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ADÉLIA NICOLETE QUERÔ uma reportagem maldita Romance – Peça – Espetáculo

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Análise comparativa entre o romance, a peça teatral e o espetáculo "Querô, uma reportagem maldita", de Plínio Marcos

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ADÉLIA NICOLETE

QUERÔ uma reportagem

malditaRomance – Peça – Espetáculo

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SUMÁRIO

“Juro por essa luz que me ilumina” - empenhar a palavra .................. 3

I - Romance

1.1 Estrutura ................................................................................................ 41.2 Personagens ............................................................................... 14 1.3 Geografia..................................................................................... 15

II – Adaptação .............................................................................................. 172.1 Teatralidade ................................................................................. 182.2 Geografia e Personagens ........................................................... 22

III – Espetáculo 3.1 Querô em cena .............................................................................. 24

“Cada um é cada um” – especificidades de linguagem ............................... 27

Referências bibliográficas ......................................................................... 21

“Juro por essa luz que me ilumina”Empenhar a palavra

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Em diversos depoimentos e entrevistas dados por Plínio Marcos (1935-1999) pode-se encontrar a expressão “juro por essa luz que me ilumina”, não por acaso repetida diversas vezes pelo personagem Querô, durante o relato de vida que faz a um jornalista.

Jurar pela luz que nos ilumina é jurar pela verdade “e dar fé”. É empenhar a palavra. Pode-se dizer que foi isso que fez Plínio Marcos por meio de sua obra: empenhou a palavra ao colocá-la a serviço daqueles que, na nossa sociedade, não têm voz. Fez isso nos anos 1970, principalmente, mas ainda hoje seus textos continuam iluminando verdades que teimamos não existirem. Como afirmou o autor em 1980, vinte e um anos depois de ter escrito a peça Barrela, ao verificar que o texto continuava valendo como retrato da realidade nos presídios: “é tudo culpa do país, que não evoluiu socialmente. E, se continuarmos desse jeito, essa peça vira um clássico.”

Querô, uma reportagem maldita – o romance – foi lançado em 1976 e, da mesma forma que Barrela, parece ter sido escrito recentemente, com base em alguma notícia fresca de jornal. A adaptação para teatro foi feita pelo próprio autor em 1979, mas só veio a ser encenada profissionalmente anos mais tarde pelo grupo TAPA, em São Paulo e, mais recentemente, pelo Grupo Folias D’Arte, na mesma cidade. O cinema também realizou uma versão da história, sob a direção de Carlos Cortez .

O objetivo principal do presente trabalho é fazer uma análise comparativa entre o romance, a adaptação para teatro e a encenação feita pelo Grupo Folias, sob a luz das discussões realizadas na disciplina “Texto e cena” e de outros textos auxiliares.

Agradeço a Cássia Guindo que intercedeu por mim junto ao diretor Marco Antonio Rodrigues, e a ele também, pela cessão do DVD com a gravação do espetáculo, pois não seria possível realizar uma análise satisfatória apenas com a lembrança que guardei de uma apresentação.

I – ROMANCE

“Eu escrevo histórias. Eu tenho histórias pra contar. Mas, tudo o que escrevo dá sempre teatro. Eu sempre escrevi em forma de reportagem. As

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minhas peças não têm ficção, sabe? Eu escrevo, desde Barrela, reportagens.”

Plínio Marcos

Uma reportagem maldita – Querô, recebeu o prêmio APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte) de melhor romance de 1976. Como anuncia no título, Plínio Marcos não quis fazer senão uma reportagem – ser o porta-voz, ainda que por meio de um personagem (o jornalista), da história de um menino nascido e crescido “nas quebradas do mundaréu”, na zona portuária de Santos. Optou pelo romance por estar cansado de ter suas peças censuradas. “O Querô ia ser mais uma peça de teatro. Só escrevi em forma de romance porque não achei que iria passar na censura. Tanto é que ele está adaptado para teatro.”

O linguajar dos personagens é próprio de quem viveu em prostíbulos, trabalhou no cais do porto e passou parte de seus dias no presídio. A respeito da linguagem adotada em grande parte de suas obras, objeto de censura, Plínio Marcos declarou:

“O palavrão. Eu, por essa luz que me ilumina, não fazia nenhuma pesquisa de linguagem. Escrevia como se falava entre os carregadores do mercado. Como se falava nas cadeias. Como se falava nos puteiros. Se o pessoal das faculdades de lingüística começou a usar minhas peças nas suas aulas de pesquisas, que bom! Isso era uma contribuição para o melhor entendimento entre as classes sociais.”

1.1 Estrutura

O romance-reportagem foi escrito em dez capítulos sem título, discriminados apenas por número. Nos oito primeiros a narrativa é feita na primeira pessoa pelo protagonista Querô. No capítulo nove é introduzido o personagem Jornalista e fica-se sabendo que o que se leu até ali é, na verdade, uma entrevista concedida momentos antes de um possível cerco da polícia. O depoimento de Querô é entrecortado pelos diálogos com o entrevistador. No último capítulo tem-se o desfecho, dessa vez escrito em primeira pessoa pelo Jornalista.

O autor estabeleceu praticamente um grande tema para cada capítulo. É como se a trajetória de Querô do berço ao túmulo, passasse por estações definidas que, parada a parada, acrescentassem um elemento à revolta do rapaz e, em conseqüência, determinassem seu destino.

O relato não refere a uma época determinada, e aos poucos, ao se juntarem dados que surgem ao longo da narrativa, verifica-se que a trajetória se dá na zona portuária da cidade de Santos, em São Paulo. A questão do espaço no romance será tratada no item 1.3 Geografia.

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No I Capítulo tem-se a apresentação da personagem desde o seu nascimento até aproximadamente os dez anos. Usando sempre os verbos no passado, o protagonista Querô relata as circunstâncias de sua concepção e de seu nascimento, o desconsolo da mãe e posterior suicídio pela ingestão de querosene – o que rendeu ao menino o apelido de Querosene. Fica-se sabendo que as informações a respeito da primeira infância foram dadas a ele por uma colega de sua mãe, a Ju.

Nesse capítulo é apresentada a cafetina Violeta que, apesar de ter expulsado mãe e filho do prostíbulo, acabou adotando o menino, batizando-o e dando-lhe o nome de Jerônimo (nome do santo do dia) da Piedade (sobrenome da mãe, cujo nome não é citado). A adoção custou caro ao protagonista, que pagava a “caridade” de Violeta servindo-lhe de saco de pancadas e ouvindo as humilhações constantes. Ao contrário de Ju, que não recebe maiores descrições nem irá interferir na trama, Violeta é descrita com detalhes e, apesar de não atuar concretamente na vida de Querô a partir do segundo capítulo, irá acompanhá-lo de perto e insuflar a raiva e a revolta a cada vez que for lembrada.

Por volta dos dez anos, mal acabado o terceiro ano primário (não gostava de estudar) e cansado dos maus tratos que sofria no prostíbulo, Querô toma o pedaço de pau com que Violeta o espancava e se vinga, desferindo-lhe um golpe na testa. Tendo aprendido desde cedo que “na hora do ‘vamos ver’, é cada um, cada um” (p. 16R), aproveita o tumulto e foge pelas ruas da zona portuária que, a partir dali, viria a ser o seu novo lar.

Ju não será mais vista por Querô - ao menos é o que se deduz com a frase “A Ju viu tudo com seus olhos que a terra vai comer um dia, se é que ainda não comeu.” (p. 8R) Mas o cheiro do bordel e a rua onde passou a infância ficarão impressos na memória do protagonista.

