florestan fernandes o desafio educacional

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  • 7/22/2019 Florestan Fernandes O Desafio Educacional

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    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Fundao Joaquim Nabuco. Biblioteca)

    Oliveira, Marcos Marques de. Florestan Fernandes / Marcos Marques de Oliveira. Recife:Fundao Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010. 164 p.: il. (Coleo Educadores) Inclui bibliografia. ISBN 978-85-7019-525-81. Fernandes, Florestan, 1920-1995. 2. Educao Brasil Histria. I. Ttulo.

    CDU 37(81)

    ISBN 978-85-7019-501-2 2010 Coleo Educadores

    MEC | Fundao Joaquim Nabuco/Editora Massangana

    Esta publicao tem a cooperao da UNESCO no mbitodo Acordo de Cooperao Tcnica MEC/UNESCO, o qual tem o objetivo a

    contribuio para a formulao e implementao de polticas integradas de melhoriada equidade e qualidade da educao em todos os nveis de ensino formal e no

    formal. Os autores so responsveis pela escolha e apresentao dos fatos contidosneste livro, bem como pelas opinies nele expressas, que no so necessariamente as

    da UNESCO, nem comprometem a Organizao.As indicaes de nomes e a apresentao do material ao longo desta publicao

    no implicam a manifestao de qualquer opinio por parte da UNESCO

    a respeito da condio jurdica de qualquer pas, territrio, cidade, regioou de suas autoridades, tampouco da delimitao de suas fronteiras ou limites.

    A reproduo deste volume, em qualquer meio, sem autorizao prvia,estar sujeita s penalidades da Lei n 9.610 de 19/02/98.

    Editora MassanganaAvenida 17 de Agosto, 2187 | Casa Forte | Recife | PE | CEP 52061-540

    www.fundaj .gov.br

    Coleo EducadoresEdio-geralSidney Rocha

    Coordenao editorialSelma Corra

    Assessoria editor ialAnton io Laurentino

    Patrcia Lima

    RevisoSygma Comunicao

    IlustraesMiguel Falco

    Foi feito depsito legalImpresso no Brasil

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    A formao poltica e o trabalho do professor75?

    O tema que me foi proposto extremamente complicado e

    exige muita meditao. No cheguei a preparar um plano expositivo.

    Esperava encontrar, na relao com o auditrio, uma forma de

    saturar o debate de trs preocupaes centrais, a partir das quais

    procurarei desenvolver a minha parte, vamos dizer, autoritria desse

    mesmo debate. Autoritria, porque farei a exposio e vocs no

    podero escolher as minhas ideias.

    Acho que um primeiro ponto essencial o que diz respeito

    tradio cultural brasileira e ao que ela tem representado na limi-

    tao do horizonte cultural do professor, menos na teoria que na

    prtica. Se ns comparssemos o professor ao proletrio, que preo-

    cupou as reflexes de Marx naqueles clebres manuscritos de 1944,

    diramos que o professor foi objetificado e ainda o na sociedade

    brasileira. Essa afirmao curiosa, porque se ele no trabalha com

    as mos, um intelectual. preciso tentar compreender essa

    brutalizao cultural, que se faz desde o passado mais longnquo, e

    que chegou e ainda chega a ser tenebrosa com relao a professores,

    por exemplo, que se dedicam ao ensino de crianas as clebresprofessoras primrias. Sou de uma poca em que se lia em peque-

    75Transcrito de: Fernandes, Florestan. O desafio educacional. So Paulo: Cortez; Autores

    Associados, 1989d. (Educao contempornea), pp. 157-175. Publicado originalmente em:

    CATANI, Denice; MIRANDA, Herclia; MENEZES, Luiz Carlos; FISCHMANN, Roseli (Orgs.).

    Universidade, escola e formao de professores. So Paulo: Brasiliense, 1986, p. 13-37.

    TEXTOS SELECIONADOS

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    nos livros de memrias de uma professora, por exemplo, a hist-

    ria de uma professora que trabalhou numa fazenda. preciso

    pensar nisto: desde esse professor at aqueles outros, como Mario

    Schenberg, que so considerados como grandes cabeas tericas.

    Todos somos professores. Todos somos, fomos e seremos brutali-

    zados. Esse um tpico importante. O segundo tpico diz respeito

    prpria correlao entre a atividade do professor, numa socieda-

    de subdesenvolvida, e o carter poltico do que ele faz e do que

    deixa de fazer. E dentre as sociedades subdesenvolvidas, o Brasil seapresenta com caractersticas peculiares, por ser uma sociedade com

    desenvolvimento desigual muito forte e, portanto, por apresentar

    contrastes e contradies muito violentos. O ltimo ponto seria uma

    tentativa de propor a minha posio, que no passado eu no tornava

    explcita, respeitando um certo ecletismo que fazia parte da orien-

    tao bsica da universidade e que, hoje, desde que fui lecionar na

    Universidade de Toronto, tenho procurado tornar evidente. O que

    um marxista pensa, quando se coloca diante de um assunto como

    este? A ento se colocam os trs pontos centrais da exposio. claro que eles so amplos. No estou aqui para dar receitas, nem

    propor solues. Venho participar de reflexes, com vocs, e minha

    funo a de provocar um debate.

