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RACISMO NA ESCOLA: A CONSTRUÇÃO DA CONSCIÊNCIA HISTÓRICA
Andressa da Silva Oliveira1
RESUMO
O presente artigo provém de um projeto de pesquisa de mestrado que surgiu a partir de
experiências com o subprojeto PIBID de História, na Universidade Estadual Paulista- FCL
Assis, no ano de 2015, onde em uma das escolas beneficiadas pelo programa ocorreu um caso
de racismo em sala de aula. A partir deste caso, a necessidade de se discutir essa questão tão
pertinente, principalmente para uma escola de região periférica inserida em um contexto sócio
histórico permeado pelo racismo, se instalou. A pesquisa tem como objetivo investigar como
os estudantes apresentam o pensamento histórico a partir da problematização do racismo, por
meio da abordagem histórica do tema em sala de aula. Para tal serão utilizadas metodologias
de pesquisa provenientes da Educação Histórica. Nesse sentido, o presente artigo procura
trazer contribuições para a reflexão acerca da importância de um ensino de História da África
e Cultura Africana e Afro-brasileira nas escolas que promova a construção da consciência
histórica com o fim de contribuir para a diminuição da prática do racismo nos diversos meios
sociais, não apenas na escola.
PALAVRAS-CHAVE: Racismo; Consciência Histórica; Ensino de História;
INTRODUÇÃO
A Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, modificou a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de
1996, a qual estabelece as diretrizes e bases da educação nacional e inclui, no currículo oficial
da Rede de Ensino, a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Africana e Afro-
brasileira”. Com a Lei nº 10.639 foram acrescidos três artigos: 26-A, 79-A e 79-B. O Artigo
26-A estabelece que o ensino de História e Cultura Africana e Afro-brasileira deve ser
obrigatório, tanto em estabelecimentos de ensino médio e fundamental oficiais, quanto em
particulares. Estabelece que no ensino deve estar incluso o estudo de História da África e dos
1 Graduada em Licenciatura em História pela Universidade Estadual Paulista - “Júlio de Mesquita Filho”
(UNESP)- câmpus de Assis. Mestranda em História Social - História e Ensino pela Universidade Estadual de
Londrina (UEL).
E-mail: [email protected]
Africanos, a luta do povo negro no Brasil, sua contribuição nos diversos âmbitos sociais e
importância na formação da sociedade brasileira. O Artigo 79-A, por sua vez, foi vetado2 e o
79-B instituiu o dia 20 de novembro como “Dia Nacional da Consciência Negra”.
A conquista da Lei 10.639/03 que se deve, principalmente, à militância negra, é
acompanhada da necessidade de reformulações no ensino e, consequentemente, alterações nos
materiais didáticos.
Em março de 2008, a Lei nº 11.645 entrou em vigor, alterando as leis antecessoras.
Esta lei alterava o Artigo 26-A, incluindo a obrigatoriedade do ensino de “História e Cultura
Africana e Afro-brasileira e Indígena” em todas as escolas de ensino fundamental e médio,
nas redes oficiais e particulares. Estabelece que o conteúdo programático incluísse,
principalmente, a contribuição dos indígenas e dos negros para a formação da sociedade
contemporânea brasileira.
A história brasileira tem em seu cerne o peso do escravismo, pois somos hoje um país
desigual em vários aspectos. Exemplo disso é que os negros constituem cerca de 50,7% da
população brasileira, no entanto são a minoria dos formandos em cursos superiores, como
pode ser verificado no curso de Medicina, em que apenas 2,7% dos concluintes são negros.
