a educa__o das rela__es etnicorraciais em livros did_ticos de l_ngua portuguesa no ensino m_dio

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHO

    CENTRO DE CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

    A EDUCAO DAS RELAES ETNICORRACIAIS EM LIVROS DIDTICOS DE

    LNGUA PORTUGUESA NO ENSINO MDIO

    So Lus

    2013

    RICHARD CHRISTIAN PINTO DOS SANTOS

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    RICHARD CHRISTIAN PINTO DOS SANTOS

    A EDUCAO DAS RELAES ETNICORRACIAIS EM LIVROS DIDTICOS DE

    LNGUA PORTUGUESA DO ENSINO MDIO

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao da UniversidadeFederal do Maranho para obteno do graude Mestre em Educao.

    Orientador: Prof. Dr. Joo de Deus VieiraBarros

    SO LUS2013

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    Santos, Richard Christian Pinto dos.

    A educao das relaes etnicorraciais em livros didticos de lngua portuguesa noensino mdio / Richard Christian Pinto dos Santos.So Lus, 2013.

    97f.

    Impresso por computador (fotocpia).

    Orientador: Joo de Deus Vieira Barros.

    Dissertao (Mestrado) Universidade federal do Maranho, Programa de Ps-

    Graduao em Educao, 2013.

    1. Educao Relaes Etnicorraciais. 2. Educao bsica. 3. Livros didticos

    Lngua portuguesa. 4. Lei 10.639/2003. I. Ttulo.

    CDU 37.043.2-054:373-5

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    RICHARD CHRISTIAN PINTO DOS SANTOS

    A EDUCAO DAS RELAES ETNICORRACIAIS EM LIVROS DIDTICOS DE

    LNGUA PORTUGUESA NO ENSINO MDIO

    Dissertao apresentada ao Programa dePs-Graduao em Educao daUniversidade Federal do Maranho paraobteno do ttulo de Mestre em Educao.

    Aprovado em: / /

    BANCA EXAMINADORA

    ____________________________________________________________

    Prof. Dr. Joo de Deus Vieira Barros (Orientador)

    Doutor em EducaoUniversidade Federal do Maranho

    ____________________________________________________________

    Prof. Llia Cristina Silveira de Moraes (Examinadora)

    Doutora em Educao Brasileira

    Universidade Federal do Maranho

    _____________________________________________________________

    Prof. Dr. Carlos Benedito Rodrigues da Silva

    Doutor em Cincias Sociais - Antropologia

    Universidade Federal do Maranho

    ______________________________________________________________

    Prof. Dr Francisca das Chagas Silva Lima (Suplente)

    Doutora em Educao

    Universidade Federal do Maranho

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    A minha esposa, Grace Kelly, e a minha

    filha, Dandara, pela fora e apoio

    incondicionais.

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    AGRADECIMENTOS

    Aos Orixs, princpio e o fim de tudo.

    A minha esposa, Grace Kelly, pela compreenso, incentivo e carinho.

    Em especial a filha, Dandara, pela inspirao.

    A minha me, Teresa Cristina, por ter sido a principal influncia na escolha pela

    docncia.

    A meu orientador, Professor Joo de Deus Vieira Barros, pela confiana e acolhida

    na hora de maior dificuldade.

    s professoras Llia Cristina Silveira de Moraes e Francisca das Chagas Silva Lima,

    pelas inestimveis contribuies na Banca de Qualificao.

    Ao corpo docente do Programa de Ps-Graduao em Educao, pela sapincia e

    profissionalismo.

    Aos colegas do Curso, pela troca de experincias.

    Aos companheiros e companheiras do Ncleo de Estudos Afro-Brasileiros, sobretudo

    ao professor Carlos Benedito Rodrigues da Silva, pelas contribuies minha trajetria

    acadmica e pessoal.Aos amigos e amigas que, mesmo de longe, atravs do ativismo virtual

    estabeleceram laos de fraternidade. Luh Souza, Gabriel Ferreira, Mnica Francisco, Ana

    Paula Corra, Najla Yashurun, Al de Mattos, Nayra Silva, Solana Jlia, Aline Dias, Jonathan

    Jos, Twylla Ferraz, Melissa Andrade, Atot Oya, e muitos mais impossveis de citar em

    espao to exguo.

    Aos parentes do Centro de Cultura Negra do Maranho.

    s centenas de alunos e alunas, que mais me ensinaram que eu a eles nos vriosespaos por onde passei.

    Aos guerreiros e guerreiras que tenho tido a meu lado na luta por uma educao

    emancipadora.

    Aos Orixs, princpio e o fim de tudo.

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    No lutamos por integrao ou por separao. Lutamos

    para sermos reconhecidos como seres humanos.

    Malcolm X

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    RESUMO

    O presente trabalho tem por objetivo analisar de que maneira se apresentam os contedos da

    Educao das Relaes Etnicorraciais em livros didticos de Lngua Portuguesa do Ensino

    Mdio utilizados na rede estadual de ensino do Maranho atravs de um estudo dos trs

    volumes de uma coleo. Para a seleo das obras que se tornaram objeto de estudo

    utilizamos os bancos de dados do Programa Nacional de Livros Didticos. Para promover a

    anlise nos valemos do referencial que relaciona os procedimentos metodolgicos da Anlise

    de Contedo de Bardin (1988) acrescida das contribuies de Capelle & Gonalves (2011),

    Franco (2003) e Rocha & Deusdara (2005) para identificar as categorias que emergem de tais

    textos no que concerne Educao das Relaes Etnicorraciais. Para compreenso da

    temtica utilizamos como fundamentao terica os estudos de Moore (2007), Paixo (2008),

    Cavalleiro (2001), Munanga (1999, 2005), Nascimento (1980, 2004), alm do subsdio dos

    documentos jurdicos referentes temtica. Verifica-se que a coleo analisada contempla

    satisfatoriamente as exigncias legais, pois discute a persistncia de desigualdades entre os

    grupos etnicorraciais, apresenta elementos da cultura de matriz africana, alm de

    contextualizar historicamente a produo literria de alguns autores africanos e brasileiros

    cujas obras retratam a questo.

    Palavras-chave: Educao Bsica. Lei 10.639/2003. Educao das Relaes Etnicorraciais.

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    RSUM

    Cet travail vise analyser la faon dont le contenu de l'ducation des Relations

    Etnicorraciales est prsent dans les manuels de Langue Portugaise du Lyce utilise dans

    l'tat de Maranho travers l'tude de trois volumes d'une collection. La slection des uvres

    qui sont devenues l'objet d'tude, nous avons utilis les bases de donnes du Programa

    Nacional de Livros Didticos. Pour une analyse plus approfondie nous comptons avec le

    cadre qui concerne aux procdures mthodologiques de l'Analyse du Contenu de Bardin avec

    les contributions de Capelle & Gonalves (2011), Franco (2003) et Rocha & Deusdara (2005)

    pour identifier les catgories qui se dgagent de ces textes concernant l'ducation des

    Relations Etnicorraciales. Pour comprendre le thme utilis que des tudes thoriques de

    Moore (2007), Paixo (2008), Cavalleiro (2001), Munanga (1999, 2005), Nascimento (1980,2004), l'allocation des documents juridiques relatifs ce thme. Il se trouve que la collection

    comprend de faon satisfaisante analys les exigences lgales discute de la persistance des

    ingalits entre groupes etnicorraciais prsente des lments de la culture africaine, et

    contextualiser historiquement la production littraire de certains auteurs africains et brsiliens

    dont les uvres dpeindre la question .

    Mots-clefs: ducation Basique, Loi numro 10.639/2003, ducation des Relations Etnico-

    raciales.

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    LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    ABPN Associao Brasileira de Pesquisadores Negros

    ABNT Associao Brasileira de Normas Tcnicas

    Anped Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em Educao

    Cf. Confira

    CNE Conselho Nacional de Educao

    CNLD Comisso Nacional do Livro Didtico

    COLTED Comisso do Livro Tcnico e do Livro Didtico

    FNDE Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educao

    IES Instituies de Ensino Superior

    INL Instituto Nacional do Livro

    IPEA Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada

    IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

    LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional (Lei 9394/1996)

    MEC Ministrio da Educao

    MJ Ministrio da Justia

    Neabs Ncleos de Estudos Afro-BrasileirosONU Organizao das Naes Unidas

    PCN Parmetros Curriculares Nacionais

    PLIDEF Programa do Livro Didtico para o Ensino Fundamental

    PNLD Programa Nacional do Livro Didtico

    PNLEM Programa Nacional do Livro Didtico do Ensino Mdio

    SEB Secretaria de Educao Bsica do Ministrioda Educao

    SECADI Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao, Diversidade e Incluso doMinistrio da Educao

    SEDUC Secretaria de Estado da Educao

    SEPPIR Secretaria de Polticas de Promoo da Igualdade Racial

    TCC Trabalho de Concluso de Curso

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    SUMRIO

    1. INTRODUO 12

    1.1. Dados demogrficos para compreender as desigualdades etnicorraciais 13

    1.2. Referencial terico-metodolgico para a construo da pesquisa 17

    2. AS CONTRIBUIES DO MOVIMENTO NEGRO PARA A

    CONSTRUO DA EDUCAO DAS RELAES

    ETNICORRACIAIS

    25

    2.1. Escravizao e Quilombismo no sculo XIX 25

    2.2. O princpio do sculo XX: Imprensa Negra, Frente Negra Brasileira e

    Teatro Experimental do Negro

    26

    2.3. As dcadas de 1970 e 1980: Movimento Negro no contexto de reabertura

    poltica

    29

    2.4. A dcada de 1990 e a Conferncia de Durban 30

    3. A EDUCAO DAS RELAES ETNICORRACIAIS A PARTIR DA

    LEI 9.394/1996

    34

    3.1. Da Constituio de 1988 Lei 9.394/1996: os antecedentes 34

    3.2. Da Lei 9.394/1996 Lei 10.639/2013: novos paradigmas 35

    3.3. Da Lei 10.639/2003 aos dias de hoje: a implementao 38

    4. A EDUCAO DAS RELAES ETNICORRACIAIS NOS LIVROS

    DIDTICOS DE LNGUA PORTUGUESA

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    4.1. Histrico das Polticas Nacionais do Livro Didtico 50