    Quanto ao primeiro ponto, sabido que a orientao mais ou

    menos fechada, que prevaleceu no perodo colonial em relao

    cultura e educao, ela no foi desagregada com a Independn-

    cia nem com a proclamao da Repblica. Mesmo as reformas

    pombalinas de instruo pblica tiveram repercusses modestas

    no Brasil. No se chegou a transferir para o Brasil o conjunto de

    transformaes que ocorreram na sociedade portuguesa, e istoporque Portugal entravava o processo de crescimento cultural da

    colnia, e a aristocracia senhorial, posteriormente, tratou o Brasil

    como a antiga Coroa: fechou os horizontes. De modo que a gran-

    de tradio cultural brasileira de um elitismo cultural fechado,

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    cerrado, numa sociedade na qual se cultivou, sempre, o conheci-

    mento, o livro e at a filosofia da ilustrao.

    algo muito curioso, porque a desconfiana em relao ao

    intelectual seguia paralela a uma atitude intelectual mais ou menos

    aberta, dependendo naturalmente de quem se fala. Quando vocs

    ouvem falar de um homem como o velho Conselheiro Nabuco,

    vocs tm um ponto de referncia para avaliar o que foi essa elite

    num momento de apogeu. Um homem que estava preocupado

    com o marco das leis, com a transformao da sociedade brasileiraem termos de uma organizao institucional que garantisse um m-

    nimo de liberdade e reduzisse o despotismo, sempre inerente es-

    cravido, que se manifestava em todas as direes na relao do

    senhor com o escravo, nas relaes do senhor com os homens po-

    bres livres, que eram equivalentes humanos dos escravos (sem as

    garantias sociais que estes tinham por ser propriedade), nas relaes

    do senhor com sua mulher, com todas as mulheres, com seus filhos,

    com todos os jovens. Era uma sociedade altamente hierarquizada.

    Mas, ao mesmo tempo, era tambm uma sociedade que precisavado intelectual. E o caminho que se descobriu para utilizar o intelec-

    tual foi o mesmo que orientou o seu uso pela Igreja Catlica.

    As instituies-chave foram taxativamente circunscritas a um

    permetro de defesa exasperada da ordem existente. Mesmo nas

    escolas superiores isoladas, que foram o que ns conhecemos de

    mais avanado, graas vinda da Corte para o Brasil e ao desen-

    volvimento posterior do Segundo Imprio, mesmo a, o interesse

    que havia pela atividade intelectual propriamente dita estava vincu-

    lado atividade administrativa e poltica indispensvel desses pro-

    fissionais liberais. O prprio professor interessava medida queera um agente puro e simples de transmisso cultural. Sua relao

    com o estudante no era sequer uma relao criadora. Era a de

    preservar os nveis alcanados de realizao da cultura por imi-

    tao. Nesse contexto, o intelectual era, por assim dizer, domesti-

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    cado, quer fosse de origem nobre ou de origem plebeia, automa-

    ticamente se qualificava como um componente da elite e, quando

    isso no ocorria, como sucedeu com os professores de primeiras

    letras, ele era um elemento de mediao, na cadeia interminvel de

    dominao poltica e cultural.

    E a tendncia perdura at hoje. Quando se fundou a Faculdade

    de Filosofia, os prprios fundadores tinham a ideia de uma renova-

    o das elites. A ideia de que no estavam plantando, no Brasil, a

    sementeira de uma revoluo cultural, mas sim, tentando renovar,fortalecer seus quadros humanos, para ganhar no campo da cultura

    a batalha que haviam perdido no campo da poltica. Portanto, uma

    tradio cultural que empobrece a viso do que seria a cultura cvica.

    muito importante a amplitude da cultura cvica de uma nao.

    Uma nao da periferia pode importar todas as tcnicas sociais,

    todas as instituies-chave, todo o sistema de valores de uma dada

    civilizao, mas nem por isso pode importar os dinamismos pelos

    quais essas tcnicas, essas instituies e esses valores se reproduzem,

    crescem e se transformam. Esse lapso, que nos perseguiu de formasecular, tornou a inveno uma ocorrncia efetiva, mas espordica,

    possvel apenas quando surgiam pessoas de tal porte criador que a

    represso cultural no era capaz de inibir.

    Se se aceita esta perspectiva entende-se por que o professor

    nunca foi posto num contexto de relao democrtica com a so-

    ciedade. Ele era considerado como instrumento de dominao e,

    muitas vezes, ficava nas cadeias mais inferiores do processo, como

    aconteceu com o padre em relao ao escravo. O professor era

    aquele que ia saturar as pginas em branco, que caam sob suas

    mos, e ia marc-las com o ferrete daquela sociedade. Eu me lem-bro de livros nos quais estudei e que foram elaborados para crian-

    as, no fim do sculo XIX e no incio do sculo XX. Por acaso

    caram em minhas mos e por a eu aprendi muita coisa. Eram de

    bom nvel, at em termos de nvel intelectual, superior aos livros

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    que as crianas usam hoje. Mas marcavam, de uma maneira quase

    que hiertica, o carter mecnico, autoritrio da educao. A crian-

    a ia para a escola, no para se desenvolver como uma pessoa,

    mas para ser uma espcie de maquininha na sociedade em que iria

    viver. A diferena se faria naturalmente pela capacidade das fam-

    lias de reenriquecer esse empobrecimento cultural, porque era, de

    fato, um empobrecimento aprender tcnicas divorciadas da capa-

    cidade de pensar e de ser diferente.

    Por que a cultura cvica era to circunscrita, to fechada? Por-que no Imprio a democracia era a democracia dos senhores. Na

    Repblica foi uma democracia de oligarcas. Ou seja, aquilo que os

    antroplogos, que estudaram a frica do Sul, chamaram de de-

    mocracia restrita e que os nossos cientistas polticos tm medo de

    aplicar sociedade brasileira. Para essa democracia restrita dis-

    pensvel uma cultura cvica e, quando existe alguma coisa parecida

    com uma cultura cvica, ela acessvel somente queles que fazem

    parte de uma minoria privilegiada, em termos de riqueza, em pri-

    meiro lugar, em termos de poder, em segundo lugar, e em termosde saber, em terceiro lugar. Essas trs coisas eram interdependentes

    e se interligavam. No horizonte intelectual predominante, para aque-

    les que eram formados luz da imaginao, da personalidade-

    statusdos membros das classes dominantes, das aspiraes sociais

    das suas elites culturais no cabia a ideia de que h uma cultura

    cvica que de toda a nao. A nao eram eles. Aquele pequeno

    ns coletivo, que era o mesmo praticamente de norte a sul.

    preciso refletir objetivamente sobre isso, mas no construir mitos,

    fantasias, porque essa a nossa realidade histrica.

