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JONAH LEHRER

PROUST ERA UM NEUROCIENTISTA

Proust was a Neuroscientist

Traduzido do inglês por

Ana Carneiro

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Título Original

Proust was a neuroscientist

© 2007, Jonah LehrerTodos os direitos reservados.

1.a edição / Fevereiro de 2009 ISBN: 978-989-23-0234-8 Depósito Legal n.o: 288009/09

[Uma chancela do grupo LeYa]Rua Cidade de Córdova, n.0 22610 -038 AlfragideTel. (+351) 21 427 22 00 Fax. (+351) 21 427 22 [email protected]

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CAPÍTULO 4

MARCEL PROUSTO MÉTODO DA MEMÓRIA

(…)Um armário com as gavetas cheias de balanços,De versos, bilhetinhos, processos, romanzas,E enroladas madeixas dentro de recibosEsconde menos segredos que o meu cérebro triste.É como uma pirâmide, um imenso jazigoEncerrando mais mortos que a vala comum.– Eu sou um cemitério que a lua abomina (…) Charles Baudelaire LXXVI

1

O título do romance de Marcel Proust Em Busca do Tempo Perdido é literal. Proust procurava o espaço oculto onde o tempo pára. Obcecado com “a incurável imperfeição da própria essência do momento pre-sente”, Proust sentia as horas passar por ele como água fria. Tudo es-tava em refl uxo. Proust, um doente crónico aos trinta e poucos anos, nada fi zera da sua vida até ali, excepto acumular sintomas e cartas de autocomiseração destinadas à mãe. Não estava pronto para morrer.

E assim, procurando um sabor de imortalidade, Proust transfor-mou -se em romancista. Desprovido de uma vida verdadeira – a asma confi nava -o ao quarto – Proust fez arte a partir da única coisa que ti-nha: a memória. A nostalgia transformou -se no seu bálsamo, “porque se a nossa vida é nómada, a nossa memória é sedentária”.2 Proust sabia que de todas as vezes que se perdia em recordações também perdia a noção do tempo, o tiquetaque do relógio afogado pelo eco dos murmúrios da sua mente. Era ali, na sua própria memória, que

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iria viver para sempre. O seu passado iria transformar -se numa obra de arte.

Animado por esta revelação, Proust começou a escrever, a escrever, a escrever. Desapareceu nos seus rascunhos, emergindo apenas, como disse, “quando preciso de ajuda para me lembrar”. Proust usou a in-tuição, a sua inabalável devoção por si próprio e pela sua arte, para aperfeiçoar a fé na memória, em todo um tratado. No abafado silên-cio do estúdio parisiense, escutou tão intensamente o seu cérebro sentimental que descobriu como funcionava.

Que espécie de verdade descobriu Proust? É um lugar -comum dizer--se que descreveu um meio muito real, um instantâneo da sociedade parisiense numa época de encanto e glória. Outros eruditos literá-rios concentram -se no estilo das suas frases, nas suas arrebatadoras cadências, ora agitadas, ora calmas, enquanto descreve mais um jan-tar. Proust percorre grandes distâncias num mesmo período grama-tical (uma das suas frases tem 365 palavras) e muitas vezes começa pelo pormenor obscuro (a textura de um guardanapo ou o ruído da água nos canos) e termina com uma meditação sugestiva sobre tudo. Henry James, ele próprio com tendência para a verborreia, defi niu o estilo de Proust como “uma maçada inconcebível, associada ao êxta-se mais profundo que se possa imaginar”.

Mas todas estas crenças na verve e na capacidade artística de Proust, apesar de verdadeiras, ignoravam a seriedade das suas ideias sobre a memória. Embora tivesse uma queda por orações subordi-nadas e doçaria, através da força pura dos adjectivos e da solidão, pressentiu, de certo modo, alguns dos princípios mais básicos da neurociência. Quando os cientistas separam as nossas recordações numa lista de moléculas e regiões do cérebro, não conseguem aper-ceber -se de que estão a invocar um romancista francês solitário. Proust poderá não ter vivido para sempre, mas a sua teoria da memória per-dura.

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Retrato de Marcel Proust, da autoria de Jacques Emile Blanche, concluído em 1892.

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INTUIÇÕESProust não se surpreenderia com os seus poderes proféticos. Acredi-tava que enquanto a arte e a ciência lidam com factos (“A sensação é para o escritor o que a experimentação é para o cientista”), apenas o artista conseguia descrever a realidade como era realmente sentida. Proust tinha a certeza de que cada leitor que lesse o seu romance iria “reconhecer em si próprio o que o livro diz… Isto será a prova da sua veracidade”.3

Proust aprendeu a acreditar no estranho poder da arte com Henri Bergson.* Quando iniciou a escrita da Busca, Bergson começava a ser uma celebridade. O metafísico esgotava salas de espectáculos, com os turistas intelectuais a escutar em êxtase os seus debates sobre élan -vital, farsa e “evolução criativa”.** A essência da fi losofi a de Berg-son era uma feroz resistência à visão mecanicista do universo. As leis da ciência eram óptimas para a matéria inerte, disse Bergson, para discernir as relações entre átomos e células, mas e nós? Nós tínhamos uma consciência, uma memória, um ser. De acordo com Bergson, esta realidade – a realidade da nossa autoconsciência – não podia ser reduzida ou dissecada experimentalmente. Acreditava que só nos po-deríamos compreender a nós mesmos através da intuição, um proces-so que exigia muita introspecção, dias ociosos na contemplação das nossas ligações interiores. Na essência, meditação burguesa.

