatação que discursar sobre sociedade justa e igualitária não basta.os

líderes sociais, deverão agir para o combate a qualquer tipo de discriminação e o povo

participando das tomadas de decisões com direito a voz, voto e à democracia, sendo

respeitada em favor daqueles que são injustiçados neste País.

2.4. Professora Sônia Maria Chaves Correia

Dados pessoais

Nome: Sônia Maria Chaves Correia

Page 104: RELAÇÕES ETNICORRACIAIS, CONSTITUCIONALISMO E POLÍTICAS AFIRMATIVAS: Desconstituindo mitos e legislando para a justiça social

104

Sexo: Feminino Cor/Etnia: Branca Idade: 70 anos

Dados acadêmicos

Formação inicial Licenciatura em História pela UFPE.

Dados profissionais

Lecionou em escolas da rede pública de ensino e atualmente é aposentada. Faz parte do

Conselho Municipal de Educação do Município de Jaboatão dos Guararapes.

Análise das respostas

A São um conjunto de políticas e ações públicas ou privadas, que tem o objetivo de

corrigir desigualdades sociais e raciais historicamente acumuladas, garantindo a

igualdade de oportunidade e de tratamento.

B Trata-se de uma questão problemática, uma vez que os estudos de genética por meio da

biologia molecular mostram que muitos brasileiros aparentemente brancos trazem

marcadores genéticos africanos. No Brasil desenvolveu-se o desejo de branqueamento,

definir-se como afrodescendente é uma decisão política.

C A sociedade brasileira evolui muito lentamente, atualmente observa-se que a presença

de negros em posições de comando é muito reduzida, em empresas públicas ou privadas,

o fato de que o trabalho do negro tenha sido desde o início da história econômica

essencial à manutenção do bem-estar das classes dominantes gerou a perpetuação de

uma ética conservadora e desigualitária que permanece até os dias atuais.

D A partir da Lei 12.288, Estatuto da Igualdade Racial, a política de cotas qualifica e

instrumentaliza as ações que visam eliminar as desigualdades, dando ensejo ao princípio

constitucional da isonomia. A igualdade deixa de ser um princípio jurídico a ser

respeitado por todos e passa a ser um princípio constitucional.

E O desenvolvimento do país precisa cada vez mais de atualização nos diversos campos do

conhecimento, a política de cotas ao possibilitar a qualificação desse contingente

populacional historicamente discriminado influirá no avanço socioeconômico brasileiro.

F A meritocracia está na base da ideologia conservadora da sociedade brasileira, substitui

a racionalidade baseada nos valores, nos fins pela racionalidade instrumental que se

baseia na adequação dos meios aos resultados esperados, estudantes não estudam para

aprender e sim para passar de ano, professores produzem intelectualmente apenas para

serem bem ranqueados. Assim a universidade reproduz o pensamento da sociedade

brasileira com raras exceções.

G A Constituição de 1988 é um marco contra a discriminação, entretanto a legislação

sozinha não é capaz de modificar o cenário de desigualdade e discriminação, mas

constitui um importante passo para definir políticas públicas no enfrentamento da

questão. O princípio da igualdade passou a fazer parte das agendas governamentais de

maneira mais clara.

H Em primeiro lugar a escola, sem dúvida é a instância por excelência na desconstrução da

discriminação, pautando os projetos políticos pedagógicos vivenciados no cotidiano. Em

segundo a instituição de Fóruns etnicorraciais, constituem núcleo de estudo e discussão

permanente que podem articular as políticas públicas mobilizando os diversos setores da

sociedade.

Page 105: RELAÇÕES ETNICORRACIAIS, CONSTITUCIONALISMO E POLÍTICAS AFIRMATIVAS: Desconstituindo mitos e legislando para a justiça social

105

I Não participo de formação, estou aposentada.

J Sou a favor porque possibilita uma correção da distorção histórica discriminatória desta

parcela da população, modificando o perfil dessa Universidade.

2.5. Maria de Fática Gomes Couto

Dados pessoais

Nome: Maria de Fática Gomes Couto

Sexo: Feminino Cor/Etnia: Parda Idade: 47

Dados acadêmicos

Formação inicial Licenciatura em Letras pela UNICAP

Dados profissionais

Análise das respostas

A São um conjunto de políticas e ações públicas ou privadas, que tem o objetivo de

corrigir desigualdades sociais e raciais historicamente acumuladas, garantindo a

igualdade de oportunidade e de tratamento.

B Trata-se de uma questão problemática, uma vez que os estudos de genética por meio da

biologia molecular mostram que muitos brasileiros aparentemente brancos trazem

marcadores genéticos africanos. No Brasil desenvolveu-se o desejo de branqueamento,

definir-se como afrodescendente é uma decisão política.

C A sociedade brasileira evolui muito lentamente, atualmente observa-se que a presença

de negros em posições de comando é muito reduzida, em empresas públicas ou privadas,

o fato de que o trabalho do negro tenha sido desde o início da história econômica

essencial à manutenção do bem-estar das classes dominantes gerou a perpetuação de

uma ética conservadora e desigualitária que permanece até os dias atuais.

D A partir da Lei 12.288, Estatuto da Igualdade Racial, a política de cotas qualifica e

instrumentaliza as ações que visam eliminar as desigualdades, dando ensejo ao princípio

constitucional da isonomia. A igualdade deixa de ser um princípio jurídico a ser

respeitado por todos e passa a ser um princípio constitucional.

E O desenvolvimento do país precisa cada vez mais de atualização nos diversos campos do

conhecimento, a política de cotas ao possibilitar a qualificação desse contingente

populacional historicamente discriminado influirá no avanço socioeconômico brasileiro.

F A meritocracia está na base da ideologia conservadora da sociedade brasileira, substitui

a racionalidade baseada nos valores, nos fins pela racionalidade instrumental que se

baseia na adequação dos meios aos resultados esperados, estudantes não estudam para

aprender e sim para passar de ano, professores produzem intelectualmente apenas para

serem bem ranqueados. Assim a universidade reproduz o pensamento da sociedade

brasileira com raras exceções.

G A Constituição de 1988 é um marco contra a discriminação, entretanto a legislação

sozinha não é capaz de modificar o cenário de desigualdade e discriminação, mas

constitui um importante passo para definir políticas públicas no enfrentamento da

Page 106: RELAÇÕES ETNICORRACIAIS, CONSTITUCIONALISMO E POLÍTICAS AFIRMATIVAS: Desconstituindo mitos e legislando para a justiça social

106

questão. O princípio da igualdade passou a fazer parte das agendas governamentais de

maneira mais clara.

H Em primeiro lugar a escola, sem dúvida é a instância por excelência na desconstrução da

discriminação, pautando os projetos políticos pedagógicos vivenciados no cotidiano. Em

segundo a instituição de Fóruns etnicorraciais, constituem núcleo de estudo e discussão

permanente que podem articular as políticas públicas mobilizando os diversos setores da

sociedade.

I Não participo de formação, estou aposentada.

J Sou a favor porque possibilita uma correção da distorção histórica discriminatória desta

parcela da população, modificando o perfil dessa Universidade.

Comentários

Pode-se observar, das entrevistas, em geral, um discurso em que os professores

compactuam com a ideologia pretendida pelas cotas, enquanto gênero de promoção da

igualdade material, mas que divergem em alguns pontos quanto à sua efetividade ou quanto à

sua perspectiva libertadora, por exemplo. Isto se dá pela multiplicidade de conceitos e eventos

vinculados à temática que, como também foi objeto de análise, se inter-relacionam com uma

infinidade de outros fatores, quais sejam as estruturas da economia, da política e das relações

sociais do sujeito beneficiário das cotas em seus diversos meios de vivência em busca de

adentrar nos diversos espaços de poder que lhes eram anteriormente negados.

Abordagem Quantitativa

Gráficos

0

0,5

1

1,5

2

2,5

3

Positivo Negativo

1

0 0 0 0 0 0 0 0 0

1

0

3

0

Relação entre posicionamento e idade dos

participantes da pesquisa

20 a 25 anos (1)

26 a 30 anos (1)

31 a 35 anos (1)

36 a 40 anos (1)

41 a 46 anos (0)

47 a 50 anos (0)

51 anos ou mais (2)

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107

0

0,5

1

1,5

2

2,5

3

Pertencimento etnicorracial

1 1

3

0 0 0

Do pertencimento etnicorracial dos sujeitos

dos questionários

Branco

Negro

Pardo

Vermelho

Amarelo

Não respondido

5

100%

0

0%

Posicionamento dos entrevistados quanto às

cotas etnicorraciais

A favor

Contra

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108

2

2 O valor absoluto extrapola a quantidade de entrevistados porque, em atividades de docência existe a

possibilidade de ensinar em mais de uma escola, em mais de uma rede de ensino.