    H um processo que no tenho tempo de discutir aqui, relativoao modo pelo qual a Repblica deu origem a escolas primrias,

    vinculadas a concepes pedaggicas diferentes, e como isso foi um

    elemento acumulativo, que depois influenciou tendncias renovado-

    ras manifestadas nas faculdades de Direito, Medicina, Engenharia

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    etc. Na carncia de uma cultura cvica, a sociedade civil no era uma

    sociedade civil civilizada. Era uma sociedade civil rstica, uma soci-

    edade civil na qual o despotismo senhorial ou do mandonismo, com

    outros componentes, tinham um papel vital. Pode-se avaliar isso

    quando surgem os primeiros educadores que fogem a esse padro.

    Esses educadores so naturalmente rebentos da burguesia, princi-

    palmente da burguesia urbana, embora alguns, como o caso de

    Ansio Teixeira, tenham razes na sociedade senhorial, e outros, como

    Fernando de Azevedo e mais uns trs ou quatro, sejam pessoas defamlias tradicionais, algumas que se mantiveram importantes, ou-

    tras que decaram socialmente. Esses educadores trouxeram para o

    Brasil, em nvel de conscincia social, uma perspectiva revolucion-

    ria sobre a educao. Anteciparam mudanas, que seriam potencial-

    mente possveis e necessrias, numa sociedade capitalista, mas que as

    classes dominantes brecaram, impediram. Ao ler oManifesto dos edu-

    cadores, v-se que o grande componente sociolgico desse docu-

    mento est na tentativa de transferir para o Brasil os ritmos avana-

    dos das sociedades europeias. Era como se a Revoluo Francesadesabasse sobre ns, no plano educacional, sem ter desabado no

    plano econmico e poltico. Portanto, uma conscincia utpica, mas

    uma conscincia articulada. Vejam o que aconteceu, lendo a terceira

    parte do livro de Fernando de Azevedo. A cultura brasileira depara-

    se, ali, com o drama da resistncia terrvel que os centros mais tradi-

    cionais, e principalmente a Igreja Catlica (que chegou a exercer um

    semimonoplio sobre a educao), mantiveram; a resistncia tenaz

    que se moveu contra eles, e inclusive a tentativa de desmoralizao

    sistemtica daquelas pessoas, embora alguns, como o caso de

    Fernando de Azevedo e Ansio Teixeira, fossem homens da casa,com formao religiosa. O prprio Fernando de Azevedo afastou-

    se da ordem dos jesutas quando ia tomar votos. Naquela clebre

    meditao antes de tomar voto, ele descobriu que sua vocao era

    outra e separou-se da Igreja. Foi uma campanha tremenda, que pro-

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    duziu resultados nefastos. Por a se tem um horizonte cultural clara-

    mente delimitado, porque, afinal de contas, a cultura cvica era a

    cultura de uma sociedade de democracia restrita, inoperante, na re-

    lao da minoria poderosa e dominante com a massa da sociedade.

    Essa massa era a gentinha; e, para ser a gentinha, a educao seria

    como uma prola, que no deveria ser lanada aos porcos (ou en-

    to, seria uma espcie de ersatz, uma coisa elementar, rudimentar,

    que ajudaria a preparar mquinas humanas para o trabalho).

    Assim, tem-se um circuito histrico, que foi quebrado pelaprpria dinmica do desenvolvimento da luta de classes no Brasil,

    da expanso do capitalismo e que ainda vigente quando se d

    um avano notvel a criao de um Instituto de Educao que

    a imaginao de Fernando de Azevedo e dos seus companheiros

    concebeu segundo um padro que poderia ter sido o francs.

    Quando se pensa naquela instituio, pensa-se de uma maneira que

    responde a essa conscincia utpica. Assim, o educador precisa

    aprender biologia educacional, psicologia educacional, sociologia

    educacional, administrao escolar, educao comparada, didticageral, didtica especial e o que se v so compartimentos, como se

    isso fosse uma espcie de saleiro. A gente pe um pouco de vina-

    gre, um pouco de azeite, nenhuma matria que diga respeito

    capacitao poltica do professor, para enfrentar e compreender

    os seus papis. O professor, quanto mais inocente sobre essas coi-

    sas, ser mais acomodvel e acomodado.

    Esse debate nos leva, naturalmente, a um circuito que se monta

    aos poucos. Ansio Teixeira fala, com acerto, que, com a implanta-

    o da Repblica, a educao deixou de ser uma educao de prn-

    cipe para ser uma educao da massa dos cidados. uma afirma-o terica, vamos dizer, abstrata. Na verdade, a massa de cidados

    continuou a ser ignorada como antes, mas a Repblica criava esta

    obrigao para o estado e criava para o professor a necessidade de

    ser um agente ativo, que ia alm daquilo que as elites culturais, eco-

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    nmicas e polticas estavam dispostas a admitir. Mas, no circuito das

    transformaes, acabou prevalecendo a ideia, que era essencial na

    calibrao dos professores, tanto na Escola Normal e no Instituto

    de Educao, quanto na Faculdade de Filosofia, segundo a qual o

    professor deve manter uma atitude de neutralidade tica com rela-

    o aos problemas da vida e com relao aos valores. Essa batalha,

    que foi travada nos Estados Unidos e que to bem estudada por

    Wright Mills, em um dos seus livros, no qual ele procura explicar

    por que o pragmatismo norte-americano falhou, aqui foi travadanum campo muito pobre. Como um professor pode ser neutro na

    sala de aula? Como um investigador pode ser neutro em suas pes-

    quisas? E, principalmente, como um tcnico, em nvel de cincias

    aplicadas, de tecnologia, pode ser neutro em relao ao controle de

    foras materiais, sociais, culturais, psicolgicas etc.?

    Esse debate sobre neutralidade tica implica a ideia de uma res-

    ponsabilidade intelectual. Isto , ela o caminho pelo qual o especi-

    alista, saindo da escola normal ou da universidade, norteia-se em

    termos de uma relao de responsabilidade com a sociedade, isto ,com a ordem. Ele no colocado numa relao de tenso, mas de

    acomodao. E quando ele abre o caminho da tenso por outras

    vias que no so estimuladas a partir do ensino e da pesquisa, nas-

    cem apesar das imposies e limitaes formuladas em seu nome.

