a construÇÃo de identidades etnicorraciais...

117
A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA DO TEATRO DO OPRIMIDO, DE AUGUSTO BOAL Francisco Wescley Bruno Sampaio de Araujo Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Relações Etnicorraciais, Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, CEFET/RJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de mestre em Relações Etnicorraciais. Orientadora: Profª. Eneida Leal Cunha, Doutora Rio de Janeiro Dezembro - 2014

Upload: vothien

Post on 14-Feb-2019

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA DO TEATRO DO OPRIMIDO, DE AUGUSTO BOAL

Francisco Wescley Bruno Sampaio de Araujo

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Relações Etnicorraciais, Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, CEFET/RJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de mestre em Relações Etnicorraciais.

Orientadora:

Profª. Eneida Leal Cunha, Doutora

Rio de Janeiro

Dezembro - 2014

Page 2: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

ii

A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA DO TEATRO DO OPRIMIDO, DE AUGUSTO BOAL

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Relações Etnicorraciais, Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, CEFET/RJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de mestre em Relações Etnicorraciais.

Francisco Wescley Bruno Sampaio de Araujo

Aprovada por:

______________________________________________

Presidente, Profª. Eneida Leal Cunha, Doutora (orientadora)

________________________________________________

Profª. Liv Rebecca Sovik, Doutora

_____________________________________________________

Profª. Dra. Adriana Schneider Alcure, Doutora (UFRJ)

Rio de Janeiro

Dezembro – 2014

Page 3: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

iii

Page 4: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

iv

DEDICATÓRIA

Dedico esse trabalho a todos os companheiros de luta, professores e arte educadores

conhecidos e desconhecidos, que empregam suas vidas em ensinar o amor através

das relações etnicorraciais, entre todos os cidadãos.

Page 5: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

v

AGRADECIMENTOS

À minha família, Ciné, Zélia, Wéllida, Beatriz e Kayo, por serem minha fonte de inspiração de vida, por serem meu porto seguro, e em especial às minhas tias educadoras, influências direta na minha vida educacional, Tia Fátima Sampaio e Tia Lena Sampaio.

À minha orientadora Profª. Eneida leal Cunha, pelo grande ensinamento

repassado através das disciplinas estudadas com a mesma, e das orientações detalhadamente sinalizadas para esta dissertação.

Ao CEFET, ao Programa de Pós Graduação em Relações Etnicorraciais, em especial aos professores que me acompanham desde a Pós Graduação Lato Sensu em Relações Etnicorraciais, acompanhando de perto as lutas, a resistência e as vitórias do reconhecimento desse curso no meio acadêmico e científico, muito obrigado aos professores que colaboraram com o aprofundamento dessas questões

raciais no meu projeto de pesquisa, em especial à Profª. Nancy Rabelo, Prof. Roberto

Borges, Prof. Sérgio Costa, Profª. Renilda Barreto, Prof. Carlos Henrique Martins,

Profª. Liv Sovik, Profª. Tânia Müller e Profª. Nara Maria Costa de Santana. Aos

amigos, colegas de mestrado e companheiros de luta, Luiza Mandela, Patrícia Rodrigues, Rita Ladeira, Eliane Cruz, Ricardo Riso, Nadson Nei, Maria Cristina, Marcelo Cucco, Sirlene Ribeiro, entre outros, que continuemos seguindo nossos ideais de uma sociedade mais justa.

Ao Instituto Bola Pra Frente e ao Educandário São Pedro de Alcântara por terem me proporcionado essa possibilidade de experimentar em prática, em seus espaços físicos e com seus alunos, a metodologia apresentada e discutida aqui nesta dissertação. Ao professor e amigo Tarciso Manfrenatti por ter me cedido algumas aulas suas de filosofia para ministrar as aulas de teatro de oprimido que gerou essa dissertação.

Ao Centro de Teatro do Oprimido, pelas orientações e experiências compartilhadas, durante curso de formação, palestras e conversas informais, especialmente à Flávio Sanctum que muito contribuiu, indicando-me bibliografias específicas sobre o Teatro do Oprimido.

À Profª. Rozeli Bourguignon, pelos ensinamentos diários adquiridos no Centro Educacional da Tijuca, tornando-se para mim um grande exemplo de educadora.

À minha segunda família, um grupo de amigos que torce junto comigo e que nos momentos mais difíceis eu sei que posso contar com eles. Pessoas que acreditam e sempre acreditaram em mim, muito obrigado pelo carinho, aos meus amigos do grupo Verdades Alternativas: Renata Penajoia, Sylvia Arcuri, Luís Paulo Borges, Wallace Lopes, Érika Pinheiro, Juliano Gonçalves e Mariana Emiliano.

Page 6: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

vi

Teatro é conflito, luta, movimento, transformação, e não simples

exibição de estados de alma. É verbo, e não simples adjetivo.

BOAL( 2012)

Page 7: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

vii

RESUMO

A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA DO TEATRO DO OPRIMIDO, DE AUGUSTO BOAL

Francisco Wescley Bruno Sampaio de Araujo

Orientadora:

Profª. Eneida Leal Cunha, Doutora

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Relações Etnicorraciais, Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, CEFET/RJ, como requisitos necessários à obtenção do título de mestre em Relações Etnicorraciais.

Na perspectiva da Lei 10.639/03, acreditamos que a arte possa ser um espaço privilegiado de criação e tomada de consciência dos alunos enquanto atores político/social(ais) que são, frente aos constantes conflitos construídos na história social brasileira a partir das relações étnico-raciais, que imerge os sujeitos em uma cultura excludente e estruturada através de preconceitos. A exclusão social determinada pelo racismo, observada a partir da dimensão que o Teatro do Oprimido ao confrontar a relação “oprimido versus opressor”, e as várias outras facetas que escapam desse polo dualista, irão nos revelar os tipos de relacionamentos sociais que constituem uma das mais poderosas e perversas armas de controle e exclusão que a nossa sociedade ainda preserva, por agir na sombra da mitologia da democracia racial. Essa pesquisa propõe uma metodologia de ensino em teatro educação, para as relações etnicorraciais, que atenda a Lei 10.639/03, apresentando uma prática feita com jovens de 11 a 17 anos, parte em uma organização não governamental, e parte em uma escola de ensino formal, ambas na periferia da cidade do Rio de Janeiro. Dessa prática, foram recolhidos vários depoimentos sobre as experiências dos alunos após a prática do Teatro de Oprimido. Essas experiências foram registradas em “Diários de Bordo”, relatos esses que nos deram uma dimensão bastante objetiva do alcance dessa prática de ensino em suas Relações Etnicorraciais cotidianas.

Palavras-chaves:

Arte-Educação; Relações Etnicorraciais; Teatro do Oprimido.

Rio de Janeiro

Dezembro - 2014

Page 8: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

viii

ABSTRACT

THE IDENTITIES OF ETHNIC-RACIAL CONSTRUCTION IN THE METHODOLOGY OF THE THEATER OF THE OPPRESSED, BY AUGUSTO BOAL

Francisco Wescley Bruno Sampaio de Araujo

Advisor:

Eneida Leal Cunha, D.Sc.

Abstract of dissertation submitted to Programa de Pós-graduação em Relações Etnicorraciais - Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, CEFET/RJ, as partial fulfillment of the requirements for the degree of Master in Relações Etnicorraciais.

From the perspective of Law 10,639 / 03, we believe that art can be a privileged space for creation and awareness of our students, as political /social actors, that are facing the constant conflicts built in Brazilian social history from the ethnic-racial relations, which immerses the subject in an exclusionary and structured cultural prejudices. Social exclusion determined by racism, observed from the dimension that the Theatre of the Oppressed to confront the "oppressed versus the oppressor" relationship, and various other facets that escape this dual pole, will reveal the kinds of social relationships that constitute one of the most powerful and corrupt arms control and exclusion that our society still preserves, for acting in the shadow of the mythology of racial democracy. This research proposes a teaching methodology in theater education for the etnic and racial relations, that meets the Law 10.639/03, with a practice done with young people aged 11 to 17 years old, in part a non-governmental organization, and part in an educational school formal, both on the outskirts of Rio de Janeiro. This practice was collected several testimonies about the experiences of the students after the practice of the Theater of the Oppressed. These experiences were recorded in "Logbooks", these reports have given us a fairly objective dimension, the scope of this teaching practice in their everyday Ethnic and Race Relations.

Keywords::

Art Education; Ethnic-racial Relations; Theater of the Oppressed.

Rio de Janeiro

Dezembro - 2014

Page 9: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

ix

Sumário

Introdução 1

I. As Relações Etnicorraciais no Brasil 5

I.1 A construção da hierarquia racial e do racismo 8

I.2 A contribuição de Gilberto Freyre 11

I.3 A grande contribuição de Florestan Fernandes 14

I.4 Um retrato do racismo à brasileira. 19

II. As Relações Etnicorraciais e a Educação no Brasil 23

II.1 Entendendo o termo “etnicidade” a partir de Lívio Sansone. 28

II.2 Algumas experiências da educação brasileira com as questões

étnicas e raciais. 36

II.3 Em busca de uma Pedagogia Antirracista. 41

III. A metodologia do Teatro do Oprimido de Augusto Boal. 48

III.1 O Teatro do Oprimido 56

III.1.1 Dramaturgia Simultânea e Teatro Fórum 59

III.1.2 Teatro Imagem 60

III.1.3 Teatro Invisível 61

III.1.4 Arco-Íris do Desejo e Psicodrama 62

III.1.5 Fábrica de Teatro Popular 63

III.1.6 Teatro Legislativo 64

Page 10: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

x

IV. O Teatro do Oprimido e a construção de Identidades

Etnicorraciais: um estudo de caso 72

IV.1 Os Diários de Bordo 81

IV.2 Algumas Palavras dos Diários de Bordo 82

IV.3 Algumas Fotografias das Aulas 86

IV.4 Outros lances são possíveis 96

Conclusão 100

Referências Bibliográficas 103

Page 11: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

xi

Lista de Figuras

FIG. I.1 – Retrato Negro do Brasil.................................................................................20 FIG. I.2 – Retratos das Políticas Sociais na PNAD de 2012.........................................22 FIG. III.1 – Árvore do Teatro do Oprimido.....................................................................57 FIG.IV.1 – Meninas praticando Teatro Imagem............................................................77 FIG.IV.2 – Meninos fazendo alongamento....................................................................78 FIG.IV.3 – Meninas fazendo o jogo do espelho simples...............................................79 FIG.IV.4 – Meninas em cena com o Teatro Imagem.....................................................79 FIG.IV.5 – Alunos em cena com o Teatro Fórum..........................................................80 FIG.IV.6 – Eu com os alunos na Roda de Discussão...................................................80 FIG.IV.7 – Meninas em cena com o Teatro Imagem –Relação de Trabalho Doméstico .....................................................................................................................86 FIG.IV.8 – Meninas em cena com o Teatro Imagem –Relação de Humilhação ou Bullying na escola.....................................................................................................87 FIG.IV.9 – Grupo de Meninas em cena com o Teatro Imagem – Relação de Opressão na escola.......................................................................................................88 FIG.IV.10 – Grupo de Meninas em cena com o Teatro Imagem – Cena de expulsão do lar..............................................................................................................90 FIG.IV.11 – Grupo de Meninos em cena com o Teatro Imagem – Cena em uma penitenciária..........................................................................................................91 FIG.IV.12 – Grupo de Meninos em cena com o Teatro Imagem – Cena de violência e luta...............................................................................................................91 FIG.IV.13 – Grupo de Meninos em cena com o Teatro Imagem – Cena de opressão no trabalho.....................................................................................................92 FIG.IV.14 – Grupo de Meninos em cena com o Teatro Imagem – Cena de perseguição...................................................................................................................93 FIG.IV.15 – Grupo de Meninas com o Teatro Imagem – Cena de vários tipos de opressão...................................................................................................................93 FIG.IV.16 – Grupo de Alunos em cena com o Teatro Fórum – Cena de opressão de gênero..................................................................................................... 94 FIG.IV.17 – Alunos no Teatro Fórum – Sessão de abraços..........................................95 FIG.IV.18 – Desenho de um aluno do 5º. ano, representando uma das cenas apresentadas durante o Teatro Imagem sobre Preconceito na Escola........................97 FIG.IV.19 – Meninas em cena de Teatro Imagem sobre Preconceito na Escola.........97 FIG.IV.20 – Meninos em cena de Teatro Imagem sobre Racismo no Futebol.............98

Page 12: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

1

INTRODUÇÃO

Como chegar em um espaço onde a maioria dos alunos são negros, e você,

um sujeito branco, possa levantar a discussão sobre atos de racismo praticados pelos

mesmos e observados em seu cotidiano escolar, sem que isso cause algum tipo de

constrangimento para ambas as partes e propor alguma atividade educacional que os

leve a refletir sobre as relações sociais marcadamente negativas, em relação à

diferença étnica e racial de seus amigos ou colegas de escola?

Como eu, branco, posso interferir de forma positiva para levantar esta questão

racial, sem que eu seja visto, primeiramente, como o branco detentor do saber

querendo ditar as normas de comportamento dos alunos negros?

Acredito que essas são as primeiras interrogações que um educador deva

fazer, ao tentar planejar alguma aula que tenha como objetivo levantar as discussões

em torno das relações etnicorraciais de seus alunos. Assim aconteceu comigo!

Quando falamos em relações etnicorraciais, estamos nos referindo a todos os

sujeitos sociais, não só aos negros, mas também considerando qual o papel do sujeito

branco nessas discussões. Que postura o branco deve assumir, para deixar bastante

claro seu posicionamento político a favor das causas das lutas negras e mostrar-se

como um branco aliado? É uma relação bastante delicada, mediante os privilégios e o

lugar de poder que nossa sociedade mantém aos indivíduos brancos e o lugar de

exclusão e perseguição ainda destinados aos indivíduos negros. É nosso papel a

desconstrução desses estigmas que marcam nossa sociedade hierarquicamente e

constroem um abismo social, principalmente para os negros e negras que tentam, com

muita luta e resistência, uma participação mais justa e democrática em nossa

sociedade, com seus direitos garantidos.

Reconhecer-se nessas relações como “branco” tornou-se importante para mim,

enquanto pesquisador das relações etnicorraciais, reconhecendo um dos principais

agentes do racismo, que é a cor da pele, o que Kabeguele Munanga chama de

“Geografia do corpo”, na qual por mais título, posição social ou econômica que o

indivíduo venha a ter, a sua pele será sempre uma marca relevante nas relações

cotidianas, que ditará, em determinados lugares, tratamentos diferenciados.

A pesquisa que deu origem a esta dissertação surgiu a partir de uma prática

educacional com o teatro, ministrada com jovens entre 10 a 17 anos, moradores de

bairros periféricos da cidade do Rio de Janeiro, na qual pudemos ver cenas de

opressão vivenciadas ou observadas em seus cotidianos encenados a partir das

técnicas do Teatro do Oprimido, como forma de reflexão e possível mudança de

Page 13: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

2

postura política destes alunos, mediante o confronto com determinadas atitudes de

preconceitos e exclusão social.

A partir da técnica do Teatro Fórum, um problema é apresentado em cena, e

pede-se que a plateia interfira, ou seja, entre em cena, para apresentar suas

resoluções para o problema. Dessa forma, o praticante de Teatro do Oprimido é

levado a refletir sobre determinados problemas sociais, vivenciando-os, como o

próprio criador do método, Augusto Boal, sempre ressaltou, como um ensaio para uma

possível revolução na vida.

Os especialistas em Teatro do Oprimido, aqueles que organizam os exercícios,

jogos e dirigem as cenas organizadas a partir da utilização de técnicas desenvolvidas

por Augusto Boal e sua equipe, são chamados de Coringas. Eles também são

comparados ao coringa das cartas de baralho, que assume determinados papéis de

acordo com a necessidade do grupo, da encenação, instigando a plateia à

participação, apesar da sua pouca interferência na cena e nas discussões. A postura

de coringa me ajudou bastante a assumir esse papel de condutor das discussões em

sala de aula, sem grandes interferências, onde os alunos por si mesmos levantavam

seus questionamentos em cena, ou nos fóruns, sentindo-se como agentes condutores

daquele debate, ou seja, imprimindo nas cenas e reconhecendo suas próprias

necessidades de discussões raciais, partindo de suas vivências cotidianas.

Em várias cenas desse cotidiano, as questões étnicas e raciais estavam

presentes, seja através dos discursos de exaltação à ideia de democracia racial, ou à

ideologização da branquitude, como fator de ascensão social, ou até mesmo em

denúncias de racismos. Dessa forma, a turma nos trouxe um arsenal de

problematizações etnicorraciais, pronto para ser trabalhado na sala de aula, cabendo

ao professor de teatro a função de orientador dessas discussões em prol de um

espaço educacional mais democrático e justo para todos os alunos.

Observei que essa prática pode tornar-se uma importante experiência na vida

de nossos alunos, então resolvi desenvolver um projeto de pesquisa e apresentar

como proposta de dissertação para o Mestrado em Relações Etnicorraciais, do Centro

Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, e apresento aqui o

resultado destes dois anos de pesquisas e discussões.

No primeiro capítulo da dissertação abordarei teoricamente a construção das

relações etnicorraciais no Brasil, a partir de alguns autores que marcaram fortemente

tanto a construção da longa convivência dos brasileiros com a discriminação quanto a

abordagem crítica do racismo e ainda a história de luta e resistência dos povos

negros. Entre esses autores, menciono Silvio Romero, Gilberto Freyre, Florestan

Fernandes, Lília Schwarcz, Carlos Moore e Stuart Hall, para entendermos como a

Page 14: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

3

construção étnica e racial foi se desenvolvendo, e como ela se encontra representada

em nossa sociedade nos dias atuais, levando-nos a entender as particularidades

nessas relações que faz com que o “racismo” a brasileira, seja algo tão difícil de se

combater, por conta da sua camuflagem nas relações de cordialidade e de falsa

integração na sociedade brasileira. Essa falsa integração, muito bem simbolizada

pelos discursos de exaltação à mestiçagem, na qual todos também somos negros,

porém a cor da pele ainda é uma marca de perseguição e impedimento de livre

trânsito dos negros e até dos negro-mestiços em determinados espaços públicos,

além das desconfianças e perseguições policiais, onde negros e negras são sempre

confundidos como bandidos e arruaceiros. Como desconstruir essa ideologia ainda

presente em nossa sociedade, que a todo instante promove atos de racismo, ao

mesmo tempo em que defende ser uma sociedade não-racista?

Em seguida, desenvolvi um capítulo sobre a inserção das relações

etnicorraciais no campo educacional, desde a luta pelos direitos de negros e negras ao

acesso à educação, até a Lei 10.639/03, que tornou obrigatório o ensino de história e

cultura africana e afro-brasileira nas escolas de ensino básico brasileiras. A partir da

análise das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações

Etnicorraciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, procurei

compreender de que forma as aulas com a metodologia do Teatro do Oprimido

poderão atender as reivindicações contidas nesse documento, construído com a

colaboração da SEPPIR (Secretaria Especial de Políticas de Promoção à Igualdade

Racial), grupos do Movimento Negro, Conselhos no âmbito estadual e municipal de

Educação, além de professores compromissados em trabalhar os assuntos

etnicorraciais em sala de aula. Este documento nos orienta a desenvolver uma

pedagogia antirracista, para desconstruir alguns valores propagados pela sociedade

brasileira. Entre esses valores e equívocos está a preocupação dos professores em

como identificar seus alunos enquanto negros ou pretos sem causar alguma ofensa.

Para superar esse problema, basta que o professor entenda que, no Brasil, é negro

quem assim se autodefine, assumindo uma postura política. Outro equívoco é o de

achar que os negros também são racistas porque também discriminam outros negros,

não podemos esquecer entretanto a construção ideológica do branqueamento, que

defendia que pessoas brancas possuíam inteligência superior. Outro equívoco ainda é

o de que essas discussões seriam de interesse somente ao Movimento Negro e dos

que se interessariam em estudá-los, não à escola. Uma última questão, levantada

pelas Diretrizes, é a falsa ideia de que o racismo, o mito da democracia racial e a

ideologia do branqueamento só atingem os negros. Todos estão envolvidos nesse

processo enquanto indivíduos participantes de uma sociedade, então discutir as

Page 15: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

4

relações etnicorraciais deve ser obrigação de todos, independente da sua origem

étnica.

No terceiro capítulo apresento o Teatro do Oprimido, fazendo uma relação das

suas técnicas, jogos e exercícios, com uma possível metodologia educacional, para

entendermos como o projeto analisado pode fazer parte do currículo escolar, como

possibilidade pedagógica antirracista nas aulas de teatro, nas escolas de ensino

regular.

Por último, no capítulo IV, veremos uma análise das ações e das observações

feitas a partir de práticas do Teatro do Oprimido, primeiramente feito por jovens de

uma organização não governamental, e depois com crianças do 5º ano do ensino

fundamental I de um escola de ensino regular, todos de bairros periféricos da cidade

do Rio de Janeiro, que apresentam como característica comum serem jovens

pertencentes à famílias com baixa renda e com considerável vulnerabilidade social.

Propor uma metodologia de ensino para as relações etnicorraciais é atender o

que nos orienta a Lei 10.639/03, e com isso contribuir com a sua implantação em um

território cheio de conflitos, como é o escolar. Através da arte, especificamente do

ensino de teatro, com a metodologia do Teatro do Oprimido, de Augusto Boal,

poderemos ter em sala um território crítico e fecundo para novas conformações

sociais, desconstruindo estereótipos, em prol de relações sociais e raciais menos

opressoras, mais democráticas e justas.

Page 16: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

5

Capítulo I - As Relações Etnicorraciais no Brasil

Hoje, podemos falar em lutas pelos direitos civis de mulheres, negros, índios,

gays, ou seja, grupos denominados “minorias”, por conta da falta de acesso dos

mesmos a determinados benefícios e serviços sociais, da privação de determinados

direitos, e da falta de “voz ativa” frente à sociedade hegemônica, numa luta constante

pela conquista de algum poder. Porém, para que essas lutas se tornassem legítimas,

muitos entraves se apresentaram, e ainda se apresentam a esses grupos.

Para entendermos o que são essas minorias, recorremos a um conceito

desenvolvido por SODRÉ(2005):

“Minoria não é, portanto, uma fusão gregária mobilizadora, como massa ou a multidão ou ainda um grupo, mas principalmente um dispositivo simbólico com uma intencionalidade ético-política dentro da luta contra-hegemônica” (p.11).

O autor ainda nos traz algumas características fundamentais para entendermos

uma minoria. A primeira delas é a vulnerabilidade jurídico-social, ou seja, o grupo não

é amparado pelas regras de ordenamento jurídico-social vigente, estando sempre em

constante luta para reconhecimento dos seus direitos através das políticas públicas.

Uma outra característica da minoria é a Identidade in status nascendi, pois em relação

a sua identidade social estão em constante recomeço, já que são grupos que estão

sendo redescobertos a partir de outras percepções, saindo muitas vezes das zonas

estereotipas que os relegavam à exclusão, numa eterna luta contra-hegemônica,

tornando-se essa a terceira característica para minorias. De acordo com SODRÉ

(2005), nas sociedades ocidentais tecnodemocráticas a “mídia” é um dos principais

territórios de embate dessas forças, e muitas vezes a própria mídia se utiliza de ações

envolvendo minorias apenas como “repercussão midiática”, o que devemos ter

bastante cuidado, pois constitui-se um risco de esvaziar todos os discursos defendidos

por esses grupos. A construção de estratégias discursivas é a quarta característica

para minorias, é através dessas que são construídos os espaços de embates

atualmente, que são as passeatas, invasões episódicas, gestos simbólicos,

manifestos, revistas, jornais, programas de televisão, campanhas pela internet, entre

outras.

Em relação às questões étnicorraciais,diariamente assistimos episódios de

injúria racial e racismo, veiculados nos meios de comunicação e redes sociais, ainda

embasados na velha crença da “democracia racial”, ou seja, de que somos um país

sem preconceitos por conta da miscigenação na formação do povo brasileiro. A forma

como foi feita a abolição da escravatura, como uma gesto senhorial ou imperial de

doação, arrasta até hoje um certo sentimento de “gratidão” exigido dos grupos

Page 17: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

6

escravizados e seus descendentes, transformando os personagens brancos

envolvidos nesse fato histórico em heróis e apagando todo e qualquer espaço para

uma possível reclamação de direitos sociais civis igualitários para as pessoas que se

viram livres daquele sistema opressor e violento, mas que não encontram lugar nessa

mesma sociedade que comemora efusivamente o dia 13 de maio e a Lei Áurea.

Muitos são os entraves sociais que continuam perseguindo os negros e negras

em suas atividades cotidianas, publicas e privadas, fruto dos séculos de escravidão.

Muitos comportamentos discriminatórios e posturas de inferiorização dos negros ainda

continuam presentes na sociedade brasileira, apresentando-se em sua grande maioria

de forma velada em discursos e ações que, muitas vezes são mal interpretadas,

dividindo a opinião pública sobre o que seria racismo ou não. Há uma difícil aceitação

por parte de quem pratica o racismo em enxergar essa atitude, levantando sempre os

mesmo discursos de defesa que também se considera negro por ter algum ancestral

negro, ou que não tem preconceito por ter amigos negros ou frequentar algum espaço

com práticas culturais ou religiosas comuns às comunidades negras.

O fato é que, apesar da dificuldade da nossa sociedade em reconhecer o

“racismo”, institucionalizado inclusive em alguns espaços públicos e privados, a

ausência de afrobrasileiros em determinadas posições de prestigio ainda é muito

grande. Apesar de termos algumas políticas públicas já aprovadas para, pelo menos,

tentar mudar esse quadro, até essas iniciativas são alvos de constantes insatisfações

e críticas, como é o caso das ações afirmativas e das cotas raciais, que ao facilitarem

o acesso de jovens negros e negras à universidade causaram um certo incômodo na

comunidade acadêmica, com o discurso de que isso aumentaria mais ainda o

preconceito racial, provocando uma espécie de segregação entre alunos regulares e

alunos cotistas. Os que são contra o sistema de cotas defendem um regime de

“meritocracia”, ou que se houvesse algum programa de democratização do acesso ao

ensino superior, que esse fosse destinado ao estudante de escola pública em geral,

mas não especificamente ao negro.

A Lei Federal nº 12.711/2012, de 29 de agosto de 2012, reserva 50% das

vagas ofertadas nos cursos de graduação para estudantes que cursaram todo o

ensino médio na rede pública e, destas, 50% para alunos cuja renda familiar per

capita seja de até um salário mínimo e meio, é o que está sendo chamado de cota

renda. A Lei de cotas prevê ainda a destinação de um percentual destas vagas de

estudantes de escolas públicas, para alunos autodeclarados pretos, pardos ou

indígenas. Essa porcentagem não é fixa e varia para cada unidade da Federação, de

Page 18: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

7

acordo com a proporção dessas autodeclarações indicadas no último Censo do Instituto

Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) referente ao estado em que está a instituição

de ensino. Esse cálculo é feito levando em consideração apenas as vagas reservadas pela

lei, ou seja, a cota racial está dentro da cota social de 50% das vagas.

Essa determinação deve ser cumprida até 30 de agosto de 2016, mas já em

2013 as instituições tiveram que separar 25% da reserva prevista, ou 12,5% do total

de vagas para esses candidatos. O texto da Lei fala apenas sobre as instituições

federais de ensino superior da rede federal, ou seja, cerca de 59 universidades federais e

40 institutos federais (dois centros de educação tecnológica e o Colégio Pedro II, no Rio de

Janeiro). Essas são as instituições que terão que se adequar à nova lei, quando ela entrar

em vigor.

Outra proposta de Política Pública foi a aprovação da lei 10.639, de 2003, para

a educação, a qual tornou obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e

Africana, como forma de reconstrução da imagem do negro e de sua história nos livros

didáticos e nas relações construídas nos espaços educacionais, de forma a tentar

diminuir o grande número de “fracasso escolar” apresentados por alunos e alunas

negras em nosso país. Apesar da Lei estabelecer uma obrigatoriedade, 11 anos após

a sua aprovação muito pouco foi feito para a sua efetivação nos espaços escolares,

onde a mudança encontra vários empecilhos, tanto por conta da ausência de

profissionais capacitados para trabalhar com os conteúdos exigidos pela lei, quanto

pelo descaso que faz com que a concebam como algo de menos importância, seja por

fatores ideológicos, como é o caso da defesa da miscigenação e o argumento da não

existência de racismo, quanto ainda por fatores religiosos, que impedem toda e

qualquer menção às culturas afro-brasileiras e africanas, considerando-as negativas

para os padrões de uma sociedade, que deveria ser laica, mas é fortemente marcada

com valores cristãos.

Observamos que apesar das tentativas para minimizar os resultados da

exclusão racial ainda presente na sociedade brasileira, muitos dos pensamentos que

corroboraram com essa exclusão ainda se encontram impregnados nas relações e

práticas cotidianas do povo brasileiro, que permite a confraternização entre todos

numa roda de samba, ou de capoeira, por exemplo, mas que ao mesmo tempo ainda

dita regras de convivências sociais nas quais impedem negros e negras de acessarem

os elevadores sociais, já que os mesmos dificilmente são reconhecidos em outros

espaços em condições que não sejam de subalternidade.

Page 19: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

8

No livro Racismo e Sociedade, Moore, o autor, associa a insensibilidade como

produto do racismo, ou seja, que um mesmo indivíduo pode angustiar-se com

qualquer outro tipo de sentimento na sociedade, menos com o terrível quadro da

opressão racial no Brasil, encontrando no mito-ideologia da “democracia racial” uma

formulação bem elaborada para sustentar esse pensamento: “O racista nega esse

quadro e, o que é pior, justifica-o. Ele combate de maneira ferrenha qualquer proposta

tendente a modificar o status quo sociorracial, usando dos mais variados argumentos

universalistas, integracionistas e republicanos”. (MOORE, 2007, p. 23), e ainda

acrescenta que esse “auto-engano” é um dos grandes obstáculos que impedem o

avanço da sociedade brasileira. Entender esses argumentos e analisar como se deram

tanto os debates sobre a formação do povo brasileiro quanto à estruturação das

nossas relações etnicorraciais, durante a história das lutas raciais em nosso país, faz-

se necessário, para entendermos o que ainda se preserva no imaginário do povo

brasileiro em relação às questões etnicorraciais e porque lhes custa tanto abandonar

este ideário.

O apego nacionalista à construção histórica hegemônica e seus heróis, ao

passar por uma releitura na qual a voz que se ouve agora é a do excluído, vem

causando reações adversas em determinados setores da sociedade, porém para

MOORE(2007) relembrar esse processo de construção de uma Nação também faz-se

necessário para a implementação de medidas públicas, e tentar reduzir esses

impactos acumulativos, apesar de contrariar aqueles grupos que sempre se

beneficiaram, de qualquer maneira, desse status quo.

I.1 A construção da hierarquia racial e do racismo

Segundo SCHWARCZ(1998), as teorias raciais chegaram ao Brasil por volta do

século XIX, no momento em que a abolição da escravidão tornava-se irreversível.

Durante a escravidão no Brasil, que durou mais de três séculos, um total de 3,6

milhões de africanos deram entrada nesse novo continente, alterando

consideravelmente sua composição social, tanto em relação as cores quanto aos

costumes dos povos locais e dos agentes coloniais. Cerca de um terço da população

africana que deixou seu país rumo às Américas, veio escravizada para o Brasil, sendo

a escravidão um dos primeiros fatores de legitimação, em nossa sociedade, da

inferioridade dos grupos de negros e negras.Também por conta de sua condição de

escravizados, o trabalho era o destino e a função primordial de cada um deles, além

da violência, já que falamos de posse de um homem por outro.

Page 20: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

9

A possibilidade do fim da escravidão, e até mesmo da monarquia, trouxeram à

discussão as questões e teorias raciais que estavam em voga na segunda metade do

século XIX, já que até então os escravos por serem propriedade era vistos como “não

cidadãos”. Como esses seriam vistos quando concedida sua liberdade? Procuraram-

se então outras formas de separação e legitimação da inferioridade dos africanos e

seus descendentes, tendo como fundamento a ciência positivista e determinista, para

marcar as desigualdades naquela sociedade que estava em vias de transformação, e

com isso sedimenta-se a ideia de “raça” que temos hoje: “A raça era introduzida,

assim, com base nos dados da biologia da época e privilegiava a definição dos grupos

segundo seu fenótipo, o que eliminava a possibilidade de se pensar no indivíduo e no

próprio exercício de cidadania” (SCHWARCZ, 1998, p.188).