Proust foi um dos primeiros artistas a interiorizar a fi losofi a de Bergson. A sua literatura transformou -se numa celebração da intui-ção, de todas as verdades que podemos conhecer apenas por fi car-mos deitados na cama a pensar calmamente. E embora a infl uência de Bergson não deixasse de provocar ansiedade em Proust – “Tenho coisas sufi cientes para fazer”,4 escreveu ele numa carta, “para tentar tornar a fi losofi a do Senhor Bergson num romance!” – o escritor, mesmo assim, não conseguia resistir aos temas bergsonianos. De

* Proust assistiu às prelecções de Bergson na Sorbonne entre 1891 e 1893. Para além disso, leu o Matter and Memory de Bergson, em 1909, quando estava a começar a escrever Do Lado de Swann. Em 1892, Bergson casou com a prima de Proust. No entanto, apenas há registo de uma conversa entre Proust e Bergson, em que discutiram a natureza do sono. Esta conversa é relatada em Sodoma e Gomorra. No entanto, para o fi lósofo, Proust nunca passaria de um primo que lhe oferecera uma excelente caixa de tampões para os ouvidos.

** Em 1913, a sua presença na Universidade de Columbia provocou o primeiro engarrafamento automóvel de sempre na cidade de Nova Iorque.

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facto, a completa absorção da fi losofi a de Bergson levou Proust a con-cluir que o romance do século xix, que privilegiava as coisas em de-trimento do pensamento, via tudo exactamente ao contrário: “(…) a literatura que se limita a descrever as coisas”, escreveu Proust, “a apre-sentar apenas um miserável extracto delas feito de linhas e superfí-cies, é aquela que, intitulando -se realista, mais afastada está da realidade (…).”5 Como insistia Bergson, a realidade é melhor com-preendida subjectivamente, quando acedemos às suas verdades intui-tivamente.

Mas como poderia uma obra de fi cção demonstrar o poder da in-tuição? Como poderia um romance provar que a realidade era, como dizia Bergson, “em última análise, espiritual e não física”? A solução de Proust chegou na inesperada forma de um bolo amanteigado, aromatizado com raspa de limão e em forma de concha. Aqui estava um pedaço de matéria que revelava “a estrutura do seu espírito”, uma sobremesa que podia ser “reduzida aos seus elementos psicológicos”.6 É assim que a Busca começa: com a famosa madalena a partir da qual toda uma mente se revela:

“Mas no preciso instante em que o gole com migalhas de bolo misturadas me tocou no céu -da -boca, estremeci, atento ao que de extraordinário estava a passar -se em mim. Fora invadido por um prazer delicioso, um prazer isolado, sem a noção da sua causa. Tornara -me imediatamente indiferentes as vicissitudes da vida, inofensivos os seus desastres, ilusória a sua brevidade, do mesmo modo que o amor opera, enchendo -me de uma essência preciosa; ou, antes, tal essência não estava em mim, era eu mesmo. Deixara de me sentir medíocre, contingente, mortal. Donde poderia ter vido aquela poderosa alegria? Sentia -a ligada ao gosto do chá e do bolo, mas ultrapassava -o infi nitamente, não devia ser da mesma natureza. Donde vinha? Que signifi cava? Onde agarrá -la? Bebo um segundo gole, no qual nada encontro a mais do que no primeiro, e um terceiro que me traz um pouco menos que o segundo. É tempo de parar, a virtude da bebida parece estar a

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diminuir. É evidente que a verdade que procuro não está nela, mas em mim.”7

Este brilhante parágrafo apreende a essência da arte de Proust, a verdade emanando em forma de vapor de uma límpida chávena de chá. Embora a madalena tivesse disparado a revelação de Proust, esta passagem não é sobre a madalena. O bolo é apenas uma des-culpa oportuna para que Proust explore o seu tema favorito: ele pró-prio.

O que aprendeu Proust destas proféticas migalhas de açúcar, fari-nha e manteiga? Na realidade pressentiu muito sobre a estrutura do nosso cérebro. Em 1911, o ano da madalena, a psicologia não fazia a menor ideia de como os sentidos se ligavam no interior do crânio. Uma das profundas visões de Proust foi que os nossos sentidos do olfacto e do paladar suportam um fardo de memória singular:

“(…) quando nada subsiste de um passado antigo, após a morte dos seres, após a destruição das coisas, apenas o cheiro e o sabor, mais frágeis, mas mais vivazes, mais imateriais, mais persistentes, mais fi éis, permanecem ainda por muito tempo, como almas, a fazer -se lembradas, à espera sobre a ruína de tudo o resto, a carregar sem vacilações, sobre a sua gotinha quase impalpável, o edifício imenso da memória.”8

A neurociência sabe agora que Proust estava certo. Rachel Herz9, uma psicóloga em Brown, demonstrou – num ensaio científi co inte-ligentemente intitulado Testing the Proustian Hypothesis – que os nossos sentidos do olfacto e do paladar são singularmente sentimen-tais. Isto passa -se porque o olfacto e o paladar são os únicos sentidos que se ligam directamente ao hipocampo, o centro da memória de longo prazo do cérebro. A sua marca é indelével. Todos os nossos outros sentidos (visão, tacto e audição) passam primeiro pelo tála-mo, a origem da linguagem e a porta da consciência. Em resultado disto, estes sentidos são muito menos efi cientes quando se trata de convocar o nosso passado.

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Proust pressentiu esta anatomia. Usou o sabor da madalena e o aro-ma do chá para invocar a sua infância.* Olhar apenas para o bolo recor-tado não lembrava nada. Proust, para começar, vai mesmo ao ponto de culpar a sua visão por obscurecer as memórias de infância. “Talvez porque, tendo -as visto [as madalenas] muitas vezes depois disso sem as comer”, escreve Proust, “a sua imagem deixara aqueles dias de Com-bray.”10 Felizmente para a literatura, Proust decidiu pôr o bolo na boca.

Claro que, mal Proust começou a lembrar -se do seu passado, per-deu qualquer interesse pelo sabor da madalena. Em vez disso, fi cou obcecado com a maneira como se sentia relativamente ao bolo, com o que o bolo signifi cava para ele. Que mais poderiam aquelas migalhas ensinar -lhe sobre o seu passado? Que outras memórias poderiam emergir desses pedaços mágicos de farinha e manteiga?