    A essa concepo correspondeu a ideia de que era necessrio sepa-

    rar o cidado do cientista e do professor. Essa disjuno foi fatal

    para a minha gerao. Eu posso pensar o que eu quiser. Posso ser

    socialista, sempre fui socialista, desde que me tornei gente, conscien-

    te da minha relao com o mundo. Como professor, o socialismo

    no deve ser dimensionado em sala de aula, pois a deve prevalecerum ecletismo, que vai desbotar as implicaes socialistas do pensa-

    mento do professor. O cidado est num lado, o educador est em

    outro. Entretanto, o principal elemento na condio humana do pro-

    fessor o cidado. Se o professor no tiver em si a figura forte do

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    cidado, acaba se tornando instrumental para qualquer manipulao,

    seja ela democrtica ou totalitria. Todos os regimes manipulam. O

    totalitarismo no manipula sozinho a personalidade humana ou os

    pequenos grupos, as grandes massas. Manipulaes so feitas em

    termos de interesses dominantes e com frequncia de forma repres-

    siva e opressiva. Este um tema muito vasto para nossa exposio,

    mas de qualquer forma ajuda a entender a pobreza do circuito da

    cultura civil. Ela era to esmagada, to pobre que at esse trao da

    personalidade do professor essencial no conjunto, como chave, paraentender outras coisas. Deveria ser despojado da dimenso de ci-

    dado, na sua prtica educacional, na sala de aula. Mas, justamente ali,

    o professor precisa ser professor-cidado e um ser humano rebelde.

    Isso levou certos crculos, que saram da Faculdade de Filoso-

    fia e de outros centros de estudo, a um radicalismo que esteve

    vinculado ao radicalismo dos pioneiros, mas que possua um cam-

    po independente. A convergncia foi produto do momento his-

    trico. Eu, por exemplo, trabalhei com Fernando de Azevedo; fui

    assistente dele, nunca aluno, nunca pensei como ele. Tnhamosmuitas afinidades, eu sentia muita admirao por ele, mas pens-

    vamos de modo diferente, para o nosso bem... Foi vantajoso para

    ele pensar por conta prpria e permitir que eu fizesse a mesma

    coisa. Mas esse radicalismo, que foi produto dos rebentos, das

    transformaes que ocorreram na esfera do ensino escolarizado,

    levou muitos a uma amarga e elaborada concepo ctica, porque

    parecia que, por meio da escola, no se podia fazer nada, porque

    a escola, afinal de contas, no era a sociedade. A grande mudana

    s pode ser provocada na sociedade e, portanto, o essencial era

    sair da escola, ir para a sociedade e ali travar a grande batalha nocampo da revoluo poltica.

    Respeitando o que h de verdade nessa posio, que seria um

    extremismo e, se absorvida pedagogicamente, seria um extremis-

    mo pedaggico , ela falha num ponto. que, com frequncia, para

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    se usar um conceito que foi operativo na dcada de 1940, e aplicado

    pelos antroplogos, h mudanas antecipadas, que ocorrem em

    primeiro nvel de uma instituio e podem avanar em relao s

    transformaes da sociedade global, percorrendo depois outras es-

    feras da sociedade. O professor no pode estar alheio a esta dimen-

    so. Se ele quer mudana, tem de realiz-la nos dois nveis dentro

    da escola e fora dela. Tem de fundir seu papel de educador ao seu

    papel de cidado e se for levado, por situao de interesses e por

    valores, a ser um conservador, um reformista ou um revolucion-rio, ele sempre estar fundindo os dois papis. Esse debate, hoje,

    tem uma grande atualidade, porque a cultura cvica agora deixa de

    ser um elemento mistificado e mistificador. Deixa de ser um fetiche,

    algo improvvel ou algo de circuito estreito. A cultura cvica passa a

    ser aquilo que a sociedade toda est construindo, nas piores condi-

    es possveis que poderamos imaginar e, portanto, decisivo que

    o educador volte a pensar em como fundir os seus papis dentro da

    sala de aula, com os seus papis dentro da sociedade, para que ele

    no veja no estudante algum inferior a ele, para que se desprendade uma vez de qualquer enlace com a dominao cultural e para que

    deixe de ser um instrumento das elites. claro que o professor

    pode ser, como diz um socilogo colombiano, membro de uma

    antielite. A criao da antielite no est na vontade de um professor

    isolado, mas parte de um processo sociocultural e, nesse processo,

    os professores tm um papel decisivo.

    O segundo ponto o mais importante em toda a nossa conver-

    sa aqui. claro que um professor que leciona numa sociedade rica,

    desenvolvida, pode no ter de se preocupar com certos temas. A

    mesma coisa acontece com o clero. O clero da Europa avanada edos Estados Unidos tende a ser muito mais leniente para com os

    poderosos do que o clero que vive, por exemplo, os dramas huma-

    nos do Nordeste ou das favelas de So Paulo. Os que tm experin-

    cia com o pensamento de Paulo Freire j sabem qual essa pedago-

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    gia dos humilhados e ofendidos, dos oprimidos, e qual o mnimo

    que diz respeito elaborao de uma pedagogia dos oprimidos e

    que, dialeticamente, s pode ser uma pedagogia da desopresso.

    No existe uma pedagogia dos oprimidos, existe uma pedagogia da

    desopresso, da liberao dos oprimidos.

    A controvrsia, a, seria a de se saber se pela via da instituio,

    se pela via dos professores ou das elites culturais que os oprimi-

    dos se emancipam. Em geral, essas fontes apenas ajudam. Podem

    dar um pontap inicial, mas o processo precisa ser muito forte edinmico na sociedade, para que isso se propague e para que um

    pedagogo rebelde e o conjunto dos professores, que estejam

    porventura envolvidos num processo de transformao, pensem

    a realidade politicamente. Pensar politicamente alguma coisa que

    no se aprende fora da prtica. Se o professor pensa que sua tarefa

    ensinar o ABC e ignora a pessoa de seus estudantes e as con-

    dies em que vivem, obviamente no vai aprender a pensar poli-

    ticamente ou talvez v agir politicamente em termos conservado-

    res, prendendo a sociedade aos laos do passado, ao subterrneoda cultura e da economia.