4

2

Rede de ensino em que desempenham (ou

desempenharam) funções de magistério

Pública

Particular/Privada

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109

CONSIDERAÇÕES FINAIS

De imensa importância é a consideração das políticas afirmativas de cotas para a

população negra e aos afrodescendentes uma vez que permite o empoderamento das

populações alijadas no sentido de tornar factual o princípio constitucional da igualdade, em

conformidade com a proporcionalidade histórica há muito agravadas pelas leis e pela

mentalidade eugenista do século XIX em dividir quase em apartação, um quase-Apartheid à

brasileira, que impossibilitou (e ainda permanece, embora em nível mais ameno) por vários

anos o acesso das populações em condição de vulnerabilidade aos espaços sociais de poder.

É preciso sair da posição histórica de subalternidade imposta pelos anos de escravismo

e adotarmos uma postura mais arrojada no sentido de promover, de fato, a igualdade que tanto

tem sido levantada ainda que de maneira errônea. Contudo, o que se busca intentar não é um

discurso de ódio, uma inversão de sujeitos e permanência de valores; isto porque o que se

busca ao final é que tenhamos uma percepção diferenciada e não polarizada de ações

afirmativas que possa contemplar à integralidade e não apenas a alguns grupos mas que, como

se pretende com sua criação, evidencie positivamente determinados grupos que vieram

historicamente sendo alijados e socialmente invisibilizados.

As cotas constituem uma modalidade de enfrentamento às discriminações negativas e,

mesmo não constituindo a única ou sendo tomada como “tabua de salvação”, é um marco

importante para a nossa realidade, em que o sistema legiferante é extremamente moroso,

economicamente ineficaz e socialmente desqualificado. É de imensa valia que além das

políticas universitárias de cotas, as políticas sociais em saúde, educação, segurança pública

(áreas tão essenciais e esquecidas pelos legisladores), sejam de fato exercidas com precisão,

permitindo o mínimo de dignidade aos seres humanos independente de raça, cor, gênero,

origem, ou quaisquer outras categorias de diferenciação em sentido depreciativo.

Legislar sim, para uma coletividade real e não para uma parcela de indivíduos

detentores de um grande poderio econômico, deixando à míngua toda a população de

indivíduos que encontram-se piramidalmente em situação diversa daquela convencionada

como ideal. Entenda-se que este estudo não busca a encerrar a discussão, mas tão somente

servir de ponto de partida para tantos outros quanto necessários para que se siga, afinal de

contas, o direito não é uma ferramenta de uso único, mas uma estratégia de resolução de

conflitos que, em largos passos caminha de mãos dadas com a argumentação.

A chave hermenêutica é, além do conhecimento das leis, o conhecimento de mundo;

isto é, a visão que fazemos sobre determinados agentes, determinados assuntos e quais são as

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110

nossas atitudes frente às situações que nos são trazidas. Investigar esta realidade polinuclear,

diversa e não polarizada é essencial à desconstituição da intolerância e ao preconceito ainda

tão presente em nossa sociedade.

Da pesquisa de campo pode-se perceber a existência ainda muito presente da

polarização de posturas quanto às cotas, ora endeusando-as, ora demonizando-a, isto porque

os fatores que incidem sobre esta temática, complexa por sua natureza, são múltiplos e

diversos, ancorados em cada um dos elementos identitários dos sujeitos. Mais do que propor a

existência de uma verdade absoluta, nos propomos, ao fim deste trabalho monográfico à

observação de critérios de validação para as políticas mas não de pensamentos fundantes de

uma lógica que aprisiona o pensamento e torna, de maneira quase mística, as referencias

positivas em algo vazio.

Em Pernambuco, precisamos observar que a política de cotas vem a contribuir para a

modificação conceitual e atitudinal em relação ao empoderamento de nossos pares

afrodescendentes, de tal maneira a permitir o acesso (e que precise instigar, para além do

acesso, a permanência) em espaços de poder institucionalizados em virtude desta situação

desigual na situação.

Importante é a percepção de que a política afirmativa de cotas é um instrumento de

organização estrutural de acesso a diversos espaços de poder que permita aos negros a

ascensão aos espaços de poder que lhes foram usurpados em um passado não tão distante.

Perceba-se não haver neste discurso nenhum tipo de postura de instigação a uma política de

segregação ou ódio, mas uma postura de organização estatal que permita a correção deste

meio que, como já se diz, é um instrumento possível de se chegar aos fins pretendidos no

próprio preâmbulo constitucional: a construção de uma sociedade justa e fraterna, fundada em

ideais democráticos de libertação. Longe de constituir excesso, as políticas afirmativas de

cotas etnicorraciais são, na verdade, uma forma ainda embrionária de empoderar o negro a

fim de que possa ocupar searas da vida pública que, por um prazo razoável, possa existir de

maneira a permitir que desenvolvam a dignidade da pessoa humana para que os princípios

mandamentais da Carta Magna de 1988 seja efetivamente cumprida, saindo da ideia de uma

norma programática para um ideal exequível a longo prazo, mas que urge por ser devidamente

iniciada, com os rigores metodológicos e com a instrumentalização devida ao caso em

específico porque não se pode permitir que excessos sejam cometidos como existiram no

tempo de outrora. É preciso empoderar, mas é premente a necessidade de não causar um mal

estar em cujo cerne estejam as questões etnicorraciais ou iniciar uma odisseia em que pesem

negativamente a influência negra no acesso à democratização dos espaços de poder.

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111

Precisamos exercitar o ideal de equidade a fim de que possamos algum dia desfrutar da

sociedade livre, justa, plural e solidária que percebe no outro uma complementaridade das

próprias inquietações e limitações.

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112

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Page 117: RELAÇÕES ETNICORRACIAIS, CONSTITUCIONALISMO E POLÍTICAS AFIRMATIVAS: Desconstituindo mitos e legislando para a justiça social

117

APÊNDICE A

Questionário aplicado a estudantes

Dados pessoais

Sexo: Cor/Etnia: Idade:

Dados sociais

Instituição de Ensino:

Curso: Instituição de Ensino:

( ) Pública

( ) Privada

Período/Ano: Cotista: ( ) Sim ( ) Não

Questionário

a. O que você entende por políticas afirmativas de cotas?

b. Cotas etnicorraciais (que incidam sob os critérios de raça/cor/etnia) devem existir?

Justifique.

c. As cotas constituem obstáculos ao ingresso dos não cotistas ou um passo positivo

no sentido de promover a inclusão de populações desfavorecidas

socioeconomicamente em espaços sociais de poder que, inicialmente, não teriam

sido reservados a elas? Justifique.

d. A Constituição de 1988 diz, em seu artigo 5º, que todos são iguais perante a lei.

Essa afirmativa é, de fato, verdadeira ou essa igualdade é relativa? Justifique.

e. O que é preconceito?

f. O que é racismo?

g. O que é discriminação?

h. Existe tratamento diferenciado, no Brasil, das instituições (privadas ou públicas)

com relação a indivíduos de traços físicos ou identidade cultural cujo referencial

seja o valor positivo das culturas africanas?

i. Com a implantação das cotas seria possível criar um sistema de discriminação no

ambiente acadêmico? Justifique.

j. O que é meritocracia e como a política afirmativa de cotas é interpretada neste

sentido?

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118

k. O que significa, para você, ser negro no Brasil?

l. Como seria possível tentar superar as consequências de séculos de escravismo no

Brasil? Caso afirmativo, ponte pelo menos duas possibilidades.

m. A Lei 10.639/03 (sobre a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-

brasileira) e a Lei 11.645/08 (sobre o ensino de história e cultura afro-brasileira e

indígena) dão conta das demandas educacionais que se pretende com a edição

delas em prol do desenvolvimento dos povos silenciados ao longo desses quase

514 anos de historiografia oficial do Brasil? Justifique.

n. A Lei 12.288/10 (Estatuto da Igualdade Racial), enquanto lei que disciplina a

matéria da promoção da igualdade racial em questão vem cumprindo seu papel ou

esta configura apenas uma tentativa, sem grandes resultados, quanto à promoção

da igualdade etnicorracial?

o. Você é a favor ou não das políticas afirmativas de cotas? Justifique.

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119

APÊNDICE B

Roteiro de Entrevistas com professores sobre as políticas afirmativas

Dados pessoais

Nome:

Sexo: Cor/Etnia: Idade:

Dados acadêmicos

Formação inicial: ( ) Licenciatura

( ) Bacharelado

Curso:

Pós-graduação: ( )Não possui.

