punitive damage no dano moral

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU MESTRADO EM DIREITO PRIVADO E ECONÔMICO SALOMÃO RESEDÁ A APLICABILIDADE DO PUNITIVE DAMAGE NAS AÇÕES DE INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO Salvador 2008

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APLICABILIDADE DO PUNITIVE DAMAGE NAS AÇÕES DE INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

    FACULDADE DE DIREITO PROGRAMA DE PS-GRADUAO STRICTO SENSU MESTRADO EM DIREITO PRIVADO E ECONMICO

    SALOMO RESED

    A APLICABILIDADE DO PUNITIVE DAMAGE NAS AES

    DE INDENIZAO POR DANO MORAL NO ORDENAMENTO JURDICO BRASILEIRO

    Salvador 2008

  • SALOMO RESED

    A APLICABILIDADE DO PUNITIVE DAMAGE NAS AES DE INDENIZAO POR DANO MORAL NO ORDENAMENTO JURDICO BRASILEIRO

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao em Direito, Faculdade de Direito, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obteno do grau de Mestre em Direito. Orientador: Prof. Dr. Rodolfo Mrio da Veiga Pamplona Filho.

    Salvador

    2008

  • R432 Resed, Salomo. A Aplicabilidade do punitive damage nas aes de indenizao por

    dano moral no ordenamento jurdico brasileiro / Salomo Resed. Salvador, 2008.

    321f.

    Dissertao (mestrado) Universidade Federal da Bahia. Mestrado em Direito Privado e Econmico

    Orientador: Prof. Rodolfo Mrio da Veiga Pamplona Filho 1. Direito Privado - Brasil. 2. Dano Moral. 3. Responsabilidade Civil I.

    Ttulo. CDU 347.426.4

  • TERMO DE APROVAO

    SALOMO RESED

    A APLICABILIDADE DO PUNITIVE DAMAGE NAS AES DE INDENIZAO POR DANO MORAL NO ORDENAMENTO JURDICO BRASILEIRO

    Dissertao julgada aprovada como requisito parcial para obteno do grau de Mestre em Direito,

    Universidade Federal da Bahia, pela seguinte banca examinadora:

    Dr. Rodolfo Mrio da Veiga Pamplona Filho_____________________________ Doutor em Direito pela Pontifcia Universidade de So Paulo (PUC).

    Dr. Edivaldo Machado Boaventura_____________________________________ Livre-Docente e Doutor pela Universidade Federal da Bahia (UFBa)

    Dr. Jonhson Meira Santos____________________________________________ Doutor em Direito pela Universidade de So Paulo (USP)

    Salvador, de de 2008

  • AGRADECIMENTOS

    Este , certamente, o momento mais complicado de toda a dissertao. Agradecer , antes de

    tudo, reconhecer a sua limitao fsica e intelectual. No h esta pessoa que navegue pelos

    mares da vida numa rota solitria e independente. Todos ns temos a necessidade de interagir

    com os nossos semelhantes, para que seja possvel alcanar uma evoluo plena.

    Durante esta construo espiritual possvel encontrar pessoas especiais que funcionam com

    catalisadores de conhecimento, de incentivo e de alegrias. So estes seres humanos mpares

    que derrubam as barreiras e imposies impostas pelas batalhas dirias as quais somos

    forados a encarar a cada nascer do sol.

    Seja em razo da famlia; dos velhos amigos que permaneceram firmes e fortes, mesmo diante

    de todas as dificuldades e desencontros, ou dos novos conquistados ao longo deste caminho.

    Seja em razo do funcionrio mais humilde que, numa manh, ainda que chuvosa, nos lembra

    de que no somos esquecidos com um simples bom dia! Independente de qual for a razo, a

    todos, o meu muito obrigado por tudo!

    Dentre todos aquele que atravessaram o caminho trilhado ao longo desses dois anos, h os que

    merecem destaque por suas peculiaridades que lhes agregam a unicidade perante os demais.

    Acima de tudo, rogo a Deus, todo poderoso, os meus sentimentos de gratido pela proteo e

    pela fora de vontade concedida a cada dia: Pela sade que me acompanhou durante todo o

    tempo e manuteno dos meus suportes fsicos. Enfim, pela sua condio de superioridade e

    sabedoria que irriga meus sonhos e me faz seguir em busca de novos horizontes.

    Agradeo primordialmente minha me, Cla Aparecida, que em incontveis vezes me

    apoiou em decises cruciais, e foi, e continuar sendo, um dos principais aportes para as

    minhas evolues. A sua condio de me no lhe retira a postura crtica perante os erros,

    porm lhe d a autoridade de incentivar diante das indecises e festejar perante as conquista.

    No poderia esquecer, em hiptese nenhuma, de conferir a minha gratido minha irm,

    Maria Vitria Resed, que, com toda a sua alegria, aposta todas as fichas no meu

    crescimento. Sempre buscando trazer palavras de incentivo, ela no abandona nem mesmo

    nos momentos em que tudo parece andar em sentido contrrio. A essa querida figura, no

    remeto s o meu obrigado, mas tambm a certeza de que o seu desenvolvimento ser maior do

    que o do seu irmo.

  • Um muito obrigado a meu pai, Emlio Salomo Pinto Resed, que em boa parte do tempo

    instigou-me a superar desafios a partir dos seus questionamentos. Foi com as suas

    inquietaes que passei a tentar chegar o mais prximo possvel da perfeio, mesmo sabendo

    que esta no uma meta fcil de ser alcanada.