    4.2. Plano Nacional do Livro Didtico (PNLD) 55

    4.3. Poltica do Livro Didtico de Lngua Portuguesa: breve histrico 58

    4.4. Anlise da Educao das Relaes Etnicorraciais em Livros Didticos de

    Lngua Portuguesa

    59

    4.4.1. Categoria Cultura Negra 63

    4.4.2. Categoria Escritores Negros 66

    4.4.3. Categoria Escravido 73

    4.4.4. Categoria Pases Africanos de Lngua Portuguesa 81

    5. CONCLUSO 86

    REFERNCIAS 90

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    1 INTRODUO

    No dia 9 de Janeiro de 2003 ocorreu a assinatura da Lei n 10.639, que estabelece

    a obrigatoriedade da incluso da temtica Histria e Cultura Afro-Brasileira no currculo

    oficial da Educao Bsica. Seu objetivo superar um perodo ondea educao das relaes

    etnicorraciais no se fazia presente de maneira representativa nos contedos escolares. A

    partir da lei 10.639/2003 outros documentos vm sendo publicados a fim de estabelecer

    oficialmente um processo de aes que envolve atores sociais como o poder pblico nas 3

    esferas de poder, as redes privadas de ensino, universidades, pesquisadores, autores e

    produtores de materiais didticos, professores, gestores, organizaes do Movimento Negro1,

    pais, alunos e sociedade civil. Para efetivar a educao das relaes etnicorraciais os textos

    legais incentivam a produo de prticas e bens culturais que vislumbrem atender a essas

    demandas, que apesar de terem incio nos primeiros anos da Histria do Brasil apenas

    recentemente vm conseguindo alcanar maior visibilidade (cf. MEC/MJ/SEPPIR, 2008).

    Como forma de colocar em prtica a referida lei o Governo Federal formulou,

    atravs de um grupo interministerial formado pelo Ministrio da Educao (que daqui em

    diante chamaremos apenas pela abreviatura MEC) e pela Secretaria de Polticas de Promoo

    da Igualdade Racial - SEPPIR, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao das

    Relaes Etnicorraciais e para o Ensino de Histria e Cultura Africana e Afrobrasileira.

    Dentre as iniciativas propostas est justamente a incluso de discusso da questo racial como

    parte integrante da matriz curricular, e para tanto se ressalta a importncia de obras didticas e

    paradidticas que abordem a temtica atravs de sua disponibilizao na formao de

    professores, no contedo programtico dos concursos pblicos para o magistrio e na

    formao dos acervos das bibliotecas escolares (MEC/MJ/SEPPIR, 2005).

    Este trabalho visa tecer uma anlise dos contedos apresentados nos livros de

    Lngua Portuguesa do Ensino Mdio a fim de perceber se seus textos contribuem para o

    reconhecimento da importncia da populao negra durante a formao histrica e cultural do

    Brasil. Partindo de uma compreenso de que a elaborao das polticas educacionais e dos

    recursos didticos devem levar em conta a diversidade de culturas e de memrias coletivas

    1 Movimento Negro entendido como o conjunto de entidades formadas por afrodescendentes tencionando

    promover a luta pela efetivao dos direitos de cidadania do grupo, historicamente cerceados por conta dasdiscriminaes raciais. Dentre seus campos de atuao existem aquelas mais voltadas para a rea cultural,outras para o campo da pesquisa cientfica, para a organizao poltica, para a preservao do legado religiosotradicional de matriz africana (cf. LOPES, 2004).

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    dos vrios grupos tnicos que integram a sociedade brasileira, torna-se indispensvel a

    superao de discursos orientados por quaisquer formas de discriminao para compor um

    programa de educao com vistas para a justia e o desenvolvimento social (MUNANGA,

    2005).

    Uma srie de questionamentos pode ser articulada com base na produo

    cientfica sobre Educao e relaes etnicorraciais. Elencando os resultados colhidos pelos

    autores percebe-se a recorrncia de estudos que apontam que os livros didticos

    historicamente tm dado uma contribuio insuficiente na implementao desse debate junto

    comunidade escolar. Pesquisas como as de Carvalho (2006) e Silva (2001) do conta de que

    foi extremamente lento o processo de transformao na abordagem sobre o negro nos livros

    didticos abandonando valores eurocntricos rumo a alteraes substanciais que

    contemplassem diferentes conhecimentos e saberes.

    1.1 Dados demogrficos para compreender as desigualdades raciais

    Os preconceitos de cunho racista2 atuam efetivamente na vida cotidiana das

    populaes dos diferentes grupos tnicos brasileiros por meio de prticas discriminatriascujos efeitos podem ser mensurados atravs de dados demogrficos que incluam o

    pertencimento etnicorracial dos indivduos pesquisados. A populao negra necessita superar

    uma srie de obstculos impostos no campo da vida social que no raramente cerceiam o

    acesso a direitos bsicos como educao, sade e colocao no mercado de trabalho.

    Estatsticas demogrficas como as publicadas pelo Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada

    - IPEA (2008) e pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica - IBGE (2010), alm das

    compiladas e analisadas em trabalhos como os de Cavalleiro (2003), Paixo (2008), Santos(2007) e Santos e Queiroz (2006), dentre outros, registram a permanncia de flagrantes

    diferenas entre os grupos etnicorraciais na sociedade brasileira nos mais diversos

    indicadores, demonstrando uma posio de desvantagem da populao negra em diferentes

    faixas de idade, renda, escolaridade, etc, o que causa a subalternizao deste grupo.

    2

    Gomes (2005) define racismo como um conjunto de pressupostos ideolgicos que estabelece a hierarquia entregrupos etnicorraciais. Esses pressupostos levam a comportamentos de averso (por vezes, de dio) em relaoaos integrantes com pertencimento racial dentre os grupos afrodescendente e indgena (consideradosinferiores) e de enaltecimento dos integrantes dos grupos eurodescendentes (considerados superiores).

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    Como forma de exemplificar a atualidade da questo das desigualdades raciais

    podemos citar as informaes sociodemogrficas presentes na Sntese de indicadores sociais:

    uma anlise das condies de vida da populao brasileira 2010 (IBGE, 2010). Objetivando

    ampliar o conhecimento da realidade social do pas a publicao organiza tematicamente

    estatsticas oriundas dos bancos de dados de diferentes instncias da administrao pblica

    federal. O item especfico voltado para alinhar as observaes a partir do critrio do

    pertencimento tnico dos participantes traz resultados que apontam que a situao de

    desigualdade sofrida pelos grupos historicamente desfavorecidos subsiste.

    Atendo-nos s informaes relativas Educao, observamos que as taxas de

    analfabetismo, de analfabetismo funcional3, de frequncia escolar e do nvel de ensino

    frequentado expressam persistentemente diferenas entre os nveis apresentados pela

    populao branca de um lado e as populaes preta e parda de outro. O texto frisa inclusive

    que mesmo os avanos no sentido do aumento do nmero de anos de estudo e diminuio dos

    indicadores de analfabetismo a proporo de desigualdade permanecem praticamente

    inalterados, alm dos ndices mais recentes da populao negra4 serem comparveis aos

    ndices apresentados pela populao branca cerca de dez anos antes, o que permite inferir que

    existe um atraso histrico de um grupo em relao ao outro no que diz respeito ao acesso

    escolarizao.

    Apesar de avanos, tanto a populao de cor preta quanto a de cor parda ainda tm odobro da incidncia de analfabetismo observado na populao branca: 13,3% dos

    pretos e 13,4% dos pardos, contra 5,9% dos brancos, so analfabetos.

    [...]

    O analfabetismo funcional concerne mais fortemente aos pretos (25,4%) e aospardos (25,7%) do que aos brancos (15,0%).

    [...]

    A populao branca de 15 anos ou mais de idade tem, em mdia, 8,4 anos de estudoem 2009, enquanto pretos e pardos tm, igualmente, 6,7 anos. Em 2009, os

    patamares so superiores aos de 1999 para todos os grupos, mas o nvel atingidotanto pela populao de cor preta quanto pela de cor parda, com relao aos anos deestudo, atualmente inferior quele alcanado pelos brancos em 1999, que era, emmdia, 7,0 anos de estudos. (IBGE, 2010, p.227)

    3Esse indicador engloba as pessoas de 15 anos ou mais de idade com menos de quatro anos completos de estudo,ou seja, que no concluram a 4 srie do ensino fundamental.

    4

    O grupo formado a partir da agregao dos grupos autoidentificados como pretos e pardos de acordo comos critrios de classificao do IBGE por conta de suas origens histricas comuns, que de acordo com osestudos realizados sobre desigualdades raciais apresentam um quadro semelhante de vulnerabilidadesocioeconmica, como problematizado por Brando (2003).

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    O hiato nos processos de ingresso e permanncia no ambiente escolar denota a

    insipincia das medidas universalistas e a necessidade de polticas especialmente voltadas

    para a insero da populao negra, sob pena da continuidade de um contexto em que milhes

    de pessoas enfrentam dificuldades maiores de exercer sua plena cidadania em comparao a

    outros grupos que possuam uma trajetria livre de excluses de carter tnico.

    Grfico 1Distribuio dos estudantes de 18 a 24 anos de idade, segundo a cor ou raa e o

    nvel de ensino frequentado

    Brasil1999/2009

    %

    No grfico acima perceptvel o descompasso entre os grupos de cor e raa no

    que concerne adequao entre a idade e o nvel de ensino frequentado entre os grupos

    etnicorraciais no decorrer de um intervalo de dez anos. Considerando que na faixa etria

    observada espera-se que os indivduos tenham concludo o Ensino Mdio, devendo estar em

    nvel Pr-Vestibular ou Superior, notamos que enquanto a populao branca conseguiu

    inverter seu quadro de distoro idade/nvel de ensino (de 60,3% em 1999 para 34% em 2009)

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    as populaes preta e parda apenas diminuram seus ndices, mas continuam majoritariamente

    fora do patamar esperado, de maneira prxima ao que se verificava no contingente branco na

    dcada anterior, e ainda assim encontrando-se em desvantagem. A populao preta em 1999

    somava 88% de alunos fora do nvel esperado, uma proporo de 1/3 a mais em relao

    populao branca no mesmo perodo. No ano de 2009 o percentual diminuiu para 68,3%, o

    que no deixa de representar um avano relativo, muito embora expresse um aumento da

    desigualdade em relao ao grupo branco, pois a proporo agora de 3/4 maior e,

    reiteramos, superior aos 60,3% de distoro do alunado branco uma dcada antes. A

    populao parda apresenta taxas similares s da populao preta, obtendo 87,9% de

    estudantes de 18 a 24 anos de idade frequentando o Ensino Fundamental ou o Ensino Mdio

    no ano de 1999 e 65,4% no ano de 2009, mantendo tambm uma proporo de desigualdadeem relao populao branca sem diferenas significativas quela percebida entre brancos e

    pretos.