    A est um problema essencial. Na poca em que frequentei a

    Faculdade de Filosofia, estava muito na moda um livro de Kilpatrick:

    Educao para uma civilizao em mudana. muito importante refletir

    sobre o ttulo desse livro e o quanto ele mistificador. As palavras

    civilizaoe mudanaprendem a imaginao do leitor a dois smbolos;

    e h quem no queira civilizao e quem rejeite mudana. O impor-

    tante no dito ali. Eu prprio demorei algum tempo at decidir-

    me a escrever uma introduo de certa envergadura terica, sobre a

    natureza da mudana. A mudana, em qualquer sociedade, umprocesso poltico. fundamentalmente uma tentativa das classes

    dominantes de manterem a dominao, de as classes intermedirias

    se associarem em seu proveito dominao ou alterarem o seu

    contedo e as suas formas. Em sentido inverso, uma tentativa das

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    classes subalternas no sentido de modificar ou destruir a dominao.

    Pode-se ver que a polarizao muito complexa. O conservador

    quer a mudana. Se no houver mudana, a prpria dominao

    pode ser destruda, sofrer uma crise. No se pode manter uma so-

    ciedade sem transformao. At a ditadura recente, de governo a

    governo, promoveu mudanas substantivas para continuar existin-

    do, crescendo, mantendo-se como ditadura. O conservador deseja

    mudana, mudana essencial para manter o conservantismo, para

    vitalizar o conservantismo. O reformista no reformista se nofor capaz de definir programas de mudana mudanas que, a,

    passam a ser essenciais, porque para o reformista no se trata de

    preservar uma ordem, trata-se de ir ao fundo das potencialidades

    de transformao dessa ordem, como quiseram, por exemplo, os

    pioneiros da educao nova. Se temos uma sociedade capitalista

    podemos explorar todos os elementos que so possveis dentro

    dessa sociedade. E o reformista pode tambm querer alguma outra

    coisa, querer um socialismo que, alm de forar essa revoluo den-

    tro da ordem, queira juntar a essa revoluo o comeo de umatransio para novas formas econmicas, sociais e polticas. Por fim,

    o revolucionrio tambm quer mudanas, e mudanas que partam

    da revoluo contra a ordem, que enterrem a ordem existente e,

    junto com ela, conservadores e reformistas.

    Toda essa problemtica era deixada de lado, porque a conscin-

    cia utpica, que reinava na pedagogia, era mistificadora. Ela se para-

    lisava diante da ideia de mudana. curioso que voltemos a isso. O

    mudancismo, hoje, parece ser um sinapismo. Serve para tudo,

    inclusive para despertar falsas esperanas e crenas na transforma-

    o automtica da sociedade. Mudana requer luta e luta social entreclasses. Um professor deve aprender a pensar em termos de lutas

    de classes, mesmo que no seja marxista. No sei se vocs chegaram

    a ler Marx no original, ou se porventura leram a antologia que eu

    organizei,Marx-Engels: Histria. Nessa antologia, h uma leitura so-

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    bre isso. Marx dizia: Eu no criei a ideia de classe, no criei a ideia

    de luta de classes. Ele explica o que fez de novo, que no foi cunhar

    a palavra classe, nem inventar o conceito de luta de classes. Isso ele

    encontrou pronto e acabado, na obra de historiadores, economistas

    e filsofos, que haviam produzido uma vasta obra a partir do s-

    culo XVIII em diante. Pode-se, porm, fazer como os telogos da

    libertao, ou seja, absorver estes conceitos sem absorver o marxis-

    mo e, at, combater os marxistas, de uma maneira que no agra-

    dvel para mim, como o faz Frei Betto. Tudo isto importantedizer, porque mudana implica luta e luta social. Se o conservador

    quer mudar alguma coisa, quer faz-lo para preservar suas posies

    de poder ou, ento, para amplific-las, para no correr riscos; o

    reformista quer mudar para conquistar posies de poder; por sua

    vez, o revolucionrio quer mudar porque se identifica com classes

    que so portadoras de ideias novas a respeito da natureza, do con-

    tedo da civilizao e da natureza do homem.

    O debate que se travava dentro da universidade, por exemplo,

    a respeito daquele livro de Kilpatrick, era pobre. Cheguei a escre-ver um pequeno artigo em Educao e sociedade no Brasil, no qual

    fazia certas ironias, o que foi mal recebido pelos pedagogos. Eram

    comentrios muito srios, mas envolviam ironias com endereo

    certo. Mudana, substantivamente, sempre mudana poltica. Se

    o professor pensar em mudana, tem que pensar politicamente.

    No basta que disponha de uma pitada de sociologia, uma outra

    de psicologia, ou de biologia educacional, muitas de didtica, para

    que se torne um agente de mudana. E nesse caso, por exemplo,

    Dewey e sua escola deram uma prova muito rica do que o prag-

    matismo norte-americano conseguiu fazer, usando a escola comoinstrumento de transformao do meio social ambiente. muito

    importante estudar o que foi feito nos Estados Unidos, tentando

    aproveitar os recursos materiais e culturais do ambiente, para

    modificar a relao do estudante com a sociedade. s vezes uma

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    sociedade de mineradores, decadente, podia encontrar na escola o

    eixo da luta contra a pobreza, contra a estagnao econmica,

    contra o indiferentismo diante da catstrofe. A escola no to

    neutra, desde que ela seja projetada numa esfera de ao propria-

    mente poltica. Num pas como o Brasil, pela prpria natureza da

    situao, os educadores, mais at que os polticos, so pessoas que

    convivem com os problemas essenciais da sociedade em relao

    ao nvel poltico. Isso curioso. Antes que os sacerdotes rebeldes

    tivessem dado seu grito, os educadores haviam dado o seu, masno encontraram meios de organizao institucional, porque a

    mquina do estado opressiva, a empresa privada tambm e, as-

    sim, os educadores ficaram impotentes, mesmo quando tinham

    conscincia do que podiam e deviam fazer.

