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    edição 207 dezembro 2019

    EDITORIAL3 Vozes que não se calam!

    4 VOZ DO LEITOR

    5 SÚMULA

    CONTROLE SOCIAL 10 CNS lança relatório da 16ª

    CAPA | ENTREVISTA14 Drauzio Varella: "Precisamos organizar o SUS"

    ATENÇÃO PRIMÁRIA19 Previne Brasil: mudança sem debate 22 Médicos pelo Brasil: cavalo de Troia?

    PARTICIPAÇÃO26 Juventude engajada 28 Leia na minha camisa... 29 "Quem disse que sumiu?" 30 Vida de militante 32 Entrevista Pedro Gorki: "Existe uma geração disposta a lutar"

    34 SERVIÇO

    PÓS-TUDO35 Mulheres negras e participação

    “Existe uma

    geraçãodisposta a lutar”

    capa: divulgação TV Globo

    ENTREVISTA DELIVERY Cumprindo uma agenda apertada e cercado por pedidos de selfie após sua palestra na 16ª edição da Semana Nacional de Ciência e Tecnologia da Fiocruz, o médico Drauzio Varella deu entrevista à repórter Liseane Morosini a caminho do Aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro

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  • www.radis.ensp.fiocruz.br /RadisComunicacaoeSaude /radisfiocruz flickr.com/photos/radiscomunicacaoesaude

    SUA OPINIÃO

    Para assinar, sugerir pautas e enviar a sua opinião, acesse um dos canais abaixo

    E-mail [email protected] Tel. (21) 3882-9118 End. Av. Brasil, 4036, Sala 510 Manguinhos, Rio de Janeiro, RJ CEP 21040-361

    E D I T O R I A L

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    ■ JUSTA HELENA FRANCO SUBCOORDENADORA DO PROGRAMA RADIS

    Vozes que não se calam!Convidado para a abertura da 16ª edição da semana Nacional de Ciência e Tecnologia da Fiocruz, o médico, professor e escritor Drauzio Varella concedeu entrevista à Radis, quando destacou a importância do SUS para a população brasi-leira. Em sua opinião, o SUS é o maior programa de distribuição de renda do país, enquanto a Estratégia Saúde da Família (ESF) é um dos dez maiores programas de saúde pública do mundo. Para ele, a ESF não deve ser apenas a porta de entrada dos usuários no sistema, mas sim ser resolutiva na assistência aos problemas mais comuns da população. “A ESF não deve servir apenas para a triagem e encaminhamentos”, complementou.

    Para além do reconhecimento da grandiosidade do SUS, com a afirmativa de que “nenhum país com mais de 100 milhões de habitantes ousou dar saúde para todos”, ganham relevância, nas palavras de Drauzio, as doenças crônicas, dire-tamente relacionadas à qualidade de vida da população, ao seu envelhecimento e ao combate ao tabagismo e às drogas — que, segundo ele, são um problema de saúde pública e não de polícia.

    A mensagem de Drauzio corrobora a defesa de uma reo-rientação de políticas de Estado que se afirme como espaço da saúde e não exclusivamente de atenção à doença, impondo-se um processo de construção social que envolva práticas sanitárias e ambientais, que articulem saúde com condições de vida. A lógica é que só mais serviços de saúde não garantem mais saúde.

    A Medida Provisória (MP) nº 890, de 2019, que institui o Programa Médicos pelo Brasil, em substituição ao Mais Médicos, não deixa dúvida quanto à sua essencialidade e a responsabi-lidade do Ministério da Saúde em levar médicos aos locais de difícil acesso e grande vulnerabilidade, assim como, de alguma forma, tratar da formação médica e “corrigir defeitos do pro-grama anterior”, como por exemplo a regularização do vínculo empregatício dos médicos contratados, salários condizentes com a atividade e constante aprimoramento com supervisão.

    O que poderia parecer uma boa alternativa para muni-cípios e estados, oprimidos por uma legislação fiscal, acaba por ameaçar o SUS com a privatização da atenção primária e o afastamento do controle social e a inclusão em seu corpo diretivo da representação do setor privado. A MP exclui as periferias das cidades, mesmo as que apresentam altos índices de precariedade e pobreza, e o mais grave, cria uma agência privada, sob o título de Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (Adaps), para substituir o papel do próprio Estado. A atenção primária em saúde deve ser exercida pelos aparatos estatais de atuação do SUS.

    O SUS é uma política social presente na vida de todos os brasileiros, direta ou indiretamente. Mais de 150 milhões são

    atendidos por ele. Sofre golpes permanentemente, sobretudo em seu financiamento, como acontece com a emenda cons-titucional que estabelece um teto para os gastos públicos por 20 anos e a Desvinculação da Receita da União (DRU), que retira 30% da seguridade social, onde a Saúde está incluída, para fazer superávit primário e pagamento da dívida pública.

    No “varejo” do subfinanciamento do SUS, duas novas medidas assinadas neste mês, como a retirada de mais de 2 bilhões com a extinção do seguro de danos pessoais causados por veículos automotores de vias terrestres (DPVAT) e a nova fórmula de repasse para os municípios cuidarem da atenção primária, aparecem como gratas medidas para quem busca lucrar com a saúde do povo brasileiro e quem a vê como sim-ples mercadoria — e ainda pregam a ideia de que o melhor para o Brasil é a redução do papel do Estado nas políticas sociais, esquecendo que não existe Estado mínimo grátis. Menos dinheiro público de um lado, mais gastos de outro, sobretudo num país tão desigual como o Brasil.

    Mas o SUS resiste com a força dos movimentos sociais que lutam para impedir seu retrocesso, e na luta constante para sua consolidação e em sua missão de continuar público. Um exemplo dessa resistência foi a 16ª Conferência Nacional de Saúde, que mobilizou mais de 4.600 cidades e atingiu diretamente 1 milhão de pessoas. Resistência que se traduz no grito que uniu todos os participantes: “O SUS é nosso e ninguém tira da gente” (veja relatório da participação na CNS nesta edição).

    A pauta da juventude brasileira, que vem se manifestando contra retrocessos e retirada de direitos é extensa. Os muros das escolas, das universidades e dos institutos federais não são suficientes para impedir que a juventude lance um novo olhar sobre suas necessidades. E assim eles se unem e se organizam com a consciência de que “ninguém pode soltar a mão de ninguém”. Em boa hora, essa moçada toma consciência de seus direitos a um bom ensino, bons professores e da neces-sidade de ter liberdade para dizer que quer uma sociedade justa, sem discriminação, com espaço para mulheres, negros e diferentes orientações sexuais, onde qualquer família possa ser tão diversa e plural quanto quiser, lugar onde as salas de aula possam ser de emancipação e não de medo do outro, com garantias constitucionais que só as verdadeiras demo-cracias são capazes de oferecer.

    Para os que insistem em tentar calar essas vozes, uma constatação. Esses jovens não estão reivindicando benesses, luxos e lucros. Querem “saúde, educação e segurança para o jovem brasileiro sem nenhum tipo de servidão”. Querem um Brasil melhor. Será que é pedir muito?

    capa: divulgação TV Globo

    3 DEZ 2019 | n.207 RADIS

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  • HOMEM DE VERDADE?Padrões de masculinidade, um tema urgente (Radis 206)! As mulheres estão abrindo os olhos para a ideia de depender do homem provedor (financeira e emocional-mente), porque muitas provaram que conseguem seguir adiante criando seus filhos sozinhas, buscando afeto em relações familiares, amizades, trabalhos cooperados, atividades alternativas. As mulheres estão debatendo há tempos (desde que resolveram queimar os sutiãs e jogar os padrões na lata de lixo), enquanto os homens, ao invés de repensarem seu papel, ficaram (e ficam, meu Deus) se vitimizando. Tenho fé (principalmente por ter dois filhos homens) que as novas gerações vão se sentir mais seguras para entrar nesse debate.

    Tutti Fukuda, São Paulo, SP

    Padrões de masculinidade ditados por regras machistas, tanto por homens quanto por mulheres. Fantástico esse tema!

    Janne Cortes, Rio de Janeiro, RJ

    4 RADIS n.207 | DEZ 2019

    V O Z D O L E I T O R

    EXPEDIENTE

    é uma publicação impressa e online da Fun-dação Oswaldo Cruz, edita-da pelo Programa Radis de Comunicação e Saúde, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca.

    FIOCRUZNísia Trindade Presidente

    ENSPHermano Castro Diretor

    PROGRAMA RADIS

    Rogério Lannes Rocha Coordenador e editor-chefeJusta Helena Franco Subcoordenadora

    REDAÇÃOAdriano De Lavor EditorBruno Dominguez Subeditor

    ReportagemAna Cláudia Peres, Elisa Batalha, Liseane Morosini e Luiz Felipe Stevanim; Moniqui Frazão e Rodrigo Reis (estágio supervisionado)

    ArteFelipe Plauska; Mariana Carvalho (estágio supervisionado)

    DOCUMENTAÇÃOJorge Ricardo Pereira e Eduardo de Oliveira (fotografia)

    ADMINISTRAÇÃOFábio Lucas e Natalia Calzavara; Tainá Menezes (estágio supervisionado)

    ASSINATURASAssinatura grátis (sujeita a ampliação) Periodicidade

    mensal Impressão Rotaplan Tiragem 119.400 exemplares

    USO DA INFORMAÇÃOTextos podem ser

    reproduzidos, citadaa fonte original.

    NA ESCUTAAcabo de escutar o podcast “Coringa e Saúde Mental”. Disruptivo no formato e no tema! Parabéns!

    Renata Curi, Rio de Janeiro, RJ

    Adorei o podcast. Quanto à opinião do en-trevistado, eu vou contra alguns pontos sobre tratamento de saúde mental. Sou paciente do Caps há mais de dez anos, e acredito que existe um equilíbrio para medicações, existem psicólogos para melhorar a estabilidade dos remédios. A droga é um mal necessário. Conduzir o tratamento de um bipolar por exemplo, é muito sério.

    Cida Vieira, Fortaleza, CE

    Gostei do podcast. Instigante, passível de inúmeros debates!

    Josi Almeida, Volta Redonda, MG

    Ainda não ouviu o podcast? Acesse o site da Radis e escute www.radis.ensp.fiocruz.br

    RADIS AGRADECEPor um maravilhoso acaso, eu estava na recepção de um consultório, aguardando minha consulta, e peguei uma revista Radis para ler. Nossa, que surpresa!! Quanta riqueza de conhecimento! Fiquei tão envolvida com a revista, que até me esqueci da consulta! O médico me deixou ficar com a revista, porque viu meu interesse.