    Outro dado importante para compreender as desigualdades educacionais entre os

    grupos etnicorraciais porcentagem de presentes no Ensino Superior, nvel de ensino que

    contribui fortemente para o reconhecimento social e para o fortalecimento da auto-estima dos

    indivduos devido a uma srie de fatores, como possibilitar o acesso a cargos com maiores

    rendimentos e por disponibilizar conhecimentos que conscientizam sobre a realidade. No

    grfico esta apresenta-se como a etapa onde se encontra a maioria da populao branca ao

    final do perodo analisado, sendo a faixa onde se apresenta uma diferena que se torna mais

    expressiva pelo fato de que este foi o nico grupo tnico dentre os observados onde ocorreu a

    inverso. Fica evidenciada a necessidade de implantao de polticas especficas capazes de

    modificar as configuraes no plano objetivo, alterando a forma de insero dos negros nos

    circuitos materiais e subjetivos da sociedade (BRANDO, 2003)

    O movimento negro vem ao longo da Histria apontando que a educao

    estrutura-se como a base de pensamento e ao das populaes por transmitir os caracteres

    simblicos que justificam ideologicamente a desqualificao dos indivduos no-brancos. Se a

    apropriao do iderio racista pela populao branca j produz efeitos nefastos nos campos da

    subjetividade e das relaes sociais, sua apreenso pela populao negra ainda mais danosa,

    pois faz com que um grupo significativo desenvolve um sentimento de autorrejeio devido

    ao reconhecimento de uma falsa naturalidade de hierarquizaes pautadas no pertencimento

    tnico das pessoas. Esses grupos defendem que no ambiente escolar deve-se priorizar umaprtica pedaggica pautada por contedos atitudinais que incentivem o respeito a todo e

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    qualquer grupo etnicorracial. O objetivo contribuir para uma verdadeira mudana social no

    contexto de desigualdades raciais explicitado nos dados apresentados acima (cf.

    MOVIMENTO NEGRO UNIFICADOPE, 1988).

    1.2. Referencial terico-metodolgico para a construo da pesquisa

    A escolha pela temtica foi feita como reflexo e consequncia da trajetria

    pessoal, profissional, poltica e acadmica do autor. Sendo um homem negro que por toda a

    vida sofreu, presenciou ou tomou conhecimentos de situaes em que o racismo estivesse

    presente, desde os primeiros anos de vida foi possvel perceber (mesmo que ainda de maneiraacrtica) que as pessoas recebiam tratamentos diferenciados por conta de determinadas

    caractersticas fsicas ou culturais. A falta de debate sobre estas questes no ambiente familiar

    e escolar acabou levando a uma formao conflituosa da identidade tnica, levando a

    momentos de aceitao e rejeio da origem e das caractersticas relacionadas ao que

    corresponde fsica e culturalmente ser negro.

    Apenas a convivncia na universidade durante a graduao possibilitou, atravs

    do contato com pessoas e grupos que debatem nos mbitos poltico e acadmico as relaesraciais na sociedade brasileira, uma reflexo e uma autodescoberta neste sentido. Uma parte

    fundamental deste processo foi o ingresso no Ncleo de Estudos Afro-Brasileiros da

    Universidade Federal do Maranho, grupo de estudos e pesquisas voltado especificamente

    para a temtica negra. As discusses e leituras voltadas para desconstruir o senso comum

    permeado pelas ideias racistas possibilitaram uma aceitao do prprio eu, alm de marcar o

    compromisso de buscar dar uma parcela de contribuio com novos trabalhos na mesma

    linha.

    As pesquisas tiveram como resultado uma srie de produes cientficas a

    participao em mais de vinte eventos acadmicos de mbito local, regional, nacional e

    internacional voltados para abordar os saberes das Cincias Humanas de modo geral e da

    Educao em particular. Nestas ocasies foram apresentados individualmente ou em parceria

    com outros pesquisadores e pesquisadoras mais de dez trabalhos entre work-shops, palestras,

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    comunicaes orais, mini-cursos, oficinas e painis. Em duas ocasies tivemos publicados em

    peridicos cientficos artigos frutos dos estudos desenvolvidos para a atual dissertao5.

    O incio da atuao profissional como professor de Lngua Portuguesa na rede

    pblica acabou por demonstrar que o racismo mantm-se no espao escolar difundido por

    variados elementos da tessitura social, sendo os materiais didticos um deles. Apesar da

    existncia da lei 10.639/2003, facilmente foi percebido que esta se encontra longe da plena

    implementao apesar do esforo de variados grupos nesta direo. Isso nos motivou a tomar

    essa realidade como objeto de estudo. A escolha constituiu um compromisso pessoal, social,

    acadmico e poltico. Desta forma, este trabalho tem por objetivo analisar de que maneira se

    apresentam os contedos da Educao das Relaes Etnicorraciais em livros didticos de

    Lngua Portuguesa do Ensino Mdio utilizados na rede estadual de ensino do Maranho

    atravs de um estudo dos trs volumes de uma coleo. Para a seleo das obras que se

    tornaram objeto de nossa anlise utilizamos os bancos de dados do Programa Nacional de

    Livros Didticos.

    A construo metodolgica do trabalho seguiu uma srie de passos para

    sistematizao da pesquisa. Como etapa inicial promoveu-se a leitura e seguida anlise de

    uma coleo de livros didticos de Lngua Portuguesa de Ensino Mdio, escolhida dentre as

    obras utilizadas nas escolas da Rede Estadual de Ensino Mdio no municpio de So Lus,

    Maranho que tenham sido avaliadas pelo Programa Nacional do Livro Didtico. Uma

    consulta aos documentos relativos ao Plano Nacional do Livro Didtico apontou obras com

    maior recorrncia de utilizao em estabelecimentos de ensino na referida cidade, o que

    motivou a escolha dos ttulos.

    Ao longo dos sculos variadas instituies religiosas, polticas ou culturais

    detiveram a legitimidade de transmitir os saberes socialmente reconhecidos, cabendo na

    atualidade escola a primazia neste sentido. Nas ltimas dcadas a comunidade cientfica

    testemunha o desenvolvimento de pesquisas que contriburam para a observao das

    disputas entre os atores sociais no contexto da educao. Nota-se de modo explcito as

    5O artigo intitulado LETRAS NEGRAS: as contribuies da literatura para aplicao da Lei 10.639/2003 no

    ensino mdiofoi publicado na Revista da Associao Brasileira de Pesquisadores Negros - Volume 2, nmero 5,

    Jul. 2011 - Out. 2011. Posteriormente, o prosseguimento da pesquisa possibilitou a produo em parceria com

    uma integrante doNcleo de Estudos Afro-Brasileiros do artigo Contribuies do Movimento Negro e dasteorias crticas do currculo para a construo da educao das relaes tnico-raciais, publicado na Revista

    Histria Hoje, da Associao Nacional de Histria (cf. PINTO DOS SANTOS, SOUZA, 2012).

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    relaes tradicionais entre o conhecimento e as formas de transmiti-lo, bem como seu

    papel na manuteno das tradicionais estruturas polticas existentes. O ponto chave da

    atuao desses trabalhos fazer ao mesmo tempo anncios e denncias dos mecanismos

    que transformam um espao formativo em um espao de reproduo de estruturas de

    dominao e controle sociais.

    Esse novo paradigma terico-metodolgico dar incio a uma dicotomia que

    ampliar o debate acadmico, tendo repercusses visveis at os dias de hoje. Em oposio

    s j estabelecidas teorias tradicionais sobre a educao, voltadas prescrio de frmulas

    e modelos para a criao de estruturas curriculares e catalogao de procedimentos que

    garantissem a eficcia na sua aplicao, surgem estudos preocupados com a contestao do

    status quo e com sua responsabilizao pela persistncia das iniquidades sociais apesar (ou

    em virtude) de todo o desenvolvimento cientfico e material alcanado pela humanidade.

    uma viso de estudos que, mesmo quando no possuem como enfoque principal discutir

    especificamente as relaes raciais na educao, apoia os tericos que se atm de maneira

    mais aprofundada nesse objeto de estudo, pois refora a ideia de que a escola no um

    espao neutro como se supunha (ou se levado a supor), mas representa os interesses

    polticos de determinados grupos.

    Os indivduos que passam por um processo formativo que justifica sua

    opresso acabam eles mesmos se tornando cmplices e reprodutores dessa opresso, pois

    introjetam os valores discriminatrios que permeiam a cultura legitimada da regio que

    habitam. A naturalizao da opresso pelo prprio oprimido e a aceitao do direito do

    opressor em exerc-la condio sine qua non dos regimes polticos que se amparam nas

    desigualdades sociais, sejam elas de carter tnico, racial, de gnero, de origem regional ou

    nacional, religioso, etrio ou ideolgico, por exemplo. Se o poder estabelecido consegueprescrever satisfatoriamente sua ideologia de maneira que os grupos marginalizados

    reconheam seus algozes como o ideal a ser seguido, conseguir mais facilmente preservar

    sua posio, pois as tenses, se no podem ser completamente erradicadas, so mitigadas a

    ocorrncias esparsas ou pouco representativas. da que surge a relevncia de paradigmas

    curriculares emancipatrios que balizem prticas pedaggicas que primem pela reflexo e

    pela luta que conduza rumo equidade, liberdade e justia social. Que em vez de

    desumanizar levem transformao social apesar das resistncias e tentativas dedesmoralizao dessas iniciativas por aqueles que historicamente obtm privilgios

    oriundos das relaes de violncia fsica e simblica. Esses grupos necessitam atingir a

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    compreenso de que no sero as camadas hegemnicas que iro promover a mudana,

    pois as elites dirigentes no tm esse interesse.

    Lanar um olhar sobre parte da extensa produo intelectual que vem sendorelacionada ao longo do tempo por estudiosos e profissionais para fundamentar a educao

    de vital importncia caso se queira realizar uma prtica pedaggica transformadora,

    sobretudo quando estamos visando o fim das profundas desigualdades sociais e raciais na

    sociedade brasileira. Apenas um slido arcabouo ideolgico e um fazer reflexivo podero

    servir como contraponto aos argumentos falaciosos embasados pelas ideias

    preconceituosas do senso comum, que ainda hoje encontram amplo espao de reproduo

    em determinados meios por parte de educadores, gestores e/ou redes.