    Observe-se, por exemplo, o que disse certa vez um padre:

    um ser humano no pode ser cristo no Brasil nas presentes con-

    dies materiais, sociais e culturais de vida. No h elementos que

    criem a humanidade desse ser e que nele despertem a conscincia

    de uma humanidade, que pode sentir-se ofendida e rebelar-se con-tra a opresso. Para que o catolicismo se torne possvel, preciso

    criar um novo tipo de homem. No se trata aqui da revoluo

    socialista em Cuba ou de criar um homem socialista, como dizia

    Guevara. Trata-se de encontrar o homem na situao brasileira, de

    desobjetificar e de humanizar o ser humano que vai para a escola

    despojado das condies mnimas para passar pelo processo edu-

    cacional. No sei quantos de vocs leram o trabalho do prof. Luiz

    Pereira, A Escola numa rea metropolitana, dissertao de mestrado

    orientada por mim. V-se ali o professor travando contato com

    esse estudante de origem mais modesta, de populaes migrantes,que transferem do Nordeste para o Sul suas misrias, deficincias

    e carncias, como diria Darcy Ribeiro. E constata-se que o profes-

    sor no possui formao necessria para entender, cabalmente, o

    que lhe compete fazer. Luiz Pereira, a partir do material emprico,

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    traa atitudes de afastamento e da avaliao negativa por parte do

    professor desses estudantes. Professores de pequena burguesia, de

    classe mdia, que, naquele momento, estavam com o horizonte

    obscurecido pelas noes das classes dominantes, noes que vm

    daquela concepo mandonista, herdada da sociedade colonial,

    imperial e que vicejou na Primeira Repblica. No entanto, muitos

    professores aprenderam novos papis (tenho uma cunhada que

    trabalha numa escola da periferia e vejo como as coisas ocorrem;

    ela e suas companheiras andam atrs de material e praticamenteconfraternizaram-se com os miserveis) e no tm mais aquela

    atitude de distanciamento e sim uma atitude de confraternizao.

    O professor foi rebaixado em seu nvel social e respondeu a isso

    positivamente. Em vez de se considerar degradado, procurou na-

    quele ser humano, que antes no compreendia, um igual, que ape-

    nas est em condies piores e que ele procura ajudar em termos

    de cooperao social. A amplitude desta ao muito mais assis-

    tencial que qualitativamente poltica, mas j um posicionamento,

    j uma ruptura, uma vitria da percepo de que o elementohumano que vai para a escola realmente precisa ser a compreen-

    dido e transformado, dentro dos limites possveis.

    Agregue-se a isto outros dados, como o clima de violncia. A

    violncia desaba nas escolas primrias, secundrias, e at nas escolas

    superiores, em termos de destruio de equipamentos, de salas de

    aulas, de brutalizao de estudantes, de professores e diretores. E h

    outra ordem de problemas. A deteriorao que ocorreu no sistema

    de ensino, da qual exemplo a recuperao do mandonismo, levou

    as classes dirigentes a empobrecerem a revoluo nacional e retira-

    rem da educao aquele mnimo que antes a caracterizava. E qual foia consequncia? Houve uma deteriorao rpida de todas as escolas,

    tanto em nvel de ensino pr-primrio e primrio, quanto em nvel

    de ensino mdio e superior. Esses problemas aparecem na pesquisa

    e na produo intelectual e h problemas ainda mais graves, porque,

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    afinal de contas, nesse despertar, estudantes e professores entendem

    que formam uma comunidade. Eles querem expandir-se como uma

    comunidade, quebrar aquelas barreiras, que antes introduziam dife-

    renciais de classe no efetivos nas relaes de estudantes e professo-

    res. E encontram o caminho barrado, por meio de vrias vias:

    incompreenso dos meios de comunicao de massa, incompreenso

    do prprio estado que, na sua essncia, opera como um estado de

    classe altamente conservador. Haveria ainda muitos problemas a

    salientar, inclusive o desnivelamento pelo qual passa a atividade doprofessor, que um desnivelamento profissional e tambm econ-

    mico e, sendo as duas coisas, acaba sendo cultural. O professor que

    perde prestgio como profissional, perde renda e tambm perde

    tempo para adquirir cultura e melhor-la, a fim de ser um cidado

    ativo e exigente. Existem problemas ainda mais complexos, que

    dizem respeito s relaes entre o Brasil e outras sociedades capita-

    listas, por exemplo, a dominao imperialista da Europa avanada,

    dos Estados Unidos e do Japo, sobre o Brasil. Ou ainda o fato de

    ns termos ganho uma comisso MEC-Usaid, que acabou cali-brando toda a reordenao jurdica de nosso sistema educacional.

    notria a introduo de concepes que degradam e subestimam o

    ensino pblico, enaltecendo o ensino privado e que acabam por

    fortalecer a ideia de que a educao, para ser responsvel, precisa ser

    sobretudo uma mercadoria. Assim, possvel arrolar vrios proble-

    mas e temas que mostram a necessidade de o professor, no seu

    cotidiano, ter uma conscincia poltica aguda e aguada, firme e exem-

    plar. No que ele deva se tornar um Quixote ou um espadachim.

    Mas ele precisa ter instrumentos intelectuais para ser crtico diante

    dessa realidade e para, nessa realidade, desenvolver uma nova pr-tica que v alm da escola.

