depoimento florestan fernandes[1]

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  • 8/3/2019 Depoimento Florestan Fernandes[1]

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    Cincias Sociais:na tica do intelectualmilitanteF L O R E S T A N F E R N A N D E SEu nunca teria sido o socilogo em que me converti sem omeu passado e sem a socializao pr e extra-escolar querecebi atravs das duras lies da vida. Para o bem e parao mal sem invocar-se a questo do ressentimento, que a crtica conser-

    vadora lanou contra mim a minha formao acadmica superps-sea uma formao humana que ela no conseguiu distorcer nem esteri-lizar. Portanto, ainda que isso parea pouco ortodoxo e antiintelectua-lista, afirmo que iniciei a minha aprendizagem sociolgica aos seis anos,quando precisei ganhar a vida como se fosse um adulto e penetrei, pelasvias da experincia concreta, no conhecimento do que a convivnciahumana e a sociedade em uma cidade na qual no prevaleciaa ordem dasbicadas, mas a relao de presa, pela qual o homem se alimentava dohomem, do mesmo modo que o tubaro come a sardinha ou o gaviodevora os animais de pequeno porte. A criana estava perdida nessemundo hostil e tinha de voltar-se para dentro de si mesma para procurarnas tcnicas do corpo e nos ardis dos fracos os meios de autodefesa para asobrevivncia. Eu no estava sozinho. Havia a minha me. Porm asoma de duas fraquezas no compe uma fora. ramos varridos pelatempestade da vida e o que nos salvou foi o nosso orgulho selvagem, quedeitava razes na concepo agreste do mundo rstico, imperante naspequenas aldeias do norte de Portugal, onde as pessoas se mediam como lobo e se defendiam a pau do animal ou de outro ser humano.

    H pouco interesse em descrever a variedade de ocupaes a queprecisei dedicar-me ou as venturas e desventuras que pontilharam umainfncia e uma adolescncia to marcadas pela necessidade de ganhar avida, de buscar no trabalho por vezes humilhante e degradante umA autobiografa intelectual de Florestan Fernandes pareceu Editoria a sondagem maisfunda que j se fez no sentido de compreender os fatos e os valores que marcaram a fase desolidificao dos cursos de Cincias Sociais na antiga Faculdade de Filosofia, Cincias eLetras. Dela transcrevemos alguns passos, masconvidamoso leitor aconhec-la na ntegra.O texto foi extrado de: Florestan Fernandes A Sociologia no Brasil, 2 ed., Petrpolis,Vozes, 1980, p. 142-179.

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    instrumento de relao com os outros e de presso sublimadora. Fazen-do o que me via forado a fazer tambm era compelido a uma constantebusca para vencer uma condio em que o lumpen-proletrio (e nooperrio) definia os limites ou as fronteirasdo que no era gente. Antesde estudar esse processo na pesquisa sobre o negro, vivi-oem todos osmatizes e magnitudes. A fronteira que me era negada tambm eraconhecida pela experincia concreta. Na casa da minha madrinha Her-minia Bresser de Lima, onde vivi durante uma parte da infncia, ouocasionalmente ia passar alguns dias; e na casa de outros patres deminha me, entrei em contato com o que era ser gente e viver comogente. Almdisso,atravs das vrias ocupaes,morei na casa deempre-gadores uma famlia negra, outra italiana e, parcialmente, um a fam-lia srio-libanesa. Em suma, do tradicional ao moderno, do nacional aoestrangeiro, dei-me conta de quo grande e complexo era o mundo, eque nada me forava a encerrar-me no confinamento dos pores, doscortios e dos quartos de aluguel em que morava com a minha me. Porfim, a mobilidade imposta pelos empregos da minha me ou pela eleva-o dos aluguis exps-me a conhecer vrios bairros de So Paulo evrios tipos de vizinhana. Se tinha pouco tempo para aproveitar ainfncia, nem por isso deixavade sofrer o impacto humano da vida nastrocinhas e de ter rsteas de luz que vinham pela amizade que se frmaatravs do companheirismo (nos grupos de folguedos, de amigos devizi-nhana, dos colegas que se dedicavam ao mesmo mister, como meninosde rua, engraxates, entregadores de carne, biscateiros, aprendizes dealfaiate e por a a fora). O carter humano chegou-me por essas frestas,pelas quais descobri que o grande homem no o que se impe aosoutros decima para baixoou atravsdahistria; o homemque estendea mo aos semelhantes e engole a prpria amargura para compartilhar asua condio humana com os outros,dando-se a si prprio, como fariamos meus Tupinamb. Os que no tm nada que dividir repartem com osoutros as suas pessoas o ponto de partida e de chegada da filosofia d e' f o l k ' dentro da qual organizei a minha primeira forma de sabedoriasobre o homem, a vida e o mundo.

