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Livro sobre a historia do negro na antropologia.

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CIENTISTAS, INSTITUIÇÕESE QUESTÃO RACIAL NO BRASIL

1870-1930

COMP~N~EETRAS

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UMA HISTÓRIA DE"DIFERENÇAS E DESIGUALDADES"

As doutrinas raciais do século XIXI

A partir de 1870'introduzem-se no cenário brasileiro teorias depensamento até então desconhecidas, como o posilivismo, o evolu-cionismo, o darwinismo. No entanto, a entrada coletiva, simultâneae maciça dessas doutrinas acarretou, nas leituras mais contemporâ-neas sobre o período, uma percepção por demais unívoca e mesmocoincidente de todas essas tendências. Tais modelos, porém, foramutilizados de forma particular, guardando-se suas conclusões singu-lares, suas decorrências teóricas distintas. Dessa forma, se a noçãode evolução social funcionava como um paradigma de época.? aci-ma das especificidades das diferentes escolas, não implicou uma únicavisão de época, ou uma só interpretação.

O que se pretende realizar neste capítulo, portanto, é um balan-ço das diferentes teorias raciais produzidas durante o século XIX -

uma espécie de glossário de época -, para que se possa pensar commais propriedade as especificidades do uso local. Esse debate, queamadurece em meados do século passado, remete, no entanto, a ques-tões anteriores que exigem um breve retorno aos modelos de refle-xão do século das Luzes, sem o que esta caracterização ficaria in-completa. Com efeito, os teóricos raciais do século XIX referiam-seconstantemente aos pensadores do século XVIII, mas não de manei-ra uniforme. Enquanto a literatura humanista e em especial Rous-seau apareciam como seus principais antagonistas - em sua defesada noção de uma humanidade una -, autores como Buffon e DePauw eram apontados como grandes influências quando se tratavade justificar diferenças essenciais entre os homens.

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o ESPETÁCULO DAS RAÇAS

ENTRE A EDENIZAÇÃO E A DETRAÇÃO

A época das grandes viagens inaugura um momento específicona história ocidental, quando a percepção da diferença entre os ho-mens torna-se tema constante de debate e reflexão: a conquista deterras desconhecidas levava a novas concepções e posturas, já que,se era bom observar, era ainda mais fácil ouvir do que ver. Nas nar-rativas de viagem, que aliavam fantasia a realidade, esses "novos ho-mens" eram freqüentemente descritos como estranhos em seus cos-tumes, diversos em sua natureza (Mello e Souza, 1986; Holanda,s. d.; Todorov, 1983; Gerbi, 1982).

Pode-se dizer, no entanto, que é no século XVlll que os "povosselvagens passam a ser entendidos e caracterizados como primitivos"(Clastres, 1983:188). Primitivos porque primeiros, no começo cio gê-nero humano; os homens americanos transformam-se em objetos pri-vilegiados para a nova percepção que reduzia a humanidade a umaespécie, uma única evolução e uma possível "perfectibilidade".

Conceito-chave na teoria humanista de Rousseau, a "perfecti-bilidade" resumia - conjuntamente com a "liberdade" de resistiraos ditames da natureza ou acordar neles - uma especificidade pro-priamente humana (1775/1978:243). Longe da concepção que seráutilizada pelos evolucionistas no decorrer do século XIX, a visão 11U-

manista discorria, a partir dessa noção, sobre a capacidade singulare inerente a todos os homens de sempre se superarem. Afirmava ofilósofo genebrino: "há uma outra qualidade muito específica quedistingue os homens, a respeito da qual não pode haver contestação- é a faculdade de aperfeiçoar-se". Via de mão dupla, "a perfecti-bilidade' não supunha, porém, o acesso obrigatório ao "estado decivilização" e à virtude, como supunham os teóricos do século XIX.

"Será triste para nós vermo-nos forçados a convir que seja essa fa-culdade distintiva e quase ilimitada, a fonte de todos os males dohomem, que seja ela que, fazendo com que através de séculos desa-brochem suas luzes e erros, seus vícios e virtudes, o torna com o tem-po o tirano de si mesmo e da natureza" (op, cit.:243).3 Marca deuma humanidade una, mas diversa em seus caminhos, a "perfecti=..bilidade humana" anunciava para Rousseau os "vícios" da civiliza-ção, a origem da desigualdade entre os homens.

Herdeira de uma tradição humanista, a reflexão sobre a diversi-dade se torna, portanto, central quando, no século XVIII, a partir doslegados políticos da Revolução Francesa e dos ensinamentos da Ilus-

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UMA HISTÓRIA DE ··DlfERENÇAS E DESIGUALDADES"

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tração, estabelecem-se as bases filosóficas para se pensar a humani-dade enquanto totalidade. Pressupor a igualdade e a liberdade co-mo naturais levava à determinação da unidade do gênero humanoe a certa universalização da igualdade, entendida como um modeloimposto pela natureza. A igualdade de princípios era inscrita na cons-tituição das nações modernas, delegando-se às "diferenças" um es-paço "moralmente neutro" (Dumont, 1966:322). Afinal, os homensnascem iguais, apenas sem uma definição completa da natureza.

Em Rousseau, por exemplo, com a noção do "bom selvagem",essa idéia estará absolutamente presente. O homem americano setransformava inclusive em modelo lógico, já que o "estado de natu-reza" significava, para esse autor, não o retorno a um paraíso origi-nal, e sim um trampolim para a análise da própria sociedade oci-dental, um instrumento adequado para se pensar o próprio' 'estadode civilização' '.

