do constitucionalismo social ao desconstitucionalismo
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Amicus Curiae V.8, N.8 (2011), 2011
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Do constitucionalismo social ao desconstitucionalismo neoliberal: uma
análise da historicidade do movimento constitucional no início do século
XXI sob uma perspectiva da reconstrução fraternal do humanismo
Maurício Muriack de Fernandes e Peixoto1
Resumo
A relevante evolução histórica, ideológica e política do movimento constitucionalista, cujo
vigor e persuasão revolucionaram o mundo ocidental, no final do século XVIII, através da
revogação do modelo absolutista por um modelo de limitação do poder por uma Carta
Constitucional; as características e limitações do constitucionalismo liberal-clássico e o
surgimento do constitucionalismo social, através do novo perfil de valores assumidos pela
Constituição no século XX e o papel que se reservou ao Estado e ao indivíduo como
instrumentos dinâmicos da histórica constitucional; o retrocesso do constitucionalismo de
cunho neoliberal da última década do século XX e da primeira década do século XXI; as
grandes fases constitucionalistas: o constitucionalismo liberal, o constitucionalismo social e o
constitucionalismo neoliberal ou “regulador”. O exsurgir de um novo direito constitucional.
Palavras-chave: história; constitucionalismo; reconstrução; humanism; século XXI.
Abstract
The relevant historical, ideological and political evolution of the constitutionalist movement,
whose force and persuasion revolutionized the Occident, at the end of the 18th century,
through the revocation of the absolutist model for a limitation model of power by a
Constitutional Charter; the characteristics and limitations of the liberal-classical
constitutionalism and the emergence of the social constitutionalism, through the new profile
of values assumed by the Constitution in the 20th century and the role reserved to the State
and to the individual as dynamic instruments of the constitutional history, the regression of
the neo-liberal constitutionalism in the last decade of the 20th century and first decade of 21st
century; the great constitutional periods: the liberal constitutionalism, the social
constitutionalism and the neoliberal or “regulator” constitutionalism. The rise of a new
Constitutional Right.
1 Advogado da União de Categoria Especial. Mestre em Ordem Constitucional pela Universidade Federal do
Ceará (2000), Ex-professor substituto da UFC (1996/1998) e ex-Professor da Universidade Católica de Brasília
(1999.2 a 2010.1).Professor do curso de direito da UNESC. Professor do Curso de Pós-Graduação Lato Sensu
em Direito Público da ATAME-GO. E-mail: [email protected]
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Keywords: history; constitutionalism; reconstruction; humanism andtwenty-first century.
Introdução
Neste trabalho científico estudaremos a evolução histórica no âmbito do movimento
político, social e jurídico denominado de “constitucionalismo”, ou seja, a busca pela edição de
Constituições que viessem a regular as relações entre o Estado e os indivíduos e, em relação a
estes últimos, também entre si.
Visualizaremos que o primeiro constitucionalismo histórico foi o liberal, veremos quais
foram suas virtudes e desacertos e estudaremos qual é o atual movimento constitucionalista no
começo deste século XXI, no mundo ocidental.
Este texto, por perfunctório, tem por escopo situar os influxos de idéias e valores que
fundamentaram a edições de Constituições na história universal e na brasileira, em particular.
1. O constitucionalismo clássico-liberal e a história das constituições no século XIX
Constitucionalismo é o movimento histórico de tentativa e efetivação de implantação da
idéia de se ter uma Constituição a regular, limitar, organizar e ditaras relações de poder e a
estrutura e atuação do Estado perante a sociedade e os indivíduos.
Sob esta perspectiva histórica, constitucionalismo foi o movimento doutrinário e
ideológico que encontrou na promulgação de constituições escritas - ou na elaboração
paulatina de constituições costumeiras ou consuetudinárias, a possibilidade de limitação dos
poderes arbitrários de umEstado Absolutista, garantindo-se assim uma esfera jurídica de
liberdade para o indivíduo e partindo da premissa de que era necessário uma norma
fundamental que fosse obedecida por todos, imposta pelo Poder Estatal ao próprio Poder
Estatal, representando, assim, uma espécie de auto-limitação consentida e formalizada dos
Poderes Institucionais do Estado.
Segundo Kildare Gonçalves Carvalho,
[...] o constitucionalismo, como doutrina, envolve a necessidade de uma
Constituição escrita para limitar o poder e garantir a liberdade, seja porque esta
Constituição deve proclamar os direitos fundamentais do homem e apresentar-se
como uma norma imposta aos detentores do poder estatal, seja porque elaobterá o
equilíbrio necessário a que nenhum deles possa acumular poderes e eliminar a
liberdade. Nesse sentido, o constitucionalismo é dotado de um conjunto de
princípios básicos destinados à limitação do poder político em geral e do domínio
sobre os cidadãos em particular. O constitucionalismo é um arranjo institucional que
assegura a diversificação da autoridade, para a defesa de certos valores
fundamentais, como a liberdade, a igualdade e outros direitos individuais. Como
ideologia, pode-se dizer que o constitucionalismo compreende os vários domínios da
vida política, social e econômica: neste sentido o liberalismo é constitucionalismo.
(GONÇALVES, 2006, p.167)
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E, por fim, arremata de forma contundente o mesmo autor: “O constitucionalismo
consiste na divisão do poder, para que se evite o arbítrio e a prepotência, e representa o
governo das leis e não dos homens, da racionalidade do direito e não do mero poder”
(GONÇALVES, 2006, p.167).
Portanto, o constitucionalismo - na medida em que representou a pressão histórica pela
adoção de uma técnica jurídica de limitação do poder estatal e de garantia de esfera jurídica
individual para o cidadão, através da concepção de Constituição nos diversos países -, trata-se
de um movimento que repercutiu no mundo e fez com que, a partir das Constituições
Estadunidense e Francesa, do final do século XVIII, o ser humano passasse a visualizar uma
efetiva e concreta opção institucional de poder em contraste com o absolutismo real.
No entanto, não obstante sua relevância histórica, como o constitucionalismo foi um
movimento patentemente liberal em sua origem inicial - haja vista que na sua gênese
mantinha recôndito o interesse político, econômico e social da burguesia, classe social então
em ascensão, pois com a imposição da Constituição se impunha a segurança jurídica
necessária à garantia do direito de propriedade e de liberdade econômica e contratual
imprescindíveis para os negócios -, é relevante salientar que, posteriormente, apenas em
meados do século XX, com a Constituição mexicana de 1917 e a Constituição Alemã de
Weimar, em 1919, surgiu um novo tipo de constitucionalismo, exatamente voltado a
preencher as lacunas e omissões que o constitucionalismo inicial – ou liberal – não quisera ou
não pudera (por suas limitações ideológicas) colmatar e preencher.
Ora, com efeito, podemos sintetizar desta forma as características das Constituições
Liberais-Clássicas produzidas com base no movimento constitucionalista clássico do século
XIX, ou seja, eis as Características básicas das Constituições Liberais:
1ª - Declaração de Direitos fundamentais de cunho meramente individualista e limitada
a enunciar direitos civis e políticos, garantidores, principalmente, dos direito de liberdade e
propriedade;
2ª - Enumeração de um Princípio da Separação de Poderes com um viés neutro (o poder
estatal é dividido em três: executivo, legislativo e judiciário, com instrumentos limitados de
atuação) - criava-se um Estado neutro.
3ª - Reduzida parcela de atribuições designadas ao Estado (criava-se para o Estado o
mínimo possível de tarefas, ou seja, dado o mínimo de poder e obrigações).
Enfim, estas características eram evidentemente insuficientes para as necessidades da
sociedade como um todo, embora fossem elogiosas para o ponto de vista da ideologia liberal
dos grandes empresários do século XIX e até mesmo para a acomodação dos interesses
políticos entre as antigas classes dominantes (nobreza e clero) e a nova predominância (a
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burguesia), motivo pelo qual se fez continuamente necessário um novo movimento
doutrinário e ideológico que teve por função tentar complementar os pontos fracos do
primeiro movimento constitucionalista, o constitucionalismo liberal-clássico, o qual, não
obstante tenha afastado o absolutismo estatal-monárquico, que vigia até o fim do século
XVIII, não era eficaz em resolver outros problemas relevantes para a sociedade, criando-se
um hiato entre a realidade e a previsão constitucional liberal e clássica que predominou
durante todo o século XIX e início do século XX.
Podemos, assim, falar de um movimento ulterior e complementar, de transição e de
transformação: do constitucionalismo liberal-clássico para o constitucionalismo social, que
trouxe a efetiva mudança no perfil das Constituições Ocidentais, desde Weimar-1919, que, se
não foi a primeira Constituição Social, foi a mais influente, deixando seu legado de
preocupação com a efetivação de direitos sociais, econômicos e culturais e a assunção, pelo
Estado, de atribuições interventivas na ordem social, política e econômica que não se
coadunaram com movimento constitucionalismo clássico inicial do final do século XVIII,
todo o século XIX e início do Século XX.
O Mundo evoluíra, e as necessidades do constitucionalismo também: surgiu o
constitucionalismo social e o WelfareState – o Estado Providência, o Estado de Bem-Estar-
Social.
2. O longo caminho para a implementação do constitucionalismo social no século II: da
função social da propriedade ao Welfare State (Estado de Bem-estar Social)
Como explicamos no item anterior, não obstante sua relevância histórica contra o
absolutismo estatal e monárquico, o pensamento liberal-clássico se impôs no plano
ideológico, adentrando no domínio econômico, político, social e no das finanças públicas,
caracterizando, pelo constitucionalismo clássico, uma atividade estatal a ser exercida de um
modo estéril, amorfo, inteiramente desvinculada de qualquer outra finalidade que não fosse a
garantia da propriedade, da liberdade e da segurança jurídica, militar e da ordem pública
interna. A atuação do Estado deveria ser mínima, a ponto de não embaraçar a livre atuação do
capital, o acúmulo de rendas e as próprias necessidades econômicas, porquanto somente os
particulares encontrar-se-iam aptos a conduzir, de modo espontâneo, interna corporis, o
próprio mercado e tal seara da existência humana, bem ao estilo da “teoria do
espontaneísmo” da mão invisível de Adam Smith e a idéia fisiocrata do laissezfaire e
laisssezpasser (deixa fazer e deixa passar).