Logo no primeiro parágrafo o narrador dá o tom geral de como será a história. Quando afirma que

“Ou a gente nasce de bunda virada pra Lua, ou nasce cagado de arara. Não tem por onde. Assim é que é. Uns têm tudo logo de saída. Os outros só se estrepam. Não têm arreglo. É um puta de um jogo sujo de dar nojo.

“Eu vim na pior. Com urubu pousado na minha sorte.” (p. 7R)

tende a conduzir o leitor a uma expectativa de trajetória trágica, visto que se depreende da afirmação do primeiro parágrafo e da informação/conclusão do segundo, esta no passado, que a história já aconteceu e está sendo relatada, ou seja, o narrador concluiu, pela sua vivência, que foi destituído de sorte desde o seu nascimento. Moral da história (para o protagonista): uns nascem com sorte, outros com azar e nada pode mudar isso, por mais que se tente.

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E o autor dispõe as peças de tal forma no tabuleiro, que só vem a confirmar a primeira impressão do leitor. Querô nasce de mãe prostituta e pai desconhecido. É batizado na mesma igreja na frente da qual sua mãe se matou tão logo ele veio ao mundo, recebe nome de santo-mártir e sobrenome sugestivo: da Piedade. A esse respeito cabe um parêntese. A mãe se mata na frente da igreja e ninguém a socorre em seus estertores, nem os piedosos fiéis, nem padre ou sacristão, muito menos os transeuntes, talvez tão miseráveis quanto ela. Querô faz um relato mordaz sobre a fama da Igreja do Valongo ser conhecida como a preferida das putas. O fato de ter sido batizado só lhe dá um nome, logo abandonado pela adoção do apelido. Ou seja, a Igreja é apenas uma extensão dos prostíbulos, elemento já absorvido pela zona portuária e que não cumpre mais um possível papel de esperança ou salvação – ela mesma cenário de suicídios e descasos.

O protagonista encontrará acolhida social e espiritual na umbanda, por meio da negra Gina de Obá e de Pai Bilu de Angola, como será visto no V Capítulo.

No II Capítulo faz-se o relato das aventuras de Querô no bando do pivete Tainha, e de sua primeira prisão por roubo.

Depois de fugir da casa de Violeta, o protagonista junta-se à curriola de Tainha, vivendo de pequenos expedientes, furtos, malandragem, enfim. Querô descreve o pivete como um irmão que ele não teve, e aquela fase como a melhor de sua vida. Fase em que ninguém o chamava de Querosene, mas de Querô. E embora tenha sido boa (ou talvez por isso mesmo), foi curta e trouxe mais um ensinamento: “nas quebradas do mundaréu, na hora do ‘vamos ver’, é cada um, cada um” (p. 15R), diz Querô, ao antecipar a traição de Tainha.

Em seguida relata o assalto que culminou em sua prisão: ele, tainha e “um negrão meio pirado da cuca, um tal de Bolacha Preta” (p. 16R) planejaram atrair um gringo bêbado que vagava pelo cais e, em seguida, roubar-lhe os pertences. Querô o seduziria – já que desconfiavam de que o gringo estava à procura de sexo – e, quando o homem estivesse vulnerável, os outros dois chegariam anunciando o assalto. Assim foi feito. Acontece que foi feito um boletim de ocorrência e, ao pegarem Tainha com o relógio roubado, ele dedurou Querô, dizendo ter comprado dele:

“Me sacaneou. Ele sabia que eu, sendo menor, pegava cana leve e não ia ter como ajustar a bronca com ele. Já se ele faz isso com o Bolacha Preta, se fode. O negrão, mais cedo ou mais tarde, grampeava ele. Então, não tem tu, vai tu mesmo.” (p. 21R)

Depois da traição de Tainha, os policias chegam até Querô e o levam preso. Ele se livra da acusação alegando ter sido procurado pelo gringo, homossexual, que teria o presenteado com o relógio. Embora sem motivo, Querô continua detido por causa de possíveis antecedentes, acaba sendo torturado, confessando delitos que não cometeu sendo

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levado, finalmente, à solitária.O narrador reflete sobre os tempos que passou confinado. Segundo ele, o período

em que deixou “de ser pivete trouxa” (p. 25R). E cresceu, perdeu a ingenuidade ao perceber, finalmente, como as coisas funcionam. Constata que “essa verdade é ardida. Mas, é como é. No virador, é cada um pra si e Deus pra todos. Pros bons e pros maus. Então, não tem jeito. Dali pra frente, eu teria que me valer.” (p. 26R). Nasce nele o ódio e, pela primeira vez, reconhece em si a vontade de se vingar matando alguém, no caso, Tainha e, por extensão, Violeta, Bolacha Preta, os policias que o torturaram:

“Cobrar de todos os filhos das putas a merda que me coube na vida. Não era possível que eu tivesse culpa. Alguém me funicou. Eu não vim até ali por gosto. Não escolhi.” (p. 26R)

Nesse capítulo Querô admite que não gosta de pensar: “Pensar é doloroso. Pensar me dá gosto de sangue na boca. Me traz no nariz o cheiro da perfume que as putas da Xavier usavam. Me dá desespero. Sempre me deu.” (p. 26R) Usando o verbo no presente, o narrador afirma que até hoje não gosta e, talvez por isso, o relato à beira do cerco: uma forma de falar sem parar, para não ter tempo para pensar.

No III Capítulo, Querô narra sua passagem pelo Reformatório, a violência sofrida naquele local e o crime cometido antes da fuga.

Ao sair da delegacia, o protagonista é encaminhado ao Juiz de Menores que determina seu envio ao Reformatório: abrigo de menores infratores que passam o tempo sem que fazer, somente comendo, dormindo e arrumando encrenca uns com os outros.

Logo ao chegar, Querô reconhece alguns moleques do porto e tem de enfrentar a gozação de Cocada, um desconhecido que implica com seu apelido e se recusa a chamá-lo de Querô, insistindo no Querosene. Os dois brigam e, tendo levado a melhor, o narrador segue mais uma vez para a solitária.

O autor constrói a narrativa de tal forma que, mesmo sendo o protagonista violento, encrenqueiro e delinqüente, o leitor toma partido dele. Um argumento demonstra o caráter de Querô: “Poxa, se alguém me conta que a mãe de um cara se funicou tomando uma bosta qualquer, eu não acho graça nenhuma. Mas, aqueles filhos das putas riam, riam, riam” (p. 31R). Outros exemplos ao longo do texto ilustram a ética da personagem, cultivada e preservada em meio à degradação social. Isso e a dimensão humana trabalhada em todos os textos de Plínio Marcos, são elementos fundamentais para a identificação do leitor com o personagem.

Dessa vez o período na solitária provoca medo em Querô, tanto que chega a chamar pela mãe e, ao contrário da descrição cruel que faz dela no I Capítulo, aqui o personagem parece compreendê-la finalmente, pois encontra-se na mesma situação desesperada que

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ela à época do suicídio. “Parecia que conversava com minha mãe ali no escuro” (p. 34R). A lembrança da mãe o conforta e ele retoma a confiança, firmando para si um desejo que viria a se tornar obsessão: a posse de uma arma, para que pudesse se vingar de todos os desafetos.

Ao sair do confinamento o narrador vai limpar os banheiros com Zulu, um detido que era cupincha dos guardas e que o avisa de que à noite os meninos do grupo de Cocada pretendem violentá-lo. E isso realmente ocorre, de tal forma que Querô precisa ser levado à enfermaria, passando alguns dias lá. Esses fatos só fazem aumentar a raiva do personagem, tornando-o recluso. Um ano ele passa no reformatório até que, sendo assediado por um dos cozinheiros, seu Edgard, esfaqueia-o e aproveita o tumulto para fugir, tal qual fez quando saiu do bordel.