Essas teorias, ao serem introduzidas no Brasil, passaram por uma adaptação

particular, ou seja, além de absorver as ideias relativas à diferença hierarquizada das

raças, rejeitou-se a noção que se propagava em outros países de que a mestiçagem

causava a degeneração da sociedade, apostando numa miscigenação positiva, desde

que ela embranquecesse cada vez mais as futuras gerações. Porém, ainda não se

aceitava o mestiço como um representante positivo da sociedade brasileira. Os

seguidores dessa teoria só acreditavam em uma miscigenação positiva se o resultado

fosse o indivíduo branco.

Encontramos muito dessas teorias nos estudos de Silvio Romero, pesquisador

sergipano formado em Direito e grande colaborador como crítico da Literatura

Brasileira, que também defende o “branqueamento” da população brasileira a partir

dos cruzamentos entre os povos que formaram nossa sociedade com um contingente

cada vez maior de indivíduos brancos, introduzidos no país através das políticas de

estímulo à imigração europeia. Em seu livro História da Literatura Brasileira, datado de

1888, o mesmo nos traz um panorama de como era identificada a nação na época:

“A estatística mostra que o povo brasileiro compõe-se atualmente de brancos arianos, índios tupis-guaranis, negros quase todos do grupo banto e mestiços destas três raças, orçando os últimos certamente por mais de metade da população. O seu número tende a aumentar, ao passo que os índios e negros puros tendem a diminuir. Desaparecerão num futuro talvez não muito remoto, consumidos na luta que lhes movem os outros ou desfigurados pelo cruzamento” (ROMERO, 1888, p.20).

Apesar de relatar que os negros são “mais da metade da população”, acredita

que seu número, assim como do índio, tende a diminuir porque considera que o

branco tem o fator genético mais forte e tende a prevalecer nos cruzamentos de raças,

citando o “mestiço” como “a genuína formação histórica brasileira”, que mais cedo ou

Page 21: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

10

mais tarde irá se confundir com o branco. Além da mistura, ROMERO(1888) também

ressalta a função que as pestes e as guerras teriam para dizimar grande parte dos

indígenas, assim como os trabalhos forçados e outras mazelas comuns à escravidão

já tinham feito a sua parte também para com os africanos. A conclusão que o

pesquisador chega é que: “Dentro de dois ou três séculos a fusão étnica estará

completa e o brasileiro mestiço bem caracterizado” (p.21). Já que poderiam contar

também com o fim do tráfico dos africanos, ou seja, o país não receberia mais negros,

e o início da imigração europeia, cuja consequência era a grande entrada da raça

considerada positiva para o futuro da nação. A ideia principal era apagar, através da

diluição da mistura embranquecedora, todo e qualquer vestígio das raças

consideradas inferiores, a negra ou a indígena.

Romero também nos descreve o que seria “nacionalidade”, explicitando que o

mesmo é um termo e não um princípio original, ou seja, é algo construído a partir “de

uma quantidade de combinações, fusões, de eliminações e de associações, de toda

espécie”. (p.21) Acreditando sempre que a raça branca iria prevalecer, e os mestiços

aos poucos iriam sumir (ou se confundir com os brancos puros), afastando-se da ideia

de hibridismo, considerado pelo mesmo como “fraqueza e esterilidade radical” após

sucessivas gerações. Deste processo surgiria finalmente a nacionalidade brasileira.

Outra conclusão sobre as questões étnicas, que ROMERO(1888) expõe é o

possível desequilíbrio na comparação, quanto à imigração, entre as regiões Norte e o

Sul do país, que poderia acarretar numa possível luta por independência e

desarticulação dentro do território brasileiro, dado a formação de um grupo mais forte

a partir da miscigenação com os povos europeus. O sul estava recebendo um maior

número de imigrantes brancos, em comparação ao Norte, o que poderia ocasionar:

“um tão grande excedente de população germânica, válida e poderosa, que a sua

independência será inevitável” (p.28). Com essas palavras podemos ter uma

dimensão do poder transformador e saneador, que se enxergava na época, que essa

miscigenação positiva poderia trazer à nação.

O processo de abolição do sistema escravista brasileiro já ocorre então,

carregado por todos esses pensamentos, desde a crença que o futuro seria de uma

nação branca, com uma política agressiva de incentivo à imigração, ao alívio de uma

libertação que não precisou de lutas nem conflitos tão intensos como foram os de

outros países. A ideia da abolição enquanto uma “dádiva”, diferentemente do que se

viu com o apartheid na África do Sul ou a Jim Crowl nos Estados Unidos, compõe uma

imagem que até hoje persiste e que marcou as relações sociais após abolição do

Page 22: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

11

trabalho escravo no país e que vai culminar no mito da democracia racial. O que

ocasionou em um grande fardo com que negros e negras teriam que conviver, a da

ideia de uma escravidão benigna:

“De toda maneira, ao contrário de outras nações, onde o passado escravocrata sempre lembrou violência e arbítrio, no Brasil a história foi reconstruída de forma positiva, mesmo encontrando pouco respaldo nos

dados e documentos pregressos” (SCHWARCZ, 1998, p.188).

Ruy Barbosa, quando ministro das Finanças no Brasil, em dezembro de 1890,

ordenou que todos os arquivos nacionais existentes sobre a escravidão em nosso país

fossem queimados. Mesmo que não se tenha conseguido destruir toda a

documentação do escravismo, a ideia de apagar o passado e começar uma nova

história ficou bastante clara com essa atitude, e o que assistimos após esse episódio

fatídico foi o desenrolar de histórias românticas entre senhores e escravos, que apesar

de uma relação severa, desenhavam-se com os traços de um forte sentimento

paternalista.

I.2 A contribuição de Gilberto Freyre

Nos anos de 1930 começava a se instaurar no Brasil um movimento de

exaltação do país, que negava o pessimismo racial provocado pelas teorias

darwinistas sociais. A cultura mestiça começava a ser vista como a representação

oficial da nação. Buscava-se uma identidade nacional e a criação de símbolos pátrios.

Concepções como cenas públicas e privadas, povo e passado tornaram-se elementos

essenciais para a construção desta “comunidade imaginada”; ainda segundo

SCHWARCZ (1998),vimos que: “nesse sentido, a narrativa oficial se serve de

elementos disponíveis, como a história, a tradição, rituais formalistas e aparatosos, e

por fim seleciona e idealiza um ‘povo’ que se constitui a partir da supressão das

pluralidades” (p. 193)

A publicação de Casa Grande & Senzala, de 1933, marca esse momento de

busca de ícones de identidades e retoma as experiências de convivência da vida

privada entre as “três raças”, fazendo desta, exemplo de identidade.

Gilberto Freyre nos traz uma descrição tão bem detalhada das relações que se

traçavam na Casa Grande, que nos leva a refletir o quanto dessas relações

influenciaram e ainda continuam vivas no cotidiano brasileiro. Observamos uma

relação de cordialidade ainda repleta de características escravistas profundas. Lutar

contra esses comportamentos é lutar contra um sentimento encharcado de uma

memória afetiva romantizada pelos afetos traçados entre as relações domésticas, que

Page 23: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

12

de nada serviram para mudar a forma como o negro ou a negra eram ou são vistos

negativamente ou, o contrário, não contribuiu para que fossem respeitados e inseridos

socialmente como cidadãos com seus direitos assegurados.

Freyre ao afirmar que “todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na

alma, quando não na alma e no corpo – há muita gente de jenipapo ou mancha

mongólica pelo Brasil – a sombra ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro”.

(FREIRE, 2007, p.283), traz um discurso diferente de miscigenação, em relação ao

apresentado anteriormente por Silvio Romero, já que agora há uma positividade na

mestiçagem e uma relação afetiva para com as culturas africanas e indígenas na

formação do povo brasileiro.

FREYRE(2007) também vai contra a ideia de enfraquecimento através da

miscigenação,ressaltando que nem o negro nem o índio deviam ser responsabilizados

por algo que escapava dos seus domínios, que fazia parte de um sistema social e

econômico, onde os mesmos estavam inseridos mas de forma passiva e mecânica, e

que muitas vezes essa miscigenação aconteciam mais pelos caprichos sexuais dos

senhores, que detinha o poder sobre os escravos, do que propriamente da livre

vontade de cada um, “não era o negro, portanto, o libertino: mas o escravo a serviço

do interesse econômico e da ociosidade voluptuosa dos senhores” (p.320), ou seja, a

fonte de corrupção não era da “raça inferior” em si, mas sim no abuso de uma raça por

outra.

A “casa-grande”, segundo Freyre, aos poucos ia construindo uma relação de

intimidade aos moldes do espaço interno e familiar. Foi essa memória afetiva a grande

herança que se propagou em grande parte nas relações raciais brasileiras:

“À casa-grande fazia subir da senzala para o serviço mais íntimo e delicado dos senhores uma série de indivíduos – amas de criar, mucamas, irmãos de criação dos meninos brancos. Indivíduos cujo lugar na família ficava sendo não o de escravos mas o de pessoas da casa. Espécie de parentes pobres nas famílias europeias. À mesa patriarcal das casas-grandes sentavam-se como se fossem da família numerosos mulatinhos. Crias. Malungos. Muleques de estimação. Alguns saíam de carro com os senhores, acompanhando-os aos passeios como se fossem filhos” (p.352).

É com esse discurso de valorização da miscigenação, de que todos nós somos

iguais porque somos uma mistura, que as Relações Etnicorraciais no Brasil se

construíram mediante a mitologia de uma Democracia Racial, ou seja, somos o

paraíso racial porque em nossa história não construímos estruturas organizativas e

leis explícitas que sustentassem formalmente o preconceito ou exclusão. O “mestiço”

nessa época torna-se então um símbolo de nacionalidade, porém para que seus

Page 24: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

13

elementos fossem aceitos e incorporados à cultura brasileira, houve um processo de

desafricanização de alguns elementos culturais, passando por um simbólico

clareamento. SCHWARCZ(1998) cita como exemplo a feijoada, explicada da seguinte

forma para legitimar a relação pacífica entre brancos e negros em nosso país:

“A princípio conhecida como ‘comida de escravos’, a feijoada se converte,

em ‘prato nacional’ carregando consigo a representação simbólica da

mestiçagem. O feijão (preto ou marrom) e o arroz (branco) remetem

metaforicamente aos dois grandes segmentos formadores da população.

A eles se juntam os acompanhamentos – a couve (o verde das nossas

matas), a laranja (a cor de nossas riquezas). Temos aí um exemplo de

como elementos étnicos ou costumes particulares viram matéria de

nacionalidade” (p. 196).

Outro exemplo foi a capoeira, que era reprimida como crime pelo Código Penal

de 1890, passava então, oficialmente, à modalidade esportiva nacional em 1937, e

reconhecida como Patrimônio Imaterial Brasileiro em 26 de novembro de 2014; o

samba, que nos anos 30 passou de repressão à exaltação, e recebendo a partir de

1935 subsídios oficiais para os seus desfiles. Também fizeram parte desse projeto de

exaltação à cultura negro-mestiça como símbolo nacional: a aceitação, em 1923,

abertamente de negros por um clube de futebol, o Vasco da Gama; a liberação dos

atabaques do candomblé sem a perseguição policial a partir de 1938; a inclusão do

Dia da Raça, 30 de maio, no calendário cívico do Estado, no ano de 1939; o momento

também coincide com a escolha de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, como

padroeira do Brasil, em 1930, que SCHWARCZ (1998) compara como uma

Macunaíma às avessas, já que diferente desse a imersão nas águas do rio Paraíba

Sul teriam escurecido a Virgem. Associado a todo esse ambiente e principalmente às

rodas de samba, a imagem do malandro brasileiro, também é reconhecida como

símbolo nacional, e marcará a imagem do negro na sociedade com suas

características:

“Bem-humorado, bom de bola e de samba, o malandro era mestre em um tipo de postura resumida, nos anos 50, na famosa expressão ‘jeitinho brasileiro’: aquele que longe dos expedientes oficiais usava da intimidade para seu sucesso” (SCHWARCZ, 1998, p. 201)

A influência dessa personagem emblemática foi tão grande, que o

Departamento Nacional de Propaganda, o DIP, a partir de 1938, tentou reverter esse

quadro através da divulgação de uma imagem mais relacionada ao trabalho,

aconselhando inclusive os compositores de sambas a fazerem exaltações e apologias

ao trabalho e condenação à boemia. Ou seja, o negro, relacionado ao malandro,

carregava para os anos 30 o estigma da aversão ao trabalho, assim como o

estereótipo da mulata, que seria uma versão feminina do malandro, sempre vista como

Page 25: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

14

uma mulher festeira, leviana e disponível, mais tarde transformada em produto de

exportação por conta da sua beleza exótica e sensual, que ainda hoje é fetiche dos

estrangeiros, e por vezes alimentam um comércio de exploração sexual.

Segundo SCHWARCZ(1998) O grande problema desse processo de

nacionalização, ao transformar alguns símbolos da cultura negra em produtos da

miscigenação brasileira e modelo de igualdade racial, é que deslocavam ou

escondiam questões que mereceriam grande atenção, como as desigualdades e a

violência cotidiana, como assuntos irrelevantes e menosprezados, já que

aparentemente a sociedade brasileira não comportaria desigualdades e

discriminações raciais, constituindo numa espécie de “paraíso racial”. Esta imagem

racial de democracia, difundida por estratégias políticas e produtos culturais como a

literatura de Jorge Amado, teve grande repercussão internacional à época, a ponto de,

em 1951, no tenso contexto do pós-guerra, ter sido aprovado pela UNESCO o

Programa de Pesquisas sobre Relações Raciais no Brasil, com o intuito de usar o

exemplo brasileiro como inspiração para outros países.

Um grupo de especialistas foi convidado para esse projeto, como Costa Pinto,

Roger Bastide, Oracy Nogueira, Florestan Fernandes, entre outros. Embora o ponto de

partida fosse um elogio à mestiçagem brasileira, considerada então modelar, o que os

mesmos encontraram na sociedade foi um quadro surpreendente de discriminação e

preconceito.

I.3 A grande contribuição de Florestan Fernandes

Nas analises de Florestan Fernandes, observamos que a sua abordagem racial

tem como fundamento o ângulo da desigualdade, questionando não somente a

democracia racial, mas também as suas bases, de como a mesma fora construída, o

que colocou em “xeque” essa ideia de que éramos uma sociedade bem resolvida

racialmente, já que a distribuição social não igualitária entre os grupos raciais se dava

em relação ao preconceito e à discriminação racial exercida principalmente contra os

negros: “As tendências históricas de diferenciação de reintegração da ordem social

não favoreciam, de per si, nenhum agrupamento étnico ou racial determinado. Todavia

isso acabava acontecendo, por vias indiretas" (FERNANDES, 1978, p.247).

Demonstrando a “desvantagem” dificilmente superada por quem um dia foi agente de

trabalho escravo, no caso, os negros.

O autor percebeu em seus estudos a presença de um tipo particular de

racismo, que era “o preconceito em ter preconceito”, pois o brasileiro continuava

Page 26: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

15

discriminando mesmo que rejeitasse esse tipo de atitude. Fernandes enxergava esse

tipo de atitude como uma consequência de um “etos católico”, embasado na moral

cristã, e de um racismo que aparece em “foro íntimo”, ou seja, apropriado à intimidade

do lar, tornando-se quase um estilo de vida, como menciona SCHWARCZ(1998, p.

204) “É como se os brasileiros repetissem o passado no presente, traduzindo-o na

esfera privada”

Associado à miscigenação como forma de camuflar a presença da

estratificação racial em nossa sociedade, encontramos a idealização do

branqueamento, para a qual quanto mais branco o indivíduo fosse, mais bem acolhido

e próspero seria o mesmo na sociedade. Também encontramos, por volta dos anos de

1970, a figura do negro com alma branca, que representava uma figura leal ao senhor

e a sua família, como também à ordem social vigente, como bem expõe

SCHWARCZ(1998).

Fernandes considera o racismo a brasileira como dissimulado e assistemático,

utilizando pela primeira vez dados estatísticos do censo de 1950, o que era inovador

para a época, para justificar seus argumentos sobre as diferenças regionais e raciais,

e a concentração de privilégios econômicos, sociais e culturais em cada uma delas.

Revelando novas facetas da miscigenação brasileira, principalmente aquela que

mantinha enraizada uma hierarquização social, com prestígios sociais bem definidos

de acordo com classe social, educação formal e origem familiar, levando em conta as

variedades de cores e tons, o que veio a substituir a seleção anteriormente construída

sobre o patamar da ideia de raça. Fernandes chamava essa característica de

“metamorfose do escravo”, um processo de exclusão social tão forte que desenvolveu

os termos preto ou negro.

Fica bastante explícito, a facilidade que uma certa degradação social foi

construída pela escravidão, a partir do que Fernandes chama de “anomia social”, a

“pauperização” e uma “integração deficiente”, fatores que se combinam entre si e

resultam num padrão de isolamento tanto econômico, quanto sociocultural do negro e

do mulato, que “é aberrante em uma sociedade competitiva, aberta e democrática.”

(FERNANDES, 1978, p. 248)

Segundo o próprio autor, temos a sobrevivência de arcaísmo no interior de uma

ordem social moderna. Apesar de termos conquistados o fim da escravidão, o regime

escravista e colonial não desapareceu após a Abolição, como bem observou

Fernandes: “Persistiu na mentalidade, no comportamento e até na organização das

relações sociais dos homens, mesmo daqueles que deveriam estar interessados numa

Page 27: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

16

subversão total do antigo regime” (Idem, p.248), ou seja, a Abolição os projetou no

seio da plebe, “sem livrá-los dos efeitos diretos ou indiretos dessa classificação”.

(Ibidem)

Fernandes ainda esclarece que, não foi o preconceito de cor ou a

discriminação racial em si que criaram essa realidade de distanciamento social entre

negros e brancos em nossa sociedade, isso ainda é uma herança, reflexo da nossa

dificuldade em superar o fim das relações sociais vigentes no sistema escravocrata e

senhorial. Uma das funções dessa nova sociedade em vias de formação, tentando

ainda se adequar a esses cidadãos recém libertos, foi a de assegurar a continuação

de determinadas barreiras que resguardavam os seus privilégios econômicos, sociais

e políticos, já estabelecidos anteriormente ao advento da Abolição, e isso se deu de

sem qualquer temor por ambas as partes, como bem menciona FERNANDES(1978) .

“Em nenhum ponto ou momento o ‘homem de cor’ chegou a ameaçar seja a posição

do ‘homem branco’ na estrutura de poder da sociedade inclusiva, seja a

respeitabilidade e a exclusividade de seu estilo de vida” (p.250) ou seja, não

observamos nenhum embate entre esses grupos por determinados espaços de poder

nessa sociedade, o que era do branco já estava assegurado, o que acabou por

colaborar com a perpetuação das relações e comportamentos sociais do regime

escravocrata.

“Desse ângulo, as debilidades históricas, que cercaram a formação e o desenvolvimento inicial do regime de classes, contam como muito mais decisivas para a preservação de grande parte da antiga ordem racial, que as predisposições do ‘branco’ de precaver-se do ‘negro’ livre” (Idem, p.250).

Desenvolvendo o que o próprio FERNANDES(1978) chamou de “poder

dinâmico dos fatores de inércia sociocultural” (p.250), no qual o “branco” não tinha o

porquê de travar qualquer tipo de competição ou luta com o “negro”, e esse, por

conseguinte, acabava por aceitar passivamente a continuidade dos antigos padrões

raciais. Apesar do segmento “branco” ainda permanecer como a classe em ascensão,

esses não tinham motivos substanciais de identificação com a antiga elite, mas

preservam as suas “atitudes rígidas, incompreensivas e autoritárias” (p. 251). Em

relação a essa postura, viviam como se ainda estivessem no passado, e era

necessário, já que, apesar de esparsas e desordenadas, haviam algumas agitações

em torno dos problemas sociais dos negros, sempre vistas com maus olhos: “A

desconfiança tolhia, portanto, a modernização de atitudes e de comportamentos em

ambos os estoques raciais, sob a dupla presunção de que agitar certas questões só

serviria para ‘prejudicar o negro’ e ‘quebrar a paz social’” (idem, p. 252) Discurso esse

Page 28: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

17

ainda facilmente encontrado nas conversas sobre as questões raciais na sociedade

atual, quando é cogitado qualquer projeto de política pública para as comunidades

negras.

Como exigência da “defesa de paz social”, encontramos um ideal de

preparação desse negro e mulato para a condição de homem livre, como uma maneira

segura de tanto proteger o negro quanto assegurar os interesses da sociedade. Aos

poucos, os negros iam sendo gradativamente absorvidos, através de uma espécie de

“peneiramento e assimilação dos que se mostrassem mais identificados com os

círculos dirigentes da ‘raça dominante’ e ostentassem total lealdade a seus interesses

ou valores sociais” (idem, p. 253). Através de uma forma particular de integração do

negro na sociedade, baseada em estratégias para conter uma possível tensão racial,

muitos dos benefícios e garantias sociais comuns ao processo de democratização,

foram negados ao negro. Em nome de uma futura igualdade, o negro ainda continuava

preso, invisivelmente, ao seu passado de servidão.

Foi a partir dessa orientação que FERNANDES(1978) aponta o que ele

chamou de “fruto espúrio”, que era a ideia de que as relações entre brancos e negros

no Brasil eram construídas sobre os fundamentos ético-jurídicos dos regimes

republicanos vigentes, popularizando um dos grandes mitos que marcam as relações

etnicorraciais brasileiras, “o mito da democracia racial”. O autor deixa claro que esse

mito na verdade é fruto de um longo período de germinação, que começou ainda no

período escravocrata, nas avaliações que descreviam os escravos como “contendo

‘muito pouco fel’ e sendo suave, doce e cristãmente humano” (idem, p.254),porém

esse mito não fazia sentido naquela estrutura social senhorial, por conta da própria

ordem racial, mas que encontrou terreno próspero com a Abolição e a implantação da

República, só que, “Infelizmente, como no passado a igualdade perante Deus não

proscrevia a escravidão, no presente a igualdade perante a Lei só iria fortalecer a

hegemonia do ‘homem branco’” (ibidem).

Uma das consequências disso foi a generalização de uma falsa consciência

sobre as relações etnicorraciais no país, construindo algumas convicções

etnocêntricas nocivas às comunidades negras, são elas:

“1º.) a ideia de que o ‘negro não tem problemas no Brasil’; 2º.) a ideia de que, pela própria índole do Povo Brasileiro, ‘não existem distinções raciais entre nós; 3º.) a ideia de que as oportunidades de acumulação de riqueza, de prestígio social e de poder foram indistinta e igualmente acessíveis a todos, durante a expansão urbana e industrial da cidade de São Paulo; 4º.) a ideia de que ‘o preto está satisfeito’ com sua condição social e estilo de vida em São Paulo; 5º.) a ideia de que não existe, nunca existiu, nem

Page 29: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

18

existirá outro problema de justiça social com referência ao ‘negro’, excetuando-se o que foi resolvido pela revogação do estatuto servil e pela universalização da cidadania” (idem p. 256).

Muitos pensadores procuraram entender o perfil dos indivíduos constituídos

nessa sociedade na qual se exaltava a inexistência de discriminação racial por conta

de um mito, e com isso acalmava os ânimos de uma possível tensão. Um dos perfis

defendidos para esse novo brasileiro era o de “homem cordial”; por meio de uma

expressão de Ribeiro Couto, Sérgio Buarque de Holanda descrevia esse perfil a partir

de traços definidos da cultura brasileira, no qual “cordialidade” não necessariamente

significaria “boas maneiras ou civilidade”. Esse autor pretendia com a expressão

“cordial” levantar uma metafórica discussão entre a intimidade e a afetividade, ede que

forma essas posturas ditas cordiais vinham do “coração” e se expressavam

socialmente sem qualquer conhecimento formal: “Tal qual uma ética de fundo emotivo,

no Brasil imperaria ‘o culto sem obrigação e sem rigor, intimista e familiar’”

(SCHWARCZ, 1998, p.238).

Outra expressão que surgiu por conta dessa persistente estrutura intimista, e

que tentou construir o perfil do brasileiro foi a da “dialética da malandragem”, de

Antonio Candido, através da figura do bufão, ou do malandro, que perpassa entre os

espaços da ordem e da desordem, também passando pelo público e o privado: “a

intimidade seria a moeda principal e o malandro reinaria, senhor dessa estrutura

avessa ao formalismo que leva à ‘vasta acomodação geral que dissolve os extremos,

tira o significado da lei e da ordem” (idem, p. 239).

O mito da democracia racial brasileira, sempre foi utilizado para a manutenção

das estruturas de poder já definidas da nossa sociedade, “nesse sentido, é na história

que encontramos as respostas para a especificidade do racismo brasileiro” (idem, p.

241) Temos que lançar um olhar para trás e buscar entender o que ainda não foi

totalmente resolvido, em nossas estruturas sociais, que ainda arrasta uma certa

manutenção de posturas autoritárias comuns durante o sistema escravista. A autora

ainda acrescenta que “se o mito deixou de ser oficial, está internalizado. Perdeu seu

estatuto científico, porém ganhou o senso comum e o cotidiano (ibidem).

Resumindo, a importância do mito da democracia racial para essas

construções sociais se deu mais a nível das classes dominadoras do que para tornar

mais democráticas as tentativas de inserção dos negros em sociedade. Competiam

também nesse espaço os imigrantes europeus, vindos também para solucionar uma

certa crise provocada pelo final do regime escravistas, como substituição populacional

Page 30: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

19

para resolução dos problemas econômicos criados a partir do colapso do trabalho

servil:

“O fato importante, do ponto de vista sociológico, diz respeito à preservação dos papéis políticos das velhas elites. Elas orientavam o processo, no conjunto, de modo a resguardar, intocáveis, todas as suas atribuições fundamentais na estrutura de poder da sociedade. O ‘imigrante’ ou o ‘elemento nacional’ adventício aparecem em cena histórica movidos por cordões que elas dirigiam a seu bel-prazer. Não emergiam como ‘iguais’, como alguém que poderia ter vontade própria e uma orientação política autônoma” (FERNANDES, 1978, p. 266)

Enquanto as classes dominantes conservavam seu poder econômico, político e

social, restavam às demais categorias sociais a ideia propagada que cada um deveria

“fazer fortuna”, ou no caso do europeu, “fazer a América”, mas foi preciso quase três

gerações para que fossem vistos como competidores diretos das elite.

FERNANDES(1978) expõe que uma democracia não funciona sem ter um

mínimo de “equilíbrio” e “autonomia” em suas relações sociais: “só a atuação

organizada, ativa e intransigente do negro e do mulato – dadas outras condições

favoráveis – poderia assegurar tal desfecho” (p. 268); outra possibilidade seria a

utilização do mito da “democracia racial” abertamente pelos negros e mulatos, como

regulador de “anseios de classificação e de ascensão sociais, ele será inócuo em

termos da própria democratização da ordem racial imperante” (p. 269). Por enquanto,

entretanto, o que observamos é que o mito tornou-se uma forte e eficaz barreira que

impediu o progresso e o advento do negro após Abolição, e ainda encontramos rastros

desses discursos até os dias atuais.

I.4 Um retrato do racismo à brasileira.

Segundo gráfico “Retrato dos negros no Brasil” feito pela Rede Angola1, mais

da metade da população brasileira se autodeclarou negra, preta ou parda no censo

realizado pelo IBGE em 2010., porém de cada 100 alunos das universidades do país,

somente 26 são negros. Mesmo sendo um número inferior, comparado ao número de

branco, o acesso da população negra ao ensino superior aumentou 232% ao

comparar os anos de 2000 e 2010.

1 Disponível em:

http://operamundi.uol.com.br/conteudo/samuel/38587/numero+de+negros+em+universidades+brasile

iras+cresceu+230+na+ultima+decada+veja+outros+dados.shtml (acesso em 23.nov.2014)

Page 31: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

20

Figura 1.1 – Retrato Negro do Brasil. FONTE: Censo de 2010, Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais,

Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Instituto Brasileiro de Geografia e Pesquisa.

SCHWARCZ(1998) expõe que uma das maiores dificuldades em entender o

racismo a brasileira é por conta do seu caráter não oficial, diferentemente de outros

países que assistiram um embate ferrenho nesse campo de tensão racial, já que nos

mesmos estratégias jurídicas foram criadas para assegurar a legitimidade dessa

discriminação, como forma de lei. Porém, como assinala a mesma autora, “silêncio

não é sinônimo de inexistência” (p. 209), e aos poucos o racismo foi ganhando seus

contornos dentro da nossa sociedade; se antes seu embasamento era por conta da

escravidão, o racismo encontrou posteriormente uma base científica, dentro das

teorias biológicas para legitimá-lo, e depois seguiria respaldado pelas relações de

classe e reforçado pela desigualdade econômica.

O campo de embate era bastante acirrado, apesar de um sentimento estável e

apático, quase inerte às mudanças sobre as relações raciais, já que o discurso da

democracia racial prevalecia, então não havia o porquê de se reclamar de algum tipo

de discriminação. O fato é que, ainda na década de 1950 um importante passo foi

dado para tornar essa discriminação visível e passível de punição, com a aprovação

da Lei Afonso Arino, de 1951, mas sua aplicação e as punições de fato não ocorriam,

o que tornou a lei ineficaz para esse combate.

Uma outra tentativa de criminalizar o racismo aconteceu quando a Constituição

de 1988 foi regulamentada através da lei nº7716, de 5 de janeiro de 1989, na qual o

racismo foi estabelecido como um crime inafiançável, porém, só foram consideradas

discriminatórias as atitudes acontecidas em ambientes públicos, alegando-se que os

atos privados de preconceitos e ofensas de caráter pessoal não seriam possíveis de

punição por conta da impossibilidade de se ter uma testemunha para a confirmação.

Page 32: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

21

Outro fator que impossibilita a execução da lei é, em relação ao ato de

discriminação, como prender alguém que discrimina afirmando não discriminar? As

várias alegações de defesa põe a acusação sobre suspeita, ou seja, o texto da lei não

dá conta do caráter intimista das formas mais frequentes do racismo no Brasil.

Esses fatos expõem a falta de credibilidade das instâncias oficiais no combate

ao racismo, já que dados recentes nos comprovam, segundo SCHWARCZ (1998) que

não há para a população negra “uma distribuição equitativa e equânime dos direitos”

(p. 213). Podemos ver isso tanto na distribuição geográfica desigual, e a difícil

mobilidade social de determinados grupos que ocupam áreas de alta vulnerabilidade,

como os bairros mais periféricos das cidades. Essa desigualdade também interfere o

mercado de trabalho, onde os grupos de negros e pardos aparecem

desproporcionalmente na distribuição de empregos, o que interfere automaticamente

no perfil e na renda desses grupos, de acordo com o censo demográfico. Usando o

censo de 1960, “Valle e Silva comprovou que a renda média dos brancos era o dobro

do restante da população e que um terço dessa diferença podia ser atribuído à

discriminação no mercado de trabalho” (idem, p. 214).

Outro campo de diferenciação social para com os grupos de negros foi o que

Sérgio Adorno constatou ao investigar o racismo nas práticas penais brasileiras, no

qual o sociólogo pode observar um tratamento desigual de acordo com a “cor” do

indivíduo. O pesquisador mostra como ser negro é mais perigoso do que ser branco

em nosso país, e isso pôde ser observado em práticas simples do cotidiano como

preencher um formulário, por exemplo, havia uma tendência em “embranquecer-se”

quando o indivíduo podia autodefinir sua cor, ou de “enegrecer” indivíduos que faziam

parte de determinados processos penais, conforme seu andamento, podendo até a

tornar-se “pardos”, caso o processo chegasse a conclusão de que o réu não era

culpado pelo que estava sendo julgado. Ou seja, observamos a utilização da cor da

pele como prática justificativa para a condenação ou absolvição de determinados

cidadãos, marcados fortemente pelas questões raciais.

Em relação à educação, principal foco dessa dissertação, os resultados são tão

alarmantes quanto os já mencionados anteriormente. SCHWARCZ(1998) nos traz uma

análise feita pela pesquisadora Fulvia Rosenberg, sobre os dados da Pesquisa

Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) de 1982, especificamente na cidade de

São Paulo, no qual pode ser observado uma grande desigualdade, entre os grupos

etnicorraciais, em relação ao acesso ao ensino básico, e quando há esse acesso é

observado o seguinte quadro: “a maior concentração de negros nas instituições

Page 33: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

22

públicas – 97,1% comparados aos 89% brancos – e nos cursos noturnos: 13% negros

e 11% brancos” (p. 216), não deixando dúvidas sobre a discriminação existente nessa

área.