Pergunt.o qual das duas - a vida civil ou a natural - é mais suscetívelde tornar-se insuportável. À nossa volta vemos quase somente pessoasque se lamentam de sua existência, inúmeras até que dela se privamassim que podem ... Pergunto se algum dia se ouviu dizer que um sel-vagem em liberdade pensa em lamentar-se da vida e querer morrer. Quese julgue pois, com menos orgulho, de que lado está a verdadeira mi-séria (1775/1978:251).

A alteridade desses "novos homens" transformada em modelológico se contrapunha à experiência ocidental. Como concluía Rous-seau sobre a origem da desigualdade entre os homens, "se há umabondade original da natureza humana: a evolução social corrom-peu-a" (op. cit.:205). Estrangeiro em terras próprias, abandonadoem meio a um mundo que lhe parece hostil, o famoso filósofo daIlustração encontrava um modelo ideal nesse "outro" tão distantedo "nós, ocidentais", e o elegia como moralmente superior.

No entanto, ao conformar esse quadro antitético, Rousseau decerta forma se afastava da Ilustração, já que refletia sobre um pro-gresso às avessas. Em contra posição à filosofia humanista, procura-va na identificação, ou na "compaixão"," a melhor maneira para en-tender esse homem que tanto se distinguia da experiência ocidental.

Mas, se a visão idílica de Rousseau foi no decorrer do séculoXVIII a mais fecunda (Holanda, 1985:xxV),5 é impossível deixar defalar das vertentes mais negativas de interpretação. Segundo Melloe Souza, as imagens que detratarn o Novo Mundo se intensificaram

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sobretudo a partir da segunda metade do século XVIIl, simetricamen-te correspondentes ao maior conhecimento e colonização desses no-vos territórios (op. cit.:42). É o momento em que se passa da proje-ção da inocência à inata maldade do selvagem: "a da supostainferioridade física do continente, e de uma conseqüente debilidadenatural de suas espécies ... todos condenados por natureza a uma de-cadência irresistível, a uma corrupção fatal" (Gerbi, 1982:IX).

Vários pensadores corroboraram esse tipo de visão mais negati-va da América, mas dois merecem uma atenção maior: Buffon, comsua tese da "infantilidade do continente", e De Pauw, com a teoriada "degeneração americana' '.

A partir de Buffon (1707-88), conhecido naturalista francês,podem-se perceber os primórdios de uma' 'ciência geral do homem"(Foucault, 1966), marcada pela tensão entre uma imagem negativada natureza e do homem americanos, e a representação positiva doestado natural apresentada por Rousseau. Buffon personificou, comsua teoria, uma ruptura com o paraíso rousseauniano, passando acaracterizar o continente americano sob o signo da carência. O pe-queno porte dos animais, o escasso povoamento, a ausência de pê-los nos homens, a proliferação de espécies pequenas, de répteis e deinsetos, tudo parecia corroborar a tese da debilidade e imaturidadedessa terra (Buffon, 1834). Assim, apesar de a unidade do gênerohumano permanecer como postulado, um agudo senso de hierarquiaaparecia como novidade. Por meio da obra desse naturalista, umaconcepção étnica e cultural estritamente etnocêntrica delineava-se.

O debate se vê realmente polarizado com a introdução da no-ção de "degeneração", utilizada pelo jurista Cornelius de Pauw. Atéentão chamavam-se de degeneradas espécies consideradas inferiores,porque menos complexas em sua conformação orgânica. A partirdesse momento, porém, o termo deixa de se referir a mudanças deforma, passando a descrever "um desvio patológico do tipo origi-nal "." Radicalizando os argumentos de Buffon, De Pauw acredita-'va que os americanos não eram apenas "imaturos" como também"decaídos", confirmando sua tese central de "fé no progresso, e faltade fé na bondade humana" (Gerbi, op. cit.:66). Em seus textos.umantiamericanismo claro transparecia quando de suas avaliações so-bre a "natureza do Novo Mundo, débil por estar corrompida, infe-rior por estar degenerada" (De Pauw, 1768 apud Gerbi: 1982).7

Portanto, no contexto intelectual do século XVIII, novas pers-pectivas se destacam. De um lado, a visão humanista herdeira da Re-

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volução Francesa, que naturalizava a igualdade humana; de outro,uma reflexão, ainda tímida, sobre as diferenças básicas existentes entreos homens. A partir do século XIX, será a segunda postura a maisinfluente, estabelecendo-se correlações rígidas entre patrimônio ge-nético, aptidões intelectuais e inclinações morais.

NATURALIZANDO AS DIFERENÇASA emergência da "raça"

O final do século XVIII representa, dessa forma, o prolongamen-to de um debate ainda não resolvido. Prevalecia, porém, certo oti-mismo próprio da tradição igualitária que advinha da RevoluçãoFrancesa e que tendeu a considerar os diversos grupos como "po-vos", "nações" e jamais como raças diferentes em sua origem e con-formação (Stocking, 1968:28).

Com efeito, o termo raça é introduzido na literatura mais espe-cializada em inícios do século XIX, por Georges Cuvier, inauguran-do a idéia da existência de heranças físicas permanentes entre os vá-rios grupos humanos (Stocking, 1968:29).8 Esboçava-se um projetomarcado pela diferença de atitude entre o cronista do século XVI eo naturalista do século XIX, "a quem não cabia apenas narrar, co-mo classificar, ordenar, organizar tudo o que se encontra pelo cami-nho" (Sussekind, 1990:45).