Na fuga mete-se no mangue e caminha dia e noite. Dorme em um estaleiro abandonado e, no dia seguinte consegue carona com um catraieiro até o mercado, onde se sente novamente em casa.

Uma sucessão de acontecimentos empurra Querô cada vez mais para o crime. Nesse Capítulo, por exemplo, é como se ele não agisse, mas reagisse e, por isso, fosse perseguido e punido. Foram os casos das provocações de Cocada e do assédio por parte de seu Edgar. Ou seja, por mais que o personagem quisesse “andar na linha”, “dar certo”, as circunstâncias o forçavam sempre à contravenção. E, com o acúmulo de motivos e de raiva por parte de Querô, o leitor já pode pressentir um desfecho violento.

No IV Capítulo o protagonista passa por cima de seus escrúpulos e consegue roupas, comida e dinheiro de um travesti.

Recém fugido do reformatório, molhado de chuva, com tosse e faminto, Querô vaga pelo cais, até que se lembra de Naná, uma “bichona louca” que trabalhava de garçom num prostíbulo. Querô a princípio resiste à idéia, o que, mais uma vez, atesta seus valores (ainda que preconceituosos) e sua ética:

“Vacilei. Eu não gostava de gorgota, nem de veado. Não gosto mesmo. Juro por essa luz que me ilumina. Me dava nojo ter que pedir socorro pra veado. Parecia o fim da picada. Pra mim, pegava mal eu ferrar um sacana no reformatório por ele estar cobiçando meu rabo e, depois de fugir como um filho da puta, ter que ir comer rabo de bicha”. (p. 43R)

As orações “Não gosto mesmo, juro por essa luz que me ilumina”, no presente, demonstram que o personagem continua não gostando de veado, mesmo tendo passado certo tempo, mas, acima de tudo, que o que vai ser relatado a seguir ocorreu por pura necessidade (mais uma vez) do que por escolha.

A tosse, o cansaço e a fome vencem a vergonha e o narrador procura Naná no puteiro de Dona Quita. Na sordidez do quarto, Querô responde com violência as investidas

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e carícias do travesti que, apesar dos tapas e empurrões providencia-lhe um sanduíche e oferece todo seu dinheiro – 100 cruzeiros – em troca de sexo com ele. O fato de Naná ter conseguido excitar Querô, parece ter sido o limite para ele, que reage surrando o rapaz até deixá-lo prostrado, e destruindo todo o quarto em busca do dinheiro. Quando encontra, veste-se com as únicas roupas de Naná que parecem de homem, come lentamente o sanduíche e sai. Percebe que, embora tenha feito estardalhaço, ninguém foi ver o que acontecia com o travesti. Mais uma vez constata que “Ninguém por ninguém, nunca. Eu é que sei.” (p. 49R)

Ao final percebe-se o quanto Querô está insensível à dor alheia, e também o quanto incorporou o que concluiu na solitária a respeito de valer-se por si mesmo e mais ninguém: “Mas, que se foda! Ali eu fiz a minha parte. Fui embora.” A parte de Querô, ali, foi a de explorador e torturador, mas algumas frases dão a entender o quanto esse papel lhe era incômodo: quando entrou no bordel e ficou sob a mira de todos os presentes “Eu senti a mesma vergonha que senti no Reformatório, quando me enrabaram.” (p. 44R); quando estava no quarto com Naná “Eu estava com um puta nojo daquele puto e de mim mesmo” (p. 48R); e depois de ter surrado o travesti e destruído o quarto “Eu não estava muito legal. Me sentia jururu.” (p. 48R)

No V Capítulo Querô adquire uma dívida de jogo e sofre achaque de dois policiais.Com o dinheiro roubado de Naná, Querô aluga um quarto e pode, ao menos por

algum tempo, comer e dormir. Sozinho, vive de biscates, de maneira discreta, de modo a não chamar a atenção. À noite os pesadelos com a curra, os ratos da solitária, Violeta e Naná são constantes. De dia, conquista a amizade da negra Gina de Obá, que o leva ao terreiro de Pai Bilu de Angola onde Querô é bem recebido por todos e se sente acolhido: “Pai Bilu de Angola ia por mim e dizia sempre que eu ia me aplumar na vida. Eu estava botando fé” (p. 52R). Chega até a nutrir esperanças de conquistar uma moça, a Lica. Isso faz com que ele se cuide, fique mais leve, sociável, menos rancoroso, como pode-se constatar com a frase “Parei de pensar tanto em arrumar um revólver, pra pensar em roupa” (p. 52R).

Certa noite em que haveria festa no terreiro, Querô estava sem dinheiro até pro ônibus e, não conseguindo biscate nem encontrando alguém para emprestar, meteu-se num jogo de sinuca com um crioulo forte chamado Brandão e, perdendo a aposta, contrai dívida com ele, a ser paga naquela mesma noite. Saindo do boteco, sem perspectiva de conseguir o dinheiro, Querô é abordado por Sarará e Nelsão, dois policiais que se propõe a livrar o narrador da dívida, desde que fique “sócios” deles e lhes consiga 350 “mangos” por semana. A negociação toda é feita na base das pancadas desferidas por Nelsão, que abandona Querô semi desfalecido numa poça d’água.

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Ao voltar à Nau de Ouro para dizer a Brandão que não conseguira o dinheiro, Querô fica sabendo que dois policiais levaram o crioulo preso. A sociedade entre o protagonista e os dois policiais estava selada.

É como se no V Capítulo, metade da trajetória, Querô passasse à vida adulta, virasse homem, não por vontade própria, mais uma vez, mas por força do que é exigido dele. Daí em diante, todas as suas atitudes terão a ver com a dívida imposta pelos policiais e a tentativa de solução desse conflito.

O VI Capítulo dá prosseguimento ao assunto do capítulo anterior. Querô não paga a dívida e, além de levar nova surra tem a dívida aumentada.

Sem ânimo para nada, o personagem prostra-se em seu quarto, sonhando com Lica, desejando ver Pai Bilu, desabafar e chorar com o Santo, embora saiba que dificilmente teria direito a isso: “Mas que nada. Nesse tempo, eu já tinha janela pra saber que nem Santo, nem o caralho a quatro poderia me valer” (p. 63R).

Durante o tempo de prostração, Querô nutre o desejo de matar Sarará e Nelsão e não identifica por eles a sensação de raiva. Reconhece que sempre quis matar, resolver as coisas na bala, torturar aqueles que o tinham traído e prejudicado. Mas pelos policiais o sentimento era outro, como identifica no trecho a seguir:

“Mas dos ratos, era diferente. Desses porcos, nojentos, perebentos, sifilíticos, eu não tinha raiva. Nem um pouco de raiva. Eu conheço o jogo. Eles fazem a parte deles. E assim que é. Pegam um otário e cafetinam. Tem disso porque tem. Sempre teve. Sempre vai ter. Só que nesse lance o otário era eu. (...) Quanto mais fudido o cara, melhor para eles. Eles só fodem quem está fudido. (...) Por isso, só por isso, eu não tinha raiva. Se fosse raiva que eu tivesse daqueles dois tiras escrotos, eu segurava. Fazia sair no mijo. (...) Carregava, como sempre carreguei a bronca de todos os que me sacanearam por toda a puta da minha vida. Mas, daqueles dois desgraçados, eu tinha medo. Um puta medo.” (p. 64R)

