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REBOCO CAÍDO #15

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REBOCO CAÍDO#15

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EditorialREBOCO CAÍDO #15

Contatos com o Reboco:

[email protected]

www.twitter.com/RebocoCaido

www.slideshare.net/ARITANA

www.facebook.com/RebocoCaido

E lá vem o Reboco de novo. Sempre no intuitode não se tornar uma confortável bolha depensamentos iguais, onde podemos ter aimpressão de que o mundo está do jeito quea gente quer por estarem todos dizendo amesma coisa. Dando espaço para o contrastee a contradição, o sólido e o líquido,provocando o encontro entre os opostospara que haja o debate e a reflexão. Nada deficar sempre na mesma coisa para ouvir os“é isso mesmo”. Quem procura guia éporque não vê e o pior cego... Vocês sabemqual é. É o que se recusa a ver com ospróprios olhos.

Este número dedico a memória deChumbinho e Dedé. Grandes

guerreiros que se foram.

Psicologia de um vencidoPor Augusto dos Anjos

Eu, filho do carbono e do amoníaco,Monstro de escuridão e rutilância,Sofro, desde a epigênese da infância,A influência má dos signos do zodíaco.

Profundissimamente hipocondríaco,Este ambiente me causa repugnância...Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsiaQue se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme — este operário das ruínas —Que o sangue podre das carnificinas

Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,E há de deixar-me apenas os cabelos,Na frialdade inorgânica da terra!

Os AliensPor Charles Bukowski

talvez você não acreditemas há pessoasque passam a vidasem o menoratrito ouagoniaeles se vestem bem, comembem, dormem bemestão satisfeitos com a vidaem família.eles têm momentos demelancoliamas no geralnão são incomodadose, frequentemente,sentem-semuito bem quando morremé uma morte fácil, geralmente,dormem.talvez você não acrediteporém essas pessoas existem.mas eu não souuma delasah não, eu não souuma delaseu nem chego pertode serumadelasmas elas estãoláe eu estoucá!

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Por Diego EL Khouri

eu atravesso oceanosna calda de ninguémmamute que destroça cimentonos dentes de marfim no ouro de alguémeles são fuzisfezessangue coalhado de criancinhas famintasacolhidas pelo cracklembro muito bemaquele inverno de 2004porres incompletos, beijos frívolosRimbaud sobre a mesae paredesmuitas paredesse fechavam cada dia maispela masturbação proferida a tinaquelas madrugadasde torcicolo brutaleu agarrando estrelasnuma minúscula cama suja de sêmen e bílistal qual corda bambacometas em festa comum

ah madrugada!!o que poderia dar a tise de mim roubaste tudo?lamentaste a sina bandidaque éslevaste tudo emborainclusive meus crimese as dívidas de mercadopara sucatear meus sonhosque viraram cicatrizes na barrigae apendicite supurado

são inconfundíveisos olhos dessa terra esses meninos nos sinaisa implorar migalhasque a sociedade atropela

corpos descartados

deixados de ladominoria nojentafede e trituraqualquer pensamentode libertação

ah madrugadados sonhos impossíveistrouxeste a quimera que pedi?quero sexo em ventre e almaa tentação me veja como alvo

e me beije a face mil olhosde vulcão, tempestade, estrelasé tudo a mesma coisao mesmo cheiro

pelos, entranhaslíngua na línguadescobrir teu corpoalimentar tua sina

ó madrugada lindaque clareia meus olhosés amor e paixãomisturadas com fogo e pele

nos marcaram como gadotrataram de espalhar nossas dívidas nos apunhalaram pelas costase rasgaram nosso tratadovilmente sem repeito alguma nossa história

madrugada insonsacovardeas palmas de minha mãocobrem orelhasajoelhado no centro da cidadeuma chuva torrenciallava meus cabelos e minha alma

não há motivos para acreditar

Tal qual corda bamba

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Pag 3 REBOCO CAÍDO #15no pai nem no estadome fala a luz dos semáforosrepleta de mentiras e sonhos

não creio em inferno ou pecadoa poesia comportadamuito menos em gêneros comprados

porta voz das portas escancaradase venenos tóxicoseu desafio as regras lambendo feridasdesconexasdo outro lado da moeda (!!!)(ninguém me ouve ninguém me vê)

assim espero.