    Para fundamentar a anlise das representaes das relaes etnicorraciais nos

    livros didticos de Lngua Portuguesa decidiu-se tomar como base a Anlise de Contedo,

    aporte terico-metodolgico que oportuniza atravs de uma leitura sistematizada dos

    discursos chegar aos sentidos implcitos do texto, justamente onde se encontram

    costumeiramente expresses de carter racista evitar uma explanao meramente descritiva

    dos livros didticos. Partimos da obra de Bardin, principal autor dessa teoria, seguindo uma

    reviso de literatura pautada nos estudos que do continuidade teoria.

    Bardin (1988) aponta a importncia de buscar tanto quanto possvel unidades que

    permitam codificar e compreender os sentidos explcitos e implcitos nos textos a serem

    analisados. Dentre essas unidades podemos destacar a unidade de contexto e a unidade de

    registro como aquelas que podem dar incio sistematizao das mensagens. A unidade de

    registro visa buscar os menores segmentos possveis de contedo, de maneira a estabelecer

    ncleos de categorias de acordo com as variadas dimenses que eles apresentem. A unidade

    de contexto agrupa os registros j agrupados anteriormente atribuindo-lhes correlaes entre

    si. Desta forma possvel delimitar e expandir tanto quanto necessrio ao estudo as reflexes

    sobre os discursos que compem o objeto.

    estabelecido tambm que a partir dos objetivos da pesquisa em curso e do

    desenvolvimento dos resultados obtidos necessrio classificar elementos em categorias,

    impondo uma investigao no que se refere a seus pontos de aproximao. O que existe em

    comum entre uns e outros vai permitir uma srie de agrupamentos, mas sem impedir que

    critrios diferentes de analogia sejam estabelecidos, considerando diferentes procedimentos

    de repartio dos dados (idem). Aps analisar os livros didticos que constituem o objeto da

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    pesquisa seguindo o roteiro de procedimentos metodolgicos que compem a Anlise de

    Contedo buscou-se identificar o tratamento dado populao negra nas obras escolhidas.

    Esta teoria interessante para a execuo do trabalho de analisar a presena depreconceito racial em textos de qualquer natureza pelo fato de ter em seu arcabouo

    procedimentos sistemticos e objetivos que buscam inferir como so descritas as mensagens

    produzidas e recebidas no de uma maneira leiga, mas com vistas aos elementos subjacentes

    que s possam ser apreendidos depois de repetidas interpretaes. A anlise de contedo

    oscila entre o rigor da objetividade e a fecundidade da subjetividade, polos distintos, e por

    vezes vistos como desarticulados, da investigao cientfica, mas aqui vistos como igualmente

    relevantes para impor um corte entre as intuies iniciais que encaminhem o trabalho rumo s

    interpretaes mais definitivas (cf. CAPPELLE, MELO, GONALVES, 2011).

    O que se pretende partindo dessa opo metodolgica seguir o roteiro de

    trabalho sistematizado por Rocha & Deusdar (2005) como proposta s investigaes que

    adotem a Anlise de Contedo como seu referencial de procedimentos que desvendem a

    realidade. Dando prosseguimento, como j dito anteriormente, a uma primeira leitura dos

    textos a serem utilizados como fonte para a problematizao apresenta-se a orientao para

    que o pesquisador transforme suas inquietaes iniciais em hipteses que originem ascategorias a serem analisadas. Ressalta-se a importncia de articular as significaes

    pertinentes a cada uma dessas categorias a fim de traar qualitativamente a releitura da

    realidade que compe o objeto de estudo6(ROCHA; DEUSDAR, 2005).

    Para contribuir na formulao das categorias de anlise foi necessrio apreender

    os conceitos fundamentais utilizados para problematizar as relaes raciais na sociedade

    brasileira conforme veremos adiante. A busca por elementos chave que componham um

    determinado conjunto de pensamentos sobre a questo etnicorracial uma concepo que se

    coaduna com a concluso de Carlos Moore (2007) de que as estruturas hierarquizantes dos

    grupos tnicos nas sociedades nos mais variados momentos histricos se ampara em

    pressupostos religiosos, filosficos e cientficos para justificar noes de superioridade dos

    grupos politicamente hegemnicos e a inferioridade dos grupos socialmente marginalizados.

    No caso especfico do Brasil, considerando que a populao negra sempre foi numericamente

    6A efetivao dessa trajetria na presente pesquisa ser mais profundamente desenvolvida no captulo relativo anlise das obras escolhidas (Captulo 3: A Educao das Relaes Etnicorraciais no Contexto dos LivrosDidticos de Lngua Portuguesa).

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    mais representativa que a populao branca foi ainda mais necessria a difuso do que o autor

    chama de mito-ideologia, entendido como clivagem composta por identidades

    inconclusas, flutuantes, e desconexas, que tm como imposio o referencial normatizador

    (MOORE, 2007, p. 200201). Esse pensamento surge com o objetivo de convencer aqueles a

    aceitar e legitimar sua prpria dominao. Estabelecendo uma ligao entre os postulados de

    Moore e os esquemas explicativos fruto das contribuies de outros pensadores explicita uma

    srie de referenciais normatizadores de uma ordem social baseada a manuteno de

    desigualdades que se confundem com as gradaes fenotpicas e de cor.

    Traando um panorama da evoluo dos mecanismos de discriminao

    baseados nesse tipo de critrio, o autor interpreta o refinamento das estruturas de poder

    voltadas para estabelecer a dominao de um povo sobre outro. Seu texto mostra como nos

    mais diversos perodos eram (e permanecem sendo) estabelecidos pressupostos religiosos,

    filosficos e cientficos tencionando defender a superioridade dos grupos tnicos

    detentores (ou pretensamente detentores) da supremacia poltica sobre os demais grupos

    tnicos nas relaes sociais e produtivas. Segundo ele os grupos hegemnicos constroem

    polticas para utilizar a legitimidade do Estado para promover mecanismos de conteno,

    de dissuaso e de represso para melhor dominar o grupo-alvo subalternizado. Diz ainda

    que so criadas e difundidas no imaginrio social uma srie de conceitos destinados a

    manter uma unidade monoltica do grupo vencedor, que cria para si aquilo que o autor

    denomina pelo termo mito-ideologia para acreditar (e fazer com que os outros tambm

    acreditem) numa pretensa superioridade ao passo em que atomiza e pulveriza qualquer

    tanto quanto possvel a coerncia grupal do grupo-alvo vencido, que passa a aceitar sua

    condio inferiorizada (cf. Moore, 2007).

    Um dos elementos estruturantes nessa construo das relaes raciais a ideia demiscigenao generalizada da populao. Fundamentalmente a mestiagem vai ser vista para

    alm de seu vis meramente biolgico, sendo encarada como um processo de posicionamento

    identitrio que mobiliza os indivduos tanto quanto possvel de acordo com seus traos fsicos

    apartados do grupo inferiorizado e inseridas no grupo hegemnico. Um carter eugenista de

    pensar a populao incentiva o embranquecimento fsico, cultural e poltico nas inter-relaes

    individuais e coletivas na sociedade, vista pelos tericos como hierarquicamente racializada.

    no Brasil o negro pode esperar que seus filhos sejam capazes de furar as barreirasque o mantiveram para trs, caso eles se casem com gente mais clara. [...] A polticae a ideologia de branqueamento exerceram uma presso psicolgica muito fortesobre os africanos e seus descendentes. Foram, pela coao, forados a alienar sua

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    identidade, transformando-se cultural e fisicamente em brancos. (MUNANGA,1999, p. 9394)

    A mestiagem como ideologia pulveriza as identidades raciais, sobrepondo-as por umaidentidade nacional que nega a historicidade de conflitos. O processo reconhecido como

    ambguo, exigindo constantes reflexes daqueles vitimados por suas injustias. Seu papel

    contribuir para que a populao negra se reconhea como inferior e almeje se igualar ao

    padro eurocentrado, considerado superior.

    A partir dessa viso, temos tambm a necessidade de identificar uma conceituao

    para cultura, sobretudo no que concerne cultura negra, vista como uma realizao humana

    comprometida com a expresso das singularidades inerentes aos indivduos ou aos grupos aque pertence. Sua importncia justamente atuar na construo de identidades e alteridades,

    fazendo com que o reconhecimento de quem somos ns e de quem so os outros.

    (SODR, 1988). Considerando o contexto de discriminaes e de violncias sofrido pela

    populao negra, a preservao e valorizao da prpria cultura representa um ponto

    extremamente relevante a ser levado em conta.

    A dissertao conta com trs captulos de desenvolvimento, alm da presente

    introduo e de sua concluso. O primeiro captulo intitula-se As Contribuies do

    Movimento Negro para a Construo da Educao das Relaes Etnicorraciais, ondebuscou-

    se contextualizar historicamente como o Movimento Negro tem reivindicado ao longo das

    ltimas dcadas a insero nos currculos escolares da rede oficial de Educao Bsica

    contedos como a Histria da frica e dos Africanos, a luta da populao negra no Brasil, a

    cultura negra nas suas mais diversas manifestaes, a contribuio dos afro-brasileiros na

    formao da sociedade nacional dentre outros pontos excludos ou pouco visibilizados em

    sala de aula.

    O segundo captulo intitula-se A Educao das Relaes Etnicorraciais a Partir

    da Lei 9.394/1996 e pretende discutir de que maneira o aparato legal e as polticas pblicas

    de Educao vm abordando a Educao das Relaes Etnicorraciais, desde as primeiras

    citaes em outras leis anteriores, passando pela LDB e pela Lei 10.639/2003 at chegar s

    regulamentaes especficas do tema. Esta anlise necessria no apenas para compor uma

    fundamentao terica ou para expor a reviso de literatura estabelecida para a pesquisa,

    constituindo uma contextualizao sociopoltica da realidade que envolve a construo do

    objeto.