    Essa filosofia de folk constitua a cultura dentro da qual me movia,que s era suplementada pelos conhecimentos prticos requeridos pelostrabalhos que exercesse, todos muito rudimentares e de escasso valortcnico ou econmico. Elaexistia nas famlias tradicionais ou ricas, comque interagia marginal ou centralmente; mas era entre os pobres que elaimperava, tendo na vida dos bairros o seu suporte social. Assim, noconvvio com os meninos da minha idade, com os companheiros detrabalho, mais novos ou mais velhos, e com as pessoas que faziam parteda vizinhana e mais especialmente dentro de casa ou no convvio

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    com os meus tios e avs, que moravam em Bragana e com os quais eupassava, vez ou outra, algum tempo tornei-me tpico morador pobreda cidade da dcada de 20, que s era urbano pela localizao espacial epela relao tangencial com o sistema de trabalho. Todos ramos rsti-cos e desenraizados, mesmo os que procediam do interior do estado deSo Paulo, e todos estvamos aprendendo a viver na cidade, mesmo osque, como eu, nasceram dentro de seus marcos e dos seus muros. Ocdigo de honra, a mentalidade, a noo de dever e de lealdade, o impe-rativo da solidariedade, at mesmo a sobranceria irredutvel dos queesto por baixo no provinham da civilizao como gostam de dizeros antroplogos nem do cosmos urbano ou da religio catlica. Tudoaquilo fazia parte do que, mais tarde, aprendi ser a cultura do inculto eque a cidade ainda no destrura. Ao contrrio, medida que as famliasricas de deslocavam e deixavam seus sobrados para os pobres, ao seconverterem em cortios estes serviam como redutos a esta cultura (etambm variedade que ela assumia, graas s diversas origens nacio-nais, tnicas e raciais da populao pobre e dependente). Mesmo quandoa famlia rica alugava os pores, essa realidade no se alterava. Portanto,vrias cidades coexistiam lado a lado, dentro do mesmo espao urbano,que no impunha qualquer idade cultural, mas harmonizava, horizon-talmente, os contrrios que se toleravam sem se comunicarem. Os queno eram gente ou que formavam a gentinha, apinhando-se nos inters-tcios, nos espaos vazios e zonas de transio, ou nos medonhos corti-os-gigantes nos quais nunca cheguei a morar no se urbanizavam,em termos de estilo de vida. Encontravam dentro da cidade um nichono qual mantinham suas pequenas cidadelas culturais e seus diferentespadres de rusticidade. Italianos, portugueses, espanhis, gente do inte-rior e o imenso rol dos pobres no escondiam a suahumanidade.(...)

    A minha socializao plebia poderia ser mais rica. Porm, o sub-mundo dentro do qual circulava, de engraxates, entregadores de carne,aprendizes de barbeiro ou de alfaiates, balconistas de padaria, copeiros,garons, ajudantes de cozinheiro etc., fechava-se dentro de um crculopobre. Os seus componentes no acompanhavamcom ardor os conflitosoperrios e com freqncia formavam a prpria opinio atravs das pes-soas a que serviam ou de jornais sensacionalistas. Uma criana ou umadolescente, dentro desse submundo, j faz muito quando enfrenta apresso negativa contra a curiosidade intelectual. Quando decidi fazer ocurso de madureza, por exemplo, enfrentei a resistncia rstica de minhame, que achavaque eu iria ficar c om vergonha dela, se estudasse; muitopior era a incompreenso e a chacota dos colegas, que ridicularizavamminha propenso pelas leituras e meu apego aos livros dizendo que eu

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    ia acabar com o miolo mole, de tanto ler; praticamente me incitavamano deixar de ser como eles e a cultivar a ignorncia como uma virtudeou a servido como um estado natural do homem. Nos bares e restau-rantes em que trabalhei, por exemplo, nunca recebi um apoio ou umconselho construtivo de qualquer colega, da minha idade ou maisvelho,embora entre os fregueses encontrasse simpatia, quem me desse ouemprestasse livros, e at apoio prtico para ir mais longe. Se aprendicom aqueles homens de minhas velhas ocupaes, no foi para mudarde ofcio ou de vida. que, entre eles, encontrei pessoas de valor, queenfrentavam as agruras da vida com serenidade e tinham o seu padrode humanidade: sabiam ser homens e, nesse plano, eram mestres incom-parveis, com toda a sua rusticidade, depreciao da cultura letrada eincompreenso diante dos prprios interesses e necessidades. Foi delesque recebi a segunda capa de socializao, que se superps anterior,pela qual descobri que a medida do homem no dada pela ocupao,pela riquezae pelo saber, mas pelo seucarter, uma palavra que signifi-cava, para eles, pura e simplesmente, sofrer as humilhaes da vida semdegradar-se.

    O toque final dessa preparao su igeneris foi dado pelo curso demadureza. Enquanto trabalhava no Bar Bidu, na rua Lbero Badar,instalou-se no sobrado vizinho o Ginsio Riachuelo. Os professores iamao bar tomar lanche, depois das aulas. Eu sempre ficava atento aos fre-gueses com os quais podia aprender alguma coisa. Cultivei as relaescom alguns dos professores os mais comunicativos e assduos eobtive uma concesso, atravs do professor Jair de Azevedo Ribeiro defazer os estudos sob pagamento reduzido. Graas a Manoel Lopes deOliveira Neto, um dos fregueses de que me tornara amigo, arranjeioutro emprego (como entregador de amostras do Laboratrio Novote-rpica); e graasaoapoio de Ivana e Jos de Castro Mano Preto, ligados minha falecida madrinha, um pequeno auxilio marginal (que, maistarde, se tornou de cama e comida permanentes), o problema do estudoficou reduzido expresso mais simples. Sair do bar e ter uma novaoportunidade, naquela poca (1937), era algo notvel. Os preconceitoscontra esse tipo gente atingiam tais proporesque, nem com o apoiode Clara Augusta Bresser, irm de minha madrinha, jamais logrei outraespcie de emprego. O mnimo que se pensava, sobre aquele tipo degente, que ramos ladres ou imprestveis!... O lumpen-proletrio era,pois, a principal vtima de sua condio servial e de sua vassalagem ordem estabelecida. Vnhamos, na minha arquitetura mental daquelapoca, logo abaixo dos gatunos profissionais e dos vagabundos, dasprostitutas e dos soldados da Fora Pblica. O crculo de ferro forarompido e, com o novo emprego, poderia manter minha me e pagar os

