racismo, introdução

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ESAN Aula de 11 de maio de 2015 Racismo “à brasileira” Lilia Moritz Schwarcz → A diferença entre os homens faz parte de qualquer percepção social; não existe sociedade ou agrupamento que não reflita ou emita juízos acerca das variações entre os grupos, cores ou origens. As sociedades constroem culturas e linguagens próprias, cujas diferenças são responsáveis pela formação de discursos sobre elas: racismo = uma espécie de dialeto. Ambiguidade: modelo oficial: exaltação de uma sociabilidade racial impar no Brasil (democracia racial), ao lado de uma evidente segregação social racial: Estatísticas relativamente ao trabalho, geografia, índices de mortalidade, oportunidades de êxito social, escolar e de lazer: escolas e universidades; público alvo de batidas policiais e de encarceramento → ver dados estatísticos do NEV-USP Micropoderes Racismo dissimulado, silencioso, cordial (homem cordial de Sérgio Buarque de Holanda), que escapa ao espaço oficial/legal mas ganha o cotidiano, reinando gloriosamente no discurso (e prática) senso comum, tão poderoso quanto o discurso religioso e o científico intensa disputa discursiva Pesquisas p. 73-74 O nosso racismo seria dissimulado, nunca oficial e sempre atribuído ao outro [...] não inscreve o racismo no corpo da lei [...]: na exclusão marcada pela ausência de negros em certos espaços de lazer, ou na instituição do “elevador de serviço”, cujo uso discriminatório é proibido por lei mas praticado costumeiramente. [...] nossa história pregressa deixa uma forte herança entre nós e em nós ” (75) Leis, costumes, revolução! Brasil: representação da alteridade, da diferença

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Texto-aula sobre racismo no Brasil

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ESAN Aula de 11 de maio de 2015

Racismo “à brasileira” Lilia Moritz Schwarcz

→ A diferença entre os homens faz parte de qualquer percepção social; não existe sociedade ou agrupamento que não reflita ou emita juízos acerca das variações entre os grupos, cores ou origens.

As sociedades constroem culturas e linguagens próprias, cujas diferenças são responsáveis pela formação de discursos sobre elas: racismo = uma espécie de dialeto.

Ambiguidade: modelo oficial: exaltação de uma sociabilidade racial impar no Brasil (democracia racial), ao lado de uma evidente segregação social racial:

Estatísticas relativamente ao trabalho, geografia, índices de mortalidade, oportunidades de êxito social, escolar e de lazer: escolas e universidades; público alvo de batidas policiais e de encarceramento → ver dados estatísticos do NEV-USP

Micropoderes

Racismo dissimulado, silencioso, cordial (homem cordial de Sérgio Buarque de Holanda), que escapa ao espaço oficial/legal mas ganha o cotidiano, reinando gloriosamente no discurso (e prática) senso comum, tão poderoso quanto o discurso religioso e o científico → intensa disputa discursiva

Pesquisas p. 73-74

“O nosso racismo seria dissimulado, nunca oficial e sempre atribuído ao outro [...] não inscreve o racismo no corpo da lei [...]: na exclusão marcada pela ausência de negros em certos espaços de lazer, ou na instituição do “elevador de serviço”, cujo uso discriminatório é proibido por lei mas praticado costumeiramente. [...] nossa história pregressa deixa uma forte herança entre nós e em nós” (75)

→ Leis, costumes, revolução!

Brasil: representação da alteridade, da diferença

As distintas visões dos estrangeiros sobre os habitantes do “Brasil”

Para o português Magalhães de Gandavo: povos sem religião, sem moral, sem lei, sem regras sociais (marcados pelo negativo)

Bula papal de 1534: os índios eram humanos e tinham alma: era preciso inseri-los na genealogia dos povos (pré-Antropologia)

Representação francesa: paraíso na terra, com povos exuberantes, belos animais e gentes, com seus hábitos “estranhos”.

Jean-Jacques Rousseau, Discurso sobre a origem e o fundamento da desigualdade entre os homens, 1775, e o bom selvagem: natureza (+) X cultura (-)

***

Teses pessimistas: Buffon (1749): tese da “imaturidade” dos povos americanos, retardado em seu desenvolvimento. Seu discípulo, Cornelius de Pauw, especialista em América, sem nunca ter pisado nela: tese da “degeneração”: preguiçosos, fraqueza moral, “bestas decaídas”, um desvio na evolução natural.