Apesar do número de negros ingressantes no ensino superior ter aumentado dez vezes, ainda
constituem a minoria. Ademais, os negros são os mais atingidos pela violência urbana, têm
renda 40% menor que os brancos, são os maiores beneficiários do Programa do Governo
Federal Bolsa Família, e a taxa de analfabetismo é duas vezes maior entre eles. 3
A chamada “democracia racial”, instituída no meio acadêmico, é atribuída ao
sociólogo Gilberto Freyre. A partir da obra Casa Grande e Senzala (1933) imprimiu-se,
institucionalmente, a noção de que o racismo era mais brando no Brasil, diferente do que
acontecia em outras regiões do mundo como, por exemplo, nos Estados Unidos. Destarte, a
sociedade brasileira se constituiu como uma nação com relações sociais maleáveis. Muitos
2 Segundo o site do Planalto o Artigo 79-A estabelecia: "Art. 79-A. Os cursos de capacitação para
professores deverão contar com a participação de entidades do movimento afro-brasileiro, das universidades e de
outras instituições de pesquisa pertinentes à matéria.". E as razões pelas quais foi vetado foram: Verifica-se que a
Lei no 9.394, de 1996, não disciplina e nem tampouco faz menção, em nenhum de seus artigos, a cursos de
capacitação para professores. O art. 79-A, portanto, estaria a romper a unidade de conteúdo da citada lei e,
consequentemente, estaria contrariando norma de interesse público da Lei Complementar no 95, de 26 de
fevereiro de 1998, segundo a qual a lei não conterá matéria estranha a seu objeto (art. 7o, inciso II)."
Fonte: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/Mensagem_Veto/2003/Mv07-03.htm
3 Fonte: Dados coletados a partir dos censos realizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) e da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD -2016).
foram os esforços de diversos sociólogos brasileiros para refutar a teoria da democracia racial
no meio acadêmico, entre eles Florestan Fernandes, Octávio Ianni e Fernando Henrique
Cardoso4. No entanto, o discurso de não existência de racismo no Brasil ainda perdura e
políticas públicas que favoreçam o grupo negro é alvo de constantes críticas, como ocorre no
caso das cotas raciais para as universidades e institutos estaduais e federais de ensino.
Contudo, a militância dos movimentos negros também alcançou grandes feitos, dentre eles a
criminalização do racismo, na Constituição de 1988.
Recentemente, vários casos de racismo têm sido noticiados pelos veículos midiáticos e
redes sociais. Em 2014, Cláudia Silva Ferreira5 foi confundida com uma traficante em uma
comunidade no Rio de Janeiro, baleada, os policiais a colocaram no carro, e seu corpo foi
arrastado por 350 metros, levando-a a falecer. Em 2016, a cantora Gaby Amarantos e a filha
de dois atores, uma criança adotada de origem africana6, foram alvos de racismo através das
4 Florestan Fernandes inicia seus estudos de Sociologia sobre o Racismo a partir de um convite de Paulo
Duarte, editor da Revista Anhembi, na década de 1950. Além desse convite, o grande incentivo para realizarem-
se os estudos sobre as relações raciais no Brasil veio do Projeto UNESCO. Florestan Fernandes e Roger Bastide
iniciaram as pesquisas e o tema passou a ser a pesquisa mais importante da Cadeira de Sociologia I da USP
(Universidade de São Paulo). Estas pesquisas dialogavam diretamente com a obra de Gilberto Freyre, o objetivo
era demonstrar que a classe não era o único critério utilizado para a classificação de indivíduos na sociedade
brasileira. Na época, Fernando Henrique Cardoso participou como ajudante nas pesquisas utilizando-se do
método funcionalista, o objetivo era demonstrar a relação entre o preconceito de classe e de raça. As pesquisas
realizadas por Cardoso são fruto do desdobramento das pesquisas feitas anteriormente por Bastide e Fernandes
para o Projeto UNESCO. Cardoso com a ajuda de Otávio Ianni e Jardim Moreira estudou Santa Catarina e
posteriormente o Rio Grande do Sul. As pesquisas de Cardoso, assim como a dos outros sociólogos aqui citados,
foram de grande importância, pois serviram para refutar teses importantes que defendiam um caráter diferencial
nas relações raciais nos estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, mostrando que as relações raciais
existentes no Sul do país não se diferenciavam das relações no resto do Brasil e, principalmente, da existente em
São Paulo, onde se concentrarão as pesquisas de Florestan Fernandes e Roger Bastide. Entre as obras estão:
BASTIDE, Roger & FERNANDES, Florestan (2008). Brancos e negros em São Paulo: ensaio sociológico sobre
aspectos da formação, manifestações atuais e efeitos do preconceito de cor na sociedade paulistana. São Paulo,
Global,. 4ª edição. CARDOSO, F. Henrique. (1958) O negro e a expansão portuguesa no Brasil Meridional. São Paulo,
Anhembi, n.51, setembro, p.16-21.