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O Estado limitava o poder absoluto dos reis, mas não tinha instrumentos efetivos reais
para combater as novas formas de dominação política apresentadas pelo liberalismo político
clássico.
Portanto, dominava a cena, no plano político-constitucional, um formalismo espúrio que
procurou alçar a liberdade individual como ponto nodal da atividade estatal, econômica e
política, independente de outros conceitos jurídicos defendidos durante a revolução francesa e
que foram então escanteados, tais como a igualdade e a fraternidade/solidariedade.
A conseqüência de tal ordem constitucional liberal era a prevalência única de direitos
fundamentais de primeira geração, de cunho civil e político, que se apresentavam como
direitos contra o Estado, limitadores da atuação do Estado, tal como o direito de liberdade de
contrastar, levado a suas últimas conseqüências contra um exército de desempregados da
revolução industrial que se submetiam às mais nefastas condições sociais e de trabalho,
chegando a laborar sete dias da semana, por dezoito horas consecutivas.
Assim, vigia na estrutura política do constitucionalismo vigente e nas próprias finanças
públicas um “formalismo constitucional” que presumia serem iguais perante a lei o capitalista
e o proletariado/assalariado, uma falsa liberdade para contratar a seu bel-prazer - que recebeu
de Anatoli France uma reprimenda por demais irônica e reveladora – e uma absolutamente
inverídica auto-regulação do mercado em um ambiente de livre concorrência ideal - que
nunca existiu - e de uma lei de oferta e procura(Lei de Say), a qual não levava em
consideração a super-produção e o sub-consumo, descritos de modo milenar pela filosofia
não-liberal.
Nesse sentido, a atividade política do Estado seria correta na medida em que não
permitia qualquer política intervencionista ou mesmo reformista-redistributiva da sociedade e
dos meios de produção e de riqueza/renda: o orçamento neutro e o absenteísmo estatal eram a
grande panacéia para a pureza, espontaneidade, atuação eficiente e incolumidade do próprio
mercado, como se não existissem problemas de exageros no próprio ambiente mercadológico.
A estrutura jurídica deste constitucionalismo liberal era marcada pela prevalência da
preocupação enfocada unicamente na liberdade jurídica e na proteção absoluta do direito de
propriedade – visto como perpétuo e ilimitado -, e até mesmo a estrutura judiciária se cingia à
garantia do individualismo processual.
No entanto, a própria realidade, paulatinamente, foi-se demonstrando
incompatível/incompossível com as formulações idealizadas pelos clássicos liberais. Alguns
dos liberais, inclusive, já fomentaram as primeiras dúvidas a respeito da plausibilidade da
construção filosófico-econômica do liberalismo, como David Ricardo e Stuart Mil
(FALCÃO, 1981).
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Destarte, a própria exploração econômica e social dos assalariados, de uma forma
contundente e verdadeiramente acintosa, aos poucos, tornou-se injustificável, tão dantescas
eram as mazelas – trabalho infantil diário, ausência de férias e repouso semanal, jornada de
trabalho de dezoito horas, salários aviltados, más condições de segurança, higiene e
salubridade nos locais de labuta, a representarem ameaças à saúde dos trabalhadores, etc –,
oriundas da falsa premissa de que os assalariados aceitavam livremente/contratualmente as
condições impostas pelos patrões.
Logo, a doutrina científica de Marx e Engels, sucedendo ao socialismo utópico de
vários autores – que não lograram firmar uma teoria sistemática a respeito do assunto -, com o
seu manifesto comunista de 1848, e a obra “O Capital”, através de um diagnóstico correto e
bem delimitado, augurou desencadear uma reação teórica de resistência à realidade e
pensamento liberal clássicos, ensejando-se, naquela oportunidade, uma verdadeira profecia
maledicente ao capitalismo: as crises seriam imanentes ao modo de produção capitalista,
porquanto este último, ao privilegiar de modo absoluto a concentração de renda e capital,
possuiria em seu cerne um inevitável subconsumo, fruto de uma superprodução, o que
acarretaria a quebra do ciclo produtivo, porque, em algum momento, a oferta se tornaria maior
do que a procura(os consumidores-assalariados não teriam meios pecuniários de adquirir os
produtos - que eles mesmos produziram); o mercado encontrar-se-ia exaurido, esgotado, e a
recessão ou retração daí advindas provocariam falências múltiplas, desemprego, fome e
mortes – e, mediatamente, até conflitos bélicos, como se verificou, realmente, entre outros
eventos, com a grande crise do capitalismo mundial com a quebra da bolsa de Nova York em
1929.
Até mesmo da Igreja Católica, pelas mãos do Papa Leão XIII, e sua magnânima
encíclica RerumNovarum - que culminou naquilo que a doutrina denomina de “doutrina social
da Igreja”, vieram críticas acerbas à realidade e doutrina liberal clássica, salientando, no caso,
que tal investida se resumia a propagar uma maior “cooperação harmônica” entre as classes
sociais, restando subjacente uma condenação aos exageros do capitalismo-liberal sem, no
entanto, aceitar as idéias comunistas, consideradas anti-democráticas.
Assim, quer no campo puro dos entrechoques de idéias, quer no terreno sofrido da
realidade das classes proletárias, a denominada questão social foi sendo incorporada de tal
problemática, que ficou impossível ao Estado e à Constituição Liberal perdurarem um
comportamento absenteísta ou meramente observador das atividades privadas.
Estávamos diante da modificação ou passagem do Estado Liberal para o Estado Social,
cuja intervenção no domínio econômico foi a reação imediata e mediata às revoltas e ao
sangue derramado no mundo inteiro pelas classes espoliadas.
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Obviamente, tal processo de substituição do constitucionalismo liberal-clássico por um
constitucionalismo social, mais voltado ao bem-estar das pessoas que ao bem-estar dos
negócios, não ocorreu de modo instantâneo, modificando-se a profusão e velocidade de
acordo com casuísmos geográficos e culturais.
Destarte, já na Alemanha de Oto Von Bismark, no último quartel do século XIX,
encontraremos as primeiras concessões previdenciárias aos trabalhadores, historicamente, em
face da realidade, historicamente constatável, da sempre maior presença do Estado Alemão.
A própria Despesa Pública, em um orçamento que deixou de ser neutro, nesse diapasão,
tomou a indeclinável tendência ao aumento e inchaço, quando o Estado passa a desenvolver
atividades nos planos econômicos e sociais que requisitavam, outrossim, uma maior
arrecadação, incrementando-se assim a atividade financeira do Estado, como constatado por
Cláudio Martins:
[...] conseqüência inevitável da evolução dos povos é, sem dúvida, a hipertrofia dos
gastos públicos, a qual se observa em todos os países civilizados do globo, qualquer
que seja a sua forma de governo. Explica-se: o crescimento incessante das
populações, o desenvolvimento da riqueza, o progresso colossal da arte da guerra, os
serviços públicos de grande monta, a assistência social, as medidas preventivas de
toda ordem e tudo o mais caracteriza o Estado arquiempreendedor de nossos dias
têm acarretado um aumento considerável das necessidades coletivas, dando lugar
este fato a um aumento igualmente considerável da despesa pública. (MARTINS,
1988, p, 57)
Tal tendência, entretanto, somente veio a se solidificar de uma maneira profunda e
arraigada após os acontecimentos históricos da primeira guerra mundial, da Constituição
Mexicana de 1917 e da Constituição de Weimar de 1919, e, finalmente, com a crise capitalista
advinda da quebra da bolsa de Nova Iorque, em 1929, quando se tornou impossível,
ideológica e materialmente, continuar a executar um ideário puramente capitalista-liberal nas
regras constitucionais clássicas até então estabelecidas.
O Estado passa a intervir nas relações sociais e econômicas, concebendo a criação de
autarquias, de sociedades de economia mista e empresas públicas, assim como procurando
dilargar de modo assaz detectável a sua prestação de serviços públicos, diretamente ou por
intermédio de concessionários das atribuições estatais. Esta ampliação das atividades estatais,
nos campos do serviço público, do poder de polícia e da intervenção no campo econômico,
deram espaço ao fenômeno do Welfare State, o Estado de Bem-Estar Social, que não se
eximia de atuar diretamente no frontispício do mercado, para domá-lo e mesmo salvá-lo.
O surgimento do Estado de Bem-Estar Social, fruto de gradual evolução, com a
complexidade que o caracterizou, augurou um dinamismo crescente da atividade financeira do
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Estado. Em suma, o agigantamento das dimensões social, econômica, jurídica e administrativa
do Estado repercutiram sobremaneira na então inexorável medida do fenômeno do aumento,
concomitante, da faceta constitucional-política, na medida em que este aumento era oriundo
deste novo movimento constitucionalista social.
Logo, o novo Constitucionalismo Social absorvia todas as transformações da
humanidade, com a implantação do voto universal – derrocada do voto censitário, capacitário
e sexista, quando o sufrágio restrito cede espaço para o sufrágio universal, permitindo a
participação política de todos os eleitores, independe do sexo, do grau de instrução e da
capacidade econômica de cada um-, com as novidades tecnológicas na produção e em todos
os campos do conhecimento humano; tais fatores desembocaram nas inúmeras pressões
sociais, inclusive revoluções, revoltas, greves e protestos da mais variada ordem, forçando o
Estado Liberal Clássico a desistir de sua atitude neutra e absenteísta, para passar a atuar de
forma mais significativa para os cidadãos, com o intuito de promover a distribuição de renda e
de melhores condições de vida para todos.