O relato de viagem do inglês M. Frezier (Relation du Voyage de la mer du Sud, Paris, 1716, p. 68), destaca que a desigualdade no terreno de Salvador leva a uma desigualdade social.

***

A vinda da Corte para o Brasil e a promessa de uma terra do mel

Até o século XIX: proliferação de narrativas “pessoais”, fundadas na observação do autor: ambivalentes

Olhar com “olhos livres”: “o olho que vê é órgão da tradição” (Franz Boas)

***

Brasil no século XIX: tentativas da fundação de uma historiografia literária, uma representação oficial

D. João: criação dos primeiros centros de ensino superior, instituições consagradas a louvar a nova terra e constituir sua memória: fundar uma forma de conhecimento e chegar à origem da própria literatura e história nacional → busca de uma “identidade nacional”.

1838, fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) + Academia Imperial de Belas Artes, criada em 1826 (iconografia oficial do período) → fundação de um projeto cultural nacional:

Literatura não-ficcional de viagem: olhar estrangeiro; Paisagismo: exuberância tropical.

→ Academia Imperial de Belas Artes, de iniciativa da ala francófila do conselho de ministros de Dom

João, é considerada o marco inaugural da entrada no Brasil na “verdadeira” civilização:

“Animados todos por um zelo idêntico e com o entusiasmo dos sábios viajantes que já não temem mais, hoje em dia, enfrentar os azares de uma longa e ainda, muitas vezes, perigosa navegação, deixamos a França, nossa pátria comum, para ir estudar uma natureza inédita e imprimir, nesse mundo novo, as marcas profundas e úteis, espero-o, da presença de artistas franceses” (Debret).

Um Brasil romântico e indígena: exaltação da natureza, considerada em sua pureza, tal como o bom selvagem de Rousseau: o indianismo poético de Gonçalves Dias, Iracema, de José de Alencar: representação romântica do nativo como símbolo nacional:

“[...] a exaltação do exótico, de uma natureza como modelo e do indígena romântico, tornou-se a marca da produção pictórica, traduzindo a história em termos mais idealizados, do que propriamente realistas. Os quadros deveriam figurar uma única ação de caráter moralizante” (83);

“[...] uma idealização da paisagem e da população” (84).

Ler trecho p. 84

***

Saber-poder, o século XIX e a detratação: o darwinismo social e a condenação da mestiçagem

→ com a chegada do positivismo, do evolucionismo, dos determinismos e do darwinismo social, representadas por A. Comte, Charles Darwin e Herbert Spencer, a exaltação da mestiçagem brasileira começou a personificar um indício de “degeneração”: depreciação do indigenismo romântico e a condenação da mestiçagem.

Para o Darwinismo social, cada raça era uma essência, e, como tal, portadora de características intrínsecas, com capacidade e comportamentos específicos, cuja tese depreciava o verdadeiro laboratório racial que era o Brasil: ler trecho p. 85

Para o conde Arthur de Gobineau, “trata-se de uma população totalmente mulata, viciada em seu sangue e no espírito e assustadoramente feia”.

No I Congresso Universal das Raças, realizado em Londres, em 19111, o brasileiro João Batista Lacerda, diretor do Museu Nacional do Rio, apresentou a tese, cujo título era “Sobre os mestiços do Brasil”, e declarava:

“[...] o Brasil mestiço de hoje tem no branqueamento em um século sua perspectiva, saída e solução” → o branqueamento como projeto político

“O negro que se torna branco, na terceira geração, pelo efeito do cruzamento das raças”

“Redenção de Cam” (1895), do pintor espanhol Modesto Brocos y Gómez (1852-1936)

1 <http://www.scielo.br/pdf/bgoeldi/v7n3/a08v7n3.pdf>.

“A velha olha para os céus e, com um gesto expresso pelas mãos, parece agradecer por um milagre. Mãe e pai olham satisfeitos para o filho, o qual, disposto bem ao centro da cena, mais se parece com Cristo na manjedoura” (p. 86).

Brasil: da representação romântica iluminista a um exemplo de “degeneração”.