___________________(2003)Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional: o negro na sociedade
escravocrata do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira.
FERNANDES, Florestan. Brancos e negros em São Paulo: ensaio sociológico sobre aspectos da
formação, manifestações atuais e efeitos do preconceito de cor na sociedade paulistana. São Paulo, Global, 2008.
4ª edição.
IANNI, Octávio (1962) As metamorfoses do escravo: apogeu e crise da escravatura no Brasil
Meridional. São Paulo, Ed. Difusão Europeia do Livro. 5 Fonte: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2014/03/arrastada-por-carro-da-pm-do-rio-foi-morta-
por-tiro-diz-atestado.html
6 Fonte: https://observatoriodatelevisao.bol.uol.com.br/famosos/2016/11/depois-de-ofender-gaby-
amarantos-internauta-ataca-filha-de-bruno-gagliasso-parece-uma-macaquinha
redes sociais. Há pouco tempo, a piauiense Monalysa Alcântara foi eleita Miss Brasil 7. Após
vencer a concorrente, gaúcha e branca, foi alvo de milhares de comentários racistas nas redes
sociais, com alguns deixando a entender que ela só havia vencido o concurso pelo fato de ser
negra. Estes são apenas alguns exemplos dos inúmeros casos de racismo e ataques nas redes
sociais.
Por que colocar como exemplos os casos de racismo acima mencionados? Qual a
importância que esses acontecimentos têm? Por que as temáticas de ensino propostas pela Lei
nº 10.639/03 são importantes? Qual a relação do racismo com a consciência histórica?
A razão de ter escolhido casos recentes e que, em sua maioria, são veiculados pelas
redes sociais, é trazer ao tempo presente questões que estão cristalizadas na sociedade
brasileira. O racismo velado, “cordial” se apresenta, atualmente, mais no âmbito das relações
diretas de um indivíduo com o outro. As redes sociais hoje servem de certa forma, como uma
proteção para quem pratica o racismo e, também, outros tipos de discriminações. A liberdade
de expressão e a facilidade de se relacionar com várias pessoas em um curto espaço de tempo,
possibilita que muitas pessoas ajam desta forma.
Neste sentido, o ensino de História tem papel fundamental porque é por meio dele que
se constituirão caminhos para o cumprimento das leis que instituem o ensino de História da
África e Cultura Africana e Afro-brasileira. Além disso, porque o ensino de História, centrado
na aprendizagem com o objetivo de construção da consciência histórica, se coloca como meio
de emancipação em detrimento de um pensamento baseado no senso comum, que tem como
aporte a História Tradicional. Mas, para a ocorrência de tal processo, faz-se necessário que o
(a) professor (a) reflita a respeito do ensino de História, transformando-o sempre em objeto de
pesquisa.
Há ainda, no entanto, certo distanciamento entre a pesquisa científica e a Didática da
História. Desde a década de transição entre os séculos XX e XXI, as pesquisas na área de
ensino e aprendizagem da História têm crescido de forma significativa, sobretudo aquelas que
têm os estudos da cognição situados na epistemologia da ciência histórica, cujo um dos
principais contribuintes tem sido o historiador e filósofo alemão, Jörn Rüsen. A constatação
desse crescimento pode ser observada pelo surgimento de linhas de pesquisa nos programas
de pós-graduação de várias universidades brasileiras e em outros países, tal fato é apontado
7 Fonte: https://www.pragmatismopolitico.com.br/2017/08/nova-miss-brasil-e-alvo-de-racismo-tem-
cara-de-empregadinha-devia-morrer.html
pelas professoras pesquisadoras Marlene Cainelli e Maria Auxiliadora Schmidt (2012, p. 509)
em um artigo, na revista Antíteses:
“Esse boom pode ser também observado em outros países e tem provocado o
aparecimento de domínios específicos na área do ensino de história, como o
chamado campo da Educação Histórica que se desenvolveu em países como
Inglaterra, Alemanha, Estados Unidos, Portugal e também no Brasil.”