SendaPor Alexandre Mendes

Toma esta enxada!Eu não quero!Tome esta vassoura!Eu não quero!Toma esta bandeja!Eu não quero!Eu não quero!Eu não QUEROOOOOOOOO!!!!!

DesconhecidoPor Ivan Silva

Ainda quando trabalhava como vendedorde produtos químicos, levantei cedo echeio de disposição à vida, apesar dosolhos depressivos.Sem nada me importar com as horas fui emdireção àquilo que me chamava: a conde-nação, o eletrochoque... sempre que faloalgo decorado meu cérebro frita. Enfim, abrio portão da rotina e caminhei como decostume, até encontrar o homem de negó-cios. Ao encontrá-lo, já com a agonia de

uma criança febril prestes a levar injeção nabunda, fui apresentado a um cara, desco-nhecido, que agora estava ali, batendo umpapo com o homem de negócios. Cabeloscompridos, enrolados, algumas tatuagens,pernas amputadas... a princípio me cumpri-mentou e perguntou meu nome, me disseque ficou sabendo das pinturas que faço eda banda que toco. Isso através do já men-cionado homem, que se mantinha ali... escu-tando a prosa atentamente, como alguémque espera um momento de distração pradar o bote.Nisso, a conversa foi desenrolando. Dizia ocara desconhecido, à respeito de uma dasminhas primeiras perguntas, que perdeu aspernas num acidente de trem, e que após terdespertado no hospital, ganho alta e ido pracasa, "já era, nunca mais vai andar, tudo quefor fazer denpenderá dos outros" foi a pri-meira coisa que ouviu da família. Isso o in-comodou, disse também... mas não o fato deter perdido as pernas. Achava sim que an-dar ainda era possível... e a idéia de depen-der de todos em tudo, repeliu com palavrões,eternos vão tomar no cú.Ao dizer isso, o homem de negócioschacoalhou o rabo... mirei meus olhos nocéu nublado e rapidamente me concentreide novo naquilo que ouvia, ou via, não sei,não importa. O barulho do chocalho eraameaça pequena. O cara desconhecido es-tava falando de esperança, palavra que ouviQuintana dizer debaixo d'água... um soprode vida. Sim.Dizendo esse cara, não tão mais desconhe-cido (Dilsin como disse se chamar) que, con-versa vai conversa vem, era olhos nos olhos,encarando mesmo... explicou demonstrarsua atenção assim, e continuou, dizendo queapós toda aquela imposição de pessimismo,à noite fugiu de casa, decidido ir a até a praia.E assim foi, entrou na estrada com a cadeirade rodas, usando a força que tinha nos bra-ços e a vontade pra fazer o caminho. Exaus-

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Pag 4REBOCO CAÍDO #15to, quando chegou a praia, se jogou na areia,percebendo que a dificuldade em andar aliera maior.Assim que se recuperou, se moveu até asrochas e ali sentou, lançando no mar a varade pesca que tinha levado. Sem entrar emdetalhes, dizer se conseguiu pescar ou não,após isso, apenas contou que revoltado,tendo refletido sobre os acontecimentos,sociedade, existência, vida, lançou no marsua carteira."Pra quê essa porra de carteira?! Dinheiro,documento... Cansei dessa merda, não façoparte de mais nada!"... nessa parte o homemde negócios tateou o ar com a língua, tor-nando a balançar o chocalho.Nisso, Dilsin frisou... falando que às vezesfazemos coisas sem pensar, sem medir asconsequências... e que esse momento, dacarteira ao mar, mais tarde, considerou atode liberdade e também mancada.Mas foi no embalo desse ato de liberdadeque pegou sua carteira de cigarro vazia eencheu com areia, na intenção de provar afamília que conseguiu ir à praia, e assim, foirumo à outra cidade, onde aconteceria umafesta rave- afirmou várias vezes o gosto pormúsica eletrônica. No meio da festa, sacu-diu feliz a cadeira, rodeado por mulheres,varando a noite na dança orgíaca, indo em-bora apenas pela manhã. Momento em quepercebeu a cadeira bamba... uma das rodas,a pequena da frente que servia de apoio,estava frouxa. Com ela nessas condições,era muito mais puxado, teria que se equili-brar nas duas rodas... Coisa que o levaria aexaustão e depressa, gastaria muito tempopra chegar ao próximo destino.Pensou no que podia fazer e procurou umaoficina, a única que tinha na cidade, onde odono era um pastor, de alguma igreja, nãomencionou, ou talvez mencionou e eu te-nha esquecido. Só me lembro que, ao expli-car a situação, disse o Dilsin, ao ter explica-do ao pastor que lançou a carteira no mar eestava sem documentos, nem dinheiro e