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    estudos. A experincia concreta, por sua vez, no me fora intil. Napesquisa com Bastide, sobre relaes raciais em So Paulo, eu saberiadizer porque a incapacidade de obter uma posio no sistema ocupa-cional da cidade pesara to negativamente na histria do meio negro nalonga e penosa transio do traba lho escravo para o trabalho livre.(...)Depois de ingressar na Universidade de So Paulo no poderiacontinuar na Novoterpica, na qual precisaria trabalhar o dia todo. Porisso e outros motivos, j antes de terminar o curso de madureza metransferira para outras firmas, primeiro como empregado, mais tardecomo vendedor comisso, nas quais operava, na cidade ou em muni-cpios vizinhos, com artigos dentrios. Depois, como eram grandes osencargos financeiros, comecei a trabalhar como propagandista em um

    laboratrio, sediado no Rio de Janeiro, que produzia o Iodobisman e oTropholipan, dois produtos de boa aceitao. Contava com uma remu-nerao razovel, dispunha de mais tempo para freqentar as aulas eestudar do que a firma empregadora poderia desconfiar e travei contatocom o setor mdico. Assim, das profisses liberais fiquei conhecendovrios problemas com que se defrontavam os dentistas e os mdicos eadquiri uma viso bem realista do que ia pelo setor pobre e dependenteda populao, em matria de assistncia dentria, m dica e hospitalar. Oque importa, nesta passagem, esclarecer que tinha um meio de manu-teno e que poderia candidatar-me ao ensino superior, desde que esco-lhesse cursos de meio perodo. Por volta do incio dadcada de quarentano existiam cursos noturnos na USP; o meu campo de escolha ficava,pois, restrito Faculdade de Direito e a alguns cursos da Faculdade deFilosofia, Cincias e Letras. Pretendia fazer, no me lembro por que se que cheguei a saber o curso de engenharia qumica, na Politc-nica. Contudo, teria de ser aluno em tempo integral, o que me eraimpossvel, pois tinha de manter a casa. A escolha das Cincias Sociais ePolticas correu por conta das oportunidades que coincidiam com osmeus interesses intelectuais mais profundos. No caso, a escolha de u m aprofisso quase no contou. Queria ser professor e poderia atingir esseobjetivo atravs de vrios cursos. O meu vago socialismo levou-me apensar que poderia conciliar as duas coisas, a necessidade de ter umaprofisso e o anseio reformista de modificar a sociedade, cuja natureza euno conhecia bem, mas me impulsionava na escolha das alternativas.Decidi-me pela seco de cincias sociais da Faculdade de Filosofia,Cincias e Letras. Esta herdava um bicho da cidade, em processo dedesabrochamento intelectual e da descoberta de si mesmo. Seguindo atica atual, algum poderia escrever: o lumpen-proletariado chega Uni-versidade de So Paulo . Todavia, no era o lumpen-proletariado que che-

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    gava l; era eu, o filho de uma ex-lavadeira, que no diria para a cidadede So Paulo agora ns, como um clebre personagem de Balzac. Eulevava comigo intenes puras, o ardor de aprender e, quem sabe, detornar-me um professor de escola secundria.A minha bagagem intelectualera produto do estranho cruzamento

    de um autodidatismo forado com a curta aprendizagem compacta, rea-lizada atravs do Riachuelo (1). Graas a uma regalia instituda peloartigo 100 dos cursos de madureza, eu podia tanto candidatar-me aosexames de seleo para o pr, subordinado Faculdade de Filosofia,Cincias e Letras, quanto tentar os exames de habilitao para a secode cincias sociaise polticas. Na primeira hiptese, teria feito cinco anosem trs; na segunda, sete anos em trs. Embora inseguro, aconselho dosamigos empreendi as duas coisas simultaneamente; e obtive aprovaoem ambos os casos. Isso significava: que eu anulara a desvantagem doatraso com que iniciara os meus estudos secundrios, mesmo sem com-pletar o primrio; e que, pelos critrios vigentes, minha capacidadepotencial era, pelo menos, comparvel dos colegas que haviam seguidoo percurso normal. Na verdade, tanto eu quanto eles estvamos bemlonge das exigncias ou dos requisitos do ensino que iramos enfrentar.

    As falhas de formao e de informao eram imensas, por assimdizer enciclopdicas, e claramente insanveis. Os mestres estrangeiros,que davam suas aulas na prpria lngua, no tomavam tais deficinciasem considerao e procediam como se ns dispusssemos de uma baseintelectual equivalente que se poderia obter atravs do ensino mdiofrancs, alemo ou italiano. Os cursos eram monogrficos s o profes-sor Hugon, que me lembre, ficava no petit a, petit b , do ensino bsico,e era, por isso, ridicularizado em pblico pelo professor Maugu. Osprofessores assistentes acompanhavam a toada, movendo uma guerrasem quartel aos manuaise ao ensino geral. Pela organizao dos cursos,essa seria a funo do pr, onde ns deveramos adquirir o conhecimen-to bsico. Os candidatos s cincias sociais, por exemplo, faziam umexame escrito e um exame oral de sociologia (na argio oral, diantedos dois Bastides e de outro professor do qual no me lembro, coube-me discutir um trecho de De la division du travail social). Mas todossabamos que o pr no cumpria tal funo e que o carro caminhavaadiante dos dois, esmagando os estudantes. O que nos impunha umaparadoxal sada: o recurso a um autodidatismo intensivo, svezes super-visionado e orientado pelas cadeiras! O salto no escuro era a regra; ojogo, no entanto, era limpo, embora o desafio fosse tremendo. S paradar um exemplo: o meu trabalho de aproveitamento com o professorRoger Bastide, no primeiro semestre de 1941, versava sobre a crise daexplicao causai na sociologia. Reuni como me foi possvel a bibliografia