    Isso efetivamente est acontecendo. Seria impossvel, por exem-

    plo, quando me tornei assistente na faculdade, ouvir algum profes-

    sor dizer que ganhava salrio. Um professor no dizia isso. Ele

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    tinha proventos. A concepo estamental era to forte, que ele se

    sentiria degradado se fosse considerado (ou se se considerasse)

    um assalariado. Hoje, no s quer ser assalariado, mas quer lutar

    como assalariado, quer at imitar os operrios na luta econmica e

    poltica. Para ver se tem xito, impe-se certas normas na

    revalorizao econmica da categoria profissional e na conquista

    de maior liberdade em outro espao cultural. Ento, faz parte da

    situao de um pas subdesenvolvido a existncia de uma infini-

    dade de situaes nas quais o professor precisa estar armado deuma conscincia poltica penetrante. Ele uma pessoa que est em

    tenso poltica permanente com a realidade e s pode atuar sobre

    essa realidade se for capaz de perceber isso politicamente. Por-

    tanto, a disjuno da pedagogia ou da filosofia e das cincias ou da

    arte, com relao poltica, seria um meio suicida de reagir. algo

    inconcebvel e retrgrado. O professor precisa se colocar na

    situao de um cidado de uma sociedade capitalista subdesenvol-

    vida e com problemas especiais e, nesse quadro, reconhecer que

    tem um amplo conjunto de potencialidades, que s podero serdinamizadas se ele agir politicamente, se conjugar uma prtica pe-

    daggica eficiente a uma ao poltica da mesma qualidade.

    O ltimo tpico nos leva a uma questo um pouco mais delica-

    da, que me permite ser mais eu mesmo. Eu no sou s marxista.

    Sou um marxista que acha que a soluo para os problemas dos

    pases capitalistas est na revoluo. Dizer isso no uma

    fanfarronice. assumir, de forma explcita, o dever poltico m-

    nimo que pesa sobre algum que militante, embora no esteja em

    um partido comunista e que, afinal de contas, tentou, durante toda a

    vida, manter uma coerncia que liga a responsabilidade intelectual condio de socialista militante e revolucionrio. Se se olha para a

    sociedade brasileira de hoje, constata-se que o professor tem muitas

    promessas diante de si. Ele no precisa criar o ponto de partida de

    uma ao pedaggica politicamente orientada. Esse ponto de parti-

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    da, que foi um sonho para todos ns e que nos levou runa,

    medida que tentamos cri-lo, acabou surgindo espontaneamente e,

    em grande parte, graas s transformaes do modo de produo

    capitalista e do regime de classes sociais no Brasil.

    A sociedade avanou, criou novas oportunidades histricas, e

    o fez por meio da diferenciao do regime de classes. A produo

    capitalista alterou-se, a incorporao aos pases de economia cen-

    tral permitiu o florescimento de uma industrializao que esteve

    longe do alcance das nossas mos no passado, e esse longo e com-plexo processo de formao de uma classe proletria e indepen-

    dente atingiu, enfim, o seu clmax. curioso que isso tenha acon-

    tecido sob uma ditadura e contra a vontade dessa ditadura. Por

    qu? Porque uma ditadura no pode impor os limites de cresci-

    mento e de transformao de uma sociedade. Os capitalistas no

    podem ter as duas melhores coisas ao mesmo tempo: o cresci-

    mento do capital e o esmagamento do trabalho. Se o capital cres-

    ce, o trabalho cresce e se o trabalho cresce, o conflito social tam-

    bm. Se h represso quanto ao conflito social, o conflito vai semanifestar de uma maneira clandestina, no subterrneo da socie-

    dade. E foi o que ocorreu aqui em So Paulo: operrios que ado-

    taram ideias que eram defendidas na dcada de 1950, mas que s

    se tornaram uma prtica rotineira nos ltimos anos, na dcada de

    1970, por exemplo, e nesses ltimos momentos. A comisso de

    fbrica, a comisso de bairro. Ou seja, a fbrica como um lugar

    onde no apenas se trabalha e se explorado, mas como um lugar

    no qual o operrio luta pelo reconhecimento de sua pessoa e do

    seu valor. Comea-se por a. Ao mesmo tempo que se criam con-

    dies para a concluso do processo de constituio de uma classeproletria independente, criam-se as condies da luta poltica contra

    a supremacia burguesa e contra a dominao burguesa. Derrotar

    essa supremacia , afinal de contas, uma necessidade orgnica dos

    trabalhadores. E as grandes dificuldades existentes dizem respeito

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    aos meios institucionais de autodefesa coletiva. Esses meios foram

    forjados a partir do desafio da represso. Sindicatos que se trans-

    formam, modos de ao conjugada que se alteram e tentativas de

    inibir o despotismo do capital, dentro da empresa e na sociedade

    global. Uma luta tenaz para conquistar peso e voz na sociedade

    civil. Isso marca, portanto, um novo rumo da histria.

    Estamos na vertente de uma fase ainda no encerrada, mas

    que j adquiriu as condies de clmax, e em uma fase, ora iniciada

    (possvel de se analisar, em alguns aspectos, por meio do livro doprofessor Celso Frederico, e em relao qual se pode conhecer

    outros elementos importantes no livro do professor Lus Flvio

    Rainho). fcil ver como aquele peo, que est ao mesmo tempo

    se proletarizando, se tornando um morador da cidade, se enlaa

    num processo de luta de classes altamente complicado e no qual

    ele acaba sendo um elemento decisivo, porque ele quem d o

    significado de massa e ele quem, com frequncia, levanta as exi-

    gncias mais ardentes e mais insufocveis. Assim, estamos no limi-

    ar de uma nova era e aqui se justifica a reflexo que Marx faz arespeito da necessidade de se pensar na educao do educador:

    quem educa o educador?. O educador educa os outros, mas ele

    tambm educado. No processo de educar, ele se educa, se ree-

    duca e quando pratica uma m ao no sentido gestaltiano ele se

    autopune, aprende alguma coisa.