( ) Especialização.

( ) Mestrado.

( ) Doutorado.

( ) PhD.

Instituição:

Dados profissionais

Leciona: ( )Sim

( ) Não

Caso positivo, em escolas: ( ) Públicas

( ) Particulares

Leciona há quanto tempo? ______ anos

Exerce atividade de gestão escolar,

coordenação ou assessoria pedagógica?

( ) Sim

( ) Não

Questões a) O que são e para que servem as políticas afirmativas?

b) Como devemos caracterizar quem é negro no Brasil?

c) Qual o lugar do negro na sociedade brasileira?

d) Sendo as cotas uma modalidade de política afirmativa de promoção da igualdade

etnicorracial, existe um pensamento no senso comum que atribui a ela uma

consistência discriminatória em relação aos demais grupos etnicorraciais. Se os negros

foram os povos que vieram sofrendo maiores agressões ao longo do tempo devemos

considerar essa política como uma compensação sócio histórica, um instrumento de

retaliação, como foi largamente difundido pela mídia, ou um programa balizador à luz

da Lei 12.288 (Estatuto da Igualdade Racial) para a promoção de igualdade de

maneira real? Justifique.

e) Existe importância das políticas de cotas no atual cenário socioeconômico brasileiro?

Justifique.

f) O discurso da meritocracia constrói uma barreira à implantação fática e gera diversas

incoerências no sentido de tentar fragilizar a importância da temática em tela, a

igualdade de acesso às universidades por afrodescendentes que se autodenominam

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120

como pertencentes aos grupos de maior fragilidade social, com ênfase em sua

negritude. Como devemos analisar a meritocracia no espaço universitário?

g) A Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, fala sobre igualdade no

caput do artigo 5º. Essa igualdade se dá, na prática, de maneira justa ou é apenas um

esboço, um ideal a ser alcançado pelos governos sem objetivo pragmático, mediante o

que se chamou por muitos anos de “normas programáticas”, como normas de pouca

eficácia prática?

h) É fato que no Brasil há um ideal social que se aproxima de um padrão cujo corolário

ideológico se aproxima em grande parte da tradição europeia colonialista. Assim

sendo, em nossa sociedade subsistem traços discriminatórios muito efetivos. Quais

seriam as medidas que poderiam, de maneira eficaz, desconstruir as discriminações,

vez que a legislação pátria tem encontrado muita dificuldade em efetivar as

penalidades e em aferir essa culpabilidade nos autores de crimes raciais?

i) Em suas formações (inicial e continuadas), você teve contato com o tema relações

etnicorraciais e promoção da igualdade? Se sim, como foi este contato?

j) Por fim, você é a favor ou contra as políticas afirmativas de cotas etnicorraciais?

Justifique.

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121

APÊNDICE C

TERMO DE RESPONSABILIDADE

Declaro assumir inteira responsabilidade civil e criminal pelo trabalho que desenvolvi

a título de Trabalho de Conclusão de Curso, Monografia, exigido pela Faculdade

Metropolitana, em face da legislação vigente, como pré-requisito final para obtenção do grau

de bacharel no Curso de Graduação em Direito.

Estou ciente de que não posso reproduzir, como meu, pensamento de outro autor, sem

citá-lo devidamente, de acordo com as regras da ABNT e do campo científico, assim como

delegar a outrem a tarefa exigida para conclusão do curso, razão por que declaro-me

devidamente alertado, pelas instituições acima referidas, sobre as consequências de eventual

ofensa a direito autoral e sobre o comércio ilegal de monografias.

Isento, outrossim, o professor orientador, supervisor de Monografia, bem como a

Faculdade Metropolitana, de qualquer responsabilidade quanto à autoria do trabalho

apresentado.

Jaboatão dos Guararapes/PE, 05 de junho de 2014.

___________________________________

Jonathan Reginnie de Sena Lima

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122

APÊNDICE D

CESSÃO GRATUÍTA DE DIREITOS DE DEPOIMENTO ORAL

Pelo presente documento, eu

Entrevistado(a):_______________________________________________________

_________, portador da Cédula de Identidade

RG:______________________________________ e inscrito no CNPF sob o nº:

_________________________________, domiciliado/residente em

(Av./Rua/no./complemento/Cidade/Estado/CEP):

___________________________________________________________________________

___________________________________________________________________________

___________________________________________________________________________

_________, declaro ceder ao Pesquisador Jonathan Reginnie de Sena Lima, portador da

Cédula de Identidade RG: 7655847, SDS/PE, inscrito no CNPF sob o nº 083.637.074-06,

domiciliado/residente à Rua Coronel Manoel Carneiro nº 180, Centro, Jaboatão dos

Guararapes, Pernambuco, CEP: 54.080-450, sem quaisquer restrições quanto aos seus

efeitos patrimoniais e financeiros, a plena propriedade e os direitos autorais do

depoimento de caráter histórico e documental que prestei ao pesquisador aqui referido,

na cidade de ______________________, Pernambuco, em ____/____/____, como subsídio à

construção de sua monografia entitulada “Relações etnicorraciais, constitucionalismo e

políticas afirmativas: Desconstituindo mitos e legislando para a justiça social” para

obtenção de titulo de Bacharel em Direito pela Faculdade Metropolitana da Grande

Recife (FMGR). O pesquisador acima citado fica consequentemente autorizado a utilizar,

divulgar e publicar, para fins acadêmicos e culturais, o mencionado depoimento, no todo ou

em parte, de maneira não editada quanto à materialidade, bem como permitir a terceiros o

acesso ao mesmo para fins idênticos, com a única ressalva de garantia da integridade de seu

conteúdo e identificação de fonte e autor.

____________________, ______ de ____________________ de 2014.

_________________________________________

(assinatura do entrevistado)

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123

ANEXO A

Matéria publicada no jornal O Globo

O senhor de engenho dentro de nós

Se hoje não temos mais a pregação explícita de uma política de branqueamento, ainda

estamos distantes de superar o que Joaquim Nabuco chamou de “obra da escravidão”

Luiz Antonio Simas

É fato fartamente documentado que governos brasileiros, com apoio de parte dos segmentos

mais favorecidos e de intelectuais que abraçaram a eugenia, tentaram apagar, nos primeiros

anos do pós-abolição, a presença do negro da História do Brasil. Este projeto se manifestou do

ponto de vista físico e cultural. Fisicamente o negro sucumbiria ao branqueamento racial

promovido pela imigração subvencionada de europeus, capaz de limpar a raça em algumas

gerações. Do ponto de vista cultural, houve uma tentativa sistemática de eliminar as formas de

aproximação com o mundo e elaboração de práticas cotidianas (jeitos de cantar, rezar, comer,

louvar os ancestrais, festejar, lidar com a natureza etc.) produzidas pelos descendentes de

africanos, desqualificando como barbárie e criminalizando como delitos contra a ordem seus

sistemas de organização comunitária e invenção da vida.

Se hoje não temos mais a pregação explícita de uma política de branqueamento, ainda

estamos distantes de superar o que Joaquim Nabuco chamou de “obra da escravidão”. Há um

senhor de engenho morando em cada brasileiro, adormecido. Vez por outra ele acorda, diz

que está presente, se manifesta e adormece de novo, em sono leve.

Há um senhor de engenho nos espreitando nos elevadores sociais e de serviço; nos

apartamentos com dependências de empregadas; no bacharelismo imperial dos doutores que

ostentam garbosamente o título; na elevação do tom de voz e na postura senhorial do “sabe

com quem você está falando?”; no deslumbre das elites que buscam “civilizar” os filhos em

intercâmbios no exterior; na cruzada evangélica contra a umbanda e o candomblé; na

folclorização pitoresca dessas religiosidades; nos currículos escolares fundamentados em

parâmetros europeus, onde índios e negros entram como apêndices do projeto civilizacional

predatório e catequista do Velho Mundo; no chiste do sujeito que acha que não é racista e

chama o outro de macaco; no pedantismo de certa intelectualidade versada na bagagem

cultural produzida pelo Ocidente e refratária aos saberes oriundos das praias africanas e

florestas brasileiras.

Recentemente observamos a ocorrência de alguns eventos que revelam a permanência de

práticas senhoriais que continuam nos assombrando. Um grupo de estudantes de Direito da

UFMG realizou um trote em que veteranos se travestiam orgulhosamente de nazistas e uma

caloura pintada de preto era acorrentada, portando um cartaz onde se lia “Chica da Silva”.