Nesta visão proustiana, o bolo é digno da fi losofi a porque na mente tudo se liga. Em consequência, uma madalena pode facilmente trans-formar -se numa revelação. E apesar de algumas das associações mentais seguintes de Proust serem lógicas (por exemplo, o sabor da madalena e a memória de Combray), outras parecem estranhamente aleatórias. Porque é que o bolo também lhe traz à memória “(…) o jogo em que os japoneses se divertem a molhar, numa tijela de por-celana cheia de água, pedacinhos de papel até então indistintos (…)”11 E porque é que um guardanapo engomado lhe recorda o Oceano Atlântico, que “ondula com vagas azuis e cavadas”? Sendo um cro-nista honesto do seu próprio cérebro, Proust abraçou estas estra-nhas associações precisamente porque não as conseguia explicar. Compreendeu que a idiossincrasia era a essência da personalidade. Apenas com a revisão meticulosa da teia das nossas ligações neurais – por mais absurdas que essas ligações possam ser – poderemos compreender -nos, porque nós somos a nossa teia. Proust respigou toda esta sabedoria de um chá vespertino.

* A.J. Liebling, o famoso bon -vivant e cronista da New Yorker, escreveu certa vez: “À luz daquilo que Proust escreveu com um estímulo tão insignifi cante (a quantidade de brandy presente numa madalena não deixaria vestígios de álcool num mosquito), o mundo fi ca a perder por ele não ter tido um apetite maior.”Liebling fi caria contente por saber que Proust tinha na verdade um excelente apetite. Embora apenas comesse uma refeição por dia (ordens do médico), o jantar de Proust era lieblingiano. O exemplo de um menu incluía dois ovos com molho de natas, três croissants, meia galinha assada, batatas fritas, uvas, cerveja e uns golinhos de café.

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A MENTIRA DE ONTEMPortanto, há o tempo e há a memória. A fi cção de Proust, que é prin-cipalmente não fi cção, explora a forma como o tempo muda a me-mória. Imediatamente antes de Marcel bebericar o seu chá de tília, avisa friamente o leitor: “É trabalho baldado procurarmos evocá -lo, todos os esforços da nossa inteligência são inúteis.”12 Porque pensa Proust que o passado é tão ilusório? Porque é, para ele, o acto de lem-brar um “trabalho baldado”?

Estas questões estão no âmago da teoria de Proust sobre a memó-ria. Dito simplesmente, ele acreditava que as nossas lembranças eram falsas. Embora parecessem reais, eram na realidade invenções com-plexas. Pegue -se na madalena. Proust percebeu que no momento em que acabamos de comer o bolo, deixando para trás uma colecção de migalhas num prato de porcelana, começamos a moldar a memória do bolo para se adaptar à nossa narrativa pessoal. Ajustamos os fac-tos para se adequarem à nossa história, porque “a nossa inteligência reescreve a experiência”. Proust previne -nos para tratarmos a realida-de das nossas memórias cuidadosamente e com algum cepticismo.

Mesmo no próprio texto, o narrador proustiano altera constantemen-te as descrições de coisas e pessoas de que se recorda, particularmente da sua amante, Albertine. Ao longo do romance, o sinal de Albertine migra do queixo para o lábio e depois até um ponto na maçã do rosto imediatamente abaixo do olho. Noutro romance, tanto desmazelo seria considerado um erro. Mas a moral da Busca é a instabilidade e inexac-tidão da memória. Proust quer que saibamos que nunca iremos saber onde fi ca realmente o sinal de Albertine. “Sou obrigado a descrever os erros”, escreveu Proust numa carta a Jacques Riviere, “sem me sentir forçado a dizer que os considero erros”.13 Dado que todas as memórias estão repletas de erros, não é preciso seguir -lhes o rasto.

A estranha reviravolta da história é que a ciência está a descobrir a verdade molecular subjacente a estas teorias proustianas. A memó-ria é passível de falhar. A nossa lembrança das coisas do passado é imperfeita.

A desonestidade da memória foi documentada cientifi camente pela primeira vez por Freud, por acaso. No decurso da sua psicotera-

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pia, Freud lidou com um espantoso número de mulheres que repor-tavam as suas histerias nervosas a abusos sexuais na infância. Para explicar as confi ssões destas pacientes, Freud viu -se forçado a en-frentar dois cenários igualmente preocupantes. Ou as mulheres es-tavam a mentir ou o assédio sexual era perturbantemente comum na burguesia de Viena. Por fi m, Freud apercebeu -se de que a verda-deira resposta estava fora do alcance da sua prática clínica. O psico-terapeuta nunca iria descobrir o que realmente acontecera, porque no momento em que as mulheres se “lembravam” dos abusos sexuais também criavam memórias sinceras. Mesmo que as suas histórias de abuso fossem invenções, as pacientes não estavam tecnicamente a mentir, uma vez que acreditavam em tudo o que diziam. As nossas recordações são coisas cínicas, concebidas pelo cérebro para parece-rem sempre verdadeiras, independentemente de terem ou não acon-tecido na realidade.

Durante a maior parte do século xx, a neurociência seguiu a postu-ra indiferente de Freud. Não estava interessada em investigar a fi cção da memória, ou o modo como o acto de recordar pode alterar a me-mória. Os cientistas tomaram como certo que as memórias se limitam a estar arrumadas em prateleiras no cérebro, como livros empoeirados numa biblioteca. Mas esta abordagem ingénua fi nalmente esgotou -se. Para poderem investigar a realidade do nosso passado, para pode-rem compreender a memória como realmente a sentimos, os cien-tistas precisavam de confrontar o espectro da mentira da memória.

Toda a memória começa com uma ligação modifi cada entre dois neu-rónios. Este facto foi descoberto pela primeira vez por Santiago Ra-mon y Cajal, que ganhou o prémio Nobel da Medicina em 1906. O processo científi co de Cajal era simples: observou fi nas camadas de cérebro ao microscópio e deu rédea solta à imaginação. (Cajal chama-va à sua ciência “cabriolar especulativo”)*.14 Naquela época, os cien-tistas presumiam que os neurónios do cérebro humano estavam

* No seu Advice for a Young Investigator, Cajal escreveu: “Quem não tiver uma certa intuição – um instinto divinatório para compreender a ideia subjacente ao facto e a lei por detrás do fenómeno – não poderá imaginar uma solução razoável, sejam quais forem as suas capacidades de observação.”