    Meus agradecimentos minha namorada Suzana Viana. Seus auxlios e incentivos foram mais

    do que importante para a concretizao desta obra e a concluso da jornada. Sempre acreditou

    no alcance deste sonho. Seja atravs de uma ligao ou de uma visita, o incentivo estava

    sempre presente no companheirismo. Sinta-se proprietria de parte dessa obra. Com carinho,

    muito obrigado, S!

    No sei se agradecer seria suficiente. Assim, reverencio o meu orientador, Rodolfo Pamplona,

    por, absolutamente, toda a minha estruturao acadmica e pelos novos conhecimentos

    adquiridos. O ttulo de orientador somente lhe conferido por mera formalidade, pois, esta

    barreira j foi quebrada desde datas anteriores. Hoje, Rodolfo Pamplona ultrapassa desta

    figura impessoal, para assumir a condio de pai-amigo-irmo ou qualquer outro status que

    lhe agregue este sentimento de fraternidade e admirao. Dentre as poucas coisas que exijo,

    uma delas a manuteno deste vnculo para alm do mestrado; determinao esta que,

    acredito, j ter sido chancelada.

    Merecedor das mesmas deferncias, Pablo Stolze figura no rol daquelas conquistas

    agradveis do mestrado. Ao meu orientador prtico, o meu muito obrigado por aceitar me

    conduzir nas aulas, passando-me os seus ensinamentos de magistrio. Que nossa amizade

    permanea em evidncia por tempo indeterminado, pois a admirao certamente ser

    contnua. Irmo, valeu por tudo!

    Alm do ttulo de mestre, a jornada que aqui se finda trouxe-me alguns amigos, dentre os

    quais destaco, inicialmente, de forma genrica, a Famlia Figueiredo. Luciano e Beto, figuras

    ilustres que solidificaram seu captulo na minha biografia. Pessoas mpares que, com todo o

    prestgio, ocupam lugar de destaque no meu ciclo de amizades. Que Deus proteja a todos

    vocs, rogando paz e tranqilidade ao seu pai que, certamente, est num lugar de bastante luz.

    No podem ser deixados de lado os meus velhos, tradicionais e firmes amigos. A eles, alm

    do meu agradecimento, o meu pedido de desculpas pelo abandono e pelo contato reduzido.

    Alemo, Chupana, Magoo, Larcio, Dani, rika, e os demais, cuja memria me furta neste

    momento, saibam que vocs possuem cadeira cativa na minha existncia e que, apesar da

  • distncia, ainda so peas fundamentais para a minha evoluo. A culpa no minha, do

    tempo que curto. Com vocs s tem graa aproveitando o mximo.

    Por fim, muito obrigado a Junivo, Pedro, Luza, Lcia, Anglica e demais funcionrios do

    Mestrado de Direito da UFBa; a todos os professores, pelos ensinamentos que me foram

    passados, e a todos os colegas e amigos que dividiram cada minuto das aulas ministradas no

    segundo andar da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia.

    Sei que os desafios nunca acabam, eles somente aumentam de tamanho. Mas acredito ainda

    mais que sonhar fazer, e viver ter coragem de realiz-los.

  • Um direito concreto que se vangloria da sua existncia para pretender uma durao ilimitada, eterna, recorda o filho que levanta a mo contra sua prpria me. Insulta a idia do direito, invocando-a, porque a idia do direito ser eternamente um movimento progressivo de transformao.

    (Rudolf Von Ihering)

  • RESUMO

    O punitive damage uma doutrina que ganhou bastante relevo no ordenamento jurdico americano. Segundo seus ditames, ao ofensor deve ser imputado um valor indenizatrio que seja considerado passvel de lhe desestimular na pratica de novas condutas. Apesar da existncia de embates dos operadores do direito daquele pas, alguns juristas brasileiros aceitam a possibilidade de insero desta doutrina no mbito do direito nacional no intuito de sanar a problemtica do quantum do da indenizao por danos morais. Assim, o presente trabalho tem como objetivo analisar a aplicabilidade do punitive damage nas aes de indenizao por danos morais no ordenamento jurdico brasileiro. Para tanto, ser construdo o contedo a partir da abordagem histrico-evolutiva da responsabilidade civil como um todo, passando pelo caminho desenvolvido pelo dano moral ao longo dos tempos, at os dias atuais. Ento, sero consultadas as teorias nacionais que buscam encontrar meios para facilitar a quantificao do dano moral e em seguida a doutrina do punitive damage no intuito de se familiarizar com seus requisitos. Por fim, a partir da colheita de todos esses predicados desenvolver-se- o estudo em torno do tema principal. A busca pela resposta ao problema em questo se faz de suma importncia para uma possvel mudana de pensamento no que se refere responsabilidade civil em razo de fatos ilcitos que venham a causar danos morais ao ofendido.

    Palavras-chave: dano moral; punitive damage; responsabilidade civil; aplicabilidade; direito brasileiro.

  • ABSTRACT The punitive damage is a doctrine that gained relief in the American legal system sufficiently. According to its orientation, to the injurer a indemnification value must be imputed that is considered viable of discouraging to it in practices of new behaviors. Despite the existence of you strike of the operators of the right of that country, some Brazilian jurists accept the possibility of insertion of this doctrine in the scope of the domestic law in intention to cure the problematic one of quantum of the one of the indemnity for pain and suffering. In spite of the existence of collisions of the operators of the right of that country, some Brazilian jurists accept the possibility of insert of this doctrine in the extent of the national right in the intention of curing the problem of the quantum of the one of the compensation for moral damages. Thus, the present work has as objective analyzes the applicability of the punitive damage in the compensation actions for moral damages in the Brazilian law. For so much, the content will be built starting from the historical-evolutionary approach of the torts as a whole, going by the road developed by the moral damage along the times, until the current days. Then, they will be consulted the national theories that you/they look for to find means to facilitate the quantification of the moral damage and soon afterwards the doctrine of the punitive damage in the intention of familiarizing with their requirements. Finally, starting from the crop of all those predicates he/she will grow the study around the main theme. The search for the answer to the problem in subject is made of addition importance for a possible thought change in what refers to the torts in reason of illicit facts that come to cause moral damages to the offended.