Na verdade, uma correta exegese do posicionamento constitucional pusilânime do
estado desvela que a aparente neutralidade apenas ocultava uma opção ideológica pelo
conservadorismo e a manutenção integral da sociedade da maneira como assim a aprovava as
classes privilegiadas; ocorria, naturalmente, uma influência das idéias liberais no campo da
concepção política das Constituições Clássicas do século XIX, que se tornou insustentável no
então novel século XX.
Assim, o verdadeiro golpe de misericórdia no constitucionalismo liberal clássico foi
dado pelas Constituições mexicana, de 1917, e alemã, de 1919 (Weimar), as quais
consagraram a função social da propriedade como contraponto do direito de propriedade
absoluto, perpétuo e ilimitado. A tese da função social da propriedade foi a relevante inflexão
no plano constitucional para submeter os interesses individuais à supremacia do interesse
coletivo, abrindo espaços para que o foco nos direitos de liberdade fosse substituído pela
busca da igualdade, da igualação, através de vários mecanismos jurídicos, sociais, políticos e
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econômicos, consagrando-se não apenas os direitos fundamentais de primeira geração, mas
também as suas noviças dimensões 2.
Surgem, nesse esteio, no novo Constitucionalismo Social, os direitos fundamentais de
segunda geração, impondo ao Estado que promovesse a saúde, a educação, a moradia, o lazer,
o trabalho, o desenvolvimento econômico, a proteção do meio-ambiente e outras atividades
bem distantes de uma feição absenteísta ou neutra.
No plano teórico da política econômica, Jonh Maynard Keynes pregava o orçamento
deficitário - para o horror dos puristas neutrais -, porquanto somente com uma cooperação
estatal extra no campo da despesa pública seria possível reequilibrar o mercado, o qual, a
despeito das teorias liberais clássicas, não poderia per si resolver os seus problemas internos e
que culminaram na indescritível e inolvidável crise da quebra da bolsa de Nova York, em
1929.
Deveras, o aumento das despesas públicas era previamente compensado com o
planejado endividamento público, o que trouxe a dívida pública, como mola-mestre do
mecanismo keynesiano, a um patamar de relevância nunca dantes aferível na atividade
2Gerações ou Dimensões dos direitos fundamentais: são as diversas tipologias de direitos fundamentais que
foram sendo reconhecidos na história política universal. Segundo Paulo Bonavides (Curso de Direito
Constitucional, 2010, pp.560-580) existem as seguintes gerações ou dimensões:
1a geração dos direitos fundamentais (direitos civis e políticos; direitos da liberdade) – Oriundos do Liberalismo
político e cultural, têm cunho marcantemente individualista, eram proteções básicas ao indivíduo, à sua liberdade
e propriedade; direitos políticos e civis, direito à propriedade, direito à vida e à liberdade em suas várias facetas.
Esses direitos têm um “status” negativo perante o Estado, porque eles são basicamente limitações ao estado,
porque impõem proibições e abstenções ao Estado, ao qual resta vedado agir de forma a limitar a esfera jurídica
do indivíduo.
2a geração dos direitos fundamentais (direitos econômicos, sociais e culturais; direitos da igualdade ou da
igualação) – Oriundos do constitucionalismo social do século XX, são caracterizados pelo valor igualdade, da
busca pela justiça concreta para todos, de igualdade material e real e não apenas a igualdade na “forma da lei”.
Têm um cunho coletivista, repercutem para várias coletividades, são direitos coletivos que extrapolam a noção
meramente individual. Têm “status” positivo perante o Estado, porque não apenas representam limitações à
atuação do Estado(como os direitos da primeira geração), mas, adicional e diferentemente, exigem prestações
positivas por parte do Estado para concretizar o bem estar do indivíduo. Exigem prestações de fazer por parte do
Estado, se quer um Estado atuante, pró-ativo. Exemplos de direitos de segunda geração: direito à educação e à
saúde. Exige que o Estado tome a iniciativa.
3a geração dos direitos fundamentais (direitos da solidariedade ou fraternidade) - Têm por fundamento mais
relevante a busca da fraternidade ou da solidariedade. Também são detentores de um status positivo que
alcançam os direitos difusos, são aqueles que não podem ser determinados a um único indivíduo a uma
coletividade determinada, pois atingem a todos: são exemplos: o direito à paz, direito a autodeterminação dos
povos, direito ao desenvolvimento econômico, direitos de conservação do meio ambiente e do patrimônio
histórico e cultural mundial e, finalmente, o direito à comunicação (o direito de acesso aos meios de
comunicação).
4a geração de direitos fundamentais – São direitos de existência ainda polêmica. Interessariam a toda
humanidade. Seriam os direitos universais a serem ainda alcançados no século XXI: São exemplos: o Direito à
informação (direito não apenas a ter meios de comunicação, mas de receber informações verídicas da mídia
eletrônica), o Direito ao pluralismo (direito de tolerância às multiplicidades, políticas, culturais, ideológicas,
sexuais, étnicas), Direito à Democracia semidireta (participação mais ativa do povo, utilização mais freqüente de
plebiscitos e referendos).
5ª Geração: relacionada à universalização do direito à paz, visto como a síntese dos direitos de todos os povos,
em outro patamar, à auto-determinaçãoe à soberania, efetivando-se de maneira fraternal, justa e livre o
desenvolvimento humano e nacional.
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financeira estatal, muito embora seja indispensável salientar que o contrair de empréstimos
públicos visava a investimentos estatais que deflagariam uma influência contundente no
campo da economia “real”, não-especulativa, diminuindo-se a crise econômica e política, no
geral, e o desemprego, em particular, com o aumento global da atividade econômica, por
intermédio da execução direta de obras públicas, do estímulo público direto e indireto de
atividades particulares e de todas as cadeias de reciclagem e reprodução econômicas
desencadeadas e, por fim, pelo inchaço do próprio Estado, que, de certa forma, tenta virar
uma espécie de empresário preocupado com interesses coletivos.
Empreende-se assim uma mudança gradual das atividades constitucionais do Estado,
cujas funções econômicas em geral, deixaram de ser simplesmente garantidoras da segurança
do sistema político, para atuar direta e decisivamente na resolução dos problemas das pessoas.
Surge, assim, o Estado de Bem-Estar-Social (WelfareState), o Estado-Providência,
principalmente, após a segunda Guerra Mundial, na Europa Ocidental, tendo, no plano
político-econômico, com repercussão social, as seguintes principais funções:
a) a função alocativa, ou seja, a tarefa de subsidiar a atividade econômica em setores ou
momentos em que a iniciativa privada ou o sistema de mercado não fosse eficiente ou
interessado em agir, quando o Estado provisiona bens e serviços, ora os produzindo, ora os
financiando através de itens orçamentários públicos, tentando, desta forma, concretizar
direitos sociais, econômicos e culturais;
b) função distributiva, retificadora das distorções criadas pelo mercado, através da qual
o Estado utilizaria de seu orçamento público para redistribuir a renda, propiciando por
exemplo a educação universal gratuita, a previdência pública, a assistência social contundente
e até a capacitação profissional planejada(com bolsas de estudo em certos setores),
procurando, contudo, melhorar a situação de alguns indivíduos, menos felizardos, sem atingir
ou deteriorar a situação dos indivíduos mais abastados – é a nova política social do Estado,
prevista expressamente na Constituição Social moderna do welfarestate;
c) função estabilizadora, manejando o Estado o seu aparato financeiro/orçamentário no
sentido de estabilizar o mercado através basicamente de quatro escopos macroeconômicos:
manutenção de elevado nível de emprego, com busca efetiva da situação ideal de pleno
emprego; estabilidade nos níveis de preços, combatendo a inflação e contribuindo para refrear
impulsos lucrativos exagerados ou mesmo manter a rentabilidade de algumas atividade
econômicas, de modo estrutural ou conjuntural/sazonal; manutenir o equilíbrio no balanço
de pagamentos, imprescindível para os setores públicos e privados lograrem êxito; e,
finalmente, a busca de razoável taxa de crescimento e desenvolvimento econômico,
manejando sempre, em todos os quatro objetivos, instrumentos orçamentários-
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financeiros(inclusive, e principalmente, os tributários e o fomento social e econômico),
monetários e cambiais
Logo, o constitucionalismo social, que substitui o constitucionalismo liberal-clássico,
produziu uma nova Constituição, chamada por Canotilho (1995) de “Constituição-Dirigente”
ou “Constituição-Programa”, à medida em que a própria norma constitucional impõe ao
Estado a concreção de metas, tarefas e programas de natureza pública com o objetivo de
concretizar os direitos fundamentais de segunda geração (direitos sociais, econômicos e
culturais, mantendo e confirmando os direitos civis e políticos de primeira geração que já
existiam) e a função social da propriedade, bem como vem a legitimar a intervenção do
Estado na propriedade e nas atividades econômicas, disso resultando o deslocamento do eixo
constitucional da esfera da liberdade para outros dois pólos de mesma estatura: os valores
jurídicos da igualdade e da solidariedade.
Exemplo deste novo perfil constitucional é o artigo 3º, inciso I, da atual Constituição
Republicana de 1988, a qual estabeleceu ser um dos objetivos fundamentais do Estado
Brasileiro a construção de uma sociedade “livre, justa e solidária”.
