queijo artesanal da serra da canastra, patrimÔnio

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QUEIJO ARTESANAL DA SERRA DA CANASTRA, PATRIMÔNIO CULTURAL BRASILEIRO ANA ALICE SILVEIRA CORRÊA 1 SUELY SANI PEREIRA QUINZANI 2 VINICIUS MARTINI CAPOVILLA 3 1 HISTÓRIA DO QUEIJO O queijo é um dos alimentos mais antigos da história da humanidade. De acordo com Harbutt (2010) existem evidências de fabricação de queijo desde o ano 2.800 a.C. que teria sido descoberto por acaso. Atribui-se sua descoberta a um mero acidente, restos de leite que ficaram aquecidos junto ao fogo e guardados num saco feito com o estômago de um animal teriam coalhado, o que causou a separação ou coagulação dos sólidos, a coalhada, e do líquido, o soro. Desta forma, descobriu-se que um alimento valioso, o leite, poderia ser conservado em forma de queijo e que o coalho encontrado no estômago do animal produtor de leite era o elemento coagulador. Harbutt (2010) explica que hoje, cerca de 5.000 anos depois, faz-se queijo no mundo inteiro com todos os tipos de leite, ou seja, de rena na Lapônia, de búfalo na Austrália e até de iaque no reino do Butão. De acordo com a autora, embora o leite tenha mais ou menos o mesmo gosto em todo mundo, a diversidade de texturas, sabores e aromas dos queijos é quase infinita e é possível fazer praticamente qualquer queijo em qualquer lugar do mundo. Hoje, o tamanho, a forma e o leite dos queijos são determinados por fatores externos, tradições 1 Formada em gastronomia, Cozinheiro Chefe Internacional pelo Senac, Formada em Confeitaria Profissional pelo Senac, Pós graduada em Docência do Ensino Superior pelo Senac, Pós graduada em Cozinha Brasileira pelo Senac, formada em Letras pela Faculdade N.S.Medianeira, formada em Análise de Sistemas pela IBM Brasil. 2 Advogada, formada em Direito pela Universidade de São Paulo; formada em gastronomia pelo Centro Universitário Nossa Sra do Patrocínio; pós graduada em Docência no Ensino Superior pelo Centro Universitário Nossa Sra do Patrocínio; pós graduada em Cozinha Brasileira pelo Senac São Amaro, sommelier em vinhos pelo Senac Águas de São Pedro e ABS-SP. 3 Pós Graduado em Cozinha Brasileira pelo SENAC-SP, Bacharel em Ciências Biológicas pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e Formado em Tecnologia em Gastronomia pelo SENAC – SP, é sócio proprietário da Saperian, agencia que trabalha gastronomia pelo viés cultural. Ministrou palestras sobre ingredientes nacionais na Fundación Alicia, Barcelona - Espanha. Hoje atua na implantação de uma Escola de Gastronomia e Hospitalidade junto ao Governo do Estado do Acre, no desenvolvimento de viagens eno- gastronômicas pela empresa Degustadores Sem Fronteiras, na produção do programa de TV Fominha, para o canal GNT, e dos eventos externos da chef Ana Luiza Trajano.

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Page 1: QUEIJO ARTESANAL DA SERRA DA CANASTRA, PATRIMÔNIO

QUEIJO ARTESANAL DA SERRA DA CANASTRA, PATRIMÔNIO CULTURAL BRASILEIRO

ANA ALICE SILVEIRA CORRÊA 1

SUELY SANI PEREIRA QUINZANI 2

VINICIUS MARTINI CAPOVILLA 3

1 HISTÓRIA DO QUEIJO

O queijo é um dos alimentos mais antigos da história da humanidade. De acordo com

Harbutt (2010) existem evidências de fabricação de queijo desde o ano 2.800 a.C. que teria

sido descoberto por acaso. Atribui-se sua descoberta a um mero acidente, restos de leite que

ficaram aquecidos junto ao fogo e guardados num saco feito com o estômago de um animal

teriam coalhado, o que causou a separação ou coagulação dos sólidos, a coalhada, e do

líquido, o soro. Desta forma, descobriu-se que um alimento valioso, o leite, poderia ser

conservado em forma de queijo e que o coalho encontrado no estômago do animal produtor de

leite era o elemento coagulador.