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ligados numa rede reticulada contínua, como fi os eléctricos ligados num circuito. No entanto, Cajal acreditava que cada neurónio era na realidade uma ilha, totalmente limitada pela sua própria membrana (uma ideia que só foi confi rmada por estudos com microscópios de electrões nos anos 50). Mas se os neurónios não se tocam, então como formam memórias e trocam informações? Cajal formulou a hipótese de que os espaços vazios entre as células – aquilo a que agora chamamos sinapses – eram os locais secretos de comunicação. O que Joseph Conrad disse acerca dos mapas também se aplica ao cérebro: os sítios mais interessantes são os espaços vazios, porque são aquilo que irá mudar.

Cajal estava certo. A nossa memória é constituída por alterações subtis na resistência das sinapses, o que faz com que seja mais fácil aos neurónios comunicarem entre si. O resultado fi nal é que, quan-do Proust saboreia a madalena, os neurónios a jusante do sabor do bolo, aqueles que codifi cam Combray e a Tia Leonie, se acendem . As células fi cam inextricavelmente entrelaçadas e faz -se uma memória. Embora os neurocientistas ainda não saibam como é que isto acon-tece*, sabem que o processo de fabrico de memórias precisa de novas proteínas. Isto faz sentido: as proteínas são os tijolos e a argamassa da vida e uma lembrança exige alguma construção celular. O mo-mento do tempo é incorporado na arquitectura do cérebro.

Mas um conjunto de experiências extraordinárias15 realizadas na NYU, em 2000, por Karim Nader, Glenn Shafe e Joseh LeDoux, de-monstrou que o acto de lembrar também nos modifi ca. Os cientistas provaram isto condicionando ratos a associar um ruído estrídulo com um ligeiro choque eléctrico. (Quando se trata de dor, a mente aprende rapidamente). Como previsto, a injecção de um químico que pára a formação de novas proteínas também evitava que os ratos for-massem uma memória de medo. Uma vez que os cérebros não conse-guiam ligar o seu contexto ao choque eléctrico, o choque era sempre terrível.

* Os suspeitos prováveis incluem uma densidade aumentada de receptores de neurotransmissores, uma maior libertação de neurotransmissores com cada acontecimento excitante, algum tipo de mensageiro retrógrado, como o óxido nítrico, ou uma combinação de tudo isto.

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A primeira página do manuscrito da Busca. O livro já tinha sido mandado para a tipografi a, mas Proust insistiu em fazer grandes alterações.

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Mas Nader, LeDoux e Shafe levaram esta simples experiência um pouco mais longe. Primeiro, asseguraram -se de que os ratos teriam uma memória vívida da associação do choque com o ruído. Queriam roedores que se aninhassem de medo sempre que ouviam aquele som. Depois de deixarem esta memória consolidar -se durante 45 dias, voltaram a expor os ratos ao ruído assustador e, em simultâneo, in-jectaram -lhes um inibidor de proteína no cérebro. Com efeito, o que tornou esta experiência diferente foi o momento em que foi feita. Em vez de interromperem o processo de formação de uma memória, os cientistas interromperam o processo de recordar uma memória injectando o químico nocivo no momento exacto em que os ratos se estavam a lembrar do signifi cado do ruído. De acordo com o dogma da recordação, nada de muito importante deveria acontecer. A me-mória a longo prazo deveria existir, independentemente da sua evo-cação, arquivada numa das prateleiras protegidas do cérebro. Depois de o veneno ser retirado das células, os ratos deveriam recordar -se do medo. O ruído deveria lembrar -lhes o choque.

Mas não foi isto que aconteceu. Quando Nader e o seu grupo im-pediram que os ratos se lembrassem da memória assustadora, o traço original da memória também desapareceu. Após uma única inter-rupção do processo de reminiscência, o medo dos ratos foi apagado. Os ratos fi caram amnésicos.*

À primeira vista esta observação experimental parece incongruente. Afi nal, gostamos de pensar nas nossas memórias como impressões imutáveis, de certa forma separadas do acto de recordá -las. Mas não são. Uma memória é real, para nós, na última vez que a recordamos. Mas quanto mais recordamos uma coisa, menos fi ável a memória se torna.

A experiência de Nader, por simples que pareça, exige que a ciência reveja totalmente as suas teorias sobre a lembrança. Revela que a memória é um processo incessante, não um repositório de informa-

* Os neurocientistas encaram actualmente a reconsolidação como um tratamento possível da perturbação de stress pós--traumático (PTSD na sigla inglesa) e dependência de drogas. Ao bloquear as memórias destrutivas quando são recordadas, os cientistas esperam apagar totalmente a ansiedade e a dependência.

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ção inerte. Mostra -nos que, de todas as vezes que recordamos alguma coisa, a estrutura neuronal da memória se transforma delicadamen-te, num processo chamado reconsolidação. (Freud chamava a este processo Nachtraglichkeit, ou “retroactividade”). Na ausência do estí-mulo original, a memória altera -se, passando a ser mais aquilo que somos do que aquilo de que nos lembramos. Assim, a memória pu-ramente objectiva, a memória “fi el” ao sabor original da madalena, é a única memória que nunca conheceremos. O momento em que re-cordamos o sabor do bolo é o mesmo momento em que esquecemos o seu verdadeiro sabor.

Proust, prescientemente, previu a descoberta da reconsolidação da memória. Para ele, as memórias eram como as frases: eram coisas que nunca deixamos de modifi car. Consequentemente, Proust era não só um fervoroso sentimental, como também um insuportável revi-sor dos seus textos. Escrevinhava nas margens dos manuscritos e, quando já não havia espaço nas margens, acrescentava às suas pági-nas paperoles, pequenos pedaços de papel que colava no manuscrito original. Nada do que ele escrevia era permanente. Não era raro man-dar parar o processo de impressão pagando do seu bolso.