    A educao do educador um processo complexo e difcil.

    importante que se perceba o que est acontecendo na sociedade

    brasileira de hoje. O educador est se reeducando, em grande parte,

    por sua ao militante, medida que aceita a condio de assalaria-

    do, que proletariza sua conscincia, portanto seus modos de ao.Isto apesar de ser uma pessoa da pequena burguesia ou da classe

    mdia. Ele rompe com seus padres ou ento passa por um com-

    plicado processo de marginalidade cultural, porque compartilha de

    duas formas de avaliao: uma, que mais ou menos elitista; a outra,

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    que mais ou menos democrtica e divergente. Nessa situao-

    limite, o professor se v obrigado a redefinir sua relao com a

    escola, com o contedo da educao, sua relao com o estudante,

    com os pais dos estudantes e com a comunidade em que vivem os

    estudantes. E isso vai to longe que, se um professor primrio, que

    antes era um zero, sair para uma greve, arrastar consigo no s os

    seus companheiros, a sua categoria, mas tambm estudantes, pais de

    estudantes, a manifestao de massa. Isso muito importante, quer

    dizer, assiste-se a um processo novo, um processo em que odesnivelamento econmico, social e poltico criou a possibilidade de

    que o professor defina a sua humanidade em confronto com a tra-

    dio cultural e com a opresso poltica.

    No segundo prefcio de O capital, Marx apresenta um de-

    bate muito interessante a respeito dos economistas alemes. O

    que eles poderiam fazer, depois que os economistas clssicos

    haviam criado a teoria econmica? O que poderiam fazer de

    original? Qualquer coisa que pudessem fazer seria uma repetio;

    consequentemente, eles tinham que pensar aquela teoria de for-ma crtica e redefinir a sua relao com a sociedade. Ou aceita-

    vam a teoria econmica dos clssicos e se convertiam em sacer-

    dotes da burguesia ou procuravam saber qual era o sentido

    imanente da histria do presente. Qual era a classe que estava

    lutando pela revoluo? E at que ponto fazer a crtica da eco-

    nomia poltica no era fazer uma nova teoria econmica, uma

    economia poltica do proletariado? A mesma coisa se pode pen-

    sar do educador. No se trata de colocar o educador naquela

    perspectiva de dio s instituies. Vamos acabar com as escolas,

    elas so prises. Todas as prises precisam ser destrudas. No setrata disto. Instituies e valores so sempre redefinidos na mar-

    cha das civilizaes. O homem nunca se livrou de certas insti-

    tuies. Seria o caso de perguntar ao padre Illich, por exemplo,

    por que as escolas so ms numa sociedade capitalista? Por que

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    poderiam ser boas dadas certas reformas ou dadas condies

    histricas que garantissem uma revoluo social?

    Seria preciso deslocar uma reflexo utpica abstrata para um

    circuito realista, que vincule a conscincia de transformao a uma

    ao prtica inconformista ou rebelde. exatamente isso que o

    professor est tentando fazer agora. claro que no a massa dos

    professores. No so todos os professores. Pode ser uma minoria,

    mas essa minoria que est levando frente um processo novo.

    Eu fiz uma conferncia, ainda este semestre, no ltimo congressoorganizado pela Apeoesp. Foi uma surpresa para mim. Havia mais

    de 6 mil pessoas no auditrio. V-se por a o grau de mobilizao.

    O que isso representa? No eram mais de seis mil pessoas pleite-

    ando, do governo Sarney, nomeao para os escales interme-

    dirios. Eram mais de 6 milpessoas que estavam ali preocupadas

    com a relao do educador com a sociedade, com a humanizao

    do homem que nessa sociedade despojado da sua humanidade.

    Voltando ao exemplo de Marx, o educador tem uma liberda-

    de muito grande. Pode identificar-se com uma classe ou com ou-tra, pode identificar-se com a classe dominante, com as classes

    intermedirias ou com as classes subalternas. claro que o educa-

    dor, tendo liberdade de escolha, pode dispor de uma ampla mar-

    gem de atuao poltica na sociedade. Para uma pessoa que est na

    minha posio, posso dizer que lamentvel que muitos professo-

    res usem essa liberdade para tornarem-se conservadores e at re-

    acionrios, inclusive, para fazerem listas de punio de colegas dos

    quais gostariam de se livrar por motivos ideolgicos, polticos e,

    s vezes, at de competio intelectual. Pode-se lamentar o teor

    dominante das tendncias reformistas mais ou menos ambguas.Mas, de qualquer maneira, existe uma vasta gama de potencialidades

    que se exprimem no campo real, ou seja, possvel conjugar a

    conscincia pedaggica dos problemas da sociedade a uma nova

    forma de ao prtica. isto que garante a transformao subs-

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    tantiva. A transformao no produto do avano na esfera da

    conscincia e tambm no produto de uma elaborao espont-

    nea da realidade. preciso que a ao prtica transformadora se

    encadeie a uma conscincia terica e prtica, que seja, num sentido

    ou noutro, dentro da ordem ou contra a ordem, revolucionria.

    Essa uma perspectiva que no mais proclamada apenas

    como uma possibilidade. Ela algo no s virtual. algo que

    podemos considerar vicejando, na sociedade brasileira, com um

    mpeto to grande, que assustou os setores mais sofisticados daburguesia e levou, inclusive, a cpula do PMDB a fazer uma alian-

    a espria com polticos egressos do governo ditatorial, com ex-

    poentes militares da prpria ditadura e a uma conciliao que lhes

    permite, enfim, ganhar tempo e criar caminhos de interesse para

    as classes dominantes. Observam-se transformaes que esto

    ocorrendo e que so de profunda significao no meio histrico

    brasileiro, definindo de maneira diferente a posio e as perspec-

    tivas dos educadores.

    claro que eu no posso seno sugerir isto e, ao faz-lo,naturalmente, usei meu sistema de referncia, sob o aspecto mar-

    xista: o encadeamento de conscincia da situao com a ao

    prtica modificadora. Esse encadeamento substantivo, essen-

    cial e especificamente poltico. No se trata de proclamar uma

    utopia e dizer ns temos uma frmula, graas a esta frmula

    vamos produzir a nova escola, e esta vai gerar a nova sociedade,

    que, por sua vez, formar a nova gerao. Isso tudo conto da

    carochinha. J se acreditou nisso, no s no Brasil, como tambm

    na Europa e nos Estados Unidos. A realidade que as transfor-

    maes so conquistadas a duras penas. Os professores entram,agora, nas mais difceis condies de uma nova era, tal como est

    acontecendo com os proletrios.

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