Continua, também, a polêmica que envolve clubes de ricaços no Rio e em São Paulo que

exigem uniformes identificadores das babás dos filhos bem nascidos de sinhazinhas e

sinhozinhos. Temos, por fim, o siricotico de certos setores indignados com a proteção

trabalhista que os empregados domésticos passarão a ter no Brasil. O argumento de que os

direitos — como o FGTS — encarecerão demasiadamente o trabalho e gerarão desemprego

esconde uma questão de evidente fundo cultural: o incômodo de uma elite que sempre

desqualificou o serviço doméstico e é herdeira de uma das maldições que o cativeiro legou

entre nós; a ideia de que a exploração do serviço braçal é quase um favor que o senhor presta

àquele a quem explora. Jogam no mesmo time dos que diziam, na abolição da escravatura,

que sem o seu senhor o negro quedaria desamparado.

Tudo isso nos permite constatar que o já citado Joaquim Nabuco de fato acertou na mosca.

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Disse ele que mais difícil do que acabar com a escravidão no Brasil seria acabar com a obra

que ela produziu. É ela, a obra da escravidão, erguida em alicerces sedimentados de uma

forma profunda e eficaz na alma brasileira, que até hoje nos assombra — porque nos

reconhecemos nela como algozes ou vítimas cotidianas — e precisa ser sistematicamente

combatida.

Luiz Antonio Simas é professor de História.

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ANEXO B

Matéria publicada no jornal Correio Braziliense em 05/11/2013.

Dilma propõe 20% das vagas em concursos públicos para negros

A presidente também irá priorizar o envio de profissionais na próxima etapa do Programa

Mais Médicos para comunidades quilombolas e distritos indígenas

Luisa Ikemoto

Pelo menos 20% das vagas em concursos públicos federais podem ser destinadas para negros,

caso a proposta encaminhada pela presidente Dilma Rousseff passe no Congresso. O texto foi

enviado nesta terça-feira (5/11) em caráter de urgência, durante a abertura da III Conferência

Nacional de Promoção da Igualdade Racial.

A presidente também disse ser essencial a existência de um ministério, a secretaria de

Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), para lidar com a questão do racismo e

combater as desigualdades.

Durante a cerimônia, Dilma assinou um decreto que institucionaliza a política do Estatuto da

Igualdade Racial, compartilhando as responsabilidades por essa tarefa entre a sociedade civil

e a gestão democrática.

Dilma adiantou que comunidades quilombolas e distritos indígenas terão prioridade na

próxima etapa do Programa Mais Médicos.

Disponível em:

<http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/economia/2013/11/05/internas_economia,

397345/dilma-propoe-20-das-vagas-em-concursos-publicos-para-negros.shtml>. Acessado

em: 11/11/13.

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126

ANEXO C

Matéria publicada no jornal O globo

A política de cotas ganhou mais uma

Elio Gaspari

Na essência da política de cotas há um aspecto que exaspera seus adversários: um estudante

que vai para o vestibular sem qualquer incentivo de ações afirmativas tira uma nota maior que

o cotista e perde a vaga na universidade pública. Quem combate esse conceito em termos

absolutos é contra a existência das cotas, cuja legalidade foi atestada pela unanimidade do

Supremo Tribunal e aprovada pelo Congresso Nacional (com um só discurso contra, no

Senado). É direito de cada um ficar na sua posição, minoritária também nas pesquisas de

opinião.

Uma coisa é defender as cotas quando a distância é pequena, bem outra seria admitir que um

estudante que faz 700 pontos na prova deve perder a vaga para outro que conseguiu apenas

400. O que é diferença pequena? Sabe-se lá, mas 300 pontos seria um absurdo.

Os adversários das cotas previam o fim do mundo se elas entrassem em vigor. Os cotistas não

acompanhariam os cursos, degradariam os curriculos e fugiriam das universidades. Puro

catastrofismo teórico. Passaram-se dez anos, Ícaro Luís Vidal, o primeiro cotista negro da

Faculdade de Medicina da Federal da Bahia, formou-se no ano passado e nada disso

aconteceu. Havia ainda também as almas apocalípticas: as cotas estimulariam o ódio racial.

Esse estava só na cabeça de alguns críticos, herdeiros de um pensamento que, no século XIX,

temia o caos social como consequência da Abolição.

Mesmo assim, restava a distância entre o beneficiado e o barrado. O Instituto Nacional de

Estudos e Pesquisas Educacionais divulgou uma pesquisa que foi buscar esses números no

banco de dados do Sistema de Seleção Unificada. Neste ano as cotas beneficiaram 36 mil

estudantes. Pode-se estimar que em 95% dos casos a distância entre a pior nota do cotista

admitido e a maior nota do barrado está em torno de 100 pontos. Em 32 cursos de medicina

(repetindo, medicina) a distância foi de 25,9 pontos (787,56 contra 761,67 dos cotistas).

O Inep listou as vinte faculdades onde ocorreram as maiores distâncias. Num caso extremo

deu-se uma variação de 272 pontos e beneficiou uns poucos cotistas indigenas no curso de

História da Federal do Maranhão. O segundo colocado foi o curso de Engenharia Elétrica da

Federal do Paraná, com 181 pontos de diferença. A distância diminui, até que no 20º caso, do

curso de Ciências Agrícolas do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da

Federal do Rio Grande do Sul, ela ficou em 128 pontos.

Pesquisas futuras explicarão como funcionava esse gargalo, pois, se a distância girava em

torno de 100 pontos, os candidatos negros e pobres chegavam à pequena área, mas não

conseguiam marcar o gol. É possível que a simples discussão das ações afirmativas tenha

elevado a autoestima de jovens que não entravam no jogo porque achavam que universidade

pública não era coisa para eles. Neste ano 864.830 candidatos (44,35%) buscaram o amparo

das cotas.

A política de cotas ocupou 12,5% das vagas. Num chute, pode-se supor que estejam em torno

de mil os cotistas que conseguiram entrar para a universidade com mais de cem pontos abaixo

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127

do barrado, o que vem a ser um resultado surpreendente e razoável. O fim do mundo era coisa

para inglês ver.

Elio Gaspari é jornalista

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128

ANEXO D

Pesquisa analisa racismo no Brasil

Quanto mais escura a cor da pele, menos renda, menos educação, menos oportunidades. O

inverso também é verdadeiro: quanto mais clara a cor da pele, mais renda, mais educação,

mais oportunidades. Para além da diferença aguda entre os pontos mais extremos da

desigualdade na estratificada sociedade brasileira - na ponta mais alta, homem, branco, urbano

e rico; na mais baixa, mulher, preta, rural e pobre -, a pesquisa A Dimensão Social das

Desigualdades, do sociólogo Carlos Costa Ribeiro, encontrou uma escala de desigualdades

que acompanha de forma contínua o escurecimento da cor da pele.

Os dados mostram como a cada ponto a mais no escurecimento da cor da pele corresponde

também um ponto a menos na escala de oportunidades sociais e econômicas (veja gráfico na

próxima página). "Com isso, consigo refinar a percepção sobre desigualdade racial", diz

Ribeiro, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp), da Universidade Estadual do Rio de

Janeiro (Uerj). A proposta de trabalhar com um amplo espectro de cores de pele - 14,

autodeclaradas pelos seus entrevistados - está ancorada na história da miscigenação racial no

país. No Brasil, explica, raça diz mais respeito à aparência física e à cor da pele do que à

origem. Tonalidade da pele, tipo de cabelo, formatos de nariz e de boca são traços distintivos

de maior ou menor proximidade com o branco, expressão física dessa miscigenação, e melhor

representação da realidade social do que a mera divisão entre brancos e não brancos.

Para recuperar os aspectos históricos do racismo brasileiro, Ribeiro voltou a 1890, ano do

primeiro censo demográfico no país, quando 56% da população era negra. O fim da

escravidão havia sido decretado dois anos antes. Em seguida, uma política de

"embranquecimento" estimulou não só a vinda de imigrantes europeus como também os

casamentos inter-raciais, início da miscigenação brasileira: "Havia uma ideologia racista que

considerava os brancos superiores aos negros, e esses casamentos eram uma forma de projetar

o embranquecimento da população", afirma.

O censo de 1940 já mostrava os primeiros resultados dessa política: 64% dos brasileiros

foram identificados como brancos e apenas 36% como negros. São números que se

mantiveram mais ou menos estáveis até o fim dos anos 1990, quando 54% da população era

autodeclarada branca e havia 46% negros, considerando a soma de pretos e pardos. No censo

de 2010, o percentual de brancos caiu para 47% - 91 milhões de brasileiros -, inferior aos 50%

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que se declararam pretos ou pardos. Do total de 97 milhões de negros, 82 milhões são

classificados como pardos.