Harbutt (2010) explica que hoje, cerca de 5.000 anos depois, faz-se queijo no mundo

inteiro com todos os tipos de leite, ou seja, de rena na Lapônia, de búfalo na Austrália e até de

iaque no reino do Butão. De acordo com a autora, embora o leite tenha mais ou menos o

mesmo gosto em todo mundo, a diversidade de texturas, sabores e aromas dos queijos é quase

infinita e é possível fazer praticamente qualquer queijo em qualquer lugar do mundo. Hoje, o

tamanho, a forma e o leite dos queijos são determinados por fatores externos, tradições

1 Formada em gastronomia, Cozinheiro Chefe Internacional pelo Senac, Formada em Confeitaria Profissional pelo Senac, Pós graduada em Docência do Ensino Superior pelo Senac, Pós graduada em Cozinha Brasileira pelo Senac, formada em Letras pela Faculdade N.S.Medianeira, formada em Análise de Sistemas pela IBM Brasil. 2 Advogada, formada em Direito pela Universidade de São Paulo; formada em gastronomia pelo Centro Universitário Nossa Sra do Patrocínio; pós graduada em Docência no Ensino Superior pelo Centro Universitário Nossa Sra do Patrocínio; pós graduada em Cozinha Brasileira pelo Senac São Amaro, sommelier em vinhos pelo Senac Águas de São Pedro e ABS-SP. 3 Pós Graduado em Cozinha Brasileira pelo SENAC-SP, Bacharel em Ciências Biológicas pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e Formado em Tecnologia em Gastronomia pelo SENAC – SP, é sócio proprietário da Saperian, agencia que trabalha gastronomia pelo viés cultural. Ministrou palestras sobre ingredientes nacionais na Fundación Alicia, Barcelona - Espanha. Hoje atua na implantação de uma Escola de Gastronomia e Hospitalidade junto ao Governo do Estado do Acre, no desenvolvimento de viagens eno-gastronômicas pela empresa Degustadores Sem Fronteiras, na produção do programa de TV Fominha, para o canal GNT, e dos eventos externos da chef Ana Luiza Trajano.

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históricas e o terreno. As nuances de textura e sabor são determinadas pela matéria-prima, ou

seja, tipo e raça do animal, solo, clima e microclima, e ainda, pela inventividade do queijeiro.

De acordo com a autora, o clima, o solo e seus minerais determinam a flora que cresce

no lugar, determinando o sabor do leite. O animal e seus hábitos de pastagem e sua raça

também influenciam com os teores de gordura das vacas de diferentes raças e o microclima

dá o toque final. “Bolores e fermentos pequeninos e coloridos levados pelo vento tratam de

caracterizar a coalhada, oferecendo desta forma a mágica do queijo” (HARBUTT, 2010).

Porém, A habilidade do queijeiro é fundamental para a fabricação de um queijo de

qualidade. De acordo com Leandro (2011), sem as habilidades de um queijeiro, de nada

adiantam cuidados com a escolha do leite, da água, das instalações e dos fermentos lácteos.

2 O QUEIJO DE MINAS

No Brasil, o queijo de Minas é parte da nossa cultura e sobre tudo do mineiro. O

Estado de Minas Gerais possui atributos únicos que diferenciam este queijo, culturalmente,

do resto do país. Trazido pelos colonizadores portugueses, o queijo de Minas conquistou uma

produção artesanal peculiar que envolve técnica, arte e inventividade, impondo-se como valor

cultural.

A Serra da Canastra é uma das cinco micro regiões mineiras produtoras do queijo tipo

Serra da Canastra (Figura 01), cuja tradição e cultura está enraizada no dia a dia da

comunidade. O queijo é um elemento cultural na alimentação, ao lado de tradições como a

cachaça e o consumo da carne de porco fazendo parte diariamente da composição alimentar

da região.

O ofício de queijeiro é exemplificado nas palavras de Pires (2013, p.148) como:

habilidades de paciência na lida com os insumos do queijo, de cuidados enfadonhos na manipulação da massa, de meticulosa medição de ingredientes, persistência e delicadeza na capacidade de percepção de reações mínimas do conjunto de microrganismos presentes no queijo. Outras habilidades importantes são pontualidade calculada pela altura do sol, cuidados de higienização pessoal e da queijaria, capacidade de solidão para proceder ao ritual quase em retiro, de senso estético para a garantia da plasticidade do produto, vocação para o ofício, o que faz com que o queijeiro faça de cada queijo uma peça de arte, sempre igual e diferente.

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Figura 1 - Mapa das microrregiões produtoras de queijo artesanal de Minas Gerais

Fonte: Blog do Queijo Minas Artesanal 4

A Serra da Canastra é uma cadeia montanhosa localizada no centro-sul do estado de

Minas Gerais, nas proximidades dos municípios de Delfinópolis, Sacramento e São Roque de

Minas. Está a cerca de 310 quilômetros de distância de Belo Horizonte e a cerca de 530

quilômetros de São Paulo.