    Rosane Araújo Fernandes, Timóteo, MG

    Sou assinante desta riquíssima publicação e sinto-me muito satisfeito em poder ter acesso

    ao conteúdo de altíssima qualidade desta revista. Muito obrigado!

    Wal Agostinho, Assaré, CE

    Eu amo a Radis! Vocês são perfeitos em escolher as discussões. Gratidão por me instrumentalizar tanto!

    Mariana Galvão, Juiz de Fora, MG

    Revista super-atualizada, leitura fácil, conteúdo excelente de atualidades, super recomendo!

    Solange Ramos, Capão Bonito, SP

    Adoro a revista, sou leitora! Parabéns pelos trabalhos! Um canal de comunicação e divul-gação em saúde.

    Elizete Gonçalves, Várzea Grande, MT

    A revista é excelente! Sempre aborda temas atuais e caros a todos que acreditam nos Direitos Humanos e na política de saúde universal, gratuita e de qualidade. Parabéns a todos e todas que fazem esse belo trabalho!

    Cinthia Alves, Vitória, ES

    A revista é muito boa, com uma linha crítica maravilhosa. Tem um olhar mais voltado para a saúde, mas passa por todas as áreas, inclusive educação e universidades também. Vale muito a pena a leitura!

    Sueli Thomazine, Natal, RN

    Agradeço a Radis pelo envio da revista, fico muito grato. A edição de agosto está muito boa!

    Moisés Morais, Caroebe, RR

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    FIM DO DPVAT: MENOS DINHEIRO PARA O SUS

    O fim do seguro obrigatório DPVAT, determinado pelo presidente Jair Bolsonaro na Medida Provisória 904, em 11/11, terá impactos sobre o financiamento do SUS. Isso porque 45% do valor arrecadado com a contribuição paga por todos os proprietários de veículos são destinados ao custeio da assistência médico-hospitalar às vítimas de acidentes de trânsito — em 2018, foram R$ 2,1 bilhões direcionados ao SUS. Entre 2008 e 2018, foram repassados R$ 33,4 bilhões ao sistema público, como noticiou O Globo (13/11). O DPVAT (Seguro de Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Vias Terrestres) indeniza vítimas de acidentes de trânsito, não apenas motoristas, mas também passageiros e pedestres. Somente em 2018, 328 mil vítimas foram indenizadas, entre casos de invalidez permanente, morte e reembolsos de despesas médicas.

    O dinheiro arrecadado é distribuído da seguinte forma: uma parte (45%) é utilizada para cobrir as despesas que o sistema público de saúde tem ao atender as vítimas de aciden-tes; outros 5% são destinados ao Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) para promover campanhas de educação com foco na prevenção; o restante (50%) é direcionado às indenizações e à administração do seguro: em 2017, 42%

    de toda a arrecadação foi revertida em indenizações, como destacou a Folha de S.Paulo (12/11). O DPVAT é gerido pela Seguradora Líder, um consórcio formado por 73 seguradoras. Os valores pagos aos usuários são R$ 13,5 mil, em caso de morte, ou de até essa quantia, em caso de invalidez perma-nente. Ao assinar a medida que acaba com o seguro a partir de 1º de janeiro de 2020, Bolsonaro alegou os altos índices de fraudes e custos operacionais para sua manutenção, como a Folha noticiou (11/11) — e, em uma transmissão online (14/11), afirmou que “tudo que é obrigatório não é bom”.

    Contudo, a MP será analisada por uma Comissão mista da Câmara e do Senado e precisa ser votada nas duas casas, ou seja, o Congresso ainda pode retornar com o seguro. “É um seguro que cobre 210 milhões de pessoas, todos os brasileiros, seja pedestre ou não”, afirmou ao Globo (13/11) o presidente da Frente Parlamentar em Defesa do Trânsito Seguro, deputado federal Hugo Leal (PSD-RJ). Em fevereiro, a capa de Radis (197) abordou o tema da violência no trânsito. Segundo o Observatório Nacional de Segurança Viária (ONSV), cerca de 60% dos leitos hospitalares do SUS são preenchidos por acidentados. O trânsito mata 40 mil pessoas todos os anos no Brasil.

    PARA ONDE VAI O DINHEIRO DO DPVAT?

    45%SUS (atendimento às vítimas de trânsito)

    5%Denatran (campanhas de prevenção)

    42%indenizações (pedestres, motoristas e passageiros)

    8% administração do seguro

    5 DEZ 2019 | n.207 RADIS

    S Ú M U L A

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  • Indústria de alimentos quis esconder alerta sobre ultraprocessados

    Uma matéria publicada no site de notícias The Intercept Brasil (30/10) trouxe a revelação do ex-ministro da Saúde Arthur Chioro sobre como atuou o lobby da Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia) para que “O guia alimentar para a população brasileira” não fosse publicado. “Havia três pontos-chave, três questões das quais a indústria não abria mão. Uma delas era que não se publicasse em hipótese alguma o guia alimentar”, revelou Chioro na reportagem intitulada “Associação bancada por Nestlé e Coca-cola tentou engavetar guia que recomenda comida de verdade”.

    O guia acabou sendo publicado em 2014 e foi considerado inovador ao descrever o que é considerado alimentação saudá-vel: saíram as recomendações nutricionais complicadas, entraram diretrizes mais simples, focadas em comida de verdade — aque-las baseadas em ingredientes in natura e minimamente proces-sados — e redução do consumo de alimentos industrializados.

    Nos últimos dois anos, foram publicados vários artigos cien-tíficos que chancelam as recomendações do guia brasileiro. Eles mostram que o consumo de ultraprocessados está associado a um aumento do risco de morte, de doenças cardiovasculares, de câncer e de obesidade.

    Brasileiros entre os cientistas mais influentes

    A lista com os 6.216 cientistas mais influentes do mundo — a Highly Cited Researchers, da Clarivate Analytica, empresa de consultoria britânica que calcula quantas vezes o nome foi citado em artigos nos últimos dez anos — incluiu 15 brasileiros na edição 2019. Os nomes, que se caracterizam como os 1% de cientistas e cientistas sociais que têm “desempenho excepcional” em um ou vários dos 21 campos de atuação especificados no banco de dados do Essential Science Indicators (ESI), foram divulgados em 19 de novembro.

    Entre eles, está Cesar Victora, professor emérito de Epidemiologia na Universidade Federal de Pelotas, com pes-quisas sobre saúde e nutrição materno-infantil, amamentação, coortes de nascimento, desigualdades sociais e avaliação de serviços de saúde. Outro nome do Brasil é Carlos Monteiro, professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), referência internacional na discussão que

    relaciona a obesidade ao consumo de alimentos ultrapro-cessados. Também aparece Renata Levy, pesquisadora cien-tífica no Departamento de Medicina Preventiva da USP, com estudos sobre consumo de alimentos, hábitos alimentares, alimentação escolar e complementar.

    Os outros brasileiros listados são: Andre Russowsky Brunoni, Houtan Noushmehr e Paulo Eduardo Artaxo Netto, da USP; Henriette M. C. de Azeredo e Renata Valeriano Tonon, da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária; Adriano Gomes Cruz do Instituto Federal do Rio de Janeiro; Alvaro Avezum do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia; Flavio Kapczinski da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; José A. Marengo do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais; Mauro Galetti da Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho; Miriam D. Hubinger da Universidade Estadual de Campinas e Roldan Muradian, da Universidade Federal Fluminense.

    MPF pede revogação de intervenções médicas sem consentimento das mulheres

    O Ministério Público Federal entrou com uma ação cívil pública em 7 de novembro para que sejam revogados pontos da Resolução 2.232/2019 do Conselho Federal de Medicina (CFM), publicada em setembro. Nela, gestantes brasileiras são obrigadas a passar por intervenções médicas mesmo sem concordar (Folha de S.Paulo, 7/11). Isso significa, por exemplo, que se no plano de parto a mulher decidir que não quer uma episiotomia (corte no períneo que facilita a saída do bebê) ou ocitocina sintética (hormônio usado para acelerar o parto) e o médico entender que eles sejam necessá-rios, a palavra do profissional vai ser a final e a mulher passará pelos procedimentos, mesmo não autorizando.

    O Ministério Público Federal entende que as regras são ilegais, pois “ignoram a exigência prevista na legislação de que haja iminente perigo de morte para que tratamentos recusados sejam impostos aos pacientes”.P

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    6 RADIS n.207 | DEZ 2019

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  • Vacina contra o sarampo continua

    O Ministério da Saúde vai estender a cobertura da vaci-nação contra o sarampo em 2020. A nova campanha ainda não tem data definida, e vai contemplar a faixa etária de 5 a 19 anos, de 30 a 49 anos e de 50 a 59 anos, com o objetivo de interromper a circulação do vírus e estender a proteção à rubéola, impedindo o surgimento de casos da doença. A meta é vacinar 2,6 milhões de crianças na faixa prioritária e 13,6 milhões de adultos.

    Segundo informou o site Terra (17/11), o surto de sa-rampo levará pelo menos entre seis a oito meses para ser contornado. Entre setembro e novembro, foram registrados 5.660 casos da doença, com seis mortes, em 18 Estados. A maioria dos casos (90,5%) está concentrada em 176 municípios (27%) do estado de São Paulo, principalmente na região metropolitana.

    A estimativa é de que 39,9 milhões de brasileiros — 20% da população, estão suscetíveis ao vírus, como destacou o site Estadão (18/11). O objetivo das campanhas é que a população tome duas doses da vacina tríplice viral (caxumba, rubéola e sarampo) com intervalo mínimo de 30 dias. O site da revista Saúde salientou que tanto a vacina tríplice viral como a tetra-valente (que evita também a catapora) são administradas na rede pública o ano inteiro em brasileiros de até 49 anos que cumprem certos requisitos, dentro ou fora de surtos. 

    De acordo com a EBC, foi também iniciada (20/11) a segun-da fase da campanha Movimento Vacina Brasil nas Fronteiras, que prevê ações de vacinação contra o sarampo e a febre amarela em oito municípios brasileiros que fazem fronteira com Argentina, Paraguai, Uruguai, Bolívia e Colômbia. No total, 16 municípios tiveram suas ações de vacinação intensificadas. 

    7 PERGUNTAS SOBRE SARAMPO

    O QUE É O SARAMPO?

    • Sarampo é uma doença infecciosa grave, causada por um vírus, que pode ser fatal. Sua transmissão ocorre quando o doente tosse, fala, espirra ou respira próximo de outras pessoas.