Sem dúvida, Proust acreditava no processo da escrita. Nunca come-çava por delinear as suas histórias. Pensava que o romance, tal como a inverdade das memórias que descrevia, devia discorrer naturalmen-te. Apesar da Busca ter começado por ser um ensaio contra o crítico literário Charles Augustin Sainte -Beuve – Proust argumentava que a literatura não pode ser interpretada em termos da vida literal do ar-tista – rapidamente se expandiu para um épico sobre a infância, o amor, o ciúme, a homossexualidade e o tempo. Aí interveio a Primei-ra Guerra Mundial, as máquinas de impressão foram transformadas em tanques e o romance de Proust, não tendo saída comercial, cres-ceu de um colossal meio milhão de palavras para um talmúdico mi-lhão e um quarto. Ao mesmo tempo, o avião do amor da vida de Proust, Alfred Agnostelli, despenhou -se tragicamente no mar. Proust dissipou a sua mágoa num enredo totalmente novo, no qual a perso-nagem de Albertine, o duplo fantasmagórico de Alfred no romance, também morre.

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Para um romance sobre a memória, a plasticidade da narrativa era um dos seus elementos mais realistas. Proust aperfeiçoava constante-mente as suas frases fi ccionais à luz de novos conhecimentos, alteran-do as palavras passadas para refl ectirem as circunstâncias presentes. Na última noite da sua vida, prostrado na cama, enfraquecido por uma dieta de gelados, cerveja e barbitúricos, convocou Celeste, a sua ama-da criada, para lhe ditar algum texto. Queria modifi car uma parte do romance que descrevia a morte lenta de uma personagem, uma vez que agora sabia um pouco mais sobre o que é estar moribundo.

A desconfortável verdade é que o nosso processo de memória é o mesmo que Proust descreveu. Enquanto tivermos lembranças, as mar-gens dessas memórias são modifi cadas para se enquadrarem naquilo que sabemos agora. As sinapses cruzam -se, as dendrites retesam -se e o momento memorizado, que parece tão honesto, é totalmente revisto.

Proust nunca viu a versão completa da Busca impressa no decurso da sua vida. Para ele, a obra seria sempre maleável, tal como a me-mória.

Antes de Nader ter criado os seus ratos amnésicos em 2002, os neuro-cientistas evitavam a área obscura da recordação e da reconsolidação. Em vez disso, os cientistas concentravam -se na esquematização meti-culosa das moléculas responsáveis pelo armazenamento da memória. Presumiam que a memória era como uma fotografi a, um instantâ-neo fi xo, por isso a forma como a memória era realmente recordada não tinha verdadeira importância. Se pelo menos tivessem lido Proust!

Uma das moralidades da Busca é que cada memória é inseparável do momento em que é recordada. Por isso, Proust devotou 58 pági-nas entediantes ao estado mental do narrador antes de ter comido uma única madalena. Queria mostrar como o seu estado actual dis-torcia a noção do passado. Ao fi m e ao cabo, durante a sua meninice em Combray, onde comia todas as madalenas que lhe apetecesse, o maior desejo de Marcel era escapar da pequena cidade. Mas depois de ter fugido, só sonhava em recuperar a preciosa infância que tão le-vianamente desperdiçara. É esta a ironia da nostalgia proustiana: re-corda -se das coisas terem sido muito melhores do que na realidade

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foram. Mas, pelo menos, Proust estava intensamente consciente da sua própria fraude. Ele sabia que a Combray por que ansiava não era a Combray real. (Como ele próprio disse: “O único paraíso é o paraíso perdido.”) Esta situação não era culpa dele: não há simplesmente maneira de descrever o passado sem mentir. As nossas memórias não se parecem com a fi cção. São a fi cção.

Os romances de Proust brincam provocadoramente com a fi cção da memória de uma maneira muito pós -moderna: o narrador, que se identifi ca como Marcel apenas uma vez em 3000 páginas,* começa as frases com Eu. À semelhança de Proust, o narrador traduziu Ruskin, intrometia -se nos salões da alta sociedade e é agora um doente reco-lhido que escreve Em Busca do Tempo Perdido. E algumas personagens, embora Proust o tenha negado até ao fi m, são pessoas conhecidas, vagamente disfarçadas. Nos seus livros, a fi cção e a realidade estão de-sesperadamente entrelaçadas. Mas Proust, sempre reservado, negava esta verosimilhança:

“Neste livro, onde não há um único facto que não seja fi ctício, onde não existe uma única personagem real disfarçada sob um nome falso, em que tudo foi por mim inventado em conformidade com as necessidades da minha demonstração, devo dizer em louvor do meu país, que só os parentes milionários de Françoise, que deixaram o seu retiro para ajudar a sobrinha desamparada, só eles são pessoas reais, que existem.”16

Esta passagem surge no fi nal de O Tempo Reencontrado, o último livro da Busca. Não é tanto uma negação da realidade espelhada pelo romance, mas antes uma tentativa para desacreditar qualquer explo-ração sobre ela. Proust apresenta um ponto de intersecção sarcástico (os parentes milionários de Françoise) como o único lugar em que a realidade, a literatura, a verdade e a memória se encontram. Aqui Proust é um pouco mais do que dissimulado. O romance e a vida, o cronista e o fi ccionista, são na realidade desesperadamente indistin-

* Aqui está a frase que confi rma que Proust é o narrador: “’Meu __’ ou ‘Meu querido’ seguido do meu nome o qual, se dermos ao narrador o mesmo nome do autor deste livro, seria ‘Meu Marcel’, ou ‘Meu querido Marcel’”.

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tos. Proust gosta das coisas assim porque essa é a maneira como a memória realmente é. Como adverte no fi nal de Do Lado de Swan, “A contradição que reside em procurar na realidade os quadros da me-mória (…), a recordação de uma determinada imagem não passa de nostalgia de um determinado momento: e as casas, as estradas, as avenidas, são infelizmente fugazes, como os anos.”17

Neste paradigma proustiano, as memórias não representam direc-tamente a realidade. Pelo contrário, são cópias imperfeitas daquilo que realmente aconteceu, a fotocópia da fotocópia de uma imagem mimografada da fotografi a original. Proust sabia intuitivamente que as nossas memórias exigiam este processo transformativo. Se não deixarmos a memória mudar, ela deixa de existir. Combray está per-dida. Este é o segredo culposo de Proust: temos de distorcer a memó-ria de uma coisa para a podermos recordar.