Quanto à alfabetização, as diferenças são mais notáveis ainda, contrapondo-se

entre os 30% de analfabetismo entre os negros e os 29% da população parda, estão

os 12% dos brancos, apresentados por SCHWARCZ(1998), através do Censo de

1982. Dados mais recentes, como os apresentados pelo “Caderno de Monitoramento

do PPA 2012-2015: Retratos das Políticas Sociais na PNAD de 2012”, com dados

comparativos entre os anos de 2004 e 2012, nos mostram uma queda desse

percentual para 11,8% entre os negros e 5,3% entre os brancos, porém a diferença

entre esses dois grupos ainda permanece discrepante.

Figura 1.2 – Retratos das Políticas Sociais na PNAD de 2012. Fonte: PNAD/IBGE. Elaboração SPI/MP. 2

Como forma de tentar minimizar essa realidade, a Lei 10.639, foi aprovada no

ano de 2003, cuja finalidade seria a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura

Afro-Brasileira e Africana nas escolas brasileiras, construindo espaços de identificação

positiva da imagem do negro na formação das crianças e adolescentes, além da

formulação de uma pedagogia antirracista. O que a presente dissertação propõe é

uma análise de um pratica de ensino na área de Artes, especificamente no ensino de

teatro, através da metodologia do Teatro do Oprimido, na qual contemple as

discussões sobre as Relações Etnicorraciais dentro dos espaços educacionais.

2 Disponível em:

http://www.planejamento.gov.br/secretarias/upload/Arquivos/spi/publicacoes/2014/140707_Cad_Monit_PPA-PNAD.pdf

(acesso em 23.nov.2014)

Page 34: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

23

Capítulo II - As Relações Etnicorraciais e a Educação no Brasil

O campo educacional assistiu de várias formas, inclusive através de leis que

impediam o acesso de negros e negras nos espaços escolares, atitudes de exclusão

de cunho racista. O nosso campo educacional ainda é fortemente marcado por uma

estrutura que prioriza os valores e conhecimentos eurocêntricos em detrimento de

outras culturas que também fizeram parte da formação do povo brasileiro, mas que

sempre foram consideradas de menor importância pelo poder dirigente, como é o caso

das culturas africanas e afro-brasileiras.

Como possibilidade de introduzir no sistema educacional brasileiro essas

discussões em torno dos problemas gerados a partir das relações entre brancos e

negros, por conta dos anos de escravidão impostos aos mesmos, e a consequente

omissão de toda a sua contribuição na construção cultural do nosso país, é que foi

proposta, como dito anteriormente, uma lei na qual instituía em caráter obrigatório o

ensino de História e Cultura Afro-brasileiras e Africanas nos currículos da Educação

Básica. A Lei 10.639/03 foi aprovada em 09 de janeiro de 2003, a partir de

reivindicações dos vários movimentos organizados em prol das causas que afetam

negativamente negros e negras, originada a partir do Projeto de Lei nº 259,

apresentado em 1999 pela deputada Esther Grossi e pelo deputado Benhur Ferreira.

Essa nova legislação acrescentou dois Artigos a Lei de Diretrizes e Bases da

Educação Nacional (Lei 9.394/96), são eles:

“Art.26-A- Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre história e Cultura Afro-Brasileira. Parágrafo Primeiro - O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política, pertinentes à História do Brasil. Parágrafo segundo - Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo currículo escolar em especial, nas áreas de Educação Artística e de Literatura e Histórias Brasileiras. Art.79-B – O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como “Dia Nacional da Consciência Negra”.

A partir da publicação da Lei 10.639/003, em março de 2003 e, no ano

seguinte, do Parecer 003/004 que regulamenta a implantação da lei, os debates sobre

relações raciais no Brasil tornaram-se mais intensos. Com essa lei instaurou-se, em

todos os campos que discutem o meio escolar, a necessidade de conhecermos como

as Relações Etnicorraciais se construíram e se constroem em nossa sociedade, para

Page 35: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

24

entendermos como determinadas posturas de preconceitos ainda são fatores

determinantes para o difícil acesso de negros e negras a determinados setores e

funções na sociedade.

É claro que essas relações não nascem dentro da escola, mas transparecem e

encontram nesse espaço um campo fecundo para propagação de sua legitimidade.

BOURDIEU(2007) considera como “inércia cultural” quando insistimos em considerar o

sistema escolar “como um fator de mobilidade social”, ideia essa destinada a ideologia

da “escola libertadora”, mas o que se observa é exatamente o contrário, o sistema

escolar torna-se “um dos fatores mais eficazes de conservação social, pois fornece a

aparência de legitimidade às desigualdades sociais, e sanciona a herança cultural e o

dom social tratado como dom natural” (p. 41). O autor ainda ressalta que não adianta

somente enunciar as desigualdades na escola, mas faz-se necessário que os

“mecanismos objetivos” que determinam essa exclusão sejam descritos e analisados,

para compreendermos como a eliminação de determinados grupos ainda se encontra

presente na vida de determinadas crianças, culturalmente desfavorecidas.

Cada aluno chega à escola com uma certa “herança cultural” transmitida tanto

pelos seus familiares quanto pelo seu contexto social, é o que BOURDIEU(2007)

chama de “capital cultural”, transmitido pelas famílias a seus filhos, que irá interferir

diretamente na experiência escolar dos mesmos em seus primeiros estágios

educacionais, e que os marcará diferentemente, de acordo com a herança cultural de

cada um. O autor ainda menciona que a renda familiar até contribui para o

crescimento da parcela de “bons alunos”, porém ao se comparar famílias com

diplomas iguais, a renda não exerce tanta influência assim, mas já o contrário, quando

as famílias possuem mesma renda, haverá mudanças significativas caso os pais

sejam diplomados ou não, o que permite concluir, segundo o próprio autor, que “a

ação do meio familiar sobre o êxito escolar é quase exclusivamente cultural” (p.42).

Mas não devemos nos ater somente a esse pensamento porque, de certa

forma, abstém a escola de sua responsabilidade de perpetuação das desigualdades

sociais. BOURDIEU(2007) expõe que, se há pouca discussão sobre as desigualdades

frente ao sistema escolar, que isso ainda é uma herança da “ideologia jacobina”, a

qual evita levar em conta qualquer visão de preconceito no espaço educacional,

privilegiando sempre o discurso da “equidade”: “A igualdade formal que pauta a prática

pedagógica serve como máscara e justificação para a indiferença no que diz respeito

às desigualdades reais diante do ensino e da cultura transmitida” (p. 53).

Page 36: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

25

O autor ainda menciona que devemos nos desprender da ideia de pedagogia

como um “despertar”, citando Weber, a qual visava despertar determinados dons

adormecidos, em indivíduos excepcionais, através de técnicas encantatórias, proeza

essa adquirida por determinados mestres. O que deveríamos procurar estabelecer em

determinadas práticas pedagógicas seria uma pedagogia mais racional e universal,

que pudesse partir do zero e não considerando como dado o que apenas alguns

herdam, porém a tradição pedagógica ainda persiste na ideia de formas

inquestionáveis de igualdade e universalidade, mas que só atendem aos educandos

que detém uma herança cultural, de acordo com as exigências culturais da escola: “É

uma cultura aristocrática e, sobretudo, uma relação aristocrática com essa cultura, que

o sistema de ensino transmite e exige” (idem, p.55).

Outra forma bastante clara de perceber essa relação aristocrática é na relação

que os professores mantém com a “linguagem”, como uma espécie de veículo

consagrado de uma cultura consagrada, fornecendo um sistema de posturas mentais

transferíveis, solidárias com valores que dominam toda a experiência educacional,

ditada por experiências sociais:

“Além de um léxico e de uma sintaxe, cada indivíduo herda, de seu meio, uma certa atitude em relação às palavras e ao seu uso que o prepara mais ou menos para os jogos escolares, que são sempre, em parte (...) jogo de palavras”. (Idem, 56)

O que observamos é que também há um caráter implícito de manutenção,

perpetuação e transmissão de determinados saberes eruditos das classes cultas

nessas relações com a linguagem, na qual as instituições escolares têm função

primordial, corroborando com a conservação de uma hierarquia de valores intelectuais,

que, como menciona o próprio BOURDIEU(2007) “constrói uma lógica própria de um

sistema que tem por função objetiva conservar os valores que fundamentam a ordem

social” (p.56).

Segundo o mesmo autor, o grande problema é que, quando a escola já define

seu recrutamento, ou seja, quando legitima uma cultura em detrimento da outra,

exercendo sua função de conservação social, alimentando uma esperança que a vida

escolar poderia dimensioná-los a uma posição favorável na hierarquia social, mas

operando a partir de uma seleção, que acaba por sancionar e consagrar as

desigualdades reais, ou seja, dessa forma “a escola contribui para perpetuar as

desigualdades, ao mesmo tempo em que as legitima” (p.58).

Entender os traços políticos e culturais que envolvem nossos alunos, nos leva

a refletir sobre que espaço educacional poderá ser construído, para que se possa

Page 37: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

26

contemplar a heterogeneidade dos grupos que formam a sociedade brasileira, de

forma mais democrática e igualitária, desprendendo-se dos modelos de escola ainda

presos a uma estrutura de educação eurocêntrica. Como menciona MUNANGA (2005)

em seu texto de apresentação para o livro, “Superando o Racismo na Escola”, quando

ressalta a importância da diversidade entre os grupos humanos como um “fator de

complementaridade e de enriquecimento da humanidade em geral” (p.15), e não como

fator de exclusão ou de diferenciação de classes inferiores e superiores entre esses

grupos, como se vê ainda nas escolas de hoje em dia, o que acaba por contribuir no

fracasso escolar de muitos alunos.

Traçar como as relações etnicorraciais no Brasil se construíram torna-se

matéria principal quando o assunto é discutir as posturas racistas e de intolerância

com a cultura e a história do negro, para observarmos como essas posturas invadem

nossas salas de aula, em seus mais variados aspectos. Basta uma rápida análise para

observarmos que a estrutura do ensino brasileiro, ainda tem uma tendência fortemente

marcada por critérios eurocêntricos, tornando-se em um ensino bastante distante da

realidade da sociedade brasileira.

“Não precisamos ser profetas para compreender que o preconceito incutido na cabeça do professor e sua incapacidade em lidar profissionalmente com a diversidade, somando-se ao conteúdo preconceituoso dos livros e materiais didáticos e às relações preconceituosas entre alunos de diferentes ascendências étnico-raciais, sociais e outras, desestimulam o aluno negro e prejudicam seu aprendizado. O que explica o coeficiente de repetência e evasão escolar altamente elevado do alunado negro, comparativamente ao do alunado branco”. (MUNANGA, 2005, p. 16)

Dessa forma há um apagamento da memória coletiva, da história, da cultura e

da identidade afrodescendentes no sistema educativo, e uma super valorização de um

modelo baseado no eurocentrismo, o que talvez tenha provocado os altos índices de

repetência e evasão escolar, por não haver, a partir dessa interpretação, uma

identificação dos alunos negros com essa realidade criada nos espaços escolares,.

Quando a história do negro é contada nos livros didáticos, é sempre na perspectiva do

“Outro”, de quem assiste. A voz do discurso nunca é a do próprio negro, pois este se

tornava objeto de análise e nunca o sujeito ou o “olhar” observador, e o que se assiste

a partir de então é uma sucessão de imagens e fatos históricos que põe o negro

sempre em posição inferior, a partir de uma “ótica humilhante e pouco humana” (idem,

p.16). MUNANGA (2005) cita o historiador Joseph Kizerbo, para ressaltar a

importância que a história de cada indivíduo exerce nos mesmos: “um povo sem

história é como um indivíduo sem memória, um eterno errante” (idem) e questiona

como então um negro poderia aprender sobre si mesmo, sentir-se representado e ver-

Page 38: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

27

se envolvido nesse sistema educacional que propaga fortemente valores brancos

eurocêntricos? Logo em seguida MUNANGA(2005) expõe as consequências disso na

estrutura psíquica dos indivíduos negros, dialogando com os escritos de Franz Fanon

em Pele Negra, Máscara Branca, e se questiona a partir desses dois mundos

literalmente construídos sobre a ideia do que seriam os sujeitos “branco” e o “negro”.

Analisando ainda o poder da linguagem nessas relações, encontramos em

FANON(2008) uma referência importante ao que ele chamou de “Fenômeno da

Linguagem”. O autor defende que “falar é estar em condições de empregar uma certa

sintaxe, possuir a morfologia de tal ou qual língua, mas é sobretudo assumir uma

cultura, suportar o peso de uma civilização” (p. 33), dentro desse paradoxo,

questionamos que cultura influenciaria essa posse da linguagem, e que cultura estaria

excluída? Já que, como menciona o próprio autor, o homem que possuir a linguagem

consequentemente possuirá o mundo que essa linguagem representa. Que mundo

seria esse? O fato é que, a posse da linguagem torna-se então uma extraordinária

potência nas civilizações colonizadas, a qual foi construída sob um forte complexo de

inferioridade, já que grande parte de sua cultura original foi renegada, tendo a cultura

do colonizador como referencial de civilização, progresso e atualidade, incutindo nas

mentes dos povos colonizados que, quanto maior fosse a assimilação dos valores

culturais dos colonizadores, mais o colonizado escaparia da sua selva, ou seja, quanto

mais ele rejeitasse sua negritude, seu mato, mais branco seria.

Como toda representação passa pela linguagem, FANON(2008) ressalta que a

primeira reação dos negros deveria ser dizer “não” àqueles que tentam defini-los, ou

seja, uma tentativa de desalienação da ideia ocidental que se construiu sobre o que

era ser negro. Para isso, toda estratégia de ressaltar a importância da cultura afro-

brasileira e africana na construção do nosso país faz-se necessário para que

possamos questionar as várias outras possibilidades das relações etnicorraciais, de

forma mais democrática, agregando os negros e negras.

Para além da aprovação da lei 10.639/03, este é um momento de muita

discussão em relação às culturas afro-brasileiras e africanas. Stuart Hall, em seu

artigo “Que ‘negro’ é esse na cultura negra?”, começa se questionando sobre que tipo

de momento era aquele, para se colocar em discussão as questões da cultura popular

negra; para tanto dialoga com Cornel West, que propõe uma genealogia do que seria

esse momento, levantando três grandes eixos. O primeiro seria o deslocamento que

os modelos europeus sofreram, saindo do foco como sujeitos universais da cultura.

Um segundo eixo surge a partir do momento em que outra cultura assume lugar de

Page 39: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

28

destaque no cenário mundial, como é o caso dos EUA surgindo como grande

potência, provocando também grande mudança hegemônica na definição de cultura.

Terceiro e último eixo, seria a “descolonização do Terceiro Mundo”: “Eu entendo a

descolonização do Terceiro Mundo no sentido de Frantz Fanon, incluo aí o impacto

dos direitos civis e as lutas negras pela descolonização das mentes dos povos da

diáspora negra” (HALL, 2009, p.336).

HALL(2009) ressalta também a importância que as “vozes das margens”,

principalmente no Ocidente, têm na transformação da vida cultural dessas sociedades,

tornando-se um espaço de grande produção cultural, muito graças às políticas

culturais das diferenças, conquistadas a partir de lutas em prol da redução dessas

diferenças, da produção de novas identidades, e com isso o aparecimento de novos

sujeitos no cenário político e cultural.

II. 1 Entendendo o termo “etnicidade” a partir de Lívio Sansone.

Entre esses novos sujeitos, os que tinham a sua etnicidade como fator de

diferença e exclusão e consequentemente o crescimento do racismo. Para

entendermos esse termo “etnicidade” recorremos a Lívio Sansone em seu livro

Negritude sem Etnicidade, on o qual introduz uma discussão sobre o termo através

das suas próprias experiências na descoberta do que viria a ser etnicidade.

SANSONE(2004) relata uma experiência nos meados dos anos 90, ao vivo em uma

entrevista na TV Educativa baiana, onde fora solicitado a explicar o que era etnicidade

em trinta segundos, algo impossível mediante a complexidade da construção do

conceito, porém o autor expõe que hoje em dia o termo é mais reconhecido tanto pela

academia quanto fora dela, como em noticiários, na divulgação de produtos de beleza,

e nas culinárias exóticas, relacionando sempre o termo “étnico” com exótico, estranho,

não-branco, ou, como conclui SANSIONE(2004) em linguagem simples, como algo

raro e diferente. O autor propõe que o Brasil deveria ser um país que respeitasse sua

multiculturalidade, e até mesmo sua multietnicidade, apesar da celebração da mistura

racial e étnica presente nos discursos oficiais, e do mito da democracia racial que

ainda dita as relações etnicorraciais em nosso país:

“Nesse contexto etno-racial, o esforço de muitos pesquisadores tem sido o de descobrir ou desvendar não apenas o racismo à moda brasileira, mas também a etnicidade hifenizada no Brasil – a do ‘hífen oculto’ que impede os brasileiros de se definirem como afro-brasileiro, ítalo-brasileiros, Líbano-brasileiros, e assim por diante” (SANSONE, 2004 p. 11).

Page 40: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

29

O autor nos faz refletir sobre um dilema, ao se tentar reescrever a história

brasileira moderna, a partir da visão étnica, primeiro porque haveria uma curiosidade

muito grande sobre esses “outros étnicos”, atitude rara em um país em que se celebra

a miscigenação e o hibridismo, e que nos discursos dizem não reparar em diferenças

raciais, já que todos nós seríamos negros porque temos sangue de negro, e com isso

é dada menos importância a questão étnica.

SANSONE(2004) encontra nos estudiosos Richard Handler e Paul Gilroy, a

ideia de que identidade é um conceito transcultural. A identidade étnica, segundo o

autor, não deve ser entendida como essencial, e sim como um processo influenciado

tanto pela história quanto pelas circunstancias contemporâneas, sendo levado em

conta tanto a dinâmica local quanto a global. SANSONE(2004) prefere usar o termo

“etnicização”, já que estamos lidando mais com uma dinâmica do que com uma

efetividade.

Em relação ao Brasil, o autor expõe que tanto as comunidades quanto as

políticas étnicas não são contínuas e são sempre apresentadas de maneira discreta.

SANSONE(2004) analisa nesse seu livro como a “etnicização” do Brasil, mais

especificamente as relacionadas à criação de “identidades negras”, se compara e

muito com outras comunidades, em outros lugares do “Atlântico Negro”, expressão

utilizada por Paul Gilroy para as culturas formadas durante o translado de povos

escravizados, através do tráfego negreiro no Oceano Atlântico. Esses imigrante

construíram novas expressões culturais, em vez de simplesmente adaptarem a sua a

esse novo contexto, por conta do confronto que tiveram que encarar nas relações

raciais cotidianas, não polarizado, mas baseado num continuum de cor, além de

proibições explícitas a qualquer forma de organização étnica, fortemente coibida

durante a década de 1930, anos de intervenção e ditadura militar no Brasil.

Somente com o equilíbrio desse dilema, como conclui o próprio

SANSONE(2004), é que poderemos ter grandes contribuições nas discussões em

torno das relações etnicorraciais. Há uma contradição muito forte e presente na

realidade brasileira, que é a de assistirmos cotidianamente atos de racismo contra

negros e negras e, mesmo assim, o discurso da miscigenação ainda se apresenta

como grande trunfo da sociedade em se considerar democrática racialmente, o que

nos leva a questionar até que ponto esse mesmo discurso corrobora e legitima de

forma velada todos esses atos de preconceito, a ponto de termos instaurado no meio

de nossa sociedade um racismo institucional fortemente excludente.

Page 41: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

30

O autor questiona porque tais atos de exclusão ainda não geraram conflitos tão

fortes quanto os tumultos, movimentos e guerras que assistimos em outros países, e

menciona três fatores que viraram tendência internacional generalizada, e que influem

diretamente nesse dilema:

“o papel dos meios de comunicação de massa e da globalização; a mudança da agenda política do mundo acadêmico; e a inexistência de uma perspectiva comparada madura e internacional sobre as relações raciais e a etnicidade no Brasil”. (idem, p. 14)

O papel tanto da globalização quanto da mídia nas construções de identidades,

principalmente da identidade étnica, têm se revelado de grande influencia, já que são

responsáveis pela propagação de símbolos etnicamente marcados tanto pelas

localidades quanto pelas características individuais; dessa forma esses símbolos

parecem significar que vale a pena ser etnicamente diferente. Porém, apesar dessa

heterogeneidade acentuada, por mais que o indivíduo venha a apresentar-se com

símbolos diferentes os modos como se expressa essa diferença são singularmente

parecidos, e isso SANSONE(2004) relaciona ao fato de recorrermos sempre ao que

Nederveen Pieterse (1995) chamou de “memória global”, um banco de símbolos que

oferece a indivíduos do mundo inteiro imagens para identificação, como as subculturas

de jovens, estilos musicais etc., acessíveis aos mesmos, desde que esses possam

comprá-los, o que nos leva a concluir que essa influência leva a que as identificações,

sejam, até certo ponto, uma construção do campo das mercadorias.

Essa hiperabundância pode trazer uma variedade de identidades étnicas, mas

também constrói outras formas de relações etnicorraciais, constrói outros racismos, e

a mídia tem um grande desempenho nesse aspecto.. Como afirma SANSONE(2004) o

jornalista ou fotógrafo irá preferir fazer ou vender trabalhos e reportagens mais

relacionados à etnicidade do que à diferença social, o que consequentemente acaba

por relacionar “cultura” a um grupo étnico ou religioso, vendo a produção cultural como

um todo estático, ou seja, influenciando diretamente nas ideias sobre etnicidade e

raça.

O que podemos ver é que popularmente não se faz distinção entre cultura,

etnia e raça, tornando essas categorias fluidas e intercambiáveis, porém com

ramificações problemáticas. SANSONE(2004) nos sugere que devamos desconstruir

os significados de negritude e de branquitude, e deveríamos falar em racialização, ou

seja, como algo em processo. Dessa ideia de “racialização” compreendemos que

“raça” torna-se então em mais uma entre as muitas maneira, de se expressar e

vivenciar a etnicidade.

Page 42: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

31

O autor ainda afirma que em toda América Latina iremos encontrar padrões

similares em relação à cor, com discursos que estão sempre enaltecendo a

miscigenação e criando outra raça, nesse caso a latina, nunca a separação étnica dos

grupos, já que há uma espécie de cultivo de uma cegueira formal para a cor na

sociedade.

Para entendermos melhor a situação de negros e negras na América Latina,

sob uma perspectiva internacional e comparativa, SANSONE(2004) tece dois

comentários: “Primeiro, ser “negro” não corresponde à mesma posição social em todas

as sociedades” (idem, p.21), uma vez que em sua maioria os negros concentram-se

nas classes mais baixas; “Segundo, a existência de pessoas que parecem fisicamente

‘diferentes’, ou são percebidas como ‘culturalmente’ diferentes, não resulta, necessária

e automaticamente, num problema racial ou étnico” (idem p. 21-22), o problema seria

o destaque da etnicidade na história política, seja ela de um país ou de uma região.

O autor esclarece em quatro pontos uma certa mudança em relação às

identidades étnicas, tanto no Brasil quanto na América Latina como um todo, nas

últimas décadas. O primeiro ponto é em relação aos avanços políticos que tornaram

os direitos étnicos possíveis, com mudanças inclusive em Constituições garantindo

direitos às minorias étnicas, principalmente da comunidade negra; um segundo ponto

está relacionado a cobrança ao Estado das reivindicações políticas das demandas das

minorias étnicas e raciais, esperando desse uma postura efetiva, seja como parceiro,

ou seja como mediador; todos os países passaram por um período que o autor chama

de “rápida internacionalização do mercado”, ou seja, em pouco mais de 20 anos esses

países passaram de uma economia razoavelmente fechada para um mercado em

rápida expansão; e quarto e última mudança relaciona-se ao contato das culturas

locais com outras culturas mundiais e com isso as identidades étnicas estão se

tornando menos locais, já que nesse contato o banco de símbolos torna-se mais vasto,

amplo e internacional.

SANSONE(2004) no indica um caminho para examinarmos a situação

brasileira em relação à criação de identidades racializadas e dos efeitos variáveis de

conceitos como os de raça, classe e juventude. Ao analisar a formação das culturas

negras no Brasil, o autor diz que devemos direcionar nossos estudos para a

criatividade, ou seja, para a forma como a África é reinventada, mais do que investigar

possíveis vestígios de “africanismos”. Sansone desenvolve seus escritos sobre as

relações raciais no Brasil a partir de uma visão geral da posição socioeconômica dos

afro-brasileiros no Brasil, especificamente na Bahia, através de dados do

Page 43: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

32

recenseamento nacional, confrontados com pesquisa de campo em espaços ocupados

prioritariamente por uma população jovem negra..

O autor aborda as relações raciais no Brasil a partir de três períodos, cada um

deles correspondendo a níveis diferentes de desenvolvimento econômico, e das

tentativas de integração da população negra no mercado de trabalho. O primeiro

período abarca desde o fim da escravidão, em 1888, até a década de 1930, período

em que a economia do país ficou concentrada nas regiões sul e sudeste, provocando

o êxodo de populações das outras regiões, o inchaço das grandes metrópoles e uma

grande imigração de povos europeus. As relações raciais se davam em meio a uma

sociedade altamente hierarquizada, principalmente em relação a cor e classe.

Um segundo período é traçado pelo autor da década 1930, época da ditadura

populista de Vargas, até o fim do regime militar, no final dos anos 1970. Durante os

anos trinta, o regime autoritário e populista da era Vargas restringiu a imigração

europeia e incentivou a utilização da mão-de-obra brasileira, como parte de um projeto

de modernização. Após o golpe militar de 1964, também em um regime autoritário, o

Estado começa a patrocinar e promover um crescimento econômico, além do emprego

nas indústrias e nas grandes obras de infraestrutura começarem a se tornar acessíveis

aos negros: “Mais negros do que nunca conseguiram obter emprego formais com

oportunidades de mobilidade social, numa transição gradativa que deflagrou o início

de um tipo diferente de consciência social e racial” (idem, p. 43).

Ainda que entre os anos 1964 e 1983 o governo militar tenha reprimido os

direitos civis e impedido qualquer tipo de organização de negros, durante os dez anos

decorridos entre 1970 e 1980, época que houve um certo afrouxamento militar, houve

um crescimento de algumas organizações negras e da cultura negra. Essa nova

geração de trabalhadores negros, através da mobilidade social ascendente

conseguida a partir da sua entrada no mercado de trabalho, se deparou com

determinadas barreiras relacionadas à cor que antes não eram percebidas, já que, por

conta dos abismos hierárquicos de nossa sociedade, havia pouca expectativa em

relação aos direitos civis para os pobres. Com isso, esses novos trabalhadores

começaram a se juntar em organizações negras e a exigir igualdade de direitos, e

tanto a cultura quanto a religião negras ganham um maior reconhecimento oficial.

O autor traça um terceiro momento a partir da redemocratização do início dos

anos oitenta até o final do século, quando observamos um período de acelerada

recessão, democratização e modernização, que provocaram o surgimento de novos

sonhos e novas frustrações na população negra. Ao longo da década de 1990, os

Page 44: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

33

canais de mobilidade social que antes eram vistos como importantes para a inserção

da classe operária negra no mercado de trabalho perderam sua importância nas

gerações mais novas. Os setores de empregabilidade, tanto os privados quando os

públicos, reduziram seus números de empregos, e o valor dos salários despencou. Os

jovens buscaram outras formas, “alternativas”, de subsistência em contrapartida aos

baixos salários, seja através do trabalho informal, seja pela ilegalidade da venda de

mercadorias de origem duvidosa, por não apresentarem nota fiscal poderiam ter sido

roubadas, ou até mesmo no tráfico de drogas. Como resultado disso, vimos uma

grande defasagem de renda entre os da classe alta e os que se concentravam na

base da escala econômica. A classe média sofreu um grande colapso em sua renda,

vindo a empobrecer acentuadamente nesse período. A criação de shopping centers de

luxo trouxe um outro tipo de segregação, baseada na cor, já que para frequentar ou

até mesmo trabalhar nesses espaços exigem-se como requisito, o indivíduo ter uma

“boa aparência”, ou seja, ser de “fino trato” que, apesar de não ter nenhuma referência

à cor da pele, muitos jovens negros e negras acabam sendo excluídos e

discriminados, como não bem vindos à esses espaços, sendo excluídos de entrevistas

considerados fora do perfil, ou sendo perseguidos por seguranças ao visitarem esses

espaços, confundidos como possíveis criminosos. Nos anos recentes, apesar da

retomada do crescimento econômico, da ampliação dos empregos formais e das

oportunidades, das transformações políticas e sociais reconhecíveis, não se pode

considerar que a situação de desvantagem e de discriminação da população negra

dentro da sociedade brasileira tenha mudado de forma substancial. Os episódios

recentes do cerceamento do ingresso de jovens negros nos shoppings de São Paulo,

de um lado, e os indicadores de mortalidade de jovens negros nas periferias das

grandes cidades como o Rio de Janeiro e Salvador, de outro, são dados expressivos.

Porém uma mudança de significativa importância apresentada por

SANSONE(2004), e que muito nos orientará aqui nesse trabalho, são as análises que

o mesmo faz em relação à educação. O autor cita que a educação escolar de massa,

assim como os meios de comunicação massiva, contribuíram nesse período para a

construção de uma elevação drástica das expectativas. Os jovens atuais

apresentavam um nível de estudos mais elevado do que o de seus pais, porém não se

constatam melhoras significativas na qualidade das oportunidades no mercado de

trabalho, gerando uma grande frustração nas duas gerações. Como entender que na

geração de seus pais o ingresso em determinadas ocupações eram mais fáceis e os

empregos mas compensadores, e agora que seus filhos já apresentam instrução que

podia ser considerada adequada as exigências de qualificação ficaram maiores?

Page 45: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

34

Essa frustração arrasta vários fatores negativos, pois além de gerarem conflitos

domésticos, cria uma insatisfação entre os jovens que não conseguem acreditar em

construir uma trajetória educacional mais longa, pelo desestímulo das dificuldade de

um emprego correspondente ao investimento formativo. Devido a cortes de verbas do

Governo è educação na década de 1990, a qualidade do ensino público,

principalmente nas séries iniciais, caiu muito. A frequência escolar deixou de ser um

hábito normal para muitos pois a escola “não era um evento em torno do qual a

semana se organizasse, nem tampouco era essencial para prepará-los para a idade

adulta e a vida profissional” (idem, p.53).

Outros espaços tornaram como fatores importantes de socialização entre esses

jovens desde os anos de 1990. Entre esses espaços SANSONE(2004) cita três: o

grupo de pares (a turma), a galera (grupo de jovens de determinado bairro, composto

por vários grupo de pares) e a televisão. Consequentemente, outras prioridades

surgem dessas interações, sem o caráter crítico da escola, os jovens traçam suas

conversas em torno de namoro, consumo e diversões, ocasionando, segundo o autor,

uma grande evasão escolar. Se antes os pais abandonavam a escola para poderem

trabalhar e contribuir com a renda familiar, hoje em dia o abandono dos jovens aos

estudos é mais complexo, segundo o autor, “a falta de confiança na instrução, e não a

necessidade de trabalhar, é que os havia afastado da escola” ( idem, p.54). A palavra

“desempregado”, depois dos grandes indicadores de desemprego do final do século,

parece não ter tanto peso estigmatizante quanto teve para os pais e avós da geração

atual. Mesmo quando faziam pequenos trabalhos informais, as gerações anteriores

preferiam chamá-los de “minha profissão”, do que se considerarem desempregados, e

costumavam se identificar por suas ocupações, como, por exemplo, Zé pedreiro, João

bombeiro, Maria lavadeira etc., o que é dificilmente encontrado nos dias de hoje,

quando, segundo o próprio autor, por exemplo, muitas jovens empregadas domésticas

se dizem desempregadas por terem vergonha de exporem o tipo de trabalho que

desempenham.

Percebemos a construção de uma grande crise de insatisfação nos jovens,

tornados mais próximos e sintonizados com os altos padrões e com os altos estilos de

vida, pelos meios de comunicação e também por conta da ampliação do nível de

instrução, por leem mais, pela propagação em massa de estilos de vida estruturados

pelo alto consumo, por conhecerem e desejarem frequentar espaços elitizados, como,

por exemplo, dos shopping centers de luxo, onde, quando conseguem penetrar e ao

se compararem os seus usuários habituais, percebem-se ainda mais como pobres e

negros.