Delineia-se a partir ele então certa reorientação intelectual, umareação ao Iluminismo em sua visão unitária da humanidade. Tratava-se de uma investida contra os pressupostos igualitários das revoluçõesburguesas, cujo novo suporte intelectual concentrava-se na idéia deraça, que em tal contexto cada vez mais se aproximava da noção depovo. O discurso racial surgia, dessa maneira, como variante do deba-te sobre a cidadania, já que no interior desses novos modelos discorria-se mais sobre as determinações do grupo biológico do que sobre o ar-bítrio do indivíduo entendido como "um resultado, uma reificaçãodos atributos específicos da sua raça" (Galton, 1869/1988:86).

PENSANDO NA ORlGElV/: lVIONOGEN/SMO x POLlGENISlVIO

Esse debate - que opunha o modelo igualitário da Ilustraçãoàs doutrinas raciais - faz parte, no entanto, de um problema maisremoto, sobre as origens da humanidade. Mas, se o tema é em si an-

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o ESPETÁCULO DAS RAÇAS

tigo, toma uma forma mais definida a partir do século XIX, quan-do o imaginário social parecia abalado por esse tipo de questão.

Exemplo típico são os relatos sobre "crianças selvagens ","meninos-lobos" perdidos nas florestas do exótico Oriente, casosextraordinários que alimentavam a curiosidade ocidental. Uma dis-cussão sobre a veracidade ou não desses episódios poderia ser de-senvolvida,? mas o que interessa é pensar no papel que cumpriamesses estranhos eventos. Exemplos vivos, tais meninos selvagens pa-reciam personificar e estabelecer limites, mesmo que tênues, entreo mundo da natureza e o mundo da cultura, revelando a atençãoque o tema despertava.'?

Duas grandes vertentes aglutinavam os diferentes autores quena época enfrentaram o desafio de pensar a origem do homem. Deum lado, a visão monogenista, dominante até meados cio século XIX,

congregou a maior parte dos pensadores que, conformes às escritu-ras bíblicas, acreditavam que a humanidade era una. O homem, se-gundo essa versão, teria se originado de uma fonte comum, sendoos diferentes tipos humanos apenas um produto' 'da maior degene-ração ou perfeição do Éden" (Quatrefage, 1857 apud Stocking, 1968).Nesse tipo de argumentação vinha embutida, por outro lado, a no-ção de virtualidade, pois a origem uniforme garantiria um desenvol-vimento (mais ou menos) retardado, mas de toda forma semelhante.Pensava-se na humanidade como um gradiente - que iria do maisperfeito (mais próximo do Éden) ao menos perfeito (mediante a de-generação) -, sem pressupor, num primeiro momento, uma noçãoúnica de evolução."

Esse mesmo contexto propicia o surgimento de uma interpreta-ção divergente. A partir de meados do século XIX a hipótese polige-nista transformava-se em uma alternativa plausível, em vista da cres-cente sofisticação das ciências biológicas e sobretudo diante dacontestação ao dogma monogenista da Igreja. Partiam esses autoresda crença na existência de vários centros de criação, que correspon-deriam, por sua vez, às diferenças raciais observadas.

A versão poligenista permitiria, por outro lado, o fortalecimen-to de uma interpretação biológica na análise dos comportamentoshumanos, que passam a ser crescentemente encarados como resulta-do imediato de leis biológicas e naturais. Esse tipo de viés foi enco-rajado sobretudo pelo nascimento simultâneo ãe frenoíogia e da an-tropometria, teorias que passavam a interpretar a capacidade humanatomando em conta o tamanho e proporção do cérebro dos diferen-

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tes povos. Simultaneamente, uma nova craniologia técnica, que in-cluía a medição do índice cefálico (desenvolvida pelo antropólogosuíço Andrés Ratzius em meados do século XIX), facilitou o desen-volvimento de estudos quantitativos sobre as variedades do cérebrohumano. Recrudescia, portanto, uma linha de análise que cada vezmais se afastava dos modelos humanistas, estabelecendo rígidas cor-relações entre conhecimento exterior e interior, entre a superfície docorpo e a profundeza de seu espírito.

Ainda seguindo esse mesmo modelo determinista, ganha impulsouma nova hipótese que se detinha na observação "da natureza bio-lógica do comportamento criminoso". Era a antropologia criminal,cujo principal expoente - Cesare Lombroso - argumentava ser acriminalidade um fenômeno físico e hereditário (Lombroso, 1876:45)e, como tal, um elemento objetivamente detectável nas diferentes so-ciedades.

Larga também foi a influência desse tipo de pesquisa no campoda doença mental. Os estudos sobre loucura (fig. 11), um cios pri-meiros domínios de aplicação da frenologia, tinham nesse modelocientífico a base para novas concepções e para a justificação de seusmétodos de tratamento "moral" sobre o indivíduo e para o estabe-lecimento de conclusões que traçavam as ligações entre a loucura in-dividual e a degeneração de cunho racional.

A frenologia alcança tal visibilidade que acaba sendo ampla-mente utilizada. Inventam-se jogos, proliferam cursos, criam-se mu-seus, assim como tomam força novos modelos artísticos como a ca-ricatura, que encontra na frenologia vasto material de inspiração.Segundo Claudio Pogliano (1990:193), o famoso ditado "conhece-tea ti mesmo" passa a servir para usos diversos, mais ou menos próxi-mos de seu emprego científico original (figs. 4 e 5).

Retomando a Hipócrates, o poligenismo insistia na idéia de queas diferentes raças humanas constituiriam "espécies diversas", "ti-pos" específicos, não redutíveis, seja pela aclimatação, seja pelo cru-zamento, a uma única humanidade. Nas palavras de Hannah Arendt,com o poligenismo punha-se fim não só "às leis naturais que pre-viam um elo entre os homens de todos os povos, como à igualdade,à comunicação e à troca" (1973:77). A "perfectibilidade" anterior-mente encontrada no "bom selvagem" agora lhe era recusada, as-sim como era questionado o voluntarismo, próprio do século dasLuzes.