Raças e diferenças sociais

Raça: noção oportuna para naturalizar as diferenças sociais

Negros = “cientificamente” incapazes e limitados intelectualmente

Ao Brasil cabia “aceitar a ideia da diferença entre as raças sem condenar a hibridação, na medida em que o país se encontrava irremediavelmente miscigenado. [...] o país, pensado nesses termos, era inviável” (87).

Entre 1870 e 1930: chegada tardia das teorias raciais no Brasil que, não obstante, tiveram uma entusiástica recepção: anunciar o amadurecimento de centros como os institutos históricos, os museus etnográficos, as faculdades do Direito e de Medicina.

Tela p. 88

Homens de sciencia: abrigar uma ciência positiva e determinista, utilizando-se dela para procurar saídas para o destino da nação: século XIX, uma grande dose de ambiguidade e de pessimismo:

“Animados com os progressos da biologia e do determinismo, ao mesmo tempo em que se encontravam desiludidos com as promessas de igualdade, que a República anunciava, tais cientistas indagavam-se sobre as causas persistentes das diferenças entre os homens” (89).

Com a biologia darwinista, se passava da natureza para o Homem = positivismo

→ Faculdades de Direito: elaboração de um código legal unificado para tornar homogêneas as grandes diferenças empiricamente observáveis. Caberia aos legisladores unificar este território que se queria nação = Tecnologia legal

1890: debate acerca da entrada de migrantes africanos e asiáticos

→ “as características amorais do africanos e dos chins” = “inassimiláveis, portadores de costumes estranhos, praticantes de suicídio e do ópio” (Atas da Câmara dos Deputado, 1893)

“A teoria racial, quando utilizada, cumpria o papel de deixar claro como para estes juristas falar em democracia não significava pensar em cidadania ou igualdade. Raças diferentes pressupunham capacidades a atributos morais diversos” (90).

A medicina e os médicos

As figuras do médico e do cientista social se confundem neste contexto: a imagem do higienista e do perito criminal, intelectuais de intervenção política e social.

Na Escola de Medicina Tropical Baiana, o darwinismo social será adotado de maneira radical, condicionando políticas e práticas médicas = emergência do médico político, apoiados por uma ciência determinista, defensores do país contra a degeneração: medicina criminal e higiene pública = ampla política de intervenção pública.

“[...] em nome da saúde da coletividade. Impulsionados pela moda da biologia, esses cientistas passavam do combate às doenças e chegavam aos casos mentais, afetados pela mestiçagem. Era a combinação de um saber higienista e darwinista social que entrava em ação e transformava esses médicos em heróis nacionais” (91).

“Revolta da vacina” no Rio de Janeiro (1904)

Para os médicos baianos, o cruzamento racial constituía não somente nosso maior mal como também nossa suprema diferença, era o que explicava “nossa inferioridade como povo” → o “problema negro” (um dos objetos da sociologia) e a introdução da medicina legal especializados no estudo da mente criminosa.

Medicina legal: correlação rígida entre aspectos exteriores e interiores do corpo humano, considerando a miscigenação como um grande fator de degeneração.

A Responsabilidade penal (1888), de Nina Rodrigues, defendia a existência de dois códigos penais: cada um adaptado ao “grau de civilização” do grupo a que pertencia.

Duas escolas: na Bahia, predominava a antropologia criminal; no Rio, as pesquisas sobre medicina social:

→ Para os médicos cariocas, tratava-se do combate às doenças; já para os médicos baianos, tratava-se do doente.

Disputas pela hegemonia intelectual: Para os juristas, a responsabilidade de conduzir a nação estava ligada à elaboração de um código unificado; para os médicos, somente de suas mãos sairiam os diagnósticos e a cura dos males que assolavam a nação (práticas de normalização possíveis):

“Justificava-se, assim, com o respaldo da teoria, desde a construção de projetos políticos conservadores até a existência de hierarquias rígidas. Dessa maneira, ao adotar a perspectiva racial, as elites letradas brasileiras acabavam assumindo uma

espécie de consciência do atraso, assim como encontravam respaldo para redimensionar uma discussão sobre a igualdade e, por conseguinte, sobre critérios de cidadania. Como dizia Sílvio Romero: “é preciso não ter preconceito e admitir que os homens são diferentes” (92-93).