havia perdido um parafuso e precisava deoutro, pra colocar na roda de apoio da ca-deira, levou um não, na cara. Começando aver aí o ato de liberdade como mancada,atitude infeliz.Isso fez com que cada expressão do ho-mem de negócios fosse traduzida no ar."Aí, viu! Era isso que eu queria dizer, nãoadianta ser radical demais, em algum mo-mento você tem que ser maleável, ou o sis-tema irá te podar de todas as maneiras."Mirei outra vez meus olhos no céu nubla-do e rapidamente me concentrei naquilo queouvia, ou via, não sei, não importa. O baru-lho do chocalho era ameaça pequena...Dilsin continuou, dizendo que depois donão que levou, resolveu ir a delegacia, pratirar novos documentos, assim poderia sa-car dinheiro no banco e comprar uma pas-sagem de ônibus, pra voltar pra casa. Quan-do procurou a delegacia, pegaram seusdados e deram dois dias pra que os docu-mentos ficassem prontos. E isso, à base deabuso de poder, preconceito, humilhação."Um cara aleijado desse não é humano",alto e claro, disse que ouviu isso vindo deum grupo de policiais. O ódio o fez desejarter pernas ainda, só pra poder dar pelomenos uma porrada bem dada no policialque disse isso, mesmo que morresse comum tiro. Essa foi a primeira vez que ele seconsiderou um aleijado... Passado isso, foidireto pra casa, encontrando lá sua mãe queestava desesperada. Ninguém conseguiaacreditar no que ele tinha feito, no aconte-cido... mas a partir daí ele voltou a mexercom artesanato, que antes do acidente jáera seu trabalho.*Nesse texto tem um pouco de uma dasconversas que tive, em 2012. Converseiuma vez só com esse camarada, o Dilsin,que na época morava em Minas, se não meengano, acabou vindo parar na cidade.Depois disso perdi o contato... não sei oque anda fazendo. Imagino que dando for-ça a outros cadeirantes por aí.

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Luiz Carlos Barata Cichetto é o nome docara. Fico muito feliz em poder trazer maisessa troca de ideias até vocês. Para maioresinformações sobre esse grande poeta eacompanhar o trampo: Site A Barata - www.abarata.com.br, Blog Pessoal – www.baratacichetto.blogspot.com, ZineVersus – www.zineversus.blogspot.com,Opera Rock Vitória - www.operarockvitoria.blogspot.com e Twitter - www.twitter.com/BarataCichetto

Pra que fazer poesia?Lembrei-me de imediato uma entrevista doLeminski em que falava sobre o porque daPoesia. “pra que por quê?” perguntava ele.Mas, de fato, sua pergunta é a mesma queme faço: pra que fazer poesia dentro dessecaos? Talvez porque todo poeta tenhavocação a ser Lúcifer, e trazer luz aoshomens.

Você possui alguns veículos e espaçosonde divulga seu trabalho e de outraspessoas. Como funciona essa parte daprodução?Durante muitos anos, em A Barata,publiquei autores e criei espaço para bandasindependentes, mas com o surgimento dosblogues e das redes sociais, o interesse

diminuiu. Muito antes do My Space, crieiespaços gratuitos para bandas nesse site.Atualmente tanto ele quanto meus bloguesdivulgam apenas minha produção artística,que, aliás, é bem intensa e diversificada.Sempre fiz tudo sozinho, mesmo quando ABarata tinha um conteúdo monstruoso erendia mais de 2.000 acessos mês.