Esse debate que opõe monogenistas e poligenistas pode ser

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Museus de frenologia

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Exemplo de jogo criado a partir dosensinamentos da frenologia

acompanhado, por outro lado, na delimitação de disciplinas afins .Ou seja, enquanto os estudos antropológicos nascem diretamente vin-culados às ciências físicas e biológicas, em sua interpretação polige-nista, as análises etnológicas mantêm-se ligadas a uma orientaçãohumanista e de tradição monogenista. A antropologia como disci-plina se detinha, portanto, nesse momento, na análise biológica docomportamento humano, enquanto a etnologia se mantinha fiel auma perspectiva mais filosófica e vinculada à tradição humanistade Rousseau. Entendida como um ramo das ciências naturais, a an-tropologia dedicava-se sobretudo à medição craniornétrica, materialconsiderado privilegiado para a análise dos povos e de sua contri-buição. Essa disputa, denominada por Sol Tax como' 'a guerra dostrinta anos entre etnologia e antropologia: 1830-60" (Tax, 1966:10),levava não só à conformação de ciências distintas, como demarcavaatuações específicas.

Sociedades rivais então surgiram, reiterando essa divisão teóri-ca. Esse é o caso da "Sociedade Anthropologica de Paris", fundadaem 1859 por Paul Broca, famoso anatomista e craniologista, estu-dioso ela biologia humana e defensor das teorias poligenistas. O pos-

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tulado de Broca era de que as diversidades humanas observáveis eramum produto direto das diferenças na estrutura racial. Para esse cien-tista, o principal elemento de análise era o crânio, a partir do qualse poderia comprovar a inter-relação entre inferioridade física e men-tal. O objetivo era, dessa maneira, chegar à reconstrução de "tipos",, 'raças puras", já que se condenava a hibridação humana, em fun-ção de uma suposta esterilidade das "espécies miscigenadas". Brocae seus colegas da "Escola Craniológica Francesa" (como Gall e To-pinard), adeptos da interpretação poligenista, acreditavam na teseda "imutabilidade das raças", traçando, inclusive, paralelos entre oexemplo da não-fertilidade da mula e uma possível esterilidade domulato (Broca, 1864).

É semelhante a experiência de Samuel George Morton, cientis-ta da "Escola Americana de Poligenia" e discípulo de L. Agassiz.Morton, com seus dois estudos - Crania americana (1839) e Craniaaegyptya (1844) -, estabeleceu paralelos, não só físicos como mo-rais, entre as populações dos Estados Unidos e do Egito, tendo co-mo material de análise os crânios de diferentes representantes dessasnações.

Por outro lado, ainda em meados do século fundavam-se socie-dades etnológicas em Paris, Londres e Nova York cujas metas eramsociais e políticas, aproximando-se dos primeiros centros francesesherdeiros dos modelos igualitários das revoluções liberais. Nessas as-sociações, a interpretação era ainda monogenista e fiel às interpre-tações rousseaunianas.

A divisão institucional explicitava, portanto, diversidades fun-damentais na definição e compreensão da humanidade. Enquantoas "sociedades antropológicas" pregavam a noção da "imutabili-dade dos tipos humanos" - e no limite das próprias sociedades -,os estabelecimentos "etnológicos" mantinham-se fiéis à hipótese do"aprimoramento evolutivo das raças".12

A EVOLUÇÃO ENQUANTO PARADIGMA

É somente com a publicação e divulgação de A origem das es-pécies, em 1859, que o embate entre poligenistas e monogenistas tendea amenizar-se. É fato que Charles Darwin dispunha elepredecesso-res, bem como de aliados que sustentavam pontos-chaves de sua teo-ria. J3 No entanto, o impacto da publicação dessa obra foi tal quea teoria de Darwin passou a constituir uma espécie de paradigmade época, diluindo antigas disputas.

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Crânios das catacumbas egipcias (G. Morton, 1844)

De um lado, monogenistas como Quatrefage e Agassiz, satis-feitos com o suposto evolucionista da origem una da humanidade,continuaram a hierarquizar raças e povos, em função de seus dife-rentes níveis mentais e morais. De outro lado, porém, cientistas po-ligenistas, ao mesmo tempo que admitiam a existência de ancestraiscomuns na pré-história, afirmavam que as espécies humanas tinhamse separado havia tempo suficiente para configurarem heranças e ap-tidões diversas. A novidade estava, dessa forma, não só no fato deas duas interpretações assumirem o modelo evolucionista como ematribuírem ao conceito de raça uma conotação bastante original, queescapa da biologia para adentrar questões de cunho político e cultural.

As máximas de Darwin transformavam-se, aos poucos, em re-ferência obrigatória, significando uma reorientação teórica consen-sual. Nas palavras de Hofstadter: "se muitos descobrimentos cientí-ficos afetaram profundamente maneiras de viver, nenhum teve talimpacto em formas de pensar e crer... O darwinismo forneceu umanova relação com a natureza e, aplicado a várias disciplinas sociais- antropologia, sociologia, história, teoria política e economia -,formou uma geração social-darwinista" (1975:3).