As mesmas autoras consideram o ano de 1998 como definidor para a mudança de
embasamento das investigações sobre ensino e aprendizagem de História, pois nele ocorreu,
nos Estados Unidos, a Conferência de Pittsburg, na Universidade de Carnegie Mellon, cujo
tema foi “Ensinar, conhecer e Aprender História”, a qual
[...] “contou com a participação de vários investigadores da área de ensino de
História, como Denis Shemilt, Peter Lee e Rosalyn Ashby. Como indicativos
tirados nessa conferência, foram apontadas orientações para novos
investimentos em pesquisas, como a questão dos currículos de História
pautados nas grandes narrativas universais e a necessidade da inclusão de
temáticas nacionais e locais nas propostas curriculares; estudos sobre a visão
do passado para alunos e professores e seu significado para a orientação
temporal; análise e interpretação das práticas nas aulas de História; análise e
interpretação do trabalho dos professores e da sua formação.” (CAINELLI;
SCHMIDT, 2012, p.510, 2012).
Há, portanto, uma crescente preocupação com o Ensino de História no Brasil, bem
como com a necessidade de um Ensino de História da África e Cultura Africana e Afro-
brasileira de qualidade, com a finalidade de proporcionar que estudantes consigam se orientar
no tempo por meio da consciência histórica, entendendo-se como sujeitos e agentes de seu
tempo histórico. Através da memória, o passado se torna presente de modo que o presente seja
entendido e perspectivas acerca do futuro possam ser formadas (CAINELLI; SCHMIDT,
2012, p.510). Assim, será possível um ensino de História com sentido para a vida dos
estudantes, o qual poderá contribuir para que práticas racistas e discriminatórias deixem de
ocorrer, pois
[…] “Se “somos aquilo que recordamos”, como expresso no dito popular,
aprender uma História que rompa com estigmas, estereótipos e
silenciamento pode resultar na tomada de consciência do alunado negro de
seu papel como agente-histórico, bem como de sua autovalorização, além
desmobilizar condutas racistas entre os demais alunos.” (RIBEIRO, 2010,
p.2).
Espera-se, portanto, que essa pesquisa possa contribuir e dar continuidade às pesquisas
na área de Educação Histórica, bem como em sua relação com a Teoria da História. De igual
forma, almeja-se que a presente investigação contribua para a diminuição da dicotomia
existente entre a Ciência da História e a Didática da História, assim como para o
questionamento da noção de que ensino e aprendizagem da História são exteriores aos estudos
históricos.
2. PESQUISA
2.1- Metodologia
Ainda não foram definidas quais escolas participarão da pesquisa, mas será um estudo
comparativo, realizado em escolas públicas estaduais dos municípios de Londrina/PR e
Assis/SP.
Inicialmente, a proposta era a de realizar uma pesquisa qualitativa e também
desenvolver uma aula-oficina8, em conjunto com a análise do material didático e paradidático
disponíveis nas escolas e entrevistas com os professores que vão nos receber. No entanto,
dado o tempo limitado para o desenvolvimento da pesquisa, optamos por realizar apenas a
pesquisa qualitativa, metodologia bastante utilizada na Educação Histórica (History
Education). Será utilizada a metodologia da mobilização dos fundamentos do pensamento
histórico da matriz disciplinar de Jörn Rüsen – entende o ensino de história como orientação
e como compreensão da disciplina - no que tange à aprendizagem histórica e à construção da
consciência histórica.
Como mencionado anteriormente, a grande dificuldade para que um ensino com sentido
para a vida prática se desenvolva, segundo Rüsen, vem do distanciamento existente entre a
pesquisa científica e a Didática da História, desde o século XIX, devido à crescente
8 Metodologia desenvolvida por Isabel Barca, por meio da qual se realiza um levantamento prévio do
conhecimento dos (as) alunos (as) acerca do tema que será desenvolvido em sala de aula, posteriormente, se
desenvolve o tema com os (as) alunos (as), feito isso, um novo questionário é feito para que se possa comparar e
analisar o conhecimento construído após a aplicação das atividades, ambos os questionários têm o objetivo de
classificar os modos de saber que são três, segundo Barca, senso comum, ciência e epistemologia.
institucionalização e profissionalização da História, que contribuiu para que a didática fosse
esquecida e minimizada.