Page 46: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

35

Ainda segundo Sansone, essa diferença de gerações também é percebida nas

relações construídas no mercado de trabalho. Por exemplo, enquanto os pais tinham

total respeito para com seus chefes, pessoas consideradas mais ricas, ou brancas, já

que dependiam desses para sobreviverem em seus empregos, seus filhos encaram de

outra forma esse “respeito”, vendo-o como perda de dignidade, e não sabem lidar com

essa expectativa de chefes ou patrões em terem funcionários subalternos, não

aceitando humildemente as ordens de superiores, o que leva a uma espécie de

autoexclusão em determinados setores do mercado de trabalho.

As práticas religiosas tradicionais foram usadas sempre como válvula de

escape para as “frustrações” para a população negra, porém, segundo o autor, as

novas gerações são mais secularizadas, ou seja, não participam, nem acreditam nas

cerimônias religiosas como seus pais. Usam outras possibilidades de “fuga mágica da

pobreza”, preferem fingir que não eram pobres usando os símbolos de status que

pudessem associá-los à classe média alta e à cultura jovem global. Como o consumo

desses símbolos é bastante caro, os jovens buscam fontes de rendas alternativas,

seja no comércio de rua, na venda de eletrônicos, ou enquadrando-se no mercado de

turismo como dançarinos, jogadores de capoeira ou músicos. SANSONE(2004) cita

ainda como campos de aquisição de renda para os jovens com pouca instrução, os

pequenos delitos, além do uso ostensivo do próprio corpo, através da prostituição.

O autor analisa que esse padrão agressivo de consumo praticado por essa

nova geração dificilmente seria satisfeito por qualquer emprego convencional. Em

seus grupos de pesquisa a pergunta de ordem era: “quanto você ganha?” e não “o que

você faz para ganhar a vida?”, como aconteceu com seus pais, que inclusive

utilizavam suas profissões em seus nomes. Se os filhos seguem as profissões de seus

pais podem ser chamados de “otários”. Assiste-se então a mudança frequente de

emprego, sempre insatisfeitos com seus trabalhos, e longos períodos de desemprego,

e dessa maneira as gerações mais jovens demonstram a sua insatisfação com o

cenário presente.

SANSONE (2004) pergunta então: “”Quais são as consequências dessas

realidades para a percepção da ‘raça’?”(p. 59) Antes de qualquer reflexão, precisamos

entender a complexidade de se conceber um sistema de classificação racial no Brasil.

A utilização de determinados termos ou vocábulos raciais surgem dentro do espaço do

negro, em diferentes aspectos da vida cotidiana, e refletem sua situação econômica, o

desenvolvimento de suas identidades negras, identidades essas também

determinadas tanto pela interferência do Estado, da Igreja Católica, pelos políticos,

Page 47: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

36

além dos discursos sustentados pela mídia e pelas ciências sociais. Essas instituições

ainda são detentoras de determinadas posições de status quanto à criação de

identidades étnicas.

Dentro dessa ideia de identidade racial, e entendendo os privilégios que os

grupos de pele branca detém em nossa sociedade, não é difícil entender o porquê da

preferência de muitos indivíduos, principalmente os que se encontram em condições

mais desfavoráveis socialmente, em querer se identificarem como indivíduos brancos,

já que o autor utiliza para seus estudos o sistema de autoidentificação racial pelo

entrevistado. Segundo o autor, o fato das pessoas procurarem se identificar como

mais claras está ligado ao desejo de desenfatizar a negritude, para não se tornar

vítima de racismo. A autodescrição torna-se matéria relevante nos escritos de

SANSONE(2004), já que a partir dela é que vão se traçando as relações etnicorraciais

brasileiras entre negros e brancos, e até entre negros com tonalidades de pele

variadas. O que determina que um indivíduo seja negro ou branco? A cor da pele

ainda é um fator muito forte e determinante para muitas ações de racismo, quando por

exemplo uma pessoa com a cor da pele preta entra em algum estabelecimento

comercial da “ cidade branca”, ainda é seguido pelo seguranças por desconfiança de

alguma atitude ilegal; ou quando é impedido de utilizar o elevador social, confundido

com algum trabalhador doméstico e não como um proprietário de algum apartamento.

Como forma de fuga desses atos de violência através da exclusão, o discurso

do mito de democracia racial e da miscigenação tornaram-se fundamentais para criar

uma relação racial onde a maioria prefere uma identificação com o grupo que detenha

algum tipo de privilégio, no caso o “branco”, e renegue qualquer aproximação com

uma identidade negra, a ponto de criar outros tipos de representação negra de acordo

com a tonalidade da cor da pele, desde moreninha, morena clara, etc., menos preta.

II.2 Algumas experiências da educação brasileira com as questões étnicas e

raciais.

Hoje em dia, alguns institutos de pesquisa da população brasileira, como por

exemplo o IBGE, utilizam as seguintes denominações: branca, preta, parda, índio,

amarela; na Plataforma Lattes, o pesquisador também precisa se autodeclara a partir

dessas mesmas denominações, como forma de se ter uma dimensão mais objetiva

sobre as políticas de promoção de igualdade racial, ou seja, serve para avaliar se as

mesmas já estão surtindo algum tipo de efeito.

Page 48: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

37

Depois da Lei 10.639/03 ter sido aprovada, questionários foram encaminhados

pelo MEC e pela SEPPIR (Secretaria Especial de Políticas de Promoção à Igualdade

Racial), a grupos do Movimento Negro, Conselhos no âmbito estadual e municipal de

Educação, professores empenhados em trabalhar os assuntos raciais em sala de aula,

e aos pais e responsáveis, no qual os mesmos contribuíram com suas ideias sobre

como essas questões poderiam ser abordadas de maneira efetiva em sala de aula. A

partir desses questionário foi elaborado um documento que serviria como Diretrizes

Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Etnicorraciais e para o Ensino

de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Este documento traz vários

esclarecimentos políticos e históricos sobre as Relações Etnicorracias, destinados

tanto aos mantenedores dos estabelecimentos de ensino e professores, como também

às famílias e aos envolvidos diretamente com os alunos e a qualquer cidadão

comprometido em dialogar com essas questões.

O documento começa nos apresentando como os negros e negras eram

excluídos da escola a partir de registros amparados pela Lei, conforme apresentação

desenvolvida pela SEPPIR, como forma de entender porque no Brasil tanto enquanto

Colônia, Império ou República, houve e continua havendo uma “postura tão ativa e

permissiva diante da discriminação e do racismo que atinge a população

afrodescendente brasileira até hoje”. (p.7) Historicamente, essas posturas tiveram um

amparo legal, como no Decreto n° 1.331, de 17 de fevereiro de 1854, que impedia que

escravos fossem admitidos nas escolas públicas brasileiras, e no caso de negros

adultos, dependia da disponibilidade de professores. Já no Decreto n° 7.031-A, de 06

de setembro de 1878, permitiam a matrícula de alunos negros, mas somente no

período noturno. Observamos que desde essa época foram muitas as estratégias

usadas para que os grupos de negros e negras não pudessem ter acesso à educação.

O país também veio a conhecer uma outra estratégia de ensino marcada pelo

caráter segregacionista, embasada nos ideais eugenistas, criados por Francis Galton

(1922-1911) para designar “o melhoramento biológico da raça humana” através da

reprodução seletiva, em sua obra Inquiries into human faculties (1883), a partir das

ideias de melhoramento da espécie, de Chales Darwin (1809-1882) em seu livro “A

Origem da Espécie”. Simone Rocha, doutora em História pela PUC-SP, em seu artigo

“A educação como ideal eugênico: o movimento eugenista e o discurso educacional no

Boletim de Eugenia 1929-1933”(2011), faz um apanhado de alguns artigos publicados

no “Boletim de Eugenia” que fazem correlação com alguma proposta de intervenção

no campo educacional, e não é difícil encontrar inclusive intervenções na própria

Constituição, que digam respeito à Educação, já que muitos dos seguidores da ideia

Page 49: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

38

de eugenia tinham influência política. Rocha(2011) menciona que nas Constituições

de 1934 e 1937, existiam vários artigos que defendiam que os ideais eugênicos

fizessem parte do meio educacional como forma de conscientização para uma

melhoria nos comportamentos sociais de indivíduos considerados “degenerados”. No

artigo 138, da Constituição de 1934, encontramos por exemplos esses dois incisos, os

quais a União, o Estado, e os Municípios deveriam cumprir:

“b) Estimular a educação eugênica; f) Adotar medidas legislativas e administrativas tendentes a restringir a moralidade e a morbidade infantis; e de higiene social, que impeçam a propagação das doenças transmissíveis”. (Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil – 1934).

Rocha(2011) faz uma reflexão sobre os dois incisos, relacionando-os às ideias

defendidas pelos eugenistas, entendendo essa “educação eugênica” para além dos

conhecimentos sobre genética, assunto esse defendido como primordial para a

propagação e defesa dos ideais eugênicos, mas também, e principalmente, à

educação em relação aos casamentos entre pessoas de mesma classe social e etnia.

No inciso “f” traz a discussão eugênica o combate às doenças transmissíveis como

pertencente à ordem da eugenia. Todo esforço por parte desses estudiosos, era em

defesa de uma legalização da eugenia.

No Brasil, durante os anos de 30 e 40, foi desenvolvida uma política

educacional na qual o cidadão brasileiro seria “moldado” conforme os parâmetros

europeus, seguindo uma proposta de desenvolvimento físico, moral e disciplinar do

indivíduo. É o que encontramos por exemplo na Constituição de 1937, na era Getúlio

Vargas, em meio ao regime de ditadura do Estado Novo. Uma das implementações do

pensamento eugênico nas escolas seria a criação da disciplina “Educação Física”,

essa de caráter obrigatório, juntamente com o ensino cívico e trabalhos manuais em

escolas primárias, normais e secundárias, e a escola só conseguiria a autorização ou

reconhecimento de funcionamento se cumprisse tais exigências. (Art.131. Constituição

dos Estados Unidos do Brasil 1937)

É importante observarmos como estava a educação pública em nosso país

desde o início do século XX. Países desenvolvidos como a França, Alemanha,

Inglaterra e Estados Unidos da América, começaram a ensaiar as primeiras iniciativas

de democratização do ensino, por conta da reorganização da produção industrial

capitalista. Segundo artigo de autoria de Eloiza Amália Bergo Sestito, Sonia Maria

Vieira Negrão e Teresa Kazuko Teruya, sob o título “O ensino de arte na escola

Page 50: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

39

pública brasileira da racionalização aos sentidos dos sentidos à racionalização”3, nos

apresenta um panorama sobre a situação da educação brasileira:

“É importante salientar que as ideias difundidas nesses países influenciaram as concepções de educação no Brasil, configurando um novo cenário nacional, com base no modelo liberal de organização social e econômica para o desenvolvimento da produção capitalista, que se firmava como um modelo a ser seguido em âmbito mundial”

Mas o país ainda estava em processo de descoberta de uma ideia nacional,

ainda no início da República, e com a vinda de muitos imigrantes, a preocupação entre

os intelectuais e os dirigentes do país passou a se tornar alarmante. Somando a isso

ainda tinha a despreparação da mão de obra considerada insuficiente para esse novo

modelo de produção que surgia, tudo isso resultou nas primeiras iniciativas de criação

da escola primária e da organização do Sistema Nacional de Ensino. Dessa forma, foi

criado o primeiro Grupo Escolar em São Paulo, em 1894, com o objetivo de oferecer a

escolarização primária.

Em relação ao programa para o ensino primário, encontramos no artigo, “Início

e fim do século XX: Maneiras de fazer educação física na escola”4, de autoria de

Tarcísio Mauro Vago, que faziam parte o ensino de “Leitura, Escripta, Língua Patria,

Arithmetica, Geographia, Historia do Brasil, Instrucção Moral e Civica, Geometria e

Desenho, Historia Natural, Physica e Hygiene, Trabalhos Manuaes e Exercícios

Physicos”. Na verdade esses saberes eram o que aquela cultura escolar, ainda em

processo de afirmação, estava autorizada a praticar.

Um ponto é especial em destacar que é o ensino de “Hygiene”, entre as várias

medidas de implantação de uma racionalidade, além do intelecto, mas também no

corpo dos alunos. No caso da disciplina específica “Hygiene”:

“O professorado era instruído a dar noções gerais que facilitassem os alunos o conhecimento do corpo humano, aproveitando tudo que pudesse para ministrar-lhes noções precisas para a conservação da saúde e seu bem estarem físico, ensinando-lhes cuidar da sua própria pessoa. Dentre os temas previstos constavam tópicos como a necessidade do banho e do asseio do vestuário; necessidade da boa mastigação e regularidade das refeições; cuidados com os dentes, com os cabelos e as mãos; nutrição e respiração; asseio do corpo; saneamento das casas; alimentação, vestuário e higiene da habitação; efeitos do fumo e do álcool no organismo humano” (idem).

3 disponibilizado, na internet no domínio

http://www.histedbr.fae.unicamp.br/acer_histedbr/jornada/jornada7/_GT4%20PDF/O%20ENSINO%20DE%20ARTE%2

0NA%20ESCOLA%20P%DABLICA%20BRASILEIRA.pdf, (acesso em: 15. jun.2013)

4 disponibilizado no domínio http://www.scielo.br/pdf/ccedes/v19n48/v1948a03.pdf (acesso em: 15. jun.2013)

Page 51: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

40

Somente na década de 1930, a Educação Física, aliada a esses ideais, iria

integrar a ideia de regenerar uma sociedade considerada por alguns intelectuais e

cientistas como degenerada, por conta da miscigenação, em prol da salvação de uma

sociedade ainda em fase de construção de sua identidade nacional.

Mas entender o porquê da implantação da Educação Física entre 1900 e 1920,

foi em parte uma possível resposta ou tentativa de saída da grande repercussão do

fracasso econômico que se assistia no Brasil. Um dos componentes, bastante citado

nessas discussões, era em relação ao fator racial, que entendia a baixa capacidade ao

trabalho do brasileiro como reflexo da sua constituição a partir de raças inferiores.

Portanto, o Brasil nunca poderia ser uma nação economicamente forte.

Então com a intenção de melhorar sua imagem, as elites intelectuais brasileiras

tentaram “embranquecer” o país (Schwarcz, 1993). Daí surgiram duas correntes

eugenistas que procuravam corrigir esse traço brasileiro. Uma das correntes do

“movimento higienista” chega a cogitar estratégias como a esterilização,

regulamentação de casamentos, além da crescente imigração europeia. Uma outra

corrente do movimento higienista, com críticas fortes à primeira, considerada como

fatalista, acreditava mais em um pensamento intervencionista, e entendia que a real

situação da sociedade brasileira era por conta do abandono pelas autoridades

governamentais, que davam pouca atenção à educação e à saúde dos brasileiros,

então, tratava-se de um povo que estava doente e abandonado.

Podemos observar a educação como uma forte e eficaz máquina de

propagação de um ideal, que de inicio poderia ter sido vista com certa desconfiança,

mas por conta da ciência conseguiu aval de conquistar muitos espaços em vários

lugares no mundo, inclusive no Brasil.

A educação colaborou para por em prática as ideias de experimentar uma

eugenia mais próxima da “higienização”, apostando em outras formas de construção

de uma sociedade mais próspera.

O importante é analisar, hoje em dia, o que desse pensamento eugenista ainda

se mantém vivo nas práticas educativas cotidianas, principalmente às referidas à

educação corporal, tanto da Educação Física, quanto aos conhecimentos relacionados

à higienização do corpo. Será possível, ainda hoje em dia, encontrar resquícios dessa

época?

A partir de 1940, após o fim da II Grande Guerra, a eugenia começou a entrar

em decadência. Já nos anos de 1950 e 60, essas questões já não apresentavam mais

o mesmo impacto, apesar das tentativas dos admiradores dessa ideia em publicar

artigos em jornais e revistas especializadas.

Page 52: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

41

II.3 Em busca de uma Pedagogia Antirracista.

As relações humanas sempre foram entremeadas de conflitos das mais

variadas naturezas. Esses conflitos sempre geraram, como se observa hoje em dia,

uma sociedade de privilégios e exclusões. Por mais que os grupos organizados

tenham se solidificado e angariado um grande contingente de benefícios para a sua

inserção social, através de políticas públicas, muitos espaços ainda continuam

inacessíveis para determinados grupos sociais. Entender como essas estruturas

sociais foram construídas e justificadas nos levará a repensar de que forma a escola

poderia reverter esse quadro, propondo e ferramentas para a construção de uma

relação entnicorracial menos discriminadora e, portanto, mais igualitária. Para refletir

sobre essas questões em sala de aula, e mediante reivindicações de grupos que

defendiam uma mudança na forma como a imagem do negro era trabalhada na

escola, a Lei 10.639 encontrou grande impulso para sua aprovação.

No artigo “Educação e Relações Etnicorraciais: refletindo sobre algumas

estratégias de atuação” de Nilma Lino Gomes (2005), a autora começa seus escritos

nos apresentando as experiências da Sra. Jane Eliot, uma professora e psicóloga

branca dos EUA, que teve seus workshops sobre o racismo e seus desdobramentos,

registrados em forma de documentário, intitulado: Olhos Azuis. O primeiro

questionamento feito por GOMES(2005) foi: Por que uma mulher branca nos EUA se

interessaria em desenvolver workshops sobre esse assunto? Através de uma longa

citação, transcrita do documentário, a autora expõe a dificuldade da professora em

tentar explicar para seus alunos sobre quais os motivos que levaram ao assassinato

do líder negro Martin Luther King, em 1968, nos EUA. Ela repensou várias

possibilidades didáticas para que seus alunos pudessem entender o problema racial

pelo qual o país estava passando, de forma que os alunos pudessem enxergar a

grande violência do racismo. A professora chegou a conclusão de que não havia

recursos didáticos para que o racismo fosse explorado em sala de aula de forma

eficiente, ou seja, ao chegar a essa conclusão, Jane Eliot nos dá uma dimensão do

apagamento das questões no âmbito escolar, a ponto de todo e qualquer recurso

didático que se tenha mão dentro da sala de aula não nos servissem para discutir esse

assunto tão recorrente e tão “espinhoso”, fazendo com que o professor muitas vezes

prefira não adentrar esse campo árido.

Então a professora resolveu construir uma proposta pedagógica, através da

qual seus alunos pudessem se colocar no lugar daqueles que eram discriminados

racialmente, pensando que dessa forma as questões raciais pudessem ser melhor

Page 53: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

42

entendidas pelos mesmos. Durante um dia letivo inteiro, em comum acordo com os

alunos, os que tivessem olhos azuis, passariam por situações de discriminação, ou

seja, seriam rejeitados por causa da cor dos seus olhos, azuis. Ninguém conversaria

com eles, não os respeitavam, e nem mesmo dividiam o mesmo bebedouro, práticas

que eram comuns nos EUA na época mais dura de perseguição racial.

“A escolha da cor dos olhos, uma característica do fenótipo (assim como a cor da pele), foi a forma mais próxima de fazer as crianças se aproximarem do drama dos negros que sofrem a discriminação racial devido a fatores históricos, culturais e também raciais” (GOMES, 2005, p. 144).

Quem assiste o documentário tem um verdadeiro choque de realidade, se os

alunos conseguiram ou não entender a problemática racial americana que os envolvia

e vitimizou o líder Martin Luther King, através de depoimentos dessas crianças, hoje

adultos conscientes racialmente, nos mostram que sim, e foi tão expressiva essa

prática pedagógica que a professora ficou marcada socialmente como “amiga de

negros” em uma época onde a perseguição racial era bastante forte nos EUA, a ponto

da mesma ter tido sua vida devastada pelo ódio branco americano. A extensão dessa

prática é tão grande que não conseguiu atingir somente os alunos, quando se assiste

o documentário e você vê Jane Eliot em prática, por exemplo, através de um workshop

para professores, consegue-se identificar várias práticas pedagógicas de exclusão e

com requintes de crueldade ainda em ação, naturalizadas, seja através do incentivo à

competição, ou aos elogios e até preferências aos que se encaixam no perfil ideal de

aluno.

Nossos discursos dentro do campo educacional, enquanto educadores, tem um

poder muito grande na vida escolar de nossas crianças, e somos indivíduos

mergulhados culturalmente em uma sociedade de caráter muito racista. Refletir sobre

que práticas pedagógicas poderiam nos auxiliar no combate às manifestações racistas

em sala de aula é nosso dever enquanto cidadãos, porém, mais sério ainda, é quando

nós somos os agentes desses discursos racistas. Por isso a importância da Lei 10.639

em todos os âmbitos educacionais, inclusive na formação de professores aptos para

levantar essas discussões em sala de forma mais democrática e humana. O

documentário “Olhos Azuis”, além de surgir como mais um exemplo de que práticas

pedagógicas antirracistas são eficientes em sala nas suas múltiplas dimensões,

atingindo todos os agentes envolvidos na educação, nos conduz a um pensamento

positivo sobre a abordagem das questões raciais na escola.

Para GOMES(2005) o professor deve ter um entendimento conceitual sobre o

que é racismo, discriminação racial e preconceito, e isso deveria fazer parte do seu

Page 54: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

43

processo de formação, para que os mesmos possam compreender as especificidades

do racismo brasileiro, que os auxiliarão na identificação do que seria uma prática

racista e para que possa construir práticas de intervenção nas quais valorize a cultura

negra e a eliminação do racismo. Assim o entendimento do conceito estaria associado

às experiências concretas, podendo auxiliar numa mudança de valores. Para a autora

o contato com a comunidade negra ou com grupos culturais e religiosos negros é

importante porque, uma coisa é falar, formar opinião, dizer que respeita estando longe,

outra coisa é demonstrar esse respeito no dia-a-dia, na convivência humana:

“Não faz sentido que a escola, uma instituição que trabalho com os delicados processos de formação humana, dentro os quais se insere a aquisição dos saberes e conteúdos dando uma ênfase desproporcional à aquisição dos saberes e conteúdos escolares e se esquecendo de que o humano não se constitui apenas de intelecto, mas também de diferenças, identidades, emoções, representações, valores, títulos...” (GOMES, 2005, p.154)

Outro grande entrave das discussões das relações etnicorraciais nas escolas,

ainda é o discurso da “democracia racial”, e a ideia consequente de que no Brasil não

há racismo, pois basta uma visita a uma banca de jornal, por exemplo, para se ver

qual a cor da pele dos bandidos estampados em suas capas e expostos diariamente

para a população que, em sua maioria também compartilham daquela mesma cor.

Segundo o texto das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações

Etnicorraciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, criada

após a aprovação da Lei 10.639/03, traz sobre o mito:

“Requer também que se conheça a sua historia e cultura apresentadas, explicadas, buscando-se especificamente desconstruir o mito da democracia racial na sociedade; mito esse que difunde a crença de que, se os negros não atingem os mesmos patamares que os não negros, é por falta de competência ou de interesse, desconsiderando as desigualdades seculares que a estrutura social hierárquica cria com prejuízos para os negros” (p.12)

Entender a importância da Lei 10.639/03 no campo educacional é encará-la

como uma política de reparação, feita pelo Estado com a participação da sociedade,

como forma de tentar ressarcir os descendentes de africanos negros dos danos

psicológicos, materiais, sociais, políticos e educacionais sofridos durante o regime

escravista, além de suas consequências na população, como por exemplo, as políticas

explícitas ou não de branqueamento, como forma de ascensão social, e grande

influenciadora de práticas racistas em nossa sociedade atualmente.

O que a lei procura estabelecer é que se estimule práticas de ensino nas quais

a história e a cultura dos povos africanos e afro-brasileiros sejam reconhecidos como

legítimos, valorizados, e que se mude os discursos que ainda propagam a imagem do

Page 55: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

44

negro como escravizado, imagem bastante comum nos livros didáticos. Ainda no texto

de Diretrizes Curriculares Nacionais, encontramos que “reconhecer” é questionar as

relações etnicorraciais que desqualifiquem os negros, baseados em preconceitos e em

estereótipos depreciativos que colocam os mesmos em um patamar inferior, numa

uma sociedade hierárquica e desigual, como é aqui.

Quando se discute uma reeducação das relações etnicorraciais, estamos

lidando com as relações entre brancos e negros, já formada socialmente e

influenciada por todas essas políticas públicas que nem sempre foram favoráveis aos

negros. Para essa reeducação é imprescindível um trabalho em conjunto, no qual haja

uma articulação entre processos educativos escolares, políticas públicas e

movimentos sociais, já que para termos alguma mudança ética, cultural, pedagógica e

política nas relações entre brancos e negros na sociedade não devemos concentrar

nossos trabalhos somente na escola. As práticas educacionais devem ecoar na

comunidade.

Claro que as formas de discriminação não nascem na escola, como já foi

mencionado no começo desse capítulo, mas perpassam todo o sistema educacional.

Cabe a todos os envolvidos com a escolarização, efetivar seu papel de “educar”,

considerando, segundo ainda as Diretrizes Curriculares Nacionais, que para o papel

de educar seja efetivo, é necessário que se construa um espaço democrático, onde

todos possam se ver representados de forma respeitosa, e com isso se crie uma

postura que vise à construção de uma sociedade mais justa:

“A escola tem papel preponderante para eliminação das discriminações e para emancipação dos grupos discriminados, ao proporcionar acesso aos conhecimentos científicos, a registros culturais diferenciados, à conquista de racionalidade que rege as relações sociais e raciais, a conhecimentos avançados, indispensáveis para consolidação e concerto das nações como espaços democráticos e igualitários” (p. 15)

A escola e seus profissionais, ao tratarem desses assuntos com seus alunos,

devem estar bem preparados, já que é um campo de efusivas discussões e a própria

sociedade se abstém de discuti-los, já que lhes custa acreditar que ainda somos

agentes de exclusão de negros e negras em uma participação ativa em sociedade.

Então, para confrontar o mito da democracia racial, e a ideia de que aqui não temos

racismo, a escola não pode improvisar, já que precisamos desalienar todo o processo

pedagógico, ainda fortemente marcado pelo eurocentrismo.

Segundo o texto das Diretrizes, para que possamos construir novas

pedagogias antirracistas é fundamental que se desfaçam alguns equívocos. O primeiro

Page 56: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

45

deles está relacionado à preocupação dos professores em como identificar seus

alunos enquanto negros e como chamá-los de negros ou pretos, sem que isso cause

alguma ofensa. O professor deve entender que ser negro no Brasil não está

relacionado somente às características físicas, é uma postura política, é negro quem

assim se define.

O processo de construção de identidade negra em nosso país é bastante

complexo, a ponto de vermos pessoas brancas, com traços físicos europeus, por

terem algum descendente negro, se designarem negro; e pessoas com traços físicos

africanos que se autoidentificam como brancos. Não podemos esquecer que os

termos “negro” ou “preto” eram usados no período escravocrata pelos senhores para

designar os indivíduos escravizados, e esses termos, no sentido negativo, se

estendem até hoje, apesar de toda tentativa que o Movimento Negro venha fazendo

desde o final dos anos de 1970 para a sua ressignificação, através de campanhas que

propagavam as expressões: Negro é lindo! Negra, cor da raça brasileira! Negro que te

quero negro! 100% Negro!, ou por exemplo na campanha do censo de 1990 que

utilizou a expressão: Não deixe sua cor passar em branco!

Um outro equívoco exposto pelo texto das Diretrizes é a ideia de que os negros

também são racistas porque também discriminam outros negros. Se levarmos as

discussões dessa afirmação para a construção ideológica do branqueamento, na qual

defendia que as pessoas brancas eram mais humanas, possuíam inteligência superior,

por isso cabia somente a elas decidir o que era bom para todos, assumindo posições

de destaque e de poder na sociedade, e que na pós-abolição, muitas políticas de

branqueamento foram formuladas a fim de eliminar toda presença simbólica e material

dos negros, fica fácil entendermos o poder dessa ideologia sobre os negros que

tendiam a reproduzir os mesmos atos de preconceitos que sofriam.

Mais um equívoco ressaltado era o de que essas discussões se restringiam

somente ao Movimento Negro e aos que se interessariam em estudá-los, não à

escola. O que se pretende com a lei e através desse documento é que a escola,

enquanto instituição social responsável por assegurar o direito a todo cidadão à

educação, deve se posicionar politicamente contra toda e qualquer forma de

discriminação.

“A luta pela superação do racismo e da discriminação racial é, pois, tarefa de todo e qualquer educador, independentemente do seu pertencimento etnicorracial, crença religiosa ou posição política. O racismo, segundo o Artigo 5º. Da Constituição Brasileira, é crime inafiançável e isso se aplica a todos os cidadãos e instituições, inclusive à escola” (p. 16)

Page 57: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

46

Uma última questão, levantada pelas Diretrizes, é a falsa ideia de que o

racismo, o mito da democracia racial e a ideologia do branqueamento só atingem os

negros. Essas ideologias estão arraigados na estrutura social e imaginária de todos os

brasileiros, sejam eles brancos, negros ou qualquer outro grupo etnicorracial, incidindo

de maneiras diferentes nas trajetórias de vida de cada um deles. Repensar estratégias

de reeducação dessas relações é dever de todos os envolvidos nesse complexo

processo social, inclusive os educadores.

Nesse sentido, a construção das pedagogias antirracistas tem uma

responsabilidade dupla, entre os brancos de despertar sua consciência negra, e entre

os negros de fortalecê-los, através do reconhecimento de sua história e sua cultura,

orgulhando-se de sua origem africana.

Como proposta de intervenção educacional, analiso aqui nesta dissertação

uma prática de ensino de teatro, entre jovens e adolescentes, com o intuito de levantar

discussões sobre as relações etnicorraciais entre os mesmos, a partir de jogos do

Teatro do Oprimido. A utilização do teatro para abordar as tensões étnicas e raciais,

segundo o artigo de Maria José Lopes da Silva, “As Artes e a Diversidade Étnico-

Cultural na Escola Básica” (2005), teria os seguintes objetivos como possíveis

orientações para inserção desse tema entre os alunos:

resgatar a cultura afro-brasileira no sentido de reintegrar os educandos nos valores étnicos e sociais da ancestralidade nacional;

levar o aluno a conhecer as concepções estéticas africanas;

levar o aluno oprimido a atuar conscientemente de modo a contribuir para a assunção da sua cidadania;

facilitar a construção da identidade do aluno através de uma autoidentificação positiva consigo mesmo e com o patrimônio histórico cultural brasileiro;

levar o aluno a reconhecer criticamente os estereótipos de representação étnica encontrados nas Artes Cênicas, em geral, e no teatro brasileiro, em particular (p.129).

Em seguida a autora traça um conjunto de possibilidades de temas e atividades

para o educador explorar para trabalhar as relações etnicorraciais dentro de sala de

aula, com os conteúdos mais variados possíveis, desde jogos, hábitos e costumes,

contação e encenação de suas próprias histórias, lendas e mitos, exteriorização de

sentimentos construídos a partir de alguma situação de agressão vivida. Citando

inclusive os diversos tipos de teatro utilizados na educação, entre esses o “teatro de

ruídos, sons e ritmos; teatro de mãos; teatro de máscara; teatro de sombras, teatro de

silhuetas; teatro de griôs” (idem, p. 130) em seguida menciona o Teatro do Oprimido

como uma possível sugestão. As técnicas sugeridas anteriormente cabem

perfeitamente na estética do teatro do oprimido, desenvolvido por Augusto Boal e que

Page 58: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

47

iremos explorar no próximo capítulo, já que é através do desenvolvimento da Imagem,

da Palavra e do Som, que irá se estruturar as cenas trabalhadas no Teatro do

Oprimido.

Page 59: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

48

Capítulo III - A metodologia do Teatro do Oprimido de Augusto Boal.

O teatro brasileiro teve grande importância, como estratégia de combate aos

preconceitos formados a partir das tensões nas relações interfaciais e interétnicas. Em

todas as suas dimensões, ao qual o teatro venha atingir, podemos ver projetos bem

sucedidos de intervenções ativistas nas quais submetiam-se algumas técnicas teatrais

à reflexão racial. Atualmente muitos grupos trabalham com a temática racial no Brasil,

obtendo destaque nacional e respaldo da crítica especializada, como é o caso, por

exemplo, do Bando de Teatro Olodum na Bahia e do Grupo de Teatro do Oprimido A

Cor do Brasil, no Rio de Janeiro, que tratam especificamente das questões

etnicorraciais em suas montagens, porém ainda continua sendo pouco, mediante o

contingente de negros e negras que ainda vivem às margens.