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    acessvel na Biblioteca Municipal e na Biblioteca Central da Faculdade.Tirei nota quatro e meio, com um comentrio piedoso do professor: oque ele esperava era uma dissertao, no uma reportagem. Essa expe-rincia ensinou-me que ou deveria desistir, ou submeter-me a uma disci-plina monstica de trabalho. Optei pela segunda soluo e, aos poucos,ganhei maior elasticidade intelectual. A partir do fim do segundo ano eno terceiro ano tinha condies para competir com qualquer colega, detirar proveito dessa su igeneris montagem pedaggica e de responder sexigncias da situao como um aluno aplicado ou talentoso. Em suma,malgrado as minhas origens, logrei vencer as barreiras intelectuais e te rxito como e enquanto estudante.

    A partir desta etapa, declina a importncia da socializao pelo tra-balho, ligada s atividades prticas que exercia para ganhar a vida (asquais foram mantidas at 1947, mais de dois anos aps minha contra-tao como assistente de cadeira de Sociologia II da Faculdade de Filo-sofia). No que o contato com os dentistas, os mdicos, asenfermeirase alguns colegas que se tornaram amigos mais ou menos ntimos fossemirrelevantes, do ponto de vista do enriquecimento de minha pessoa ouda descoberta de novos mundos , que antes se ocultavam minha percep-o. Ao contrrio, eles tiveram enorme significao e, inclusive, meaju-daram a libertar-me de velhos complexos inevitveis e a adquirir maiorindependncia na concepo de meus papis sociais, de minhas possibi-lidades humanas e, principalmente, de uma ingenuidade tosca, incompa-tvel com a cidade como estilo de vida. A questo que aquelas atividadesprticas ficaram excntricas ao que passou a ser, de modo absorvente, omeu alvo central. Elas eram um mero instrumento de manuteno, emtermos imediatos, para atingir outro fim, a largo prazo. Aquele no erao ' meu ' mundo. Eu me descobrira e, ao mesmo tempo, sentia crescerdentro de mim uma vocao adormecida, que me dava foras e argciapara aceitar o desafio de tornar-me um professor e um intelectual. Deprincpio, as coisas no possuam muita clareza para mim. Mas j nosegundo ano do curso eu sabia muito bem o que pretendia ser e meconcentrava na aprendizagem do o f c i o portanto, no me comparava aobeb, que comea a engatinhar e a falar, porm ao aprendiz, que trans-forma o mestre-arteso em um modelo provisrio. A cultura dos meusmestres estrangeiros me intimidava. Eu pensava que jamais conseguiriaigual-los. O padro era demasiado alto para as nossas potencialidadesprovincianas para o que o ambiente poderia suportar e especial-mente para mim, com a minha precria bagagem intelectual e as dificul-dades materiais com que me defrontava, asquais roubavam grande partedo meu tempo e das minhas energias do que gostaria de fazer. Contudo,como me propunha a ser um professor de nvel mdio, as frustraes e

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    os obstculos no interferiam no meu rendimento possvel. O desafioera trabalhado psicologicamente e, na verdade, reduzido sua expressomais simples: as exigncias diretas das aulas, das provas e dos trabalhosde aproveitamento. Com isso, empobrecia o meu horizonte intelectuale humano. No entanto, no poderia sobrepujar-me e resolver os meusproblemas concretos sem essa reduo simplificadora, que se corrigiupor si prpria, medida em que progredi como estudante e adquiri umanova estatura psicolgica. Em suma, o Vicente que eu fora estava final-mente morrendo e nascia em seu lugar, de forma assustadora para mim,o Florestan que eu iria ser.

    Essa adaptao modesta foi muito til para mim. Na fase inicial,em que me reciclava para ser um estudante universitrio, porque meimpelia a comear pelos alicerces, pelo ABC das cincias sociais. No cana armadilha dos que condenavam os manuais. Tive o bom senso debuscar neles uma base geral que no nos era dada atravs dos cursoseclticos e monogrficos, preferidos pela maioria dos mestres e dedeixar em aberto o ponto de chegada, o qual no sabia qual poderia ser.Ao mesmo tempo, estabelecia uma trgua entre o meu medo de falhare a intimidao que resultava do alto nvel acadmico dos professoresestrangeiros, que criava uma desanimadora barreira psicolgica dentrodo prprio eixoem que gravitava a nossa aprendizagem. Na fase em quepassei a voar com maior autonomia intelectual, porque no me torneivtima da passagem, mais ou menos rpida para todos, do deslumbra-mento decepo. Os professores estrangeiros, em sua maioria noem sua totalidade eram realmente grandes para ns. Vistos na escalade valores de seus prprios pases e ns tnhamos de chegar a ela eabsorv-la se eles no eram medocres, contavam entre as figuras desegunda ou terceira grandeza. Mesmo as apostilas de um homem tofamoso, atualmente, como Lvi-Strauss, nada tinham de impressio-nante. Livros elementares, como a pequena introduo de Cuvillier ouo breve tratado de Ginsberg, iam muito mais longe. O fato que no sepoderia ler os clssicos, antigos ou recentes de Montesquieu e Rous-seau a Comte, deMarx a Durkheim, Tnnies e Weber, ou de Mannhein,Mauss, Simiand, Cassirer, Dilthey, Giddings a Cooley, Ogburn, Park,Znaniecki, Laski, Sorokin e tantos outros sem sofrer essa evoluoparadoxal, que nos expunha a cruis reflexes melanclicas. Alm domais, boa parte do brilho e da significao daquele ensino desembocavaem um vazio pedaggico. A carncia de dinamismos intelectuais univer-sitrios nos entregava quela relao em termos de absolutos: se no nosdo o melhor e se no vamos, por conseqncia, ser os melhores, de quenos adianta o refinamento de umacultura europia diletante e decadenteou de uma cultura norte-americana postia, to emprestada quanto a