PROTEÍNAS SENTIMENTAISAlgumas memórias existem fora do tempo, como tapetes mágicos dobrados delicadamente na nossa mente. A reminiscência incons-ciente está no cerne do modelo de memória de Proust porque mes-mo quando as nossas memórias nos defi nem, parecem existir sem nós. No início de Do Lado de Swan, Proust tinha esquecido tudo so-bre os bolos açucarados da sua infância. Combray não passava de mais um subúrbio de Paris. Mas aí, quando come a madalena que lhe recorda a Tia Leonie e o aroma do chá conspira com a textura do guardanapo, a memória regressa para o assombrar, como um fantas-ma. O tempo perdido foi reencontrado. Proust venerava estas revela-ções repentinas do passado, porque pareciam mais verdadeiras, menos corrompidas pelas mentiras do processo da recordação. Marcel é como o rapaz descrito por Freud, que gostava de perder os brinquedos por-que adorava encontrá -los.

Mas como é que estas memórias inconscientes persistem? E como é que as recordamos depois de já terem sido esquecidas? Como é que um romance inteiro, ou sete, se limitam a fi car escondidos no cé-rebro, esperando pacientemente por uma madalena?

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Até há poucos anos a neurociência não tinha explicação para os mo-ments bienheureux (“momentos ditosos”) de Proust, para aquelas reve-lações esmagadoras em que a lembrança surge como uma aparição. O modelo científi co padrão da memória girava em volta de enzimas e genes que requeriam imensas reservas para serem activados. Os po-bres animais usados nestas experiências tinham de ser treinados in-defi nidamente, e os neurónios ameaçados, para alterar as suas ligações sinápticas. A repetição estúpida parecia ser o segredo da memória.

Infelizmente para a neurociência, não é assim que a maior parte das memórias se forma. A vida acontece apenas uma vez. Quando Proust se recorda da madalena em Do Lado de Swan, não é porque tenha comido muitas madalenas, muito pelo contrário. A memória de Proust é fantasmagoricamente específi ca e totalmente inesperada. A sua memória de Combray, instigada por algumas migalhas fortuitas, interrompe -lhe a vida, invadindo -a sem qualquer razão lógica, “sem qualquer alvitre da sua origem”. Proust é atropelado pelo seu passado.

Estas memórias literárias são precisamente o tipo de lembranças que os velhos modelos científi cos não conseguiam explicar. Esses modelos não parecem encerrar a aleatoriedade e estranheza da me-mória em que vivemos. Não descrevem a sua totalidade, a maneira como as memórias aparecem e desaparecem, o modo como mudam e fl utuam, se afundam ou se avolumam. As nossas memórias obce-cam -nos precisamente porque não obedecem a nenhuma lógica, por-que nunca sabemos o que iremos reter e o que iremos esquecer.

Mas o que faz com que a ciência seja tão maravilhosa é a propensão para se emendar a si própria. À semelhança de Proust, que aperfei-çoava as suas frases até o tipógrafo compor os tipos, os cientistas nun-ca estão satisfeitos com a versão actual das coisas. No mais recente esboço da ciência da memória, a teoria sofreu um notável desvio de enredo. Começam a ouvir -se rumores científi cos que podem revelar os pormenores moleculares que presidem ao modo como as nossas me-mórias subsistem, mesmo depois de nos termos esquecido delas.

Esta teoria, publicada em 2003 na revista Cell,18 continua a ser con-troversa. Não obstante, a elegância da sua lógica é tentadora. O Dr. Kausik Si, um antigo pós -doutorado no laboratório do laureado com

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o Nobel Eric Kandel, acredita ter encontrado a “marca sináptica” da memória, o poderoso grão que persiste nos limites eléctricos distan-tes dos neurónios.* A molécula que ele descobriu pode muito bem ser a solução para a pesquisa de Proust sobre a origem do passado.

O Dr. Si começou a sua pesquisa científi ca tentando responder à questão colocada pela madalena. Como é que as memórias perduram? Como é que escapam aos atrofi antes ácidos do tempo? Ao fi m e ao cabo, as células do cérebro, como todas as células, fl uem constante-mente. O tempo médio de meia vida de uma proteína do cérebro é de apenas 14 dias. Os neurónios do nosso hipocampo morrem e renas-cem, a mente está num estado de reincarnação constante. O Dr. Si concluiu que as nossas memórias devem ser feitas de um material muito resistente, algo ainda mais robusto do que as células.

Mas uma memória neural não pode ser simplesmente forte: tam-bém deve ser específi ca. Apesar de cada neurónio ter apenas um único núcleo, tem um volume abundante de ramos dendríticos. Estes ramos vagueiam em todas as direcções, ligando -se a outros neurónios nas sinapses dendríticas (imaginem duas árvores cujos ramos se to-cam numa fl oresta densa). É nestes fi nos cruzamentos19 que as nos-sas memórias se formam: não no tronco da árvore neural, mas na sua copa alongada.

Como é que uma célula altera uma parte remota de si mesma? O Dr. Si apercebeu -se de que nenhum dos modelos convencionais da memória podiam explicar tal fenómeno**. Devia haver algo mais, al-gum ingrediente desconhecido que marcava um ramo específi co como uma memória. A questão mais importante era: que molécula é que faz a marcação? Que segredo molecular se oculta nas nossas densidades dendríticas, esperando silenciosamente por um bolo?

O Dr. Si iniciou a sua pesquisa começando por analisar o problema. Ele sabia que qualquer marcador sináptico seria capaz de se transfor-mar em mensageiro de RNA (mRNA) uma vez que o mRNA ajuda a

* Para que conste, trabalhei durante vários anos com o Dr. Si.

** Antes do Dr. Si, a explicação convencional para a memória de longo prazo andava em volta do CREB, um gene activado nos neurónios durante o condicionamento de Pavlov. Mas os efeitos do CREB afectam toda a célula, portanto não podiam explicar a formação de memória em dendrites específi cas.