A Serra da Canastra tem o formato de baú, daí a origem do nome, pois canastra é um

tipo de baú antigo. O Rio São Francisco nasce próximo a cachoeira D’Anta no Parque

Nacional da Serra da Canastra, a 14 quilômetros antes de sua queda principal. O parque

protege um cenário de beleza rara em biodiversidade, com vegetação de transição entre a

“borda da mata Atlântica” e o “Cerrado”, com predomínio de campos de altitude que abrigam

espécies da fauna e flora do cerrado brasileiro.

Os primeiros habitantes da região foram os índios Cataguases, que apesar da fama de

ferozes foram dizimados pelos brancos no século XVII. Depois vieram os negros fugidos que

4 Disponível em < http://queijomineiroartesanal.blogspot.com.br/>. Acesso em 20 jun. 2013.

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formaram quilombos na Serra da Canastra. O mais conhecido foi Pai Inácio que dizem ter

sido tão grande e importante quanto o de Palmares (SERRA DA CANASTRA, 2011).

Num dos munícipios visitado na região, São Roque de Minas, com produtores de

queijos artesanais premiados, a vida econômica se baseia na produção do queijo de canastra

há 300 anos.

O rebanho bovino desse município é de aproximadamente 50 mil cabeças, sem uma

raça definida. Lá, encontra-se a mistura de raças leiteiras Caracu, Giroranda e Holandesa,

originando o que os produtores de queijo denominam “gado de pé chato”, ou seja, um gado

leiteiro oriundo da própria região.

A segunda maior atividade em importância é o café, cuja área de plantio cresceu muito

nos últimos anos. Município com atividade essencialmente agrícola de subsistência familiar,

possui uma população rural, que em 1970 representava quase 77% do total dos moradores e

passou a representar 56% em 1991 e 41% no ano de 2000.

São Roque de Minas possui uma população de 6.321 habitantes de acordo com o

censo de 2000 e apesar do perfil agrícola a cidade passa por um êxodo rural expressivo como

a maioria dos municípios brasileiros. 5

O queijo da Canastra é uma tradição alimentar advinda da colonização, quando a

pecuária foi introduzida no Brasil nos primeiros anos da colonização. O gado era proveniente

das Ilhas de Cabo Verde e foi introduzido na Bahia e em Pernambuco por Tomé de Souza.

Inicialmente, destinava-se a suprir a alimentação da população vinculada à atividade da cana

de açúcar.

De acordo com Pires (2013), no século XVII, os baianos e pernambucanos instalaram

uma verdadeira saga de currais, espalhando fazendas de gado ao longo do Rio São Francisco. O

“caminho dos currais” do Rio São Francisco foi construído para comercialização do gado que

descia ao interior mineiro e era também, a rota das fazendas de gado ao porto de Salvador.

Pode-se dizer que o século XVII corresponde a um período de expansão dos currais de gado

pelo sertão do país, que se acentua no século XVIII e nessas circunstâncias a pecuária se

apresenta como uma atividade econômica complementar. Com o declínio da atividade

açucareira no Nordeste, os colonizadores ávidos por riquezas, partem para as regiões mineiras

do Brasil Central e na região central do sudeste, hoje, atual estado de Minas. Essa atividade de 5 <http://www.mg.gov.br/governomg/portal/c/governomg/conheca-minas/turismo/parques-e-grutas/10249-

parque-nacional-da-serra-da-canastra/55361-parque-nacional-da-serra-da-canastra/5146/5044>; <http://www.saoroque.sp.gov.br/caracteristicas_gerais.asp>. Acesso em 20 jun. 2013.

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mineração intensifica a criação de gado, como base de sobrevivência nas minas que

enfrentavam dificuldades de abastecimento alimentar.

Pires (2013), ainda, determina que registros históricos relatam que o gado bovino e

equino era trazido da Bahia e de Pernambuco e também de territórios castelhanos, atual

Argentina. O gado do Nordeste vinha seguindo o Rio São Francisco, e o dos territórios

castelhanos ficava nos currais do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, e depois era levado até

Sorocaba, no interior de São Paulo, onde os tropeiros comercializavam os animais e as

mercadorias destinadas ao abastecimento da região mineradora.