Teorias raciais: subsídios para transformar diferenças sociais em barreiras biológicas:

“os homens não nascem absolutamente iguais, supõe-se uma igualdade presumida pela lei sem o que não haveria lei [...]” (Nina Rodrigues, 21/12/1899)

“Entendido o sujeito como o resultado de seu grupo racio-cultural, esse tipo de teoria tendeu a negar a liberdade individual em face do determinismo do grupo somático de origem” (93).

→ esvaziamento do debate sobre cidadania e participação do indivíduo no Estado, desqualificando o princípio universal da igualdade, herdado da Revolução Francesa de 1789 (igualitarismo das Luzes e dos Direitos do Homem):

“Em uma sociedade na qual a falta do indivíduo, das instituições e do formalismo do Estado era fato, as teorias raciais pareciam transformar a nacionalidade numa questão da natureza” (93).

ESAN Aula de 25 de maio

Brasil pós 1930: formação do Estado-nação brasileiro

As teses culturalistas e o movimento de formação da identidade nacional

Mário de Andrade: Macunaíma (1928); Gilberto Freyre: Casa-grande & Senzala (1933);

Tese da democracia racial

teses raciais e darwinistas < cultura como modelo de análise → representação oficial da nação

desafricanização/nacionalização: feijoada; candomblé; capoeira2; samba; malandro; futebol; etc.

Carmem Miranda como símbolo nacional

2 A capoeira, reprimida pela polícia e considerada crime pelo Código Penal de 1890, é oficializada como modalidade esportiva em 1937 (Estado Novo).

1950’: a desmitificação e os estudos sobre a exclusão – abordagens sociológicas

O projeto Unesco e a formação das ciências sociais no Brasil:

[...] incentivada por obras que, na linha interpretativa de Gilberto Freyre, concebiam a sociedade brasileira como singularmente conforma da sob a égide de uma democracia racial, a Unesco, ainda sob o impacto do Holocausto, esforça-se em combater a ideologia racista que serviu de suporte para a montagem e operação da máquina infernal nazista. Para tanto, a agência internacional resolveu coordenar uma pesquisa comparativa sobre as relações raciais em diferentes regiões brasileiras. O objetivo inicial desses estudos era o de oferecer ao mundo lições de civilização à brasileira em matéria de cooperação entre raças. Na esperança de encontrar a chave para a superação das mazelas raciais vividas em diversos contextos internacionais, a agência intergovernamental teria acabado por se ver diante de um conjunto de dados sistematizados sobre a existência do preconceito e da discriminação racial no Brasil. Evidenciou-se uma forte correlação entre cor ou raça e status socioeconômico. A utopia racial brasileira foi colocada em questão. Inaugurou-se, dessa forma, no campo das ciências sociais, uma produção acadêmica que julgava como falsa consciência o mito da democracia racial brasileira” (MAIO, 2000, p. 116);

[...] orientação de comportamento que eram sancionados pela tradição e reforçadas por uma longa prática” (FERNANDES, 1954, p. 100) e impediria à sociedade a aproximação de um padrão político próximo aos liames democráticos de organização. A herança arcaica da mentalidade política propiciou nas camadas populares uma orientação de comportamento de “alheamento e desinteresse pela vida política” (FERNANDES, 1954, p. 100) e, por outro lado nas camadas dominantes a ideia de que “o exercício do poder político fazia parte dos privilégios inalienáveis dos setores ‘esclarecidos’ ou ‘responsáveis’ da Nação.” (FERNANDES, 1954, p. 100) (TAUIL, 2014)

Florestan Fernandes destaca

[...] alguns obstáculos ainda presentes na sociedade nacional que dificultariam o caminho a ser conduzido até a chegada de um padrão de organização democrática nas esferas políticas e sociais do país”. O autor demonstra de que modo uma estrutura de pensamento que se regulava ainda através das “normas estabelecidas pela tradição” (FERNANDES, 1954, p. 99) funcionava como obstáculo para o fortalecimento de uma ordem democrática no país. Por conta da herança proveniente de uma sociedade escravocrata “(...) a maior parte da população brasileira adulta não tinha participação direta na vida política (...).” (FERNANDES, 1954, p. 99) Em outras palavras, a herança escravocrata compunha uma espécie de obstáculo à democracia brasileira, não só em termos políticos, mas também nos aspectos socioeconômicos considerados (idem).