É impossível mencionar qualquer iniciativa teatral de cunho racial, sem

lembrarmos o trabalho de Abdias do Nascimento e o TEN – Teatro Experimental do

Negro, criado em 1944, que tinha entre seus objetivos a criação de um espaço teatral

aberto ao protagonismo do negro, além de uma dramaturgia negra que falasse

diretamente dos anseios desse grupo. O TEN também desenvolvia um trabalho de

alfabetização dos seus primeiros integrantes, promovendo um trabalho de conquista

de cidadania e conscientização política através da educação. Muitos de seus atores

foram recrutados de espaços mais pobres, como operários, empregadas domésticas,

moradores de favelas sem profissão definida, além de simples funcionários públicos. A

ideia principal do TEN, segundo o próprio Abdias do Nascimento, em artigo publicado

em 2004 pela Revista Estudos Avançados da USP, era que: “Não interessava ao TEM

aumentar o número de monografias e outros escritos, nem deduzir teorias, mas a

transformação qualitativa da interação social entre brancos e negros” (p.211), ou seja,

era um trabalho direto e ativo dentro das relações raciais, com seus próprios

participantes.

É dessa ideia de busca de um teatro mais político e ativo, que chegamos até o

Teatro do Oprimido de Augusto Boal. Cujo objetivo central era que o teatro deveria ser

praticado por todos! E que o mesmo pudesse ser usado como forma de reflexão e

combate as opressões sociais, inclusive as raciais.

O “Teatro do Oprimido” tem como princípio fundamentador a ideia que Paulo

Freire desenvolveu para a educação sobre a denominação de Pedagogia do Oprimido,

porém dando-lhe um caráter mais envolto às dimensões teatrais, repensando todos os

Page 60: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

49

campos contemplados com o processo de encenação, incluindo a democratização do

acesso ao teatro pelas camadas sociais menos favorecidas, estimulando-as a uma

transformação da realidade social que vivem.

As identidades em jogo dentro de uma aula de teatro poderão nos revelar muito

de nossa turma de alunos, já que é através da representação simbólica do real que os

mesmos irão construir as várias possibilidades de encenação. Direcionando esses

jogos para as relações etnicorraciais, com textos, músicas, vídeos, imagens que

estimulem a discussão de assuntos comuns ao tema, sensibilizaremos nossos alunos

à reviverem momentos nos quais os mesmos passaram por algum tipo de problema

em relação à questão racial, para posterior debate sobre o assunto, tentando

encontrar quais os problemas a serem resolvidos, e finalizarmos a atividade com a

desconstrução da cena original, a partir da interferência de todos os envolvidos nesse

processo cênico. Apesar de ser um caminho simples, essa metodologia de discussão

das experiências de cada um relacionadas às discriminações raciais, a partir de uma

atividade cênica, constitui um campo fértil para desenvolvermos projetos escolares nos

quais estejam envolvidos temas como: racismos, estereótipos e preconceitos. A sala

torna-se uma imensa “panela de pressão” a ponto de explodir de tantos debates, de

tantas opiniões, de tantas vivências a serem compartilhadas e muitas das vezes até

bem parecidas, efeitos da postura fechada e enraizada de preconceitos, na sociedade,

para com os negros e negras em nosso país.

Entender como uma postura de preconceito social foi construída, ao longo da

história, poderá ser favorável ao processo de desconstrução social, experimentada e

elaborada a partir de um jogo de cena, como os propostos pelo Teatro do Oprimido, de

Augusto Boal, como uma espécie de ensaio para a revolução, como bem mencionava

o autor em seus discursos.

O ensino da Arte, atualmente, baseado nos conceitos de Arte-Educação da Lei

de Diretrizes e Bases da Educação nº 9.394/96, é considerado como gerador de

conhecimentos e meio de desenvolvimento cultural. Por essa razão, a partir dessa

reformulação ganhou espaço no currículo da Educação Básica, de caráter obrigatório,

e se baseará nos seguintes princípios:

Liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber;

O ensino de Arte constituirá componente curricular obrigatório, nos diversos níveis da educação básica, de forma a promover o desenvolvimento cultural dos alunos.

Page 61: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

50

A compreensão do ambiente natural e social do sistema político, da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade.

5

A necessidade de ser compreendido nos leva a representar uma realidade que

seja a mais próxima da nossa, ao desenvolvermos o ato de dramatizar. Podemos

observar isso claramente nas brincadeiras infantis, por exemplo. Toda criança, por

ainda não ter desenvolvido seu conhecimento de mundo, utiliza-se dessa prática, para

podere se integrar melhor no mundo em torno dela. Da necessidade de dramatizar seu

mundo, a criança evolui, das manifestações espontâneas até o jogo de regras que

constitui o mundo. Esse poder que o "jogo” exerce nos seres humanos é algo que vai

além de tentar entendê-los como um fenômeno fisiológico, ou como um reflexo

psicológico, como nos indica Johan Huizinga, em seu livro Homo Ludens(1996). Há

algo que envolve os participantes de um jogo que vai além do próprio jogo, algo que

não está no campo material, já que o ato de jogar é anterior à própria formação da

cultura. Primitivamente, o homem sempre sentiu essa necessidade de jogar, exemplo

disso é observar que quase toda a nossa dimensão social e cultural, seja na

linguagem, nos rituais sagrados, no campo jurídico, de acusação e defesa, e até

mesmo no combate ou na guerra se estrutura como jogos.

Impossível desenvolver qualquer projeto que tenha o jogo com uma de suas

atividades, se não sustentarmos a ideia que HUIZINGA(1996) defende de que a ação

para se jogar é “voluntária”, ou seja, as regras são compartilhadas de comum acordo

entre os participantes envolvidos no jogo, e eles comandam toda a atividade de dentro

da ação. A partir do momento em que, de fora, tenta-se dar qualquer ordem extra às

regras, ou que interfira no andamento natural das ações do grupo, deixa de ser jogo

para ser no máximo uma imitação forçada da realidade pretendida.

Desse cuidado com a pouca interferência no jogo é que encontramos a

importância do sistema curinga para a prática do TO6, sistema esse já experimentado

por Boal quando fazia parte do grupo Teatro de Arena, em São Paulo, ainda na

década de 1960, quando o grupo, influenciado pela estética brechtiana de construção

de um teatro épico, dialético e antiaristotélico, buscava uma alternativa cênica

diferente das que se encontravam nos palcos brasileiros, surgindo assim o sistema

coringa que será fundamental posteriormente para a prática das técnicas de TO.

Nesse sistema, cada ator move-se em cena dentro das regras predeterminadas

de acordo com sua posição já estabelecida, porém não há a distribuição de

5 (Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm). Acesso em: 05 .mai. 2013.

6 TO é uma grafia reduzida normalmente usada para designarmos Teatro do Oprimido

Page 62: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

51

personagens aos atores, mas sim de funções que seguem a estrutura dos conflitos

presentes dentro do texto. De acordo com BOAL(2011) as funções de um coringa são:

“A primeira função é a ‘Protagônica’ que, no sistema, representa a realidade concreta e fotográfica. Esta é a única função na qual se dá a vinculação perfeita e permanente ator-personagem: um só ator desempenha só o protagonista e nenhum outro.(...)

A segunda função do sistema é o próprio Coringa. Poderíamos defini-la como sendo exatamente o contrário do Protagnista.(...)O Coringa é polivalente: é a única função que pode desempenhar qualquer papel da peça, podendo inclusive substituir o Protagonista nos impedimentos deste, determinados por sua realidade naturalista.(...)

Todos os demais atores estão divididos em dois Coros: Deuteragonista e Antagonista, tendo cada um seu Corifeu. Os atores do primeiro Coro podem desempenhar qualquer papel de apoio ao Protagonista: isto é, papeis que representam a mesma ideia central deste. (...)

Completando esta estrutura, está a Orquestra Geral: violão, flauta e bateria. Os três músicos deverão também tocar outros instrumentos de corda, sopro e percussão. Alem de apoio musical, deve a Orquestra cantar, isoladamente ou em conjunto com o Corifeu, todos os Comentários de caráter informativo ou ilusionístico” (p. 274-279)

Essa estrutura é considerada básica para montagem de qualquer espetáculo

com o sistema coringa, que apesar de inovador não avançou muito em outras

montagens do grupo, mas sofrerá algumas modificações e será usado pelo Teatro do

Oprimido, segundo SANCTUM(2012), para nomear o “especialista na metodologia do

Teatro do Oprimido, sendo comparado ao curinga da carta de baralho, que têm

diferentes papeis de acordo com determinada necessidade” (p. 31)

A utilização do teatro na escola começou a ser repensada, a partir da segunda

metade do século XX, segundo Ricardo Japiassu no seu livro Metodologia do Ensino

de Teatro, de 2001, através de uma abordagem de ensino essencialista ou estética,

fundamentada na especificidade da linguagem teatral, buscando compreender seus

princípios psicopedagógicos, compreendendo o teatro como um sistema de

representação semiótica acessível a todos os seres humanos, para a comunicação do

seu pensamento e sentimentos, dando-lhes um valor e importância para a formação

educacional:

“Importante meio de comunicação e expressão que articula aspectos plásticos, audiovisuais, musicais e linguísticos em sua especificidade estética, o teatro passou a ser reconhecido como forma de conhecimento capaz de mobilizar, coordenando-as, as dimensões sensório-motora, simbólica, afetiva e cognitiva do educando, tornando-se útil na compreensão da realidade humana culturalmente determinada. (JAPIASSU, 2001, p. 22)

Essa descoberta do caráter pedagógico do teatro, interagindo o semiótico e o

terapêutico com as pesquisas no campo da estética, ambicionava uma renovação na

Page 63: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

52

linguagem teatral como um todo, verificando um crescimento nas experimentações e

propostas pedagógicas, das mais variadas crenças e compromissos ideológicos,

políticos ou preferências estéticos possíveis.

JAPIASSU(2001) nos traz algumas formas pedagógicas teatrais praticadas nos

últimos anos, no Brasil. Entre essas estão: a terapêutica psicodramática de Moreno, a

dimensão política-estética do teatro em Brecht, a abordagem pedagógica anglo-

saxônica do drama, a proposta metodológica de ensino do teatro de Viola Spolin e a

pedagogia do teatro do oprimido de Boal. Conduziremos nosso textos a partir das

reflexões feitas por este autor sobre o Teatro do Oprimido.

Boal começa citando as influências da estética brechtiana e da pedagogia

libertadora de Paulo Freire, na luta para transformar através dessa arte as relações

tradicionais de produção material, típico das sociedades capitalistas, e que vem

corroborando com um sistema forte de opressão, em uma conscientização mais

política de seu público.

Um dos pontos positivos de se trabalhar com o TO em sala de aula, é que a

turma de alunos, ao ser dividida entre palco e plateia, experimenta esses dois polos de

formação teatral escolar, e através de revezamentos entre grupos os alunos tornam-se

espectATOR, ou seja, a plateia assiste e participa diretamente nas cenas, sendo esse

o principal objetivo da Poética do Oprimido. BOAL (2011) descreve como o espectador

era visto na Poética de Aristóteles, na qual se delegam poderes ao personagem para

agir e pensar por eles em cena, produzindo uma catarse; já em Brecht o espectador

delega o direito ao personagem para atuar por ele, porém mantendo-se distante, e por

conta disso pode pensar por si mesmo, podendo fazer também oposição ao

personagem, produzindo, em vez de uma catarse, uma “conscientização”. O que Boal

propõe agora com sua Poética é a própria ação, sem delegar poderes a personagem

algum, pelo contrário:

“ele mesmo assume o papel protagônico, transforma a ação dramática inicialmente proposta, ensaia soluções possíveis, debate projetos modificadores: em resumo, o espectador ensaia, preparando-se para a ação real. Por isso, eu creio que o teatro não é revolucionário em si mesmo, mas certamente pode ser um excelente ‘ensaio’ da revolução (BOAL, 2001, p.182)

BOAL(2011) estruturou em quatro etapas distintas o seu plano de conversão

do espectador em ator:

1ª. Etapa: O Conhecimento do próprio Corpo através de uma série de

exercícios que lhes dê uma dimensão das possibilidades do mesmo;

2ª. Etapa: Tornar o Corpo Expressivo, com a ajuda de jogos no qual o individuo

passa a compreender no próprio corpo seus mecanismos de comunicação;

Page 64: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

53

3ª. Etapa: Entender o Teatro como Linguagem viva e presente, através de três

graus: 1 – Dramaturgia Simultânea; 2 – Teatro-Imagem: imagem feita com os corpos

dos demais participantes; e 3 – Teatro-Debate: os espectadores intervêm na cena,

substituindo determinados atores.

4ª. Etapa: O Teatro como Discurso. As formas simples como o espectATOR

apresenta o espetáculo. São eles:

1. Teatro Jornal – transforma qualquer notícia de jornal em cena;

2. Teatro Invisível – representar em lugares públicos, sem o conhecimento da

plateia de que aquilo não era verdade;

3. Teatro fotonovela – improvisação teatral sobre um enredo de uma

fotonovela;

4. Quebra de repressão – é um recorte de um momento de opressão e

repressão, reconstruindo teatralmente, da forma mais fiel possível;

5. Teatro-mito: identificar as relações de produção material e de poder

“ocultas” na narração original.

6. Teatro-julgamento: os participantes experimentam diversas possibilidades,

discutindo alguns papéis sociais que influenciam na compreensão do

caráter dos personagens;

7. Rituais e máscaras: discutem os condicionamentos histórico-culturais

impostos ao repertório gestual e comportamental.

JAPIASSSU(2001) faz a seguinte conclusão desse processo: o espectATOR

significa libertação do sistema “opressor”. Segundo ainda esse autor, o TO está

interessado por um teatro como ação cultural estético-pedagógica, que se propõe a

“ensaiar uma revolução política, econômica e histórica nas sociedades humanas” (p.

47)

Outro estudioso da prática do TO, é Flavio Desgranges(2010) em seu livro

Pedagogia do Teatro: Provocação e Dialogismo, no qual traz reflexões sobre algumas

metodologias de ensino de teatro experimentadas nos espaços educacionais

brasileiros, e uma delas é a do Teatro do Oprimido, com uma reflexão importante para

justificarmos a utilização desse método em sala para as relações étnico-raciais: a que

público essa forma teatral se destina?

Para desenvolvermos as metodologias do Teatro do Oprimido, precisamos

primeiramente entender que tipo opressão exerce maior poder sobre aquele grupo,

para podermos direcionar os jogos e as futuras reflexões de intervenção. A escola

acaba sendo um espaço múltiplo de vivências sociais, que ecoam a todo instante nas

Page 65: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

54

salas de aula, nos corredores, nas relações entre alunos versus alunos, ou entre

alunos versus professor, professor versus professor, professor versus direção, etc.

Todas essas relações vêm carregadas de fatores hierárquicos embasados no

cotidiano de cada um desses agentes envolvidos na educação. Não é difícil encontrar

uma relação de opressão nesses espaços, que ainda procuram disciplinar seus alunos

em vez de formarem cidadãos críticos. Trabalhar com o Teatro do Oprimido é

reconhecer a cultura e os valores daquela comunidade escolar como um todo,

identificar os tipos de opressão que a impede de qualquer mobilidade social e trazer

para os jogos em sala de aula, e posteriormente para as interações através do teatro-

fórum, por exemplo, algo que diga respeito às suas realidades. DESGRANJES(2010)

traça nesse seu livro um olhar crítico específico sobre a arte teatral, utilizada com

caráter pedagógico, ou seja, onde possamos identificar claramente seu valor

educacional através dos aspectos provocativos e dialógicos presentes nas várias

formas de se fazer teatro.

A grande experiência teatral é desafiar o espectador na decodificação dos

seus diversos elementos de significação, estabelecendo uma linguagem própria da

encenação, convidando o espectador a um mergulho de sentimentos nesse jogo da

linguagem teatral: “O mergulho na corrente viva da linguagem acende também a

vontade de lançar um olhar interpretativo para a vida, exercitando a capacidade de

compreendê-la de maneira própria” (idem, p.23), despertando uma tomada de

consciência desse indivíduo/plateia, para uma efetiva leitura de mundo.

Ao tratar especificamente do Teatro do Oprimido, DESGRANGES(2010), traz

uma análise critica dessa metodologia com uma ótica particularmente pedagógica.

Procuro aqui refletir sobre alguns equívocos provocados por essas análises. A

primeira ressalva que o autor faz é a de que essa prática requer algum engajamento

político por parte do grupo envolvido, o que muitas vezes não acontece, reduzindo as

apresentações de Teatro do Oprimido a meros acontecimentos demonstrativos, onde

se exibem as técnicas e os espectadores assistem ou até participam sem

compromisso nenhum: “sem envolvimento orgânico, visceral com o ato em questão”

(p.74) Percebemos nas palavras do autor uma forma bastante simplória de se reduzir

o ato cênico provocado pelo Teatro Oprimido. Se o indivíduo que opta por fazer Teatro

do Oprimido, já assume com isso uma postura política, assim também acontece

quando decide, por exemplo, pesquisar os problemas das minorias, como é o caso

das relações etnicorraciais. E se todas essas discussões perpassam o ambiente

escolar, nossos alunos, enquanto cidadãos, devem ter uma opinião formada sobre

toda e qualquer forma de opressão que se construa socialmente, em seus mais

variados aspectos, então com isso, qualquer sessão de TO vai além de uma simples

Page 66: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

55

exibição, já que propõe ao público possíveis reflexões e interações sobre determinado

problema.

Levar o indivíduo a pensar criticamente sobre algum tipo de opressão, e trazê-

lo à cena substituindo o papel do oprimido, o que acontece na maioria dos casos, é

trazê-los também a um envolvimento orgânico, já que o mesmo se encontra ali por

completo em cena, mesmo que não tenha passado por determinado problema de

opressão, ou que não tenha percebido determinada opressão em sua vida, ou até

mesmo que venha a ser um agente de opressão sem se dar conta da violência que

pratica, já que estamos lidando com uma sociedade fortemente marcada por uma

colonização europeia, híbrida por formação e complexa culturalmente, então

dificilmente veremos esses mecanismos de opressão bem definidos entre os

indivíduos, ou seja, estamos todos passíveis a sofrer ou a cometer qualquer tipo de

opressão que venha a ser construída em nossa sociedade.

Outro equívoco levantando pelo autor é em relação à utilização demasiado

instrumental da linguagem teatral pelo Teatro do Oprimido, segundo

DESGRANGES(20010), por conta da imediatez das apresentações dos grupos, ou

seja, da urgência em se discutir determinadas situações de opressão com suas

comunidades, em prol de estratégias de resolução desses problema. Muitas vezes as

cenas acabam sendo pouco elaboradas, podendo ocasionar um empobrecimento da

linguagem, e como menciona esse autor “o enfraquecimento da potencialidade

estética própria a esta arte” (p.74).

Um dos últimos livros que Augusto Boal desenvolveu, em parceria com sua

equipe de Coringas do Centro de Teatro do Oprimido, foi exatamente em relação à

Estética do Oprimido, no qual podemos encontrar toda a preocupação dos seus

idealizadores em relação aos elementos da linguagem cênica, e a importância desses

para a efetivação de uma sessão de Teatro do Oprimido.

A necessidade de criar estratégias de combate à exclusão social e ao

preconceito encontra na escola, nas aulas de teatro, um espaço efetivo para essa

discussão, através do reconhecimento e da valorização da cultura africana e afro-

brasileira. Ao levarmos os sujeitos a refletirem sobre essas condições, vivenciando e

fazendo parte das mesmas através de suas atuação teatrais, nos aproximaremos

muito das ideias da professora Jane Eliot, discutidos anteriormente através do artigo

de Nilma Lima Gomes (2005), nos fazendo refletir que ao colocarmos as pessoas

diante de seus próprios valores raciais, levando-as a questioná-los, a partir do

momento em que se encontram numa situação de discriminação semelhante àquela

vivida pelo outro, pelo diferente, poderíamos fazer com que esse sujeito entre em

contato diretamente com situações que o levarão a um pensamento crítico acerca das

Page 67: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

56

relações e tensões raciais em que estão envolvidos. Aproximando-se muito dos

conceitos desenvolvidos pelas técnicas do Teatro do Oprimido, nas quais “O ser

humano pode ver-se no ato de ver, de agir, de sentir, de pensar. Ele pode se sentir

sentindo, e se pensar pensando” (BOAL, 1996, p.27).

III.1 O Teatro do Oprimido

Começo essa apresentação sobre o Teatro do Oprimido, tomando

emprestadas as primeiras palavras também de apresentação de Augusto Boal a um

de seus livros, datado de 1974, no qual insere toda a sua preocupação em recuperar o

caráter político do teatro, justificando que todas as atividades do homem são políticas,

e o teatro é apenas mais uma delas. Por conta disso, os que pretendem esvaziar esse

discurso político do teatro, na verdade querem tomar para eles uma das mais

eficientes formas de dominação sociocultural, por isso, defendia Boal, devemos lutar

por ele.

Em meio aos anos conturbados das décadas de 1960 e 1970 no Brasil, Boal

procurava uma forma de fazer teatro que fosse além da Arte Cênica propriamente dita,

queria pensar construções cênicas nas quais todos os envolvidos fossem levados a

um despertar da consciência crítica, inclusive a plateia, que deveria ser instigada a sair

do seu estado de “observador” e interferisse na cena, como se fosse um jogo,

construindo-se como espectador e ator, o que Boal denomina como Spect-atores. Ele

acreditava que, partindo desse princípio básico, da libertação da plateia enquanto um

ser “oprimido”, o espetáculo seria o “início de uma transformação social necessária e

não um momento de equilíbrio e repouso”. (BOAL, 2011, p.19).

Boal cria suas técnicas tendo como inspiração a figura de uma árvore. É

através dessa metáfora da Árvore do Teatro do Oprimido, que o mesmo irá conectar

todos os jogos desenvolvidos, as técnicas de TO, os elementos da estética, sempre a

Ética e a Solidariedade como solo produtivo para as ações desenvolvidas através do

Teatro do Oprimido. A cada fruto que cair nesse solo se reproduziria através da

Política de Multiplicação, e a Solidariedade entre semelhantes é a parte medular do

T.O., ou seja, é preciso conhecer não só suas próprias opressões, mas as alheias

também. Os Jogos logo no início tronco da árvore, se devem ao fato do mesmo reunir

duas características essenciais para a vida em sociedade: a primeira é que para se

praticar qualquer jogo tem-se que respeitar regras, porém, necessita-se de liberdade

criativa, para que o Jogo, ou a vida, não se transforme em servil obediência: “Sem

regras não há jogo, sem liberdade não há vida” (BOAL, 2011, p.16)

Page 68: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

57

FIG. III.1 – Árvore do Teatro do Oprimido.FONTE: ctorio.org.br

Através de jogos com Imagem, Som e Palavras, os alunos envolvidos no nosso

experimento com o TO são conduzidos em sala a expor seu pensamento sobre as

temáticas relacionadas às questões raciais, como o racismo. Esses pensamentos, em

sua maioria, são expressos a partir de “vivências” experimentadas pelos próprios

alunos, que os expuseram a alguma situação de submissão, vexame ou até mesmo

violência.

Dentro do jogo lúdico da encenação, ela é compreendida como processo de

interação, levando ao declínio da ideia de regra como lei exterior, fazendo-os

entenderem que a mesma é um resultado de uma decisão livre, porque foi

mutuamente consentida.

Assistimos, hoje em dia, a vários debates em relação às comunidades

chamadas de “minorias”, que há muito tempo têm sido excluídas de determinados

Page 69: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

58

setores da sociedade, principalmente daqueles setores privilegiados com acesso ao

“poder”. Entendendo a Educação como um dos poderes de ascensão social, é que

podemos observar o porquê da criação de algumas políticas afirmativas, como é o

caso do sistema de cotas para ingresso nas universidades, por exemplo, que

possibilitaram a negros e negras o acesso ao ensino superior, e até a vagas pré-

determinadas nos concursos públicos do país. Foi a partir de estratégias como essas

que pudemos ver um número crescente de negros e negras podendo participar de

vários setores da vida social onde antes seria impossível visualizá-los.

Em seu livro Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas (2011) Boal faz

algumas reflexões sobre a sua pretensão com essa técnica teatral e uma delas é a

popularização do teatro, pois são técnicas que poderão ser utilizadas tanto por atores

como por não atores. O autor declara que pretendia “mostrar que todo teatro é

necessariamente político, porque políticas são todas as atividades do homem, e o

teatro é uma delas” (BOAL, 2011, p.11). Boal iguala o “fazer teatral” e sua utilização

como uma “arma eficiente” utilizada pelas classes dominantes em nossa sociedade,

por isso o teatrólogo defende que é necessário lutar por ele.

O que Boal pretendia era instigar uma retomada do teatro pelo povo, pela

grande “massa” que se viu afastada de uma arte que acabou por se tornar elitizada.

Por isto desenvolveu algumas técnicas de encenação para que qualquer um possa ser

ator dessa ação cênica, utilizando-se das relações sociais, nas quais observamos

posturas opressoras, por conta de uma constituição social ainda embasada em ideais

coloniais. Mas faz uma ressalva de que nessa relação “Oprimidos e opressores não

podem ser candidamente confundidos com anjos e demônios. Quase não existe em

estado puro, nem uns nem outros”. (Idem, p.23) Abrindo a discussão para as outras

possibilidades de opressão, nas quais opressores são encontrados como oprimidos e

oprimidos fazem a vez de opressores.

Entre essas técnicas de encenação podemos citar o Teatro Jornal,

considerada a técnica mais antiga do TO, utilizada desde o Teatro de Arena, época

em que a Ditadura Militar censurava várias peças teatrais e controlava o que era dito

ou denunciado em cena. Nesta técnica, escolhiam-se notícias publicadas em jornais

pela manhã, para encená-las à noite. A ideia era que, através dessa encenação, as

entrelinhas do texto fossem reveladas e que todos pudessem compreender qual era

realmente a ideologia propagado pelo jornal. Essa técnica pode ser desenvolvida a

partir das seguintes práticas:

a) leitura simples – a notícia é lida destacando-se do contexto do jornal, da diagramação, que torna falsa ou tendenciosa – isolado do resto do jornal readquire sua verdade objetiva;

Page 70: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

59

b) leitura cruzada – duas notícias são lidas de forma cruzada, uma

lançando nova luz sobre a outra, e dando-lhe uma nova dimensão; c) leitura complementar – à notícia do jornal acrescentam-se dados e

informações geralmente omitidos pelos jornais das classes dominantes; d) leitura com ritmo – a notícia é cantada em vez de lida, usando-se o ritmo

mais indicado para se transmitir o conteúdo que se deseja: samba, tango, canto gregoriano, bolero, de tal forma que o ritmo funcione como verdadeiro filtro crítico da notícia, revelando seu verdadeiro conteúdo, oculto nas páginas dos jornais;

e) ação paralela – paralelamente à leitura da notícia, os atores mimam ações físicas, mostrando em que contexto o fato descrito ocorreu verdadeiramente; ouve-se a notícia e, ao mesmo tempo, veem-se imagens que a complementam;

f) improvisação – a notícia é improvisada cenicamente, explorando-se todas as suas variantes e possibilidades;

g) histórico – a notícia é representada juntamente com outras cenas ou dados, que mostrem o mesmo fato em outros momentos históricos ou em outros países, ou em outros sistemas sociais;

h) reforço – a notícia é lida, ou cantada, ou bailada, com a ajuda de slides, jingles, canções ou material de publicidade;

i) concreção da abstração – concreta-se cenicamente o que a notícia às

vezes esconde em sua informação puramente abstrata: mostra-se concretamente a tortura, a fome, o desemprego, etc., mostrando-se imagens gráficas, reais ou simbólicas;

j) texto fora do contexto – uma notícia é representada fora do contexto em que sai publicada: por exemplo, um ator representa o discurso sobre austeridade pronunciado por um ministro da economia enquanto devora um enorme jantar; a verdade do discurso fica assim desmistificada: quer austeridade para o povo, mas não para si mesmo. (Idem, p. 217-218)

Mas logo em seguida veio a prisão e o exílio de Augusto Boal, que buscou

refúgio em países da América Latina como Argentina, Peru e Chile. Boal continuou

seu trabalho enquanto ativista teatral nesses países, e começou a desenhar uma

metodologia onde o teatro pudesse ir além de simplesmente comentar sobre política,

que ele fosse uma atividade política em si.

III.1.1 Dramaturgia Simultânea e Teatro Fórum

A Dramaturgia Simultânea foi uma prática teatral desenvolvida por Boal no

Peru, para a alfabetização de adultos, na qual os atores profissionais escutavam as

histórias de opressão de alunos e posteriormente as encenavam para outros

estudantes. Boal conduzia os debates e a plateia podia opinar sobre possíveis

resoluções para os problemas apresentados em cena, fazendo o papel que hoje

reconhecemos como o de um Coringa.

Porém durante uma apresentação na cidade de Chaclacayo, ainda no Peru, de

uma cena que discutia o machismo de um marido contra a sua mulher; ele a traía e ela

não fazia nada, e após várias tentativas de resoluções daquele conflito, e nenhuma

delas agradou a plateia como um todo, uma senhora eufórica com a impossibilidade

de uma conclusão efetiva para a cena, sugeriu uma resolução: a esposa

Page 71: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

60

primeiramente deveria ter uma conversa “clara” com o marido, depois o perdoaria. O

elenco tentou encenar essa proposta várias vezes, mas a mulher não se sentia

contemplada com nenhuma tentativa, principalmente com relação à “conversa clara”

que a esposa deveria ter com o marido. A atriz tentou de várias formas, mas nada

chegava próximo ao que a mulher tinha pensado para a cena. Segundo relatos do

próprio Boal, através do documentário de Zelito Viana, BOAL – Augusto Boal e o

Teatro do Oprimido, de 2011, a mulher já estava quase saindo do teatro, dando as

costas para o elenco, em tom de decepção, quando Boal a questionou o porquê

daquela atitude, e ela respondeu: Você não entende o que quero dizer por que você é

homem! Então, Boal sugeriu que ela fosse até a cena e mostrasse então a todos qual

era sua real intenção. A mulher subiu com uma raiva, como se ela mesma tivesse

passado por aquela opressão, e a forma de “conversa clara” que a mesma teria

pensado foi representada pela mesma de forma completamente diferente. A mulher

agarrou o ator que representava o marido pela camisa com um cabo de vassoura na

mão, partiu para cima do ator, batendo nele, dizendo que era para ele aprender a

nunca mais cometer aquela loucura, jogou o pau fora e mandou que ele fosse pegar

uma comida pra ela porque ela estava com fome. Surgindo naquele instante a ideia do

que viria a se desenvolver a mais utilizada do TO, o Teatro Fórum.

III.1.2 Teatro Imagem

Técnica na qual não se utilizava a palavra. Após alguns trabalhos com

indígenas, Boal percebia que quando utilizava a palavra para a comunicação nem

sempre a mensagem era entendida ou interpretada como se pretendia, então resolveu

desenvolver uma técnica de encenação onde os participantes davam suas mensagens

através de imagens corporais: “deve apenas usar os corpos dos demais participantes

para ‘esculpir’ com eles um conjunto de estátuas, de tal maneira que suas opiniões e

sensações resultem evidentes” (BOAL, 2011, p.204) O importante é que o grupo

consiga chegar até uma representação física da opressão que se pretende discutir, e

que essa imagem seja entendida pela maioria do grupo. Depois pede-se ao mesmo

escultor que modifique essa imagem, chamada de imagem real, para outra que

transmitisse o desejo desse escultor em por fim aquela opressão, construindo uma

imagem ideal. Por fim, é pedido a alguém da plateia que construa uma terceira

imagem, chama de Imagem de trânsito, ou seja, como seria possível através de

algumas modificações transformar a imagem real na imagem ideal? Cada um dos

participantes, sem a fala, teriam o direito em esculpir as modificações essas

necessárias, construindo seus próprios caminhos de transformações, que consistia em

seu próprio caminho para a revolução: “Todo debate é feito pelos ‘escultores’ que

Page 72: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

61

modificam ‘esculturas’: cada escultura terá inequivocamente um significado, e cada

modificação, igualmente, terá um significado particular” (idem, p.205). A palavra

apesar de possui uma denotação, ou seja, o mesmo significado para todos, ela

também carrega a conotação, que acaba lhes transmitindo significados diferentes para

cada um, de acordo com sua cultura, lugares de pertencimento, suas experiências,

etc., por conta disso, o teatro-imagem torna-se uma prática muito eficaz em tornar o

pensamento visível, já que, segundo BOAL (2011) a imagem consegue sintetizar a

conotação individual e a denotação coletiva.