Esse trecho pode ser relacionado àquele em que o personagem sai do bordel de Dona Quita, depois de ter surrado e roubado Naná, afirma que ali, ele fez a sua parte. Ou seja, ali, Naná foi o otário, porque o jogo era aquele. O jogo continua valendo sempre que se está na posição de comando. Quando a situação vira, e quando a raiva vira medo, a única maneira de sair do esquema é eliminando a outra parte. Querô sabe que precisa matar os policias para não ser empregado deles, roubando e dedurando para favorecê-los. Em relação a isso, mais uma demonstração da ética do personagem: “Tenho nojo de cagueta. Sou sujo com cagueta. Me enrabaram, me fuderam a alma, mas eu sempre agüentei. Sempre fui a pedra noventa. Nem quando eu era cagataco. Nunca.” (p. 66R)

Mas como matar os “ratos” sem revólver? Seria preciso comprar um. Levantar a grana na rua, dos mais diferentes modos. Mas Querô estava paralisado, doente de um medo plenamente justificável. A esse respeito o personagem faz uma reflexão no presente:

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“Quem tem cu tem medo. E eu não sou melhor do que ninguém. Sou um bosta. Um bosta. Um puta de um bosta. Um bosta fudido que nunca foi porra nenhuma em lugar nenhum. Que sempre teve medo. Um medo fudido de tudo e de todos. Um medo que só ali, naquela hora, eu sacava que tinha. Eu só tive, em toda a puta da minha vida, raiva e medo. E não mandei a raiva pra frente de medo. De medo. De medo. De um puta medo.” (p. 67R)

Quando se sabe, no IX Capítulo, que se trata de um relato à beira do cerco, esse comentário ganha dimensão de sabedoria, de luz que ilumina o passado, de modo a proporcionar o entendimento. E o reconhecimento disso talvez seja o que dê, finalmente, a coragem necessária ao personagem para o embate final com a polícia – embate que ele tanto anseia, temendo até dormir e não conseguir receber os “ratos” a bala.

No dia combinado para o pagamento, Querô não vai ao encontro dos policiais, mas sabe que uma hora ou outra, será encontrado. A certa altura comenta, outra vez no presente, algo que pode ser um indicador de seu final trágico: “Eu ia ser feito filho de santo de Pai Bilu. Ia. Agora, não vou ser mais porra nenhuma. Vou acabar tão filho da puta como comecei.”

Estranhando sua ausência na festa, Gina procura-o em seu quarto na segunda-feira e o encontra doente. Cuida dele, alimenta-o quando, de repente, Sarará e Nelsão invadem o quarto, estapeando Gina, batendo em Querô e intimando-o a conseguir um milhão até terça à noite.

No Capítulo VII Querô consegue a arma que tanto queria e comete seu primeiro assassinato.

Depois da partida dos policiais, Querô sai sem rumo pelas ruas do bairro. Passa quase uma semana a esmo, decidido a não pagar a dívida. Certa noite, abrigando-se numa galera vazia, reencontra Zulu, o colega do reformatório, botando banca de traficante. Os dois se estranham, se provocam até que Zulu se impõe, mostrando o revólver.

O autor trabalha a situação num crescendo tal, que culmina na apresentação da arma tão desejada por Querô. O jogo vira e o protagonista ganha a confiança de Zulu até o ponto em que se apodera do revólver, para não mais devolvê-lo. Mas não sem uma ponta de insegurança:

“A arma que eu sempre quis já era minha. Muito minha. Mas, para ser minha mesmo, eu precisava desgraçar o crioulo. E desgraça pouca é besteira. Aquela ali era a hora da verdade. Eu, que sempre acreditei que de rama na mão ia fazer, muita miséria, estava vacilando. E não podia. Ou danava o crioulo, ou mijava pra trás e ia ser um monte de merda pra sempre.” (p. 78R)

Querô vence a dúvida e o medo e atira em Zulu, rouba-lhe o dinheiro e a maconha e sai, confiante, “pro que desse e viesse” (p. 80R)

No VIII Capítulo o personagem acerta contas com Sarará e Nelsão e é alvejado.

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A morte de Zulu pesa nas costas de Querô, que tenta aliviar a sensação fumando maconha em seu quarto, e imaginando eliminar os “ratos”.

Sai para comprar balas de um intrujão, Guegué Maresia, e decide procurar os policiais. Encontra-os num cabaré da rua Xavier e avisa que foi levar o que era deles. Como Querô estava alterado por causa da droga, se afoba e perde o controle da situação. Dispara e acerta em Nelsão, mas, apesar de acertar três tiros em Sarará e matá-lo, é também alvejado por ele no ombro e na perna.

Querô atira para cima a fim de assustar e foge pela Xavier. Com muita dor, fuma mais um cigarro, enquanto anda pelo cais para não ser visto pela polícia.

O IX Capítulo revela, finalmente, que a narrativa é o depoimento de Querô a um jornalista, a pedido de Pai Bilu.

Não fica claro quanto tempo se passou entre o assassinato dos policiais e a entrevista. Somente aos poucos se fica sabendo que estão na floresta, local em que se faziam os trabalhos de macumba dos amigos de Querô – que o encaminharam para lá, às escondidas.

O jornalista diz a Querô: “Se pudesse por tudo o que você falou [no jornal/livro] eu punha” (p. 87R). Por essa afirmação pode-se imaginar que nem toda a história do personagem foi ali exposta. É como se o jornalista/autor tivesse feito uma triagem das informações e selecionado o que de mais importante ou revelador houvesse. Talvez com o intuito de mostrar um lado que os jornais não mostram, como opina Querô: “No jornal, a gente pinta de perigosão. Matador. Fudido.” (p. 87R) E sabemos, pela leitura de seu depoimento, que as coisas são diferentes: “Eu nunca fiz mal a puto nenhum. Mas só me fudi, sempre me fudi. Não dei sorte.” (p. 88R)

Tendo sangrado muito e não tendo recebido cuidados médicos, Querô está muito mal. Tem febre, sede, sono. Nos delírios causados pela febre ele mistura os assuntos, repete coisas que já falou, mas ainda conserva um resto de lucidez, como por exemplo quando sabe que seu destino está traçado: se sair vivo, será preso e isso será tão ruim quanto a morte.

Não se considera matador, pois matou somente quem merecia, não matou a esmo. Sabe que não tem chance, mas ainda nutre um restinho de esperança, logo descartada:

“Mas, se o Pai Bilu e tal e coisa, ele é bem chegado nos Santos, às vezes ele está sabendo das coisas e não diz nada e vai se mexendo. Ele é cheio de mumunha. Então, sei lá, se tivesse arreglo. Que é que tu acha que iam fazer comigo? Cana dura.” (p. 90R)

Recapitula a morte de Zulu, seu rosto depois do tiro. Relembra o passado no bordel de violeta. Logo depois orgulha-se de ter matado Sarará e Nelsão, diz ser mau mesmo e que

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os jornais tem razão. Diz que ia fazer e acontecer se a perna não doesse tanto.Ambos esperam a chegada de Gina com os remédios. Já entardeceu. Querô teme

pela segurança de Gina e Pai Bilu. Teme adormecer e não conseguir encarar os policias. Pede que o jornalista o acorde se dormir. Tem febre, tem frio. Diz estar vendo o fantasma de Zulu. Fala, fala, até adormecer ou morrer, já que o autor deixa essa questão em aberto.

O X Capítulo é narrado em primeira pessoa pelo Jornalista, que relata o que acontecera depois.

Ele conta que deixou Querô adormecer e rezou por ele e seus fantasmas. Foi embora com as gravações, atravessando o mato. Instantes depois ouviu as sirenes da polícia. Estacionaram próximo dali e desceram com Gina e Pai Bilu. Tiros foram ouvidos. “Acabara a caçada ao perigoso bandido Jerônimo da Piedade, vulgo Querô ou Querosene” (p. 97R).