Na visão de Florestan Fernandes “A democratização das bases da vida social ou (a organização social baseada no princípio democrático) implicaria igualmente na democratização de sua estrutura de poder, o que acabaria por acarretar a superação dos vícios da democracia brasileira (...)” (OLSEN, 2005, p. 49) uma vez que no caso brasileiro o

desenvolvimento capitalista teria ocorrido de maneira dissociada da democracia, baseando-se em formas autocráticas de poder3 (ibid., p. 17) → obstáculos para a conformação de uma mentalidade propriamente moderna.

→ As análises sociológicas destacam a existência de uma forma particular de racismo: “um preconceito de ter preconceito”, bem como a “tendência do brasileiro” de “continuar discriminando, apesar de considerar tal atitude ultrajante”, “consequência da permanência de um êthos católico”. A extinção da escravidão, a universalização das leis e do trabalho não teriam afetado o padrão tradicional de acomodação racial; ao contrário, agiriam no sentido de esconder o racismo” (p. 99-100) → caráter não oficial do “preconceito à brasileira”

Descompasso entre a ordem jurídico-política (legal) e o cotidiano (costumes).

Apesar da representação oficial de uma convivência racial democrática, não existe uma distribuição equitativa dos direitos: dados estatísticos

Brasil: novato em políticas afirmativas que visam atuar sobre a desigualdade social: a questão só entra na agenda política a partir de 1994, com o governo FHC, e com o governo do PT aderiu-se mais diretamente a políticas para uma população marcada por processos discriminatórios: com o intuito de intervir no perverso padrão de sociabilidade silenciosamente partilhado:

Destinação de 40% das vagas das universidades estaduais para pretos e pardos (cotas); Inclusão da disciplina “História e cultura afro-brasileira e africana” no ensino médio; Criação da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (SEPIR);

“Um preconceito que se apresenta sobretudo no âmbito privado;

se raça hoje é um conceito desacreditado pela biologia, persiste enquanto fenômeno pragmático; manipulado e negociado cotidianamente. Não por acaso, a cultura vem se tornando um marcador de diferenças poderoso” (p. 111).

Caso brasileiro: país de larga e violenta convivência com a escravidão

3 De cima para baixo: um aspecto constante em nossa história política. Ver, por exemplo, desde a proclamação da República até a “abertura lenta e gradual” para a democracia a partir de 1985.

Permanece ainda a vinculação de aspectos exteriores a certas deformações morais – de traços “lombrosianos4” –: os nordestinos são caracterizados por conta do determinismo geográfico e da incidência do sol sobre seus cérebros; alvo de expressões como “cabelo ruim”, etc.

A declaração da estudante de Direito Mayara Petruso: “Nordestino não é gente, faça um favor a SP, mate um nordestino afogado!” não é um caso isolado ...

A notícia do jornal baiano Correio, demonstra a tese defendida pela autora do artigo, sobre a “tendência do brasileiro” de “continuar discriminando, apesar de considerar tal atitude ultrajante”:

“Mayara, em sua defesa, admitiu que publicou a mensagem e confessou ter sido motivada pelas eleições. Ela também disse não ter intenção de ofender, negou ser preconceituosa e se declarou arrependida”

Fonte: http://www.correio24horas.com.br/detalhe/noticia/justica-condena-estudante-mayara-petruso-por-preconceito-contra-nordestinos/

Se não há bons racismos, o “nosso” é definitivamente singular, apesar de igualmente perverso, uma vez que é fruto de um contexto histórico e social específicos.

Raça não é uma realidade biológica, mas um artefato social, político e histórico.

4 Cesare Lombroso, psiquiatra, cirurgião, higienista, criminologista, antropólogo e cientista italiano. Inspirado pelos estudos genéticos e evolutivos no final do século XIX, propõe que certos criminosos têm evidências físicas de tipo hereditário, relacionando certos aspectos físicos com a prática de delitos. Suas teorias influenciaram fortemente a nascente criminologia positivista para a constituição da identidade do “homem criminoso”, um indivíduo patológico, independentemente do ato infracional, se tornando inclusive a causa do crime. Suas teses tiveram influência inclusive no Brasil. A este respeito ver ALVAREZ, Marcos César. 2003. Bacharéis, criminologistas e juristas: saber jurídico e Nova Escola Penal no Brasil. São Paulo: Método. Disponível em: <https://www.academia.edu/11637979/Bachar%C3%A9is_Criminologistas_e_Juristas_saber_jur%C3%ADdico_e_nova_escola_penal_no_Brasil_1889-1930_>.