No século XVII, com a descoberta das minas, trataram logo de abrir caminhos para o abastecimento deste novo e promissor mercado de consumo. O paulista Alferes Antônio Gonçalves Figueira, fundador da Fazenda de Montes Claros e de várias outras da região, teria começado a abertura de estradas para Serro Sabará e Pitangui, passando a alimentar as minas com o gado dos currais. Saindo no norte mineiro, este histórico caminho possuía diversas variantes e bifurcações, tanto para o lato norte (produtor) quanto para o lado sul (consumidor). Partindo dos currais, com saídas de Tremedal (Monte Azul), Morrinhos (Matias Cardoso) e Rio Pardo, este caminho passava por Santa Maria, Peixe Brabo, Tapera (de onde saía uma bifurcação para Goiás), Boa Vista (Bocaiúva), Itacambira, santa Cruz do Morro, Remanso, Tijuco (Diamantina) e finalmente da vila do Príncipe (Serro), de onde continuava através da antiga Estrada Real, até a Capital de Vila Rica e os demais destinos do gado sertanejo (PEREIRA, 2003, p.216).

Esta confluência de dados, tradição alimentar, memória gustativa, terroir, gado

específico de criação local, qualidade da matéria prima e o savoir–faire, determinam a

qualidade de um produto superior em nosso país, que lhe valeu no ano de 2001 o seu

reconhecimento pelo IPHAN como patrimônio cultural e imaterial brasileiro e sua posterior

Indicação Geográfica. O queijo Minas Artesanal é considerado o mais antigo e tradicional queijo fabricado

no Brasil. De acordo com Ribeiro (1958) este queijo tem origem na Serra da Estrela, em

Portugal. De acordo com o autor, o coalho dessa receita portuguesa original era obtido com o

emprego de extrato vegetal de flores e brotos de cardo. Em terras brasileiras e mineiras essas

plantas (cardo leiteiro) não floresciam em nossos campos e os portugueses nos tempos

coloniais, coagulavam o leite com o bucho de porco, salgado e seco em fumeiro. A partir do

legado português e com os fatores diferenciais de gado, solo, e microclima, o processo de

produção artesanal do queijo Minas se desenvolve como técnica, ciência e arte de combinar

tempo, temperatura e peso das mãos, manejo de utensílios, monitoramento da qualidade do

leite, limpeza e higienização rigorosa de utensílios, controle de microrganismos naturais,

dosagem de coagulante, sal e ponto de cura, surgindo este patrimônio cultural.

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3 INDICAÇÃO GEOGRÁFICA DO QUEIJO DE MINAS

As Indicações Geográficas (IG) são instrumentos públicos, normas, que valorizam

certas características provenientes de determinadas áreas geográficas. São referimentos

geográficos, áreas delimitadas, utilizadas para designar produtos agrícolas e alimentos que

representem uma ou mais qualidades relacionadas à zona de produção. São seus pressupostos,

ser originário de determinada região, local ou país; ter qualidades ou características que se

devam essencial e exclusivamente ao meio geográfico, devendo-se incluir a estes fatores

naturais, os humanos, que incluem o saber fazer e a tradição e cuja produção, transformação e

elaboração ocorrem na área geográfica delimitada.

Com esta indicação de procedência, este queijo transmite para o consumidor que o

adquire garantias de um queijo artesanal, de qualidade superior, cuja procedência é a Serra da

Canastra e direcionado sobre tudo a consumidores que sabem o que estão adquirindo.

O instrumento legal que assegura a preservação do Patrimônio Cultural e Imaterial do

Brasil é o seu registro no livro de celebrações, de Formas de Expressão, dos Saberes e

Lugares. Como o método de fazer artesanal é reconhecido por passar de geração em geração,

este queijo assim teve seu reconhecimento, pois o mineiro desenvolveu um saber próprio da

produção do queijo, tornando-se uma tradição marcante em sua cultura. Apesar dos queijos

fabricados nas cinco micro regiões mineiras terem aparência e sabor específicos, em todos os

locais usa-se o leite cru, a adição de pingo, um fermento lácteo natural recolhido a partir do

soro que drena do próprio queijo, maneira pela qual se transfere para o produto as

características de solo, clima e vegetação da região (terroir).

Esta especificidade territorial é bem destacada pelo produtor Luciano Carvalho

Machado, da Chácara Esperança, em Medeiros. Como pode se observar na figura 2, ele

inscreve seu queijo entre cinco variáveis:

1. Solo e Água;

2. Produtor;

3. Clima;

4. Animais;

5. Alimentação Animal

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Figura 2 - Terroir nacional explicado pelo produtor Luciano

Fonte: Arquivo pessoal (2013)

Ou seja, em sua simplicidade de raciocínio, o sr. Luciano caracterizou as variáveis que

diferem seu produto de outros artesãos do queijo. Características de dependem fortemente do

processo de produção. A fabricação deste queijo artesanal, é simples e se dá por coagulação

enzimática. É feito diariamente, logo após a ordenha porque a temperatura do leite entre 37 e

38°C facilita a coagulação e a separação dos sólidos. De acordo com o vídeo “O Mineiro e o

Queijo” 6, após a coagulação, todo queijo se inicia com o sinal da cruz feita pela lira, um

instrumento próprio para a quebra da massa após sua coagulação em aproximadamente 40

minutos.