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fazer proteína e as novas memórias precisam de novas proteínas. Além disso, dado que o mRNA é regulado onde a memória é regulada – nas dendrites – a activação do mRNA permitiria a um neurónio mo-difi car selectivamente os seus pormenores. Esta ideia levou o Dr. Si até aos ovos das rãs. Ouvira falar de uma molécula20 capaz de activar peda-ços específi cos de mRNA durante o desenvolvimento do ovo. Acontecia que esta mesma molécula também estava presente no hipocampo21, o centro de memória do cérebro. O seu ignominioso nome era CPEB, proteína citoplasmática de ligação ao elemento de poliadenilação.

Para ver se a CPEB era realmente importante para a memória (e não apenas para os zigotos das rãs), o Dr. Si começou por procurá -la em lesmas -do -mar Aplysia californica, um dos animais experimentais preferidos pelos neurocientistas. Para sua agradável surpresa, a CPEB estava presente nos neurónios da lesma. Para além disso, a CPEB es-tava presente exactamente onde um marcador sináptico deveria estar, silenciosamente escondida nos ramos dendríticos.

Aqui o Dr. Si fi cou intrigado. Começou a sua demanda para com-preender a CPEB, bloqueando -a. Se a CPEB fosse removida, o neuró-nio ainda conseguiria formar uma memória? Poderia ainda a célula formar uma sinapse? Embora acreditasse fi rmemente nos seus pró-prios dados, a resposta foi clara: sem a CPEB, os neurónios da lesma não conseguiam lembrar -se de nada.

Mas ele ainda não conseguira perceber como é que a CPEB funcio-nava. Como é que esta molécula existia fora do tempo? O que é que a tornava tão resistente? Como é que sobrevivia ao impiedoso clima do cérebro? A primeira pista do Dr. Si surgiu quando descodifi cou a sequência de aminoácido da proteína. A maior parte das proteínas liam -se como uma lista de letras aleatória, com as suas estruturas apre-sentando uma mistura saudável de aminoácidos diferentes. No entan-to, a CPEB parecia completamente diferente. Uma das extremidades da proteína tinha uma série estranha de repetições de aminoácido, como se o seu ADN tivesse sofrido um ataque de gaguez (Q represen-ta a glutamina do aminoácido):

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O Dr. Si começou imediatamente a procurar outras moléculas com repetições anormais semelhantes. Neste processo tropeçou numa das áreas mais controversas da biologia. Encontrou aquilo que pare-cia ser um prião.

Os priões já foram encarados como os agentes patogénicos mais desagradáveis de uma tribo de doenças terríveis: a doença das vacas loucas, insónia familiar fatal (cujas vítimas perdem a capacidade de dormir e morrem em três meses devido à privação do sono) e uma horda de outras doenças neurodegenerativas. Os priões ainda são ti-dos como os culpados por estas mortes horrorosas. Mas os biólogos começam a aperceber -se de que os priões estão por todo o lado. Os priões são defi nidos grosseiramente como uma classe de proteínas que pode existir em dois estados de funcionalidade distintos (uma em cada duas proteínas tem apenas um estado natural). Um destes estados é activo e o outro é inactivo. Para além disso, os priões podem mudar de estado (ligarem -se e desligarem -se) sem qualquer orienta-ção superior. Mudam de estrutura proteómica sem mudarem de ADN. E uma vez ligado, um prião pode transmitir a sua nova estru-tura infecciosa às células vizinhas sem transferir material genético.

Por outras palavras, os priões violam a maioria das regras sagradas da biologia. São uma daquelas recordações irritantes do muito que não sabemos. Não obstante, os priões do cérebro provavelmente con-têm a chave para mudarmos a nossa visão científi ca da memória. Não só a proteína CPEB é sufi cientemente robusta para resistir aos efei-tos do tempo – os priões são famosos por serem praticamente indes-trutíveis –, como também exibe uma espantosa fl exibilidade. Libertos de um substrato genético, os priões de CPEB são capazes de modifi -car as suas formas com relativa facilidade, criando ou apagando uma memória. Os estímulos da serotonina e da dopamina, dois neuro-transmissores que são libertados pelos neurónios quando pensamos, mudam a própria estrutura da CPEB, pondo a proteína em actividade.

Depois de a CPEB ser activada, marca um ramo dendrítico especí-fi co como uma memória. Na sua nova confi guração, pode recrutar a quantidade de mRNA necessária para manter uma lembrança de longo prazo. Não é necessário qualquer outro estímulo ou alteração

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genética. A proteína esperará pacientemente, vadiando silenciosa-mente pelas nossas sinapses. Poderíamos nunca mais comer outra madalena, mas Combray, mesmo assim, estaria onde sempre esteve, perdida no tempo. É só quando o bolo é mergulhado no chá, quando a memória é convocada para a superfície brilhante, que a CPEB re-gressa à vida. O sabor da madalena dispara uma torrente de novos neurotransmissores que representam Combray e, se atingirmos um determinado ponto, a CPEB activa infecta as dendrites vizinhas. É des-te estremecimento celular que nasce a memória.

Mas as memórias, como insistia Proust, não se limitam a perdurar estoicamente: também mudam invariavelmente. A CPEB apoia a hi-pótese de Proust. Sempre que evocamos os nossos passados, os ramos das nossas reminiscências fi cam maleáveis de novo. Embora os priões que marcam as nossas memórias sejam praticamente imortais, os por-menores dendríticos são constantemente alterados, viajando entre os pólos da lembrança e do esquecimento. O passado é ao mesmo tempo perpétuo e efémero.

Este breve esboço de uma teoria tem implicações profundas na neurociência da memória. Antes do mais, é a prova de que os priões não são uma espécie de apócrifos biológicos. Na realidade, os priões são um ingrediente essencial da vida e têm todo o tipo de funções in-trigantes. Alguns cientistas suíços, prosseguindo a pesquisa do Dr. Si, descobriram mesmo uma ligação entre o gene do prião que provoca a doença das vacas loucas e o aumento da memória a longo prazo. Com efeito,22 quanto maior é a tendência dos nossos neurónios para moldar priões mal formados, melhor é a nossa memória. Outras ex-periências23 ligaram a ausência da CPEB no hipocampo do rato a de-fi ciências específi cas na memória de longo prazo. Embora os pormenores continuem na sua maioria obscuros, parece haver uma profunda ligação entre os priões e a lembrança.