Do mimeógrafo para a internet:Comecei a publicar minhas coisas emmimeografo, ainda pelo meio dos anos 70.Participei de algumas publicaçõesimportantes da época, como o “CogumeloAtômico” e “Semente”. Em 1980 publiqueium livro de Poesia “Arquíloco” nesseprocesso. Era um trabalho imenso e poucoabrangente, embora delicioso pelo aspectode que a forma de chegarmos às pessoasera no corpo a corpo ou por correio. AInternet nos deu maior abrangência, maiorpenetração, mas por outro lado, perdemosesse “costume” de estar com as pessoas, oque é fundamental na poesia. Embora sejauma forma fantástica de divulgação, achoque ela não se presta de fato à Poesia, poisela necessita do contato, do olho no olho,no sentir a respiração do receptor, essascoisas. A busca, hoje, ao menos da minhaparte, é encontrar o melhor dos “doismundos”, por isso não abro mão do livro efanzine impressos.

A música na escrita e a escrita na música:No final, acho que é um casamento forçado,uma espécie de casamento arranjado.Quando uma poesia se torna letra de música,deixa de ser poesia. Não é bom nem ruim,isso, apenas é outra coisa. Tive algumasexperiências desse tipo, com poesiasminhas musicadas e embora tenham ficadobelas, não sentia nelas mais a minha poesia,

Barata CPor FaSilva B

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era outra coisa. E mesmo que um musico sejatambém poeta sempre vai ocorrer isso.Chego até ser radical nisso, concordandocom alguns puristas da musica, que dizemque estragaram a musica quando colocaramletra nela. E vou mais além, acho queestragaram ambas. O problema é que, comoquase ninguém mais lê poesia, o meiomusical se transformou num caminho fácil.Um exemplo disso: acho Legião Urbana umamerda como banda, mas as poesias do RenatoRusso são boas. Mas aquilo, musicado, ficahorroroso. Entra ai uma questão: se ele nãotivesse uma banda, não tivesse chegado aser conhecido por estar a frente de umabanda, onde teria chegado? Provavelmenteseria mais um desconhecido. O problemaestá numa sociedade mal formada, queprefere artes que tem um apelo “popular”mais forte.

a CichettoFabio da Barbosa

Um pensamento:Não sei a resposta para a eterna pergunta,se é a vida que imita a arte ou o contrário,mas sei que maioria de nós tem péssimasimitações das duas coisas.

Uma certeza:A morte, claro!

O fechamento:Eu não consigo ter uma visão positiva comrelação ao futuro da humanidade. Nadadessa coisa ridícula de fim do mundo, essascoisas, mas com relação a valoresessencialmente humanos. Guerras sempreaconteceram e sempre acontecerão,conflitos pelos mais diversos motivos.Mas o que percebo é que se aceleramguerras e conflitos travados em camposmais profundos e perigosos do que os debatalha. E o ser humano transformado emum joguete nas mãos de poderosos.Obrigado, Fábio, pela oportunidade.

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Por Marquês de Sade

De todas as ciências que se inculcana cabeça de uma criança quando se trabalhaem sua educação, os mistérios dos cristianis-mo, ainda que uma das mais sublimes matéri-as dessa educação, sem dúvida não são, en-tretanto, aquelas que se introjetam com maisfacilidade no seu jovem espírito. Persuadir,por exemplo, um jovem de catorze ou quinzeanos de que Deus pai e Deus filho são ape-nas um, de que o filho é consubstancial comrespeito ao pai e que pai o é com respeito aofilho, etc, tudo isso, por mais necessário à fe-licidade da vida, é, contudo, mais difícil de fa-zer entender do que a álgebra, e quando que-remos obter êxito, somos obrigados a empre-gar certos procedimentos físicos, certas ex-plicações concretas que, por mais que des-proporcionais, facultam, todavia, a um jovem,compreensão do objeto misterioso.

Ninguém estava mais profundamenteafeito a esse método do que o abade DuParquet, preceptor do jovem conde deNerceuil, de mais ou menos quinze anos ecom o mais belo rosto que é possível ver.