    Key-words: moral damage; punitive damage; torts; viability; Brazilian law.

  • LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    CC Cdigo Civil

    CDC Cdigo de Defesa do Consumidor

    CF Constituio Federal

    CPC Cdigo Processo Civil

    CPP Cdigo Processo Penal

    DJ Dirio da Justia

    EUA Estado Unidos da Amrica

    HC Habeas Corpus

    Min Ministro

    RDA Revista de Direito Administrativo

    RE Recurso Especial

    Rel. Relatrio

    RJ Recurso Julgado

    RT Revista do Tribunal

    STF Supremo Tribunal Federal

    STJ Supremo Tribunal de Justia

    TF Tribunal Federal

    TFR Tribunal Federal Regional

    TJ Tribunal de Justia

  • SUMRIO

    1 INTRODUO 15

    2 UMA VISO GERAL SOBRE A RESPONSABILIDADE CIVIL 19

    2.1 ASPECTOS INICIAIS 19

    2.2 DO ATO ILCITO 21

    2.2.1 Aspectos do Ato Ilcito 24

    2.3 DO ABUSO DE DIREITO 26

    2.3.2 O Abuso de direito no direito brasileiro. 28

    2.4 DA RESPONSABILIDADE 32

    2.4.1 A moral na responsabilidade 33

    2.4.1.1 A responsabilidade moral e a defesa da integridade social 35

    2.4.2 O significado da responsabilidade 36

    2.4.3 A responsabilidade a partir do vis penal 38

    2.4.4 Breves aspectos evolutivos da responsabilidade civil 40

    2.4.4.1 A Lei Aqulia e a evoluo da responsabilidade 43

    2.5 DA RESPONSABILIDADE CIVIL 47

    2.5.1 A conduta do agente 50

    2.5.2 A culpa ainda posiciona-se como requisito fundamental? 52

    2.5.3 As mudanas sociais e a responsabilidade objetiva 54

    2.5.4 O nexo causal na responsabilidade civil 59

    2.5.4.1 As teorias acerca do nexo causal 61

    2.5.5 A pea principal da responsabilidade civil: o dano 64

    2.5.5.1 As faces do dano 66

    2.5.5.1.1 Aspectos sobre os lucros cessantes e o dano emergente 69

    2.6 A MUDANA DE PARADIGMA E UMA NOVA FORMA DE OBSERVAR

    AS RELAES JURDICAS

    71

    3 O DANO MORAL NO TRANSCORRER DOS TEMPOS 73

    3.1 BREVE INTRODUO 73

    3.2 A EVOLUO O DANO MORAL 76

    3.2.1 O dano moral na antiguidade 76

    3.2.2 Aspectos gerais do dano moral no direito clssico 78

  • 3.2.2.1 O dano moral no direito romano 78

    3.2.2.2 O dano moral no direito cannico 80

    3.2.3 O dano moral no direito moderno 81

    3.3 O SER HUMANO COMO FOCO PRINCIPAL 84

    3.3.1 O princpio da dignidade da pessoa humana 87

    3.4 A EVOLUO DO DANO MORAL NO DIREITO BRASILEIRO 92

    3.4.1 Primeiro momento: a negao absoluta ao dano moral 93

    3.4.2 Segundo momento: o reconhecimento taxativo do dano moral 98

    3.4.2.1 O dano moral e o Cdigo Civil de 1916 102

    3.4.3 Terceiro momento: da constituio federal de 1988 at os dias atuais 107

    3.4.3.1 A Constituio Federal no centro do ordenamento jurdico brasileiro 109

    3.4.3.2 Os direitos da personalidade com pilar fundamental 111

    3.4.3.3 Constituio Federal, direitos fundamentais e danos morais 115

    3.4.4 A personalizao das relaes civis 117

    4 ELEMENTOS DO DANO MORAL 121

    4.1 INTRODUO 121

    4.2 DANO MORAL E DANO PATRIMONIAL: DUAS REALIDADES

    DISTINTAS

    122

    4.3 AFINAL, O QUE VEM A SER O DANO MORAL? 125

    4.3.1 O conceito excludente do dano moral 128

    4.3.2 O dano moral como modificao do estado anmico 130

    4.3.3 Dano moral como ofensa a direitos da personalidade 137

    4.4 MERO ABORRECIMENTO X DANO MORAL: UMA DIFERENCIAO

    NECESSRIA

    144

    4.4.1 Quando a vtima a fonte do dano moral 151

    4.5 AS FACES DO DANO MORAL 153

    4.5.1 Dano moral reflexo ou em ricochete 154

    4.5.2 O dano moral transmissvel 157

    4.5.3 Dano moral coletivo 160

    4.6 A PROVA NO DANO MORAL 165

    5 A QUANTIFICAO DO DANO MORAL: UMA DIFCIL TAREFA A SER

    CUMPRIDA

    173

  • 5.1 UMA ANLISE PRELIMINAR 173

    5.2 INDENIZAR, RESSARCIR OU COMPENSAR? EIS A QUESTO 176

    5.3 O DINHEIRO NA INDENIZAO POR DANO MORAL 182

    5.4 O STJ E O DANO MORAL 186

    5.5 A NATUREZA JURDICA DA INDENIZAO POR DANOS MORAIS 189

    5.5.1 A indenizao e sua funo sancionadora 190

    5.5.2 Os danos morais compensatrios 191

    5.5.3 O carter misto da indenizao 193

    5.6 A QUANTIFICAO DO DANO MORAL 196

    5.6.1 Critrio matemtico 199