    QUAIS SÃO OS PRINCIPAIS SINTOMAS?

    • Febre acompanhada de tosse; irritação nos olhos; nariz escorrendo ou entupido; mal-estar intenso.

    POR QUE DEVO VACINAR?

    • A vacina é a única maneira de evitar o sarampo. O vírus baixa a imunidade do paciente e ele pode morrer por pneumonia ou encefalite, que é um tipo de meningite.

    QUAL É O ESQUEMA DE VACINAÇÃO?

    • O ministério incluiu uma dose extra para ser dada a partir de seis meses de idade. Depois, a vacina é aplicada aos 12 meses, com reforço aos 15 meses (última dose por toda a vida). Até 29 anos, é preciso tomar duas doses. Entre 30 e 59 anos, apenas uma dose é necessária.

    TODOS DEVEM SE VACINAR?

    • Grávidas, bebês com menos de seis meses, pessoas com baixa imunidade por doença ou uso de medicação e alguns grupos de pessoas que tenham o vírus HIV não devem ser vacinados. Pessoas que têm alergia grave à proteína do leite de vaca (lactoal-bumina) devem receber a dose feita sem essa substância.

    “NÃO LEMBRO SE FUI VACINADO”. E AGORA?

    • Para quem tem de 1 a 29 anos, são neces-sárias duas doses, com intervalo de 30 dias entre elas. Já quem tem de 30 a 49 anos deve tomar apenas uma dose.

    ONDE BUSCO INFORMAÇÕES?

    • Procure uma Unidade Básica de Saúde, tire suas dúvidas e aproveite para receber a vacina, se for preciso.

    Fonte: Ministério da Saúde

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    7 DEZ 2019 | n.207 RADIS

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  • 30%foi o crescimento do desmatamento na Amazônia entre 1º

    de agosto de 2018 e 31 de julho de 2019

    3ºmaior crescimento

    do índice na história, perdendo apenas para 1995 (95%) e 1998 (31%)

    9.762 km²foi a área desmatada no período na região

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    Fonte: Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), 18/11

    Óleo no Sudeste Após ter se espalhado pelos nove estados nordestinos (Alagoas, Bahia, Ceará, Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe), fragmentos de óleo de origem ainda desconhecida avançaram pela região Sudeste em direção ao Sul. Em novembro, vestígios do material foram encontrados em praias do Espírito Santo e do Rio de Janeiro. Balanço do Ibama (24/11) indicou que o óleo já atingiu 764 localidades em 124 municípios de 11 estados brasileiros.

    Concentração de CO2 é a mais alta em três milhões de anos

    A concentração de dióxido de carbono (CO2), metano (CH4) e óxido nitroso (N2O) bateu um novo recorde em 2018, informou o 15º boletim anual sobre a concentra-ção de gases de efeito estufa na atmosfera divulgado pela Organização Meteorológica Mundial (OMM), agência das Nações Unidas (25/11). Segundo o relatório, a concentração de CO2 atingiu 407,8 partes por milhão (ppm), o metano atmosférico alcançou 1.869 partes por bilhão (ppb) e o óxido nitroso tem concentração atmosférica de 331,1 ppb. Se compararmos com o período pré-Revolução Industrial (1760), a concentração desses gases aumentou 47%, 159% e 23%, respectivamente. Os números resultam da medição de mais de 100 estações espalhadas pelo planeta, informou o jornal El País (25/11).

    A OMM ressalta que o crescimento constante da con-centração destes gases na atmosfera resultará em impactos cada vez mais graves na mudança climática para as futuras

    gerações, entre eles, aumento das temperaturas, eventos extremos, estresse hídrico, aumento do nível do mar, perda de ecossistemas marinhos e terrestres. Simultaneamente, a adição destes gases faz o planeta acumular recordes de temperatura. O ano de 2018 foi considerado o quarto mais quente registrado desde que as medições começaram, em 1850. Os outros três foram 2015, 2016 e 2017; há previ-são de que 2019 também passe a figurar na lista dos mais quentes.

    Petteri Taalas, secretário-geral da OMM, afirmou em um comunicado que, apesar de compromissos assumidos com o Acordo de Paris, não há sinais de desaceleração e diminuição da concentração de gases de efeito estufa. O Acordo de Paris estabelece que, se os planos de redução das emissões dos países não forem suficientes, os Estados devem revê-los. Esta revisão deve ser realizada em 2020 na Cúpula do Clima que acontecerá em Madri (Espanha), dentro da COP25.

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  • "À queima roupa"

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    Acidente a caminho do trabalho deixa de

    ser coberto pelo INSS

    Conforme ofício publicado pela Secretaria da Previdência no dia 18 de novembro, os acidentes ocorridos nos tra-jetos de ida e volta entre a casa e o local onde o profissional atua não são mais considerados acidentes de trabalho — e não são mais cobertos pelo INSS, portanto. Com a Medida Provisória 905/2019, situações do tipo passam a ser resol-vidas entre empregado e empresa, sem a interferência da Previdência Pública. De acordo com o site de assuntos jurídicos Consultor Jurídico (21/1), o governo “empurrou de volta ao Congresso mudança importante de Direito do Trabalho que já havia sido rejeitada pelos parlamentares”.

    A alteração pode reduzir em até 40% o valor da aposen-tadoria por incapacidade gerada por acidente em desloca-mento. Além disso, o trabalhador acidentado também sofrerá consequências como o fim da estabilidade do empregado em caso de falta do auxílio, e do depósito do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) pelo empregador durante o afastamento.

    O especialista em Direito do Trabalho Ricardo Calcini, ouvido pelo site, no entanto, afirma que a nova regra não isenta as empresas de responsabilidade civil nos casos de acidente sofridos no caminho para o trabalho. “Afinal, já há consenso na jurisprudência que existe independência entre a responsabilidade previdenciária prevista na Lei nº 8.213/1991, e a responsabilidade do empregador prevista no Código Civil”, analisa.

    Por se tratar de medida provisória, a nova classificação do acidente de trajeto vai ter validade de 60 dias, com possibi-lidade de prorrogação por igual período, conforme lembrou o site Notícias Concursos (21/11). Após isso, a medida deixa de valer caso não seja convertida em lei pelo Congresso.

    6ª Mostra VideoSaúde

    “À queima roupa”, de Theresa Jessouroun, foi o vencedor na categoria longa-metragem da 6ª Mostra VideoSaúde, que selecionou produções audiovisuais com temas que envolvem o conceito am-pliado de saúde. O documentário investiga o histórico de violência e corrupção policial do Rio de Janeiro, partindo da Chacina de Vigário Geral, em 1993, na qual 21 pessoas morreram, e chegando ao ano de 2013. “Simbiose”, de Júlia Morim, que lança um olhar sobre o trabalho das parteiras pela voz e história de Maria dos Prazeres de Souza, venceu na categoria média-metragem. “Perfil: Guido Carlos Levi”, de Diana Zatz Mussi, que traz a história das vacinas em uma entrevista com o infectologista Guido Carlos Levi, ga-nhou o prêmio de melhor curta-metragem. “Corações paraibanos”, de Ricardo Puppe, que acompanha uma caravana da Rede de Cardiologia Pediátrica prestando atendimento a crianças com cardiopatia congênita, levou o prêmio do júri popular. O prêmio especial do júri foi para “A primeira pedra”, de Vladimir Seixas, que discute a prática do linchamento através de depoimentos de sobreviventes, parentes de vítimas e especialistas.

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    "Simbiose"

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  • CNS LANÇA RELATÓRIO DA 16ª

    Pesquisa traçou perfil dos participantes, indicando que a maior parte foi delegado nacional pela primeira vez

    ELISA BATALHA

    “A conferência é um processo”. Essa foi uma fala que surgiu em diferentes momentos da solenidade de lançamento do relatório da 16ª Conferência Nacional de Saúde, durante

    a 323ª reunião ordinária do Conselho Nacional de Saúde, que lotou o auditório da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), no Rio de Janeiro, no dia 7 de novembro. Os discursos falaram da determinação em preservar a participação social e divulgar o documento que deve nortear as ações do Ministério da Saúde para o SUS e para o Plano Plurianual (PPA) 2020-2023. São 31 diretrizes e 329 propostas que têm a função de orientar as decisões do governo federal para o SUS (Radis 204). Entre elas, as que já foram apresentadas na Câmara dos Deputados e devem ser incluídas ao Projeto de Lei nº 21/2019, que institui o Plano Plurianual (PPA) 2020-2023.

    “Este documento expressa a força do SUS. Ele é fruto do diálogo, respeito e de uma pactuação que vamos seguir construindo pela defesa de direitos que acreditamos”, disse o presidente do CNS, Fernando Pigatto. Ele fez questão de ressal-tar que mais de 80% dos municípios realizaram conferências, mais de 4.600 cidades, e o processo teve a participação direta de um milhão de pessoas.

    Socorro Gros, representante da Organização Panamericana de Saúde (Opas/OMS), lembrou que o SUS é o único sistema universal para população com mais de 100 milhões de pessoas e por isso é considerado “um baluarte” para as Américas. “Não podemos pensar em um sistema universal sem a participação de todos. O Brasil tem a maior população de jovens das Américas e, para que a expressão desses jovens seja pacífica, tem que ser ouvida na demo-cracia”, defendeu.

    Nísia Trindade, presidente da Fiocruz, destacou para a Radis o simbolismo do evento acontecer na “casa de Sergio Arouca”, como outros integrantes da mesa também lembra-ram. Durante a solenidade, ela falou do profundo processo de mudanças políticas e sociais que ocorreram no país desde a realização da histórica 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, responsável por definir as bases para a Constituição de 1988 e a construção do SUS. Nísia ressaltou também que hoje o SUS vive um grande desafio no contexto de aumento de desigualdade. “Somente uma discussão democrática e um projeto que coloque a saúde e o SUS como patrimônio da sociedade brasileira nos permitirão construir uma agenda para o futuro da nossa democracia”.

    REPRESENTATIVIDADE, PARTICIPAÇÃO, RENOVAÇÃO

    “A participação social não é mais do mesmo”, afirmou Francisca Rêgo, coordenadora da Comissão de Relatoria da 16ª Conferência Nacional de Saúde. A renova-ção dos participantes é o principal dado que fundamenta sua observação. A pesquisa “Saúde e democracia: estudos integrados sobre participação social na 16ª Conferência Nacional de Saúde”, organizada pelo CNS, mostrou que 63% dos delegados estiveram pela primeira vez em uma etapa nacional. Enquanto alguns tinham estado presente na clássica 8ª Conferência, em 1986, e pouco mais de mil participantes (36,4%) já estavam pelo menos na sua segunda etapa na-cional, para 1.800 entrevistados (63,1%) era a estreia. “Esse

    dado é muito significativo, para demonstrar uma renovação importante neste espaço de participação social em saúde”, reiterou Alcindo Ferla, um dos coordenadores da pesquisa.