Durante o século XIX, quando os historiadores definiram sua disciplina, eles
começaram a perder de vista um importante princípio, a saber, que a história
é enraizada nas necessidades sociais para orientar a vida dentro de uma
estrutura de tempo. (...) A esse respeito, a cientifização da história excluiu da
competência da reflexão histórica racional aquelas dimensões do
pensamento histórico inseparavelmente combinadas com a vida prática.
(RÜSEN, 2011, p. 25).
Nesse sentido, muitas são as tentativas das últimas décadas no campo da metodologia
do Ensino de História para mudar a concepção que se tem formada acerca da disciplina para
que esta seja caracterizada “como fundamental para o desenvolvimento da consciência
histórica nos indivíduos, com vistas à sua utilização na vida cotidiana” (ALVES, 2011, p.
21).9
Além dos teóricos da Didática e Filosofia da História, que demonstraram esta
preocupação na Alemanha, a Educação Histórica (History Education) na Inglaterra, surgiu da
necessidade de fortalecer o ensino de História na Grã-Bretanha, para que ele pudesse ser
legitimado como um campo de conhecimento. Dentre os pesquisadores que participaram
desse movimento estão Dennis Shemilt, Peter Lee, Alaric Dickinson e Rosalyn Ashby, que
concentraram os esforços de suas pesquisas na progressão do pensamento histórico dos alunos
e, paulatinamente, agregaram ao campo do conhecimento pressupostos epistemológicos da
Filosofia da História Anglo-Saxã.10 Esse modelo conceitual, que se baseava em diversos
parâmetros analíticos, os fez chegar à conclusão de que a progressão do pensamento histórico
não está diretamente relacionada com a série que os (as) alunos (as) cursam, ou com a idade,
neste último caso, se relacionando com o modelo de desenvolvimento cognitivo de Piaget, o
qual aponta que o desenvolvimento do conhecimento é diretamente vinculado à idade do
indivíduo.11 Este campo do conhecimento ficou conhecido como Educação Histórica e se
espalhou por vários países, tais como Portugal e Brasil, com pesquisadores como Isabel
9 ALVES, Ronaldo C. Aprender História com sentido para a vida: consciência histórica em estudantes
brasileiros e portugueses. 2011. 322 f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade de São Paulo, São Paulo,
2011.p.21. 10 Entre os principais filósofos dessa vertente está R.G. Collingwood (1889-1943), representou para o
campo intelectual inglês da primeira década do século XX, a retomada dos problemas epistemológicos sobre a
História. Para Collingwood a principal função e importância da Filosofia daquele momento era aproximar-se dos
avanços da História. Collingwood fundamenta sua proposta para a Teoria da História em três pontos primordiais:
a lógica de pergunta e resposta, a doutrina das pressuposições absolutas e o conceito de re-enactment. 11 Esse estudo de Jean Piaget está presente em sua obra intitulada O Nascimento da Inteligência na
Criança (1936).
Barca, Maria Auxiliadora Schmidt e Marlene Cainelli. A importância dessas pesquisas é
apontada por Ronaldo Cardoso Alves em um de seus artigos:
[…] Tais pesquisas trazem importante contribuição ao estudo da formação
do pensamento histórico nos indivíduos à medida que apontam caminhos de
construção de instrumentos de pesquisa e levam em consideração
habilidades a serem desenvolvidas pelos alunos no tocante à sua relação com
a pluralidade narrativa histórica. Além disso, apresentam a proposta
inovadora de utilizar princípios da racionalidade do método histórico de
investigação, antes reduzida aos especialistas oriundos dos bancos
acadêmicos, para a formação histórica dos alunos nos bancos escolares do
ensino básico e secundário. (ALVES, 2013, p.60).