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    A Educao das Relaes Etnicorraciais nos Livros Didticos de Lngua

    Portuguesa o ttulo do terceiro captulo. Inicialmente abordaremos a atuao do Plano

    Nacional do Livro Didtico na seleo, aquisio e distribuio dos livros didticos para os

    alunos das escolas da rede pblica, no somente como um processo de licitao e compra de

    materiais, mas debatendo a relevncia deste programa na construo de uma educao de

    qualidade socialmente referenciada e livre de preconceitos. No subtp ico Anlise de

    Contedo da Educao das Relaes Etnicorraciais nos Livros Didticos de Lngua

    Portuguesa do Ensino Mdio ser feita a anlise dos dados colhidos durante a pesquisa,

    expondo as interpretaes dos textos presentes nas colees estudadas seguindo a

    metodologia descrita anteriormente.

    Na Concluso sistematizaremos as consideraes decorrentes do dilogo entre o

    aporte terico que orientou previamente a pesquisa, os procedimentos metodolgicos

    utilizados para a sua aplicao, contexto observado acerca da realidade do objeto de estudo e

    as reflexes decorrentes da interpretao dos dados colhidos nos livros didticos analisados,

    consideraes estas que visam efetivamente acrescentar novos saberes sobre a educao das

    relaes etnicorraciais, possibilitando a realizao de estudos futuros que problematizem a

    mesma temtica.

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    2. AS CONTRIBUIES DO MOVIMENTO NEGRO PARA A CONSTRUO

    DA EDUCAO DAS RELAES ETNICORRACIAIS

    2.1. Escravizao e Quilombismo no sculo XIX

    A luta histrica da populao negra por sua plena cidadania atribui desde seus

    primrdios um grande destaque ao combate contra as ideologias construdas para justificar

    a hierarquizao dos grupos humanos com base em seu pertencimento tnico. A formao

    dos Movimentos Sociais Negros incorporou dentre suas reivindicaes a luta por educao

    pblica de qualidade por acreditarem que a escolarizao contribui para o fim do racismo e

    a construo da igualdade racial. No presente captulo buscaremos levantar essa trajetria

    de formulao dessas exigncias comuns por polticas pblicas na rea da educao

    mesmo considerando a diversidade de enfoques na busca de valorizao dos

    afrodescendentes.

    Durante o perodo escravista a busca pelo direito de acesso da populao negra

    educao era dificultada, pois existiam textos legais que coibiam a admisso de

    escravizados nos estabelecimentos de ensino atravs de artigos que, inclusive, colocavam-nos ao lado de pessoas acometidas por doenas contagiosas (cf. Decreto n 1.331-A, de 17

    de Fevereiro de 1854), demonstrando no s um desejo de manter a populao negra em

    sua posio de privao de cidadania como tambm um julgamento que compara o

    pertencimento tnico deste grupo a uma doena e a convivncia entre diferentes grupos

    como algo prejudicial ao seguimento hegemnico. Tratava-se de um obstculo a mais para

    o combate s exploraes sofridas ao longo o perodo da escravido.

    Apesar disso, importante ressaltar a existncia de aes no sentido de resistir

    a essa interdio formal por meio de variadas prticas de acordo com a regio e a posio

    socioeconmica dos envolvidos. Arajo & Silva (2005) demonstram os negros

    escravizados desafiavam a hostilidade dos senhores articulando-se em grupos de

    resistncia cultural que, dentre outras atividades, contribuam para a formao daqueles

    que tencionavam aprender a ler, escrever, calcular e dominar variados idiomas. Observam

    inclusive que as mobilizaes desta natureza por vezes incluam tambm as mulheres,

    atitude bastante avanada em relao educao formal, poca quase que

    exclusivamente voltada para o sexo masculino.

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    Um caso especfico de valorizao da educao por parte de movimentos

    negros ainda durante a escravido registrado tanto por documentos oficiais do perodo

    imperial quanto pelos relatos orais registrados pela produo cientfica posterior o do

    quilombo da Lagoa Amarela, liderado por Negro Cosme no interior do estado do

    Maranho durante o sculo XIX. Povoamento formado por cerca de trs mil pessoas

    libertadas das fazendas localizadas nas imediaes da ento comarca de Brejo, constitui a

    mais exitosa experincia de resistncia quilombola afromaranhense, tendo conseguido

    desestabilizar o status quo vigente. Cosme no se restringia aos papis de lder militar,

    poltico e religioso, mas tambm exercia as funes de lide intelectual ao criar durante a

    guerra da Balaiada7uma escola na comunidade.

    2.2. O princpio do sculo XX: Imprensa Negra, Frente Negra Brasileira e Teatro

    Experimental do Negro

    No ps-abolio podemos ressaltar o surgimento da Imprensa Negra como

    marco de busca pela educao. Verificada principalmente no estado de So Paulo, o

    movimento abrange diversas publicaes de periodicidade e durao variveis, mas que

    tinham em comum a denncia das discriminaes e violncias sofridas pela populao

    negra urbana, dada a invisibilidade do tema nos grandes jornais. A temtica maisrepresentativa desses jornais era a busca pela conscientizao, o enfrentamento dos

    mecanismos de segregao racial e a noo de que a formao possui papel central para a

    ascenso social do negro (cf. GOMES, 2005).

    Esses jornais eram inicialmente em sua maioria vinculados s associaes

    culturais, e gradativamente foram tomando um carter menos especfico em relao a tais

    instituies e cada vez mais abrangentes em relao ao contexto geral das relaes raciais

    na sociedade brasileira. Gonalves e Silva (2000) identificam nos peridicos das dcadas

    de 1920 e 1930 um marcante incentivo alfabetizao, instrumentalizao para o

    mercado de trabalho, divulgao de iniciativas de ensino promovidas por docentes e

    grupos negros, tanto para as crianas quanto para os adultos. Dentre os ttulos mais

    7 Insurreio popular ocorrida entre 1838 e 1841 envolvendo principalmente sertanejos e quilombolas, quelutando por democracia, pela cidadania e contra a pobreza, a escravido, a injustia social e o recrutamentoforado promovido pelo exrcito imperial. Iniciada no interior do Maranho, teve efeitos no Piau e no Cear.

    Dentre seus principais lderes destacaram-se o vaqueiro Raimundo Gomes, Francisco Ferreira (conhecidocomo Balaio) e o lder quilombola Negro Cosme. A revolta foi reprimida pela atuao do ento presidente daprovncia Lus Alves de Lima (futuro Duque de Caxias), que ofereceu anistia aos revoltosos que prendessemas tropas quilombolas de Cosme (cf. ARQUIVO PBLICO DO ESTADO DO MARANHO, 2001).

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    representativos os autores destacam os jornais O Alfinete, O Kosmo, A Voz da Raa, O

    Clarim dAlvorada, cujas contribuies deram um enfoque especfico mobilizao dos

    afrodescendentes. Podemos considerar como uma continuao e ao mesmo tempo

    aprofundamento da ideia levantada durante o perodo escravista que atribui educao o

    papel de arma contra o racismo e as manifestaes de discriminao racial, sendo

    fundamental para encontrar uma situao econmica estvel, e, ainda, para ler e

    interpretar leis e assim poder fazer valer seus direitos (Gonalves e Silva, 2000, p. 140).

    No mesmo perodo surge a Frente Negra Brasileira, considerada entidade

    pioneira do Movimento Negro contemporneo no pas. A exemplo dos demais grupos, a

    educao assumia papel central em seus programas e aes, resultando em um

    amadurecimento da mobilizao antirracista. Ao longo de sua trajetria conseguiu grande

    repercusso local (e posteriormente nacional), o que viabilizou a articulao de

    candidaturas para cargos eletivos. A experincia de lanamento da candidatura orgnica de

    Arlindo Vieira Constituinte de 1933 culminou no registro da Frente Negra como um

    partido poltico em 1936, o que poderia ter levado a uma insero das demandas da

    populao por polticas pblicas contra as desigualdades raciais menos tardia do que veio a

    ocorrer, mas o fechamento dos movimentos sociais pelo Estado Novo encerrou

    oficialmente seus trabalhos (cf. NASCIMENTO e NASCIMENTO, 2000).

    Ao longo de sua existncia a Frente Negra Brasileira montou uma escola

    elementar e incentivou cursos de alfabetizao e profissionalizantes com vias de contribuir

    para o progresso socioeconmico e a incluso daqueles que mesmo aps o fim da

    escravido permaneciam na camada subalternizada. O oferecimento desses servios

    configurava uma espcie de reparao paliativa, que combinada com as reivindicaes do

    grupo objetivava fazer com que o poder pblico assumisse o protagonismo nooferecimento de polticas similares (ANDREWS, 1998). Trata-se de um tema que era to

    caro instituio que constava artigos especficos em seu estatuto e um departamento em

    sua estrutura organizacional, o Departamento de Instruo e Cultura, alm de subvencionar

    cursos de alfabetizao de adultos, cursos profissionalizantes, dentre outras atividades. O

    entendimento era de que para promover a conscientizao poltica da populao negra

    sobre as ideias antirracistas seria norteadora da emancipao coletiva.

    Barbosa (1998) cita o artigo 3 do Estatuto da Frente Negra Brasileira, que fala

    sobre seus campos de atuao visando elevao moral, intelectual, artstica, tcnica,

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    profissional e fsica; assistncia, proteo e defesa social, jurdica, econmica e do trabalho

    da Gente Negra (Estatuto da Frente Negra Brasileira apud Barbosa, 1998; 110). Para

    executar tal objetivo o pargrafo nico prev a criao de escolas tcnicas e de cincias e

    artes, oferecendo espaos de estudo e capacitao que oferecessem ou complementassem a

    escolarizao formal de uma populao poca majoritariamente analfabeta devido

    ausncia de polticas pblicas especficas de incluso dos negros e das negras no ambiente

    escolar. A educao era vista como parte principal do desenvolvimento da conscientizao

    poltica almejada pela instituio.

    Ainda durante o perodo da ditadura Vargas surgiu um grupo do movimento

    negro que teve grande importncia na construo da educao das relaes etnicorraciais,

    que por ter uma atuao eminentemente cultural sofreu menos com a proibio de

    organizao social existente na poca8. Fundado em 1944 por Abdias do Nascimento, o

    Teatro Experimental do Negro prosseguia o histrico de lutas contra a discriminao

    racial. Inserindo a cultura como seu principal campo de atuao para a emancipao da

    populao negra, buscava integrar essa populao no contexto da arte dramtica.