É nesse ponto que reside o ineditismo da pesquisa, levantamento de dados em uma amostra de

oito mil domicílios brasileiros, o equivalente a 3,3% da população. Ao identificar os muitos

tons de pele do grande grupo de pardos e, portanto, ao representar melhor as distinções

existentes na ampla camada que separa brancos e negros, o estudo mostra que o racismo não

está apenas nas pontas extremas entre o branco e o preto, mas se dá em cada um dos degraus

de cor que separam, por exemplo, o moreno do moreno claro, o mulato do moreno escuro, o

jambo do castanho.

"É uma forma de modelar, de nuançar a desigualdade racial brasileira, em vez de trabalhar

apenas com o grande contraste que há entre brancos e negros", aponta. Ao observar essas

nuanças, Ribeiro constata que, no Brasil, uma pessoa de pele branca, mesmo de origem negra,

tem mais chances de ser socialmente percebida como branca, independentemente da cor da

pele dos pais. No entanto, suas chances de mobilidade social e econômica serão menores, já

que a desigualdade de oportunidades está relacionada às origens familiares e as condições

socioeconômicas de origem.

Ribeiro observa que sua pesquisa faz sentido no Brasil não apenas porque aqui a divisão entre

brancos e não brancos mascara uma realidade social mais complexa, mas sobretudo porque a

história do racismo no país passa por uma miscigenação que os Estados Unidos, por exemplo,

não experimentaram.

"O enigma da desigualdade racial no Brasil está no fato de que as relações sociais horizontais

[entre pessoas da mesma classe social] são relativamente fluidas e flexíveis, mas as relações

verticais [entre classes sociais diferentes] são profundamente estratificadas", diz. Nas relações

verticais, pesquisas como essa do Iesp percebem a desigualdade entre renda, educação e

ocupação entre brancos e negros, indicadores da extrema rigidez da mobilidade social dos

negros. Já nas relações sociais horizontais, os vínculos sociais nas mesmas classes sociais

seriam mais flexíveis.

"Comparações entre Brasil e EUA são traiçoeiras, porque os modelos de racismo são

diferentes", argumenta a secretária de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, Luiza

Bairros. Ela se refere ao fato de que, apesar da miscigenação e da cor da pele, há

discriminação mesmo nas situações de sociabilidade horizontal. Ela toma como exemplo uma

quadra de escola de samba que, observada por um pesquisador americano, pode dar a

impressão de haver maior nível de igualdade entre negros e brancos do que de fato a

população negra experimenta no seu cotidiano.

"Em outros espaços que sejam de maioria branca, não há a mesma flexibilidade. Essas

relações sociais aparentemente igualitárias só ocorrem em espaços de maioria negra", diz.

Com isso, Luiza ataca também o que considera outro mito do racismo brasileiro: o de que não

há segregação espacial. "São sutilezas que precisam ser observadas, sob pena de se considerar

que as relações sociais horizontais se dão independentemente da cor da pele." Assim, o

degradê de cores da sociedade pode contribuir para perceber melhor a influência de cada tom

da cor da pele na discriminação racial.

A pesquisa chega como parte de uma longa trajetória de trabalhos sobre racismo, que começa

com Gilberto Freyre, nos anos 1930, passa pelos estudos do sociólogo Carlos Hasenbalg,

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130

autor de "Discriminação e Desigualdades Raciais no Brasil" (1979), e tem seu ponto

fundamental de inflexão com o economista Ricardo Henriques nos anos 90. Então

pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Henriques já argumentava

que o racismo é o núcleo duro da desigualdade brasileira. Afirmação que se deu em um

momento político em que o debate sobre cotas, ações afirmativas e políticas públicas criava o

que ele e Ribeiro consideram uma falsa disputa: o que é mais importante, a discriminação

racial ou a de classe? "Não gosto da ideia de precedência", afirma Henriques, hoje

superintendente do Instituto Unibanco, onde se dedica a projetos de educação para jovens, um

dos grandes gargalos da mobilidade social brasileira. "Embora o elemento classe componha a

desigualdade, é impossível tirar da história do país a questão racial", comenta.

Ao mostrarem o degradê da desigualdade racial, Ribeiro diz que seus dados pretendem

contribuir para superar essa dicotomia que marca o debate brasileiro sobre desigualdade. "A

dicotomia entre classe e raça não faz sentido no Brasil. São as duas coisas, até porque não

existe uma fronteira absolutamente clara entre elas", defende ele. No argumento de que raça é

o núcleo duro da desigualdade brasileira, como defendido por Henriques, há um objetivo

político determinado: o desenvolvimento de políticas públicas que enfrentem a desigualdade

racial sem estabelecer precedência da classe em relação a raça.

"Na cultura das gestões públicas, no desenho das políticas públicas, o racismo entra como

uma questão muito remota. Sem o elemento racial, pode-se até fazer uma importante política

que enfrente a desigualdade de renda e mesmo assim não terá havido o enfrentamento da

diferença", diz Henriques. A confirmar seus argumentos estão os dados de renda recém-

divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), indicando que, entre

2003 e 2013, a renda da população negra - aí somados pretos e pardos - cresceu 51,4%,

enquanto a da branca aumentou apenas 27,8%. Apesar do expressivo crescimento, a renda dos

negros corresponde apenas a 57,4% da renda dos brancos.

Em grande medida, o alto percentual de crescimento entre os negros ocorre pelo que as

pesquisas de Henriques já haviam detectado no fim dos anos 1990: há uma

sobrerrepresentação de negros na população pobre. Em 1999, o pesquisador contabilizou que

os negros eram 45% da população, mas eram também 64% dos pobres e 69% dos indigentes.

Na medida em que cresce a renda média dos pobres, como ocorreu na última década, cresce

necessariamente a renda média dos negros.

"Pretender enfrentar primeiro o problema de classe é acreditar que se pode dar conta da

desigualdade em fases e em algum momento chegará aos negros", diz Henriques. Ao borrar as

fronteiras que se pretendiam nítidas no par brancos e não brancos, Ribeiro se alinha à

argumentação de Henriques: se a desigualdade social brasileira é pior para aqueles que têm a

cor da pele mais escura, políticas que apenas trabalhem com distribuição de renda, sem levar

em conta o fator racial, vão alcançar por último o mais preto, que é também o mais pobre e o

que tem menos oportunidades.

"No Brasil, como não é possível pensar raça e classe como grupos separados, trabalho com

modelo aditivo em que se somam renda, família de origem, raça, gênero, região", diz Ribeiro.

É a partir desse modelo que ele pode encontrar não apenas os extremos - homem branco

urbano e rico versus mulher negra rural e pobre - como perceber que em cada ponto da escala

de cores há um tipo de discriminação e desigualdade específica.

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Com os dados que levantou, a pesquisa caminha na contramão de discursos que apontam para

a possibilidade do que alguns estudos sobre desigualdade racial chamam de

"embranquecimento por dinheiro". Como nas estatísticas a cor é autodeclarada, o

embranquecimento se daria como parte de processos de ascensão social. Quanto maior a

renda, mais aquele que se declarava preto pode passar a se declarar pardo e o pardo pode se

declarar branco. No degradê da discriminação percebido por Ribeiro, esse

"embranquecimento" tem limites explícitos. "Pode ser uma estratégia para enfrentar a barreira

do preconceito", diz Ribeiro.

"Ainda que as pessoas de pele mais escura possam tentar, é como se a pele negra tivesse um

valor em si que não pode ser ultrapassado pela renda", observa Luiza. "É muito comum no

Brasil que as pessoas de pele mais escura que se declaram negras sejam discriminadas em

espaços majoritariamente brancos", observa a secretária, citando como exemplo as

dificuldades que os alunos negros cotistas têm enfrentado nas universidades federais. "O que

se percebe é que, numa conjuntura de melhoria nas condições de vida nas pessoas negras, as

discriminações aumentam, porque cada vez mais negros entram em espaços que eram

exclusividade de brancos."

Um sinal de que o racismo é o núcleo duro da desigualdade brasileira pode ser o fato de que

acesso à renda não é suficiente para enfrentar a discriminação. Nesse aspecto, o diretor da

Anistia Internacional no Brasil, Atila Roque, afirma que a população negra ainda é a mais

discriminada, por exemplo, nas abordagens policiais e na violência de Estado.

"O que se percebe no Brasil é que, apesar das políticas públicas que promoveram melhoria de

renda e até de oportunidades e mobilidade social, a população negra ainda é a mais

discriminada. Isso se expressa, por exemplo, no chamado racismo institucional, como no

acesso das negras a serviços de saúde reprodutiva, nas abordagens policiais e na violência de

Estado em geral. Jovens negros também estão entre as principais vítimas de homicídios,

tragédia que não tem merecido a devida atenção das políticas públicas. O racismo no Brasil é

fator central de uma estrutura social que distribui desigualmente o poder político, a

distribuição dos recursos e o acesso aos direitos humanos fundamentais", afirma.