    5.6.2 O tabelamento do dano moral: 200

    5.6.3 O arbitramento do valor indenizatrio 206

    5.6.3.1 O magistrado como pea fundamental 208

    5.6.3.2 A condio econmica do sujeito passivo. 212

    5.6.3.3 A repercusso do dano 216

    5.6.3.4 A gravidade do ato ofensivo 219

    5.6.3.5 A anlise do montante a partir do ofensor 220

    6 APONTAMENTOS SOBRE O PUNITIVE DAMAGE 223

    6.1 INTRODUO 223

    6.2 O PUNITIVE DAMAGE 224

    6.2.1 O que vem a ser punitive damage? 224

    6.2.2 Por que punitive damage e no danos punitivos? 229

    6.2.3 Outras formas de indenizao no direito norte-americano 232

    6.2.3.1 Compensatory Damages 233

    6.2.3.2 Nominal Damage 233

    6.2.3.3 General Damages 233

    6.2.3.4 Special Damage 234

    6.2.3.5 Aggravated damages 235

    6.3 A EVOLUO HISTRICA DO PUNITIVE DAMAGE 236

    6.3.1 O punitive damage no direito ingls 236

    6.3.2 O punitive damage no direito norte americano 240

    6.3.2.1 O punitive damage e suas indenizaes milionrias 243

    6.3.2.2 Caso Ford Pinto Case 243

  • 6.3.2.3 Caso Mc Donalds Coffee Case 245

    6.3.2.4 O caso Curtis Publishing Co. v. Buttus 246

    6.4 O PUNITIVE DAMAGE NA ATUALIDADE AMERICANA: ALGUMAS

    RESISTNCIAS

    247

    6.4.1 O caso gore v bmw: repensando o punitive damage no direito americano 249

    6.4.2 Alegaes contrrias ao punitive damage no direito norte-americano 251

    6.4.2.1 A inconstitucionalidade do punitive damage perante as emendas Oitava e

    Dcima

    251

    6.4.2.2 O punitive damage como fonte de enriquecimento sem causa vtima. 252

    6.4.2.3 O punitive damage como ofensa ao Due Process Clause e ao Amendment XIV 254

    6.5 AINDA VIVEL O PUNITIVE DAMAGE? 257

    6.6 REQUISITOS PARA APLICAO DO PUNITIVE DAMAGE. 258

    6.6.1 A conduta reprovvel 259

    6.6.2 O elemento pedaggico-desestimulador do punitive damage 261

    6.6.3 O ofensor no punitive damage 262

    6.6.4 O ofendido no punitive damage 264

    7 A APLICAO DO PUNITIVE DAMAGE NAS AES DE INDENIZAO

    POR DANOS MORAIS NO DIREITO BRASILEIRO

    266

    7.1 CONSIDERAES INICIAIS 266

    7.2 RESISTNCIAS AO PUNITIVE DAMAGE 268

    7.2.1 O punitive damage, o direito pblico e o direito privado 270

    7.2.1.1 A necessria mudana de paradigma 270

    7.2.1.2 A fragilizao da dicotomia direito pblico x direito privado 272

    7.2.2 O punitive damage e o princpio nulla poena sine lege 274

    7.2.3 A pena x o punitive damage 278

    7.2.3.1 O punitive damage semelhante pena? 280

    7.2.4 A liberdade do magistrado na aplicao do punitive damage 281

    7.2.4.1 Punitive Damage, juri e direito brasileiro: incompatibilidade 282

    7.2.5 O punitive damage como fonte de enriquecimento sem causa ao ofendido 284

    7.2.5.1 necessrio observar o ofensor e no somente o ofendido 285

    7.2.5.2 O erro na ordem de anlise pode levar ao enriquecimento sem causa 286

    7.3 O CARTER DUPLO DA INDENIZAO POR DANOS MORAIS 290

    7.3.1 O punitive damage como uma arma preventiva 294

  • 7.4 A FUNO SOCIAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANOS

    MORAIS A PARTIR DO PUNITIVE DAMAGE

    295

    7.5 A ATUAL APLICAO DO PUNITIVE DAMAGE NO SISTEMA JURDICO

    BRASILEIRO

    299

    7.5.1 O punitive damage nos danos morais coletivos 301

    7.5.2 O punitive damage nos danos morais individuais 304

    8 CONCLUSO 308

    REFERNCIAS 313

  • 1 INTRODUO

    Apesar da sua individualidade, o ser humano necessita da convivncia com seu semelhante

    para que possa suprir suas carncias. Por ser uma realidade muito distante da vida das

    pessoas, a inexistncia de auto-suficincia torna o convvio social indispensvel.

    exatamente a partir desta interao coletiva que surgem inmeros conflitos de interesses.

    Ao mesmo tempo em que figura como dependente, o homem possui como caracterstica o

    egosmo. Na nsia de saciar necessidades bsicas, - e, tambm, as superficiais - ele ultrapassa

    seu campo de atuao, indo de encontro diretamente aos direitos conferidos ao seu

    semelhante. Este, por sua vez, numa reao contrria, busca oferecer resistncia esta ameaa

    no intuito de assegurar a incolumidade dos seus direitos.