Trabalhar com a leitura de imagens nos dias de hoje torna-se importante

mediante a pesada indústria do marketing e da propaganda, que cria através da ilusão

do consumo exacerbado outras formas de opressão, como mencionado no capítulo

anterior sobre os “jovens e o consumismo”. Segundo SANCTUM (2012) essa indústria

“cria e perpetua ferramentas justamente para viciar nossos olhares a não perceberem

as mensagens subliminares ou indiretas” (p.41).

III.1.3 Teatro Invisível

Essa técnica foi criada e praticada parte na América Latina, parte na Europa, e

a ideia era tornar visível as opressões não percebidas pela população. A encenação

pode acontecer em qualquer lugar, sem que o público saiba que se trata de atores. É

escolhida uma situação problema geradora de algum tipo de opressão que já esteja

banalizada, ou seja, que passa despercebida pela população. Para se preparar um

espetáculo de teatro invisível, tudo deve ser pensado minuciosamente, além do texto,

das cenas, da relação entre os atores, a possível interferência das pessoas que

estejam passando pelo local onde a cena esteja acontecendo. De acordo com BOAL

(2011) o Teatro Invisível deve “explodir”, ou seja, ecoar no meio da população, em um

local de grande movimentação, tornando escandalosa uma situação de opressão e

“todas as pessoas próximas devem ser envolvidas pela explosão, e os efeitos desta

muitas vezes perduram até depois de muito tempo de terminada a cena” (p. 219).

SANCTUM (2012) ressalta que, como “toda ação realizada no método do

Teatro do Oprimido tem um cunho político de transformação social e protagonismo de

espectador” (p. 42), não devemos confundir essa prática do TO com determinados

quadros apresentados pela televisão, nos quais pessoas são enganadas sobre

determinadas ações tidas como verdadeiras, sem nenhuma preocupação de mudança

de pensamento dos sujeitos envolvidos, a única preocupação que podemos perceber

neles é a do espetáculo: “Brincadeiras jocosas que desmerecem a inteligência da

Page 73: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

62

população como vemos nos programas dominicais – as chamadas ‘pegadinhas’”

(ibidem), muitas vezes expõem o espectador ao ridículo.

III.1.4 Arco-Íris do Desejo e Psicodrama

Método de Teatro do Oprimido que tem como função revelar os opressores

internalizados em cada indivíduo, por conta disso também é chamado de Método de

Boal de Teatro e Terapia. Ao praticar o Teatro do Oprimido em grupos na Europa, já

nos anos de 1980, Boal percebeu que a opressões reveladas e discutidas nesses

grupos eram em sua maioria de caráter particular, com forte introspecção e nenhuma

origem clara, diferentemente das opressões observadas nos países da América

Latina. Se até então Boal confrontava seus opressores em funções e lugares

concretos, como policiais, patrões, latifundiários, agora as opressões eram subjetivas

e introspectadas. Então Boal buscou através dessa prática, trazer as opressões à

expressão, criando a técnica o tira na cabeça, com a intenção de “facilitar o confronto

entre o oprimido e os ‘policiais’ alojados dentro de suas próprias cabeças, para

concretizá-los em imagens e, a partir de então, conseguir combatê-los” (SANCTUM,

2012, p.46). Entre as outras técnicas criadas por Boal, está a que dá nome a esse

método de TO, o Arco-Íris do Desejo, na qual sugere metaforicamente a análise de

todas as cores do arco-íris, recombinando de acordo com o desejo de cada um em

resignificar suas opressões internalizadas, possibilitando outras formas de se lidar com

suas opressões.

SANCTUM (2021) destaca dois pontos relevantes em relação ao método Arco-

Íris do Desejo, o primeiro em relação à diferenciação entre esse método e o

psicodrama criado por Jacob Levy Moreno. Não devemos esquecer que no Teatro do

Oprimido as reflexões propostas têm como víeis a análise da ação individual para uma

transformação de caráter social, ou seja, parte da opressão compartilhada por um

indivíduo ou grupo, para uma ação de combate a essa opressão que atinge um

grande número de pessoas: “Enquanto Boal se concentra no coletivo, o psicodrama de

Moreno tem por finalidade trabalhar os problemas individuais em sessões de terapia.

Boal crê que o teatro é terapêutico, mas não é terapia” (idem, p. 47)

O segundo ponto relevante é em relação à catarse, a propósito da qual Boal

lista quatro tipos independentes:

1) Catarse Clínica: o paciente expurga o que lhe está fazendo mal e pode se curar.

Page 74: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

63

2) Catarse Moreniana: o paciente expurgar seus pensamentos negativos, ao

interpretar, durante uma sessão de psicodrama, um personagem com emoções

semelhantes as suas.

3) Catarse Aristotélica: através das tragédias, os problemas sociais eram postos em

destaques, representados por heróis trágicos e eram assistidos por muitos,

tornando-se como arma de controle e coerção pelos governantes, já que o teatro

era incentivado e financiado pelo Estado. Segundo o próprio Boal a função dessa

catarse na Grécia era a de podar qualquer movimento político que tentasse

reivindicar algum tipo de mudança na “polis”.

4) Catarse de Boal: o que pretendia com a sua proposta era quebrar esse repouso

praticado pela catarse aristotélica para sua plateia, e trazer um desequilíbrio que

provoque uma ação de intervenção da mesma, através da dinamização, que seria

a ação que provém dela (exercida por um espect-ator em nome de todos)

destruindo os bloqueios que proibiam a sua realização. “Isso quer dizer que ela

purifica os espectatores, que ela produz uma catarse. A catarse dos bloqueios

prejudiciais. Que seja bem vinda!” (Boal, 2002, p. 83)

III.1.5 Fábrica de Teatro Popular

Em 1986 Boal aceita o convite de Darcy Ribeiro, então vice-governador do Rio

de Janeiro, para desenvolver seu Método e participar do projeto da criação dos

Centros Integrados Para a Educação Pública (CIEP), para possibilitar através do

apoderamento do processo de criação teatral o aumento da confiança e da

consciência de alunos que viviam às margens, para convertê-los em cidadãos ativos e

participativos.

A partir de então seguiram-se capacitações de artistas, animadores culturais e

professores, com o intuito de criar grupos comunitários de Teatro-Fórum, que iriam

percorrer algumas cidades do Estado, com a função de multiplicar o Método e criar

outros grupos, formando uma rede. Esse projeto inicial era chamado de Fábrica de

Teatro Popular.

Porém, o projeto teve que ser cancelado por conta de um novo governo eleito.

Como estratégia para não paralisar o projeto, Boal e outros participantes tentaram

continuar o trabalho, fundando em 1989 o Centro do Teatro do Oprimido (CTO), na

cidade do Rio de Janeiro, cujo principal objetivo era o de seguir difundindo os métodos

de Boal. Mas não foi fácil a manutenção desse novo espaço. As dificuldades

financeiras quase levaram os envolvidos a abandonar o projeto por várias vezes, a

solução veio através da campanha eleitoral de 1992, quando o CTO decidiu então

Page 75: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

64

apoiar ativamente a campanha do PT, e Boal lança sua candidatura, por esse mesmo

partido para vereador da cidade do Rio de Janeiro. Com uma proposta de governo

bastante clara que era a de continuar levando seu projeto de Teatro do Oprimido,

porém com uma participação mais ativa na política, sendo um dos seis vereadores

eleitos pelo PT, tomou posse na Câmara dos Vereadores em janeiro de 1993.

III.1.6 Teatro Legislativo

A partir desse mandato de Vereador e através do trabalho com o Teatro-

Fórum, Boal criou uma nova forma de atuação, juntando o teatro com a atividade

legislativa, no projeto que ficou conhecido como Teatro Legislativo, no qual, ao entrar

em cena, no Fórum, podia-se sugerir propostas de leis para a resolução dos

problemas que eram expostos e discutidos através da encenação. BOAL (1996)

descreve esse seu Método em um livro chamado Teatro Legislativo, no qual faz uma

reflexão sobre essas duas atividades: o Teatro do Oprimido, onde o espectador se

transforma em ator, e o Teatro Legislativo, onde o cidadão se transforma em

legislador; a semelhança entre ambos existe a partir do momento em que “não

admitimos que o eleitor seja mero espectador das ações dos parlamentares, mesmo

quando concretas: queremos que opine, discuta, contraponha argumentos, seja co-

responsável por aquilo que faz o seu parlamentar” (p.45-46).

O Teatro Legislativo se propõe, através de uma atividade lúdica, que se realiza

por conta da encenação, discutir e propor políticas, por qualquer um que se sinta

envolvido, inclusive por aqueles que dizem não gostar de política, entendendo esse

próprio descontentamento como também uma postura política, já que fazer política é

da própria natureza do homem.

Para o funcionamento dos grupos de Teatro Legislativo, BOAL(1996) relata a

sua organização em torno de “Núcleos” e “Elos”, cada subgrupo apresenta suas

específicas importâncias para o desenvolvimento desse Método:

Um Elo é um conjunto de pessoas da mesma comunidade e que se comunica periodicamente com o Mandato, expondo suas opiniões, desejos e necessidades. Essa relação pode-se dar através da presença na Câmara Municipal, na comunidade ou em outros locais onde se realizem atividades do Mandato. Pode-se dar pessoalmente, através da Câmara na Praça ou da Mala Direta Interativa. Um Núcleo é um elo que se constitui em grupo de Teatro do Oprimido e, ativamente, colabora com o Mandato de forma mais frequente e sistemática. (p. 66)

As sessões de Teatro Legislativo aconteciam na calçada em frente ao prédio

da Câmara dos Vereadores, na Cinelândia, e utilizavam as escadarias como

Page 76: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

65

arquibancada, uma lona para o chão e uma estrutura que servia de fundo, o qual

chamavam de “palquinho”, e assim delimitavam o Espaço Cênico. BOAL(1996)

também conta que outros vereadores eram convidados a participar dessas sessões, já

que a ideia era reproduzir na rua o que acontecia, ou deveria acontecer, no plenário.

Mas somente 10% desses apareciam, talvez porque não fosse tarefa fácil encarar,

frente a frente, a população em temas polêmicos. Quando aconteciam as votações

dentro do Plenário, essas pessoas, que participavam de uma sessão de Teatro

Legislativo, eram convidadas para acompanhá-las.. Muitas nunca tinham entrado

antes no prédio e gostavam de acompanhar as sessões, solicitando inclusive oficinas

de Teatro Legislativo em suas comunidades e bairros.

Dessa forma, o Teatro Legislativo, conseguiu aprovar 13 Leis Municipais, além

de propor vários outros Projetos de Lei que não foram aprovados. Desses grupos

também surgiu a proposta que resultou em 1997, após o final do Mandato, na Primeira

Lei brasileira de Proteção às Testemunhas de Crimes, que veio a inspirar a Lei

Federal de Proteção às Testemunhas, segundo texto sobre o Teatro Legislativo

disponibilizado na página do Centro de Teatro do Oprimido, na internet:

www.cto.org.br .

Após o fim do mandato de Augusto Boal, alguns curingas continuaram a

desenvolver o Método, devido a grande riqueza da experiência, o que Boal descreveu

como EXERCÍCIO PLENO DA CIDADANIA, porém agora com o desafio de não terem

nenhuma ligação direta com qualquer legislador. O Centro de Teatro do Oprimido –

CTO, foi registrado como Associação Sem Fins Lucrativos, para criar as condições

jurídicas necessárias na busca de apoio a projetos que possibilitassem o CTO nessa

dura tarefa de continuação. E os curingas passaram então a fazer contatos com

gabinetes de vereadores(as) e deputados(as) estaduais em busca de apoio e parceira.

O êxito aconteceu a partir de outras propostas aprovadas, como foi o caso da

Primeira Lei Estadual do Teatro Legislativo, proposto pelo grupo popular de Teatro

Fórum “Corpo EnCena”, de uma comunidade do Rio, que propôs uma alternativa para

se obter professores(as) voluntários(as) em seu Pré-Vestibular Comunitário,

comprovando com isso que os trabalhos com Teatro Legislativo independiam de se ter

ou não um legislador oficialmente ligado a ele.

Segundo ainda o mesmo texto da página do CTO, os trabalhos com o Teatro

Legislativo conseguiu aprovar uma Segunda Lei Estadual, no ano de 2004, originada a

partir de proposta feita pelo grupo “Panela de Opressão”, de uma comunidade da Zona

Page 77: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

66

Oeste do Rio de Janeiro, que instituiu a obrigatoriedade de camisinhas femininas em

motéis, hotéis e similares.

Outras várias propostas, cerca de 100 (cem), haviam sido encaminhadas a

vereadores(as) e deputados(as) parceiros(as), porém dificilmente conseguiam algum

retorno positivo na aprovação das mesmas, o que levou a equipe do CTO, a pesquisar

outras formas para propor suas ideias, sem que dependessem diretamente de algum

legislador. Foi então que descobriu-se a Comissão de Legislação Participativa – CLP,

um canal criado para que a população brasileira pudesse participar efetivamente, de

forma democrática, sem a intermediação de qualquer deputado(a), para propor leis. A

CLP as chamam de “Sugestões Legislativas”, e elas podem ser sugeridas por

qualquer instituição brasileira, registrada juridicamente, como é o caso do CTO, por

exemplo.

Comprovamos que é possível a aprovação de leis mesmo sem um parlamentar ligado diretamente ao TL, mas também essa experiência nos mostra que a MOBILIZAÇÃO é essencial para que o acompanhamento de todas as etapas SEJA EFETIVO, desde o acolhimento de uma proposta por um(a) parlamentar ou pela CLP – Comissão de Legislação Participativa (no caso da Proposta ser de âmbito federal) até se tornar um projeto de Lei e daí para a aprovação como Lei

7.

Com isso a atuação do Centro de Teatro do Oprimido vai se desenvolvendo no

cenário político-cultural brasileiro, de forma efetiva e autônoma. Prosseguindo com

novas formações de grupos comunitários, formações específicas nas técnicas do TO

através de laboratórios e seminários de caráter permanente, continuando com um

trabalho de pesquisa, revisão, experimentação, análise e sistematização dos

exercícios, dos jogos e das técnicas do TO. Continua também desenvolvendo projetos

nas áreas de educação, saúde mental, sistema prisional, pontos de cultura,

movimentos sociais, comunidades, tanto a nível nacional quanto internacional - mais

de setenta países hoje em dia praticam o TO em suas comunidades, dos Estados

Unidos à Alemanha, Índia, Afeganistão, Palestina, e em países como Moçambique,

Guiné Bissau, Angola e Senegal.

Antes de sua morte, no ano de 2009, Boal lançou em parceria com sua equipe de

coringas do CTO o livro A Estética do Oprimido, contendo os princípios básicos da sua

metodologia, como tentativa de alicerçar teoricamente a prática do TO. O livro é

dividido em duas partes: a primeira contém uma fundamentação teórica sobre as

influências dos meios de comunicação em transformar a população em consumidora

7 Disponível no site: http://ctorio.org.br/novosite/arvore-do-to/teatro-legislativo/ Acesso em 10.jul.2014.

Page 78: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

67

do que em produtora de arte; na segunda parte do livro vemos uma sistematização de

algumas práticas realizadas em projetos sociais e oficinas de TO, como forma de

sensibilizar nosso lado artístico, para que possamos nos perceber como produtores de

arte em potencial, ou seja, todos nós podemos fazer teatro.

BOAL(2009) faz algumas reflexões em relação ao seu método de

popularização do fazer teatral, sobre o ponto de vista estético e não científico. Começa

por apresentar uma conceituação de “Analfabetismo Estético”, relacionado ao teatro, o

qual é produzido a partir do afastamento, isolamento, opressão e exploração dos ditos

mais pobres socialmente, pelas classes, clãs ou castas dominantes.

Tão lamentável quanto o analfabetismo do não saber ler ou escrever é o

mencionado por Boal, no qual o cidadão não é estimulado a saber falar, ver e ouvir,

entrando em um estado de alienação da produção de sua arte e de sua cultura,

afetando todo o seu exercício criativo de suas formas de “Pensamento Sensível”. A

partir daí os indivíduos são relegados a uma posição passiva de espectadores que

apenas consomem e reproduzem a imagem ou informação apresentada socialmente.

Boal nos alerta que “a castração estética vulnerabiliza a cidadania, obrigando-a a

obedecer a mensagens imperativas da mídia, da cátedra e do palanque, do púlpito e

de todos os sargentos, sem pensá-las, refutá-las, sem sequer entendê-las!” (BOAL,

2009, p. 15)

Conhecer e dominar esses canais estéticos da Palavra, Imagem e do Som,

como são os explorados pelo viés teatral a partir da metodologia do Teatro do

Oprimido, nos ajudará a travar as lutas sociais e políticas pretendidas por Boal, em

busca de uma sociedade mais justa e democrática.

BOAL(2009) nos indica dois caminhos para conseguirmos reverter esse quadro

de opressão, instalado fortemente nas sociedades que viveram um processo de

colonização e escravismo, como foi o Brasil. Primeiro, ele denomina duas outras

formas humanas de pensamento, além daquela que se traduz no discurso verbal, são

elas a Sensível e a Simbólica: “São formas complementares, poderosas, e são,

ambas, manipuladas e aviltadas por aqueles que impõem suas ideologias às

sociedades que dominam”(idem, p.16); o segundo caminho seria questionar o fato de

que em sociedades como a nossa, caracterizada pela multiplicidades de classes,

etnias, religiões etc., ainda se pense na existência de uma só estética que padronize e

contemple todas as regras sociais e seus paradigmas. Temos que estar atentos às

muitas estéticas que nos são apresentadas socialmente, para tentar entendê-las em

suas significações e representações:

Page 79: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

68

“Só com cidadãos que, por todos os meios simbólicos (palavras) e sensíveis(som e imagem), se tornam conscientes da realidade em que vivem e das formas possíveis de transformá-la, só assim surgirá, um dia, uma real democracia” (idem, p.16).

Para entender essas inter-relações, Boal classifica o ser vivo como um ser em

“expansão”, movido por uma necessidade de “existir” transformada em luta,

comparando ao reino vegetal, onde determinadas plantas que matam a partir de suas

folhas ou raízes e as trepadeiras parasitas que definham suas hospedeiras, concluindo

que: “A vida come a vida” (Idem, p.17). E faz uma analogia entre essa luta biológica

com as relações humanas, nas quais se observa a luta pelos espaços, sejam eles

físico, intelectual, amoroso, histórico, geográfico, social, esportivo ou político. Quando

se pensa em dominação no campo social, por determinadas classes, principalmente

nas sociedades moldadas pelo sistema político neoliberal, esse poder ou riqueza é

representado pelos espaços ocupados e dominados e pela forma como esses são

utilizados para oprimir os que estão à margem.

Entendendo as palavras de Boal (2009) é através da arte, da cultura e de todos

os meios de comunicação que as classes dominantes, utilizando-se do analfabetismo

estético, “controlam e usam a palavra (jornais, tribunas, escolas...), a imagem (fotos,

cinema, televisão...), o som (rádios, CDs, shows musicais...) monopolizando esses

canais” (idem, p.17-18). Produzem assim o que Boal considerou ser uma espécie de

estética anestésica, na qual o cérebro dos cidadãos são conquistados, esterilizados e

programados para a obediência, o mimetismo e a falta de criatividade.

Boal (2009) nomeia então o Pensamento Sensível, como uma das grandes

armas de poder, por isso o interesse das classes dominantes em estar sempre com o

domínio dos meios que possam manipulá-lo. A partir desse entendimento faz uma

reflexão sobre as “formações dos submissos rebanhos de fiéis” (Idem, p.18),

representados tanto pelas igrejas e seus espetáculos televisionados, ou pelos

torcedores esportistas ou eleitorais de massa, na construção do fanatismo; para se

sair desse estado de verdadeira passividade, só através da contra-comunicação, da

contra-cultura-de-massa, do contradogmatismo, acredita Boal (2009).

A partir desses pensamentos, sobre o que pretendia Augusto Boal ao repensar

seu fazer teatral, nos anos de 1970, quando começou a sistematizar as Técnicas do

Teatro do Oprimido, experimentando outras formas de encenação nas quais os

indivíduos postos em jogo cênico, seriam instigados a um Pensamento Crítico e a

desconstrução de determinadas atitudes opressoras em cena, estimulando outras

formas de desconstrução, tornando possível, não só o rompimento com a ideia da

Page 80: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

69

“quarta parede teatral”, aquela que separa espectadores do ato cênico no teatro

clássico, já que Boal convida a mesma a interferir critica e cenicamente nas ações

experimentadas no palco, porém o que se espera é que essa ação também extrapole

outros limites, e que estimule uma interferência na desconstrução das relações

opressoras em suas próprias vidas.

Com o mesmo intuito, Boal experimenta essa interação cênica em leituras de

jornais atuais, para levar os indivíduos a entenderem de que forma os meios também

são utilizados como propagadores de uma postura opressora, resultando no que

denominou como Técnica do “Teatro Jornal”, muito utilizado na época da ditadura

brasileira, para entender a dinâmica opressora da censura. Essas são duas das várias

técnicas desenvolvidas por Boal e sua equipe de Curingas do CTO, digo algumas

porque o próprio Boal deixa em aberto que os métodos do Teatro do Oprimido são

vários, e há alguns que ainda estão por descobrir, ficando o caminho aberto para

novas experimentações. Essas novas experimentações serão contextualizadas a partir

das necessidades apresentadas pelas comunidades a serem trabalhadas e suas

respectivas opressões.

Esta dissertação irá analisar uma prática com o Teatro do Oprimido, utilizada

em sala de aula para discutir questões étnicas e raciais que atendam as propostas da

Lei 10.639. A utilização do método de improvisação do Teatro do Oprimido, poderá

nos auxiliar na compreensão e no enfrentamento de aspectos identitários conflituosos,

principalmente os referentes às questões etnicorraciais, entendendo na “realização da

ação” como esses processos se constituem e como se manifestam em nosso

cotidiano.

A prática do teatro, relacionada a essas questões identitárias, pode se tornar

eficiente a partir do momento em que entendemos que o teatro tem o poder de

expurgação de todo sentimento de dor, decepção, alívio ou amor, através da catarse.

Esse poder, conseguido através da apropriação simbólica de cada potencial exposto

em cena, é aquele que, para além da ferramenta política e da transformação social,

pode também funcionar como uma verdadeira “atividade terapêutica”, despertando a

partir da ludicidade, criatividade e improvisação inerentes ao jogo dramático, o olhar

sensível-crítico-cognitivo dos alunos.

Essa apropriação simbólica poderá expandir as formas de contato e

comunicação que os envolvidos no processo de teatro-educação mantêm com o seu

próximo e com o seu meio, servindo-se de possível agente transformador da sua

realidade e, por conseguinte, de toda realidade que o envolve.

Page 81: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

70

O Teatro do Oprimido desenvolve-se a partir de três vertentes: a educativa, a

social e a terapêutica. Dentro da nossa abordagem, essas três vertentes irão se

entrecruzar a todo instante, recorrendo-se por vezes de uma ou outra para o

direcionamento das atividades. Fazendo uma contextualização geral encontramos:

“O Teatro do Oprimido é um sistema de exercícios físicos, jogos

estéticos, técnicas de imagem e improvisações especiais, que tem

por objetivo resgatar, desenvolver e redimensionar essa vocação

humana, tornando a atividade teatral um instrumento eficaz na

compreensão e na busca de soluções para problemas sociais e

interpessoais” (BOAL, 1996, p.28).

Ao compreender e até desmistificar determinadas convenções de práticas

sociais, o aluno entrará em contato com outras formas de participação em sociedade,

percebendo-se como agente observador e também como agente que tem o poder de

interferir numa realidade pré-estabelecida que não o favoreça. O Teatro do Oprimido

vai além das convenções de ator e espectador. O princípio fundamental é: “ajudar o

espectador a se transformar em protagonista da ação dramática, para que possa,

posteriormente, extrapolar para a sua vida real as ações que ele repetiu na prática

teatral” (BOAL, 1996, p.53), ou seja, as cenas ou imagens propostas em jogo devem

proporcionar a intervenção dos observadores a qualquer instante, tornando-se esse

um “espectator”, concentrando em si essas duas funções.

Ao criar essa tal DINAMIZAÇÃO, como mencionado anteriormente, o indivíduo

passa a romper todos os bloqueios que o proibiriam qualquer realização dessa ação,

primeiramente na cena e posteriormente em sua vida social, levando esse jovem a

possibilidade de interferência a qualquer instante em sua própria realidade, nos

bloqueios que provocam a exclusão dos mesmos em determinados setores, e nas

construções de identidades que estão sempre em movimentos. Como afirma Stuart

Hall(2006, p.38): “[...]a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo,

através de processos inconscientes[...] Ela permanece sempre incompleta, está

sempre ‘em processo’, sempre sendo formada”. Acreditamos que a função desse

“espectator” ajudará o jovem na conquista do potencial de controle de agente e

observador para a construção de seus próprios acordos sociais.

O projeto surge então com o intuito de levar os alunos na compreensão da

construção de suas identidades negras e, consequentemente, da sua valorização

rumo a autoafirmação e a libertação de um sistema opressor que dita as regras de

exclusão presentes na nossa sociedade, assim como revela Desgranges(2010, p.72),

“essas sessões de Teatro do Oprimido têm o intuito de constituir-se no ensaio de um

processo de transformação", ou em “um ensaio da revolução”. Afirma o autor que “se o

Page 82: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

71

participante experimentou no teatro a sua capacidade de mudar a ordem estabelecida,

tentará agir da mesma maneira na sua vida”. (idem, p.72), tornando-se uma verdadeira

revolução para a vida, como sempre mencionou e defendeu Augusto Boal em suas

experimentações e escritos sobre o Teatro do Oprimido.

Dentro da perspectiva teatral em forma de jogo, encontramos nas pesquisas de

Peter Slade (1978, p.17-18, grifo do autor) uma importante consideração em trabalhá-

lo com nossos alunos: “O Jogo Dramático é uma parte vital da vida jovem. Não é uma

atividade de ócio, mas antes a maneira da criança pensar, comprovar, relaxar,

trabalhar, lembrar, ousar, experimentar, criar e absorver[...]”. Como na etmologia da

palavra, drama, originada do grego drao: “eu faço, eu luto”, a criança vai descobrindo

aos poucos a vida e a si mesma, através das tentativas de improvisação emocionais e

físicas, nas práticas repetitivas a partir do jogo. Por conta disso, explicita o mesmo

Slade(1978, p. 63): “O Jogo Dramático bem-sucedido é não só educação no que ela

tem de melhor, mas prevenção também. Ele oferece uma válvula de escape legitima

para a energia de bomba-atômica desse grupo social que chamamos de turma.”

Page 83: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

72

IV. O Teatro do Oprimido e a construção de Identidades Etnicorraciais:

um estudo de caso.

Após várias experiências com o ensino de teatro em escolas, projetos sociais,

grupos amadores e profissionais, resolvi desenhar um projeto teatral que pudesse

despertar o olhar crítico para as questões etnicorraciais, em uma turma de

adolescentes, na qual presenciava diariamente diálogos e discussões calorosas, onde

a questão etnicorracial identitária era fortemente marcada por discursos de teor

racistas.

Esses jovens participavam de um projeto desenvolvido por uma Organização

Não Governamental, Instituto Bola Pra Frente, idealizado por um ex-jogador da

seleção brasileira, Jorginho. A ONG tem o intuito de proporcionar às crianças e jovens

no Complexo do Muquiço8, comunidade próxima aos bairros de Deodoro, Guadalupe e

Marechal Hermes, a partir do esporte, reforço escolar para crianças de 06 a 09 anos

com deficiência no aprendizado, através do projeto chamado Craques de Bola e de

Escola; para as crianças de 10 a 14 anos, contato com habilidades artísticas como

dança, música e artes plásticas no projeto ARTilheiro; e formação profissionalizante

para inserir os jovens de 15 a 17 anos no mercado de trabalho, através do projeto

Campeão de Cidadania. Há outros projetos paralelos a esses, como o Craque dos

Craques que visa a aproximação dos familiares dos educandos ao instituto. Importante

ressaltar que para a matrícula nos projetos, um dos requisitos é que além do

educando está matriculado em uma escola regular, que o mesmo também comprove

sua residência próxima ao instituto, com a justificativa de que, dessa forma fica mais

8 SANTOS, Susana Moreira dos (2008) Dissertação submetida ao corpo docente do Programa de Pós-

Graduação em História, Política e Bens Culturais do Centro de Pesquisa e Documentação de História

Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas - Rio de Janeiro, como parte dos requisitos

necessários à obtenção do grau de mestre: “O termo Complexo do Muquiço foi adotado pelo Instituto

Bola Pra Frente em 2008, a partir de um Censo Demográfico, realizado pelo próprio Instituto, em

parceria com o SESC-Rio e a empresa norueguesa Kongsberg Maritime, e coordenado tecnicamente pelo

Instituto Muda Mundo. Rosane Cristina Feu, mestre em Geografia e geógrafa participante do Censo,

explica: “O Complexo do Muquiço, recorte espacial enfocado neste diagnóstico social, está localizado

em área limítrofe dos bairros Deodoro, Guadalupe e Marechal Hermes na cidade do Rio de Janeiro. O

Complexo é constituído internamente por seis comunidades de organizações espaciais e construções

históricas diferenciadas. Tais diferenciações constituem importante tema de análise para a

compreensão da estrutura espacial do Complexo que, apesar de aparentemente caótica, possui uma

ordem própria. (...) A delimitação atual do Complexo, e de suas comunidades componentes, baseou-se

no reconhecimento da própria população acerca de seu espaço. Os questionários do censo, dirigidos aos

moradores, interrogavam não apenas o endereço completo como também a “comunidade” em que o

domicílio está localizado”. (Fonte: INSTITUTO BOLA PRA FRENTE, Censo Muquiço 2008, p 21 e 22,

mimeo) (p. 65 e 66)

Page 84: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

73

fácil observar o impacto social dos trabalhos desenvolvidos no Bola Pra Frente na

comunidade.

Eu trabalhei diretamente com os jovens do Campeão de Cidadania e foi com

eles que desenvolvi as sessões de teatro do oprimido, que me ajudaram na

construção dessa dissertação. A ideia da pesquisa surgiu a partir de observações

diárias em algumas etapas do projeto social do qual participava, por exemplo, somos

nós professores que auxiliamos o instituto nas matrículas dos educando, dessa forma

os pais têm um primeiro contato com os professores que irão orientar seus filhos

diariamente, construindo um primeiro canal de comunicação. Observei que a maioria

dos pais, ao identificar a cor dos filhos, ou até mesmo a própria, sempre respondia

como cor branca, mesmo que apresentassem características fenotípicas negras. E

isso se manifestava nas relações dos alunos do projeto no cotidiano, ainda mais

quando os mesmos estavam em campo, nas aulas de esporte, onde o sentimento de

competitividade aflora. As discussões eram muitas, apesar de sempre ter um educador

mediando e controlando os educandos nesses momentos de fúria, quando perdiam

algum ponto em jogadas consideradas não adequadas para o jogo, ou mesmo quando

precisavam aceitar que tinham perdido o jogo.

Trabalhar com a “derrota” era um ponto muito importante para aquelas crianças

e adolescentes, já que esse sentimento faz parte de toda e qualquer disputa esportiva,

mas era nesses momentos que escapavam os xingamentos e alguns atos de

violências, nada de grave fisicamente, porém repletos de preconceitos internalizados

que vinham à tona nesses momentos de explosão, principalmente os preconceitos

etnicorraciais. Expressões racistas das mais variadas formas eram trocadas entre os

educandos, principalmente contra os que tinham da cor da pele mais escura. E ao

serem questionados sobre tais atitudes, todos se defendiam dizendo que aqueles

insultos eram comuns na comunidade e que eles (os mais escuros) não se

incomodavam, o que era confirmado pelos ofendidos, justificando que por serem

irmãos da favela estava tudo bem. Ouvi este comentário após um aluno insultar o

outro de “macaco”.

Observamos a partir disso que os jovens desenvolviam a ideia de grupos nos

quais se podia utilizar tais xingamentos e comparações ofensivas, sem que isso fosse

recebido como atitude de preconceito; entretanto, vindos de outro grupo os mesmos

xingamentos tinham uma carga de significância muito grande como preconceito,

evidenciando que para esses grupos o critério territorial era muito forte, separando os

que eram da comunidade e os que não eram.