    Alcindo, que é professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e participa de pesquisas em diferentes institui-ções na área de Saúde Coletiva e Educação, fez questão de registrar a representatividade da amostra, considerada “ro-busta”. Para ele, os resultados traçam um perfil muito preciso daquele mix de pessoas que circulou no Pavilhão de Exposições do Parque da Cidade, em Brasília, entre 4 e 7 de agosto pas-sados. Foram aplicados questionários a 2.853 participantes, dos quais 2.168 eram delegados, 585 eram convidados e 100

    CONTROLE SOCIAL

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  • participavam de outras formas do evento. Aproximadamente 72% de todos os delegados responderam à pesquisa e 57% dos demais convidados. Foi a primeira pesquisa desse tipo protocolada e aprovada pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep).

    O pesquisador relatou à Radis que a experiência superou as expectativas, com destaque para o empenho da equipe de 130 pesquisadores que aplicavam o questionário: “Contamos com grande número de voluntários, muitos estudantes, in-clusive de mestrado e doutorado”. Os pesquisadores foram selecionados entre candidatos convocados por uma chamada pública. Havia muitos residentes, mestrandos e doutorandos. Alcindo destacou também a participação de alunos de progra-mas de residência da Fiocruz Brasília. “Eles estavam por toda parte. Quem esteve presente na 16ª não pôde deixar de notar os pesquisadores circulando com seus coletes verdes, com muita disposição e interesse no sentido de desenvolver uma metodologia que permitisse formar o retrato mais fidedigno possível dos participantes e que pudesse ser desdobrado em informações para estudos mais amplos”, resumiu Alcindo. Com a forte adesão, a ideia de sistematizar cada vez mais os dados foi tomando corpo. “Houve total preocupação com ética e forte motivação. Foi um grande exercício no maior evento de participação social em saúde”, afirmou.

    As vozes que gritavam “O SUS é nosso, ninguém tira da gente” — uma das palavras de ordem mais ouvidas — vinham de todo tipo de pessoas, como apontaram os resultados. A idade dos entrevistados variou de 18 a 80 anos, e a média foi de 44 anos — uma variação intergeracional muito significati-va, com alta participação de adultos jovens ao lado de idosos. Em relação ao quesito raça/cor, 38,8% se autodeclararam par-dos, 37,7%, brancos, 19,8%, pretos. Declararam-se indígenas 2,5% dos entrevistados, e 1,2%, amarelos. A escolaridade

    variou da alfabetização até doutorado. Entre os participan-tes que responderam o questionário, 47% possuíam curso superior na área da saúde. Apareceu um número expressivo de profissionais de outras áreas, como direito, engenharia, administração e história. A 16ª reuniu participantes de todos os estados do país, com grande representação das regiões Nordeste e Sudeste. As mulheres foram presença majoritária, representando 55,3% dos participantes.

    A pesquisa não tratou só de números; algumas perguntas buscaram compreender aspectos subjetivos. As respostas, segundo os organizadores, “contribuirão para a análise dos fenômenos coletivos”. Por exemplo: os entrevistados em sua maioria declararam que se sentiam esperançosos (78%), en-quanto 10% se disseram “céticos” e outros 11% declararam outros sentimentos predominantes. “A pesquisa também foi uma intervenção que alterou a paisagem da 16ª, produzindo um espaço aberto para a fala dos sujeitos, construída em movimentos reflexivos”, apontou o relatório. No documen-to, consta também que o objetivo manifesto pelo Conselho Nacional de Saúde é o de “produzir mais participação e diversificar o perfil dos participantes”.

    Entre os participantes que responderam o questionário, houve 1.341 com curso superior na área da saúde, represen-tando 47% dos sujeitos dessa etapa da pesquisa. As profissões da saúde presentes foram: enfermagem, medicina, serviço social, psicologia, odontologia, farmácia, saúde coletiva, biologia, nutrição, educação física, fonoaudiologia, terapia ocupacional, medicina veterinária, fisioterapia, biomedicina. Entre os profissionais que participaram da conferência e possuíam nível superior fora da área da saúde, constavam as seguintes formações: direito, engenharia, administração, história, antropologia, engenharia de alimentos, filosofia, zootecnia, biotecnologia.

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    O presidente do CNS e a presidente da Fiocruz: relatório final da 16ª lançado

    11 DEZ 2019 | n.207 RADIS

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  • ESTADOS DE ORIGEM

    • Todas as 27 unidades federativas do país

    • Sudeste 28,9%

    • Nordeste 28,73%

    • Centro-Oeste 16,86%

    • Norte 12,89%

    • Sul 12,61%

    QUEM ERAM OS PARTICIPANTES DA 16ª?

    COR (AUTODECLARAÇÃO)

    • 38,8% pardos

    • 37,7% brancos

    • 19,8% pretos

    • 2,5% indígenas

    • 1,2% amarelos

    RENDA

    • A mediana de renda foi de 3 mil reais

    • A renda de 50% dos entrevistados era de até 3 mil reais e os demais 50% possuíam renda superior a 3 mil reais

    IDADE DE 18 A 80 ANOS

    • Média de idade foi de 44,36 anos

    • A média aponta uma característica de interge-racionalidade na participação, considerando a equilibrada distribuição entre as diferentes faixas etárias, e de renovação da participa-ção, representada pelo expressivo volume de adultos jovens e de pessoas idosas

    ESCOLARIDADE

    • 0,1% participantes em cursos de alfabeti-zação

    • 0,6% com alfabetização completa

    • 0,6% cursando o ensino fundamental

    • 2,6% com ensino fundamental completo

    • 0,9% cursando o ensino médio

    • 18,5% com ensino médio completo

    • 12,6% cursando o ensino superior

    • 22,5% com ensino superior completo

    • 2,9% cursando alguma especialização

    • 20% com algum curso de especialização concluído

    • 2,5% cursando residências uni ou multi-profissionais

    • 1,1% com residência concluída

    • 2,4% cursando mestrado

    • 7% com mestrado concluído

    • 1,5% cursando doutorado

    • 4,2% 119 com doutorado concluído

    SEXO

    • 55,3% eram mulheres

    • 44,7% eram homens

    ORIENTAÇÃO SEXUAL

    • 2% lésbicas

    • 5,6% gays

    • 4,3% bissexuais

    • 87,3% heterossexuais

    • 0,4% pansexuais

    • 0,1% assexuados

    • 0,3% se denominavam outras classifi-cações

    PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

    • 87 entrevistados se declararam pessoa com deficiência (6,6%)

    • 56 desses afirmaram que a deficiência dificultava a participação na Conferên-cia Nacional de Saúde (aproximada-mente 30%)

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  • Comunicação colaborativa

    Um aspecto da 16ª que chamou a atenção foi a forte presença de “comunicadores ativistas”. A jornalista Laura Fernandes coordenou um grupo “que passou de cem pessoas” para compor a Assessoria de Comunicação da conferência. “Foi um exercício de comunicação colaborativa”, avaliou ela à Radis. Os comunicadores, que não necessariamente eram jornalistas, produziram matérias antes e durante o evento, para o portal SUS Conecta, além de centenas de fotos, ví-deos e posts para plataformas do Facebook, Flickr, YouTube e Instagram.

    Para chegar a essa sintonia, Laura contou que começou pedindo ajuda. “Nós fizemos um chamamento geral, man-damos email para todos os parceiros — órgãos do governo e sociedade civil, conselhos e sindicatos — para que eles indicassem representantes da comunicação”. O CNS, disse, não tem a estrutura necessária para cobertura tão grande. “Fomos a várias entidades e perguntamos ´Como vocês po-dem nos ajudar?’”. Alguns tinham determinada ferramenta tecnológica, outros tinham pessoas que podiam contribuir com suas experiências com redes sociais. Assim também foi montada a sala de imprensa.

    Todos foram adicionados a um grupo no whatsapp, constituindo uma rede. “Mantivemos sempre alimentadas

    as plataformas, contando com a parcela da imprensa que costuma estar antenada ao tema da saúde pública e os pro-fissionais setoristas de saúde também. Foi muito gratificante ver o interesse dos comunicadores, militantes e ativistas”, observou Laura.

    VÍNCULO DE TRABALHO

    • O vínculo de trabalho mais frequente foi com o serviço público

    • 55,2% servidores públicos

    • 10,4% aposentados

    • 10% autônomos

    • 6,2% trabalhadores da iniciativa privada

    • 6% bolsistas

    • 5,2% estudantes

    • 4,6% desempregados

    • 1,3% realizavam trabalhos voluntários

    • 0,8% empresários

    • 0,3% trabalhadores domésticos

    SENTIMENTO

    • 78,2% se sentiam esperançosos

    • 10,3% se sentiam céticos

    • 11,4% relataram outros sentimentos

    • Nesta última categoria de resposta, o sentimento mais frequente foi o de pre-ocupação com o SUS

    FONTE: CNS

    PARTICIPAÇÃO SOCIAL

    • 95,6% consideraram que se trata de tema muito relevante para a saúde

    • 4,2% consideraram que o tema é rele-vante

    • 0,2% consideraram pouco relevante

    IDENTIDADE DE GÊNERO

    • 1.112 eram homens cis (40,3%)

    • 33 eram homens trans (1,2%)

    • 1.351 eram mulheres cis (40,3%)

    • 30 eram mulheres trans (1,1%)

    • 2 eram travestis (0,1%)

    • 8 se declararam não binários (0,3%)

    • 224 responderam não saber responder sobre sua identidade de gênero

    Laura Fermandes (de branco) em ação na sala de imprensa da 16ª CNS

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    PRECISAMOSORGANIZAR O

    CAPA | ENTREVISTA

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  • “O que aconteceu com a saúde do Brasil?”, per-guntou Drauzio Varella à plateia que lotava o auditório do Museu da Vida, no Rio de Janeiro, naquela manhã de 21 de outubro. O

    médico havia chegado de São Paulo para abrir a 16ª edição da Semana Nacional de Ciência e Tecnologia (SNCT) da Fiocruz. Iria falar de saúde, ciência, mostrar dados do país. Mas, como ele disse logo no início, deixou seu pen drive com a apresentação em casa. Falaria de improviso. Sem perder o bom humor, Drauzio teve espaço de sobra para se voltar a temas que defende de forma incondicional, em especial o SUS, que considera uma “ousadia” e “a maior revolução na história da medicina brasi-leira”. “Imagina um país como era o Brasil, em 1988, em que um bando de visionários resolve dizer ́nós temos que dar saúde gratuita para todos´. Até hoje, nenhum país com mais de 100 milhões de habitantes ousou tanto”, avaliou.