Mas o modelo da CPEB também exige que transformemos as nos-sas metáforas da memória. Já não podemos imaginar a memória como um espelho perfeito da vida. Como Proust insistia, a reminis-cência das coisas passadas não é necessariamente a lembrança das

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coisas como elas eram. Os priões refl ectem este facto, uma vez que têm um elemento de aleatoriedade inscrito na sua estrutura. Eles não se importam de mentir. Apesar de a CPEB poder mudar para um es-tado activo sob um determinado conjunto de circunstâncias experi-mentais (como algumas baforadas de serotonina), as experiências do Dr. Si também demonstram que a proteína pode fi car activa sem nenhuma razão especial, uma vez que a sua transformação é larga-mente ditada pelas leis imperscrutáveis da dobragem da proteína e da estequiometria.

Esta indeterminação faz parte intrínseca da CPEB. Numa proteína, os priões são libertados de forma única. São capazes de ignorar tudo, desde as instruções do nosso ADN até aos ciclos de vida das nossas células. Embora existam dentro de nós, estão, em última análise, sepa-rados de nós, obedecendo às suas próprias regras. Como disse Proust, “ele [o passado] está escondido (…) em algum objecto material (…) de que não suspeitamos”.24 E embora a nossa memória permaneça im-penetrável, a molécula da CPEB (se a teoria for verdadeira) é o por-menor sináptico que persiste fora do tempo. A ideia do Dr. Si é a primeira hipótese que começa a explicar como as ideias sentimen-tais perduram. É por isso que Combray ainda existe silenciosamente sob a superfície, imediatamente atrás da cortina da consciência. É também por isso que Marcel se lembra de Combray na página 52 e não na primeira página. É uma teoria molecular da memória explí-cita, que parece ser verdade. Porquê? Porque abraça a nossa aleato-riedade essencial, porque os priões são por defi nição imprevisíveis e instáveis, porque a memória só obedece a si mesma. Era isto que Proust sabia: o passado nunca é o passado. Enquanto formos vivos, as nossas memórias mantêm -se maravilhosamente voláteis. E no seu espelho de mercúrio vemo -nos a nós próprios.

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28. James, Escoffi er: The King of Chefs, 132.

29. Escoffi er, The Escoffi er Cookbook, 1.

30. Sam Sifton, “The Cheat’ New York Times Magazine, 8 de Maio de 2005.

CAPÍTULO 41. Charles Baudelaire, Baudelaire in English, Nova Iorque, Penguin, 1998, 91. (Tra-

dução: Fernando Pinto do Amaral, As Flores do Mal, Lisboa, Assírio & Alvim, Outu-

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2. Marcel Proust, Time Regained, vol. VI, Nova Iorque, Modern Library, 1999, 441.

3. Ibid., 322. (Tradução: Pedro Tamen, Em Busca do Tempo Perdido, Vol. VII, O Tem-

po Reencontrado, Lisboa, Relógio d’Agua).

4. Citado por Joshua Landy, Philosophy as Fiction: Self, Deception, and Knowledge in

Proust, Oxford, Oxford University Press, 2004), 163.

5. Proust, Time Regained, 284.

6. Ibid., 206.

7. Marcel Proust, Swann Way, Vol. 1, Nova Iorque, Modern Library, 1998, 60. (Tra-

dução: Pedro Tamen, Em Busca do Tempo Perdido, Vol. I, Do Lado de Swann, Lisboa,

Relógio d’Água, 2003).

8. Ibid., 63.

9. Rachel Herz and J. Schooler, “A Naturalistic Study of Auto -biographical Memo-

ries Evoked by Olfactory and Visual Cues: Testing the Proustian Hypothesis”, Ame-

rican Journal of Psychology, 115, 2002, 21 -32.

10. Proust, Swann’s Way, 63.

11. Ibid., 64.

12. Ibid.

13. Citado por Landy em Philosophy as Fiction, 4.

14. Stanley Finger, Minds Behind the Brain, Oxford, Oxford University Press, 2000, 214.

15. Karim Nader et al., “Fear Memories Require Protein Synthesis in the Amygdala

for Reconsolidation after Retrieval”, Nature, 406, 686 -87. Ver também J. Debiec, J.

LeDoux, e K. Nader, “Cellular and Systems Reconsolidation in the Hippocampus”,

Neuron, 36, 2002; e K. Nader et al., “Characterization of Fear Memory Reconsolida-

tion”, Journal of Neuroscience, 24, 2004, 9269 -75.

NOTAS

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16. Proust, Time Regained, 225.

17. Proust, Swann’s Way, 606.

18. K. Si, E. Kandeil, e S. Lindquist, “A Neuronal Isoform of the Aplysia CPEB Has

Prion -Like Properties”, Cell, 115, 2003, 879 -91.

19. Kelsey Martin et al., “Synapse -Specifi c, Long Term Facilitation of Aplysia Sen-

sory to Motor Synapses: A Function for Local Protein Synthesis in Memory Stora-

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20. Joel Richter, “Think Globally, Translate Locally: What Mitotic Spindles and Neu-

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21. L. Wu et al., “CPEB -Mediated Cytoplasmic Polyadenylation and the Regulation

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22. A. Papassotiropoulos et al., “The Prion Gene Is Associated with Human Long-

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23. J. M. Alarcon et ai.,” Selective Modulation of Some Forms of Schaffer Collateral-

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24. Proust, Swann’s Way, 59.

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3. Christopher Butler, Early Modernism, Oxford, Oxford University Press, 1994,

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5. Charles Baudelaire, Charles Baudelaire: The Mirror of Art, trad. Jonathan Mayne,

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7. John Rewald, Cézanne, Nova Iorque, Harry Abrams, 1986, 159.

8. Peter Schjeldahl, “Two Views,” The New Yorker, 11 de Julho, 2005.

9. Becks -Malorny, Cézanne, 24.

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