- Senhor abade, – dizia diariamente opequeno conde a seu professor – na verda-de, a consubstanciação é algo que está alémdas minhas forças; é-me absolutamente im-possível compreender que duas pessoas pos-sam formar uma só: explicai-me esse mistério,rogo-vos.

O honesto abade, orgulhoso de obterêxito em sua educação, contente de poderproporcionar ao aluno tudo o que poderia fa-zer dele uma pessoa de bem, imaginou ummeio bastante agradável de dirimir as dificul-dades que embaraçavam o conde, e essemeio, tomado à natureza, devia necessaria-mente surtir efeito. Mandou que buscassemem sua casa uma jovem de treze a cartozeanos, e, tendo instruído bem a mimosa, fezcom que se unisse a seu jovem aluno.

- Pois bem, – disse-lhe o abade –agora, meu amigo, concebas o mistério daconsubstanciação: compreendes com me-nos dificuldade que é possível que duaspessoas constituam uma só?

- Oh! meu Deus, sim, senhor aba-de, agora compreendo tudo com facilida-de surpreendente; não me admira esse mis-tério constituir toda a alegria das pesso-as celestiais, pois é bem agradável quan-do se é dois a divertir-se em fazer um só.

Dias depois, o pequeno condepediu ao professor que lhe desse outraaula, porque, conforme afirmava, algo ha-via ainda “no mistério” que ele não com-preendia muito bem e que só poderia serexplicado celebrando-o uma vez mais. Ocomplacente abade, a quem tal cena di-verte tanto quanto a seu aluno, mandatrazer de volta a jovem, mas desta vez, oabade particularmente emocionado com adeliciosa visão que lhe apresentava o belopequeno Nerceuil consubstanciando-secom a sua companheira, não pôde evitarcolocar-se como o terceiro na explicaçãoda parábola evangélica, e as belezas porque suas mãos haviam de deslizar acaba-ram inflamando-o totalmente.

- Parece-me que vai demasiado rá-pido, – diz Du Parquet, agarrando os qua-dris do pequeno conde, devolvendo a seualuno o que este empresta à jovem.

- Ah! Oh! meu Deus, o senhor mefaz mal – diz o jovem – mas essa cerimô-nia parece-me inútil; o que ela me acres-centa com relação ao mistério?

- Por Deus! – diz o abade, balbuci-ando de prazer – não vês, caro amigo, quete ensino tudo ao mesmo tempo? É a trin-dade, meu filho… é a trindade que hoje teexplico; mais cinco ou seis lições iguais aesta e serás doutor na Sorbonne.

O Professor Filósofo – Marques de Sade

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Pag 8REBOCO CAÍDO #15

que sua personalidade já estava prontadesde a sua primeira aparição, lá nas histó-rias sobre Cristo. A ideia era fazer um Deusoposto ao Deus da Civilização. Esse Deus,como sabemos, é masculino, solar, autori-tário, auto-consciente, caucasiano, agres-sivo, nacional e calcado na tradição e nacultura. Portanto, eu queria um Deus femi-nino, noturno, pacífico, contra-cultural,não-ocidental etc. O que já expressa minhaopinião sobre coisas como o Estado-Na-ção, a Civilização Ocidental, a Verdade e aCultura. Para mim, são todos pretextos parao imperialismo, o roubo, a exploração e oestupro. Sem mais.

E a reação do público? O que o pessoal temachado das aventuras de Deus?Olha, meus amigos se divertem e a lista depessoas que pedem para receber os e-mailsvem crescendo. Muitos leitores do jornaltambém tornaram-se leitores do zine men-sal, mas, é claro, muita gente detesta. O tra-balho foi chamado de “um escracho ignóbile malicioso” em uma carta muito divertidaque o jornal recebeu e volta e meia receboalgum e-mail dizendo que vou arder no fogodo Inferno. Enfim, as pessoas que gostam,gostam porque Ela é Deus, criadora da Vidae do Universo, e é mulher, negra, sexuada,amante de bebidas fortes, punk-rock femi-nista e futebol argentino. E as pessoas quedetestam, detestam justamente por esses

Rafael Campos Rocha é o nome dessa gran-de revelação do quadrinho nacional. Alémde produzir para grandes veículos de comu-nicação, ainda atua com blogs e zines (http://rafaelcamposrocha.blogspot.com). Atual-mente ele está lançando o livro “Deus, essagostosa” e já tem planos para um próximo.Fala aí, Rafael. Conta para o pessoal.