? Permanecemos ainda atolados nesse lamaçal, sem notar que a raça é uma construção política com efeitos desiguais de hierarquização e de mobilidade

social?

GÊNERO: a história de um conceito (Adriana Piscitelli)

Fonte: http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL1123209-5602,00-AFEGANISTAO+INVESTIGA+ENVENENAMENTO+DE+MENINAS+COM+GAS.html

Atribuição de espaços sociais diferenciados para homens e mulheres; Situação de discriminação feminina; Atribuição de qualidades e traços de temperamento diferentes a homens e mulheres, utilizados

para delimitar seus espaços de atuação; Considerado como inato, algo supostamente “natural”, decorrente de distinções corporais entre

homens e mulheres, em especial daqueles associadas às suas diferentes capacidades reprodutivas: conceber filhos contribui para que a principal atividade atribuída às mulheres seja a maternidade, e que o espaço doméstico e familiar seja visto como seu ambiente natural, seu principal local de atuação;

A distribuição desigual de poder passa a ser vista como resultado de diferenças tidas como naturais, “naturalizando-se” as desigualdades;

Os anúncios publicitários muitas vezes reforçam os ideais de gênero, como a imagem da mulher como mãe e dona de casa e sua associação às tarefas domésticas

Gênero → conceito elaborado por pensadoras feministas (1970’) para desmontar esse duplo procedimento de naturalização mediante o qual as diferenças que se atribuem a homens e mulheres são consideradas inatas, derivadas de distinções naturais, e as desigualdades sejam percebidas como resultado dessas diferenças.

Sexo → remete a essas distinções inatas, biológicas.

Gênero > sexo: para referir-se ao caráter cultural das distinções

Quando nascemos, somos classificados pelo nosso corpo, de acordo com os órgãos genitais, como meninas ou meninos. No entanto, as maneiras de ser homem ou mulher não derivam dos genitais, mas de aprendizados culturais que variam segundo o momento histórico, o lugar e a classe social.

A “identidade de gênero” está no plano da cultura, dos hábitos e dos aprendizados, não deriva dos genitais, que “pertencem” à natureza, à biologia.

→ esfera SOCIAL – objeto da Sociologia, não da biologia – e o caráter cultural, flexível e variável da distinção:

Em algumas sociedades indígenas, por exemplo, a atividade de tear é vista como feminina; noutras, como masculina: não há nada naturalmente feminino ou masculino!

“Primeira onda” do movimento feminista (final do século XIX e início do XX): as principais reivindicações giravam acerca dos “direitos iguais à cidadania” → sufrágio universal; acesso à educação; posse e bens; etc.

Os distintos papéis atribuídos aos homens e mulheres dependem de diversos fatores, como a idade, o sexo = são culturalmente construídos.

A antropóloga Margaret Mead influenciou decisivamente as feministas das décadas de 1920 e 30, ao documentar as diversas maneiras em que “outras” culturas lidam com a diferença sexual, mostrando que noções como feminilidade e masculinidade não são fixas, variando de uma cultura a outra.

Quadro p. 129 – Sexo e temperamento em três sociedades primitivas

Estereótipos universalizados = mulheres como dóceis, meigas e afetivas em decorrência da maternidade; homens, dominadores e agressivos → Mead mostrou que são, ao contrário, traços aprendidos desde que uma criança nasce, impondo cores, como rosa para a menina, e azul para o menino, estabelecendo brinquedos e brincadeiras distintas, etc. → construção cultural da diferença sexual por meio da socialização. De diversas maneiras, na família, na escola, nos locais de sociabilidade as pessoas aprendem essas normas e elas são incorporadas, geralmente num processo inconsciente, imperceptivelmente, tornando-se, assim, “naturais”, evidentes.