Page 85: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

74

Após ter lido vários autores que já trabalhavam com as discussões raciais em

sala de aula, resolvi desenvolver um projeto educacional no qual pudesse levar

aqueles educandos a uma reflexão sobre essas questões etnicorraciais que os

envolviam no seu cotidiano.

No Instituto eu era contratado para dar aulas de inglês técnico no curso

profissionalizante Campeão de Cidadania, não havia nesse projeto aulas de teatro ou

qualquer outra habilitação artística. Para inserir as aulas de Teatro do Oprimido,

precisei da colaboração e parceria do professor de filosofia, que tinha como um dos

temas de suas aulas, a sociedade e a opressão.

A faixa etária de cada projeto era de acordo com a idade escolar estipulada

pelo MEC para as escolas de ensino básico, ou seja, uma forma também de assegurar

que esses alunos estariam preparados para ingressarem no mercado de trabalho sem

muitos problemas, inclusive o boletim escolar era um dos documentos exigidos para a

matrícula do educando, além do comprovante de residência, documentos de

identificação dos educandos e de seus responsáveis, além de um atestado médico,

por conta dos exercícios físicos praticados em campo. Com isso, podemos imaginar

que parte desses educandos, que auxiliaram na construção desse projeto, são jovens

alfabetizados, possuindo bons desempenhos em leitura e escrita, e de comportamento

considerado exemplar para que convençam as empresas parceiras a lhes darem uma

oportunidade para o primeiro emprego, já que noções de Empreendedorismo também

lhes eram ensinadas. Porém, o contexto social dos mesmos era contrastante, estamos

falando de jovens que estudavam em escolas públicas do subúrbio do Rio de Janeiro,

e como vários comentavam, faltavam professores, a estrutura física das salas era

precária e faltava inclusive material escolar, ou seja, nos dando outro retrato da

realidade desses jovens.

Esses educandos eram considerados, a partir da autodeclaração da renda

mensal de cada responsável, como grupo em situação de vulnerabilidade social, ou

seja, expostos a toda e qualquer mazela de opressão e exclusão de uma sociedade

fortemente marcada por suas hierarquias. Tendo como base a realidade desses

jovens, desenvolvi as sessões de Teatro do Oprimido (TO), para tentar levá-los a

refletir sobre todas essas questões, inclusive as etnicorraciais, de forma que, através

do jogo democrático desenvolvido pelo TO, pudessem perceber os problemas

etnicorraciais de dentro para fora, sem que alguém precisasse lhes fornecer qualquer

conceito ou juízo de valor sobre determinadas posturas sociais. Eles que deveriam

perceber a necessidade de reflexão sobre as questões etnicorraciais dentro de sua

Page 86: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

75

comunidade, já que ninguém melhor do que eles para entender os jogos de

convivência social que ali se estabeleciam.

Planejei a sessão de acordo com o tempo livre dos educandos, numa sexta-

feira. Eles permaneciam no Instituto nos seguintes horários: manhã das 08h às 11:00h

e tarde das 13:30 às 16:30h.

A ideologia do Instituto era de valorização do esporte educacional, ou seja,

todos os matriculados deveriam praticar algum tipo de esporte, paralelamente à

alguma outra atividade educacional. No projeto Campeão de Cidadania, os jovens

tinham aula de educação física uma vez por semana, nos outros dias seguiam com

aulas de língua portuguesa, matemática financeira, língua inglesa, informática, filosofia

e empreendedorismo. Como cada disciplina dispunham de 1hora e 10minutos de

duração, para as sessões de TO era pouco tempo para trabalhar os exercícios e jogos

cênicos propostos por Boal para se desenvolver uma técnica de teatro do oprimido.

Para que o TO fosse utilizado em sala de aula, os estudantes passaram por

duas fases. A primeira em que foram treinados enquanto atores, para construírem as

cenas, divididos em equipes; depois experimentaram eles mesmos serem

espectatores, quando puderam assistir e interagir nas cenas desenvolvidos por seus

colegas. Para aproveitar o pouco tempo que tínhamos, aproveitei o preparo físico

desenvolvido em campo e a ludicidade desenvolvida pelo esporte para já condicioná-

los ao espaço cênico, dessa forma eles já vinham para a sala com o corpo aquecido e

pronto para a ação.

A meta do instituto era 100 alunos para esse projeto, divididos em duas turmas

de 25 alunos pela manhã e duas pela tarde. Sempre começávamos o ano com mais

de 100 educandos, mas a desistência era grande no decorrer do projeto. Havia uma

tentativa de resgatar os mesmos, ligando para saber o motivo da ausência ou

desistência, visitando suas residências, mas essas tentativas obtinham pouco êxito. As

justificativas eram sempre as mesmas, ou tinham começado a trabalhar, ou

desanimavam com o projeto, por conta das inúmeras exigências, já que muitos eram

encaminhados para trabalharem como “Menor Aprendiz” nas empresas parceiras, e

nem sempre eles estavam dispostos a isso, já que ainda estavam em pleno Ensino

Médio em suas escolas regulares, e precisavam dar conta de uma dupla jornada de

estudos.

Então as aulas aconteciam da seguinte forma: enquanto uma turma estava em

sala trabalhando os jogos e os métodos do Teatro do Oprimido, a outra turma estava

Page 87: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

76

na aula de educação física, praticando alguma modalidade esportiva. Infelizmente por

conta de uma divisão sexista na qual as meninas praticavam vôlei e os meninos

futebol, tive que trabalhar com grupos separados por gênero. Tentei conversar com as

coordenadoras do projeto sobre essa divisão, mas elas foram irredutíveis, porém na

segunda sessão de TO eu consegui misturá-los, porque a professora de Educação

Física tinha faltado, liberando-os da atividade. Dessa forma pude ter as turmas

divididas normalmente com grupos de meninos e meninas misturados.

Na primeira sessão, deixei os alunos livres para que expusessem todo o seu

conhecimento prévio sobre a questão: O que era opressão, para você? Aproveitei que

muitos já tinham aquecido o corpo em campo e sugeri jogos teatrais com mais

movimentos, para aproveitar a energia deles, principalmente dos meninos que

estavam um pouco desconfiados em deixar o campo de futebol para ter aula de teatro.

Durante o alongamento todos relembraram dos alongamentos já propostos pelos

professores em campo antes de uma partida, então fui desenvolvendo um jogo de

linguagem que me aproximasse do contexto esportivo. Propus o “Jogo do Espelho”,

onde cada um repetiria a ação do outro, como um reflexo no espelho, revezando quem

faria imagem real e a imagem espelhada. Selecionamos de cada dupla cinco

movimentos espelhados e pedi para que os mesmos a repetissem juntos, repassando

a noção de partitura. Ao final formamos uma partitura comum com toda a turma e uma

grande coreografia, que deixou os alunos mais soltos e mais a vontade com o espaço

cênico. Depois juntei grupos de quatro alunos, duas duplas, e o comando agora era,

formar quadros, imagens sem movimentos, estáticas, nas quais pudéssemos

identificar uma ação de opressão observada pelos mesmos em seus cotidianos, e

nessa ação identificamos quais os indivíduos participantes que representavam os

oprimidos e quais eram os opressores, trabalhando uma das Metodologias do

Oprimido, o Teatro Imagem. Cada grupo teve um momento para pensar e

experimentar suas ideias, ao final enquanto um grupo apresentava sua ideia os outros

assistiam como espectadores, mas já sendo instigados a participarem da cena como

“espectatores”, ação esperada nas apresentações de Teatro Fórum.

O desenrolar da aula se deu com as turmas totalmente envolvidas nas

discussões sobre opressões sociais que observavam em seus cotidianos, desde

violência doméstica, no trabalho, na escola, racismo, machismo, perseguição e duras

de policiais a pessoas inocentes, e ao questioná-los sobre o porquê daquelas atitudes

sempre respondiam Porque somos pobres, pretos e favelados. E ao levar os mesmos

a refletir sobre possíveis mudanças de pensamento e comportamento, observei que

poderia ser uma prática educacional eficiente para desenvolvermos o pensamento

Page 88: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

77

crítico dos nossos alunos em relação às questões etnicorraciais, já que a maioria

daquelas cenas, assistidas naquele momento, eram cenas comuns no cotidianos

daqueles jovens, ou seja, um momento de reflexão sobre algo muito próximo a eles.

A aula toda foi direcionada com jogos teatrais, estruturada a partir da

metodologia do Teatro Imagem, sem nenhuma imposição para a reflexão de

determinado assunto que exigisse uma leitura de um texto, como acontecem nas aulas

expositivas, mas a discussão sobre a questão racial foi bastante fervorosa a partir do

material que eles trouxeram em sua memória e em seu corpo, e encontraram campo

para se manifestar ali no espaço cênico.

Figura IV.1 – Meninas praticando Teatro Imagem. FONTE: Acervo do autor.

Refletir sobre essas contribuições e propor a utilização do Teatro do Oprimido

em sala para explorar as questões etnicorraciais passou a ser um caminho possível

para a utilização da lei 10.639/03 e a 11.645/08. Foram ao todo 08 (oito) sessões de

T.O desenvolvidos a partir de dois planos de aulas. Nessas sessões, foi pedido que

cada aluno escrevesse suas percepções sobre as discussões que aconteciam, coma

recomendação de que o fizessem de forma simples, como um diário, que chamamos

de Diário de Bordo. Nele, os jovens deveriam escrever sem receio todas as suas

percepções, angústias, o que mais gostaram ou não gostaram da prática do teatro do

oprimido e das discussões levantadas. De um grupo de 60 a 70 alunos, que puderam

participar das aulas, somente 20 diários foram recolhidos, alguns se esqueceram de

fazer, com a desculpa de que não valeria nota, pois o processo de avaliação do

projeto era outro no qual pesava mais a frequência e os trabalhos direcionados ao

mercado de trabalho; outros alunos ainda disseram que não sabiam o que escrever,

apesar de toda a orientação dada para uma escrita simples. Enfim, o fato é que não foi

imposta uma cobrança maior na entrega dos diários, e entre os que foram recebidos,

Page 89: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

78

alguns continham pesquisas sobre o que era o Teatro do Oprimido, copiada em parte

da internet, e em outros pude observar uma presença maior dos questionamentos e

observações pessoais deles. Foi a partir dessas observações deles, das minhas

enquanto professor pesquisador, e com o auxílio das fotografias que registraram essa

aula, que comecei esta pesquisa, na qual procurei entender como poderia discutir a

construção de identidades etnicorraciais em jogo nas encenações das técnicas de

Teatro do Oprimido.

Foram desenvolvidas quatro sessões de Teatro Imagem com esses jovens,

divididos em 04 turmas, duas no horário da manhã e duas no horário da tarde. As

sessões aconteceram em dois dias, utilizando primeiramente as técnicas do Teatro

Imagem, quando os alunos, divididos em grupos, foram sensibilizados a construir

quadros estáticos, espécies de fotografias humanas, nas quais o restante da turma

deveria identificar quais as relações de opressão estavam sendo representadas ou

reproduzidas, partindo para o desenlace da mesma, rumo à libertação. Procurei

trabalhar primeiramente com essa técnica, para incluí-los aos poucos na linguagem

teatral. Logo nas sessões seguintes, trabalhamos com as técnicas do Teatro Fórum,

que exige dos participantes uma inclusão em cena, com diálogos e movimentos, ou

seja, com uma estética mais elaborada, deixando sempre uma pergunta no ar, um

incômodo opressor, que faça com que alguém da plateia queira interferir em cena para

transformar aquela situação de opressão.

As sessões seguiam o seguinte planejamento de aula, com duração de 1:10h:

• Alongamento: despertar o corpo e deixá-lo disponível para a ação cênica;

Figura IV.2 – Meninos fazendo alongamento. FONTE: Acervo do autor.

Page 90: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

79

• Aquecimento: acordar o corpo e a mente para o trabalho de improvisação

cênica, proposto através de um jogo, nesse caso o jogo proposto foi o Jogo do

Espelho Simples, proposto por BOAL(2012) em Jogos para atores e não atores, p.193.

Figura IV.3 – Meninas fazendo o jogo do espelho simples. FONTE: Acervo do autor.

• Montagem cênica: o grupo foi dividido em equipes, e cada equipe,

desenvolveu suas cenas, tendo como objetivo reproduzir alguma situação de

opressão.

a) Nas primeiras sessões trabalhamos com a técnica do Teatro Imagem, as cenas

eram estáticas, como fotografias, mas que possibilitavam uma leitura de uma situação

de opressão;

Figura IV.4 – Meninas em cena com o Teatro Imagem. FONTE: Acervo do autor.

Page 91: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

80

b) Na segunda sessão para as sessões de Teatro Fórum, as cenas tinham

movimento e falas, com duração de no máximo 20 minutos, seguidas das

interferências da plateia para a resolução do problema posto em questão.

FIG. IV.5 – Alunos em cena com o Teatro Fórum. FONTE: Acervo do autor.

• Roda de Discussão: ao final o grupo discutiu sobre as relações de opressão

desenvolvidas em cena, quais as mais comuns que apareciam e o que cada um

pensava sobre as mesmas. Dessas “Rodas de Discussão” os alunos foram orientados

a desenvolver “Diários de Bordo”, nos quais cada um deveria relatar por escrito as

suas observações em jogo durante as sessões de Teatro do Oprimido.

Figura IV.6 – Eu com os alunos na Roda de Discussão. FONTE: Acervo do autor.

Page 92: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

81

Tanto esses “Diários de Bordo”, quanto algumas imagens propostas pelos

alunos e registrados em fotografias, serão utilizadas nas análises. A pesquisa se

servirá mais de dados qualitativos do que quantitativos. Quais imagens de suas

identidades negras aparecerão em jogo, nas técnicas do Teatro do Oprimido, e quais

as relações de opressão relacionadas a elas?

Ao analisar seus escritos, observaremos que muitos fazem associação de

alguns temas desenvolvidos nas improvisações com acontecimentos observados em

seu próprio cotidiano, construindo narrativas biográficas para tentar entendê-las no

contexto do trabalho proposto.

IV.1 Os Diários de Bordo Essa expressão, “Diário de Bordo”, faz menção às anotações registradas por

viajantes em suas conquistas, em descobrir o que até então não era do conhecimento

de todos, e para conduzir essa busca, registrava-se tudo em “diários”, como uma

atividade de reflexão sobre determinados acontecimentos. Com esse intuito, é usada

assiduamente por pesquisadores acadêmicos em Artes Cênicas, através de suas

observações em pesquisa-ação, o que em teatro é chamado de work in process.

Segundo Maria Marcondes Machado, em seu artigo O diário de bordo como

ferramenta fenomenológica para o pesquisador em artes cênicas, publicado na

Revista Sala Preta, nº 2/2002, editada pela Escola de Comunicação e Artes –

ECA/USP: “O Diário de Bordo é a compilação de todas as anotações que um

encenador-criador faz durante a escritura, montagem e encenação do espetáculo”

(p.261). Esse escrito reflexivo pode se estender até os alunos, ou seja, a todos os

indivíduos envolvidos nesse trabalho em processo, o que ajuda a entender, qual a

visão de cada um no desenvolvimento/experiência do jogo proposto.

Através do “Diário”, os alunos são orientados a escreverem seu dia a dia nas

aulas de teatro, como se fosse um diário pessoal, com linguagem simples, valendo-se

do próprio vocabulário. Por conta disso, MACHADO(2002) nos alerta para as

características desses registros: “trata-se de um metatexto, de um escrito, misto de

realidade e ficção, inicialmente caótico e mais tarde reflexivo, meditativo, até mesmo

confessional” (idem).

Por causa do pouco tempo no desenvolvimento do nosso experimento de

Teatro do Oprimido, os textos dos alunos que entregaram seus diários parecem por

vezes desconexos, com poucas reflexões, como mencionado por MACHADO(2002),

mas mesmo assim, algumas pistas para as relações etnicorraciais nos são

Page 93: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

82

apresentadas, e muito do cotidiano de opressão e preconceito por parte dessa

relações vêm à tona nesses escritos, já que apareceram antes em cena.

IV.2 Algumas Palavras dos Diários de Bordo

Nas sessões de Teatro Imagem e Teatro Fórum com esses jovens, cerca de 20

diários foram entregues. Desses selecionei aqueles que apresentassem um tom mais

reflexivo sobre as relações etnicorraciais discutidas em cena, para tentar analisar de

que forma a atividade despertou alguma outra forma de encarar suas posições sociais

em suas comunidades; alguns depoimentos, transcritos aqui, cuja autoria terá suas

identidades preservadas aqui por meio do uso de letras, como por exemplo o de B.R

de 17 anos:

“O mais interessante foi o fato de trabalhar com sentimentos, dando

liberdade para cada um expressar o que estava sentindo. Eu puder

refletir sobre várias coisas, e principalmente sobre o assunto dos

oprimidos e opressores, que foi o mais comum na aula, e infelizmente

também está presente em nosso cotidiano”. (B.R. 17 anos)

Se o aluno destaca que foi trabalhado o “sentimento”, podemos entender uma

certa busca a um sensível perdido no cotidiano escolar. É necessário então pararmos

e refletirmos sobre a seguinte questão: “a quem se destina essa educação?” O aluno

ao destacar que o trabalho ocorreu “dando liberdade” deixa-nos claro seu sentimento

de sujeito aprisionado a algo, que nesse caso pode ser a um sistema educacional que

orienta o “repasse de conhecimentos” e não a troca. É na “troca”, entretanto, que se

dá o processo de ensino-aprendizagem. O que fica da convivência com esses alunos

é exatamente aquilo que se torna evidente em seu dia a dia, um conhecimento de

mundo atuante, e isso fica bastante claro nas palavras do aluno B.R. ao constatar, a

partir das técnicas do TO, que seu cotidiano está repleto de relações opressivas,

camufladas com um sentimento de aceitação baseado na ideia de que “isso é normal”.

Observação encontrada também nas palavras de J.B 16 anos:

“Tive algumas reflexões sobre o opressor e o oprimido, porque em todos os lugares tem isso, sempre tem alguém para oprimir uma pessoa, pode ser na escola, no trabalho, na rua e em sua própria casa, podem falar coisas para você e você vai virar uma pessoa oprimida”.

A partir dessa fala podemos estabelecer uma correlação com questões

exploradas por Stuart Hall através dos Estudos Culturais desde os anos 70, em meio a

um turbilhão de transformações que refletem na sociedade multicultural que

presenciamos atualmente. Hall tem a preocupação de teorizar as novas formas de

comunicação que estreitavam as relações no dia a dia dos indivíduos, e as tensões

Page 94: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

83

ocasionadas na cena cultural contemporânea. Assim como Augusto Boal, também no

mesmo período, ao presenciar um sistema de opressão militar, procura, com seu

teatro, deslocar os poderes sociais de opressão, através de métodos cênicos

destinados a todos os oprimidos desse sistema. Hall procura formular estratégias

culturais que possam deslocar as disposições do poder, o que ele, inspirando-se em

Gramsci, chamou de “guerra de posições”, procurando também focar a “questão

paradigmática da teoria cultural”, observando o social e o simbólico de forma não

reducionista.

Seguir esta análise dialogando com o campo dos Estudos Culturais e com a

obra de Stuart Hall (2009) parece ser bastante produtivo para entender as múltiplas

linguagens adquiridas no campo cultural contemporâneo; o autor nos direciona que os

estudos culturais dão conta de discursos múltiplos, assim como de numerosas

histórias distintas, o que pode nos ajudar a entender de que forma essas comunidades

constroem suas historias de resistência, perante ainda a uma forte opressão social.

Outro depoimento também recolhido dos “Diários de Bordo” produzidos nessas

sessões de TO:

“(...) fez com que enxergássemos coisas que não estávamos

enxergando. Eu passei a perceber algumas atitudes erradas que estava

tendo, passei a entender mais como me comportar, estar, me expressar,

lidar com as pessoas. Foi divertido e ao mesmo tempo com um

propósito(...)”. (D.M. 16 anos)

O aluno D.M. assume uma postura política ao identificar traços de opressão em

sua postura, para com os outros colegas e entende que uma mudança nessa relação

passa a ser um propósito em sua vida, e isso foi despertado no mesmo enquanto era

envolvido pelo processo cênico no qual o mesmo sentiu prazer em estar inserido,

podendo vir a ser um possível multiplicador dessa técnica em sua comunidade. Já que

a partir do momento que ele assume o Teatro do Oprimido como um espaço favorável

para um “propósito” social, ele começa a construir sua postura política, é o que

BOAL(2011) menciona ao afirmar que o indivíduo ao escolher fazer Teatro do

Oprimido já fez a sua escolha estética, ou seja, já tomou o partido dos oprimidos,

significando uma postura crítica e política.

Um termo interessante levantado por Hall (2009) é o de “mundanidade” dos

estudos culturais, termo tomado emprestado a Edward Said, um dos mais importantes

críticos literários e culturais palestino. A “mundanidade” seria especificamente a

“sujeira” em um jogo semiótico. “Estou tentando devolver o projeto dos estudos

culturais do ar límpido do significado, da textualidade e da teoria, para algo sujo, bem

Page 95: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

84

mais embaixo” (p. 202). Isto pode ser lido como trazer de volta às camadas populares

uma arte que realmente dialogue com elas, que mostre suas identificações, que fuja

dos estereótipos forjados pelas classes elitizadas, que apresente outras formas

culturais como legitimas, e que se retome este espaço de poder que é o teatro, para

fazer dele um espaço rico para esses diálogos, já que ele pode contribuir muito para

essas discussões, como mencionado por J.C. 17 anos: “Foi uma aula bem

descontraída onde pudemos aprender e quebrar paradigmas através do teatro e de

uma forma bem divertida”.

Observar essas posturas de opressão no dia a dia e estimular um pensamento

reflexivo sobre tais atitudes é desenvolver em nossos alunos os seus

comprometimentos enquanto cidadãos politizados, em prol de uma sociedade mais

justa, como no depoimento de I.R. de 16 anos:

“Eu gostei pelo fato de nós fazermos isso no dia a dia sem nem ao menos perceber. No Teatro parado (Teatro Imagem) as meninas da tarde fizeram coisas que acontecem na escola, em casa, na rua em vários lugares que nós frequentamos com frequência”.

Uma autoavaliação crítica despertada nos alunos é um aprendizado para a vida

toda, e uma ação multiplicadora de atitudes positivas e democráticas para que esses

alunos possam interferir em suas comunidades de forma a reduzir as relações de

opressão vivenciadas por eles, seja através das agressões mais violentas ou nos

comportamentos considerados naturais no dia a dia, com a desculpa de serem apenas

simples brincadeiras, não enxergando o poder de opressão nessas pequenas atitudes,

como o observado pelo aluno J.T. 15 anos:

“Nessa aula aprendemos também que a gente às vezes até gosta de brincar, zombar das outras pessoas, mas não gosta quando as pessoas zombam de você. Isso nos fez refletir sobre todos os atos que comentemos e pensar antes de fazê-los, porque se não tiver opressor não terá oprimido”.

A partir desse depoimento, parte da finalidade das aulas - levá-los a refletir

sobre seus relacionamentos diários, e suas posturas preconceituosas e violentas para

com os colegas - foi conseguida, como bem observou J.T. 15 anos: “Sendo uma

maneira mais fácil para entender o assunto e captar a mensagem enviada para nós

em forma de uma brincadeira”, mencionando o tom lúdico dos jogos e exercícios do

TO. Repensar criticamente essas atitudes foi o grande ganho de nossos alunos, ao

enxergarem nesses comportamentos, mesmo em tom de brincadeiras ou em lances

de menor importância, que eles contribuíam para propagar determinadas posturas de

discriminação, como por exemplo, a etnicorracial. E esta foi observada em alguns

escritos e imagens encenadas. Como, por exemplo, no depoimento abaixo:

Page 96: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

85

“(...) e ali eu fiquei muito sentida, porque isso já aconteceu comigo. As

pessoas me ofendiam e eu ficava quieta, porque o calado vencerá. As

pessoas são muito racistas, isso me ofendia muito, me chamavam de

macaca e outras coisas. E eu acho isso errado, não é por causa da cor,

do cabelo, que nós não somos humanos, não tem que ser tratado como

um bicho(...)”. (M.S. 16 anos)

A identificação com seus sentimentos em cena deve partir de uma situação de

opressão para a libertação desses indivíduos. M.S. relembrou que uma das cenas

propostas pelo grupo, o mesmo já tinha vivido em seu dia a dia, mas aceitava com um

discurso religioso cristão de que: “o calado vencerá”. Compreender a continuidade do

seu discurso, e o entendimento sobre aquela relação como uma postura de opressão,

preconceito e racismo, faz-nos enxergar uma mudança transformadora no seu modo

de pensar e de agir. Ela reconhece claramente que “as pessoas são muito racistas”,

ao mencionar que por vezes era chamada de: “macaca e outras coisas” (a palavra

“macaco” apareceu em cena em uma das improvisações), mas deixa claro a sua

posição política em relação a isso: “e eu acho isso errado”, houve uma quebra com o

pensamento passivo, manso e religioso, para uma postura mais ativa de buscar

mudança, explicitando seus motivos: “não é por causa da cor, do cabelo, que nós não

somos humanos, não tem que ser tratado como um bicho”. O opressor ou o oprimido

sai do seu estado de opressão, aceitação, o qual Boal chama de sujeito reprimido, e

parte para a libertação.

Todos os alunos se sentiram envolvidos no processo e nas discussões. Todos

contribuíram de alguma forma para refletir sobre os principais problemas de opressão

presenciados em sua comunidade, principalmente as de origem etnicorraciais, e

entenderam o objetivo das sessões de TO: “Através do que eu aprendi na aula eu

estou levando para o meu dia a dia, e usando da melhor maneira possível, e aulas

como essa nós sempre temos que ter” (D.M. 16 anos), ou através das reflexões de

J.T. 15 anos: “Além dessa aula poder ajudar muitas pessoas que são oprimidas, vendo

nisso uma saída para acabar com esses problemas”.

A partir do despertar para essas reflexões, a atividade propõe que os mesmos

interfiram na cena de opressão que incomodou e faça, ele mesmo, sua libertação.

Essa interferência cênica é como se fosse um preparo para uma interferência social,

em seu cotidiano. É como se fosse um “ensaio para a revolução”, como defendia Boal,

ao analisar a prática do Teatro do Oprimido.

Page 97: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

86

IV.3 Algumas Fotografias das Aulas

Nas primeiras sessões de Teatro do Oprimido, trabalhamos com a técnica do

Teatro Imagem. Primeiramente em duplas, os alunos deveriam criar fotografias que

expressassem alguma cena de opressão observada em seus cotidianos. Depois os

outros alunos deveriam interferir na cena, para mudar aquela situação de opressão.

Ao final, voltamos a primeira imagem e cada aluno iria compor a cena, deixando claro

que posição ocupavam em relação aquela opressão. Em seguida, fazia-se uma roda

de discussão, na qual refeltimos sobre cada uma das cenas, que foram devidamente

registradas, para nos auxiliar nessa análise.

Uma observação que ficou bem clara durante a criação das cenas, foi que em

sua maioria, as meninas construíram cenas de caráter privado, internas, como a casa,

a escola, as igrejas etc.; enquanto os meninos construíam cenas mais no caráter

público, externo, como a rua, por exemplo, lembrando DAMATTA(1986) que define

“casa” e “rua” como algo além do simples espaço físico, para o autor, “são também

espaços onde se pode julgar, classificar, medir, avaliar e decidir sobre ações, pessoas,

relações e moralidades” (p.33). Enquanto a “rua” vai se desenhando como um espaço

do movimento, em contraste com a tranquilidade e calmaria da casa, essas definições

também vão demarcando o gênero que “pode” frequentar cada um desses lugares.

FIG.IV.7 – Meninas em cena com o Teatro Imagem –Relação de Trabalho Doméstico. FONTE:

Acervo do autor.

Uma das primeiras cenas mostra uma relação de trabalho doméstico, onde a

“patroa”, através do dedo em riste demosntra uma relação autoritária de poder sobre

Page 98: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

87

sua funcionária, que não revida, abaixa os olhos e aceita aquela postura. Uma clássica

cena de opressão, realizada dentro do espaço doméstico, e muito discutido pelo TO

através do grupo Marias do Brasil, constituído com empregadas domésticas,que

discutem as formas de opressão construídas nessa relação de trabalho, que ainda

caminha em busca de seus direitos, como é o caso da PEC das Domésticas.

Durante a roda de discussão, um quesitonamento foi feito, já que eles eram

livres para desenvolverem suas cenas, inclusive na determinação dos papéis; um

aluno perguntou: Por que elas tinham escolhidos a que era negra para ser a doméstica

e a branca para ser a patroa? Sim, por quê? Elas não tinham uma resposta, só

falavam que era normal encontrar pessoas negras como empregadas domésticas.

Dessa afirmação, perguntei em que outros empregos vocês consideravam “normais”

encontrar pessoas negras? Seguiram uma lista de empregos tais como: pedreiro, gari,

vendedor ambulante, comerciante, eletricista, etc. Quando questionei se era comum

ver negro como médico ou advogado, eles foram suscintos: Não, né professor?! Para

esses tem que ter faculdade! Você já viu a quantidade de negros na faculdade? E a

discussão continuou em torno da formação profissional do negro em nosso país, e a

democratização do acesso a um ensino superior. Houve uma unanimidade entre eles,

em aceitar o sistema de cotas para negros em universidade como favorável para a

mudança desse quadro de exclusão. As oportunidades não são as mesmas para

quem é negro ou morador de periferia nesse país, diziam eles, citando inclusive

algumas experiências próprias, por exemplo, quando iam fazer alguma entrevista

preferiam levar comprovante de residência com outros endereços.

FIG.IV.8 – Meninas em cena com o Teatro Imagem –Relação de Humilhação ou Bullying na

escola. FONTE: Acervo do autor.

Page 99: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

88

O espaço educacional também foi marcado por esses alunos como um campo

bastante fecundo para a manifestação das mais variadas formas de opressão, como já

citado e embasado teoricamente aqui, nos capítulos anteriores. Essa opessões

seguem os graus de hierarquias de poder estruturadas no espaço escolar, onde o

aluno, indivíduo que fica na base desse sistema, acaba sendo a parte mais afetada e

consequentemente excluída, ou tendo que conviver com uma perspectiva de fracasso

escolar.

Uma outra discussão levantada após as cenas e as interações foi a de que “até

entre os oprimidos existe um opressor!”. Trazendo novamente o racismo para o

debate, os alunos mencionaram o fato dos negros também serem racistas, ou o velho

discurso do racismo reverso, no qual os negros têm preconceito contra os brancos, e

ainda levantaram a questão de classe afirmando que quando se tem dinheiro tudo

muda. Todos esses questionamentos surgiram logo após a encenação representada

logo abaixo

FIG.IV.9 – Grupo de Meninas em cena com o Teatro Imagem – Relação de Opressão na

escola. FONTE: Acervo do autor.

Dividimos então a discussão em três pontos, já que a cena despertou três

pontos conceituais sobre as relações etnicorraciais que deveríamos discutir com os

jovens. O primeiro ponto, em relação ao racismo praticado pelos negros, todos falaram

a popular frase por vezes dita pela maioria dos defensores do mito da democracia

racial, quando pronunciam que “os negros são mais racistas que os brancos!” para

começar a reflexão sobre o assunto, pedi que me conceituassem o que é ser “branco”

e o que é ser “negro”, e aos poucos fomos chegando a conclusão de que ser “branco”

é ser um indivíduo que possui privilégios já definidos para eles, antes mesmo deles

Page 100: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

89

nascerem, e que por isso acaba sendo um ideal a ser alcançado por toda e qualquer

pessoa. Segundo SOVIK(2009) ser branco em nossa sociedade ainda fortemente

marcada com valores coloniais, é ter pele branca e feições europeias, como o cabelo

liso, basta que o indivíduo tenha duas ou três dessas características para ser

considerado branco no Brasil, e ser identificado por essas caracterísitcas implica em

dizer que esse indivíduo: “desempenha um papel que carrega em si uma certa

autoridade e que permite trânsito, baixando barreiras” (SOVIK, p.36) Se você cresce, é

educado e criado em meio a uma sociedade que a todo instante lhe impõe

massivamente, inclusive com o auxílio dos meios de comunicação de massa, que ser

branco é alcançar um status, e que ser negro ainda está atrelado às consequências da

escravidão e da eterna força do trabalho, basta olharmos as imagens ainda

propagadas pelos livros didáticos, com que ideal os indivíduos irão querer se

identificar e buscar traçar suas vidas? Apesar do poder da branquitude ser mais a

nível social e cultural, ou seja, “ser branco não exclui ‘ter sangue negro’(...)