Servindo-se de uma linguagem acessível, o livro de Darwin al-cançava um público amplo, apesar do enfoque, nesse primeiro mo-mento, estritamente biológico. "Dei o nome de seleção natural ou

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de persistência do mais capaz à preservação das diferenças e das va-riações individuais favoráveis e à eliminação das variações nocivas"(1859/1968:84), afirmava o pesquisador ao analisar mudanças ope-radas em espécies animais e vegetais. 14

No entanto, não são poucas as interpretações de A origem dasespécies que desviam do perfil originalmente esboçado por CharlesDarwin, utilizando as propostas e conceitos básicos da obra para aanálise do comportamento das sociedades humanas. 15 Conceitos co-rno "competição", "seleção do mais forte", "evolução" e "heredi-tariedade" passavam a ser aplicados aos mais variados ramos do co-nhecimento: na psicologia, com H. Magnus e sua teoria sobre ascores, que supunha uma hierarquia natural na organização dos ma-tizes de cor (1877); na lingüística, com Franz Bopp e sua procuradas raízes comuns da linguagem (1867); na pedagogia, com os estu-dos do desenvolvimento infantil; na literatura naturalista, com a in-trodução de personagens e enredos condicionados pelas máximas de-terministas da época, para não falar da sociologia evolutiva deSpencer e da história determinista de Buckle.

No que se refere à esfera política, o darwinismo significou umabase de sustentação teórica para práticas de cunho bastante conser-vador. São conhecidos os vínculos que unem esse tipo de modeloao .imperialismo europeu, que tomou a noção de "seleção natural"como justificativa para a explicação do domínio ocidental, "maisforte e adaptado" (Hobsbawm, 1977 e 1987; Néré, 1975; Tuchman,1990).

O pensamento social da época também acabará sendo influen-ciado por esse tipo de reflexão, reorientando-se antigos debates teó-ricos. Assim, enquanto a etnografia cultural adaptava a noção mo-nogenista aos novos postulados evolucionistas.l" darwinistas sociaisressuscitavam, com nova força, as perspectivas poligenistas de iní-cios do século. Era preciso pensar na antiguidade da "seleção natu-ral" e na nova realidade que se apresentava: a mestiçagem racial.

Questão fundamental, a mistura de raças na versão poligenistaapontava para um fenômeno recente. Os mestiços exemplificavam,segundo essa última interpretação, a diferença fundamental entre-asraças e personificavam a "degeneração" que poderia advir do cru-zamento de "espécies diversas". Com respeito a essa noção, convi-viam, inclusive, argumentos variados. Enquanto Broca defendia aidéia de que o mestiço, à semelhança da mula, não era fértil, teóri-cos deterministas como Gobineau e Le Bon advogavam interpreta-

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UMA IIISTÓRIA DE "DII'ERENÇAS E DESIGUALDADES"

ções opostas, lastimando a extrema fertilidade dessas populações queherdavam sempre as características mais negativas das raças em cru-zamento. O certo, porém, é que a miscigenação, com a sua novida-de, parecia fortalecer a tese poligenista, revelando novos desdobra-mentos da reflexão. As raças humanas, enquanto "espécies diversas",deveriam ver na hibridação um fenômeno a ser evitado.

Portanto, se a adaptação monogenista do darwinismo era maisimediata;'? a utilização poligenista dos populares modelos que par-tiam da biologia também se deu de forma intensa. Bastou minimizara importância da origem comum e relevar as máximas determinis-tas, presentes na ótica darwinista, que apontavam para a importân-cia das leis e regularidades da natureza. Para os poligenistas, seleçãonatural implicava pensar na degeneração social, assim como as leisda natureza chegavam aos homens de forma determinista e premo-nitória, sobretudo quando se tratava de pensar no impacto que a ques-tão da raça teria sobre as diferentes experiências nacionais. Uma sóteoria fundamentava, dessa forma, as diferentes interpretações dasescolas, que disputavam a hegemonia na representação de sua época.

ANTROPOLOGIA CULTURAL: A DESIGUALDADE EXPLICA A HIERARQUIA

A antropologia cultural ou etnologia social, que se constitui en-quanto disciplina nesse momento, tinha como foco central a ques-tão da cultura, vista, no entanto, sob uma ótica evolucionista. Paraantropólogos culturais como Morgan, Tylor ou Frazer - na épocatambém intitulados evolucionistas sociais -, o grande interesseconcentrava-se no desenvolvimento cultural tomado em uma pers-pectiva comparativa. Com isso almejavam captar o ritmo de cresci-mento sociocultural do homem e, mediante as similaridades apre-sentadas, formular esquemas de ampla aplicabilidade que explicassemo desenrolar comum da história humana.

Civilização e progresso, termos privilegiados da época, eram en-tendidos não enquanto conceitos específicos de uma determinada so-ciedade, mas como modelos universais. Segundo os evolucionistassociais, em todas as partes do mundo a cultura teria se desenvolvidoem estados sucessivos, caracterizados por organizações econômicase sociais específicas. Esses estágios, entendidos como únicos e obri-gatórios - já que toda a humanidade deveria passar por eles -, se-guiam determinada direção, que ia sempre do mais simples ao mais

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complexo e diferenciado. Tratava-se de entender toda e qualquer di-ferença como contingente, como se o conjunto da humanidade esti-vesse sujeito a passar pelos mesmos estágios de progresso evolutivo.O método comparativo, por outro lado, funcionava como princípioorientador dos trabalhos, já que se supunha que cada elemento po-deria ser separado de seu contexto original, e dessa maneira inseridoem uma determinada fase ou estágio da humanidade. Assim, sempretender esgotar as características desse modelo evolucionista so-cial, basta neste momento reter o princípio otimista de tal escola,que entendia o progresso como obrigatório e restituía a noção dehumanidade única;"

o DARWINISMO SOCIAL: A HUMANIDADE CINDIDA

Paralelamente ao evolucionismo social, duas grandes escolas de-terministas tornam-se influentes. Em primeiro lugar, a escola deter-minista geográfica, cujos maiores representantes, Ratzel e Buckle,advogavam a tese de que o desenvolvimento cultural de uma naçãoseria totalmente condicionado pelo meio. Para os autores dessa es-cola era suficiente a análise das condições físicas de cada país - "dá-me o clima e o solo que lhe direi de que nação se fala" - para umaavaliação objetiva de seu "potencial de civilização" (Buckle, op.cit.:32).