Em dois dos produtores visitados na região, premiados pela excelência da qualidade

dos queijos produzidos, as vacas não são mais ordenhadas no período vespertino. Isso se deve

a manutenção do equilíbrio ambiental da própria propriedade, permitindo a amamentação dos

bezerros. Além disso, também estão reduzindo a produção de queijos, elevando a qualidade e

poupando o trabalho excessivo, muitas vezes dada à idade dos produtores, como é o caso do

Sr. José Baltazar da Silva – Zé Mário da Fazenda Campo do Meio em São Roque de Minas.

O processo de fabricação do queijo da Canastra obedece aos seguintes procedimentos:

Tabela 1 - Modo artesanal de fazer queijo de Minas

ETAPA CARACTERÍSTICAS

6 < http://www.omineiroeoqueijo.com.br/filme/>. Acesso em 20 out. 2013.

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Obtenção do Leite

Feito através de ordenha manual (Sr. Luciano) ou mecânica (Sr. Zé Mário) das vacas em curral coberto e piso de alvenaria, coagem do leite em tecido sintético lavado e desinfetado; deve-se acondicionar o leite em vasilhas apropriadas de metal ou plástico.

Elaboração do Queijo

Deve ser elaborado na queijaria. Esta deve estar em conformidade com a Lei do Queijo, ser em alvenaria e estar adequada às Boas Práticas para a fabricação do queijo artesanal. A elaboração do queijo segue este processo:

• Adição do coalho industrial; • Adição do “PINGO”, que é o fermento lácteo natural do queijo. De

acordo com o produtor Sr. Luciano, o pingo é o DNA do queijo. Ele traz a marca do queijo feito no dia anterior e no dia de hoje. O pingo difere entre os produtores e é um diferencial entre os queijeiros;

• Corte da massa, após atingir o ponto (utilização da lira ou de uma pá);

• Mexedura; • Retirada do soro e da massa; • Formato - massa é colocada em formas plásticas com 130 a 150mm

de diâmetro. O queijo obtido pela forma maior recebe no local a denominação de Real. A diferença está apenas no tamanho;

• Espremedura para a retirada do soro; • Primeira salga, feita com sal grosso, por um período de 6 a 12 horas; • Viragem do queijo e segunda salga, no outro lado do queijo, por mais

12 horas; • Após 48 horas o queijo é retirado da forma e colocado em prateleiras.

Maturação do Queijo

De 5 a 10 dias. A lei do Queijo Artesanal pede 22 dias para a cura do queijo, prazo para que as bactérias não se tornem nocivas para a ingestão humana.

Acabamento Estético do

Queijo

Grosagem ou ralação (Serro) feito com ralo inoxidável e espátula ou acabamento sem grosagem com lixas (Canastra e Serra do Salitre)

Fonte : IPHAN 7 – http://www.iphan.gov.br)

Figura 3 - Queijo da Serra da Canastra

7

<http://portal.iphan.gov.br/portal/montarDetalheConteudo.do?id=17758&sigla=Institucional&retorno=detalheInstitucional>. Acesso em 20 mai. 2014.

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Fonte: ORENSTEIN (2013)

A figura 3 acima mosta à esquerda o queijo feito de leite cru é curado por 30 dias.

Tem aparência mais amarelada, consistência mais firme e sabor mais intenso. À direita mostra

o queijo também produzido com leite cru, com aparência mais esbranquiçada e consistência

mais branda.

Figura 4 - Pingo, ou fermento lácteo

Fonte: Arquivo pessoal (2013)

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Esta produção de queijo da Serra da Canastra tem particularidades muito especiais.

Tanto na Europa, quanto em Minas Gerais, utiliza-se o coalho industrial, para uma visível

padronização da produção, imposta por lei no Brasil. Já na Europa o fermento também é

padronizado e igual para todos os produtores de uma cooperativa, ao contrário do pingo,

individual de cada produtor. Isto é uma extrema vantagem e privilégio dos queijos da Serra da

Canastra, mais um fator único de terroir entre os produtores.