    Instalado o embate, cumpre ao Estado, na funo primordial de mantenedor da paz social,

    garantir sua regulao atravs de mecanismos diversos, inclusive a represso. Para evitar a

    auto-tutela, esta imposio deve ser feita diretamente a partir de um organismo imparcial e

    que se encontre afastado dos interesses envolvidos. Em conseqncia, o ordenamento jurdico

    passa a ganhar forma, j que a sua existncia justifica-se a partir do desequilbrio das

    interaes interpessoais.

    Dentro das ferramentas utilizadas para garantir a sustentao da ordem, evitando-se, com isso,

    a inrcia perante o prejuzo causado por livre vontade do agressor, o Poder Judicirio lana

    mo da responsabilidade civil. O ser humano deve responder pela sua conduta, na medida em

    que a ele conferido o livre arbtrio com o conseqente reconhecimento da capacidade plena.

    A vtima no poder ficar descoberta mediante uma ao ou omisso danosa.

    A busca pela manuteno da ordem social no se concretiza to simples como pode

    transparecer num primeiro momento. A contnua evoluo da sociedade passa a apresentar ao

    indivduo uma gama de carncias muito maior do que aquela existente num passado prximo.

    Com isso, a insatisfao passa a ser uma constante na vida das pessoas.

    Instigado pelas novidades trazidas com a evoluo tecnolgica e as descobertas da cincia, o

    homem torna-se alvo fcil de abusos e condutas consideradas desconexas com o anseio social.

    A incidncia de comportamentos nocivos passa a ocorrer com uma freqncia cada vez maior.

    Em conseqncia, com o passar dos anos h, tambm, uma gama crescente de demandas

    contendo aes que agregam em si danos e prejuzos.

    A garantia de proteo do homem acima de qualquer patrimnio foi conseguida a partir de

  • longos conflitos que estamparam marcas de sangue na histria. Ao elevar o princpio da

    dignidade da pessoa humana ao patamar mais alto do ordenamento jurdico, o legislador

    reconheceu a necessidade de desvencilhar-se da nsia de acumulo de patrimnio para passar a

    agregar o devido valor pessoa em razo da sua simples e fundamental condio de ser

    pessoa.

    As transformaes institudas ao longo dos tempos na responsabilidade civil foram

    indispensveis, porm no podem ser consideradas como suficientes. Seja com o

    reconhecimento da responsabilidade civil objetiva, e conseqente desconexo da idia de

    culpa; seja com o reconhecimento do coletivo como sujeito passivo deste tipo de ao, o fato

    que este instituto ainda no ganhou os contornos necessrios para aambarcar todos os

    entraves sociais.

    A cada novo passo da tecnologia, o ser humano caminha para uma exposio mais ampla de

    direitos a ele intrnseco. A sede pela busca da satisfao individual faz com que os indivduos

    esqueam da necessidade de convvio em harmonia com o seu semelhante, desrespeitando-a.

    Aumentam as formas e quantidades de agresses. Isso impe ao sistema jurdico a elaborao

    de escudos anteriormente desnecessrios.

    O dano moral uma conseqncia direta da carncia de proteo surgida no transcurso dos

    anos. Anteriormente desprotegido, o mbito imaterial passou a ser merecedor de ateno por

    parte dos julgadores. A limitao apenas ao aspecto patrimonial j no supria as demandas

    sociais que eram levadas a juzo. A evoluo se deu, principalmente, na forma como o

    ordenamento passou a encarar a responsabilidade civil. Agora, muito mais ampla do que

    anteriormente.

    Porm, to difcil como foi aceitar a possibilidade de ampliar a prestao jurisdicional a uma

    espcie de agresso que no afeta, em boa parte das vezes, o mbito econmico dirimir os

    embates existentes em seu mago. O agravo imaterial nunca foi, e at um futuro prximo no

    ser, algo fcil de ser digerido pelos operadores do direito. A sua intrnseca subjetividade no

    autoriza a norma a estabelecer parmetros fixos para o seu regramento.

    Apesar da sua incontestvel existncia no ordenamento jurdico, o dano moral demanda

    inmeras discusses no mbito da sua aplicao prtica. Os embates mais fervorosos

    encontram-se na delimitao do valor, ao tempo da sua quantificao. As mais diversas

    teorias foram suscitadas, como, por exemplo, a que busca inserir no mbito do dano moral um

    valor tabelamento para a indenizao. Alguns parlamentares passaram, ento, a elaborar

  • projetos de leis voltados, exclusivamente, regulamentao do prejuzo imaterial. Por sua

    vez, h juristas que defendem a importao de preceitos constantes na doutrina aliengena

    para aplicao no ordenamento ptrio.

    Neste sentido, o punitive damage apresenta-se como aquela teoria que agrega consigo um

    maior nmero de adeptos, e, ao mesmo tempo, de opinies contrrias. Proclamada, por

    alguns, como uma maneira vivel para garantir uma efetividade mais ampla aos danos morais

    na sociedade moderna, esta doutrina traz consigo opositores ferrenhos que, a partir de

    fundamentos diversos, suscitam a sua incompatibilidade com o sistema jurdico brasileiro.

    exatamente dentro deste conflito de opinies que o presente trabalho procura se

    desenvolver. O questionamento central encontra-se na viabilidade do exemplary damage no

    mbito do direito ptrio. Seria ela uma opo vlida para, pelo menos, dirimir a problemtica

    da quantificao dos danos morais? Esta e outras dvidas sero trazidas tona com a

    evoluo dos escritos.