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    nossa? Alguns colegas, como Benedito Ferri de Barros e Laerte Ramosde Carvalho, no deixavamde remoer esses percalos, atacando, s vezesaberta e francamente, o puritanismo intelectual que me levava a umaparente ajustamento zarolho. A minha adaptao protetora conduzia-me em outra direo. Eu estava na poca da semeadura: qualquer quefosse a grandeza relativa dos meus mestres, eu tinha o que aprendercom eles e o que eles ensinavam ou transcendia aos meus limites ou meajudava a construir o meu ponto de partida. Cabia-me aproveitar aoportunidade. A leitura de Mannheim, em particular, que iniciara comintensidade j nos comeos de 1942, convencera-me de que a conscin-cia crtica, para ser criadora, no precisa ser dissolvente.

    (...)A questo era ter acesso aos professores fora dos contactos for-mais das salas de aula. Eu no sabia como conseguir isso e, o pior, noera capaz e falar francs ou italiano. Como tambm no possua umnome de famlia, eu desaparecia no pequeno nmero, como se estivesseperdido em uma massa enorme de estudantes. No entanto, como tinhadecidido concentrar o melhor dos meus esforos nos trabalhos de apro-veitamento, foi por a, inesperadamente, que se abriram as portas paraentrevistas pessoais e das casas daqueles professores. Durante 1941,dediquei-me com o maior afinco a dois desses trabalhos. Um, que fora

    passado pelo professor Paul Hugon, sobre A evoluo docomrcio exteriorno Brasi l , da Independncia a 1940; e outro, que fora pedido pelo profes-sor Roger Bastide, sobre O folclore em So Paulo . Com o professorHugon tudo evoluiu naturalmente e com muita rapidez. Ele prprio mechamou e me disse que considerava que eu tinha, ali, o ponto de partidapara uma tese de doutoramento. Ps-se minha disposio para orien-tar-me e, ao saber de minhasdificuldades, tambm me informou que mearranjaria um emprego mais condizente com minhas aspiraes e possi-bilidades. De fato, ao retornar da Frana, depois das frias, me chamoude novo. Havia conseguido que eu fosse aceito por Roberto Simonsen,em um grupo de jovens que trabalhava diretamente para ele. Isso medeixou perplexo e me forou a uma primeira deciso. Parecia-me que, seaceitasse aquele emprego, iria converter-me no que eu pensava ser, naminha ingenuidade, um camelo intelectual , algum que no usa a prpriainteligncia para si, porm a vende para os outros. Recusei polidamentee ficamos muito amigos, sem que o professor Hugon desistisse do planode doutoramento, que tinha engendrado. Com o professor Bastide oscontactos foram mais lentos e, na verdade, provocados por mim. Paraum recm-egresso dos quadros mentais da cultura de folk, aquela pes-quisa era fascinante. Eu lancei-me a ela com o alvoroo de um primeiro