Policiais voltaram do mato e partiram. Um tempo e saem Pai Bilu, seguido por Gina. O Jornalista ficou por ali até vê-los desaparecerem na curva da estrada, já de noite.

Qual o objetivo do jornalista? Nem ele sabia ao certo. Sabia apenas que gostaria de ajudar:

_“Tu acha que pode?_ “Acho que não_ “Então, qual é?

_ “A gente tenta, Querô. Eu tentei, a Gina tentou, o Pai Bilu deve estar tentando.” (p. 90R)

Qual o objetivo do autor com o romance e com a peça? Talvez Plínio Marcos possa responder, ao menos em parte, essa questão:

“ Eu, há dezessete anos [1973], sou um dramaturgo. Há dezessete anos pago o preço de nunca escrever para agradar os poderosos. Há dezessete anos tenho minha peça de estréia [Barrela] proibida. A solidão, a miséria, nada me abateu, nem me desviou do meu caminho de crítico da sociedade, de repórter incômodo e até provocador. Eu estou no campo. Não corro. Não saio. E pago qualquer preço pela pátria do meu povo.”

1.2 Personagens

A ação do romance é centrada em Querô, embora circule por diversos ambientes e

se relacione com um grande número de personagens.No cabaré, Violeta é a figura de destaque. A prostituta Ju, amiga da mãe de Querô, é

apenas citada como alguém que contou ao menino as circunstâncias de sua concepção, do seu nascimento, do suicídio da mãe e dos primeiros anos.

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Os primeiros delitos, depois de fugir de casa, Querô faz no bando do personagem

Tainha, descrito com detalhes. Bolacha Preta também participa de algumas ações e tem

certo destaque, assim como o gringo loiro. Os policiais e o delegado tem aparições

circunstanciais, assim como Kioto Japonês, para quem o protagonista fazia bicos para

ganhar dinheiro.No reformatório o personagem tem contato com Cocada, um antagonista, com

Zulu, de quem viria a roubar o revólver anos mais tarde, com diversos pivetes, apenas

citados, e com seu Edgar, o cozinheiro que o assedia.Ao fugir do reformatório procura o puteiro de Dona Quita, personagem secundária

e encontra-se com Naná, o travesti de quem Querô rouba roupas, dinheiro e comida. Em seguida, no quarto de pensão, conhece Gina de Obá, uma negra que simpatiza com ele e o apresenta a Pai Bilu de Angola, mais citado no depoimento do que propriamente um personagem que age diretamente, como Gina. Lica, a menina por quem Querô se apaixona também é apenas citada.

Na sinuca, o protagonista se envolve com Brandão e, em conseqüência da dívida, com Sarará e Nelsão, que serão seus algozes até quase o final do romance. O intrujão Guegué Maresia é quem vende as balas do revólver a Querô, e tem participação apenas no capítulo VIII. Ao final, conhecemos o Jornalista, responsável pela “reportagem maldita”.

São personagens fruto do meio em que vivem. A princípio apenas o núcleo do terreiro de umbanda parece ser aliado ao protagonista. Os demais só confirmam as reflexões iniciais de Querô de que se trata de “um puta de um jogo sujo de dar nojo” (p. 7R). São personagens “desagradáveis”, mas plenamente justificáveis, como afirma a crítica e pesquisadora Ilka Marinho Zanotto: “Quando o autor, condoído com a situação dos desvalidos, retrata-as [as personagens] sem retoque em suas peças: elas não podem, portanto, ser agradáveis”.

1.3 Geografia

Rua Xavier da Silveira, Valongo, Macuco, Cemitério de Paquetá, Itapema, mangue, mercado, cais. No romance Querô – uma reportagem maldita, Plínio Marcos mapeia a região portuária da cidade de Santos em São Paulo, que conhecia tão bem. Ao mapeá-la, torna-a universal na medida em que todas as grandes cidades do mundo têm também as zonas marginalizadas.

“O cheiro de perfume das putas da Xavier” a que o protagonista volta e meia se remete é o cheiro de perfume barato que imaginamos pertencer a todas as prostitutas de

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rua, desumanizadas, em qualquer parte do mundo. O cais do porto, a zona do mercado onde pivetes e homens feitos vivem de biscates, onde o contrabando é freqüente graças à cumplicidade da polícia, também.

Em quase todo o planeta, desde antes dos anos 1970 quando o romance foi escrito e, infelizmente até hoje, existem policiais que torturam em delegacias superlotadas, depósitos de menores infratores, gente que não tem muita certeza se é gente mesmo, pois vive em condições sub humanas.

Massaud Moisés quando aborda a questão do espaço no romance aponta que “a freqüência e a intensidade e densidade com que o lugar geográfico se impõe no conjunto de uma obra ficcional está em função de suas outras características”. No caso, o romance em questão não é sobre uma cidade específica, mas sobre um personagem. O autor determinou que ele nasce, cresce e morre em determinado local, existente no mapa e, ao analisarmos a obra, podemos significar esse território. Litoral, mangue, margem e porto acabam constituindo uma geografia que complementa e dá sustentação à trajetória de Querô. Um estar à beira, à margem, às portas da saída para o mar e a distância, mas uma saída que nunca acontece, o salto que nunca é dado, a superação que nunca se realiza por força das circunstâncias, do contexto. A zona portuária é sua prisão tanto quando o reformatório. Tanto que, a certa altura, ele tenta ir para uma festa que acontece na mata, e não consegue sair. Só consegue chegar à floresta - ao mato, como ele diz - à beira da morte (mais uma vez à beira...).

II– ADAPTAÇÃO

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Três anos depois de ter escrito o romance Querô, Plínio Marcos o adaptou para

teatro. Suas peças continuavam sendo censuradas, principalmente devido ao linguajar. O país permanecia sob o regime ditatorial e fazer teatro era uma forma de resistência.

Na transposição da literatura para o teatro ocorreu a eliminação de alguns personagens, a introdução e aglutinação de outros, e também a ação foi deslocada da cidade de Santos para um território indeterminado. Pode-se dizer que houve um processo de transcriação teatral, para utilizar a terminologia proposta pela pesquisadora Linei Hirsch. O autor de Querô adotou alguns procedimentos quando da passagem da linguagem literária para a teatral que, segundo a pesquisadora, fazem parte do conjunto de ações próprio da transcriação:

- eliminação: exclusão de alguns elementos da obra narrativa. No caso do romance em questão, Plínio Marcos elimina a localização geográfica; a passagem pelo reformatório é apenas citada na peça, assim como o assalto ao gringo; vários personagens do romance não estão presentes na peça; várias expressões repetidas pelo protagonista, que se tornam sua marca e identificam seus traumas, como por exemplo “o cheiro do perfume das putas da Xavier”, “juro por essa luz que me ilumina”, ou os impropérios lançados à lembrança de Violeta, praticamente não são utilizadas na peça;

- condensação: diminuição, resumo especialmente de fatos. Na peça Querô, o batizado do protagonista na igreja é eliminado e transforma-se num ritual feito pelas prostitutas no próprio cabaré. O personagem Tainha, junta-se ao personagem Zulu, do romance, assumindo também parte de sua função, por exemplo;

- fragmentação: extrai uma unidade da obra base e a fraciona, redistribuindo-a pela obra dramática. É o que faz o autor quando escolhe o conflito entre Querô e os policiais Sarará e Nelsão como detonador da ação na peça

- associação: une episódios que se encontram em capítulos diferentes, alterando a

trama sem alterar a fábula-base. Isso ocorre, por exemplo, quando Querô narra ao

Repórter passagens que se encontram em momentos diferentes no romance.