Por fim, há um fenômeno novo percebido tanto pela secretária Luiza quanto pelo sociólogo

Ribeiro: há um processo de escurecimento da população, detectado não apenas nos dados do

Censo de 2010, que vem sendo confirmado pela última Pnad. Sobretudo entre a população

jovem, há uma tendência ao escurecimento que pode estar relacionada com a possibilidade de

obter as recentes vantagens conquistadas pelas políticas de ação afirmativa. "Um dos aspectos

importantes da discriminação racial no Brasil é a diferença entre a maneira como cada um se

autodeclara e a maneira como é visto pelos outros", afirma Luiza.

Se houver uma vantagem em se declarar negro, porém, a forma como a raça foi construída no

país permite a fluidez na autodeclaração de cor. Até porque, ao enfatizar a cor da pele, e não a

ascendência, o racismo brasileiro cria mais uma armadilha. Se os brasileiros fossem

discriminados pela origem, e se em 1890 havia 56% de africanos no país, a categoria

afrodescendentes se aplicaria hoje a todos os brasileiros. O termo afrodescendente foi criado

em 2001 pela ONU para identificar a diáspora africana em vários países. No Brasil, acredita a

secretária, acabou sendo usado de forma muito demagógica. "Dizer que somos todos

afrodescendentes equivale a dizer que somos todos iguais, o que não é verdade", diz. O que o

trabalho de Ribeiro só reafirma: na sociedade brasileira, alguém está em posições mais ou

menos vantajosas não pela origem, mas pelo lugar que ocupa no degradê da cor da pele.

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ANEXO F

Disponível em:

<http://www.cutmt.org.br/sistema/ck/images/noticias/cartaz_dia_da_consciencia_negra_2013

_site_cnte.jpg>. Acessado em: 26/02/2014.

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ANEXO G

Por que me tornei a favor das cotas para negros

Por William Douglas*, no Pragmatismo Político

Roberto Lyra, Promotor de Justiça, um dos autores do Código Penal de 1940, ao lado de

Alcântara Machado e Nelson Hungria, recomendava aos colegas de Ministério Público que

“antes de se pedir a prisão de alguém deveria se passar um dia na cadeia”. Gênio, visionário e

à frente de seu tempo, Lyra informava que apenas a experiência viva permite compreender

bem uma situação.

Quem procurar meus artigos, verá que no início era contra as cotas para negros, defendendo –

com boas razões, eu creio – que seria mais razoável e menos complicado reservá-las apenas

para os oriundos de escolas públicas. Escrevo hoje para dizer que não penso mais assim. As

cotas para negros também devem existir. E digo mais: a urgência de sua consolidação e

aperfeiçoamento é extraordinária.

Embora juiz federal, não me valerei de argumentos jurídicos. A Constituição da República é

pródiga em planos de igualdade, de correção de injustiças, de construção de uma sociedade

mais justa. Quem quiser, nela encontrará todos os fundamentos que precisa. A Constituição de

1988 pode ser usada como se queira, mas me parece evidente que a sua intenção é, de fato,

tornar esse país melhor e mais decente. Desde sempre as leis reservaram privilégios para os

abastados, não sendo de se exasperarem as classes dominantes se, umas poucas vezes ao

menos, sesmarias, capitanias hereditárias, cartórios e financiamentos se dirigirem aos mais

necessitados.

Não me valerei de argumentos técnicos nem jurídicos dado que ambos os lados os têm em boa

monta, e o valor pessoal e a competência dos contendores desse assunto comprovam que há

gente de bem, capaz, bem intencionada, honesta e com bons fundamentos dos dois lados da

cerca: os que querem as cotas para negros, e os que a rejeitam, todos com bons argumentos.

Por isso, em texto simples, quero deixar clara minha posição como homem, cristão, cidadão,

juiz, professor, “guru dos concursos” e qualquer outro adjetivo a que me proponha: as cotas

para negros devem ser mantidas e aperfeiçoadas. E meu melhor argumento para isso é o

aquele que me convenceu a trocar de lado: “passar um dia na cadeia”. Professor de técnicas de

estudo, há nove anos venho fazendo palestras gratuitas sobre como passar no vestibular para a

EDUCAFRO, pré-vestibular para negros e carentes.

Mesmo sendo, por ideologia, contra um pré-vestibular “para negros”, aceitei convite para

aulas como voluntário naquela ONG por entender que isso seria uma contribuição que poderia

ajudar, ou seja, aulas, doação de livros, incentivo. Sempre foi complicado chegar lá e dizer

minha antiga opinião contra cotas para negros, mas fazia minha parte com as aulas e livros. E

nessa convivência fui descobrindo que se ser pobre é um problema, ser pobre e negro é um

problema maior ainda.

Meu pai foi lavrador até seus 19 anos, minha mãe operária de “chão de fábrica”, fui pobre

quando menino, remediado quando adolescente. Nada foi fácil, e não cheguei a juiz federal, a

350.000 livros vendidos e a fazer palestras para mais de 750.000 pessoas por um caminho

curto, nem fácil. Sei o que é não ter dinheiro, nem portas, nem espaço. Mas tive heróis que me

abriram a picada nesse matagal onde passei. E conheço outros heróis, negros, que chegaram

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longe, como Benedito Gonçalves, Ministro do STJ, Angelina Siqueira, juíza federal. Conheço

vários heróis, negros, do Supremo à portaria de meu prédio.

Apenas não acho que temos que exigir heroísmo de cada menino pobre e negro desse país.

Minha filha, loura e de olhos claros, estuda há três anos num colégio onde não há um aluno

negro sequer, onde há brinquedos, professores bem remunerados, aulas de tudo; sua similar

negra, filha de minha empregada, e com a mesma idade, entrou na escola esse ano, escola sem

professores, sem carteiras, com banheiro quebrado. Minha filha tem psicóloga para ajudar a

lidar com a separação dos pais, foi à Disney, tem aulas de Ballet. A outra, nada, tem um

quintal de barro, viagens mais curtas. A filha da empregada, que ajudo quanto posso, visitou

minha casa e saiu com o sonho de ter seu próprio quarto, coisa que lhe passou na cabeça

quando viu o quarto de minha filha, lindo, decorado, com armário inundado de roupas de

princesa. Toda menina é uma princesa, mas há poucas das princesas negras com vestidos

compatíveis, e armários, e escolas compatíveis, nesse país imenso. A princesa negra disse

para sua mãe que iria orar para Deus pedindo um quarto só para ela, e eu me incomodei por

lembrar que Deus ainda insiste em que usemos nossas mãos humanas para fazer Sua Justiça.

Sei que Deus espera que eu, seu filho, ajude nesse assunto. E se não cresse em Deus como

creio, saberia que com ou sem um ser divino nessa história, esse assunto não está bem

resolvido. O assunto demanda de todos nós uma posição consistente, uma que não se prenda

apenas à teorias e comece a resolver logo os fatos do cotidiano: faltam quartos e escolas boas

para as princesas negras, e também para os príncipes dessa cor de pele.

Não que tenha nada contra o bem estar da minha menina: os avós e os pais dela deram (e dão)

muito duro para ela ter isso. Apenas não acho justo nem honesto que lá na frente, daqui a uma

década de desigualdade, ambas sejam exigidas da mesma forma. Eu direi para minha filha que

a sua similar mais pobre deve ter alguma contrapartida para entrar na faculdade. Não seria

igualdade nem honesto tratar as duas da mesma forma só ao completarem quinze anos, mas

sim uma desmesurada e cruel maldade, para não escolher palavras mais adequadas.

Não se diga que possamos deixar isso para ser resolvido só no ensino fundamental e médio. É

quase como não fazer nada e dizer que tudo se resolverá um dia, aos poucos. Já estamos com

duzentos anos de espera por dias mais igualitários. Os pobres sempre foram tratados à

margem. O caso é urgente: vamos enfrentar o problema no ensino fundamental, médio, cotas,

universidade, distribuição de renda, tributação mais justa e assim por diante. Não podemos

adiar nada, nem aguardar nem um pouco.

Foi vendo meninos e meninas negros, e negros e pobres, tentando uma chance, sofrendo,

brilhando nos olhos uma esperança incômoda diante de tantas agruras, que fui mudando

minha opinião. Não foram argumentos jurídicos, embora eu os conheça, foi passar não um,

mas vários “dias na cadeia”. Na cadeia deles, os pobres, lugar de onde vieram meus pais, de

um lugar que experimentei um pouco só quando mais moço. De onde eles vêm, as cotas

fazem todo sentido.