Deus, essa gostosa: Como foi a constru-ção dos personagens e a criação das pri-meiras histórias?A primeira aparição de Deus foi em uma sériede 4 pequenas histórias baseadas em tex-tos apócrifos sobre Cristo. A série tinha opernóstico nome de Tetralogia Cruciformee, por sua vez, fazia parte de um fanzinedigital que enviava para uma lista de e-mailsdesde 2007. Voltando ao personagem, comoeu disse, Deus “cresceu” na história umpouco à minha revelia. Terminada a sériede histórias sobre Cristo, resolvi fazer umaoutra série de 4 histórias, dessa vez comEla como protagonista. Desde a primeiraaventura solo já se chamava “Deus, essagostosa”, que foi o nome mais escandalo-so, irritante e debochado que me ocorreu.Essa série foi responsável pelo meu ingres-so na imprensa com mais assiduidade. As 4histórias foram publicadas pela Piauí e aFolha de São Paulo passou a me chamarpara criar cartuns no caderno Ilustríssima.Sobre a construção do personagem, acho

Por Fabio da Silva Barbosa

Rafael Campos Rocha e seu “escracho ignóbil e malicioso”

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Pag 9 REBOCO CAÍDO #15mesmos motivos.

Além da divulgação pela internet, quaisoutros meios você tem usado para fazersuas histórias chegarem aos leitores?Bom, ela aparece de 15 em 15 dias no ca-derno ilustríssima, da Folha de São Pau-lo. Já esteve na revista Piauí, na revistaespecializada Graffiti 76°/ quadrinhos, narevista + Soma, além de aparições em ou-tras revistas independentes. Estou fazen-do duas histórias para a revista Samba,também especializadas em quadrinhos. Elancei um livro pela Cia das Letras, comuma história de umas 70 páginas.

A macarronadaPor Fabio da Silva Barbosa

Ele fez aquela macarronada perfeita. Váriostipos de macarrão. As tigelas com os molhosforam colocadas na mesa logo assim queentrei. Elogiei seus dotes culinários e suasofisticação ao servir. Retribuiu com aqueleolhar estranho e lembrou ter aprendido acozinhar muito jovem. Ele não podia perder aoportunidade de estragar tudo. O que podiapensar? Que minha atitude fosse mudar devidoa sua grosseria? Achei melhor ignorar e passarpara alguma amenidade. Ao repetir o prato,resolvi experimentar outro tipo de macarrãocom outro molho. Ele endoidou. “Não... Aí já édemais! Esse molho não é para esse macarrão!Não sabe, deixa que eu sirvo. Vai continuarcolocando? Não precisa encher o prato dessamaneira. Come um pouquinho e depois provade outro tipo. Ai, meu Deus do céu. Por mimtanto faz, sabe? Já tô de saco cheio. Faz o quequiser, do jeito que quiser.” O que ele nuncaaprendeu é que a gente pode deixar a mesapronta e escolher o que vai ter, mas nuncapodemos prever como os convidadosmisturarão os pratos.

“Aqui estão os loucos. Os desajustados.Os rebeldes. Os criadores de caso. Ospinos redondos nos buracos quadrados.Aqueles que vêem as coisas de formadiferente. Eles não curtem regras. E nãorespeitam o status quo. Você pode citá-los, discordar deles, glorificá-los oucaluniá-los. Mas a única coisa que vocênão pode fazer é ignorá-los. Porque elesmudam as coisas. Empurram a raça hu-mana para a frente. E, enquanto algunsos vêem como loucos, nós os vemoscomo geniais. Porque as pessoas lou-cas o bastante para acreditar que po-dem mudar o mundo, são as que omudam.”Jack Kerouac

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REBOCO CAÍDO #15 Pag 10

A Erva do Diabo é apenas um entreum milhão de caminhos. Tudo é um entrequantidades de caminhos. Portanto vocêdeve ter sempre em mente que um cami-nho não é mais do que um caminho. Seachar que não deve seguí-lo, não deve per-manecer nele sob nenhuma circunstância.Para ter uma clareza destas é preciso levaruma vida disciplinada. Só então você sa-berá que um caminho não passa de umcaminho e não há afronta, nem para si nempara os outros, em largá-lo se é isto queseu coração o manda fazer. Mas sua deci-são de continuar no caminho ou largá-lodeve ser isenta de medo e de ambição. Eulhe aviso. Olhe bem para cada caminho, ecom propósito. Experimente tantas vezesquanto achar necessário.