Assim, tanto a Didática da História quanto a Educação Histórica chegaram ao ponto
comum, o de recusa da disparidade existente entre o saber escolar e o saber científico, mesmo
partindo de caminhos completamente diferentes. A Didática da História alemã, que parte da
racionalidade histórica para relacionar a História com a vida cotidiana, tem por objetivo a
construção da consciência histórica. A Educação Histórica, por sua vez, parte da premissa de
que o conhecimento histórico tem seu ponto de partida na vivência do ambiente escolar.
Conhecimento mediado por uma reflexão epistemológica construtora de metodologias, as
quais sejam capazes de doar a alunos (as) e professores (as) a capacidade de se identificar no
tempo histórico e nele agir.
Ambas as linhas de conhecimento são de suma importância para o contexto social pelo
qual a História passa atualmente. Além do constante questionamento de seu caráter de
cientificidade, e também enquanto uma disciplina que vem sendo constantemente
descaracterizada (prova disso em 8 de fevereiro de 2017 foi aprovada, no Senado, a Medida
Provisória nº 746/2016 referente à Reforma do Ensino Médio brasileiro, a qual retira a
disciplina de História do currículo obrigatório), a História agora passa a fazer parte de um
conjunto de disciplinas classificadas como “Ciências Humanas”. A escolha de cursar essas
disciplinas é dos (as) alunos (as) e só poderão ser cursadas se a escola oferecer. Apesar da
BNCC (Base Nacional Comum Curricular)12 ainda não ter sido concluída o MEC (Ministério
12 A Base Nacional Comum Curricular está sendo construída em etapas. Segundo o site do MEC, a
primeira versão desse documento foi disponibilizada para a consulta pública de outubro de 2015 a março de
2016. Especialistas, associações científicas, e membros da comunidade acadêmica, deram seus pareceres sobre a
primeira versão. Todas as informações foram sistematizadas por pesquisadores da Universidade de Brasília
(UnB) e da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), trabalho que resultou na segunda
versão da BNCC. Esta segunda versão foi para um processo de debate institucional e seminários realizados pelas
da Educação) afirmou que a disciplina será obrigatória e também eletiva, concebida como um
componente curricular, pois, segundo o MEC a ideia de “disciplina” está ultrapassada e a
tentativa é de comparar o currículo de ensino do Brasil ao de outros países desenvolvidos.13
A partir deste repertório teórico, Medeiros (2006, p.84) afirma que “Rüsen define uma
tipologia básica da consciência histórica, pressupondo um uso do passado como orientação do
presente, uso este que pode repetir, modelar-se, negar ou integrar o passado como fundamento
das ações do agora.” Rüsen entende que não há uma única História do Passado e que para
compreendê-lo precisamos saber os mecanismos de construção deste passado, o que permite
aos (as) alunos (as) um controle sobre seu próprio aprendizado histórico.
“Para a narrativa histórica é decisivo (...) que sua constituição de sentido se
vincule à experiência do tempo de maneira que o passado possa tornar-se
presente no quadro cultural de orientação da vida prática contemporânea. Ao
tornar-se presente, o passado adquire o estatuto de ‘história’.” (RÜSEN,
2010, p. 155).
Em suma, o que Rüsen define como conhecimento histórico é que o alunado tenha a
capacidade de compreender quais são os mecanismos de elaboração histórica, ou seja, o que
chamamos de meta-história, com vistas a uma constituição de sentido do passado que visa
orientar a ação para a vida prática de alunos e alunas no presente. No entanto, precisa-se
diferenciar o que é o conhecimento histórico da consciência histórica. Segundo Rüsen, a
consciência histórica não se resume a conhecer o passado, pois ela é “a suma das operações
mentais com as quais os homens interpretam sua experiência da evolução temporal de seu
mundo e de si mesmos, de forma tal que possam orientar, intencionalmente, sua vida prática
no tempo.” (RÜSEN, 2010, p. 57).