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    amor . A bagagem intelectual era deficiente, pois a professora Lavnia daCosta Vilela se limitara a nos introduzir em alguns conceitos bsicos deSbillot e de Saintyves, No obstante, graas s aulas do prprio Basti-de, eu j estava lendo Durkheim e Mauss e me sentia capaz de projetaro folclore no meio social interno. Dadas as minhas origens de autodidata,foi-me muito fcil trabalhar uma ampla bibliografia, existente na Biblio-teca Municipal, na Biblioteca Central da Faculdade (no que o senhorRaspantini me ajudou muito) e na Biblioteca da Faculdade de Direito.Em funo da minha experincia de vida to recente, sabia onde coligiros dados e como. Por conseguinte, fiz um levantamento e uma anliseque estavam acima do que se poderia esperar de um trabalho de aprovei-tamento e, em particular, de um estudante do primeiro ano. Todavia,depois de um duro esforo, pretendia pelo menos uma compensaopsicolgica. Ela no veio. A professora Lavnia me deu nove e, como euinsistisse em um debate crtico, adiantou a opinio, com a qual noconcordei, de que eu fora longe demais no tratamento sociolgico dofolclore. Esperei a volta do professor Bastide e exigi dele uma definio:no me importava a nota, queria uma crtica sria do trabalho. Ele ficousurpreso. 'Como, existe uma monografia sobre o folclore de SoPaulo?Ela me interessa muito'. Entreguei-lhe o trabalho dias depois. No sepassou muito tempo e ele me convidou a ir sua casa. Disse-me queestava disposto a corrigir a nota, que ele julgava injusta (o que recusei)e fez comentrios preciosos sobre a interpretao sociolgica dos dados,demonstrando que eu tomara uma pista correta e que ela poderia serexplorada de modo ainda mais amplo. Ao saber das minhas dificuldades,tambm se ofereceu para conseguir-me um emprego de tipo intelectual.Levou-me a Srgio Milliet e este teve o bom senso de decidir: se oFlorestan comea a trabalhar aqui, na Biblioteca Municipal, ele enterraqualquer carreira que o seu talento lhe possa abrir. Como alternativa,colocou-se minha disposio para publicar os artigos que quisesseescrever em O Estado de So Paulo. O professor Bastide, porm, noparou a. Levou o trabalho ao professor Emlio Willems e pediu suapublicao na revista Sociologia. Dias depois, o Dr. Willems me chamou.Ele no tinha como publicar um trabalho to grande na revista. Masdeu-me instrues para redigir trabalhos menores, que ele publicaria, efez uma crtica severa da coleta de dados. Pela primeira vez vi qual era adiferena entre o amador e o profissional, o aprendiz e o mestre; e creioque aproveitei bem a lio, que iria servir de ponto de referncia no meumodo de entender e praticar a pesquisa emprica sistemtica como soci-logo. No mesmo ano, 1942, saiu o meu primeiro artigo na revista Socio-logia. Quanto colaborao para o Estado (e quase simultaneamentepara a Folha da Manh), s iniciaria no ano seguinte, depois de vencero temor de enfrentar o grandepblico. Bastide tornou-se, da em diante,

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    o meu principal professor e um dos meus melhores amigos. Hugon eWillems, por sua vez, dispensavam-mea ateno que, naquela poca, sse dava aos estudantes de talento reconhecido, que desfrutavam umaposio intelectual ambivalente,a meio caminho entre o amigo, o prote-gido e o futuro colega. Como Jos, na corte do Fara, eu tivera o enge-nho de aformosear o meu destino, agarrando a sorte pelos cabelos.(...)

    Foi atravs doensino e da pesquisa, porm, que completei aminhaformao sociolgica. Entre 1942 e 1945 fiz vrios pequenos levanta-mentos (como o estudo sobre as manifestaesdo preconceito de corem Sorocaba e do culto a Joo de Camargo; uma anlise quantitativadacompetio entre profissionais liberais em SoPaulo, com base em iden-tificaes extradas das listas telefnicas; um a sondagem, atravs dequestionrios, da populao rural de Po, na qual tive a colaborao deOswaido Elias Xidieh; certa participao na pesquisa do Dr. Willems,sobre Cunha, na qual me encarreguei de estudar determinados aspectosdo folclore ou da vida sexualda comunidade e ajudei na coleta de dadosantropomtricos; umaexplorao dos dados quinhentistas sobre os con-tactos dos Tupi com os brancos, em So Paulo, uma pesquisa que deve-ria fazer com o Dr. Donald Pierson mas que interrompemos de modoprematuro, um balano crtico das contribuies que Gabriel Soares eHans Staden poderiam dar para o estudo da vida social dos Tupinambe seus contactos com os brancos); e em 1944 iniciara, graas ao empe-nho e colaborao desinteressada de Jamil Safady, uma pesquisa sobrea aculturao de srios e libaneses em SoPaulo (na qual trabalhei quasequatro anos e que foi posta de lado por falta de recursos materiais, almde outros motivos). Em suma, fui treinado de vrias maneiras para serum pesquisador. Essa experincia extensiva,no entanto, no diz tudo. Apesquisa de 1941 (complementada parcialmente em 1944), sobre o fol-clore, e o levantamento sistemtico dosdados conhecidos sobre os Tupi-namb (iniciado em 1945 e completado em 1946) constituem ummarco na minha preparao sociolgica. Quanto ao folclore, retomeipor vrias vezes os materiais coligidos para submet-los a uma anliseem profundidade. O trabalho que teve mais importncia para mim foi oque escrevi sobre as trocinhas do Bom Retiro. Pela primeira vez, via-meenfrentando as tarefas de materializar e de reconstruir as bases scio-dinmicas da vida em grupo. No s tive oportunidade de passar doplano abstrato para o plano concreto no uso de conceitos, hipteses eteorias; precisei formular, por minha conta, as perguntas que o soci-logo tem de responder quando examina, empiricamente, a estrutura e asfunes do grupo social, nos vrios nveis davida humana. Por isso, essepequeno trabalho representou, para mim, um a passagem da iniciao

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    didtica para a iniciao cientfica, e eu lhe devo, em termos de apren-dizagem, muito mais do que fiquei devendo aos cursos que freqentaraanteriormente. Formei, ento, o meu prprio tirocnio sobre a anlisede dados empricos; e fiquei sabendo por que a reconstruo empricano basta explicao sociolgica: o s fatos no falam por si mesmos. preciso interrog-los e, para isso, indispensvel algum domnio doquadro terico envolvido. O velho leitor de Simiand recolocou-se aexi-gncia fundamental nem teorias sem fatos nem fatos sem teorias luzde uma perspectiva nova, nascida de uma pesquisa precria, certo, masmuito rica de conseqncia para o meu amadurecimento como soci-logo-pesquisador.