    Caracterizando-se como um grupo de teatro formado unicamente por pessoas negras, teve

    seu escopo de trabalho ampliado pela necessidade de formar artistas e profissionais de

    apoio dentre uma populao de origem humilde composta por empregadas domsticas,

    operrios, motoristas e outros trabalhadores modestos (Nascimento, 1980).

    A histrica excluso da populao negra do ambiente escolar foi sentida de

    maneira ainda mais impactante pelo grupo, pois muitos dos integrantes no eram

    alfabetizados. Para superar esse obstculo foram organizadas aulas, que no se restringiam

    ao letramento lingustico, trabalhando tambm a formao poltica e identitria. Existiam

    inclusive experimentaes que transformavam o palco no local das aulas quepossibilitavam aos negros refletir sobre a questo racial e a sua marginalizao na

    sociedade brasileira (Nascimento e Nascimento, 2004).

    8Hall (2011) observa que para a populao negra a cultura tem uma importncia poltica de mobilizao contra adominao dos grupos etnicorraciais socialmente hegemnicos por atuar na formao de identidade positivadaapesar dos preconceitos historicamente difundidos.

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    2.3. As dcadas de 1970 e 1980: Movimento Negro no contexto de reabertura poltica

    O contexto de reabertura poltica iniciado na dcada de 1970 e aprofundado

    nos anos de 19809

    que oportunizou a rearticulao dos movimentos sociais foi o incio parauma longa (e ainda inacabada) sequncia de vitrias no que concerne formulao de

    documentos oficiais e de polticas pblicas que responsabilizam o Estado brasileiro a

    assumir uma postura ativa na erradicao das seculares e persistentes desigualdades raciais

    verificadas no pas.

    Uma das entidades surgidas nesse momento foi o Centro de Cultura Negra do

    Maranho, primeira organizao do Movimento Negro contemporneo no estado. Tem

    atuado com projetos pautados no combate ao racismo, no fortalecimento da identidade

    negra e na valorizao da cultura de matriz africana desde a sua fundao no ano de 1979

    (cf. SOUZA, 2012). Suas atividades ocorrem no s na sede da entidade, mas tambm em

    outras regies da periferia da capital maranhense ou em cidades do interior do estado,

    sobretudo nas comunidades remanescentes de quilombos com aes de carter educativo,

    poltico e cultural. A partir da so reivindicadas polticas pblicas que assegurem os

    direitos humanos.

    Estatutariamente o Centro de Cultura Negra se estrutura em programas que

    desenvolvem eixos especficos da questo racial. Souza (2013) compreende a instituio

    como um espao de educao no-formal que transmite conhecimentos historicamente

    excludos do currculo hegemnico. A prtica de projetos oriundos de grupos de diferentes

    culturas e trajetrias sociais refora suas identidades coletivas. Dinmicas mais

    tradicionais como palestras e oficinas so combinadas com outras como rodas de conversa,

    atividades culturais, vivncias prticas, dentre outras possibilidades que os espaos extra-

    escolares oferecem, proporcionando uma concepo mais globalizante acerca da temtica.

    Para esse propsito destaca-se o Programa Cultura e Identidade Afrobrasileira, que

    objetiva o fortalecimento da identidade e auto-estima negra a partir da cultura afro-

    maranhense (SOUZA, 2013, p. 32), compondo-se em grupos artsticos que formam

    atravs de saberes como a msica, a dana ou o acesso a outros saberes culturais.

    9Hasenbalg (1995) observa que entre 1964 e o final da dcada de 1970 ocorreu um refluxo dos movimentos

    sociais em geral no Brasil por conta do perodo de ditadura militar. As organizaes do movimento negro comorientao explicitamente mais poltica tiveram sua atuao dificultada, havendo tambm um desestmulo discusso acadmica sobre as relaes raciais na sociedade brasileira por meio da aposentadoria compulsriade diversos pesquisadores do tema.

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    2.4 A dcada de 1990 e a Conferncia de Durban

    A forma escolhida para reivindicar os direitos foi a organizao de fruns e

    seminrios, como o III Encontro de Negros das Regies Sul e Sudeste, em Vitria (ES)

    no ano de 1990, o III Encontro de Negros da Regio Centro-Oeste, em Cuiab (MT) no

    ano de 1991, e o Seminrio Nacional O Papel daCUT (Central nica dos Trabalhadores)

    no combate ao Racismo (cf. Santos, 2007, p.165), eventos em que a militncia e a

    intelectualidade negras formularam suas demandas e articularam-se junto a outros setoresdos Movimentos Sociais para encampar a presso ao Estado brasileiro por polticas

    pblicas de combate ao racismo e discriminao racial no interior de nossa sociedade.

    No ano de 1992 surge na capital maranhense o grupo intitulado Quilombo

    Urbano, movimento voltado para a mobilizao e conscientizao da juventude negra

    moradora de bairros de periferia da cidade e pertencente camada de baixa renda

    engajando-se na cultura Hip Hop10. A construo das identidades coletivas dos ocupantes

    de espaos urbanos perifricos produto da organizao tendo como parmetro a classe e a

    etnia. O Hip Hop caracteriza-sepela crtica e desconstruo de valores hegemnicos

    buscando edificar uma conscincia de transformao da realidade (MARTINS, 2005).

    Utilizando o Hip Hop para promover um processo de formao o Quilombo

    Urbano organiza a juventude com um arcabouo ideolgico que envolve o pensamento de

    demarcao das especificidades da populao afrodescendente. Para isso a entidade

    congrega tanto militantes individuais quanto grupos poltico-artsticos. Projetos

    envolvendo temas como drogadio, orientao sexual, segurana, polticas pblicas,

    relaes raciais por meio de debates, palestras, oficinas, fruns, passeatas, rodas de

    conversa, alm das prprias produes culturais (SANTOS, 2007).

    10 Manifestao cultural composta por expresses artsticas contemporneas oriundas das comunidades negras

    dos Estados Unidos que influenciou a forma de organizao da juventude de periferia em vrias regies ao redordo mundo. Utiliza as letras das musicas de Rap, a noo de corporeidade e os passos de dana do Break e aiconografia do Grafite para conscientizar sobre os efeitos das desigualdades sociais e raciais existentes nasociedade atual (FLIX, 2005).

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    Apesar da importncia desses e de outros eventos, inegvel que o momento

    mais significativo da dcada de 1990 foi a Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo,

    pela Cidadania e a Vida, realizada no dia 20 de novembro de 1995 em Braslia. Realizada

    na data do assassinato do lder quilombola Zumbi dos Palmares, a marcha foi um

    movimento de amplitude nacional que contou com a presena de mais de 30 mil pessoas

    unidas para combater os efeitos nefastos da discriminao racial e reivindicar polticas

    emergenciais para atender a populao negra (ENMZ, 1996).

    Das discusses encaminhadas formularam-se as grandes bandeiras de luta do

    Movimento Negro dali em diante, levando s duas reivindicaes principais j citadas. A

    repercusso do evento tomou tal dimenso que chamou a ateno do ento presidente da

    Repblica. Esse encontro foi de vital importncia para a sociedade afro-brasileira, pois

    teve um carter efetivamente propositivo. Mais que a revolta por conta de uma realidade

    de desigualdades, a Marcha foi um momento de deliberaes no sentido de viabilizar a

    transformao dessa realidade.

    Mais uma vez as lideranas dos Movimentos Sociais Negros denunciaram aogoverno brasileiro a discriminao racial, bem como condenaram o racismocontra os negros no Brasil. Mais do que isto, as lideranas negras dosMovimentos Sociais Negros no ficaram s nas e com as denncias, elasentregaram ao chefe de Estado brasileiro o Programa de Superao do Racismo eda Desigualdade Racial. (SANTOS, 2007, p.166)

    Esse documento se articula com polticas nos eixos de Democratizao da

    Informao, Mercado de Trabalho, Educao, Cultura e Comunicao, Sade, Violncia,

    Religio e Terra (cf. ENMZ, 1996). A luta pela incluso da populao negra na rede de

    educao formal corresponde, sem sombra de dvida, principal bandeira a partir desta

    dcada, seja no campo da melhoria da qualidade da educao como um todo, seja na

    incluso da temtica racial e da cultura negra nos currculos escolares ou nas aesafirmativas para a populao negra nas universidades. O contexto que se seguiu terminou

    por servir como preparao do Brasil para participar da Conferncia de Durban contra o

    Racismo, a Xenofobia e Discriminaes Correlatas, realizada no ano de 2001 na frica do

    Sul, em que o Estado brasileiro reconheceu a persistncia do racismo no pas e se

    comprometeu a tomar medidas no sentido de erradic-lo.

    Uma experincia surgida tambm na dcada de 1990 a dos cursos Pr-

    Vestibulares para Negros e Carentes, que objetivando aumentar a representatividade desses

    grupos entre o alunado do ensino superior, formaram redes nos bairros de periferia de

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    diversos estados brasileiros. Iniciativas nesse sentido foram promovidas tanto por grupos

    do Movimento Negro quanto por universidades, trazendo um vis amparado pelas polticas

    de aes afirmativas promovidas internacionalmente11. Uma caracterstica marcante desses

    cursos o voluntariado docente, demonstrando que a solidariedade e a busca pela

    integrao efetiva do grupo etnicorracial inerentes a tal ao de militncia contra o racismo

    e a favor da construo de um maior senso de pertencimento tnico (SANTOS, 2005).

    Uma abordagem no sentido de inserir no currculo escolar temas referentes s

    bandeiras histricas da populao negra busca romper com a invisibilidade e o recalque

    dos valores histricos e culturais de um povo (SILVA, 2005). As anlises acerca da

    prtica da educao das relaes tnico-raciais por parte de diversos autores tm

    comprovado que os materiais didticos apresentam referncias negativas, que reproduzem

    os esteretipos pejorativos costumeiramente atribudos populao negra. Verifica-se que

    um grande nmero de livros didticos reproduz como verdades cientficas esteretipos

    preconceituosos, cristalizando a autorrejeio e a baixa autoestima na subjetividade do

    grupo estigmatizado. O resultado a aceitao de sua subalternizao e o desinteresse por

    organizar-se politicamente contra as injustias sociais sofridas, legitimando as estruturas

    polticas vigentes.

    Como uma das formas de lutar contra esse processo de discriminao, o

    Movimento Negro, fundamentado na compreenso de que a educao a base sobre a qual

    estrutura-se a forma de pensar e agir de um povo, nunca deixou de ter no seu corpo de

    reivindicaes a plena insero da populao afro-brasileira no ambiente escolar.