    Dono de uma personalidade carismática, Drauzio voltou no tempo e costurou histórias de sua vida pessoal para mostrar o quanto o Brasil avançou depois da criação do sistema. Para ele, há um antes e um depois claro, um marco a partir de 1988. O menino nascido no Brás, um bairro operário na Zona Leste de São Paulo, só aos sete anos foi ao médico — e virou o centro da curiosidade dos amigos. “Naquela época ninguém tinha pediatra, ninguém ia ao médico tão cedo. Alguém consegue imaginar que isso é possível hoje em dia?”, comparou, lem-brando que o país, à época, era majoritariamente rural. “Se não havia pediatra para crianças que moravam na periferia da cidade que mais crescia, imagina que tipo de assistência médica era dada pelo país. Não havia assistência médica. Ponto. Não havia nenhum planejamento ou intenção de dar saúde pública para todos. O SUS mudou esse quadro”.

    Formado pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, onde entrou em 1962, Drauzio Varella é oncologista, professor, escritor — autor de 10 livros sobre saúde e temas sociais — e palestrante. Há mais de 30 anos, é voluntário em penitenciárias paulistas, masculinas e femininas, trabalho que foi iniciado com prevenção à aids na Casa de Detenção de São Paulo. Dessa experiência surgiu a trilogia "Estação Carandiru" (1999), "Carcereiros" (2012) e “Prisioneiras” (2017), que mos-tram a crueza do sistema carcerário brasileiro, a invisibilidade de pessoas encarceradas e como funciona a vida para quem

    está atrás das grades. O primeiro deles, um best-seller, recebeu o Prêmio Jabuti na categoria "não-ficção", em 2000. Quatro anos depois, virou filme dirigido pelo cineasta Hector Babenco.

    Muito antes do filme, em 1985, Drauzio tratou os primeiros casos de aids em São Paulo. O médico foi um dos pioneiros no tratamento da doença, especialmente do sarcoma de Kaposi, no Brasil. Em 1986, gravou campanhas de prevenção à aids em rádios paulistas. Ao publicar um artigo em um jornal sobre o as-sunto, ele deu seus primeiros passos no campo da comunicação e saúde. “Quando comecei, médico não falava nos meios de comunicação pois era interpretado como autopropaganda. Hoje mudou completamente e há muita gente da melhor qualidade transmitindo informações importantes”, assegurou.

    Mas foi a televisão que deu ao médico visibilidade nacio-nal. Desde 2003, ele apresenta um quadro aos domingos no Fantástico, da Rede Globo. Hoje, Drauzio participa de todas as mídias e faz sucesso nas redes sociais. Seu canal no YouTube, lançado em 2015, é identificado como “o maior canal de saúde do Brasil: de resfriado a questões sociais”, definindo os contornos de sua abordagem sobre saúde. Só nesta rede ele possui 1,75 milhão de seguidores que, junto com a audiência da página no Facebook e perfis no Instagram e Twitter, somam quase 6 milhões de pessoas.

    Por meio de seu trabalho, o médico fala de saúde, de vida e do SUS, sem se furtar a tocar em temas tabus, como o uso de drogas e o sistema de encarceramento no país. Um dos vídeos mais acessados do Canal do Drauzio, no YouTube, é justamente o bate-papo sobre maconha, assunto que também abordou na palestra. Sua fala na Fiocruz manteve o mesmo tom leve e direto de quem fala sobre drogas “sem pagar de moralista”. Durante 50 minutos, o médico provocou reflexões e risadas. O status de celebridade ficou patente ao final quando, atrasado para pegar um voo, foi retido pelos inúmeros pedidos de selfies e autógrafos.

    A saída pela porta lateral foi, assim, estratégica: com uma agenda apertada, Drauzio tinha que voltar rapidamente para São Paulo a fim de cumprir sua rotina semanal de atendimento na Penitenciária Feminina de São Paulo. A caminho do Aeroporto Santos Dumont, ele conversou com a reportagem da Radis e voltou a reforçar a potência e importância do SUS para a so-brevivência dos brasileiros. Seu pensamento pode ser resumido em uma frase: “Sem o SUS é a barbárie”.

    DRAUZIO VARELLA

    PRECISAMOSORGANIZAR O SUS

    LISEANE MOROSINI

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  • Como o senhor vê o Brasil de hoje? O Brasil está atravessando uma fase muito dura do ponto de vista econômico. Eu nunca vi uma crise com um desemprego absurdo como esse. São 13 milhões de pessoas sem emprego. Lógico que esse quadro repercute na saúde. Hoje, há mais pessoas dependentes do SUS e quem está desempregado vive em situação de vulnerabilidade, como acontece com grandes massas populacionais no Brasil. Além disso, eu vejo o desinteresse até ostensivo com programas sociais, não só em relação à saúde. O SUS já vinha lutando com dificuldades enormes. Aí cortaram [a verba] e entrou a ideologia no meio de fatores que são puramente de ordem técnica. Ficou ainda mais difícil.

    Qual é o nó crítico da política de saúde brasileira?O país não tem uma política de Estado na saúde. Nos últimos dez anos, tivemos 13 ministros da Saúde. De que forma vamos organizar o sistema sem continuidade? Se o ministro cai, muda todo mundo. Nos níveis federal, estadual e municipal, muitos são escolhidos por orientação política. Acho que a saúde tem que ser blindada dessa política partidária no mau sentido. Falta dinheiro, claro, mas dinheiro não vai resolver nosso problema. Os Estados Unidos investem 17% do PIB deles em saúde. Só que o PIB deles é de 19 trilhões de dólares, então vão uns 3 trilhões de dólares para a saúde. É mais do que o PIB brasileiro; tudo que nós produzimos no país eles investem em saúde. E o americano médio vive 78 anos; o brasileiro vive 76 anos. Eles jogam dinheiro e a expectativa de vida deles está caindo. Lá tem um conjunto de fatores que levam a à obesidade e a um pacote de doenças difíceis de tratar. E uma medicina tecnológica da qual nunca vamos dispor.

    É uma questão de gestão?Nenhum sistema funciona bem com várias portas de entrada, nem a casa da gente. Temos que ter uma única porta de entrada. Até pouco tempo, quando alguém precisava de atendimento, pedia que um político ou uma pessoa influente telefonasse para um médico amigo no hospital, este falava do caso e furava a fila. Esse era um sistema cheio de privilégios e começou a ser organizado. Hoje, se um milionário precisa de um transplante de fígado, tem de entrar na fila junto com os outros na disputa pelo órgão. Não vai passar na frente de ninguém porque essa informação está disponível na internet. A Estratégia Saúde da Família está montada e é um dos dez melhores programas de saúde pública do mundo, mas ela é tratada com descaso. Se funciona bem e cobre 66% da população do país (no Nordeste cobre 82% da população), deve ser a porta de entrada. A pessoa está com dor de cabeça e vai procurar um neurocirurgião: isso encarece demais, não é sustentável. Se olharmos a fila com um pouco de critério, veremos que 80% a 90% das pessoas não tinham que estar naquele lugar. Por isso é que eu acho que a estrutura toda está aí, falta organização. Nós temos tudo. Claro que precisamos de mais recursos, mas nunca os recursos serão suficientes. O que é doído é que temos toda a estrutura armada no SUS, só que ela funciona mal.

    O senhor tem afirmado que é o SUS é a maior política de inserção social.

    O SUS já atende diretamente 75% da população ou 150 mi-lhões de brasileiros. Se você retirar o SUS, é a barbárie. O que vai acontecer com essa legião de pessoas? Onde serão atendidas? Não tem alternativa: precisamos organizar o SUS para atender essas pessoas com mais eficiência, interferir com a medicina preventiva, dar o atendimento com a atenção básica à saúde. O SUS tem tudo, não precisaria nem de recursos imensos para fazer a cadeia funcionar regularmente. Repito: a estrutura está toda montada e o que precisamos é de uma diretriz política. Sim, nós precisamos de mais dinheiro, mas a organização é que vai mudar as características do SUS completamente. Porque o SUS é o maior programa de distribuição de renda: ele gasta R$ 240 bilhões e o Bolsa Família gasta 10% disso. É uma ajudinha pequena diante do SUS. O SUS faz um trabalho maravilhoso no Brasil e, infelizmente, o que fica são só os exemplos das situações em que ele não funciona ou funciona mal.

    Quais são os principais desafios a serem enfrentados pelo sistema público de saúde no futuro? Vejo dois desafios: nós temos todos os problemas do envelheci-mento e ainda não nos livramos de muitas doenças infecciosas. Acho que o maior desafio é o do envelhecimento, porque en-velhecemos mal: 90% dos brasileiros chegam aos 60 anos com pelo menos uma doença crônica. São 15 milhões de pessoas com diabetes. Aos 70 anos, praticamente 70% dos brasileiros têm pressão alta. Aqui, temos 825 mil pessoas HIV positivo. As doenças crônicas demandam um esforço enorme de todo o sistema de saúde. Tudo tem que ser feito rapidamente porque a população envelhece muito depressa.

    Isso inclui ações de prevenção.O Ministério da Saúde tem sido até agora o ministério da doença. A saúde suplementar também. A questão é que nós não soubemos organizar a atenção primária à saúde. Não há sentido, no mundo moderno, esperarmos que as pessoas fiquem doentes para tratar. A preocupação tem que começar lá atrás. Claro que com mais recursos nós poderíamos fazer mais e muito melhor.

    Qual a sua avaliação do Mais Médicos, em especial da participação dos médicos cubanos no programa?Os médicos cubanos tiveram uma importância muito grande para o sistema em regiões que estão abandonadas. No início, houve uma reação corporativista de uma parcela de médicos.