Simone de Beauvoir e O segundo sexo (1049): precursora da segunda onda do feminismo

Para a filósofa, para reduzir as desigualdades era necessário mais que mudanças legais, como a garantia de voto. Para retirar as mulheres dessa posição subordinada era necessário combater os aspectos sociais que a fundamentava:

→ a educação sexista, que preparava as meninas para agradar aos homens, para o casamento e para a maternidade;

→ o caráter opressivo do casamento para as mulheres – uma obrigação para se obter proteção e lugar na sociedade;

→ o caráter impositivo da maternidade;

→ a vigência de um duplo padrão de moralidade sexual, isto é, de normas diferentes para homens (permissivo) e mulheres;

→ a falta de trabalho e de profissões dignas e bem remuneradas que dessem oportunidades às mulheres de ter independência econômica.

p. 132 – Patriarcado

“Não se nasce mulher, torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto” Simone de Beauvoir

A mulher e o patriarcado

A partir dos anos de 1960 – segunda onda do feminismo – o questionamento do suposto caráter natural da subordinação feminina passa a ser contestado, pelas mulheres, reconhecidas como um novo ator político coletivo. De acordo com as feministas,

a opressão incluía tudo o que as mulheres “experienciassem” como opressivo. Ao definir o político de tal maneira que acomodasse essa concepção de opressão, toda atividade que perpetuasse a dominação masculina passou a ser considerada como política. Nesse sentido, a política passava a envolver qualquer relação de poder, independentemente de estar ou não relacionada com a esfera pública (p. 134).

→ “O pessoal é político” : suas vidas cotidianas, no lar, nas relações amorosas e no âmbito familiar

→ Político é essencialmente definido como o que envolve relações de poder.

As pensadoras feministas passaram a revisar as produções disciplinares, perguntando-se como seriam diferentes se a história, a antropologia, a ciência política e, tivessem considerado relevante levar em conta o “ponto de vista feminino” (p. 135).

Com o tempo, porém, o conceito de patriarcado foi igualmente sendo questionado, sobretudo por pressupor de maneira única e universal, formas de poder que se alteram conforme o espaço e o tempo –; não se deve esquecer, entretanto, que o conceito de patriarcado tinha como objetivo demonstrar que a subordinação feminina não era natural e, portanto, passível de ser combatido.

É a partir de então que se elabora o conceito de gênero, situando a problemática das mulheres relativamente à totalidade da cultura e da sociedade; enfatizando, inclusive, o caráter político das relações entre os sexos, observando que os sistemas de significado que produzem noções de diferença entre homens e mulheres oprimem não somente elas, mas igualmente as pessoas que não se inseriam nos arranjos heteronormativos.

Nesse ínterim, o próprio sistema sexo/gênero é questionado, visualizando-se como político (relações de poder), isto é, pensar em termos de gênero articulando a sexualidade como dimensão política. A seguinte citação da feminista Judith Bulter é ilustrativa,

[...] o gênero não está para a cultura como o sexo para a natureza; ele também é o meio discursivo/cultural pelo que ‘a natureza sexuada’ ou ainda ‘um sexo natural’ é produzido e estabelecido como ‘pré-discursivo’, anterior à cultura, uma superfície politicamente neutra sobre a qual age a cultura [...] colocar a dualidade do sexo num domínio pré-discursivo é uma das maneiras pelas quais a estabilidade interna e a estrutura binária do sexo são eficazmente asseguradas (BUTLER, 2003, p. 25).

Referências bibliográficas:

MAIO, Marcos Chor. O projeto UNESCO: ciências sociais e o “credo racial brasileiro”. REVISTA USP, São Paulo, n. 46, p. 115-128, junho/agosto 2000. Disponível em: <http://www.usp.br/revistausp/46/09-marcoschor.pdf>.

PISCITELLI, Adriana. Gênero: a história de um conceito In: ALMEIDA, H. B. de; SZWAKO, J. E. (Orgs.). Diferenças, igualdade. São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2009, p. 116-148.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. “Racismo à brasileira” In: ALMEIDA, H. B. de; SZWAKO, J. E. (Orgs.). Diferenças, igualdade. São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2009, p. 70-115.

TAUIL, Rafael. Florestan Fernandes: questão racial e democracia. Revista Florestan, n. 1, São Carlos, p. 12-22, 2014. Disponível em: <http://www.revistaflorestan.ufscar.br/index.php/Florestan/article/view/10/pdf_14>.