    Entretanto, importante ressaltar que, mesmo com a quase universalizao da oferta de

    vagas s crianas e aos jovens atingida nos ltimos anos, permanecem as lutas nesse

    sentido, pois simbolicamente a escola perpetua a discriminao verificada no resto dasociedade. Ainda de vital importncia discutir o processo de colonizao intelectual a

    que estudantes negros estavam submetidos, as consequncias danosas dos contedos

    racistas dos currculos escolares, livros didticos, bem como as discriminaes raciais

    11Medidas tomadas pelo poder pblico ou pela iniciativa privada de combate s discriminaes por raa, cor,etnia, origem geogrfica, gnero, orientao sexual, religio, idade, deficincia fsica, dentre outras, buscando

    mitigaras desigualdades historicamente construdas de acesso a bens sociais, sobretudo (mas no unicamente) educao e ao mercado de trabalho (cf. SANTOS, LOBATO, 2003). Nascimento (2007) salienta a atuaodos pr-vestibulares para negros e carentes enquanto poltica de ao afirmativa voltada para universalizar odireito de acesso ao ensino superior, democratizando as relaes raciais.

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    sofridas pelos alunos negros no ambiente escolar, entre outras manifestaes (cf.

    SANTOS, 2007).

    Uma legislao educacional que se omita de discutir as relaes etnicorraciaisna sociedade brasileira acaba por contribuir para a persistncia de contedos curriculares e

    de metodologias de ensino que reproduzam ideologias preconceituosas. O acontecimento

    histrico que tornou inadivel uma mobilizao com vistas para o combate s

    desigualdades raciais no campo da educao na agenda pblica do Estado brasileiro foi a

    participao na III Conferncia Mundial contra o Racismo, a Discriminao Racial, a

    Xenofobia e as Formas Conexas de Intolerncia em Durban, na frica do Sul. O

    documento final determinou que as naes signatrias reconhecessem a necessidade da

    elaborao de currculos e de materiais didticos que reflitam a plenitude de sua

    diversidade tnica, sob pena de institucionalmente promoverem a discriminao racial (cf.

    MUNANGA, 2005).

    A Declarao e Plano de Ao adotados na Conferncia (ONU, 2001) traz a

    educao como um meio de efetivar vrias das polticas sugeridas com vistas para a

    superao do racismo. A educao tida como fator determinante para a disseminao de

    valores e comportamentos livres de racismo, xenofobia e intolerncias correlatas e para apromoo do respeito s diversidades. ressaltada no apenas a importncia da educao

    escolar (reconhecida como veculo de eliminao das desigualdades) como tambm a

    educao no-formal oriunda dos contextos familiares e de outras instituies sociais.

    O evento fez que se alterasse radicalmente o panorama da luta antirracista no

    Brasil. A conferncia teve como consequncia uma srie de mudanas na postura do

    Governo Federal, com importantes conquistas no princpio do sculo XXI. O tema da

    discriminao racial, sobretudo no ambiente escolar, foi includo na agenda nacional, com

    o prprio presidente da Repblica assumindo a necessidade de implementar polticas

    pblicas para a erradicao das desigualdades raciais na sociedade brasileira (cf.

    MUNANGA, 2005).

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    3. A EDUCAO DAS RELAES ETNICORRACIAIS A PARTIR DA LEI

    9.394/1996

    3.1 Da Constituio de 1988 Lei 9.394/1996: os antecedentes

    O primeiro documento oficial que pode ser citado justamente o mais

    importante texto desta natureza: a Constituio Federal de 1988. Destinada a instituir um

    Estado democrtico de direito fundamentado na dignidade da pessoa humana com vistas a

    promover a cidadania. Esta temtica colocada j no artigo 1 e retomado em diversos

    outros, dentre os quais destacamos como 3, 4, 5, 7, 23, 37, 43, 145, 165, 170, 201 e 204,

    uma determinao de que as instituies governamentais devem assumir uma postura de

    protagonismo no que concerne eliminao de preconceitos, discriminaes e

    desigualdades persistentes no pas (cf. BRASIL, 2012).

    A Seo I do Captulo III da Constituio trata especificamente da educao.

    Em seu texto esto colocados artigos que a apresentam como direito de todos e dever doEstado e da famlia, promovida em colaborao com a sociedade com vistas a preparar

    para o exerccio da cidadania. Seu carter emancipatrio reflexo de princpios como a

    igualdade de condies ao acesso, a liberdade de pensamento, o pluralismo de ideias,

    garantia de qualidade e da gratuidade do ensino oficial oferecido pelo poder pblico (cf.

    BRASIL, 2012). Evidentemente que a expresso de tais valores no texto no suficiente

    para eliminar a existncia de desigualdades e discriminaes no mbito da educao

    brasileira, mas configura um importante avano ao trazer um reconhecimento da imperiosa

    necessidade de erradicao de tais manifestaes de injustia social.

    Isso mostra um reflexo das tentativas de penetrao das demandas populares

    no aparato legal e as contradies que o Estado assume, pois ignora suas prprias

    convenes quando no for conveniente aos grupos dirigentes, mesmo nos regimes

    supostamente democrticos, teoricamente baseados em instituies slidas voltadas para

    buscar o bem comum. Se no jargo popular brasileiro diz-se que existem leis que pegam

    e leis que no pegam, interessante refletir a respeito do que leva artigos de to granderelevncia a permanecerem como letra morta. No caso de sociedades em que as

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    desigualdades perpetuam-se historicamente, sendo verificada a manuteno das mesmas

    posies apesar de oficialmente no mais existirem as barreiras mobilidade necessrio

    repensar at que ponto as ideologias oficialmente abolidas realmente foram apagadas da

    prtica social.

    Partindo dessa exigncia constitucional preciso levantar esta questo: o

    acesso e a permanncia ao ambiente escolar conservam-se imunes s especificidades dos

    diversos grupos sociais? Ou seja, possvel dizer que as desigualdades sociais (inclusive

    raciais) no interferem na formao dos indivduos? Se os estudos crticos em geral j

    apontaram para uma reposta negativa, as pesquisas especficas sobre as relaes tnico-

    raciais na educao reforam essa direo. O Brasil conta com uma extensa bibliografia,

    na qual se destacam os trabalhos acadmicos como os de Arajo & Silva (2005),

    Cavalleiro (2001), Domingues (2005), IBGE (2010), Munanga (2005), Nascimento (2007),

    Paixo (2008), Santos (2007), entre outros, demonstrando que as desigualdades raciais,

    sobretudo no que concerne discriminao no ambiente escolar e no mercado de trabalho,

    tm severo impacto negativo para a populao negra. Se j percebida a transposio da

    excluso deste grupo na sociedade em geral para a escola em particular, faz-se necessrio

    buscar mecanismos ideolgicos e pragmticos que insiram esse debate na sala de aula.

    A efetivao daquilo que vem exposto na Carta Magna depende da promoo

    de polticas educacionais especificamente direcionadas para a superao de estratificaes

    sociais em que os direitos individuais esto subordinados cor (ou ao gnero, religio,

    origem nacional, renda, dentre outros aspectos utilizados como critrio para excluir as

    pessoas). Tais polticas passaram por um longo caminho desde a sistematizao das

    demandas pelas populaes a serem atingidas at conseguirem sua incorporao ao texto

    constitucional, mas isso configura apenas um ponto de partida para sua execuo, pois sonecessrias leis que aprofundem e regulamentem institucionalmente sua aplicao.

    3.2 Da Lei 9.394/1996 Lei 10.639/2003: novos paradigmas

    A Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional o documento que

    apresenta a viso oficial de educao a ser institucionalizada pelas redes de ensino pblicas

    e privadas. Seu texto destaca tanto as bases filosficas que sustentam epistemologicamente

    o fazer pedaggico no pas quanto as diretrizes de execuo das polticas que visam sua

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    plena implementao. Estabelecendo concepes e funes sociais para educao e as

    responsabilidades e atribuies dos entes governamentais e particulares a LDB possui

    tamanha relevncia que mesmo seus mais de 90 artigos no foram capazes de abarcar toda

    a complexidade do tema.

    Mudanas epistemolgicas na concepo das finalidades dos variados nveis de

    ensino balizam a evoluo do texto. A educao vista enquanto processo contnuo de

    formao nas dimenses intelectual, cultural, social e humana, e no mais como uma mera

    instrumentalizao para o mundo do trabalho. A exigncia agora que os projetos

    pedaggicos preparem igualmente para a construo do exerccio da cidadania plena e da

    insero satisfatria na profissionalizao. O Ensino Mdio definido como etapa que

    finaliza a Educao Bsica que aprofunda e ressignifica os conhecimentos apreendidos

    anteriormente atravs de metodologias que democratizem o acesso aos saberes e que

    estimulem atitudes de iniciativa dos estudantes no processo ensino-aprendizagem.

    Apesar de todo o seu carter universalista, inclusivo e progressista a LDB em

    seu texto original pouco contribuiu para eliminao de contedos escolares e prticas

    pedaggicas que estereotipam a imagem do negro. Mesmo que o pargrafo 4 do artigo 26

    determine que o ensino de Histria levar em conta as contribuies das diferentesculturas e etnias para a formao do povo brasileiro, especialmente das matrizes indgena,

    africana e europeia (BRASIL, 2010, p. 23), a brevidade e a ausncia de especificao de

    metas ou de discusses relegam sua efetivao exclusivamente s iniciativas individuais

    dos educadores pela falta de polticas articuladas neste propsito.

    Mesmo antes da Lei de Diretrizes e Bases da Educao e da Conferncia de

    Durban j era possvel encontrar legislaes municipais e estaduais que apresentavam a

    incluso da temtica racial nos currculos escolares, sendo a maioria delas cerca de uma

    dcada anteriores lei que nacionalmente estabelece a mesma pauta. A exemplo das

    Constituies Estaduais do Maranho (Art. 262), da Bahia (Art. 275, IV e 288), do Rio de

    Janeiro (Art. 306) e de Alagoas (Art. 253), as Leis Orgnicas de Recife (Art. 138), de Belo

    Horizonte (Art. 182, VI) e do Rio de Janeiro (Art. 321, VII). A este aparato legal podemos

    acrescentar tambm as leis Municipais 7.685, de 17 de janeiro de 1994, de Belm, 2.251,

    de 30 de novembro de 1994, de Aracaju, e a 11.973, de 4 de janeiro de 1996, de So Paulo

    (cf. MEC/MJ/SEPPIR, 2005) . Essas conquistas pontuais demonstraram os anseios da

    populao negra nas mais diversas regies do pas em torno de uma reivindicao comum.