Esta característica única de produtor para produtor se afirma na Indicação Geográfica

Serra da Canastra, pequenos terroirs são identificados, tal qual acontece com os vinhos. Os

descritores aromáticos do queijo da Canastra superam 50 aromas, advindos das diferenças

exaltadas por Luciano em seu gráfico de estrela, demonstrado na Figura 2.

Há ainda a atuação dos veterinários com funções e cuidados obrigatórios por lei. Os

veterinários que suprem cada fazenda têm uma função primordial no equilíbrio da produção

queijeira, uma vez que estão atentos às doenças relacionadas ao gado com vacinas de aftosa e

brucelose além dos cuidados com a mastite do úbere que pode comprometer a qualidade do

leite.

O queijo da Canastra sofre de problemas políticos e pressões das grandes indústrias

em razão da sua fabricação se dar com leite cru. A lei sanitária de 1952 define que os produtos

de leite e derivados que entram no mercado devem passar por um processo de pasteurização.

Por questões sanitárias e avanços tecnológicos, os processos artesanais de produção de

queijo se conflitam no que Pires (2013) determina de “guerra do queijo”, entre o imperialismo

higiênico e os países europeus produtores de queijos artesanais, em especial a França. Os

Estados Unidos, interessados em ampliar seus espaços no mercado internacional de queijos,

vêm tentando que a Organização Mundial de Saúde (OMS) estabeleça a proibição de

consumo de queijos produzidos com leite cru e pejorativamente chamados de “queijos de

risco”. O certo é que, segundo informações correntes, não existe nenhum caso registrado de

intoxicação por fungos provenientes dos queijos. Tais fungos apenas afetam a cor, o sabor e a

textura dos queijos como estabelece a autora.

Pires (2013) também estabelece que as técnicas artesanais de produção são

sucessivamente ameaçadas por campanhas sanitaristas, conceitos e padrões incompatíveis

com as técnicas tradicionais tais como, formas plásticas vêm substituindo as tradicionais, de

madeira; bombões de polietileno em estilo semidescartáveis se impõem aos latões de leite;

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bancas de madeira são substituídas por bancas de ardósia; cochos curtidos são substituídos

por recipientes de plástico para o depósito do soro; coalhos naturais quase não existem mais.

Para tanto devemos aplicar as experiências francesas na preservação e variedades de

seus queijos, conciliando os cuidados sanitários com as técnicas tradicionais. A França, além

de preservar técnicas tradicionais de 365 queijos feitos à partir de leite cru, também preserva a

tradição vinícola da pisa das uvas, as antigas técnicas de obtenção do foie gras e do boule, o

inimitável pão caseiro francês.

Para a lei federal de 1952, queijo Minas é denominação genérica que engloba o queijo

artesanal produzido a partir do leite cru. Porém, de acordo com Pires (2013) a espécie

artesanal envolve ingredientes comuns ao queijo Minas com variações (leite cru, coalho,

microrganismos e sal) e apresenta-se como um concentrado de gordura e proteína, de

consistência firme, sabor e cor próprios e massa uniforme, marcada ou não por olhaduras

mecânicas.

A chamada Lei do Queijo, uma conquista dos produtores mineiros, Lei Estadual

n°14.185 de 31 de janeiro de 2002, que dispõe sobre o processo de produção do queijo

artesanal em Minas Gerais, conceitua Queijo Minas Artesanal o confeccionado conforme a

tradição histórica e cultural da região do Estado onde for produzido, a partir do leite integral

de vaca fresco e cru, retirado e beneficiado na propriedade de origem, que apresente

consistência firme, cor e sabor próprios, massa uniforme, isenta de corantes e conservantes,

com ou sem olhaduras mecânicas.

A lei sanitária federal brasileira impunha um mínimo de 60 dias de maturação para um

queijo artesanal ser vendido fora de seu Estado de origem. De acordo com Bruno Cabral,

mestre queijeiro, por este motivo, “o trafico de queijo no Brasil é muito forte e mistura

queijos de altíssima qualidade com queijos de baixíssima qualidade. Isso não é bom para a

imagem do queijo brasileiro”.8

Porém desde meados de 2013, o Ministério da Agricultura flexibilizou a venda dos

queijos artesanais de qualquer Estado com menos tempo de maturação – desde que haja

estudos que comprovem sua qualidade. Isto se deve ao fato de os produtores mineiros terem

conseguido a aprovação de uma nova norma que equipara e reconhece a Inspeção Estadual à

Federal (SIF, Serviço de Inspeção Federal). Esta nova normatização significa, na prática, que

8 Disponível em <http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2013/10/131009_video_queijo_cc.shtml>.

Acesso em 20 mai. 2014.