O Constitucionalismo social representou importante avanço da humanidade, muito
embora se deva reconhecer ter passado o Estado-Providência uma profunda crise
institucional, simbolicamente representada pelo marco temporal do colapso do bloco soviético
e a derrubada do muro de Berlim, abrindo espaços e ensanchas para uma nova figura que
representa um Pêndulo histórico de certo retorno ao ideário liberal clássico: o Estado
Neoliberal do Século XXI.
3. A crise do constitucionalismo social ao final do século XX e um novíssimo fenômeno: o
constitucionalismo neoliberal do século XXI
O Estado Neoliberal, bem como sua filosofia político-constitucional, irrompem com
força nos últimos anos do século XX, na década de 90, em decorrência, basicamente, de três
fatores: o colapso do bloco de países socialistas, o que refreou as pressões políticas sobre o
modelo capitalista liberal; as dificuldades do Estado de Bem-Estar Social(WelfareState), no
tocante ao financiamento de sua larga base de beneficiários, com a implosão do
assistencialismo estatal na previdência social, na saúde e na educação; a ocorrência de uma
nova fase de globalização, desta feita, mais relacionada à universalidade dos meios de
comunicação e à ampla mobilidade do capital financeiro especulativo e de produção.
Realmente, a queda do muro de Berlim, em 1989, simbolizou o fim da paz armada,
essência da guerra fria que travaram durante décadas as duas superpotências mundiais: os
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EUA e a U.R.S.S., cada qual com suas propostas e modelos estatais, estando o primeiro
relacionado ao grande depositário das idéias de liberdade do capital, e o segundo vinculado à
estatização da economia e dos fatores de produção – o modo de produção comunista, que se
provou inválido na prática histórica, reveladora de seu fracasso.
Ora, no átimo em que deixou de existir a natural pressão da “Cortina de Ferro” sobre o
Ocidente capitalista, naturalmente, as idéias de expansão e inversões ad infinitumdo capital
econômico voltaram à tona com toda a força, permeando a denominada pax americana com a
característica triunfante das idéias que defendiam exatamente a mistificação da auto-
regulamentação do mercado, com o fracasso das idéias socialistas de toda ordem, por terem
sido demonstradas, historicamente, inviáveis de concreção, criando-se um vácuo ideológico e
político que foi imediatamente ocupado pelo ideário neoliberal, ao ponto de doutrinadores
como Francis Fukuyama decretarem “o fim da história”, como se a humanidade já houvesse
chegado ao final de sua evolução constante e devesse, a partir deste ponto neoliberal, voltar a
ficar inerte.
Além do fim do modelo socialista, opção exterior ao mundo capitalista, também
naufragou a experiência inicial do modelo capitalista interventivo, de base keynesiana, opção
interna do capitalismo dito “social”, fruto da filosofia política mais amena trazida pelo
constitucionalismo social, tendo por base jurídica a função social da propriedade, a garantia
de direitos fundamentais de cunho social, cultural e econômico e o estabelecimento de metas
estatais de igualação e solidariedade social, jurídica e econômica;nesse sentido, nos estertores
do século XX, passou a demonstrar autênticos sinais de esgarçamento, a requerer
reformulações em suas estruturas principiológicas de universalismo assistencial e cobertura
social para todos, com os problemas atuariais da previdência social, com as problemáticas no
modelo de prestação de saúde e educação disseminadas e a falência do modelo de relações
sociais trabalhistas.
Ao invés de mudanças específicas no WelfareState, no intuito de adequá-lo à nova
realidade e melhorar seus pontos fracos, principalmente, fruto do sucesso do Estado de
Providência em evoluir a vida das pessoas, resultando na explosão demográfica e no
envelhecimento de uma população que passou a ter mais tempo de vida, optou-se em se
desbancar a essência do regime de bem-estar social– intervencionista, desenvolvimentista e
redistribuidor da renda nacional – para implementar uma nova estrutura capitalista com
caracteres diferentes, conforme veremos, com importantes reflexos no campo do
constitucionalismo social, o que passou a ser substituído por um constitucionalismo
neoliberal, o grande fenômeno do início do século XXI.
Amicus Curiae V.8, N.8 (2011), 2011
13
Sobre a crise do Estado de Bem-Estar-Social, observa de forma conclusiva Fernando
Herren Aguillar:
Nos países centrais, a partir da década de 80 passou-se a referir ao Estado
Providência como instituição em crise. A provisão estatal de seguro-desemprego, de
assistência social sem custo, incluindo setores como saúde e educação, previdência
social, etc, deu origem, ao longo dos anos, a enorme déficit orçamentario, cujas
conseqüências nefastas começaram a se fazer sentir apenas algum tempo após a sua
instituição. Ainda que se reconheça que tais medidas cumpriram seu papel
conjunturalmente, o sistema é generalizadamente tido por inepto, ineficiente,
deformador moral e inibidor do desenvolvimento da economia privada. O fenômeno
da crise do Estado de Bem-Estar Social ocupou lugar preponderante na produção
teórica sociológica, econômica e jurídica dos países centrais nos últimos anos.
Fomentou o ressurgimento vigoroso do neo-liberalismo, das teorias autopoéiticas,
do discurso privatista, do individualismo metodológico, coincidindo historicamente,
não por acaso, com o declínio veloz das economias planificadas no painel político
do planeta. (AGUILLAR, 1999)
Quanto à globalização, como terceiro e último fator de eclosão do novo modelo de
constitucionalismo que nos é contemporâneo - o constitucionalismo neoliberal, no esteio da
filosofia política e econômica do movimento neoliberal -, entendemos que a mesma (a
globalização) se trata de um fenômeno complexo, a incluir seus tentáculos tanto no campo da
gênese causal como no plano dos efeitos.
Ora, ao mesmo passo em que a globalização foi propiciando o desencadear da ampla
aceitação do modelo neoliberal, se possível, constitucionalizando seu ideário, em especial, a
teso do Estado Mínimo em vários países, concomitantemente, na medida em que vários países
aderiam de modo relativo ou absoluto ao novo modelo – sempre em tendência crescente – o
fenômeno da globalização foi se aprofundando, em uma verdadeira profecia auto-realizável.
Não é à toa que o fenômeno da globalização está sempre associado às idéiasneo-
liberais: parecem, sob o inflexo inicial de uma olhadela superficial, se manifestar em uma
relação de autodependência. De uma certa forma, ideologicamente, para os neo-liberais,
ressoa interessante que ocorra essa confusão conceitual, porquanto dá a impressão de que o
neo-liberalismo, no plano filosófico e constitucional, também é um dado histórico não-
eventual.
No entanto, como contraponto a esta ideia difundida, notamos que existe uma sutil
imprecisão ou equívoco proposital, fartamente utilizado pelo novo constitucionalismo
neoliberal: globalização e neo-liberalismo não se confundem – muito embora se apresentem,
em nossos dias, estreitamente interligados -, sendo teoricamente possível existir processo de
globalização em um ambiente mundial infenso ao neoliberalismo.
Entretanto, o constitucionalismo neoliberal apoderou-se do fenômeno de globalização
das comunicações e da informática – com ênfase no seu aspecto de tecnologia -, instigando-o
Amicus Curiae V.8, N.8 (2011), 2011
14
como ferramenta de sua própria produção ideológica. Em outras palavras, inexorável era tão-
somente a globalização, em face do desenvolvimento dos meios de comunicação entre povos
e nações, principalmente, o fenômeno da internet, ocorrendo nítida apreensão do fenômeno
pela filosofia neoliberal.
Nesse sentido, no tocante à particularidade de que globalização e neoliberalismo não se
confundem, proclamamos a mesma lição do conspícuo e nunca assaz louvado Paulo
Bonavides, in verbis:
Tocante à globalização do neoliberalismo, cabe assinalar judiciosamente que se trata
de uma impostura deste final de século(...). Nunca deixou de haver globalização,
antes e depois da era cristã. (...). A globalização em curso no mundo contemporâneo
se compreende melhor como espécie, e não como gênero. Posta em termos de
rigidez que exclui alternativas e inculca determinismo e fatalidade, privando a
sociedade da esfera onde ela exercita a autodeterminação, o livre arbítrio e a
soberania, a globalização é absolutamente falsa(...). É tão-somente expressão do
tempo. E como tal é fugaz: traz em si mesma o germe da transitoriedade, ínsita a
todas as coisas e situações que o elemento histórico processa, qualifica e faz
perecível(...). A conclusão básica que fazemos é, portanto, a seguinte: a
globalização em si ninguém pode remover. Mas o seu modelo sim; basta afastá-
lo e instituir outro. (bonavides, 1999, pp. 15/16) (grifos nossos)
Portanto, o modelo neoliberal de “globalização”, ou simplesmente a utilização furtiva
dos novos e revolucionários instrumentos tecnológicos, por parte dos ideólogos neoliberais,
para reforçar e reafirmar o predomínio cultural, social, político e econômico de um modelo
injusto e passível de correção, nos faz imaginar um mundo “não-neoliberal” em que a
globalização fosse utilizada para harmonizar os povos, e não para espoliá-los, ou seja, um
mundo onde a inovação da era digital e dos supercomputadores fosse instrumento de redenção
do ser humano, e não do capitalismo financeiro mundial neoliberal – um direito fundamental
de quarta ou quinta geração3!
É forçoso reconhecer que o liberalismo é transitório e que a globalização tecnológica e
da comunicação é uma conquista de toda a humanidade, muita embora tenha sido manietada
para a utilização apenas no seio da ideologia neoliberal, apropriada que foi como integrante de
sua máquina de divulgação, inclusive, midiaticamente planejada.
Aliás, impende alinhavar que a grande característica do fenômeno neo-liberal é a
excelência e primazia do capital financeiro. Se ao tempo do mercantilismo a burguesia
comercial foi a classe econômica poderosa; se na filosofia liberal clássica a burguesia
3O inefável professor cearense, em sua visão vanguardista e profética, afirma, na última edição de sua obra
essencial “Curso de Direito Constitucional”, 26ª edição, em 2010, que a nova dimensão, fraternal e
universalizante do direito à paz, representa a quinta dimensão ou quinta geração de direitos fundamentais
(Bonavides, 2010, pp. 579-593).