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    Nos ltimos anos, mais especificamente aps a implantao da nova Lei de

    Diretrizes e Bases da Educao (LDB, Lei 9.394/96) a comunidade escolar brasileira

    voltou a debater abertamente a importncia de uma educao crtica e voltada para que o

    aluno desenvolva no s a aquisio e o aprofundamento dos conhecimentos propostos,

    mas tambm tenha um ambiente que estimule a construo de sua cidadania. Nesta nova

    viso da aprendizagem, o estudo da linguagem, enquanto processo de socializao, voltou

    ao foco, pois

    considerada aqui como a capacidade humana de articular significados coletivose compartilh-los (...) que, uma vez assimilada, envolve os indivduos e faz comque as estruturas mentais, emocionais e perceptivas sejam reguladas pelo seusimbolismo. (PCN, 1997, p.5).

    A nova organizao curricular vista nos Parmetros Curriculares Nacionais

    (PCN) se ope viso tecnicista da legislao anterior (implantada pelo governo militar

    em 1971) que separava as aulas de lngua portuguesa em trs reas distintas: gramtica,

    literatura e redao. Essas competncias eram to isoladas no currculo que muitas

    escolas mantm professores especialistas para cada tema e h at mesmo aulas especficas

    como se leitura/literatura, estudos gramaticais e produo de texto no tivessem relao

    entre si (PCN, p. 16), diviso que permanece at hoje, no s no ensino mdio, mas

    tambm no interesse dos estudantes de licenciatura em letras e na dedicao dos

    professores que chegam ao mercado. Esta concepo segmentada considerada pelos

    estudiosos como uma das causas do fracasso do ensino da lngua em todos os nveis:

    muitos alunos passam da educao infantil para o ensino fundamental sem estarem

    alfabetizados, e deste para o ensino mdio com inmeras deficincias vocabulares e

    ortogrficas e no conseguem avanar para o ensino superior por no serem capazes de

    formular uma redao minimamente aceitvel para serem aprovados no vestibular.

    importante lembrar que a leitura de mundo e a compreenso do texto so

    competncias fundamentais para qualquer rea, pois independente da rea em que

    aprofundar seu interesse intelectual ou profissional, sempre atravs dos estudos a

    respeito das inmeras manifestaes em que se apresenta a linguagem, presentes sempre

    nas aulas de lngua portuguesa, que o indivduo realiza:

    o aprofundamento dos conhecimentos como meta para o continuar aprendendo;o aprimoramento (...) como pessoa humana; e a formao tica e o

    desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crtico comflexibilidade, em um mundo novo que se apresenta, no qual o carter da LnguaPortuguesa deve ser basicamente comunicativo. (PCN, p. 71)

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    Os Parmetros Curriculares Nacionais do Ensino Mdio surgem com o

    objetivo de sistematizar o currculo escolar nos moldes da legislao vigente, que incentiva

    uma transmisso de conhecimento de maneira contextualizada, significativa, global e

    interdiscipinar. Desse modo a educao dotar os estudantes das competncias bsicas para

    que possam inserir-se em sua vida autnoma. A mudana estrutural na abordagem dos

    contedos prope uma formao generalista que desenvolva a capacidade de utilizar os

    diferentes saberes nas situaes em que se mostrarem necessrios (BRASIL, 2012). O

    papel da educao em uma sociedade em que o conhecimento tem importncia central nos

    processos produtivos compreender de que maneira as atividades simblicas tornam-se

    instrumentos de excluso. A lei determina que sejam incorporados quatro alicerces

    estruturantes no pensamento pedaggico na contemporaneidade: aprender a conhecer,aprender a fazer, aprender a viver e aprender a ser. Sobretudo os di ltimos eixos,

    voltados para a construo de si e do outro, relacionando-se assim mais fortemente

    questo etnicorracial.

    3.3 Da Lei 10.639/2003 aos dias de hoje: a implementao

    A Lei n 10.639/2003 surge como um reflexo dessa histrica reivindicao da

    populao negra por uma educao que no mais apresente influncias implcitas ou

    explcitas de ideologias racistas. Evidentemente uma iniciativa que busca romper com

    prticas amparadas em seculares estruturas de poder no aceita nem efetivada sem

    disputas. Instituir a Educao das Relaes Etnicorraciais no Ensino Bsico desperta uma

    srie de resistncias por parte dos atores sociais envolvidos, sejam elas oriundas da simples

    omisso ou da aceitao dos conceitos pejorativos que atacam a populao negra. Se a

    certeza da inferioridade dos afro-brasileiros socialmente construda com fundamentos

    que no raras vezes so reproduzidos em materiais didticos e nos discursos e aes de

    professores, gestores e redes de ensino, o esforo para construir uma nova educao que

    contemple com equidade todos os grupos tnicos presentes na sociedade nacional.

    Aps mais de um sculo de reivindicaes da populao negra organizada

    exigindo polticas pblicas de carter compensatrio do legado da escravido superada e

    da discriminao persistente, promulgou-se a Lei n 10.639, que estabelece as diretrizes ebases da educao nacional, para incluir no currculo oficial da Rede de Ensino a

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    obrigatoriedade da temtica Histria e Cultura Afro-Brasileira (BRASIL, 2003). Ainda

    que essa diretriz no possa ser considerada plenamente cumprida, apenas o fato de sua

    existncia j oportuniza uma grande perspectiva de mudana, pois implica o

    estabelecimento de um canal de dilogo afrocentrado em um ambiente historicamente

    eurocntrico. Apenas recentemente tornou-se consenso na Academia a relevncia do

    carter social do processo ensino-aprendizagem, mas o Movimento Negro j h sculos

    anseia para seu povo o direito a uma escolarizao ampla e de qualidade, por entender que

    a educao, mesmo que no seja a nica via de mitigar tais desigualdades, demonstra

    relevante papel na busca de uma verdadeira democracia onde todos os grupos tnicos,

    religiosos, de gnero, ou de quaisquer outras naturezas possam ter seus direitos

    reconhecidos e respeitados.

    A incluso da temtica racial na lei maior da Educao nacional, como j dito

    anteriormente, abre espao para a institucionalizao de polticas para viabilizar o

    contedo da determinao legal. O estabelecimento de pensamentos e prticas pedaggicas

    antirracistas passa pela implantao de contedos curriculares anteriormente distantes da

    realidade escolar, mas h tempos propostos pelo Movimento Negro. O Conselho Nacional

    de Educao promoveu com a finalidade de melhor reconhecer tais reivindicaes

    consultas junto a representantes destes grupos por meio da aplicao de questionrios. A

    partir da foram formuladas as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao das

    Relaes Etnicorraciais e para o Ensino de Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana

    atravs do Parecer CNE/CP n 003, de 10 de Maro 2004 e da Resoluo CNE/CP n 01,

    de 17 de Junho de 2004, que regulamentam a Lei 10.639/2003 (cf. MEC/MJ/SEPPIR,

    2005).

    Os documentos acima citados possuem extrema relevncia por trazerem aconceituao da Educao das Relaes Etnicorraciais devidamente contextualizada por

    meio do debate do histrico das desigualdades raciais na sociedade brasileira, da

    apresentao de dados estatsticos que comprovam a persistncia de tais desigualdades e da

    citao das contribuies da produo cientfica que objetiva analis-las e das

    mobilizaes polticas empreendidas para fazer sua denncia. Atravs de tal procedimento

    obtm-se uma srie de justificativas para o acrscimo destes novos contedos.

    O Estado se coloca no Parecer CNE/CP n 003, de 10 de Maro 2004 como

    promotor e incentivador de polticas reparatrias que garantam de maneira indistinta o

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    acesso educao e ao pleno desenvolvimento profissional dos indivduos e grupos

    vtimas de injustias e discriminaes. Para isso a educao deve romper preconceitos e

    privilgios e garantir indistintamente o pleno desenvolvimento enquanto pessoas, cidados

    ou profissionais ao valorizar a diversidade em suas inmeras manifestaes. O sucesso de

    tais iniciativas depende necessariamente de condies educacionais, fsicas, materiais,

    intelectuais e institucionais favorveis compreenso de que a sociedade formada por

    pessoas que pertencem a grupos etnicorraciais distintos, que possuem cultura e histria

    prprias, igualmente valiosas e que em conjunto constroem de maneira efetiva a histria

    do pas apesar de todas as desqualificaes que sofrem (MEC/MJ/SEPPIR, 2005, p. 10-

    25).

    A conduo dos objetivos apresentados no Parecer traz como aes concretas

    de combate ao racismo e s discriminaes a serem incorporadas pelos sistemas de ensino,

    pelos estabelecimentos e pelos profissionais da educao atravs de princpios pedaggicos

    que fortaleam as identidades, os direitos e a conscincia poltica e histrica da

    diversidade. Dentre os encaminhamentos propostos existe o incentivo da anlise crtica das

    representaes dos grupos minoritrios feita nos materiais didticos por parte dos docentes

    subsidiados por condies de pensarem, decidirem e agirem de maneira responsvel frente

    construo de relaes etnicorraciais positivas no ambiente escolar.

    J a Resoluo CNE/CP n 01, de 17 de Junho de 2004 determinam a

    observncia da temtica por parte das instituies de ensino que atuam nos diversos nveis

    e modalidades da educao brasileira, sobretudo aquelas que desenvolvem programas de

    formao inicial e continuada de professores. As Diretrizes Curriculares Nacionais para a

    Educao das Relaes Etnicorraciais e para o Ensino de Histria e Cultura Afro-Brasileira

    e Africana so constitudas no texto como orientaes, princpios e fundamentos visandoplanejar, executar e avaliar a educao. Seu objetivo construir uma nao democrtica

    que valorize igualmente os diversos grupos etnicorraciais formadores da sociedade

    brasileira (MEC/MJ/SEPPIR, 2005).

    Recomenda-se aos sistemas de ensino o estabelecimento de canais de

    comunicao com grupos polticos, culturais e acadmicos que possam fornecer subsdios

    para aprofundar a compreenso da comunidade escolar acerca da temtica por meio da

    troca de experincias que instrumentalizem para a formulao de planos e projetos

    pedaggicos abrang