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os produtores que tiverem o selo do Instituto Mineiro Agropecuário poderão vender seus

queijos frescos e curados no Brasil inteiro.9 Essa benesse da lei é bem vinda entre produtores

e consumidores e fez com que surgisse em São Paulo a primeira loja especializada em queijos

artesanais brasileiros que vende mais de 80 tipos de queijos de seis Estados brasileiros.

O fato é que nem o leite e nem o tempo de maturação podem ser alterados no processo

desses queijos artesanais. De acordo com Harbutt (2010) o leite cru é imprescindível e

insubstituível, pois, de outra forma estaria sendo modificada a identidade e a personalidade de

um queijo. Já na questão da maturação, a autora estabelece que o processo de maturação é a

arte e a ciência da queijaria, já que ele traz à tona a característica do leite e os sabores

peculiares atribuídos à pastagem.

Um bom affineur – pessoa que cuida do amadurecimento dos queijos – pode tratar até o queijo mais simples para que expresse cada nuance de sabor. Os queijos artesanais variam de um dia para outro, dependendo da pastagem, da estação, das condições na sala de queijos e do queijeiro. Portanto, à diferença do vinho, o queijo dá uma safra diferente todo dia, e é precisamente isso que o torna tão extraordinário e maravilhoso (HARBUTT, 2010, p.7).

Hoje, junto com o reconhecimento pelo IPHAN e a criação da Lei do Queijo, os

produtores se associarão para um melhor desempenho profissional e comercialização do

produto. Com a criação de um entreposto para cura e comercialização do Queijo Canastra, o

produto chegará identificado com as letras do produtor para ser comercializado com um maior

valor agregado. Só em Medeiros em Minas Gerais, onde fica a sede da associação fabrica-se

em média 100 toneladas de queijo.

Este trabalho identificou a necessidade de uma maior valorização do produto

comercializado. Fica evidenciada a necessidade de maior apoio governamental para

incremento, desenvolvimento e pesquisa para o desenvolvimento deste produto agrícola.

Relatos da dura vida no campo, da falta de mão de obra e o atual desinteresse das novas

gerações pela fabricação artesanal do queijo provocam o êxodo rural. Os filhos dos atuais

produtores interessam-se pouco em dar continuação ao fabrico do queijo. Conhecem a

técnica, mas preferem estudar e trabalhar na cidade.

A principal razão para isso se deve à pouca valorização do produto. Independente das

visitas realizadas em produtores que têm a venda de seus produtos consolidada a um preço

elevado, a maior parte dos 30.000 produtores de queijo Minas ainda enfrenta restrição aos

valores de seus produtos. O valor pago por litro de leite na região é de 85 centavos. Para a

9 Disponível em <http://www.sertaobras.org.br/queijo-2/queijo-da-serra>. Acesso em 20 mai. 2014.

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produção de um quilograma de queijo, utiliza-se 10 litros de leite. Assim, apenas com matéria

prima, um queijo já custa R$ 8,50.10 Nos entrepostos os produtores conseguem vender seus

queijos à 8 reais o quilo. Portanto o queijo manipulado vale menos que a venda do leite puro.

Contudo as mudanças na realidade da produção queijeira de Minas Gerais já estão

acontecendo, a começar pela Legislação de 2002, legalizando o queijo no Estado de Minas

Gerais. O próximo passo é a implantação dos entrepostos, realidade iminente que propões a

legalização dos queijos Minas em outros Estados do país. Conforme Bruno Cabral, três

entrepostos já estão quase prontos: o da Serra da Canastra em Medeiros, o de Araxá e o do

Cerrado (Alto Paranaíba). Por fim. a última etapa de valorização deste queijo no país é a

promoção perante o consumidor; trabalho que Bruno Cabral, Mestre Queijeiro, Fernando

Oliveira da loja A Queijaria, Ana Luiza Trajano chef do Brasil a Gosto, entre outros já vem

promovendo. Esta união dos profissionais da Gastronomia em prol de maior prestígio ao uso e

consumo deste produto é imprescindível para a manutenção desta cultura gastronômica.