Branquitude não é genética” (ibidem), nosso racismo é também fortemente ditado pela

cor da pele, ao que Kabenguele Munanga chama de “Geografia do Corpo”, por mais

que o indvíduo venha a ter condições financeiras suficientes para ascender

socialmente, ele sempre irá sofrer as desconfianças da polícia durante uma blitz, ou

ser monitorado por seguranças em lojas por o associarem a possíveis deliquentes,

chegando ao segundo ponto sobre “basta ser rico!”, só as discussões sobre classe

não dão conta das tensões raciais em nosso país.

A partir disso, concluímos que, é impossível atribuir aos negros uma função de

“opressor” mediante a sua história de luta e resistência, então o terceiro ponto sobre o

racismo reverso é algo que não se sustenta. A história e a cultura negra estão

marcadas em seus corpos, em sua ancestralidade, e não é negando-a ou substituindo-

a, como no caso da branquitude, que conseguiremos uma sociedade mais

democrática e justa. É deixando-a aparecer, apesar dos incômodos que ela provoque

em determinados grupos. É fazendo com que ela viva, tão importante e legitimidade

como qualquer outra história e cultura, mas sempre lembrando que ela não é igual as

outras histórias exatamente por conta das suas particularidades.

As cenas seguiram tendo inclusive exposto relações de opressão dentro de

casa, sofridos a partir do relacionamento com pais, mães ou qualquer outro

responsável, que exigiam daqueles jovens alguma postura social que apesentassem

valores cristãos. A maioria desses alunos eram praticantes fervorosos da religião

conhecida como “Evangélica”, e tentavam seguir a todo custo esses valores,

defendidos em seus discursos, por vezes carregados de preconceitos, com a

Page 101: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

90

justificativa de que eram “pecado” determinadas posturas. Exisitam então, algumas

cenas de expulsão do próprio lar, pelo chefe ou a chefe da família, porque a garota

estava saindo com um garoto que não era da sua igreja, ou porque deixou de

frequentar a igreja e queria ir aos bailes, ou ao samba, etc. demonstrando uma forte

imposição de valores. O termo macumba apareceu em uma cena, quando uma

menina queria ir ao samba e o pai falou que aquilo era coisa do capeta. Conhecer a

história de resistência do samba tornou-se necessário para que aqueles jovens

pudessem refletir a carga de preconceito depositada em um ritmo musical, que

extrapola os limites culturais e tornou-se um modo de vida dos grupos que o praticam,

e o quanto esse ritmo tem colaborado em alçar a cutura negra em outros patamares

mais elevados.

A expulsao do lar, como menciona DAMATTA(1986) não é só a expulsão de

um lugar de calmaria por ser o local onde dormimos, comemos, nos abrigamos dos

fatores climáticos etc., a casa é “um espaço profundamente totalizado numa forte

moral. Uma dimensão da vida social permeada de valores e de realidades múltiplas”

(p.24-25). Ou seja, esses dois lugares devem ser tratados para além de meros

espaços geográficos, e nossos alunos nos trouxeram essa dimensão em cena, são

dois modos de se entender, explicar e falar do mundo.

FIG.IV.10 – Grupo de Meninas em cena com o Teatro Imagem – Cena de expulsão do lar.

FONTE: Acervo do autor.

Entre os meninos, muitas cenas de perseguição nas ruas, seja fugindo de

policiais, seja de bandidos. Cenas de vendedores ambulantes de trem, ônibus, ruas.

Até nas cenas em que são mencionados a escola e os amigos, são sempre em

Page 102: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

91

lugares abertos, externos. Apenas as cenas de opressão no trabalho e em

penitencária que pudemos perceber os espaço internos cosntruídos pelos meninos.

FIG.IV.11 – Grupo de Meninos em cena com o Teatro Imagem – Cena em uma penitenciária.

FONTE: Acervo do autor.

A simbologia da palavra “rua”, como define DAMATTA(1986), não pode ser

vista somente como oposição ao da “casa”. São diferentes e os dois se

complementam. A rua é o espaço da luta, é local perigoso, onde devemos respeitar

autoridades que não são os da família. As relações começam a ser mediadas pelas

construções históricossociais de luta e perseguição de determinados grupos, contra o

domínio de outros grupos que sempre estiveram no poder, e fazem de tudo para

mantê-lo.

FIG.IV.12 – Grupo de Meninos em cena com o Teatro Imagem – Cena de violência e luta.

FONTE: Acervo do autor.

Page 103: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

92

Outra reflexão feita pelo grupo foi a de que corpo dos meninos em cena

demonstravam muito a luta contra a violência, principalmente quando os espaços

eram externos, como a rua por exemplo. Quando a cena se realizou no espaço interno

do trabalho, percebemos um corpo mais passivo e aceitação sobre determinadas

atitudes de opressão sofridas por parte de seus patrões. Até mesmo durante as

intervenções da plateia, diferentemente do que aconteciam quando as cenas eram na

rua, predominava a tentativa do diálogo, como a cena não permetia a fala, os corpos

eram mais esvaziados daquela energia da luta. Uma das explicações encontradas por

eles foi, que precisavam daquele emprego e podiam ser demitidos do trabalho caso

contrariassem o empregador.

FIG.IV.13 – Grupo de Meninos em cena com o Teatro Imagem – Cena de opressão no

trabalho. FONTE: Acervo do autor.

Nas cenas de perseguição, diferente do que aconteceu com as meninas, que

contruíram cenas determinando os papeis estigmatizados para a população negra,

como foi o caso em relação aos empregos, e só depois perceberam e refletiram o

porquê, esses durante o processo de ensaio das cenas, começaram a se questionar e

trouxeram a seguinte reflexão para o grupo: “É uma cena de perseguição de polícia e

bandido! Mas porque só tem pretinho fazendo os bandidos? Heim professor? Isso já

um preconceito!” Nesse mesmo momento retornei a pergunta para eles, já que eles

eram livres para definirem isso, por que dividiram os personagens daquela forma?

Então eles perguntaram: ”Podemos trocar?” Vocês são livres em cena. E assim foi

feito.

Page 104: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

93

FIG.IV.14 – Grupo de Meninos em cena com o Teatro Imagem – Cena de perseguição.

FONTE: Acervo do autor.

Durante a roda de discussão, os alunos que fizeram os policias relataram que

não gostaram de fazer o opressor, porque não concordavam com aquele tipo de

opressão. Que sempre viam pessoas morrendo inocentemente nas comunidades onde

as polícias invadiam procurando traficante. Que nem queriam saber quem eram,

bastava sem negro e está na rua, que já seria vítima fácil. Então relembramos que um

dos objetivos do Teatro do Oprimido, não é fazer com o indivíduo saía do estado de

oprimido e ocupe o do opressor, mas sim que procure refletir como aquela situação de

opressão se controi e busque alternativas para descontruí-la, senão teremos uma

hierarquia de opressões, onde um vai oprimindo o outro, num ciclo sem fim, como

identificado pelas meninas e encenados abaixo:

FIG.IV.15 – Grupo de Meninas com o Teatro Imagem – Cena de vários tipos de opressão.

FONTE: Acervo do autor.

Page 105: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

94

Durante as sessões de Teatro Fórum, os alunos puderam perceber a

importância da palavra e o poder que ela exerce em propagar determinadas posturas

de preconceito, principalmente as etnicorraciais. As discussões sobre como devem

chamar os amigos se de “negro”, “preto” ou “afrodescendente”, conduziram as

primeiras reflexões. Alguns mencionaram que gostavam de ser chamados de

“pretinhos” pelas meninas porque era uma forma carinhosa, mas se algum

desconhecido os chamassem assim, já viriam de outra forma, por quê? Entender a

carga semântica da palavra, e que ela deve sempre vir contextualizada pela siutação

em que ela foi dita, nos levará a entender as reais siginifcações do uso da palavra. Em

seguida conhecer um pouco da história do movimento negro, das conquistas e

realizações a partir da utilização da grafia “negro” os levaram a entender porque essa

palavra ainda causa muito incômodo em determinados grupos, porque ela vem

carregada com todas essas conquistas históricas, de direitos e de liberdade.

FIG.IV.16 – Grupo de Alunos em cena com o Teatro Fórum – Cena de opressão de gênero.

FONTE: Acervo do autor.

Como os meninos ainda estavam com seus corpos mais ativos em cena, e com

isso o direito das falas acabam sendo em sua maioria deles, sugeri que fizéssemos

uma troca de gênero entre eles. Os meninos irão representar meninas e vice-versa.

Houve um atrito, um dos garotos que demonstrava uma performance social

efeminada, mas que não falva sobre isso, foi questionado pelos outros meninos como

ele iria se comportar? Pensei que isso fosse causar algum constrangimento para esse

aluno, mas intervi e deixei claro que no jogo cênico cada um deve fazer aquilo que não

lhe cause desconforto, e isso valia para qualquer um na sala. Porém o garoto falou, eu

sou menino e se a regra é meninos serem meninas, vou fazer melhor do que vocês!

Page 106: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

95

Durante essa experimentação o que pudemos perceber foi uma transformação

total no corpo das meninas e no tom de suas falas. Ficaram mais agressivas e

gritavam muito, como se quisessem fazer isso há muito tempo. Por vezes eu tinha que

interferir para que os meninos não se machucassem, porque elas os pegavam com

muita força, e isso se repetia a cada interferência durante as possbilidades de

resolução do fórum. As meninas reproduziam atitides de domínio masculino sobre

elas, brigas e violências, etc. que segundo eles, nas rodas de discussão eram comuns

em seu cotidiano.

Ao final de cada sessão, a pedido deles mesmos, faziam uma sessão de

abraços, fui surpreendido pelo pedido naquele momento, mas depois refletindo sobre

as cenas, era uma carga muito pesada de contato com atitudes violentas que os

mesmos possivelmente tenham tido contato, e revivê-las naquele momento com a

força do drama provocado pelo teatro, e com a possibilidade de transformação

daquela realidade promovida pelo Teatro do Oprimido, aquele abraço simbolizava um

momento particular e especial de que, apesar de todas aquelas experiências, um novo

mundo era possível, e que eles estavam dispostos em tentar, ainda mais ao

perceberem enquanto agentes dessa mudança, e que a mesma pode ser feita através

do jogo lúdico do teatro, que apesar de dura a realidade pode ser poetizada, pode ser

repensada por todos, e que a exposição deles em cena simbolizava que os mesmos

existiam enquanto indivíduos, marcando seu lugar no mundo e sua postura política

nele, que não eram mais um, um grupo, ou uma massa, ao imprimirem suas

identidades e individualidades compartilhadas em cena eles passavam a existir.

FIG.IV.17 – Alunos no Teatro Fórum – Sessão de abraços. FONTE: Acervo do autor.

De acordo com essas experiências, através das falas dos alunos em seus

diários de bordo ou dos comentários surgidos durante a prática de Teatro do Oprimido,

Page 107: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

96

pudemos constatar a eficácia dessa metodologia de ensino, para as discussões sobre

as relações e tensões etnicorraciais, já que a partir do jogo cênico teremos um espaço

fecundo para debates e reflexões, que por conta da ludicidade do teatro consegue

inserir os alunos nessa discussão de forma prazerosa.

IV.4 Outros lances são possíveis

Após a experiência aqui relatada, e de acordo com sugestões da banca de

qualificação, após um ano de pesquisa e estudos sobre as relações etnicorraciais,

consegui organizar mais algumas aulas com o Teatro do Oprimido para as discussões

etnicorraciais, agora com mais conhecimentos teóricos adquiridos nesses meses nas

disciplinas do Mestrado, e observar de que forma o meu olhar de pesquisador tenha

mudado.

Consegui espaço na escola Educandário São Pedro de Alcântara, escola que

apesar de particular tem como missão oferecer uma educação de qualidade para

grupos que dispõem de poucas rendas, recebendo inclusive doações para

manutenção de parte da sua estrutura, atendendo hoje em torno de 200 crianças, no

bairro de Todos os Santos, na cidade do Rio de Janeiro. Desenvolvi quatro sessões de

TO, na classe do 5º. ano do Ensino Fundamental I. Em torno de 23 crianças, entre 10

a 12 anos, participaram das aulas que aconteceram durante os meses de outubro e

novembro, dentro das aulas de arte, com duração de uma aula regular, ou seja, 45

(quarenta e cinco) minutos. Os alunos conheceram e praticaram exercícios e jogos

sugeridos por Boal, e em seguida experimentaram as técnicas do Teatro Imagem,

Teatro Fórum e Teatro Jornal, e estão em fase final de montagem de um espetáculo

sobre os preconceitos em torno do vírus ebola.

Por conta do fraco desempenho observado nos diários de bordo desses

alunos, em parte devido à idade, mas normal para MACHADO (2002) já que esses

escritos inicialmente podem vir em desordem e muitas vezes desconexos, uma escrita

caótica, mas que revelam muito dos nossos alunos, porém demonstraram uma

imaturidade reflexiva, para colocar em suas próprias palavras o que sentiram durante

as aulas, nos mostrando com isso que quanto mais cedo pudermos trabalhar com

nossos alunos temas reflexivos, e preferencialmente através do Teatro do Oprimido,

melhor será sua leitura de mundo. Alguns alunos não conseguiam identificar o que era

uma cena de opressão, aliás, esses termos “oprimido e opressor” já eram bastante

estranhos para eles. O meio educacional fez um trabalho bastante pesado em torno da

palavra “Bullying”, que passou a ser mais comum do que uma palavra em língua

portuguesa “Opressão”, embora seja evidente que as duas palavras não significam a

Page 108: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

97

mesma coisa. Uma das saídas para que o diário fosse feito de forma prazerosa, foi

permitir-lhes também fazer desenhos das cenas assistidas, e depois que dessem um

depoimento.

FIG IV.18 – Desenho de um aluno do 5º. ano, representando uma das cenas apresentadas.

FONTE: Acervo do autor.

Esse desenho foi feito em um diário de bordo de um aluno de 10 anos, no qual

o mesmo expressou o que mais lhe chamou atenção naquela sessão de TO. A cena

era uma briga entre garotas no pátio da escola, demonstrando o bullying, e o

preconceito dentro das escolas.

FIG.IV.19 – Meninas em cena de Teatro Imagem sobre Preconceito na Escola. FONTE: Acervo

do autor.

No depoimento escrito em seu diário de bordo, a aluno expôs que ficou muito

triste em ter que fazer a cena das agressões, mas que já tinha visto colegas passarem

por aquilo, e achava aquilo uma grande covardia, que já não concordava com aquela

Page 109: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

98

atitude, e depois ao encená-la, sentiu na pele um pouco do que suas amigas poderiam

ter passado e sentiu-se triste e contra tudo aquilo.

Durante as aulas com as técnicas de Teatro Imagem, muitas discussões

importantes foram retratadas pelos alunos, como por exemplo, o caso do jogador

Aranha, xingado pela torcida do Grêmio como “macaco”. Os meninos reproduziram

uma cena de racismo que se tornou comum no futebol, através do ato de jogar

bananas para os jogadores negros que estejam com baixo desempenho no jogo.

FIG.IV.20 – Meninos em cena de Teatro Imagem sobre Racismo no Futebol. FONTE: Acervo

do autor.

Através do fórum no final da cena, vários alunos entraram em cena e fizeram o

seu fechamento sobre a cena. A cena se passava durante um jogo de futebol, onde

um jogador já perdido vários gols, e de repente a torcida começa a vaiá-lo, logo em

seguida jogam uma banana no campo. O primeiro aluno comeu a banana, como fizera

o jogador brasileiro Daniel Alves, durante um jogo do Barcelona, no começo do ano de

2014. Outro aluno falou que não bastava só comer, que aquilo não iria resolver o

problema do racismo em campo, tinha que ignorar, pois era só uma banana. Outro

aluno falou que não podia ignorar, nem comê-la, tinha que devolver para quem jogou,

e jogou a banana de volta para a torcida. A cada solução discutíamos o racismo

velado em nossa sociedade, e a relação com a comparação ao animal “macaco” como

forma de marcar os negros e negras como se fossem intelectualmente inferiores por

se aproximarem mais do macaco do que do branco.

Dessa vez eles tiveram oficinas de acordo com a Estética do Oprimido de Boal,

que se desenvolve a partir dos três elementos: Imagem, Palavra e Som. Na oficina de

imagem, construímos através de desenhos alguns possíveis personagens, cenários,

Page 110: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

99

figurinos etc. Durante a oficina de som, buscamos produzir uma percussão corporal,

ouvimos os sons do ambiente e algumas músicas que falavam sobre preconceito e

racismo. Na oficina da palavra, construímos textos, falas, frases, que significavam algo

para nossa cena.

Através das técnicas do Teatro Jornal, feito com o jornal do próprio dia, cada

aluno selecionou uma notícia que veiculasse algum tipo de opressão, selecionariam

frases da notícia, e experimentamos construir cenas. Essas frases podiam ser ditas,

cantadas ou exposta em forma de desenho, cenário (instalação) ou figurino. Depois de

experimentarmos essas ideias em vários tipos de notícias, uma foi escolhida pelo

grupo para montarmos nosso Teatro Fórum, especificamente a matéria que falava

sobre o engano do diagnóstico do paciente que suspeitavam que tivesse o vírus ebola,

e todo o discurso de preconceito e racismo sofrido pelo mesmo.

Com isso, constatamos que trabalhar com o Teatro do Oprimido e as relações

etnicorraciais torna-se prazeroso porque levantamos essas discussões de forma lúdica

e leve, mas sem esvaziar o teor político das relações etnicorracias presentes no

cotidiano de brasileiros e brasileiras, que torcem por dias melhores.

Page 111: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

100

Conclusões

Para entendermos como uma prática cultural poderia ter uma grande influência

nos “deslocamentos” de poder, pretendidos por Stuart Hall (2009), basta que

entendamos como a máquina ideológica do poder opera em favor de uma

massificação e de uma espécie de estética anestésica, defendida por Augusto Boal

(2009), ao citar como jornais, televisões, música, teatro, cinema, etc., tornaram-se

armas letais daqueles que procuram a todo instante manter as relações de

poder,contra os excluídos socialmente. Como uma “palavra de ordem”, precisamos

retomar esses espaços artísticos, que Boal chama de estética, a qualquer custo!

A aproximação do Teatro do Oprimido, de Augusto Boal, com a Pedagogia do

Oprimido de Paulo Freire, vai além da utilização da mesma palavra. Boal trás a sua

metodologia de fazer teatro, o que Freire despertou para o ensino: transitividade, a

democracia e o diálogo. Assim como no ensino todo mundo poderia ensinar e

aprender, no teatro todos podem atuar, incorporando “a proposta que cada pessoa

construa o seu conhecimento, com liberdade, autonomia, construindo ele mesmo o

seu caminho

A necessidade de criar estratégias de combate à exclusão social e ao

preconceito, exige a transformação da escola em um espaço efetivo para o

reconhecimento e a valorização da cultura africana e afro-brasileira, já que nele, além

de podermos encontrar alguns dos vários conflitos de relações sociais, dispomos de

pedagogias, nas várias áreas educacionais, para levarmos os sujeitos a refletirem

sobre essas condições, indo ao encontro do pensamento de Nilma Lima Gomes (2005,

p.147), a qual defende que “colocar as pessoas diante de seus próprios valores

raciais, levando-as a questioná-los, a partir do momento em que se encontram numa

situação de discriminação semelhante àquela vivida pelo outro, pelo diferente”, poderá

fazer com que esse sujeito entre em contato diretamente com situações as quais o

levarão a um pensamento crítico das relações etnicorraciais nas quais o mesmo possa

estar envolvido. O que aproxima esse conceito das técnicas do Teatro do Oprimido,

ditado por Boal (1996), é o fato de que “o ser humano pode ver-se no ato de ver, de

agir, de sentir, de pensar. Ele pode se sentir sentindo, e se pensar pensando” (p. 27)

Esta pesquisa tem como referencial um estudo de caso com práticas de Teatro

do Oprimido em dois espaços educacionais, um reconhecido como informal, por ser

uma organização não governamental (ONG); e o outro um espaço formal e de ensino

regular, atendendo crianças e jovens desde a educação infantil até o ensino

fundamental I. Entre os dois espaços, trabalhamos com a faixa etária de 10 a 17, o

Page 112: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

101

que significa que este projeto se inseriu nas classes do 5º ano até o 9º ano do ensino

fundamental II.

Entre os problemas encontrados, o tempo de hora/aula destinado à disciplina

de Teatro nas escolas regulares foi um grande entrave no desenrolar das cenas, já

que contávamos apensa com 45 minutos, semanais, para desenvolvermos, os jogos e

exercícios de preparação para o Teatro do Oprimido, seguidos das técnicas

específicas para construirmos as cenas, o que requer um tempo maior de preparação

desses alunos para assumirem as cenas e suas discussões durante a etapa do fórum,

com a interferência da plateia. Esse tempo para o processo muitas vezes foi

sacrificado por conta do calendário escolar e suas datas comemorativas, que exigem

apresentações artísticas temáticas dos alunos, de acordo com cada evento, o que por

vezes acaba interferindo no processo de preparação dessas estratégias político-

educativas.

Outro problema encontrado no espaço escolar é em relação especificamente à

temática étnica e racial. Poucos são os professores que encaram essa discussão em

sala de aula, alguns por terem um certo receio em levantar essas discussões, pela

falta de informação e despreparo em lidar com o assunto; outros por simplificarem e

identificarem a história e a cultura negras com a religiosidade, praticam a intolerância

religiosa preferindo não tratar do assunto, por descordarem em seus credos; outros

ainda por acreditarem no mito da democracia racial, e que o Brasil é um país cordial

com seus negros, acreditando que aqui todos são igual por sermos uma sociedade

miscigenada. Por conta desses problemas, ainda encontramos determinadas barreiras

em tratar das relações etnicorraciais dentro do espaço escolar, a ponto de leis como é

a 10.639/03, serem de caráter obrigatório para poderem ser praticadas, e mesmo

assim ainda encontram uma resistência muito forte.

O Teatro do Oprimido, atendendo às questões referentes às relações

etnicorraciais, surge então como uma proposta pedagógica antirracista, na qual

poderemos tratar das questões raciais de forma dinâmica e democrática,

proporcionadas a partir do jogo cênico e da interação de plateia e palco, definidos nos

fóruns de TO, com o intuito de resgate dessa identidade negra e consequentemente

da sua valorização rumo a uma autoafirmação e à libertação de um sistema opressor,

que dita as regras de exclusão presentes na nossa sociedade Como revela

Desgranges(2010, p.72) essas sessões de TO têm o intuito de constituir-se no ensaio

de um processo de transformação, ou em “um ensaio da revolução” que os levará a

experimentarem em sua vida.

A pesquisa concentrou-se no Teatro do Oprimido enquanto uma metodologia

de ensino, ou seja, em sua utilização dentro da sala de aula, seja na educação formal

Page 113: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

102

ou na informal, com os agentes ali presentes, alunos e professor, este na função de

curinga, aquele que organiza, direciona e conduz os jogos, exercícios e discussões

das cenas; aqueles enquanto atores ou públicos, interagindo tanto na estética do

teatro do oprimido, responsabilizando-se pelas imagens, sons e palavras no processo

de montagem das cenas, ou na função de plateia que participa ativamente nas

interferência durante os fóruns, propondo outras possibilidades de resolução da

situação problema.

Uma próxima reflexão e estudo poderia ser o contato desses grupos de alunos

praticantes de Teatro do Oprimido com a comunidade escolar, ou seja, de que forma

as reflexões levantadas em sala de aula sobre as questões etnicorraciais seriam

recebidas por todos os outros agente participantes do espaço escolar: - pais,

familiares, diretores, coordenadores, professores, funcionários em geral que

desempenham suas funções dentro da escola. Acredito que esse possa ser um

próximo passo, já que o primeiro já foi dado, que foi a preparação destes alunos para

a cena e para a prática do TO, enquanto sujeitos artísticos, criativos e políticos, que ao

praticarem teatro repensam a sociedade e a possibilidade de um futuro melhor.

Concluo refletindo sobre as palavras de Terry Eagleton (2011), e sua obra A

ideia da Cultura: “A cultura é, assim, sintomática de uma divisão que ela se oferece

para superar. Como observou o cético a respeito da psicanálise, é ela própria a

doença para a qual propõe uma cura” (p. 50). Imerso a tantos caminhos, sigamos

refletindo, e reflitamos sobre esses caminhos seguindo!

Page 114: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

103

Referências Bibliográficas

AGUIAR, Moysés. O teatro terapêutico: escritos psicodramáticos. Campinas: Ed. Papirus,1990.

BOAL, Augusto. O arco-íris do desejo: método Boal de teatro e terapia. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2002.

_____. A Estética do Oprimido. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.

_____. Jogos para atores e o não atores. 15ª. Edição. Revista e ampliada. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2012.

_____. Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. 11ª. Ed. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 2011.

_____. Da diáspora: identidade e mediações culturais. 1ª. Edição Atualizada. Belo Horizonte,

Ed UFMG, 2009.

_____. Teatro Legislativo. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 1996.

BOURDIEU, Pierre. A escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura. In:

NOGUEIRA, Maria Alice Nogueira; Catani, Afrânio. (Orgs.). Pierre Bourdieu. Escritos em

Educação. 9ª. Ed. Petrópolis: Vozes. 2007. pp. 39-64.

BRASIL. DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES

ÉTNICO-RACIAIS E PARA O ENSINO DE HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA

E AFRICANA. Brasília: Ministério da Educação. Disponível em:

http://www.publicacoes.inep.gov.br/arquivos Acesso em: 10 abr. 2011.

BRASIL. Lei 10.639/03. ALTERA A LEI Nº 9.394, DE 20 DE DEZEMBRO DE 1996, QUE

ESTABELECE AS DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL, PARA INCLUIR

NO CURRÍCULO OFICIAL DA REDE DE ENSINO A OBRIGATORIEDADE DA

TEMÁTICA "HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA" E DÁ OUTRAS

PROVIDÊNCIAS. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.639.htm Acesso em: 14 mar. 2011

BRASIL. Leis, decretos etc. Leis de Diretrizes e Bases da Educação: Lei nº 9394. Brasília,

1996. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm Acesso em: 05

mai. 2013.

Caderno de Monitoramento do PPA 2012-2015: Retratos das Políticas Sociais na PNAD de

2012. Fonte: PNAD/IBGE. Elaboração SPI/MP. Disponível em:

http://www.planejamento.gov.br/secretarias/upload/Arquivos/spi/publicacoes/2014/14070

7_Cad_Monit_PPA-PNAD.pdf Acesso em 23 nov. 2014.

Page 115: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

104

Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil – 1934. Artigo 138. Disponível em

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao34.htm Acesso em:

15 jun. 2013.

CTO, Centro de Teatro do Oprimido. Desenvolvido pela equipe de coringas do CTO. Apresenta

vários textos sobre as técnicas do TO, além de divulgar os cursos, grupos e várias outras

atividades ligadas ao Teatro do Oprimido. Rio de Janeiro. Disponível em:

http://ctorio.org.br Acesso em 03 ago. 2013.

DESGRANGES, Flávio. A pedagogia do teatro: provocação e dialogismo. 2ª. Edição. São

Paulo: Editora Hucitec: Edições Mandacaru, 2010.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas; tradução de Renato da Silveira. Salvador:

EDUFBA, 2008.

FERNANDES, F. A Integração do Negro na Sociedade de Classes. vol. 1 e 2. São Paulo: Ática,

1978.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido 17a. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987. Disponível

em: http://www.letras.ufmg.br/espanhol/pdf%5Cpedagogia_do_oprimido.pdf Acesso em

22 abr. 2014.

FREYRE, Gilberto. Casa-grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da

economia patriarcal. 49ª Ed. São Paulo: Global, 2004.

GOMES, Nilma Lino. Educação e Relações Raciais: refletindo sobre algumas estratégias de

atuação. In: MUNANGA, Kabengele. (Org.). Superando o racismo na escola. 2. ed.

Brasília – DF. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada,

Alfabetização e Diversidade, 2005, p. 143 - 154.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva. 11ª.

Edição. DP&A Editora. Rio de Janeiro, 2006.

HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento de cultura. Ed.Perspectiva 1996

JAPIASSU, Ricardo. (2001) Metodologia do ensino de Teatro. Campinas: Papirus.

MACHADO, Marina Marcondes. O diário de bordo como ferramenta fenomenológica para o

pesquisador em artes cênicas. Revista Sala Preta. Nº 2/2002. Disponível em:

www.eca.usp/salapreta/PDF02/SP02_035_machado.pdf Acesso em: 15 jun. 2013.

MOORE, Carlos. Racismo e Sociedade: novas bases epistemológicas para entender o

racismo. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007. 344p.

Page 116: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

105

MUNANGA, Kabengele. (Org.). Superando o racismo na escola. 2. ed. Brasília – DF. Ministério

da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005.

REDE ANGOLA. Retrato Negro do Brasil. Fonte: Censo 2010, Instituto Nacional de Estudos e

Pesquisas Educacionais, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Instituto Brasileiro

de Geografia e Pesquisa. Disponível em:

http://operamundi.uol.com.br/conteudo/samuel/38587/numero+de+negros+em+universid

ades+brasileiras+cresceu+230+na+ultima+decada+veja+outros+dados.shtml Acesso

em: 15 jun. 2013.

ROCHA, Simone. Cadernos de Pesquisa – Pensamentos Educacionais. A educação como

ideal eugênico: o movimento eugenista e o discurso educacional no boletim de eugenia

1929-1933. Revista Eletrônica da Universidade Tuiuti do Paraná. Volume 6. Número 13,

mai – ago/2011. Disponível em: http://www.utp.br/Cadernos_de_Pesquisa/edicoes.html

Acesso em: 15 jun. 2013.

ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira. Organização de Luiz Antonio Barreto. Rio de

Janeiro: Imago; Aracaju: Universidade Federal de Sergipe, 2001.

SANSONE, Lívio. Negritude sem Etnicidade: o local e o global nas relações raciais e na

produção cultural negra do Brasil. Salvador/Rio de Janeiro, Edufba/Pallas, 2004.

SANTOS, Susana Moreira dos . A Experiência com esporte e educação do Instituto Bola Pra

Frente: de projeto a tecnologia social. Dissertação de M.Sc., Fundação Getúlio Vargas -

FGV / CPDOC/ Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais,; Rio

de Janeiro; 2008.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nem preto nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na

intimidade. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz (Org.). História da vida privada no Brasil:

contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.

173-244.

_____. O Espetáculo das Raças – cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930.

São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

SESTITO, Eloiza Amália Bergo; NEGRÃO, Sonia Maria Vieira; TERUYA, Teresa Kazuko. O

ENSINO DE ARTE NA ESCOLA PÚBLICA BRASILEIRA DA RACIONALIZAÇÃO AOS

SENTIDOS. DOS SENTIDOS À RACIONALIZAÇÃO. Disponível em:

http://www.histedbr.fae.unicamp.br/acer_histedbr/jornada/jornada7/_GT4%20PDF/O%20

ENSINO%20DE%20ARTE%20NA%20ESCOLA%20P%DABLICA%20BRASILEIRA.pdf

Acesso em: 15 jun. 2013.

SILVA, Maria José Lopes da Silva. As Artes e a Diversidade Étnico-Cultural na Escola Básica.

In: MUNANGA, Kabengele. (Org.). Superando o racismo na escola. 2. ed. Brasília – DF.

Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e

Diversidade, 2005, p. 125 – 142.

SLADE, Peter. O jogo dramático infantil. São Paulo: Summus, 1978.

Page 117: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS …dippg.cefet-rj.br/pprer/attachments/article/81/32_Francisco Wescley... · A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA

106

SODRÉ, Muniz. Por um conceito de minoria. In: PAIVA, Raquel; BARBALHO, Alexandre (orgs.)

Comunicação e cultura das minorias. São Paulo: Paulus, 2005.

SOVIK, Liv. Para Ler Stuart Hall. In: HALL, Stuart. Da diáspora: identidade e mediações

culturais. 1ª. Edição Atualizada. Belo Horizonte, Ed UFMG, 2009. p. 9-22..

VAGO, Tarcísio Mauro. Início e fim do século XX: Maneiras de fazer educação física na escola.

Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ccedes/v19n48/v1948a03.pdf Acesso em: 15 jun.

2013.