Amicus Curiae V.8, N.8 (2011), 2011
15
industrial era sobranceira, ao tempo atual do neo-liberalismo as “finanças” são o grande ponto
de apoio e poder do capital.
Notadamente, os efeitos políticos da globalização se fazem sentir de um modo que
causa espécie. O redesenhar das fronteiras nacionais, com o conseqüente desprestígio da idéia
de soberania nacional – na essência da obra clássica de Machiavelli – é observado pela
criação de blocos econômicos que se submetem a uma jurisdição transnacional, subvertendo-
se as vetustas estruturas teóricas do monismo jurídico. Ademais, a ingerência dos grandes
conglomerados oligopolísticos transpassam a impressão de que não há como resistir ao
capital. O próprio Estado se transforma em uma simples ferramenta dos oligopólios multi-
nacionais, ao se submeter invariavelmente a seus interesses, máxime, nos países
“emergentes”, com especial ênfase no campo da tributação, onde a evasão fiscal se torna
oficializada.
Outrossim, o capital se torna de tal forma tão fugidio que é comum as empresas
capitalistas de grande porte mudarem suas fontes de produção de tempos em tempos. A
mobilidade do capital é especialmente drástica no tocante ao capital financeiro transnacional
especulativo.
Nesse sentido, pontua Flávio Dino de Castro e Costa, in literis:
De fato, a globalização ora vivenciada põe em cheque o paradigma de Estado
adotado pelo constitucionalismo nos últimos dois séculos, posto que,
transnacionalizaram-se, junto com a economia, as fontes de produção normativa,
cujo controle sempre foi visto como fundamental para a existência de uma Nação
soberana.
Considere-se, por exemplo, que os dez maiores grupos empresariais do mundo
faturam 1 trilhão e 400 bilhões de dólares, o que é superior à soma do Produto
Interno Bruto dos países do Mercosul. Esta realidade econômica confere a eles um
poder formidável, inclusive para impor políticas aos Estados „soberanos‟.
Neste passo, não é exagerado afirmar que hoje os conglomerados econômicos
escolhem a juridicidade a que serão submetidos. Caso as leis tributárias, ambientais
ou trabalhistas em vigor em determinado país não mais os agradem – e se o sistema
jurídico tiver eficácia suficiente para combater os comportamentos ilícitos – é
relativamente simples a eles modificar a rota de seus investimentos, até mesmo para
forçar a revisão de tais regras incômodas. (COSTA, 1998, p.234)
De qualquer forma, o fenômeno da globalização “neoliberal” - e por conseguinte, a
adoção do modelo constitucional neoliberal - é um fato concreto que não se pode deixar de
reconhecer como realidade (embora não se possa deixar de criticar), e significa:
a) a redução em geral da presença do Estado, e em especial, na gradativa redução
da participação e empenho do Estado na concretização dos direitos sociais, econômicos e
culturais;
b) a abertura de mercados, a liberdade aduaneira(entra e sai de mercadoria nos
portos de um país, exportando e importando);
Amicus Curiae V.8, N.8 (2011), 2011
16
c) a desregulamentação de atividades econômicas para que os próprios agentes as
fiscalizem e as controlem sob parâmetros internos do próprio mercado;
d) a conspurcação e mitigação da idéia de soberania nacional ou soberania interna
para padronização de mecanismos jurídicos, políticos e econômicos de forma “institucional”;
e) a eliminação dos sentimentos nacionalistas ou xenófobos, confundidos de
forma estratégica;
f) criação de estruturas de produção em escala mundial;
g) crescente aprimoramento/otimização das tecnologias, adentrando-se
definitivamente na vanguardista era digital, obviamente, apenas com as “digitais neoliberais”,
por enquanto resultando na integração universal dos meios de comunicação – transformando
o mundo em uma aldeia global informativa – e propiciando a existência de capitais
financeiros especulativos, extremamente rentosos, que parasitariamente circulam
incessantemente o globo terrestre, em todos os países, todos os dias, à procura do melhor
negócio a curto prazo;
h) desconstitucionalização de matérias do interesse do capitalismo financeiro4, e
feitura de reformas constitucionais ininterruptamente5, de forma a retirar ou mitigar os direitos
sociais, econômicos e culturais e para construir um arcabouço jurídico de desregulamentação
normativa do interesse do grande capital financeiro, utilizando-se do método não-
maquiavélico de fazer vários capítulos de modificação constitucional como uma ferramenta
sorrateira e paulatina, para dificultar o vislumbre completo de todo o fenômeno, obstando a
criação de massa crítica ou, mesmo impedindo a divulgação de idéias em contrário;
Por outro lado, no plano das relações sociais, o novo constitucionalismo neoliberal se
caracteriza pelo aprimoramento das tecnologias de produção, adicionada à tendência de
terceirização e terciarização(adensamento do setor econômico terciário ou prestador de
4 Na experiência constitucional brasileira, podemos citar o advento da Emenda Constitucional nº 40/2003, a qual
remeteu à disciplina da lei complementar praticamente toda a regulamentação da ordem financeira, retirando da
Constituição princípios e regras que poderiam ser utilizados ou invocados para restringir a liberdade dos agentes
financeiros. 5 Podemos mencionar que, entre 1995 e 2004, em um breve período de dez anos, foram realizadas quase 40
emendas à Constituição Brasileira (da Emenda 05/95 à Emenda 45/2004).
Sobre as digitais neoliberais na arquitetura desse processo ob-reptício de mudanças constitucionais, invocamos o
testemunho sempre atento do mestre Paulo Bonavides, a respeito do primeirp ciclo de emendas constitucionais
de nítido caráter neoliberal (as emendas 05/95, 06/95, 07/95 e 08/95), in verbis:
“Todas essas Emendas constitucionalizaram a dependência do País, um crime que jamais a ditadura militar de
1964 ousou perpetrar, pois os seus generais-presidentes – faça-lhes justiça – eram quase todos nacionalistas.
Aceito e aplaudido por algumas elites como o determinismo do fim do século XX, o neoliberalismo arvora a
ideologia de sujeição, para coroar, como uma fatalidade, a abdicação, nos mercados globais, da independência
econômica do país” (Bonavides, 2010, p. 677).
Amicus Curiae V.8, N.8 (2011), 2011
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serviços), produz novas feições na mais-valia “moderna”, além de acarretar um crescente
desemprego e aumento do EIR – (Exército Industrial de Reserva6).
Como forma de afastar-se cada vez mais da classe espoliada, concebe-se a aparente
conjunção de interesses entre o grande capital e o empregado, estimulado a ter o seu “negócio
próprio”, servindo aos novos interesses empresariais hegemônicos. Outrossim, ocorre o
fenômeno da flexibilização e desregulamentação das relações de trabalho(flexibilização das
relações trabalhistas), retornando-se à antiga conjuntura de total “liberdade” nos pólos
relacionais de empresários e “locadores de serviços - autônomos”.
A respeito destas novas técnicas de exploração do trabalhador no esteio do movimento
neoliberal, é importante destacar as observações de Manfredo Araújo de Oliveira, in literis:
O capitalismo atual não é o mesmo capitalismo do século XIX ou aquele que
vigorou no período do pós-guerra até o final dos anos sessenta ou início da década
de setenta. Hoje, o capital revolucionou sua estrutura produtiva ao ponto de tornar o
trabalho vivo evanescente dentro da estrutura produtiva da empresa. Por conta disso,
o trabalho direto, imediato, não é mais a unidade dominante dentro das unidades de
capital. E não é mais porque essas unidades retêm as tecnologias mais sofisticadas e
avançadas, a alma do segredo da produção, e repassam para trabalhadores, tornados
„independentes e autônomos‟, a tarefa de produzir o grosso do produto. Com isso,
abre-se espaço para novas relações de compra e venda de trabalho, onde os
sindicatos, se não estão ausentes, tornam-se, pelo menos, supérfluos, num mundo de
produtores independentes de mercadorias, dominados pelo sentimento de liberdade,
independência e autocontrole de si mesmos.
É isso que faz dessa nova forma de produção a forma mais adequada ao modo de
produção capitalista. (OLIVEIRA, 1996, p. 74)
Ainda, urge frisar que as características neo-liberais apresentam algumas pequenas
modificações nos países do capitalismo periférico: muito embora não estejamos acedendo à
vergastada “teoria da dependência”, a verdade é que as conjunturas diversas entre países ricos
e pobres sempre desvelam sutilezas desta natureza de relativa submissão a interesses
alienígenas7.
Assim, podemos elencar como características teóricas e práticas da filosofia neo-liberal,
no esteio da economia e do sistema jurídico constitucional,especificamente em relação aos
países emergentes, muitas vezes até de forma imposta pelos Organismos Internacionais, tais
como Fundo Monetário Internacional (FMI) e Organização Mundial do Comércio (OMC):
6Exército Industrial de Reserva (EIR): corresponde ao quantitativo de pessoas que ficam desempregadas e que
estariam dispostas a receber qualquer salário para voltar a trabalhar, gerando um efeito de permanente pressão
sobre quem está empregado, que se submete a condições de trabalho menos vantajosas por ter receio de perder
seu emprego. 7 Nesse sentido, Paulo Bonavides defende a idéia de que “em países periféricos não vinga Estado de Direito sem
Estado Social” (Bonavides, 2010, p. 588), a querer dizer que não haverá Estado Democrático de Direito nos
países emergentes sem que se logre obter a efetivação dos direitos fundamentais em todas as suas gerações e
dimensões.