Secretárias Estaduais de Educação em todas as Unidades Federais. A segunda versão foi analisada também por
especialistas brasileiros e internacionais. Em seguida, os pareceres analíticos desses especialistas foram
encaminhados ao Comitê Gestor da Base Nacional Curricular Comum e Reforma do Ensino Médio, instituído
pela Portaria MEC nº 790/2016. Em abril desse ano, a versão final da Base Nacional Comum Curricular foi
entregue pelo MEC ao Conselho Nacional de Educação (CNE). O CNE é responsável pela elaboração do parecer
e projeto de resolução da BNCC, que será encaminhado ao MEC. Após a homologação da BNCC se inicia o
processo de formação e capacitação de professores, e o apoio aos sistemas educacionais estaduais e municipais,
com o objetivo de elaborar e adequar os currículos escolares. 13 Fonte: https://oglobo.globo.com/sociedade/educacao/ausencia-de-historia-geografia-no-novo-ensino-medio-gera-apreensao-21027999.
“A consciência histórica dá estrutura ao conhecimento histórico como um
meio de entender o tempo presente e antecipar o futuro. Ela é uma
combinação complexa que contém a apreensão do passado regulada pela
necessidade de entender o presente e de presumir o futuro. Se os
historiadores vierem a perceber a conexão essencial entre as três dimensões
do tempo na estrutura da consciência histórica, eles podem evitar o
preconceito acadêmico amplamente aceito de que a história lida unicamente
com o passado: não há nada a se fazer com os problemas do presente e ainda
menos com os do futuro. (RÜSEN, 2011, p.36/37).”
Além desse objetivo precípuo de identificação dos tipos de consciência histórica
apresentados pelo grupo de alunos, a partir da abordagem histórica acerca da temática do
preconceito racial, também é possível denotarmos qual a representação social que se tem, do
grupo vítima de racismo, através da narrativa do alunado.
2.2- Preconceito Racial e Representações Sociais
O preconceito racial está presente na sociedade brasileira, resultado de quatro séculos
de escravidão dos povos africanos. Ao logo do tempo, a crença na “inferioridade” e
submissão do povo africano escravizado foi sustentada, justificada e legitimada pela religião,
ciência, política e também pelas teorias de senso comum, naturalizando-se cultural, social e
institucionalmente, por meio de um longo processo histórico-social de discriminação,
violência, subjugação e coisificação deste grupo marginalizado. Através de vários
mecanismos e de uma coletividade dominante nas relações de poder dentro da sociedade
brasileira, criou-se uma representação social acerca deste grupo. Sobre essa relação existente
entre os estudos clássicos sobre racismo e as representações sociais, Pereira, Torres e Almeida
(2003, p. 98) afirmam:
“[...] Nesse sentido, era de se esperar que os brancos representassem a
natureza do seu grupo mais positivamente do que a natureza das pessoas de
cor negra. Implicitamente, nesse processo de categorização, as pessoas
utilizam teorias de senso comum sobre as características essenciais que
diferenciariam o branco do negro. São essas teorias que permitem
estabelecer o elo entre estudos sobre o preconceito racial e a abordagem das
representações sociais, dado que as teorias de senso comum orientariam as
avaliações que as pessoas fazem de seu grupo e dos outros grupos”
Acerca do processo de criação de uma representação social e os valores e mecanismos
que a forjam, Jodelet (2001, p.21) aponta:
“[...] Apoiam-se em valores variáveis – segundo os grupos sociais de onde
tiram suas significações – e em saberes anteriores, reavivados por uma
situação social particular: e notaremos que são processos centrais na
elaboração representativa. Estão ligadas tanto a sistemas de pensamentos
mais amplos, ideológicos ou culturais, a um estado dos conhecimentos
científicos, quanto à condição social e à esfera da experiência privada e
afetiva dos indivíduos.”
Também sobre o processo de criação de uma representação social, Moscovici (2013,
p.41) afirma:
“[...] Representações, obviamente, não são criadas por um indivíduo
isoladamente. Uma vez criadas, contudo, elas adquirem uma vida própria,
circulam, se encontram, se atraem e se repelem e dão oportunidade ao
nascimento de novas representações, enquanto velhas representações
morrem.”