    No captulo segundo ser possvel encontrar um apanhado evolutivo da responsabilidade de

    uma forma geral. A partir de uma abordagem mais ampla tentou-se iniciar o caminho

    mediante a apresentao dos percalos enfrentados por este instituo no transcorrer dos

    tempos. A descrio da conduo histrica conduz ao surgimento da responsabilidade civil

    propriamente dita e das suas caractersticas advindas das modificaes introduzidas ao longo

    dos anos.

    A insero da proteo contra danos caracterizados como no-patrimoniais foi uma das

    principais transformaes inseridas no mbito da responsabilidade civil. Neste sentido,

    dedica-se o terceiro captulo sua transformao no transcorrer dos tempos. A apresentao

    da trilha deixada no tempo pelo dano moral de fundamental importncia. Os conflitos e os

    passo mais relevantes dados at o seu reconhecimento pleno se reveste de importncia salutar

    para a continuao do trabalho.

    Estabelecido os marcos histricos, urge a necessidade da apresentao dos pilares de

    sustentao do prejuzo no-patrimonial. Apesar de originar da mesma fonte do dano material,

    qual seja, o ato ilcito, o mbito imaterial possui peculiaridades que devem ser apontadas a

    fim de individualizar o instituto na sua aplicao. Por isso, o captulo quarto da obra

    destinado a uma abordagem mais detalhada do dano moral. Sero apresentados os elementos

    para a sua configurao e caractersticas prprias como, por exemplo, a questo envolvendo a

    prova e legitimidade.

  • Ademais, apesar de ter um local prprio para expor todos os requisitos do instituto em apreo,

    foi, propositalmente, deixado para o quinto captulo a abordagem referente sua

    quantificao. Fonte de homricas discusses, a misso de encontrar um valor considerado

    adequado rdua e inquieta muitos operadores do direito. Em conseqncia, projetos de lei e

    doutrinas so construdos para tentar aambarcar este vcuo legal existente. Ao juiz, por sua

    vez, cumpre utilizar mecanismos anlogos para sanar esta problemtica, pois impedido ele

    est em negar a dirimir o conflito. Assim sendo, necessrio se faz uma apurao mais

    minuciosa deste requisito que, atualmente, pode ser considerado como o ponto mais

    conturbado do dano moral.

    Amplia-se os horizontes para buscar na doutrina aliengena uma soluo para a problemtica

    em questo. Porm, adequ-las realidade nacional torna-se um desafio. Por isso, a insero

    da doutrina do punitive damage no direito brasileiro se configura como uma tentativa bastante

    rdua.

    Neste sentido, necessrio se faz extrapolar as fronteiras para consultar a forma de sua

    aplicao em sua terra de origem. impossvel estabelecer parmetros sem que antes haja

    uma investigao do seu funcionamento nas suas razes. Em razo disso, o penltimo captulo

    foi destinado a apresentar o exemplary damage a partir da viso norte-americana. A consulta

    doutrina daquele Pas se fez de suma importncia para as concluses construdas.

    Por fim, a partir da reunio dos requisitos, opinativos, e dos preceitos do punitive damage foi

    possvel erigir uma forma de pensar acerca da possibilidade, ou no, de utiliz-la no mbito

    do dano moral brasileiro. Seria possvel trazer esta doutrina americana para terras brasileiras?

    Este foi um dos questionamentos que permeou a construo do stimo captulo. As falhas e

    acertos, assim como os posicionamentos contrrios e a favor, foram fundamentais para que

    pudesse ser exposto o pensamento constante na ltima parte do trabalho.

    Assim, diante da dedicao e do carinho com que foi desenvolvida esta dissertao, espera-se

    que os objetivos traados no seu nascedouro tenham sido atingidos. No se busca por um

    ponto final na questo envolvendo a quantificao do dano moral. Essa meta seria audaciosa

    demais para um humilde trabalho como este. O que se visualiza, a possibilidade de trazer

    subsdios para esta discusso que tanto instiga os juristas, e, quem sabe, inspirar os julgadores

    em suas decises.

  • 2 UMA VISO GERAL SOBRE A RESPONSABILIDADE CIVIL

    2.1 ASPECTOS INICIAIS

    A vida humana uma constante sucesso de interaes. Seja, por exemplo, atravs da

    insero de novas experincias decorrentes de conhecimentos antes inexistentes, ou dos

    embates ideolgicos travados com seu semelhante, o homem est sempre se relacionando em

    sociedade. No por outro motivo que, em razo da prpria limitabilidade, uma das suas

    caractersticas mais marcantes a condio de ser gregrio.

    A vinculao do indivduo ao coletivo de tal forma intensa que este acaba por tangenciar os

    caminhos a serem seguidos por aquele. A ampliao gradativa dos crculos sociais em que o

    homem se v envolvido no desenrolar de sua existncia faz crescer, proporcionalmente, o

    grau de influncia que a sociedade exerce em sua formao 1.

    Em contrapartida, apesar de necessria, a vida em sociedade no garante a harmonia plena dos

    anseios nela existentes. O livre-arbtrio possibilita a cada ser humano posicionar-se de forma

    diversificada diante de situaes jurdicas semelhantes, agregando-lhes, para tanto, apenas

    anseios particulares.