Amicus Curiae V.8, N.8 (2011), 2011
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a) redução das despesas (no campo dos serviços públicos) e do déficit público primário
(que não inclui o pagamento de juros do serviço da dívida pública), ou seja, o Estado
Emergente é obrigado a não gastar na concreção dos direitos sociais e econômicos e nos
investimentos públicos necessários ao desenvolvimento sustentável para que “sobre” -
superávit – recursos financeiros, cada vez mais crescentes, que serão utilizados no pagamento
de juros básicos bem mais altos do que os valores pagos pelos países “já emergidos”,
alimentando a cadeia de especulação financeira regional e global;
b) congelamento de salários nominais e queda do salário real, haja vista que salários
altos podem acarretar consumo maior e inflação maior, além de reduzir os lucros das
empresas e dos investidores nas bolsas de valores, que têm a prioridade!8;
c) liberalização dos preços de bens e serviços, diminuindo-se o poder de fiscalização
estatal sobre a economia com o ideário subjacente de que o próprio mercado saberia conduzir
melhor a política de preços setorial da economia;
d) restrições no crédito financeiro ao consumidor e aumento das taxas de juros
correspondentes, com o objetivo de criar um torniquete monetário de “combate à inflação”;
e) eventual valorização artificial da moeda nacional e abertura sem planejamento
estratégico e setorial ao comércio exterior;
f) abertura - aos bens importados - brutal, imediata, sem planejamento estratégico ou de
seletividade, gerando quebradeira na produção industrial interna;
g) estímulo ao consumo de bens supérfluos, suntuários ou o consumo do “luxo”, com
péssimas repercussões na poupança interna e gerando emissões de lucros de empresas
multinacionais;
i) aumento da dívida pública com a proliferação indiscriminada do crédito público, com
sufocamento financeiro do país no pagamento do serviço da dívida, normalmente, contratada
com um período de maturação9 bastante curto e em condições especialmente desvantajosas
para o devedor;
j) recessão provocada pelo aumento da taxa de juros e conseqüente fortalecimento do
capital financeiro em detrimento do capitalismo industrial e comercial, com destruição do
parque de produção nacional e do mercado real intern;
8 Nesse diapasão, ressaltamos a infeliz previsão constitucional de imunidade tributária aos investidores
estrangeiros ao pagamento da hoje extinta Contribuição Provisória sobre a Movimentação Financeira – CPMF,
idealizada pelo artigo 85 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT. Ressalte-se: assalariados
e aposentados pagavam o tributo, especuladores financeiros internacionais, estavam livres de tal ônus, e sem
sequer o conhecimento da grande massa de contribuintes e cidadãos brasileiros! 9Período de maturação: é o tempo estabelecido contratualmente para que a dívida seja paga; quanto maior o
período, maior a liberdade do país em conduzir sua dívida pública; em média, nos anos 90, o Brasil teve período
de maturação de dois anos para pagar sua dívida, criando um círculo vicioso, pois para pagar a tempo a dívida
anterior, era obrigado a fazer novas dívidas, em condições sempre mais desvantajosas; a título de comparação,
nos Estados Unidos da América, o período de maturação médio é de trinta anos.
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19
k) retorno gradual ao modelo primário ou secundário exportador, com o declínio do
modelo substitutivo de importações que busca o estímulo à tecnologia local e prioriza a
indústria, tornando o país dependente da cotação de seus bens agropecuários;
l) patente intervenção federal no campo monetário e cambial, levando à política cambial
e monetária a posições ortodoxas de defesa da moeda com sacrifício do crescimento
econômico e da garantia da empregabilidade da população economicamente ativa;
m) indiscriminado e não-estratégico processo de desestatização(privatização), com
venda de segmentos que não oneravam o campo da despesa pública, ou mesmo, opostamente,
incrementavam as receitas estatais patrimoniais com o seu superávit e lucro; privatização só
por motivos ideológicos;
n) aumento do percentual do Produto Interno Bruto(PIB) sujeito à tributação, para fazer
face ao aumento de gastos com pagamento de juros da dívida pública;
o) diminuição da tributação das pesas jurídicas concomitante ao aumento da tributação
das pessoas físicas, principalmente, o assalariado, produzindo o aumento da desigualdade
tributária e fiscal, enriquecendo uns e empobrecendo ainda mais outros, inclusive, com a
concessão de isenções tributárias de justiça fiscal duvidosa, tendo, por exemplo, a previsão
jurídica de não-pagamento de CPMF e IOF por investidores estrangeiros nas bolsas
brasileiras; tal política de injustiça fiscal fica disfarçada pela adoção de políticas estatais
conciliatórias de cunho assistencialista, que parecem diminuir o caráter injusto do sistema;
p) adoção da teoria da reserva do possível para justificar a diminuição dos gastos das
políticas públicas na concreção dos direitos fundamentais de segunda geração – direitos
sociais, econômicos e culturais;
q) modificação formal da Constituição, através de sucessivas emendas constitucionais
que têm por objetivo amoldar a configuração estatal ao novo ideário do constitucionalismo
neoliberal, tal como, no Brasil, as várias reformas da previdência do setor público e privado e
da previdência complementar e abertura da área econômica a estrangeiros nos setores de
mineração, telefonia e exploração de combustíveis líquidos e gasosos; observe-se que no
modelo constitucionalista neoliberal não há a necessidade de se ter um desgaste de produzir
uma Nova Constituição, sendo mais sutil e eficaz modificações específicas que desfigurem o
Estado Social e o Constitucionalismo Social sem se fazê-lo de forma aberta e declarada;
r) desregulamentação de vários setores, extinguindo legislações, diminuindo poderes de
fiscalização do Estado e abrindo caminho para que os próprios agentes políticos, sociais e
econômicos realizem o controle do setor onde atuam – retorno da tese do espontaneísmo –
mão invisível do mercado a solucionar todos os problemas;
Amicus Curiae V.8, N.8 (2011), 2011
20
s) a criação de agências reguladoras para setores onde antes o Estado atuava com maior
peso, mas sem garantir que a regulação será feita com vigor e sem ter em vista apenas os
negócios do setor regulado, mas levando em conta também a visão e os interesses dos
consumidores em geral; processo de regulação criado em formato que propicia o
aprisionamento ou a captura do órgão regulador pelo segmento mercadológico teoricamente
regulado;
t) modificação de marcos regulatórios (regras jurídicas, leis e decretos) de
funcionamento de vários setores, até sem necessidade de modificação do texto constitucional,
por lei, em alguns casos, para propiciar maiores liberdades jurídicas e econômicas para setores
estratégicos da economia.
Estas cinco últimas características, aliás, especificamente relacionadas ao novo ideário
constitucional e jurídico propriamente dito trazem uma perplexidade adicional: no novo
constitucionalismo do século XXI, de cunho neoliberal, não é necessário romper inteiramente
com o antigo sistema constitucional do Estado-Providência, do welfarestate; basta adaptar a
estrutura constitucional antiga às novas necessidades neoliberais, sem muito alarde para a
mudança de foco do sistema normativo, o fazendo através de emendas à constituição
contínuas e pontuais, de cunho até técnico, com difícil assimilação pela população em geral,
e, em alguns casos, com simples mudanças na lei ordinária infraconstitucional, criando-se um
paradoxo de difícil de resolução: a mudança do sistema constitucional pelo seu esvaziamento,
este último, produzido pela “não-regulamentação” dos direitos sociais e econômicos ou pela
“regulamentação” de aspectos setoriais de acordo com o ponto de vista das grandes
corporações econômicas nacionais ou estrangeiras – ou seja, ora se aplica o silêncio do
legislador (quando for para impedir o aumentar dos direitos de cunho social – notadamente, os
direitos fundamentais de segunda geração, inclusive a aplicação da teoria da reserva do
possível) ora, de forma oposta, se realiza massiva produção legislativa para tornar o ambiente
jurídico-constitucional mais dócil aos interesses econômicos e políticos hegemônicos.
Estas, portanto, as características de um intenso e ainda atual movimento
constitucionalista contemporâneo e bastante forte: o constitucionalismo neoliberal, fruto de
uma história dinâmica que ainda não cessou e necessita de constante releitura e adaptação.
Em resumo, nos parece que não é totalmente despropositado tentar resgatar a
verdadeira diretriz do constitucionalismo social que se esgarçou, mas, que pode ser
revigorado: a promoção do ser humano em um ambiente de liberdade e igualdade conjugadas,
sintetizando-se o novo modelo na busca pela concreção do direito à dignidade da pessoa
humana, sob os aspectos sociais, econômicos, políticos, jurídicos e culturais.
Amicus Curiae V.8, N.8 (2011), 2011
21
Há de se humanizar o sistema constitucional, ele é que deve ser o centro da atuação
estatal, e não os interesses poderosos que vêm se revelando nos últimos movimentos
constitucionalistas reformistas do final do século XX.
Não somos contrários à estrutura neo-liberal, e muito menos somos opositores da
globalização, fenômeno tecnológico incontrastável, apenas não conseguimos deixar de manter
uma postura crítica e analítica em relação a seus aspectos negativos, passíveis de correção.