Depois pergunte-se, e só a si, umacoisa. Esta pergunta é uma que só os mui-to velhos fazem. Meu benfeitor certa vezme contou a respeito quando eu era jo-vem, mas meu sangue era forte demaispara poder entendê-la. Agora eu a enten-do. Dir-lhe-ei qual é: esse caminho temcoração? Todos os caminhos são os mes-mos, não conduzem a lugar algum. Sãocaminhos que atravessam o mato ou queentram no mato. Em minha vida posso di-zer que já passei por caminhos compridos,compridos, mas não estou em lugar algum.A pergunta de meu benfeitor agora temum significado. Este caminho tem um co-ração? Se tiver o caminho é bom, se nãotiver não presta. Ambos os caminhos nãoconduzem a parte alguma, mas um tem co-ração e o outro não. Um torna a viagemalegre, enquanto você o seguir, será umcom ele. O outro o fará maldizer sua vida.Um o torna forte, o outro o enfraquece.

Você acha que há dois mundos paravocê, dois caminhos, mas só existe um. Oúnico mundo possível para você é o mun-do dos homens, e esse mundo você não

Retirado do livro a Erva do Diabo - de Carlos Castanedapode resolver largar. É um homem. O prote-tor, Mescalito, lhe mostrou o mundo da feli-cidade, onde não há diferença entre as coi-sas, porque lá não há ninguém que indaguepela diferença. Mas este não é o mundo doshomens. O protetor o sacudiu dali para forae lhe mostrou como é que o homem pensa eluta. Este é o mundo do homem. E ser umhomem é estar condenado a este mundo. Vocêtem a presunção de crer que vive em doismundos, mas isto é apenas vaidade. Só exis-te um único mundo para nós. Somos homense temos que seguir o mundo dos homenssatisfeitos.

Como saberei se ao certo se o cami-nho tem ou não tem coração?

Qualquer pessoa sabe disto. O pro-blema é que ninguém faz a pergunta, e quan-do afinal o homem descobre que tomou umcaminho sem coração o caminho está prontopara matá-lo. Neste ponto muito poucos ho-mens conseguem parar para pensar e deixaro caminho.

Um caminho sem coração nunca éagradável. Tem-se de trabalhar muito até paraseguí-lo. Por outro lado um caminho comcoração é fácil, não o faz trabalhar para gos-tar dele.

O desejo de aprender não é ambição.É nosso destino como homens querer saber.Querer o poder é que é ambição. Não deixeque a erva do diabo o cegue. Já o fisgou.Engoda os homens e lhes dá uma sensaçãode poder. Ela os faz sentir que podem fazercoisas que nenhum homem comum pode fa-zer. Mas isto é a armadilha dela. E em segui-da o caminho sem coração se volta contra oshomens e os destrói. Não custa muito mor-rer, e procurar a morte é não procurar nada.

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Escritos Malditos de uma Realidade Insana

O livro busca registrar de forma direta, sem deixar de viajar por caminhos poé-ticos e até delirantes, o cotidiano de uma sociedade injusta, desigual e opressiva,onde a realidade muitas vezes se dilui no inusitado de uma neurose social com-pulsiva. Nestas páginas, os marginalizados passam em desfiles solitários efantasmagóricos, transbordando por todo lado, mostrando que são, na verda-de, partes de um todo, partes da grande maioria. A margem toma seu lugar nocentro e a escuridão se torna a luz necessária para apreciarmos pontos evitadospor muitos.Para garantir o seu e conher essa obra é só entrar em contato com www.lamparinaluminosa.com

www.lamparinaluminosa.com