Se no romance a narrativa apresenta a trajetória cronológica do personagem do nascimento à morte, na peça o autor prioriza a fase “adulta” de Querô – ainda que ele seja de menor idade. Escrita num bloco único, sem divisão determinada de cenas, o texto começa com o tiroteio entre Querô, Nelsão e Sarará num cabaré. Logo em seguida fica-se sabendo que se trata de uma entrevista à beira da morte, depois representa-se a cena em que a mãe de Querô revela estar grávida e assim por diante. Ou seja, o autor opta pelo princípio da descontinuidade.

Paralelamente a essa descontinuidade, tem-se o recurso da fragmentação (usado aqui em sentido diferente daquele da transcriação). As situações apresentadas não tem, necessariamente, um começo-meio-fim determinados, tampouco são estanques. Os

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fragmentos invadem uns aos outros se valendo, quando muito, da luz como indicador de mudança.

Músicas foram criadas com função de ambientação e também narração.Cada um desses elementos será mais detalhadamente comentado nos tópicos a

seguir.

2.1 – Teatralidade

Se o romance adota o recurso dos capítulos para abordar a trajetória de Querô, a

adaptação teatral não estabelece divisão clara entre as diversas situações vividas pelo personagem, embora em algumas rubricas se utilize o termo “cena”.

Plínio Marcos opta pelo gênero épico, como pode ser identificado tão logo o Repórter se manifesta, “dirigindo-se ao público, em tom de narrativa”. Primeiramente apresenta a situação comentando: “São milhares de menores abandonados que perambulam pelas ruas da cidade onde moro.” No terço final de sua fala esclarece do que trata sua participação e a própria peça:

“Sabia que lá [no cabaré] um menor de idade matara um policial e ferira outro. E era o bastante para eu não me interessar pelo assunto. Porém (e sempre tem um porém), o chefe de reportagem do jornal onde eu trabalho me escalou para fazer a cobertura do caso. Foi então que, por dever de ofício, eu comecei a escrever essa reportagem maldita” (p. 237P)

O que, no romance, foi guardado para o final, garantindo o envolvimento integral

do leitor com o personagem e sua trajetória, na peça é revelado no início, de modo que o espectador possa acompanhar de maneira não dramática e, portanto, criticamente, alguns dos passos e descompassos de Querô. Essa opção do autor, assim como a de alterar a ordem dos acontecimentos, parecem ser o que diferencia mais radicalmente o romance da peça: a posição ocupada pelo leitor/espectador diante da obra. Pois, como nos diz Ryngaert a respeito do teatro épico desenvolvido por Brecht, e que pode ser aplicado em Querô: “o efeito de montagem, o ‘desenrolar sinuoso’ do enredo que se processa por ‘saltos’ tem por objeto colocar o espectador perante algo e fazê-lo reagir, mais do que deixá-lo à mercê dos sentimentos.” (RYNGAERT, 1995, p. 16) O fato de somente o Repórter falar diretamente ao público reforça o caráter de reportagem, de ser ele o porta-voz, o narrador/condutor da ação.

Outro recurso épico adotado por Plínio Marcos foram as canções. A primeira, “A

pomba roxa ardente”, logo na abertura da peça, situa o espectador no ambiente do cabaré e do submundo em que a trama se desenvolverá. A segunda é interpretada por Leda, grávida de Querô, e se presta à argumentação da personagem em favor da vida do filho, contra os

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apelos das colegas para que aborte. Mais à frente a personagem conversará com o filho, numa visão de Querô, usando elementos da canção. Próximo ao final da peça, a cantora do cabaré repetirá a canção inicial, numa retomada/repetição da primeira cena.

As rubricas, entre parênteses, em itálico, e geralmente em tom informal, determinam aspectos cenográficos: “Um cabaré de baixa categoria” (p. 234P), “Luz acende num quarto imundo e mal iluminado” (p. 237P), “No outro canto do palco aparece Leda, sentada diante de um espelho cheio de lâmpadas, como de um camarim. Ela está muito bem vestida e arrumada” (p. 256P); psicológicos: “assustado”, “carinhoso”, “bravo”, “a mulher está muito nervosa” (p. 258P), e até relativos à encenação: “Entram Sarará e Nelsão. Querô se encolhe. Ju para de chorar e fica na frente de Querô” (p. 260P), “Sarará contém a Ju, torcendo-lhe o braço” (p. 261P).

Como foi dito anteriormente, o autor não determina a divisão em cenas, mas podem-se delimitar sem muito esforço as situações abordadas. Uma possível sequência se ações, baseada nas mudanças de cenário ou no núcleo da situação seria:

1) Cabaré – Querô mata Nelsão, fere Sarará e é baleado - p. 234P2) Repórter, em narrativa ao público, faz uma espécie de prólogo – p. 237P3) Esconderijo – Querô inicia depoimento ao Repórter – p. 237P4) Puteiro de Violeta – gravidez de Leda, reação de Violeta e das colegas – p. 242P5) Sarará e Nelsão abordam Querô pelo pretenso roubo de um relógio. Querô teria

sido denunciado pelo amigo Tainha – p. 244P5b) Querô tira satisfação com tainha sobre a denúncia – p. 246P5) Querô assume o roubo diante de Sarará e Nelsão e é achacado por eles – p. 247P6) Puteiro – Leda decide ter o filho e canta o desejo de ter alguém dela e por ela. O

suicídio de Leda, a adoção de Querô por Violeta, que termina por entregá-lo a um suposto juiz de menores – p. 248P

7) Delegacia – Delegado interroga e detem Querô pelo roubo do relógio- p. 254P7b) Repórter descreve a passagem de Querô pelo reformatório –p. 255P8) Sequência da entrevista de Querô ao Repórter – p. 255P8b) Querô tem visão com a mãe – p. 256P8) Continuação da entrevista – p. 258P9) Conversa entre Querô e a prostituta Ju, depois que ele foge do reformatório.

Sarará e Nelsão aparecem e propõem não deter Querô em troca de favores financeiros – p. 258P

10) Acerto de contas entre Querô e Tainha. Querô rouba o revólver e mata o pivete

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– p. 262P11) Cabaré – retomada da situação 1 com acréscimo de informações – p. 267P12) Querô conversa com Ju 0 p. 270P13)Último trecho da entrevista – p. 271P14) Sarará liquida Querô – p. 272P15) Epílogo - última narrativa do Repórter – p. 273P

A passagem dos item 1 para o 2, 2 para o 3, e deste para o 4 se dão por meio da luz. No primeiro caso a “luz apaga no cabaré e acende no repórter” (p. 237P). No segundo, a “luz acende num quarto imundo e mal iluminado” (p. 237P) e, no terceiro, “luz apaga no Querô e no Repórter e acende no puteiro da Violeta” (p. 241P).

Algo diferente ocorre na passagem do item 4 para o item 5, quando a ação passa da representação dramática da revelação da gravidez de Leda e a reação de Violeta imediatamente para a invasão do cabaré por Sarará e Nelsão à procura de Querô:

“Explode música. As mulheres dançam. Ouvem-se tiros fora de cena. A música para. As mulheres ficam imóveis. Querô entra no palco perseguido pelo Nelsão, pelo Sarará e por outros homens. (...)” (p. 244P) (O grifo é nosso)

O elemento de ligação, no caso, é o chamado “congelamento” da cena anterior. O item 4 era uma representação do passado, anterior ao nascimento do protagonista. O item 5 também pertence ao passado e representa a primeira detenção de Querô. Plínio Marcos interrompe a ação do puteiro, imobilizando os personagens até que a detenção de Querô ocorra, numa espécie de primeiro plano. Um outro recurso é a entrada repentina do protagonista, o que também constitui um fator de interrupção.