    No obstante, foi atravs do estudo sobre os Tupinamb que mesenti forado a ir muito mais longe. A pesquisa no s no era umaexperincia improvisada, apesar de ser o meu primeiro contato maisntimo com a reconstruo histrica. Os Tupinamb me colocavam,como diria Mauss, diante da necessidade de explicar um a civilizao,como o demonstra A organizao social dos Tupinamb. Fui obrigado amobilizar todos os conhecimentos que pudera acumular sobre tcnicasempricas e lgicas de pesquisa. E tive de alargar o meu conhecimentodas sociedades primitivas, para poder entender, descrever e explicar asestruturas e os dinamismos dasociedade tribal. Eu me via questionando,ao mesmo tempo: os cronistas e as suas contribuies empricas para oestudo sistemtico dos Tupinamb; a minha capacidade (e limitaes)como investigador; as tcnicas de formao de inferncia e de constru-o de teoria que podia utilizar; as teorias sociolgicas e antropolgicassobre a estrutura social e a organizao social; os quadros sociais daconquista, da escravido das populaes indgenas, da expropriao daterra pelos portugueses e da dizimao dos nativos. Na verdade, se j erauma lagarta, quando principiei a investigao, ao termin-la convertera-me em uma borboleta. Descobri que nenhum socilogo capazde reali-zar o seu ofcio antes de percorrer todas as fases de um projeto de inves-tigao completo, no qual transite do levantamento dos dados suacrtica e sua anlise e, em seguida, ao tratamento interpretativo pro-priamente dito. Os que repudiam o estudo de comunidade ou o estudo decaso com tanta obstinao, ignoram esse lado pedaggico do treinamen-to cientfico pela pesquisa emprica sistemtica. Um investigador isoladodificilmente pode ir mais longe do que eu tentara ir, embora ficasse coma frustrao de descobrir que nunca se chega, na verdade, ao relato detodos os conhecimentos acumulados e verificados. Com essa pesquisa,no s obtive o grau de mestre em cincias sociais: alcanceia estatura deum arteso que domina e ama o seu mister, porque sabe como devepratic-lo e para o que ele serve. Ela ajudou-me a modificar a minha

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    concepo da sociologia e da natureza ou alcance da explicao socio-lgica. Podia encadear-me a uma tradio de pensamento cientfico deum modo maiscrtico, que me levaria a recusar a reconstruo empricacomo o alvo final e a ver na contribuio terica o objetivo central dainvestigao sociolgica. Por a, penetrei na esfera dos problemas dainduo na sociologia com uma bagagem mais slida, que me permitiaindagar como se passa dos fatos s teorias, e me obrigava a exigir dosocilogo algo mais do que uma descrio bem feita da realidade.

    Nem por isso a experincia em nvel de ensino teve importnciamenor para mim. Ao contrrio, a sala de aula logo se tornaria, emtermos de formao e de amadurecimento intelectuais, uma espcie deequivalente do laboratrio. No comeo, por insegurana e por falta detempo (acadeira de Sociologia II s foi incorporada ao regimede tempointegral em 1947) negligenciava um tanto a preparao das aulas. Comofazia vrias coisas simultaneamente e com dois empregos! tendiaa reduzir o peso relativo da carga de trabalho didtico e explorava malas potencialidades pedaggicas da relao com o estudante como umavia real do auto-aperfeioamento. Aos poucos, porm, a paixo pelastarefas didticas cresceu dentro de mim e, especificamente, como parteda complexa situao de aprendizagem que elas engendram, pela qual oprofessor quase sempre aprende, graas e atravs da sala de aula, maisque o prprio estudante. Isso paradoxal. Mas constitui uma verdadeelementar. Como o pesquisador, o professor precisa reduzir o conheci-mento acumulado previamente ao que essencial e, mais que o pesqui-sador, deve defrontar-se com o dever de expor tal conhecimento demodo claro, conciso e elegante. Por pequeno que seja o potencial agre-gador do estudante no processo de aprendizagem, o ensino, em simesmo, instrutivo e criador para o professor, independentemente doprazer de ensinar ou do que se pode aprender com o estudante. Ao atingiresse patamar, o ensino perdeu, para mim, o carter de um fardo e arelao com os estudantes passou a ser altamente provocativa e estimu-lante para o meu progresso terico como socilogo. Na verdade, antesque se fizessem sentir as avaliaes de meus pequenos escritos e livros,foram os estudantes que descobriram e reconheceram o meu valor, ofe-recendo-me uma base psicolgica de auto-afirmaoe de segurana rela-tiva fundamental para a eliminao de velhas cicatrizes, ambivalnciasehesitaes. Os estudantes sempre foram generosos comigo e sempreresponderam construtivamente ao que eu pretendia fazer, praticamentedesde o incio da minha carreira docente, ajudando-me a moldar-mesegundo uma imagem do professor que transcendia s possibilidades datradicional escola superior brasileira.A fase inicial foi dura para mim e para os estudantes. Como todo