O preconceito racial, enquanto um fato social tem por característica a constância,
portanto, as representações sociais sobre o racismo também perduram. Moscovici chama isso
de processo de “fossilização”:
“[...] Quanto mais a sua origem é esquecida (representação social) e sua
natureza convencional é ignorada, mais fossilizada ela se torna. O que é
ideal, gradualmente torna-se materializado. Cessa o efêmero, mutável e
mortal e torna-se, em vez disso, duradouro, permanente, quase imortal. Ao
criar representações, nós somos como o artista, que se inclina diante da
estátua que ele esculpiu e a adora como se fosse um deus.” (2013, p. 41).
Não podemos deixar de dizer que, de fato, as formas como o preconceito se apresenta
atualmente mudaram. Hoje, a discriminação racial encontra-se em paralelo com a questão
socioeconômica, ou seja, relaciona-se à cor da pele negra dos indivíduos a pobreza e a falta de
escolaridade. Podemos constatar, portanto, que os mecanismos de discriminação continuam
exercendo seu poder de opressão e exclusão, porém, em muitos casos, de formas sutis, mas,
igualmente violentas. Não podemos dizer que o racismo é uma violência simbólica apenas,
pois, como foram abordados vários dados na introdução do presente artigo, o maior índice de
violência urbana se dá com jovens negros. Segundo dados levantados pela Anistia
Internacional, em novembro de 2017, e expostos pela campanha Vidas Negras14, a cada 23
minutos um jovem negro é assassinado no Brasil, somando-se, ao fim do dia, 63 mortes,
totalizando 23 mil jovens negros mortos por ano. Ainda, segundo dados da campanha, 56% da
população brasileira concordam que a morte de um jovem negro causa menos comoção que a
morte de um jovem branco.
Chartier (1990, p.17) também trabalha com a teoria das representações sociais e
aborda as relações de poder que as perpassam, nos ajudando a compreender as permanências
de certos tipos de representações:
“As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à
universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre
determinadas pelos interesses de grupo que as forjam. Daí, para cada caso, o
necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem
os utiliza. As percepções do social não são de forma alguma discursos
neutros: produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que
tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a
legitimar um projecto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos,
as suas escolhas e condutas. Por isso esta investigação sobre as
representações supõe-nas como estando sempre colocadas num campo de
concorrências e de competições cujos desafios se enunciam em termos de
poder e de dominação. As lutas de representações têm tanta importância
como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um
grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores
que são seus, e o seu domínio.”
Para explicar como essas representações perduram em nossa sociedade, mesmo com
políticas públicas que criminalizam o preconceito, tentam promover a igualdade, além de
14 Fonte: https://nacoesunidas.org/onu-mulheres-chama-de-escandalo-morte-de-23-mil-jovens-negros-por-
ano-no-brasil/.
inúmeras campanhas e movimentos pelo fim da desigualdade social da qual este grupo é
vítima, Moscovici afirma:
“O indivíduo sofre a pressão das representações dominantes na sociedade e é
nesse meio que pensa ou exprime seus sentimentos. Essas representações
diferem de acordo com a sociedade em que nascem e são moldadas.
Portanto, cada tipo de mentalidade é distinto e corresponde a um tipo de
sociedade, às instituições e às práticas que lhe são próprias.” (MOSCOVICI
apud. JODELET, 2001, p.49).
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Estes fatos comprovam, portanto, a necessidade de fortalecimento do campo do
Ensino de História enquanto área da pesquisa científica de interface entre a História e
Educação, com vistas ao aprimoramento da discussão do racismo nos bancos das
universidades, nas salas de aula da escola básica, nos meios de comunicação e na sociedade
como um todo. Neste trabalho buscar-se-á identificar, através da narrativa dos (as) alunos
(as), as representações acerca do preconceito racial e dos diferentes discursos de sua
legitimação, além de como, através deles, as representações se modificaram ao longo do
tempo.
Desta forma, espera-se que este trabalho de reflexão e análise do racismo no ambiente
escolar e da construção do conhecimento histórico, possa contribuir para novas reflexões a
respeito do campo historiográfico e teórico da Educação Histórica e da Didática da História,
bem como com a disciplina de História.
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