    Instala-se, a partir de ento, o conflito de interesses que deve ser regulado e, em alguns casos,

    reprimido, por um poder assegurador da paz social e mantenedor da ordem. Onde no h

    interao entre pessoas, no poder haver a incidncia de normas jurdicas, haja vista a

    inexistncia de qualquer embate de anseios a ser tutelado. Assim, por exemplo, na ilha onde

    vivia Robinson Cruso2, o Direito no possui qualquer razo que justifique a sua vigncia.3

    1 MELLO, Marcos Bernardes. Teoria do Fato Jurdico: plano da existncia. 12. ed. So Paulo: Saraiva, 2003, p.3. 2 Robinson Cruso fruto do clebre romance intitulado A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Cruso, criado por Daniel Defoe e publicado em 1719. Inspirado a partir de uma histrica verdica ocorrida com o marinheiro de origem escocesa Alexander Selkirk que fora abandonado numa ilha do arquiplago Juan Fernndez, vivendo isolado e solitrio durante 05 anos (1704 1709), o personagem literrio representa o mito da solido perante o ser humano. Aps o naufrgio da sua embarcao, ele passa a vir sem qualquer companhia, apenas encontrando seu semelhante vinte e oito anos depois da sua chegada em terra firme quando se depara com o personagem de nome sexta-feira, nativo da regio. 3 Sigmund Freud desenvolveu um artigo intitulado Psicologia das Massas e a Anlise do Eu no qual ele desenvolve uma anlise acerca da psicologia do grupo em relao psicologia individual. Segundo o autor quando a anlise voltada ao coletivo possvel observar que: Um grupo impulsivo, mutvel e irritvel. levado quase que exclusivamente por seu inconsciente. Os impulsos a que um grupo obedece, podem, de acordo com as circunstncias, ser generosos ou cruis, hericos ou covardes, mas so sempre to imperiosos, que nenhum interesse pessoal, nem mesmo o da autopreservao, pode fazer-se sentir (p.41). Nada dele premeditado. Embora possa desejar coisas apaixonadamente, isso nunca se d por muito tempo, porque incapaz de perseverana. No pode tolerar qualquer demora entre seu desejo e a realizao do que deseja. Tem um sentimento de onipotncia: para o indivduo num grupo a noo de impossibilidade desaparece.

  • A existncia de direitos se d exatamente em decorrncia da relao social. Falar em direito

    anterior vida coletiva estudar o nada. Somente a partir da interao entre duas ou mais

    pessoas que surgem limites liberdade de escolha de cada indivduos, na medida em que o

    campo de atuao subjetiva de cada um deve ser respeitado, no podendo vir a sofrer ataques,

    nem mesmo ameaas, por parte de terceiros.

    O direito essencial ao homem enquanto homo socialis, isto , ao homem considerado integrante da sociedade. O homem sozinho no necessita de direito ou de qualquer outra norma de conduta. Por isso, o direito no est na natureza do ser humano, sendo-lhe estranho e dispensvel. Somente quando o homem se v diante de outro homem ou da comunidade e condutas interferirem entre si que exsurge a indispensabilidade das normas jurdicas, diante da indefectvel possibilidade dos entrechoques de interesses que conduzem a inevitveis conflitos.4 (destaques no original)

    Porm, nem sempre esta intangibilidade respeitada.

    Dominado pelo egosmo e pela ambio na busca de saciar suas necessidades particulares, o

    ser humano ultrapassa a linha limtrofe pertencente ao campo de atuao subjetiva do seu

    semelhante. Sendo assim, o direito torna-se compelido a dispor de mecanismos que

    assegurem ao sujeito passivo desta relao a interrupo da ameaa a ele perpetrada, alm da

    restituio do seu direito ao status quo ante.

    Como a ningum dado o direito de interferir no patrimnio material ou imaterial de outrem,

    responder o ofensor pelo acontecimento que venha trazer prejuzos ao ofendido, surgindo

    ento a responsabilidade civil5.

    Um grupo extremamente crdulo e aberto influncia; no possui faculdade crtica e o improvvel no existe para ele. Pensa por imagens, que se chamam umas s outras por associao (tal como surgem nos indivduos em estados de imaginao livre), e cuja concordncia com a realidade jamais conferida por qualquer rgo razovel. Os sentimentos de um grupo so sempre muito simples e muito exagerados, de maneira que no conhece a dvida nem a incerteza. (grifo no original) (FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e a anlise do eu. Disponvel em: . Acesso em: 15. jan. 2008). 4 MELLO, Marcos Bernardes. Teoria do Fato Jurdico: plano da existncia. 12. ed. So Paulo: Saraiva, 2003, p. 5-7. 5 J.J Calmon de Passos, em seu artigo intitulado o imoral nas indenizaes por dano moral, apresenta ao leitor a passagem bblica envolvendo Caim e Abel, agregando a ela o ttulo de marco inicial do instituto da responsabilidade civil. Segundo o autor: o relato bblico consigna tambm esse primeiro momento. No episdio de Abel e Caim, est o comeo da historia da nossa responsabilidade. Abel, que sem dvida morreria um dia, morreu, contudo por ato de vontade de Caim. Por isso, Deus o interpelou perguntando-lhe sobre seu irmo. E pouco lhe valeu ter respondido: serei eu acaso guardio do meu irmo? Foi amaldioado, por haver matado o que ainda no tinha chegado hora de seu perecimento, segundo o imperativo das leis que obrigam inelutavelmente tudo quanto existe. (PASSOS, Calmon J. J. O imoral nas indenizaes por dano moral. In: AUGUSTIN, Srgio (coord). Dano Moral e sua quantificao. 4. ed. rev. amp. Caxias do Sul: Plenum, 2007, p.167).

  • Assim, sendo capaz, o homem torna-se, tambm, plenamente responsvel por suas atitudes6.

    A partir do momento em que lhe conferida a prerrogativa de relacionar-se de forma livre

    com os seus semelhantes, tambm deve ser agregada a obrigao de responder pelas

    conseqncias decorrentes da prtica do ato danoso que, sem a sua vontade, jamais teria

    ocorrido.