Um outro tipo de determinismo, um determinismo de cunho ra-cial, toma força nesse contexto. 19 Denominada "darwinismo social"ou "teoria das raças", essa nova perspectiva via de forma pessimistaa miscigenação, já que acreditava que "não se transmitiriam carac-teres adquiridos", nem mesmo por meio de um processo de evolu-ção social. Ou seja, as raças constituiriam fenômenos finais, resul-tados imutáveis, sendo todo cruzamento, por princípio, entendidocomo erro. As decorrências lógicas desse tipo de postulado eram duas:enaltecer a existência de "tipos puros" - e portanto não sujeitosa processos de miscigenação - e compreender a mestiçagem comosinônimo de degeneração não só racial como social.

Em oposição à noção humanista e às conclusões das escolas.et-nológicas, partiam os teóricos ela raça de três proposições básicas,respaldadas nos ensinamentos de uma antropologia de modelo bio-lógico.ê? A primeira tese afirmava a realidade das raças, estabelecen-do que existiria entre as raças humanas a mesma distância encontradaentre o cavalo e o asno, o que pressupunha também uma condena-

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realizada em Londres em 1884)

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ção ao cruzamento racial. A segunda máxima instituía uma conti-nuidade entre caracteres físicos e morais, determinando que a divi-são do mundo entre raças corresponderia a uma divisão entre cultu-ras. Um terceiro aspecto desse mesmo pensamento deterministaaponta para a preponderância do grupo "racio-cultural" ou étnicono comportamento do sujeito, conformando-se enquanto uma dou-trina de psicologia coletiva, hostil à idéia do arbítrio do indivíduo.

Esse saber sobre as raças implicou, por sua vez, um "ideal polí-tico", um diagnóstico sobre a submissão ou mesmo a possível elimi-nação das raças inferiores, que se converteu em uma espécie de prá-tica avançada do darwinismo social - a eugenia -, cuja meta eraintervir na reprodução das populações. O termo "eugenia" - eu:boa; genus: geração - foi criado em 1883 pelo cientista britânicoFrancis Galton. Galton, na época conhecido por seu trabalho comonaturalista e como geógrafo especializado em estatística, escreveu seuprimeiro ensaio na área da hereditariedade humana em 1865, apóster lido A origem das espécies. Em 1869 era publicado Hereditarygenius, até hoje considerado o texto fundador da eugenia. Nesse li-vro, Galton buscava provar, a partir de um método estatístico e ge-nealógico, que a capacidade humana era função da hereditariedadee não da educação: "J propose to show in this book, that a man'snatural abilities are derived by inheritance". Concluía a partir de talsuposição que "... it would be quite practicable to produce a highlygifted race of men by judicious marriages during several consecutivegenerations" (Galton, 1869/1979:1). Assim, as proibições aos casa-mentos inter-raciais, as restrições que incidiam sobre' 'alcoólatras,epilépticos e alienados", visavam, segundo essa ótica, a um maiorequilíbrio genético, "um aprimoramento das populações", ou a iden-tificação precisa' 'das características físicas que apresentavam gru-pos sociais indesejáveis" (Galton, 1869/1979).

Transformada em um movimento científico e social vigoroso apartir dos anos 1880, a eugenia cumpria metas diversas. Como ciên-cia, ela supunha uma nova compreensão das leis da hereditariedadehumana, cuja aplicação visava a produção de "nascimentos desejá-veis e controlados"; enquanto movimento social, preocupava-se empromover casamentos entre determinados grupos e - talvez o maisimportante - desencorajar certas uniões consideradas nocivas à so-ciedade.

O movimento de eugenia incentivou, portanto, uma adminis-

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tração científica e racional da hereditariedade, introduzindo novaspolíticas sociais de intervenção que incluíam uma deliberada sele-ção social (Stepan, 1991:1-2).21

A eugenia não apenas representava a política social desse modelodeterminista, como revelava as incompatibilidades existentes entreevolucionismo cultural e darwinismo social. Com efeito, punha-sepor terra a hipótese evolucionista, que acreditava que a humanidadeestava fadada à civilização, sendo que o termo degeneração tomavaaos poucos o lugar antes ocupado pelo conceito de evolução, enquan-to metáfora maior para explicar os caminhos e desvios do progressoocidental.P Para os autores darwinistas sociais, o progresso estaria

. restrito às sociedades "puras", livres de um processo de miscigena-ção, deixando a evolução de ser entendida como obrigatória.

Recortando na história mundial exemplos que reforçavam seusargumentos, esses teóricos acreditavam que o bom desenvolvimentode uma nação seria resultado, quase imediato, de sua conformaçãoracial pura. A evolução européia, e em especial o tipo ariano, repre-sentaria para pensadores como Gobineau um caso extremo em queo apuro racial teria levado a um caminho certo rumo à civilízacão.PJá o Egito, segundo Morton (1844), teria conhecido um período eledecadência a partir do século IX a.C., devido à grande miscigena-ção racial ocorrida a partir de então.

A justificativa poligenista tinha, também, fundamentos bioló-gicos. Partindo da teoria de Darwin, mas na verdade subverteu-do-a.> esses pensadores afirmavam que o resultado de um casamen-to híbrido era sempre degenerado ou mais fraco. Pior ainda, carre-gava os defeitos (e não as qualidades) de cada um de seus ancestrais.