O item 5 pode ser subdividido em três blocos. O primeiro é a detenção devido à denúncia de Tainha. A passagem para o segundo bloco (5b) se dá novamente pela luz, que pisca, e pela caminhada de Querô até o meio do palco, onde está Tainha. Os dois conversam. A luz pisca novamente e sinaliza o retorno para a situação 5. Dessa vez os policiais vão até Querô, depois da saída de Tainha. Tudo isso ocorreu no referido primeiro plano da cena.

As dançarinas que estavam “congeladas” retomam a dança quando a música explode novamente e os policias deixam a cena. Mas agora há um interregno onde Querô questiona a mãe sobre o porquê de seu nascimento. Querô sai, a música para e começa o item 6 que relata vários fatos do passado, sem preocupação com a passagem de tempo real. Nele são abordados o nascimento de Querô, a morte de Leda, o batizado ritual do protagonista e a entrega de Querô a um juiz. Essa entrega se dá sem a presença do protagonista, e depois que “a luz apaga nas mulheres e acende num senhor com ar

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severo” (p. 253P).

As próximas passagens, do item 6 até o item 11, se dão novamente com o auxílio d a iluminação. Depois que Violeta oferece Querô ao juiz, a luz apaga nela e o homem se transforma no delegado que vai deter Querô. A passagem para o item 7b ocorre quando a “luz apaga no delegado e acende no repórter, que se dirige ao público” (p. 255P). Em seguida, a luz apaga no repórter para acender na cama onde Querô está deitado, item 8. A conversa com o entrevistador o faz lembrar de quando via o fantasma da mãe. Essa lembrança encaminha o início do item 8b, auxiliada pela luz que começa a piscar e a girar (p. 256P). Esse mesmo recurso marca o retorno à entrevista (8), momento em que “Leda vai sumindo” e “Querô, delirando, vai se afastando até se deitar na cama” (p. 258P).

Querô se lembra de quando acabara de fugir do reformatório e fora procurar Ju, item 9. Essa passagem se dá quando a “luz acende no quarto de Ju” (p.258). Depois que Sarará e Nelsão deixam o quarto, novamente a “luz apaga na Ju e acende no Tainha” e “Querô se aproxima” (p. 262P), é a passagem para o item 10 que segue até a morte de Tainha:

“Luz pisca e o Tainha vai caindo lentamente, com os olhos arregalados. Quando chega no chão, luz volta ao normal. Querô se abaixa junto dele, recolhe o saco plástico [com a droga]. Vai sair. Volta. Fecha os olhos de Tainha. Luz apaga no Querô e no Tainha e abre no cabaré (...)” (p. 267P)

Uma elipse se faz da saída de Querô à ida ao cabaré acertar contas com os policiais

(item 11). A essa retomada do item 1, Plínio Marcos acrescenta a presença de Leda nas visões de Querô. Ela canta, seduz o personagem, ri. Querô mata Nelsão e Sarará, depois sai. Nesse momento “luz apaga no cabaré e acende na cena do Querô com Ju” (p. 270P), item 12. A passagem para o próximo item se dá tão somente com o caminhar de Querô, delirante, até a cama onde concede a entrevista. Leda ressurge, assim como “Violeta, Nelsão, Tainha, as mulheres, num grande balé obsessor que atormenta Querô” (p. 271P). Vale notar a interferência física do Repórter, que quer segurar Querô quando ele tenta abraçar Leda (que só ele vê). Nesse momento o delírio deixa de ser narrado para ser representado cenicamente e vemos a luta de Querô com seus fantasmas. Terminado o balé, a entrevista caminha para o seu final com a morte de Querô (item 13). O Repórter vai para a boca de cena para que Sarará e outros homens torturem Ju e liquidem o protagonista (item 14). Depois da saída dos homens, com Ju soluçando e Querô morto, Repórter se dirige ao público para a narrativa final.

Com esse apanhado percebe-se que os deslocamentos físicos no palco acrescidos de efeitos de iluminação constituem os principais elementos a conduzir as mudanças de

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tempo e espaço na cena. Nota-se que o autor não se preocupou em determinar didaticamente as passagens nem marcar de modo óbvio o início ou o final das situações. O todo é construído pelo espectador na junção dos fragmentos. Nesse caso as elipses não constituem ruídos, são, antes, elementos de intensa teatralidade por meio de seu dinamismo e da economia do texto, dispensado de detalhes inúteis. É como se no romance, Plínio Marcos nos apresentasse um panorama da trajetória de Querô e, na peça, dispusesse as cenas de acordo com uma pré-seleção seguida de montagem.

2.2 Geografia e Personagens

Quanto à geografia, o autor optou por não localizar a ação num território determinado. Os personagens circulam pelo cabaré, pelo puteiro de Violeta, uma delegacia, o quarto de Querô ou de Ju. No mais, os espaços são definidos como pontos no palco, ora no canto, ora no centro, ora à frente. Personagens que, como sabemos, circulam em qualquer território do mundo.

No romance, em geral, há mais tempo para que o território se estenda ao longo da trama. É assim que acontece no romance Querô, na medida em que a cada capítulo a cidade é percorrida pelo protagonista. Na peça não há tanto tempo para isso e a geografia se torna dispensável, pois a ação fica centrada na personagem.

Na transcriação teatral do romance Querô houve uma série de modificações em relação aos personagens.

Embora o protagonista e seu depoimento ao Repórter tenham se mantido como condutores da narrativa, esse último ganhou destaque e status de narrador, falando diretamente ao público. Quem o enviou para a reportagem foi seu chefe de redação e não mais Pai Bilu de Angola, como no romance.

Querô, de Jerônimo da Piedade, vira Jerônimo da Paixão na peça, remetendo, de certa forma, à paixão de Cristo, seus sofrimentos e martírio.

A mãe de Querô, que no romance é apenas citada, ganha o nome de Leda, tem o

sobrenome modificado e vira personagem. Com isso as circunstâncias do nascimento do

protagonista viram cena e surge, inclusive, um coro de prostitutas. Ju, a amiga da mãe de

Querô também ganha vida e passa a acompanhá-lo em diversos momentos de sua

trajetória. É ela e não Gina de Obá quem leva o Repórter a Querô.

Violeta se mantém como madrinha e vilã do personagem. Os policiais Sarará e

Nelsão resumem em si uma série de outros policiais corruptos e corruptores presentes no

romance.

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E, como foi dito anteriormente, Zulu, o colega do reformatório que, mais tarde, irá

“fornecer” o revólver a Querô, funde-se a Tainha, o pivete que liderava um bando no cais e

denunciou o protagonista pelo roubo do gringo. Tainha, na peça, é o colega traidor e

também o traficante roubado.

Dona Quita, o travesti Naná, Gina e Pai Bilu, Brandão da sinuca, o intrujão Guegué

Maresia, seu Edgar e os pivetes do reformatório e vários outros personagens são eliminados

no processo de transcriação.

III - ESPETÁCULO

O grupo Folias D’Arte iniciou suas atividades em 1997 e, desde então, tem merecido destaque tanto por seus espetáculos quanto por sua atuação social e política no meio teatral e na comunidade onde instalou seu galpão: o bairro de Santa Cecília, em São Paulo. Se hoje não há mais censura política, instalou-se uma outra censura também intensa: a econômica. As produções devem atender ao que o mercado estabelece, caso contrário não podem ser viabilizadas por meio das leis de incentivo. Os custos de produção, sempre altos, determinam, muitas vezes, que se formem coletivos de criação, dividindo as despesas e, raramente, os lucros com a montagem.