    “Até hoje, nenhum país com mais de 100 milhões de habitantes

    ousou tanto. O SUS tem uma abrangência

    maior que o NHS”

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  • Mas os cubanos não queriam fazer Medicina como a gente, eles foram contratados para fazer Medicina onde a gente não fazia, onde nós não chegávamos. Eles ajudaram muito. Eu andei por muitas cidades e eles eram médicos adorados pela população. O problema é que a gente não contava que, de uma hora para outra, isso acabaria com a mudança de um governo que tinha posições antagônicas e destruiu o programa. Nós não imaginamos que esses médicos poderiam ir embora quando não tínhamos ainda um plano B. E estamos nessa situação complicada.

    Há saídas para repor esses profissionais?Um país como o Brasil vai ter sempre dificuldade para dis-tribuir médicos. A gente teria que substituir esses médicos gradativamente, pois é muito difícil conseguir tanta gente capacitada para atender em lugares tão pobres. Há 450 mil médicos concentrados no Sudeste; no Norte e Nordeste eles estão nas capitais e cidades grandes. Temos 300 faculdades de Medicina — sem professores para tanto. Fazem faculdades es-perando que os médicos se espalhem. Quem garante isso? As faculdades privadas custam R$ 10 mil, R$ 12 mil reais por mês. Você acha que quem paga esse valor e se forma depois vai para a periferia de Quixadá, no Ceará, atender gente pobre? Vai se especializar e ficar por um grande centro. Precisamos de médicos de família, que resolvem 90% dos problemas. Temos que ter essa formação. Os Estados Unidos têm esse mesmo problema nas pequenas cidades do interior. Temos que criar alternativas para poder fazer o trabalho que os médicos não são capazes de fazer. A ESF cobre dois terços da população. O esforço para acabar de cobrir o resto não é grande. Então, faz a entrada toda por ela, usa a Enfermagem de uma forma decente — porque nós desperdiçamos os enfermeiros no Brasil. Eles se formam, se especializam, fazem pós, e depois enfrentam resistência porque a classe médica corporativa acha que só ela pode fazer o atendimento. Ótimo, só que não faz. Esse corporativismo exagerado não ajuda em nada.

    Como anda a saúde nas prisões?Quando cheguei ao sistema penitenciário, eram 90 mil presos; hoje são 820 mil. Temos a terceira população carcerária do mundo em números absolutos. Prendemos muito e temos que saber que cadeia não diminui a violência urbana. Nós constru-ímos facções criminosas. Eu vi o crime organizado nascer nas

    prisões de São Paulo e como ele tomou conta delas. Poder é um espaço abstrato. Se o Estado não consegue dar proteção ao homem que está na cadeia, o crime organizado vai dar.

    E como encarar o tabu das drogas?Droga não tem solução. Usamos desde a antiguidade. O que não podemos ter é essa estupidez de querer resolver um pro-blema de saúde pública com polícia. Polícia não é para isso. Não é função da polícia resolver problema de saúde pública.

    De que forma a prática de atividade física pode dimi-nuir a epidemia de obesidade?A população tem acesso a uma comida de qualidade, a um preço tão acessível, e não temos esse breque [freio] para parar. Começamos a comer muito e falta atividade física. Hoje é possível ganhar a vida sentado, ficar o dia inteiro sem se movimentar. Mas na época das cavernas não existia isso. Nosso corpo foi desenhado para o movimento. Como resul-tado, vivemos uma epidemia grave de obesidade no Brasil. A Organização Mundial da Saúde recomenda que é preciso fazer 30 minutos de caminhada cinco vezes por semana. E ninguém mais anda. Eu vejo que temos que atacar o problema do sedentarismo. No século 21, o sedentarismo vai matar tanto quanto o cigarro, e o cigarro vai matar 800 milhões de pessoas. A vida sedentária faz muito mal.

    O senhor combate fortemente o cigarro. O que acha dos novos dispositivos eletrônicos para fumar?Eu acho que a indústria tabaqueira é a mais criminosa do sistema capitalista internacional. Ela vende uma droga que é a mais aditiva de todas que a Medicina conhece. Eu tenho uma longa experiência com o crack e sei que é mais difícil largar o cigarro do que o crack. A Penitenciária Feminina de São Paulo é o maior centro de recuperação de usuários de crack no mundo porque o PCC [organização criminosa Primeiro Comando da Capita] não deixa entrar crack na cadeia. As mulheres largam o crack, mas não o cigarro. Então a indústria sentiu que as vendas de cigarro estavam caindo nos países e inventou novas formas de a nicotina ser fumada diretamente. Esses dispositivos viciam ainda mais, porque a concentração é mais alta do que a existente no cigarro. Eles dizem que é seguro, justificando que esse dispositivo vai ajudar a parar de fumar. Isso é redução de danos. Só que vicia uma legião

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  • de meninos e meninas que não iriam mais fumar cigarros e apresentam um produto em forma de pen drive, que pode receber carga em USB de computadores.

    Foi então uma estratégia da indústria apresentar a nicotina em uma nova e moderna embalagem?Nos Estados Unidos, 27% dos estudantes de nível médio fumam essa desgraça. Ou seja, criou uma epidemia de viciados quando ela estava diminuindo gradualmente ano a ano. A Altria, a maior fabricante de cigarros, comprou 30% das ações da fábrica que faz o cigarro eletrônico mais comum [Juul Labs]. Explica o raciocínio para mim: eu fabrico um produto e compro uma parte de uma fábrica que fabrica um produto que é para as pessoas pararem de usar o meu produto. Que lógica é essa? A lógica dessa indústria é vender nicotina, eles são traficantes. Eu vejo mais beleza na vida que leva o traficante que está no Morro do Alemão [no Rio de Janeiro] do que na vida dessas pessoas. Elas andam de terno e gravata, são respeitadas socialmente e o traficante do morro vende droga e foge da polícia. Esse pelo menos tem uma vida mais de acordo com a atividade que pratica.

    O senhor considera que o brasileiro reconhece a importância do SUS?Bom, nós olhamos o SUS pelo prisma das grandes cidades e dos problemas que aparecem na televisão. Só que o SUS realmente funciona em muitas localidades do Brasil, espe-cialmente municípios menores, e isso ninguém noticia. As pessoas se surpreendem quando eu digo que nós temos o maior programa de vacinação e de transplante, que muda-mos o destino da epidemia de aids no mundo. Ninguém sabe que é o SUS que garante a segurança dos hemocentros. Perdemos na comunicação. As pessoas não entendem o que é o SUS e acham que ele é o pronto-socorro lotado, com fila e cheio de gente deitada no chão e nos corredores. E não é. Não haverá outra revolução com tanta profundidade. Imagina um país como era o Brasil, em 1988, em que um bando de visionários resolve dizer ́ nós temos que dar saúde gratuita para todos´. Até hoje, nenhum país com mais de 100 milhões de habitantes ousou tanto. O SUS tem uma abrangência maior que o NHS [sistema de saúde pública inglês]. Tem problemas, muitos, mas a filosofia de dar saúde gratuita não é uma coisa simples de ser feita.

    As informações de saúde ocupam um espaço ade-quado na mídia? Nós, médicos, conseguimos popularizar a Medicina de um jeito que outros profissionais de outras áreas não consegui-ram. Ninguém tem ideia de quais são os maiores problemas de urbanismo do Rio de Janeiro ou quais são os principais desafios para você organizar o tráfego urbano. As pessoas querem saber mais da própria saúde do que de problemas de urbanismo. Os médicos foram capazes de transmitir esses conceitos no decorrer de décadas. Hoje, todo mundo sabe o que é diabetes, pressão alta, colesterol, que cigarro faz mal. Antes, a gente não tinha esse sistema de comunicação de massa que envolve a televisão e a internet. Embora a internet veicule informação sem nenhum critério, ela dá acesso muito amplo. E questões de saúde sempre interessam.

    Como é ser um médico que atua também em comunicação?Entrei na TV por causa de uma série da BBC sobre o cor-po humano que era apresentada por um médico inglês. Queriam um médico brasileiro e me convidaram para fa-zer. Me interessei porque as imagens eram maravilhosas. Disseram “faça o que você quiser fazer”, com todo o apoio técnico para isso. Eu me sinto tomado por uma responsabi-lidade pública. Tenho que usar esse tempo da melhor forma possível para poder mandar mensagens de saúde pública que interfiram na vida das pessoas, das famílias. Em um país com tão baixa escolaridade como o nosso, esse é um desafio muito grande. Em todo lugar que eu vou escuto pessoas dizerem que pararam de fumar por causa da série “Brasil sem Cigarro”, apresentada na TV em 2014. Mas eu não tenho ideia alguma do impacto desses programas na saúde. Infelizmente, não temos essa medição aqui no Brasil.

    O que o senhor diria para um jovem médico ou um estudante de Medicina?Tem que gostar de estudar bastante. Aliás, quem não gosta de estudar não deve fazer Medicina. E quem não tem muita paciência, não deve fazer Medicina. Se a pessoa tiver vontade de estudar, pode trabalhar em qualquer ramo ou trabalhar em áreas como a Comunicação, um campo que fica mais forte. Quando comecei a falar de saúde no rádio, médico sério não falava nos meios de comunica-ção porque isso era interpretado como autopropaganda. Hoje essa visão mudou e temos profissionais da melhor qualidade transmitindo informações importantes. Mas, o principal de tudo é gostar, senão não vai conseguir exercer bem a Medicina.

    Qual é a importância da Ciência e Tecnologia para o desenvolvimento do SUS e do Brasil? Com muita dificuldade, a ciência brasileira conseguiu estabelecer uma rede, os pesquisadores passaram a se comunicar uns com os outros, estabeleceram protocolos cooperativos. De repente, a barbárie cai em cima [dessa rede] para desestruturar todo o sistema. O Brasil depende disso. Nós dependemos da ciência porque se não vamos ficar eternamente dependentes dos outros países. Nós vamos ter que comprar a tecnologia que os outros de-senvolveram, pagar royalties. Eu cito um exemplo lá de São Paulo que foi o tratamento com células CAR-T (Radis 206). Só a transfusão das células nos Estados Unidos custa 450 mil dólares. Se contar todos os custos hospitalares, que lá são estratosféricos, chega a mais de um milhão de dólares. E aqui eles desenvolveram em Ribeirão Preto com tecnologia 100% brasileira. O cálculo dessa equipe é que gastaram menos de 100 mil reais, que são 25 mil dólares. A diferença é absurda porque não pagamos royalties para ninguém. Se o Brasil quiser dominar essa técnica e torná--la mais popular, vai conseguir, porque é um preço mais razoável. O mesmo aconteceu com a medicação da aids, que era importada e caríssima, e o Brasil resolveu produzir genéricos. A ciência é absolutamente fundamental para o desenvolvimento. Desorganizar a ciência é renunciar à soberania nacional.