Digna de encômio e ponderação, aliás, as idéias de Willis Santiago Guerra Filho, a
respeito da aplicação da tese autopoiética como instrumento de compreensão e modificação
dos fenômenos econômicos e sociais hodiernos e mundiais, uma vez que a “autopoiese” é o
novo nome cunhado pelo neoliberalismo para esconder o retorno à antiga reivindicação de
liberdade econômica auto-regulamentada pelos próprios empresários, substituindo a mão-
invisível e o espontaneísmo de Adam Smith, senão vejamos, in verbis:
Diante desse quadro, que esperança se pode ter na redenção do gênero humano de
um trabalho alienante que é obrigado a fazer – quando ainda se tem a felicidade de
encontrá-lo, para não se ver constrangido a realizar atividades criminosas -,
satisfazendo assim necessidades básicas? Que alternativa se oferece para que o „fim
do mundo(e) do trabalho‟ não resulte em extermínio do trabalhador? Não há uma
resposta pronta para essas questões. Só nos resta o exercício constante da crítica à
situação tal como ela se apresenta, para com isso, tentar revertê-la. Talvez
nunca se colocou de forma tão clara a opção entre socialismo(=fim do capitalismo)
ou barbárie(=fim do mundo) como agora, quando parece não haver outra alternativa
ao capitalismo. Isso assusta, mas não nos pode imobilizar. Tentemos compreender
melhor a situação em que nos encontramos, explorando as possibilidades
explicativas de concepções teoréticas como a sistêmica, aplicada ao estudo do
sistema jurídico. Como essa teoria considera os diversos sistemas sociais como
autônomos, autopoiéticos, mas também interligados, „estruturalmente acoplados‟,
transformações em um deles afeta os demais. Vejamos, então, se a partir do
diagnóstico da situação em que nos encontramos e da descrição do modo como se
estrutura funcionalmente o sistema jurídico, podemos atinar para as mudanças que
ele pode operar, para que se transformem os demais sistemas, evitando assim o fim
do todo englobante dos sistemas e de seu ambiente, que é o mundo. (GUERRA
FILHO, 1997, p. 19) (grifos nossos)
A razão está realmente com Arnoldo Wald, quando afirma que
[...] talvez tenha chegado o momento de uma maior presença de advogados,
professores e juristas no campo da economia internacional, de modo a fazer com que
a globalização financeira, não obstante as suas incontáveis vantagens, não se torne
um verdadeiro pesadelo. Cabe lembrar que ao direito incumbe a função de submeter
a economia à ética e tal é o tema da presente discussão. È o momento mais do que
apropriado, quase diríamos imperativo, para que também o mundo financeiro
obedeça à ética, à moral, o direito e a Justiça. Como ainda lembrava recentemente o
Professor Miguel Reale: „a mera obediência às leis do mercado, com total confiança
na livre concorrência, não lograria superar a crise atual do sistema capitalista, sendo
imprescindíveis medidas que transcendem o mundo econômico e envolvem todos os
valores da civilização, com base num sentimento de universal solidariedade‟ ”
(WALD, 1999, p. 18).
Amicus Curiae V.8, N.8 (2011), 2011
22
Aliás, nesse sentido de resgate do papel da Constituição de salvaguarda da dignidade da
pessoa humana e do humanismo, temos a digressão de Daniel Sarmento, in literis:
A Constituição ainda exerce um papel fundamental nas engrenagens da sociedade
moderna. A constatação de que ela não pode tudo, não significa que não possa nada.
No atual estágio da civilização, o projeto constitucional da modernidade ainda tem o
seu espaço garantido. Assim, e sobretudo em países marcados pelo estigma da
injustiça social, como o Brasil, é importante apostar nas virtualidades da
Constituição, até para usá-la como escudo ante os efeitos excludentes da
globalização. (SARMENTO, 1999, p. 18)
Logo, o constitucionalismo deveria retomar o caminho perdido de fomentar o
desenvolvimento da economia e da prossecução de veras necessidades públicas, de molde a se
afastar os privilégios políticos, jurídicos e até fiscais a classes financeiramente portentosas.
Eis que talvez, em breve, estejamos a estudar o desenvolvimento de um novíssimo
constitucionalismo, que também indicará um retorno evoluído, como foi o constitucionalismo
neoliberal em relação ao constitucionalismo liberal-clássico.
Este novo constitucionalismo, espécie de retorno do constitucionalismo social, será
conhecido como o “constitucionalismo humanista”, futuro rival do atual movimento
neoliberal, trazendo-se o ser humano, novamente, ao centro das preocupações do Estado e da
Constituição, a qual se revelará, novamente, em todo o seu potencial, como um campo por
excelência da normatividade pródiga em benefícios à coletividade, garantindo uma existência
humana mais qualitativa, de bem-estar, e de efetivo desenvolvimento humano, conciliando-se
todos os interesses aparentemente conflitantes e que devem ser solucionados para se chegar ao
ideal de construção de uma sociedade mais digna, mais livre, mais justa e mais solidariamente
fraternal, como intenta o artigo 3º, inciso I, da Constituição Brasileira de 1988.
Nesse sentido, é relevante mencionar que parcela bastante intensa da doutrina tem
encontrado no resgate do valor “fraternidade”, apresentada no então vanguardistaelenco e
ideário da Revolução Francesa, a chave-mestra para o resgate de um constitucionalismo mais
humanizado, menos neutro e asséptico.
Logo, há de se fazer menção à lição doutrinária no sentido de que a fraternidade é mais
do que a solidariedade, pois “o vocábulo fraternidade tem uma carga significativa mais ampla
que a solidariedade: esta tem suporte nas ações e aquela atua no campo das ações e das
intenções” (SILVA, 2009, p. 204).
Portanto,
A solidariedade está atrelada ao papel de Estado como sustentáculo fundamental na
formação da sociedade civil, influência do Estado moderno e suas vicissitudes, que
tem prevalecido, ainda, nos dias de hoje. Em contrapartida, a fraternidade coaduna
Amicus Curiae V.8, N.8 (2011), 2011
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com a proposta de compreender o Direito e o Estado como instrumento a serviço da
Sociedade civil.
Assim, a fraternidade „não se apresenta como um enunciado de um conceito, mas
como um princípio atuante, motor do comportamento dos homens‟, atrelada aos
princípios de liberdade e igualdade. (SILVA, 2009, p. 205)
Enfim, mesmo que brevemente, a idéia de construção de um novo constitucionalismo,
de ordem fraternal, nos parece realmente a chave para o resgate de um movimento
constitucionalista humanizado, em que a solidaridedade não seja utilizada apenas como um
valor jurídico de mera autorização para que o Estado promova a sociedade justa, livre e
solidária que o Poder Constituinte intentou como alicerce de um Estado Democrático de
Direito materialmente inclinado pela busca do desenvolvimento, pela erradicação da pobreza,
da marginalização e das desigualdades regionais e sociais e pela promoção do bem de todos,
de forma pluralista e sem qualquer tipo de discriminação do outro, nos termos do artigo 3º de
nossa Carta Política.
Sob esta perspectiva – antes, apenas “solidária” – ampliada para a nova visão de que
não cabe apenas ao Estado a prossecução destes ideais constitucionais que representam todos
os seus partícipes, eis que a retomada do ideal humanizador do constitucionalismo fraternal é
o guia de um novo momento da realidade constitucional, em que, além de singela
solidariedade, há interesse e compromisso entre todos, pois as verdadeiras igualdade e
liberdade se encontram na sincera fraternidade entre livres e verazmente iguais.
Portanto, devem ser ultrapassadas as idéias individualistas ou egotímicas de cunho
liberal, ou ainda incompletas, de cunho social, porquanto não observadoras da dimensão
maior de que o constitucionalismo do século XXI não pertence apenas aum momento
histórico de um povo ou uma nação mas, opostamente, é de todos os indivíduos, inclusive, de
futuras gerações.
Evidentemente, a construção, passo a passo e paulatina, desse novo constitucionalismo,
não ocorrerá de forma indolor ou sem um processo cadenciado e às vezes desordenado de
avanços e recuos, mas, é certo, que o século XXI terá um espírito de constitucionalismo
fraternal e humanitário, essencialmente.
Nesse caminho de reconstrução, inclusive, importante e essencial será a resgatada noção
da força essencial dos princípios normativos para um “neoconstitucionalismo” de cunho
principialista, como bem anota Morais (MORAIS, 2011, resumo):
Nesse contexto, os princípiosganham o status de fontes do Direito positivados. A
moral passa a servir dereferência na intervenção e na solução de conflitos sociais.
Surge também atécnica da ponderação na aplicação do direito, no ingresso dos fatos
e darealidade na estrutura da norma jurídica. Verifica-se, portanto, certa
liberdadeinterpretativa aos magistrados e dentre outras conquistas, a firmação
especialdos princípios como Normas Constitucionais. Assim, nessa nova fase
histórica, aConstituição é fortalecida pela presença de princípios, especificamente,
Amicus Curiae V.8, N.8 (2011), 2011
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denormas de direitos fundamentais que, por constituírem a positivação de
valorescomunitários, são caracterizadas por seu denso conteúdo normativo de
carátermaterial ou axiológico, que tende a influenciar todo o ordenamento jurídico
evincular a atividade jurídica no âmbito público e privado.
No mesmo sentido, da relevância do novo Direito Constitucional e de seu papel de
guardião da concretude dos direitos fundamentais, temos a lição de Bonavides
(BONAVIDES, 2002, p. 39):
Desatado dos seus vínculos programáticos e por isso mesmo colocado doravante na
linha de uma normatividade levada realmente a sério e assim nos traz à memória
uma expressão aforismática do jurista Dworkin, esse Novo Direito Constitucional se
empenha em fundar, de forma eficaz e definitiva, o Estado de Direito da
legitimidade, o qual nasce e se constrói com democracia, liberdade e justiça social.
E, sobretudo, também, com a plenitude das novas dimensões assumidas pelos
direitos fundamentais.