Querô – uma reportagem maldita estreou em janeiro de 2009 e permaneceu em cartaz até princípio de maio do mesmo ano, sob a direção de Marco Antonio Rodrigues. Diferente de outras montagens do grupo, esta surgiu de uma oficina para cerca de 400 interessados que, depois do período de curso, passaram por uma triagem com vistas ao espetáculo. Como se sabe, o texto original de Plínio Marcos tem poucos personagens. Para atender ao maior número de alunos-atores possível, optou-se pela seleção de cerca de 40 intérpretes. Ninguém receberia cachê, o objetivo era a montagem e a experiência da

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temporada. As despesas ficariam a cargo do Folias.O grupo se dividiu em coro e em quatro grupos de protagonistas: a cada sessão

semanal um grupo diferente representaria Querô, Leda, Violeta, Ju, Tainha e os policiais. Ainda que a solução possa ter sido de caráter prático, pode-se encontrar um sentido mais amplo: a trajetória desses personagens é comum a um sem número de habitantes da metrópole. Revezar os atores que os interpretam é revelar essa multiplicidade de Querôs, de Ledas, de policiais corruptos. Muda-se o rosto, a cor, a voz, mas o perfil é exatamente o mesmo. A máxima do “cada um é cada um” pode ser substituída pelo “todo mundo no mesmo barco”, nesse caso, à deriva.

3.1 Querô em cena

O que primeiro salta aos olhos na encenação da peça é a opção pelo gênero musical. O que foi apenas esboçado no texto de Plínio Marcos, foi levado às últimas conseqüências na montagem: o cabaré onde Querô foi concebido, onde cometeu um crime e foi sentenciado à morte é o espaço por excelência do espetáculo. Seus personagens volta e meia povoam a cena, seja num quadro-vivo ao fundo, seja no centro da ação, num papel semelhante às frases que Querô repete no romance. O cheiro das putas, o ambiente marginal e seus fantasmas acompanham a trajetória do protagonista.

Não só as canções sugeridas pelo autor estão presentes na cena. A música

intensifica o tom épico da reportagem na medida em que compõe ora o fundo musical, ora

a sonoplastia, ora a narrativa propriamente dita. Os músicos, tocando ao vivo, pertencem

ao cabaré. Tanto quanto os atores tem figurino e postura, pertencem à bandalha.

O trabalho de corpo também tem destaque na montagem. O que poderia ser feito com recursos de iluminação como sugere Plínio Marcos, é feito com coreografias, cenas que se interpenetram por meio do movimento dos atores, personagens que surgem do coro de figuras aparentemente iguais, mas que, vistas isoladamente, denotam uma história, uma composição detalhada e individual. A cena do ritual de batismo de Querô, quando o coro de prostitutas entoa o hino, é um coro de bocas que se mexem, de um mecanismo alienado e perene, tantas vezes repetido e já vazio de sentido.

Alterações de texto foram feitas, sejam de ordem estrutural, sejam para atualizar a trama: Tainha ganhou um celular para receber encomendas de seus clientes, e seu Taurus 38 ganhou versão Mauser 9 milímetros. Querô não recebe pacificamente o Repórter em seu esconderijo. Agora este é ameaçado, agredido e tem de merecer o depoimento do

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protagonista.

O fantasma de Leda, que remete às figuras alteradas do teatro nô japonês, fantasmas errantes também, acompanha Querô durante quase todo o tempo, chegando a interagir com os outros personagens (como na cena em que cutuca os policiais com sua espada de São Jorge, ou estapeia Nelsão).

O Repórter de um tempo mau não se limita, no espetáculo, a ser ouvinte do

protagonista ou formular uma ou outra reflexão em frente do público. Na montagem do

Folias, ele oferece o microfone aos policiais para que reproduzam seu discurso tantas vezes ouvido e lido na imprensa. Conta também aos espectadores trechos da vida de Querô que

não são mostradas em cena – como a passagem pelo reformatório e a fuga posterior. O

Repórter não é mais o fio condutor ou narrador. Nesse sentido a cena toda narra, e ele é

mais um personagem também preso a uma engrenagem, a um sistema – não está fora dele

como pode parecer no romance ou no texto teatral.

Os policiais ganharam contornos debochados, cínicos e, por isso, ainda mais

violentos que o original. Sarará vale-se de um megafone e ganha a companhia de uma

“filarmônica de araque”, como ele mesmo diz, um grupo de músicos que sonoriza as

torturas realizadas pelos tiras.Querô ganhou uma namorada na cena em que conversa com Ju depois da fuga do

reformatório. Isso também humaniza o personagem que, no romance e na peça, caminha

sozinho, sem direito à companhia feminina em sua trajetória de guerreiro.

Recorre-se vez ou outra a trechos do romance para dar conta da complexidade de alguns momentos do protagonista. Não existe uma fidelidade canina ao original e parece,

às vezes, que ocorre uma certa improvisação por parte de alguns atores. Aliás, há um clima

geral de improvisação em muitos momentos, que remete ao coletivo que se propôs a

encenar o texto. O que gera uma certa quebra de ritmo, uma certa lentidão e dispersão do

foco da cena, pode ser lido também como a re-elaboração constante, o olhar sempre

inaugural para a situação por parte dos atores, muitos deles iniciantes.

O show realizado em torno de Querô lembra o tom de espetáculo que atualmente é dado a certos fatos pela mídia televisiva - programas especializados em mundo cão, microfones colocados agressivamente no rosto de vítimas, exploração da miséria, banalização da violência e outros recursos. A encenação do Folias atualiza e, de certo modo recria romance e peça de Plínio Marcos, dando-lhe um vigor que, infelizmente, nutriu-se

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cada dia mais nesses trinta anos que separam as obras literárias do palco.

“Cada um é cada um”Especificidades de linguagem

Plínio Marcos lançou mão de duas linguagens para abordar a saga de um menino que nasceu, cresceu e morreu na miséria, no submundo. Como o Repórter das duas versões, o autor se pergunta: o que eu posso fazer? Como posso ajudar outros meninos como Querô? A primeira forma que encontrou foi escrevendo um romance denúncia. O leitor ao se deparar com o texto literário, imediatamente se reporta à realidade, identifica outros Querôs e, quem sabe, se lembra que cada um tem sua história, e essa história pregressa determinou sua presença nos semáforos, nos becos, debaixo dos viadutos.

O autor adaptou o romance para o teatro, primeiro porque se considerava eminentemente um autor teatral, segundo porque tinha esperança, talvez, de atingir um número maior de ouvintes/parceiros/aliados no desvelamento da realidade abordada pelo texto.

São duas linguagens diferentes, cada uma com suas especificidades - a leitura solitária, o texto mais alentado, as pausas/capítulos propiciando a reflexão, característicos da literatura; a representação cênica, a presentificação da ação, o dinamismo, a leitura/interpretação dada pelo grupo no espetáculo.

Plínio, na verdade, lutou em várias frentes. Não era político de profissão, mas tomava posições e agia politicamente em suas obras. Fazia da literatura e do teatro seu serviço social, na medida em que dava nome, corpo, voz e humanidade a seres tidos como a escória, a bandalha. E, na medida em que imprimia e vendia ele mesmo seus livros, num trabalho homem-a-homem, colocava-se de corpo e alma na luta, sem intermediários.

É o que tentou fazer com Querô, dando-lhe um microfone, dando-lhe uma narrativa em primeira pessoa, sem restringir-lhe o vocabulário ou frear seus pensamentos. Querô, no

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corpo-a-corpo com o leitor.E o espetáculo do Folias, dando vida ao texto dramático, coloca o espectador no

cabaré mais xinfrim possível, ao lado das putas e seus fregueses, dos policiais corruptos, dos menores infratores e dos repórteres impotentes de um tempo mau. Um corpo-a-corpo em que cada um é cada um, mas só até certo ponto.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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