Se alguém discorda das cotas, me perdoe, mas não devem faze-lo olhando os livros e teses, ou

seus temores. Livros, teses, doutrinas e leis servem a qualquer coisa, até ao nazismo. Temores

apenas toldam a visão serena. Para quem é contra, com respeito, recomendo um dia “na

cadeia”. Um dia de palestra para quatro mil pobres, brancos e negros, onde se vê a esperança

tomar forma e precisar de ajuda. Convido todos que são contra as cotas a passar conosco,

brancos e negros, uma tarde num cursinho pré-vestibular para quem não tem pão, passagem,

escola, psicólogo, cursinho de inglês, ballet, nem coisa parecida, inclusive professores de

todas as matérias no ensino médio.

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Se você é contra as cotas para negros, eu o respeito. Aliás, também fui contra por muito

tempo. Mas peço uma reflexão nessa semana: na escola, no bairro, no restaurante, nos lugares

que freqüenta, repare quantos negros existem ao seu lado, em condições de igualdade (não

vale porteiro, motorista, servente ou coisa parecida). Se há poucos negros ao seu redor, me

perdoe, mas você precisa “passar um dia na cadeia” antes de firmar uma posição coerente não

com as teorias (elas servem pra tudo), mas com a realidade desse país. Com nossa realidade

urgente. Nada me convenceu, amigos, senão a realidade, senão os meninos e meninas

querendo estudar ao invés de qualquer outra coisa, querendo vencer, querendo uma chance.

Ah, sim, “os negros vão atrapalhar a universidade, baixar seu nível”, conheço esse argumento

e ele sempre me preocupou, confesso. Mas os cotistas já mostraram que sua média de notas é

maior, e menor a média de faltas do que as de quem nunca precisou das cotas. Curiosamente,

negros ricos e não cotistas faltam mais às aulas do que negros pobres que precisaram das

cotas. A explicação é simples: apesar de tudo a menos por tanto tempo, e talvez por isso, eles

se agarram com tanta fé e garra ao pouco que lhe dão, que suas notas são melhores do que a

média de quem não teve tanta dificuldade para pavimentar seu chão. Somos todos humanos, e

todos frágeis e toscos: apenas precisamos dar chance para todos.

Precisamos confirmar as cotas para negros e para os oriundos da escola pública. Temos que

podemos considerar não apenas os deficientes físicos (o que todo mundo aceita), mas também

os econômicos, e dar a eles uma oportunidade de igualdade, uma contrapartida para

caminharem com seus co-irmãos de raça (humana) e seus concidadãos, de um país que se

quer solidário, igualitário, plural e democrático. Não podemos ter tanta paciência para

resolver a discriminação racial que existe na prática: vamos dar saltos ao invés de rastejar em

direção a políticas afirmativas de uma nova realidade.

Se você não concorda, respeito, mas só se você passar um dia conosco “na cadeia”. Vendo e

sentindo o que você verá e sentirá naquele meio, ou você sairá concordando conosco, ou ao

menos sem tanta convicção contra o que estamos querendo: igualdade de oportunidades, ou

ao menos uma chance. Não para minha filha, ou a sua, elas não precisarão ser heroínas e nós

já conseguimos para elas uma estrada. Queremos um caminho para passar quem não está

tendo chance alguma, ao menos chance honesta. Daqui a alguns poucos anos, se vierem as

cotas, a realidade será outra. Uma melhor. E queremos você conosco nessa história.

Não creio que esse mundo seja seguro para minha filha, que tem tudo, se ele não for ao menos

um pouco mais justo para com os filhos dos outros, que talvez não tenham tido minha sorte.

Talvez seus filhos tenham tudo, mas tudo não basta se os filhos dos outros não tiverem

alguma coisa. Seja como for, por ideal, egoísmo (de proteger o mundo onde vão morar nossos

filhos), ou por passar alguns dias por ano “na cadeia” com meninos pobres, negros, amarelos,

pardos, brancos, é que aposto meus olhos azuis dizendo que precisamos das cotas, agora.

E, claro, financiar os meninos pobres, negros, pardos, amarelos e brancos, para que estudem e

pelo conhecimento mudem sua história, e a do nosso país comum pois, afinal de contas,

moraremos todos naquilo que estamos construindo.

Então, como diria Roberto Lyra, em uma de suas falas, “O sol nascerá para todos. Todos dirão

– nós – e não – eu. E amarão ao próximo por amor próprio. Cada um repetirá: possuo o que

dei. Curvemo-nos ante a aurora da verdade dita pela beleza, da justiça expressa pelo amor.”

Justiça expressa pelo amor e pela experiência, não pelas teses. As cotas são justas, honestas,

solidárias, necessárias. E, mais que tudo, urgentes. Ou fique a favor, ou pelo menos visite a

cadeia.

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*William Douglas, juiz federal (RJ), mestre em Direito (UGF), especialista em Políticas

Públicas e Governo (EPPG/UFRJ), professor e escritor, caucasiano e de olhos azuis

Disponível em: <http://www.revistaforum.com.br/blog/2013/11/porque-me-tornei-a-favor-

das-cotas-para-negros/>. Acessado em: 04/04/2014.

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ANEXO H

Por que as cotas raciais deram certo no Brasil

Política de inclusão de negros nas universidades melhorou a qualidade do ensino e reduziu os

índices de evasão. Acima de tudo, está transformando a vida de milhares de brasileiros

Amauri Segalla, Mariana Brugger e Rodrigo Cardoso

Antes de pedalar pelas ruas de Amsterdã com uma bicicleta vermelha e um sorriso largo,

como fez na tarde da quarta-feira da semana passada, Ícaro Luís Vidal dos Santos, 25 anos,

percorreu um caminho duro, mas que poderia ter sido bem mais tortuoso. Talvez

instransponível. Ele foi o primeiro cotista negro a entrar na Faculdade de Medicina da Federal

da Bahia. Formando da turma de 2011, Ícaro trabalha como clínico geral em um hospital de

Salvador. A foto ao lado celebra a alegria de alguém que tinha tudo para não estar ali. É que,

no Brasil, a cor da pele determina as chances de uma pessoa chegar à universidade. Para

pobres e alunos de escolas públicas, também são poucas as rotas disponíveis. Como tantos

outros, Ícaro reúne várias barreiras numa só pessoa: sempre frequentou colégio gratuito,

sempre foi pobre – e é negro. Mesmo assim, sua história é diferente. Contra todas as

probabilidades, tornou-se doutor diplomado, com dinheiro suficiente para cruzar o Atlântico e

saborear a primeira viagem internacional. Sem a política de cotas, ele teria passado os últimos

dias pedalando nas pontes erguidas sobre os canais de Amsterdã? Impossível dizer com

certeza, mas a resposta lógica seria “não”.

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Desde que o primeiro aluno negro ingressou em uma universidade pública pelo sistema de

cotas, há dez anos, muita bobagem foi dita por aí. Os críticos ferozes afirmaram que o modelo

rebaixaria o nível educacional e degradaria as universidades. Eles também disseram que os

cotistas jamais acompanhariam o ritmo de seus colegas mais iluminados e isso resultaria na

desistência dos negros e pobres beneficiados pelos programas de inclusão. Os arautos do

pessimismo profetizaram discrepâncias do próprio vestibular, pois os cotistas seriam

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aprovados com notas vexatórias se comparadas com o desempenho da turma considerada

mais capaz. Para os apocalípticos, o sistema de cotas culminaria numa decrepitude completa:

o ódio racial seria instalado nas salas de aula universitárias, enquanto negros e brancos

construiriam muros imaginários entre si. A segregação venceria e a mediocridade dos cotistas

acabaria de vez com o mundo acadêmico brasileiro. Mas, surpresa: nada disso aconteceu. Um

por um, todos os argumentos foram derrotados pela simples constatação da realidade. “Até

agora, nenhuma das justificativas das pessoas contrárias às cotas se mostrou verdadeira”, diz

Ricardo Vieiralves de Castro, reitor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

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As cotas raciais deram certo porque seus beneficiados são, sim, competentes. Merecem, sim,

frequentar uma universidade pública e de qualidade. No vestibular, que é o princípio de tudo,

os cotistas estão só um pouco atrás. Segundo dados do Sistema de Seleção Unificada, a nota

de corte para os candidatos convencionais a vagas de medicina nas federais foi de 787,56

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pontos. Para os cotistas, foi de 761,67 pontos. A diferença entre eles, portanto, ficou próxima

de 3%. ISTOÉ entrevistou educadores e todos disseram que essa distância é mais do que

razoável. Na verdade, é quase nada. Se em uma disciplina tão concorrida quanto medicina um

coeficiente de apenas 3% separa os privilegiados, que estudaram em colégios privados, dos

negros e pobres, que frequentaram escolas públicas, então é justo supor que a diferença

mínima pode, perfeitamente, ser igualada ou superada no decorrer dos cursos. Depende só da

disposição do aluno. Na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), uma das mais

conceituadas do País, os resultados do último vestibular surpreenderam. “A maior diferença

entre as notas de ingresso de cotistas e não cotistas foi observada no curso de economia”, diz

Ângela Rocha, pró-reitora da UFRJ. “Mesmo assim, essa distância foi de 11%, o que,

estatisticamente, não é significativo.”