No mesmo sentido, em outra obra, adverte quase de forma trágica o ilustre professor
alencarino sobre a necessidade da adoção de posição contundente da nova geração de
constitucionalistas em prol da humanização do constitucionalismo, no âmbito da qual a
efetivação real dos direitos fundamentais é impossível de ser olvidada:
No mundo globalizado da unipolaridade, das economias desnacionalizadas e das
soberanias relativizadas e dos poderes constitucionais desrespeitados, ou ficamos
com a força do Direito ou com o direito da força. Não há mais alternativa. A
primeira nos liberta; o segundo nos escraviza; uma é a liberdade; o outro, o cárcere;
aquela é Rui Barbosa em Haia, este é Bush em Washington e Guantánamo; ali se
advogam a Constituição e a soberania; aqui se canonizam a força e o arbítrio, a
maldade e a capitulação. (BONAVIDES, 2010, p. 592)
Logo, através da construção racional e ponderada dos valores humanitários e fraternais
do constitucionalismo hodierno, por intermédio da utilização da forma normativa, axiológica
e normogenética dos princípios constitucionais, há de se intentar uma verdadeira causa de
resgate dos valores fundamentais que conduziram à criação da Constituição: a busca pelo
homem livre, justo e fraternal, sem grilhões políticos, econômicos, sociais, culturais e
institucionais.
Nesse sentido, o próprio Supremo Tribunal Federal tem decidido utilizar o conceito de
“constitucionalismo fraternal”, pelo menos, em quatro decisões muito polêmicas e imbuídas
de muito interesse e debate por toda a sociedade:
No Julgamento da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132 -
no âmbito do qual decidiu a Corte Suprema que seria seu papel institucional assumir
a vanguarda da proteção e promoção da integração e dignidade da pessoa humana
pertinente a minorias - se entendeu ser possível a “união estável” entre casais homo-
afetivos, como imperativo decorrente do atual momento histórico do
“constitucionalismo fraternal”, algo que seria incompossível com a tolerância com o
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preconceito – “Ementa(...) 2. PROIBIÇÃO DE DISCRIMINAÇÃO DAS PESSOAS
EM RAZÃO DO SEXO, SEJA NO PLANO DA DICOTOMIA
HOMEM/MULHER (GÊNERO), SEJA NO PLANO DA ORIENTAÇÃO SEXUAL
DE CADA QUAL DELES. A PROIBIÇÃO DO PRECONCEITO COMO
CAPÍTULO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. HOMENAGEM AO
PLURALISMO COMO VALOR SÓCIO-POLÍTICO-CULTURAL. LIBERDADE
PARA DISPOR DA PRÓPRIA SEXUALIDADE, INSERIDA NA CATEGORIA
DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO INDIVÍDUO, EXPRESSÃO QUE É DA
AUTONOMIA DE VONTADE. DIREITO À INTIMIDADE E À VIDA
PRIVADA. CLÁUSULA PÉTREA. O sexo das pessoas, salvo disposição
constitucional expressa ou implícita em sentido contrário, não se presta como fator
de desigualação jurídica. Proibição de preconceito, à luz do inciso IV do art. 3º da
Constituição Federal, por colidir frontalmente com o objetivo constitucional de
“promover o bem de todos”. Silêncio normativo da Carta Magna a respeito do
concreto uso do sexo dos indivíduos como saque da kelseniana “norma geral
negativa”, segundo a qual “o que não estiver juridicamente proibido, ou obrigado,
está juridicamente permitido”. Reconhecimento do direito à preferência sexual como
direta emanação do princípio da “dignidade da pessoa humana”: direito a auto-
estima no mais elevado ponto da consciência do indivíduo. Direito à busca da
felicidade. Salto normativo da proibição do preconceito para a proclamação do
direito à liberdade sexual. O concreto uso da sexualidade faz parte da autonomia da
vontade das pessoas naturais. Empírico uso da sexualidade nos planos da intimidade
e da privacidade constitucionalmente tuteladas. Autonomia da vontade. Cláusula
pétrea”10
.
No julgamento sobre a demarcação da Reserva Indígena “Raposo Serra do Sol”, no
âmbito do qual se decidiu que a determinação constitucional de realização e
conservação das reserva indígenas é integrante do constitucionalismo fraternal:“A
DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS COMO CAPÍTULO AVANÇADO
DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. Osarts. 231 e 232 da Constituição
Federal são de finalidade nitidamente fraternal ou solidária, própria de uma quadra
constitucional que se volta para a efetivação de um novo tipo de igualdade: a
igualdade civil-moral de minorias, tendo em vista o proto-valor da integração
comunitária. Era constitucional compensatória de desvantagens historicamente
acumuladas, a se viabilizar por mecanismos oficiais de ações afirmativas. No caso,
os índios a desfrutar de um espaço fundiário que lhes assegure meios dignos de
subsistência econômica para mais eficazmente poderem preservar sua identidade
somática, linguística e cultural. Processo de uma aculturação que não se dilui no
convívio com os não-índios, pois a aculturação de que trata a Constituição não é
perda de identidade étnica, mas somatório de mundividências. Uma soma, e não
uma subtração. Ganho, e não perda. Relações interétnicas de mútuo proveito, a
caracterizar ganhos culturais incessantemente cumulativos. Concretização
constitucional do valor da inclusão comunitária pela via da identidade étnica”11
.
10
Disponível em: www.stf.gov.br. Acesso em 31 de outubro de 2011. 11
Ver julgamento da Pet 3388/RR-RORAIMA. Disponível em: www.stf.gov.br. Acesso em 31 de outubro de
2011.
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No julgamento sobre a utilização de células-tronco em pesquisas biológicas, se
decidiu que a possibilidade da realização de tais experiências seria inerente ao
constitucionalismo fraternal, pois a busca pela felicidade seria inseparável da
promoção da saúde de todos, dever fraternal de todos, e algo inerente ao
constitucionalismo fraternal – ver julgamento da ADI 3510/DF-DISTRITO
FEDERAL12
.
Enfim, a verdade é que, pelas exigências do novo milênio e pela conjuntura das
circunstâncias das crises econômicas que vêm ocorrendo desde 2007, máxime, no mundo
desenvolvido, há de se reconhecer que há amplo espaço para o resgate de um
constitucionalismo humanizado e fraternal, a conduzir o ser humano por sendas mais justas e
perfeitas.
Nesse sentido, novamente, recorremos a Paulo Bonavides para assertar a eclosão de um
movimento de nascimento no mundo de um novo constitucionalismo que tem no ser humano
o seu ponto inicial, centrista e final de apoio e equilíbrio:
Seguindo esse linha de pensamento, parece-nos indeclinável o dever constitucional
de ir ao campo de batalha içar a bandeira da paz. A expressão “campo de batalha”,
parece, todavia, ambígua, por inculcar um paradoxo ou uma contradição de sentido!
Em rigor, busca-se a paz levantada ao máximo de juridicidade, em nome da
conservação e do primado de valores impostos à ordem normativa pela dignidade da
pessoa humana.
De tal sorte que, coroados de feliz êxito, possamos trasladar essa paz das regiões da
metafísica, da utopia, dos sonhos, onde demora neste mundo conflagrado, para a
esfera da positividade jurídica, onde se deseja vê-la arraigada por norma do novo
direito constitucional que ora se desenha: o direito constitucional do gênero humano.
(BONAVIDES, 2010, p. 591)
Logo, este “direito constitucional do gênero humano” - aliado ou não à concretização
universal do direito à paz, mencionado pelo ilustre professor cearense como o centro dos
direitos fundamentais de quinta geração - conforme o texto retro-transcrito, torna-se uma
12
“Ementa: (...)II - LEGITIMIDADE DAS PESQUISAS COM CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS
PARA FINS TERAPÊUTICOS E O CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. A pesquisa científica com
células-tronco embrionárias, autorizada pela Lei n° 11.105/2005, objetiva o enfrentamento e cura de patologias e
traumatismos que severamente limitam, atormentam, infelicitam, desesperam e não raras vezes degradam a vida
de expressivo contingente populacional (ilustrativamente, atrofias espinhais progressivas, distrofias musculares,
a esclerose múltipla e a lateral amiotrófica, as neuropatias e as doenças do neurônio motor). A escolha feita pela
Lei de Biossegurança não significou um desprezo ou desapreço pelo embrião "in vitro", porém u'a mais firme
disposição para encurtar caminhos que possam levar à superação do infortúnio alheio. Isto no âmbito de um
ordenamento constitucional que desde o seu preâmbulo qualifica "a liberdade, a segurança, o bem-estar, o
desenvolvimento, a igualdade e a justiça" como valores supremos de uma sociedade mais que tudo "fraterna". O
que já significa incorporar o advento do constitucionalismo fraternal às relações humanas, a traduzir verdadeira
comunhão de vida ou vida social em clima de transbordante solidariedade em benefício da saúde e contra
eventuais tramas do acaso e até dos golpes da própria natureza. Contexto de solidária, compassiva ou fraternal
legalidade que, longe de traduzir desprezo ou desrespeito aos congelados embriões "in vitro", significa apreço e
reverência a criaturas humanas que sofrem e se desesperam. Inexistência de ofensas ao direito à vida e da
dignidade da pessoa humana, pois a pesquisa com células-tronco embrionárias (inviáveis biologicamente ou para
os fins a que se destinam) significa a celebração solidária da vida e alento aos que se acham à margem do
exercício concreto e inalienável dos direitos à felicidade e do viver com dignidade (Ministro Celso de Mello) –
(...)”.Disponível em: www.stf.gov.br. Acesso em 31 de outubro de 2011.
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realidade imarcessivel que desponta no horizonte do constitucionalismo da segunda década do
século XXI, em face do desgaste inevitável do ideário constitucional neoliberal,
Quiçá a concretização deste constitucionalismo humanista e fraternal não tenha de
esperar todo o martírio em sangue e vidas humanas que foi o estabelecimento do
constitucionalismo social, pois, diferentemente de outrora, em face do acesso às novas
tecnologias, que garantem massa crítica e atualizada de informações, o homem do século XXI
tem o dever de ser o mais racional de toda a história.
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