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    Fim do PAB variável relacionado à ESF e aos Nasf pode comprometer efeito indutor de implementação da atenção primária no modelo preconizado pelo SUS

    PREVINE BRASIL: MUDANÇA SEM DEBATE

    Novas regras de financiamento da atenção primária não levam em conta o controle social e podem fragilizar

    Saúde da Família, aponta movimento sanitário

    LUIZ FELIPE STEVANIM

    Sem o aval do Conselho Nacional de Saúde (CNS), o Ministério da Saúde anunciou as novas regras para o repasse de recursos à atenção primária, com o lançamento do programa Previne Brasil (12/11). O

    dinheiro que os municípios recebem para prover a aten-ção básica passa a ser calculado com base na quantidade de pacientes cadastrados na Estratégia Saúde da Família (ESF) e nas unidades básicas e não mais de acordo com o número de habitantes. O novo modelo de financiamento foi apresentado pelo ministro da Saúde, Luiz Henrique

    Mandetta, e aprovado por representantes de gestores mu-nicipais e estaduais, na reunião da Comissão Intergestores Tripartite (CIT), em 31/10, com a participação do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) e do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). As alterações foram reunidas na portaria 2.979 (12/11), que lançou o Previne Brasil. Contudo, para organizações do movimento sanitário, as mudanças não consideraram o controle social e podem descaracterizar os princípios da Saúde da Família.

    ATENÇÃO PRIMÁRIA

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  • “A perda atingirá principalmente municípios

    urbanos, em que a ESF

    teve mais dificuldades de

    se implantar de forma

    mais efetiva”Luciana de Lima

    Até então, o Piso da Atenção Básica possuía um valor fixo (chamado PAB Fixo) — calculado de acordo com a população do município — e outro variável (PAB variável), que leva em conta a implementação de estratégias como Saúde da Família e Saúde Bucal. As novas regras consideram a quantidade de pessoas cadastradas pelos serviços de atenção básica, além de indicadores de desempenho. No discurso de apresentação da proposta, na reunião da CIT (31/10), Mandetta afirmou que o foco é gerar uma “competição saudável” entre os municípios e “medir, financiar, cobrar, trazer os resultados”. De acordo com o Ministério da Saúde, o governo federal vai distribuir R$ 2 bilhões a mais de recursos a partir do próximo ano para os municípios que “melhorarem a saúde dos brasileiros”. No entanto, ao incentivar a competição por dinheiro, as mudanças podem romper, “de forma silenciosa”, com o pacto de solidariedade da Constituição de 1988 que fundamenta a proteção social à saúde, de acordo com uma carta aberta publicada pelo Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e assinada por Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES), Associação Brasileira de Enfermagem (Aben) e outras instituições (8/11).

    Também na visão do CNS, a publicação dessa portaria pelo Ministério da Saúde “fere o preceito constitucional do controle social” e as leis que regulamentam o SUS, pois não respeitou a participação social. “As políticas de saúde não podem ser construídas de forma vertical, sem escuta ao con-trole social, que é composto pela diversidade crítica do povo brasileiro para que tenhamos um SUS, de fato, participativo e com qualidade”, destaca nota do conselho (13/11). Segundo o órgão, não foram levadas em conta as contribuições da Câmara Técnica da Atenção Básica, criada pelo CNS em 2017, e as discussões realizadas na 16ª Conferência Nacional de Saúde, em agosto de 2019.

    Em outra nota (21/11), a Abrasco, junto com outras instituições, manifestou indignação com o modo pelo qual o novo financiamento foi pactuado na CIT. Além de ignorar a posição do CNS, a mudança na forma de repasse foi lan-çada “sem estudos robustos que evidenciem, objetivamente, seus impactos sobre a condição de saúde da população, a desigualdade de acesso nas regiões metropolitanas e a sus-tentabilidade econômica dos municípios”, diz o texto. Por isso, a associação pede a revogação da portaria.

    ATAQUE AO CORAÇÃO DO SUS

    Considerada o “coração” e a porta de entrada do SUS, a atenção primária depende de recursos repassados pelo governo federal aos municípios, como explica Luciana Dias de Lima, médica sanitarista e professora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz). O repasse federal tem o papel não apenas de complementar o dinheiro disponível nas cidades para ofertar saúde à população, como também induzir o desenvolvimento dos serviços, explica. “O fim do PAB fixo é de enorme gravidade nesse contexto atual, porque interrompe o aporte regular de recursos para o SUS na totalidade dos municípios brasileiros com todas as incertezas em relação à implantação desse novo modelo”, destacou Luciana, no seminário “Financiamento do SUS sob ataque", no Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/Uerj), em 1º de novembro. Uma das questões que preocupam Luciana é: se as novas regras vão beneficiar os municípios que mais ampliarem o cadastro de usuários, como impedir que somente as localidades que vão bem recebam recursos, aumentando o "fosso das desigual-dades" em relação aos locais mais carentes?

    O contexto atual é desfavorável a mudanças radicais no fi-nanciamento, alerta a pesquisadora. “É imperativo um debate amplo e responsável, inclusive com estudos e estimativas de impacto. A perda atingirá principalmente municípios urbanos, em que a Estratégia Saúde da Família teve mais dificuldades de se implantar de forma mais efetiva”, constatou. Para ela, o impacto deve sobrecarregar o SUS ainda mais no cenário de precarização e instabilidade das relações de trabalho. Ela nega que haja previsão de mais dinheiro para a saúde pública. “Essas mudanças não envolvem aporte adicional de recursos. É bom que isso fique muito claro. Vai envolver remanejamento de recursos no interior do próprio orçamento da saúde, que já é escasso”, avaliou. Outro aspecto preocupante é que o fim do PAB variável relacionado à ESF e aos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasf) compromete o efeito indutor de implementação da atenção primária no modelo preconizado pelo SUS.

    SOMENTE PARA POBRES?

    De saúde pública universal ao “SUS somente para os po-bres”: de acordo com a carta publicada pelo Cebes (8/11), essa é a mudança pretendida com o novo modelo de financiamen-to da atenção primária, que passa a se basear no cadastro de atendimento e não mais no total da população. “A definição do rateio de recursos federais a partir da ‘pessoa cadastrada’ rompe com o princípio da saúde como direito de todas as pessoas e inviabiliza a aplicação de recursos públicos segun-do as necessidades de saúde da população nos territórios”, apontam as instituições que assinam o documento. Segundo elas, a proposta de focalização (em oposição à universalidade existente no SUS) responde às exigências do Banco Mundial e não às necessidades reais da população brasileira. “Essa proposta descaracteriza completamente a Estratégia Saúde da Família”, afirmam.

    De acordo com esta avaliação, o Ministério da Saúde prioriza o Programa Saúde na Hora, lançado em maio de

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    Para o Cebes, há risco de as unidades básicas se organizarem a partir da lógica das unidades de pronto atendimento

    2019, que reduz a equipe multidisciplinar da ESF e valoriza o modelo biomédico de cuidado fragmentado, correndo o risco de organizar as unidades básicas de saúde a partir da lógica das unidades de pronto atendimento. Outro aspecto criticado é a sobrecarga de trabalho dos profissionais para efetivar o cadastro, “sem que os problemas reais da gestão sejam de fato considerados e equacionados”. Condicionar o repasse de recursos à realização de cadastro dos usuários também preocupa Luciana. “Ninguém é contra o cadastramento em si, mas para qual finalidade? Essas metas de cobertura são extremamente elevadas e inatingíveis e vão sobrecarregar as equipes, além de não estar claro como serão aferidas”, ponderou.

    A mudança tem o apoio do Conasems, órgão que repre-senta as secretarias municipais de saúde do país. Segundo documento assinado por Wilames Bezerra (20/11), presidente da entidade, a proposta elaborada pelo Ministério da Saúde representa uma “necessária mudança no processo de finan-ciamento da atenção básica em saúde, o que possibilitará a real inclusão no SUS de milhões de brasileiros”. Ainda assim, a Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados aprovou a realização de uma audiência pública e de seminários estaduais para debater a portaria 2.979, a partir de requerimento do deputado federal Alexandre Padilha (PT-SP). Três projetos de decreto legislativo — dois na Câmara

    e um no Senado — pedem a revogação da portaria, que começa a valer em 1º de janeiro de 2020.

    De acordo com a carta publicada pelo Cebes, essa proposta está alinhada com a política atual de austeridade fiscal, que introduziu um teto para as despesas primárias, a partir de 2016, com a Emenda Constitucional (EC) 95. “Esse arrocho se torna mais grave com as recentes propostas apresentadas pelo Poder Executivo, que visam, a um só tempo, reduzir o teto dos gastos, eliminar o mínimo da saúde na União, estados e municípios e colocar a saúde e a educação numa disputa fratricida”, destaca o documento.

    Para Carlos Ocké-Reis, economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), especialista em eco-nomia da saúde, a mudança no financiamento da atenção primária faz parte de um cenário de redução do gasto público, com aumento dos preços dos bens e serviços privados de saúde ao mesmo tempo em que ocorre a piora das condições epidemiológicas da população. O econo-mista afirmou, também durante o seminário no IMS, que os modelos de financiamento da saúde sofreram regressão ao longo do tempo, com perda de recursos em termos reais. “O ataque não é só à atenção primária, mas a todo o SUS. Pois ela é a pedra fundamental da arquitetura do sistema universal. Quando se ataca o coração, é um ataque mortal”, alertou.

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  • MÉDICOS PELO BRASIL:CAVALO DE TROIA?

    Novo programa substitui Mais Médicos, cria agência para atuar na atenção básica e altera modelo de formação

    Três dias antes da abertura da 16ª Conferência Nacional de Saúde (CNS), em 1º de agosto, o pre-sidente Jair Bolsonaro assinou a Medida Provisória (MP) 890, que criou o programa Médicos pelo

    Brasil, em substituição ao Mais Médicos, lançado pela presi-denta Dilma Rousseff em 2013. Assim como a versão anterior, a iniciativa pretende levar a assistência de médicos para locais de difícil acesso, principalmente em municípios do interior, localidades rurais e de alta vulnerabilidade. A medida cria a Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (Adaps), responsável tanto pela execução do novo programa quanto por outras ações na área de atenção primária. O Médicos pelo Brasil também oferece uma nova modalidade de especialização diferente do modelo de Residência em Medicina de Família e Comunidade (MFC).