A antiga noção de "perfectibilidade" do século XVIII continuapresente no século XIX, mas ganha uma acepção diversa. Nesse ca-so, implica pensar não em uma qualidade intrínseca ao homem, masem um atributo próprio das "raças civilizadas" que tendem à civili-zação. Por outro lado, o conceito ganha um sentido único e direcio-nado, já que parece existir só uma "perfectibilidade" possível, e daoutra parte apenas a degeneração.

Outros conceitos são nesse momento redefinidos. Desigualda-de e diferença - termos que o senso comum pode tomar como si-nônimos - passam a representar posturas e princípios diversos eleanálise. A noção de desigualdade implicaria a continuidade da con-cepção humanista de uma unidade humana indivisível, somente mar-

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cada por dissimilitudes acidentais e contingentes. As diversidades exis-tentes entre os homens seriam apenas transitórias e remediáveis pelaação do tempo ou modificáveis mediante o contato cultural. Já oconceito de diferença levaria à sugestão de que existiriam espécieshumanas ontologicamente diversas, as quais não compartilhariamde uma única linha de desenvolvimento. As diferenças observadasna humanidade seriam, portanto, definitivas e irreparáveis, transfor-mando-se a igualdade em um problema ilusório.

Esses termos desmembram-se, também, conforme deles se ser-vem essas duas escolas da época. Segundo os evolucionistas sociais,os homens seriam "desiguais" entre si, ou melhor, hierarquicamen-te desiguais, em seu desenvolvimento global. Já para os darwinistassociais, a humanidade estaria dividida em espécies para sempre mar-cadas pela "diferença", e em raças cujo potencial seria ontologica-mente diverso. Assim, nesse contexto e com o amadurecimento dodebate, dois grupos mais claramente delineados podem ser reconhe-cidos. De um lado, congregados em torno das sociedades de etnolo-gia, estariam os etnólogos sociais (também chamados de evolucio-nistas sociais ou antropólogos culturais), adeptos do monogenismoe da visão unitária da humanidade. De outro, filiados a centros deantropologia, pesquisadores darwinistas sociais, fiéis ao modelo po-ligenista e à noção de que os homens estariam divididos em espéciesessencialmente diversas.

Contrários às máximas da Ilustração e elegendo a noção de "di-ferença" como conceito-chave de análise, esses teóricos raciais irãopropor uma releitura da história dos povos. Vários serão os autorespoligenistas que nesse momento farão a ponte entre a interpretaçãodarwinista social e as conclusões racistas. Dentre eles, quatro se des-tacam em função do caráter representativo de suas teorias: Renan,Le Bon, Taine e Oobineau.

Para E. Renan (1823-92) existiriam três grandes raças - bran-ca, negra e amarela - específicas em sua origem e desenvolvimento.Segundo esse autor, os grupos negros, amarelos e miscigenados "se-

. riam povos inferiores não por serem incivilizados, mas por seremincivilizáveis, não perfectíveis e não suscetíveis ao progresso" ERe-nan, 1872/1961). Utilizando a noção de "raças não perfectíveis ",Renan apoiava o argumento poligenista, tendo como pano de fundoa crítica ao ideal humanista da unidade e ao conceito de "perfecti-bilidade" em Rousseau. A radicalidade dessa concepção chegava àprópria negação do darwinismo, na medida em que duvidava não

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só de uma origem comum dos homens, como da possibilidade dese prever um destino conciliável.

O. Le Bon, que foi um grande vulgarizador de talentos alheios(Todorov, 1989:129), divulgou na mesma época sua teoria que corre-lacionava raças humanas com espécies animais: "Baseando-se emcritérios anatômicos, como a cor da pele, a forma e capacidade docrânio, é possível estabelecer que o gênero humano compreende mui-tas espécies separadas e provavelmente de origem muito diferente"(Le Bon, 1902:209). Com Le Bon, passava-se a empregar a palavraraça de preferência a espécie, assim como disseminavam-se concep-ções avessas à versão monogenista cristã. Adepto do que chamava"psicologia social", Oustave Ie Bon acreditava ser "a substituiçãoda atividade consciente do indivíduo pela ação inconsciente do gru-po" (1902:13) a principal característica de sua época. Era o grupo,entendido enquanto conjunto, que determinava os comportamentoshumanos individuais.

Outro grande profeta do determinismo foi H. Thine (1828-93),para quem nenhum fenômeno aconteceria sem uma causa exteriora motivá-Io. Partidário de um determinismo integral, no qual cabe-ria toda e qualquer manifestação humana, Taine ficou conhecido,já em seu tempo, pela contundência de suas conclusões: "cette cau-se donnée, elle aparait, cette cause retirée, elle disparait' (1923:11).Em suas análises, o autor invertia o arbítrio dos filósofos das Luzesao enxergar o indivíduo enquanto resultado imediato do grupo cons-tituidor.

Taine também foi um dos responsáveis pela transformação quese operou na noção de raça no final do século XIX. O conceito eraampliado, já que, além de ser entendido como noção biológica,passava a equivaler à idéia de nação. Taine tornava o debate maiscomplexo ao introduzir um detenninismo mais abrangente. Comoafirmava o autor: "J'entends les nationalités, /es climats et les tem-péraments, COl17l11eun doub/et de race" (l923:xu).