Outra discussão que demanda atenção diz respeito aos entrepostos. De fato poucos

produtores terão acesso, ao menos inicialmente, aos entrepostos. Os motivos para isso são

variados. Por outro lado, os produtores com acesso, vislumbram a valorização do preço de

venda, um espaço adequado para a maturação de seus queijos e a possibilidade de venda

destes queijos para outros Estados. Entretanto temem que os queijos sejam padronizados, ou

seja, gostariam que seus queijos fossem diferenciados por produtor, mantendo a questão

territorial. Certamente o entreposto é uma aposta duvidosa, uma vez que aos olhos do

produtor pode ser positiva, mas que muitos fatores podem incidir sobre suas produções. O

governo percebe nos entrepostos uma possibilidade de maior arrecadação de impostos,

inexistente na venda informal dos produtores até hoje. Os pontos negativos deste espaço

certamente estão no rígido controle que o governo pode fazer na produção destes artesãos.

Apenas após o funcionamento do entreposto de Medeiros os produtores da região terão

a capacidade de compreender se o investimento foi válido, agregando ou não novos

produtores em busca da valorização deste produto. A priori, os produtores contam com o

apoio da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do estado de Minas Gerais

(Emater-MG) e do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), além das cooperativas e

do Sistema Ocemg (Organização das Cooperativas do Estado de Minas Gerais), que irão

10 O valor do litro do leite foi obtido em pesquisa de campo em são roque de Minas em junho de 2013.

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custear os exames feitos nos animais (brucelose e tuberculose), além de análises do queijo e

da água (Globo Rural, 2013).

Outro fato muito interessante que esta pesquisa ressalta, é a influência da mulher,

normalmente da esposa do produtor na produção queijeira. Nas visitas feitas a Medeiros e São

Roque de Minas, notou-se que a arte da fabricação do queijo pertence às esposas dos

produtores. Elas são peças fundamentais e atuam de forma a valorizar o trabalho de seus

maridos no campo com o trato dos animais, ordenha e limpeza dos equipamentos. A união do

casal é a mola mestre deste serviço, que valoriza os saberes e fazeres da mulher na

manutenção desta atividade secular. Pode-se notar nas visitas o interesse e carinho em fabricar

o queijo, cuja atividade faz parte do cotidiano atarefado dessas mulheres, que envolve a

divisão de sua jornada de trabalho nas queijarias e nos afazeres do lar.

CONCLUSÃO

Este artigo nos direciona a algumas conclusões:

Primeiramente, o queijo da Serra da Canastra necessita de maior valorização para a

preservação de uma tradição reconhecida a nível nacional. Esta maior valorização se sentirá,

sobretudo, no engajamento das novas gerações de produtores que poderão manter o interesse

nessa tradição além da manutenção de uma atividade de subsistência essencialmente familiar.

Atualmente existe o êxodo rural com os mais jovens abdicando da vida na roça.

Em segundo lugar, há a necessidade de maior adequação da lei à realidade do produtor

do queijo da Serra da Canastra, visando a perpetuação deste patrimônio cultural, construído

com conhecimento, técnica e tradição.

Em terceiro lugar, há a necessidade de aumentar a oferta de mão de obra qualificada,

visando melhorar a qualidade do produto e sua produtividade.

E, para finalizar, a gastronomia pode e deve valorizar a utilização deste insumo em

preparações e divulgação, pois a união de quem faz a matéria prima e de quem cozinha, é uma

união de responsabilidade.

O queijo artesanal da Serra da Canastra tem que permanecer disponível e ao alcance

dos brasileiros e da humanidade e deve ser reconhecido como um item especial na história da

alimentação no Brasil.

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REFERÊNCIAS

GLOBO RURAL. Queijos de Minas terão centros de maturação. Disponível em: <http://revistagloborural.globo.com/>. Acesso em 27 jul. 2013.

HARBUTT, J.. O livro do queijo. São Paulo: Globo, 2010.

LEANDRO, J.J. QUEIJOS: do campo à mesa. São Paulo: Melhoramentos, 2011.

ORENSTEIN, J. Liberdade (do queijo da Canastra) ainda que tardia. Disponível em <http://infograficos.estadao.com.br/public/paladar/setimo-paladar-cozinha-do-brasil/sab-queijos-serra.html>. Acesso em 17 jun. 2013.

PEREIRA, E.C. Guia do Serro: a capital do norte na Minas colonial. Rio de Janeiro: Ed. Papel Virtual, 2003.

PIRES, M.C.S. Memória e arte do queijo do Serro: o saber sobre a mesa. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2013.

RIBEIRO, J.A. A evolução da tecnologia queijeira. Revista do Instituto de Laticínios Cândido Tostes, Juiz de Fora, v.13, p.27-30, 1958.

SERRA DA CANASTRA. São Roque de Minas. Disponível em: <http://www.serradacanastra.com.br/saoroque/saoroque.html>. Acesso em 28 jun. 2013.