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Por ser recente, o sistema de cotas para negros carece de estudos que reúnam dados gerais do

conjunto de universidades brasileiras. Mesmo analisados separadamente, eles trazem

respostas extraordinárias. É de se imaginar que os alunos oriundos de colégios privados

tenham, na universidade, desempenho muito acima de seus pares cotistas. Afinal, eles tiveram

uma educação exemplar, amparada em mensalidades que custam pequenas fortunas. Mas a

esperada superioridade estudantil dos não cotistas está longe de ser verdade. A Uerj analisou

as notas de seus alunos durante 5 anos. Os negros tiraram, em média, 6,41. Já os não cotistas

marcaram 6,37 pontos. Caso isolado? De jeito nenhum. Na Universidade Estadual de

Campinas (Unicamp), que também é referência no País, uma pesquisa demonstrou que, em 33

dos 64 cursos analisados, os alunos que ingressaram na universidade por meio de um sistema

parecido com as cotas tiveram performance melhor do que os não beneficiados. E ninguém

está falando aqui de disciplinas sem prestígio. Em engenharia de computação, uma das novas

fronteiras do mercado de trabalho, os estudantes negros, pobres e que frequentaram escolas

públicas tiraram, no terceiro semestre, média de 6,8, contra 6,1 dos demais. Em física, um

bicho de sete cabeças para a maioria das pessoas, o primeiro grupo cravou 5,4 pontos, mais

dos que os 4,1 dos outros (o que dá uma diferença espantosa de 32%).

Em um relatório interno, a Unicamp avaliou que seu programa para pobres e negros resultou

em um bônus inesperado. “Além de promover a inclusão social e étnica, obtivemos um ganho

acadêmico”, diz o texto. Ora, os pessimistas não diziam que os alunos favorecidos pelas cotas

acabariam com a meritocracia? Não afirmavam que a qualidade das universidades seria

colocada em xeque? Por uma sublime ironia, foi o inverso que aconteceu. E se a diferença

entre cotistas e não cotistas fosse realmente grande, significaria que os programas de inclusão

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estariam condenados ao fracasso? Esse tipo de análise é igualmente discutível. “Em um País

tão desigual quanto o Brasil, falar em meritocracia não faz sentido”, diz Nelson Inocêncio,

coordenador do núcleo de estudos afrobrasileiros da UnB. “Com as cotas, não é o mérito que

se deve discutir, mas, sim, a questão da oportunidade.” Ricardo Vieiralves de Castro fala do

dever intrínseco das universidades em, afinal, transformar seus alunos – mesmo que cheguem

à sala de aula com deficiências de aprendizado. “Se você não acredita que a educação é um

processo modificador e civilizatório, que o conhecimento é capaz de provocar grandes

mudanças, não faz sentido existir professores.” Não faz sentido existir nem sequer

universidade.

Mas o que explica o desempenho estudantil eficiente dos cotistas? “Os alunos do modelo de

inclusão são sobreviventes, aqueles que sempre foram os melhores de sua turma”, diz

Maurício Kleinke, coordenador-executivo do vestibular da Unicamp. Kleinke faz uma análise

interessante do fenômeno. “Eles querem, acima de tudo, mostrar para os outros que são

capazes e, por isso, se esforçam mais.” Segundo o professor da Unicamp, os mais favorecidos

sabem que, se tudo der errado na universidade, podem simplesmente deixar o curso e voltar

para os braços firmes e seguros de seus pais. Para os negros e pobres, é diferente. “Eles não

sofrem da crise existencial que afeta muitos alunos universitários e que faz com que estes

desistam do curso para tentar qualquer outra coisa.” Advogado que entrou na PUC do Rio por

meio de um sistema de cotas, Renato Ferreira dos Santos concorda com essa teoria. “Nós,

negros, não podemos fazer corpo mole na universidade”, diz. Também professor do

departamento de psicologia da Uerj, Ricardo Vieiralves de Castro vai além. “Há um esforço

diferenciado do aluno cotista, que agarra essa oportunidade como uma chance de vida”, diz o

educador. “Ele faz um esforço pessoal de superação.” Esse empenho, diz o especialista, é

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detectável a cada período estudantil. “O cotista começa a universidade com uma performance

mediana, mas depois se iguala ao não cotista e, por fim, o supera em muitos casos.”

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O cotista não desiste. Se desistir, terá de voltar ao passado e enfrentar a falta de oportunidades

que a vida ofereceu. Por isso, os índices de evasão dos alunos dos programas de inclusão são

baixos e, em diversas universidades, até inferiores aos dos não cotistas. Para os críticos

teimosos, que achavam que as cotas não teriam efeito positivo, o que se observa é a inserção

maior de negros no mercado de trabalho. “Fizemos uma avaliação com 500 cotistas e

descobrimos que 91% deles estão empregados em diversas carreiras, até naquelas que têm

mais dificuldade para empregar”, diz Ricardo Vieiralves de Castro. Com o diploma em mãos,

os negros alcançam postos de melhor remuneração, o que, por sua vez, significa uma chance

de transformação para o seu grupo social. Não é difícil imaginar como os filhos dos cotistas

terão uma vida mais confortável – e de mais oportunidades – do que seus pais jamais tiveram.

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Por mais que os críticos gritem contra o sistema de cotas, a realidade nua e crua é que ele tem

gerado uma série de efeitos positivos. Hoje, os negros estão mais presentes no ambiente

universitário. Há 15 anos, apenas 2% deles tinham ensino superior concluído. Hoje, o índice

triplicou para 6%. Ou seja: até outro dia, as salas de aula das universidades brasileiras

lembravam mais a Suécia do que o próprio Brasil. Apesar da evolução, o percentual é

ridículo. Afinal de contas, praticamente a metade dos brasileiros é negra ou parda. Nos

Estados Unidos, a porcentagem da população chamada afrodescendente corresponde

exatamente à participação dela nas universidades: 13%. Quem diz que não existe racismo no

Brasil está enganado ou fala isso de má-fé. Nos Estados Unidos, veem-se negros ocupando o

mesmo espaço dos brancos – nos shoppings, nos restaurantes bacanas, no aeroporto, na

televisão, nos cargos de chefia. No Brasil, a classe média branca raramente convive com

pessoas de uma cor de pele diferente da sua e talvez isso explique por que muita gente refuta

os programas de cotas raciais. No fundo, o que muitos brancos temem é que os negros

ocupem o seu lugar ou o de seus filhos na universidade. Não há outra palavra para expressar

isso a não ser racismo.

Com a aprovação recente, pelo Senado, do projeto que regulamenta o sistema de cotas nas

universidades federais (e que prevê que até 2016 25% do total de vagas seja destinado aos

estudantes negros), as próximas gerações vão conhecer uma transformação ainda mais

profunda. Os negros terão, enfim, as condições ideais para anular os impedimentos que há 205

anos, desde a fundação da primeira faculdade brasileira, os afastavam do ensino superior. Por

mais que os críticos se assustem com essa mudança, ela é justa por fazer uma devida

reparação. “São muitos anos de escravidão para poucos anos de cotas”, diz o pedagogo Jorge

Alberto Saboya, que fez sua tese de doutorado sobre o sistema de inclusão no ensino superior.

Acima de tudo, são muitos anos de preconceito. Como se elimina isso? “Não se combate o

racismo com palavras”, diz o sociólogo Muniz Sodré, pesquisador da UFRJ. “O que combate

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o racismo é a proximidade entre as diferenças.” Não é a proximidade entre as diferenças o

que, afinal, promove o sistema de cotas brasileiro?

Fotos: Arquivo pessoal; Adriano Machado/Ag. Istoé; Ana Carolina Fernandes; Orestes

Locatel; Link Photodesign Disponível em:

<http://www.istoe.com.br/reportagens/288556_POR+QUE+AS+COTAS+RACIAIS+DERA

M+CERTO+NO+BRASIL#>. 2013. Acessado em: 12/04/2014.