O conde Oobineau (1816-82), autor de Essai sur t'inegalité desraces humaines (1853), era também partidário de um determinismoracial absoluto e favorável à condenação do arbítrio do indivíduo,"cuja vontade nada pode" (1853/1983:1151). No entanto, ao mesmotempo que compartilhava os pressupostos darwinistas sociais, intro-duzia a noção de "degeneração da raça", entendida como o resulta-do último "da mistura de espécies humanas diferentes". De fato, 00-bineau cortava as últimas amarras com a explicação monogenista e

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evolucionista social, na medida em que seu argumento previa a im-possibilidade do progresso para algumas sociedades compostas por"sub-raças mestiças não cívilizáveis'Lê>

"O resultado da mistura é sempre um dano", dizia Gobineau,buscando comprovar os diagnósticos negativos dos poligenistas. Aidéia de uma evolução social única e geral aparecia como um enga-no, já que os "caracteres fixos existentes nas diferentes raças" deter-minavam a necessidade da perpetuação dos "tipos puros", não alte-rados pela miscigenação. Assim, se a "civilização" era um estágioacessível a poucas raças, o que dizer dos mestiços, esses sim uma"sub-raça decadente e degenerada"?26

Para Gobineau, portanto, se não se podia esperar muito de cer-tas "raças inferiores", não era necessário também temê-Ias. Radi-calmente diversa era, no entanto, sua interpretação sobre as naçõesmiscigenadas. Instáveis, por oposição à imutabilidade das raças pu-ras, do cruzamento de espécies diferentes advinham populações "de-sequilibradas e decaídas ". 27"Espécie de nobre frustrado e român-tico", na definição de H. Arendt (op. cit.:170), Gobineau mais separece com um sacerdote do racismo. Todavia, se com seu pessimis-mo extremado o conde Gobineau faria poucos adeptos em uma Eu-ropa dos estertores do século.êf o mesmo não pode ser dito de ou-tras sociedades, no interior das quais a miscigenação não era umprognóstico, um exercício de imaginação, mas uma realidade vi-venciada.

Assim, estas doutrinas eram mais importantes, segundo Arendt,na conformação das nações, do que para informar sobre as diferen-ças culturais inatas. "Foram elas as primeiras, se não as únicas, anegar o postulado sobre o qual a organização dos povos então seassentava: o princípio da igualdade e solidariedade de todos os po-vos, garantidos em última instância pela idéia de que a humanidadeera una" (Arendt, 1973:161).

A miscigenação transformava-se, desse modo, em um grande di-visor entre as concepções monogenistas das escolas etnológicas e asinterpretações poligenistas presentes sobretudo na antropologia daépoca. Para esta última, era por meio das conseqüências nefastas ad-vindas da mistura de raças e de um certo "abastardamento dessaspopulações" que se poderia comprovar a falácia do argumento mo-nogenista.

A partir desse balanço nota-se que a percepção da "diferença"é antiga, mas sua "naturalização" é recente. Ou seja, é apenas no

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século XIX, com as teorias das raças, que a apreensão das j 'diferen-ças" transforma-se em projeto teórico de pretensão universal e glo-balizante. "Naturalizar as diferenças" significou, nesse momento,o estabelecimento de correlações rígidas entre características físicase atributos morais. Em meio a esse projeto grandioso, que pretendiaretirar a diversidade humana do reino incerto da cultura para localizá-Ia na moradia segura da ciência determinista do século XIX, poucoespaço sobrava para o arbítrio do indivíduo. Da biologia surgiamos grandes modelos e a partir das leis da natureza é que se classifica-vam as diversidades.

Certamente essa não era a única versão que explicava, naquelemomento, as sociedades em seu comportamento. É possível dizer,no entanto, que os modelos deterministas raciais foram bastante po-pulares, em especial no Brasil.29 Aqui se fez um uso inusitado elateoria original, na medida em que a interpretação darwinista socialse combinou com a perspectiva evolucionista e monogenista. O mo-delo racial servia para explicar as diferenças e hierarquias, mas, fei-tos certos rearranjos teóricos, não impedia pensar na viabilidade eleuma nação mestiça. Este já é, porém, um debate que pressupõe areflexão sobre a excelência da cópia e a especificidade desta no pen-samento nacional - o que será feito mais adiante.

No entanto, na medida em que esse tipo de teoria se transfor-mou, no Brasil, em uma espécie de jargão comum até os anos 30,torna-se quase impossível o estudo da totalidade dos intelectuais na-cionais que opinaram sobre a questão racial. A opção será, dessamaneira, tomar os autores não de forma isolada, mas vinculados àsdiferentes instituições das quais participavam e que representavam,por sua vez, seu contexto maior de discussão intelectual. Nesses lo-cais de pesquisa é que esses "homens de sciencia" encontravam es-paços privilegiados para a produção de idéias e teorias, e para seureconhecimento social. Apesar de diversos em suas características in-ternas, distintos em sua atuação, esses estabelecimentos mostraram-se apropriados para a compreensão das diferentes interpretações aquiproduzidas e dos próprios pensadores que, no mais das vezes, dialo-gavam entre si, reconhecendo e destacando seus pares. A análise dediferentes instituições de saber de finais do século XIX, entendidasenquanto instâncias específicas de seleção e consagração intelectual,propiciará um amplo panorama das elites ilustradas nacionais da épo-ca, bem como a recuperação da lógica de recriação desses modelosraciais.

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Por fim, as publicações internas organizadas pelas diferentes ins-tituições revelaram-se um material básico de investigação. "Cartãoele visitas", objeto ele comunicação entre os vários estabelecimen-tos, as revistas científicas foram essenciais na definição do perfildos diferentes centros selecionados, assim como para a recuperaçãodos debates intelectuais daquele momento.

Nos museus etnológicos, institutos históricos, escolas de direi-to e medicina, a discussão racial assumiu um papel central, sendorica a análise de tais estabelecimentos, de onde partiram respostasalternativas apesar de contemporâneas. A partir deles é possível re-ver os diferentes trajetos que uma mesma doutrina percorre'?

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