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    professor jovem, eu no estava preparado para ensinar em cursos degraduao. Esses cursos, em nvel introdutrio, requerem professores delongo tirocinio, maduros no trato com a matria e com o ensino. Ora,eu estava tambm reaprendendo. Em conseqncia, excetuando-se umcurso semestral, de comentrio crtico de As regras do mtodo sociolgico,que dei em 1945, professei cursos inevitavelmente indigestos, nos quaiso s meus pontos de chegada se convertiam nos pontos de part ida dos estu-dantes. Eu tendia a levar minha fermentao mental para a sala de .aulae no poupava ningum. No pretendia impor-me acima do aprendiz desocilogo. No obstante, as indagaes que me absorviam eram descar-regadas sobre os estudantes sem piedade, com um impacto devastador.Se eles aprendiam muito a respeito das correntes sociolgicas maisimportantes, em compensao tinham de aceitar um tremendo e tem-pestuoso desgaste intelectual, do qual eu no me poupava e tampoucotinha a inteno de poup-los. Muitos desistiam dos cursos ou achavama sociologia muito difcil. Os que ficavam, porm, rompiam comigo oterreno a desbravar e acabavam sentindo a verdadeira seduo que opensamento sociolgico capaz de provocar nas mentes criadoras.Vrios deles seriam, mais tarde, socilogos competentes e meus colegas.No sei o que pensam, hoje, do meu fanatismo cientfico e do meu scio-logismo inveterado nem como avaliam a precariedade das rotas de apren-dizagem que percorremos juntos, com tanto ardor intelectual. Mas acre-dito que esse perodo no seria to fecundo, para mim, se no tivessecongestionado as aulas e feito os alunos arrostarem, em minha compa-nhia, os altos e baixos dos debates sociolgicos em que os envolvi.

    Aos poucos, esse tipo de ensino conturbado e perturbado foi desa-parecendo: ao digerir as minhas leituras e ao compreender melhor asminhas prprias funes docentes tornei-me um professor mais expe-riente e competente. Ento, j podia encarar o estudante e o ensino dasociologia de outra maneira, superando o comensalismo predatrio dafase inicial. O meu campo de escolhas se ampliava e eu encetava umanova experincia, pela qual iria associar a explorao de vrios camposda sociologia s minhas tarefas didticas. Graas ao crescimento e aoaperfeioamento do prprio Departamento de Sociologia e Antropo-logia, tornava-se possvel entender, ainda que rudimentarmente, as fron-teiras do trabalho produtivo e inventivo da rea das leituras e da pes-quisa para a esfera do ensino. Como os cursos de introduo se torna-ram formativos, lecion-los significava adquirir um domnio maior sobreos conhecimentos bsicos da sociologia. Ao mesmo tempo, os cursosmonogrficos determinados acima das preferncias individuais dosprofessores surgiam como um a vantajosa alternativa de auto-reali-zao profissional.

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    (...)Tudo isso indica que, no incio da dcada de 50, o perodo deformao chegava ao fim e, simultaneamente, revelava os seus frutosmaduros. Eu j estava terminando a redao de A junosocial da guerra

    na sociedade Tupinamb e dispunha de condies no s para colaborarcom Bastide em uma pesquisa to complexa como a que fizemos sobreo negro em So Paulo, mas para ser encarregado do planejamento damesma e da redao do projeto de investigao. Estvamos em umanova era, para mim, e as minhas responsabilidades sofriam uma trans-formao rpida, quantitativae qualitativa. Graas transferncia para acadeira de Sociologia I (oficializada em 1952) e, em seguida, ao con-trato como professor em substituio a Roger Bastide, eu me via dianteda oportunidade de contar com uma posio institucional para pr emprtica as concepes que formara a respeito do ensino da sociologia eda investigao sociolgica. Converti essa cadeira em um pio para atin-gir fins que so inacessveis ao professor e ao investigador isolados.Como D'Artagnan, ao chegar a Paris, eu estava disposto a lutar comqualquer um que dissesse que ns no somos capazes de impor a nossamarca sociologia. Ao antigo smbolo do made in France eu pretendiaopor o feito no Brasil . No estava em busca de uma estreita sociologiabrasileira. Pretendia, isso sim, implantar e firmar padres de trabalhoque nos permitissem alcanar o nosso modo de pensar sociologicamentee a nossa contribuio sociologia. Os fatos iriam mostrar que isso erapossvel, que eu no forjara um a pura utopia profissional. Pois durantequase quinze anos (de 1955 a 1969) em que fiquei testa da cadeirade Sociologia I eu e meus colaboradores demonstramos, atravs deintensa e fecunda atividade intelectual, que essa possibilidade pode sercomprovada na prtica. As dificuldades inerentes a uma universidadeesttica, ausncia de tradio cientfica, escassez dos recursos mate-riais, extrema dependncia cultural do pas e s interferncias reacio-nrias do pensamento conservador no impediram que realizssemosprogramas altamente complexos de ensino e de pesquisas, que estabe-leceram a nossa reputao cientfica, nos crculos acadmicos e foradeles. O nosso esforo no pode nem deve ser isolado do que fizeramoutros socilogos brasileiros. Contudo, ele foi encarado, aqui e no exte-rior, como um ndice de autonomia intelectual e de capacidade criadoraindependente. O que fomentou o mito da escola paulista de sociologia enos conferiu um prestgio que sobreviveu ao expurgo que sofremos".Notasl Quanto aosexamesde seleo para o pr, muito concorridos (talvez a proporo fosse

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    Florestan Fernandes professor emritodo Departamento de Cincias Sociaisda Faculdadede Filosofia,Letras e Cincias Humanasda USP.

    de dez candidatos para uma vaga), consegui aprovao em segundo lugar. Com refe-rncia aos examesde habilitao para cincias sociais, havia trinta vagase somente vintee nove candidatos. Na seleo, porm, s seis foram qualificados (eu era o quinto). Emseguida, mais dois entraram atravsdos examesdesegunda poca. Comodois desistiram,o nosso grupo era de seis, acrescido, mais tarde, de uma aluna que se transferira do Riode Janeiro.2 Ginsio Riachuelo