    Está prevista a oferta de 18 mil vagas para médicos com diploma brasileiro e registro no Conselho Federal de Medicina (CFM) ou formados no exterior, mas aprovados por exame de revalidação (Revalida). De acordo com o Ministério da Saúde, os profissionais que vão atuar no novo programa serão con-tratados pelas regras da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), por meio da Adaps, depois de passarem por um curso de especialização, em que devem receber bolsa-formação de R$ 12 mil, com gratificação de R$ 3 mil para locais remotos e R$ 6 mil para Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs).

    A MP foi aprovada na Câmara a dois dias de perder va-lidade, depois de dificuldades de negociação — de acordo com as regras, o prazo de vigência desse tipo de medida é de sessenta dias, prorrogáveis uma vez por igual período. Um dos pontos polêmicos foi uma regra excepcional, acrescentada pelo relator, deputado federal Confúcio Moura (MDB-RO), que permite a incorporação dos médicos cubanos que per-maneceram no país após o rompimento do convênio com a Organização Pan-americana da Saúde (Opas), em novembro de 2018. A alteração, que não constava no texto original apresentado pelo Planalto, foi rechaçada pela Associação Médica Brasileira (AMB) e pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), que lançaram plataforma na internet para estimular seus associados a entrarem em contato com parlamentares para derrubar as emendas ao projeto.

    Tanto o Mais Médicos quanto o novo programa são voltados para o provimento de profissionais para atuar na atenção primária em municípios mais afastados e com índices de desenvolvimento piores, analisa Maria Inez Padula, médica de família e comunidade e professora do Departamento de

    Medicina Integral, Familiar e Comunitária da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Segundo ela, ambas iniciativas também têm proposta de formação de recursos humanos, mas com diferenças importantes. “O Programa Mais Médicos faz parte de um contexto mais amplo: a Lei do Mais Médicos [lei 12.871, de 2013] é mais abrangente, pois, além da formação e do provimento propriamente dito, avança na política de vagas dos programas de resi-dência no Brasil”, constata à Radis. Contudo, de acordo com Inez, a principal alteração é o surgimento da Adaps. “Aos moldes de um cavalo de Troia, ela traz a perspectiva da privatização do SUS”, ressalta.

    Outra pesquisadora, Lígia Giovanella, médica e profes-sora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), concorda com essa avaliação. “A MP [890] cria essa agência na forma de pessoa jurídica de direito privado como serviço social autônomo, sem fins lucrativos, com objetivos que transcendem o programa Médicos pelo Brasil. A participação do setor privado na prestação dos serviços de atenção primária é claramente explicitada”, afirmou, durante o “Seminário Internacional sobre Atenção Primária à Saúde: do global ao local”, entre 23 e 25 de outubro, na Fiocruz.

    ANTES E DEPOIS

    Instituído em 2013, pela Lei 12.871, o programa Mais Médicos se voltava para o provimento de médicos na atenção básica, com ênfase nas áreas mais desassistidas. “Nesses lugares, antes do Mais Médicos, pode-se dizer que não tinha médicos. Quando os cubanos foram embora, em novembro, alguns deles ficaram sem médico durante quatro ou cinco meses e alguns estão até hoje”, avalia Lígia.

    A iniciativa se baseava em três eixos, como lembra a autora de “Políticas e Sistema de Saúde no Brasil” (Editora Fiocruz): o provimento emergencial de profissionais; a formação de novos residentes em Saúde da Família e Comunidade; e a melhoria da infraestrutura, por meio do programa Requalifica UBS. No entanto, segundo ela, essas preocupações não aparecem no Médicos pelo Brasil. O mesmo aponta Vinícius Ximenes, membro da Rede de Médicos e Médicas Populares. “O Médicos pelo Brasil pra-ticamente se resumiu a um programa de provimento. Os aspectos de formação mais estruturante, a longo prazo, ficaram secundarizados na agenda política”, constata.

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  • Para Vinícius, que além de médico de família e comuni-dade no Distrito Federal e integrante da rede, é membro do núcleo do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) em Brasília, a proposta anterior do Mais Médicos respondia a uma constatação do movimento pela Reforma Sanitária, desde os anos 1970, de que o problema da disponibilidade de médicos no Brasil era tanto quantitativo quanto qualitativo. “O Brasil tem uma quantidade de médicos por população menor que outros países do mundo e conta com um aparelho formador aquém das necessidades de saúde da população”, avalia à Radis. Além desse dado relacionado à quantidade, existe um problema na qualidade da distribuição dos profissionais, agra-vado pela extensão do território e desigualdades regionais. “A distribuição desses médicos no Brasil é extremamente errática e irregular e segue basicamente o mapa da riqueza do nosso país”, pontua o médico e também professor universitário.

    De acordo com ele, o Mais Médicos apostava em medidas de longo prazo, como a reforma do modelo de educação mé-dica brasileira. “Mudanças curriculares e no perfil de formação foram importantes, porque não adianta a gente querer formar mais médicos dentro de uma proposta baseada no ordena-mento do modelo biomédico”, considera. Em contrapartida, o programa também focava em atender à necessidade concreta e urgente da população por médicos, por meio da estratégia de provimento provisório com os médicos cubanos. “Mais vagas no curso de medicina e nas residências é algo que se planta agora e se colhe daqui a 10 anos. Nesse intervalo, uma das saídas foi a importação de profissionais como estratégia organizadora da atenção primária até que nosso aparelho formador conseguisse dar respostas mais efetivas”, pondera.

    Já o Médicos pelo Brasil, segundo Vinícius, segue o refe-rencial histórico das entidades médicas, principalmente a AMB e o CFM. “Para as entidades médicas, há médicos suficientes no Brasil e temos um problema somente de distribuição e de garantir condições de trabalho melhores para que esses profissionais possam se fixar nas diversas regiões do país, especialmente nos locais mais longínquos”, comenta.

    Em relação à contratação, ele avalia que o regime da CLT pode ser mais vantajoso que uma bolsa, como era no Mais Médicos; porém, esconde algumas armadilhas. “Temos que alertar os médicos brasileiros que estamos em pleno processo de contrarreformas em curso e uma das questões no centro do debate são as mudanças na CLT. Daqui a dois anos, quando

    esses profissionais terminarem a especialização em MFC, possivelmente a CLT não será a de hoje: será mais precária, talvez muito mais aberta a processos de 'pejotização' [contra-tação de pessoa jurídica, sem garantias trabalhistas]”, explica.

    PAPEL DA AGÊNCIA

    Criada como “serviço social autônomo”, na forma de pessoa jurídica de direito privado, a Adaps não apenas vai contratar médicos para atuar no novo programa: segundo a MP 890, ela poderá prestar diretamente serviços de atenção primária à saúde no SUS, firmar contratos e desenvolver atividades de ensino, pesquisa e extensão, entre outras atribuições. Para Maria Inez Padula, ela cumpre funções de um Ministério da Saúde junto com o Ministério da Educação. “Ela deve prestar serviços, desenvolve atividades de ensino, promove a educação continuada, pode contratar serviços privados, comprar tecnologia, firmar convênios e contratos, ou seja, pode praticamente tudo. E, ao fazer este tudo, desloca as atribuições do Estado e ameaça o cumprimento constitucional”, avalia. A professora da Uerj também lembra que o Conselho Nacional de Saúde (CNS) não está incluído em seu Conselho Deliberativo. “Em outras palavras, a Adaps pode corresponder a uma célula cancerosa, sem controle da representação popular”, pontua.

    De acordo com nota da Rede de Médicos e Médicas Populares (3/8), o modelo adotado pela agência abre ca-minho para a contratação direta de planos e operadoras privadas para prestação de serviços de atenção básica no SUS — com transferência direta de recursos públicos para o setor privado. “Se antes uma grande parte dos municípios brasileiros resistiram à ampliação das Organizações Sociais (OSs), agora será o próprio Ministério que poderá contra-tar as Operadoras de saúde para realizar atividades-fim que deveriam ser prestadas pelo poder público”, afirma. Já Lígia Giovanella destacou que a Adaps muda a relação entre os entes federados no SUS. “O governo federal vai passar a prestador de serviço de saúde em âmbito local, desconsiderando o processo de descentralização”, disse. Na votação da MP na Câmara, um destaque apresentado pelo PSOL excluía a Adaps do Médicos pelo Brasil e colocava a gestão no próprio Ministério da Saúde; mas a mudança foi rejeitada por 303 votos a 103.

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  • Lígia lembra ainda que empresas privadas, como a Unimed, celebraram a criação da Adaps, pois seria a opor-tunidade de fazer “ótimas parcerias” com o SUS para a prestação de atenção primária. “Existe um grande risco de permitir a contratação de empresas privadas para a provisão e a formação em atenção primária, criando um espaço mer-cantilizado nesse setor que é o menos mercantil do SUS”, afirmou durante o seminário. Outro ponto que ela reforça é a composição do conselho deliberativo da agência, que conta com representações do Ministério da Saúde, do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e do setor privado. “Não aparece nenhum representante do controle social”, enfatizou.

    Vinícius alerta que a contratação dos médicos pela Adaps não significou a criação de uma carreira de Estado — reivindi-cação histórica das entidades médicas. “Dentro da proposta apresentada, não existe carreira de Estado, nem carreira nacional, nem pública. Foi apresentada para os médicos uma espécie de ‘carreira fake’, em que você vai ser contratado por uma OS, em que por mais que possa ter bons salários, não garante condições básicas para que isso possa ser chamado de uma carreira pública”, critica. De acordo com ele, a Adaps funciona como um serviço social autônomo, “parestatal e privado”. “É como se uma entidade do Terceiro Setor fosse responsável pelas ações de provimento e contratação de pro-fissionais para todo o Brasil”, avalia. O integrante da Rede de Médicos e Médicas Populares chama atenção para o fato de a maior parte do texto da MP 890 tratar não sobre o Médicos pelo Brasil, mas sobre o funcionamento da agência. “A Adaps é o grande cavalo de Troia do Médicos pelo Brasil. Ela pode ser um importante elo em uma nova lógica de mercantilização por dentro do setor saúde brasileiro, onde seguradoras e planos podem ter a oportunidade de prestar serviços médicos nos médios e grandes centros urbanos”, conclui.

    RESIDÊNCIA X ESPECIALIZAÇÃO

    Para os profissionais que ingressarem no programa, será obrigatório cursar uma especialização em Medicina de Família e Comunidade com duração de 2 anos. O curso será à dis-tância, com supervisão de um tutor (que pode ser médico de família e comunidade ou clínico), em um total de 20 horas teóricas e 40 assistenciais por semana. Na visão de Inez, esse modelo vai n