    2.2 DO ATO ILCITO7

    Nem todo comportamento humano adequa-se de forma perfeita aos anseios sociais. ,

    exatamente a partir desta desobedincia que surge a base para a configurao do ato ilcito8,

    porm ela no por si s suficiente para delinear a ilicitude. H situaes em que, mesmo

    atingindo a incolumidade da esfera jurdica de terceiros, no poder lhe ser agregada qualquer

    repreenso jurdica. Nestes casos, mesmo que haja produo de danos no existir ilicitude9.

    Nesta esteira, ao ser praticado um ato em legtima defesa ou no exerccio regular de um

    direito reconhecido, no ser possvel falar em configurao de ato ilcito. A mesma regra

    aplicada quando, em razo de perigo iminente, a ser afastado, houver deteriorao ou

    6 Vale lembrar que alm de responsvel pela prtica de seus prprios atos, h situaes nas quais a pessoa capaz responsvel tambm por atos praticados por terceiros. So casos especficos previstos legalmente como os pais em relao aos filhos menores, tutores e curadores em relao aos pupilos e curatelados. Este tipo de responsabilidade denominada indireta, pois como j dito, ela no decorre de ato praticado pelo responsvel, mas sim por outrem a ele vinculado. 7 Cristiano Chaves, em sua obra Direito Civil, defende que a terminologia correta a ser utilizada deva ser fato ilcito e no ato ilcito. Segundo o autor: que a ilicitude pode decorrer, tambm, de situaes em que eventos puramente imputados natureza implicam contrariedade ao direito e, por conseguinte, caracterizam a ilicitude. Exemplo de fato stricto sensu ilcito pode ser formulado atravs da avulso que gere dano ao imvel avolto, que recebeu a poro de terra deslocada abruptamente Neste caso, h fato jurdico em sentido estrito (decorre da natureza), cuja conseqncia ilcita, dele decorrendo o dever de indenizar [...] Tambm possvel visualizar a figura do ato-fato ilcito, quando h contrariedade ao direito a partir de um ato-fato, iniciado pelo sujeito, porm para cuja produo de efeitos a norma jurdica abstrai a vontade de pratic-lo, considerando, apenas seu resultado. (FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito Civil: teoria geral. 2. ed. Rio de Janeiro: Lmen Jris, 2005, p. 514). 8 Sobre o tema, Marcos Bernardes de Mello sentencia que para configurar a contrariedade a direito caracterizadora da ilicitude, no importa a que ramo do direito pertena a norma jurdica violada; no h diferena ontolgica entre ilcito civil, penal, administrativo ou qualquer outra espcie, em razo da contrariedade a direito. [...] porque todos tm o mesmo cerne sob o aspecto da contrariedade a direito, a distino que se faz entre eles meramente metodolgica, estabelecendo-se em razo da natureza da norma jurdica incidente sobre o suporte ftico concreto. Assim, ser peal o ilcito quando incidentes normas de direito penal, como ser administrativo quando se contrariam normas de direito administrativo. Para os demais casos de ilcitos reserva-se, genericamente, a expresso ilcito civil. A substncia ontolgica de todos eles a mesma, no entanto. (MELLO, Marcos Bernardes. Teoria do Fato Jurdico: plano da existncia. 12. ed. So Paulo: Saraiva, 2003, p. 220). 9 Esta regra referente ao artigo 188 do Cdigo Civil que determina: No constituem atos ilcitos: I- os praticados em legtima defesa ou no exerccio regular de um direito reconhecido; II- a deteriorao ou destruio da coisa alheia, ou a leso a pessoa, a fim de remover perigo iminente. Pargrafo nico: No caso do inciso II, o ato ser legtimo somente quando as circunstncias o tornarem absolutamente necessrio, no excedendo os limites do indispensvel para a remoo do perigo.

  • destruio de coisa alheia ou leso pessoa desde que seja tal atitude absoluta e estritamente

    necessria para esquivar-se da ameaa10.

    Isso implica em dizer que a idia de contrariedade do direito mais abrangente do que a de

    ilicitude.

    Ao analisar o tema ora proposto deve-se ter em mente que a conceituao de ilcito ampla e

    abrange os diversos ramos do direito. A diviso estanque entre o patamar civil e o penal

    possui aspectos meramente acadmicos e doutrinrios. A prtica de uma conduta contrria

    determinao normativa poder incidir concomitantemente nestas duas esferas, dependendo

    apenas da vastido do dano por ela provocado. A diferena fundamental entre os ilcitos

    reside na aplicao do sistema sancionatrio, pois o direito penal pode afetar a liberdade da

    pessoa do infrator, como o direito de ir e vir, enquanto que o mbito civil ir atingir sua esfera

    pessoal, sua subjetividade, mas preferencialmente o seu patrimnio.11

    Neste mesmo sentido Caio Mrio sintetiza que inexiste diferena substancial entre ambos,

    mas apenas em relao ao resultado imputado conscincia do agente quando:

    Assinala-se, porm, uma diversificao que se reflete no tratamento deste, quer em funo da natureza do bem jurdico ofendido, quer em razo dos efeitos do ato. Para o direito penal, o delito um fator de desequilbrio social, que justifica a represso como meio de restabelecimento: para o direito civil, o ilcito um atentado contra o interesse privado de outrem, e a reparao do dano sofrido a forma indireta de restaurao do equilbrio rompido.12

    O ato ilcito surge a partir de uma conduta voluntria, que, por sua vez pode ser uma ao ou

    uma omisso, conforme estabelece o art. 186 do Cdigo Civil13. No h que responsabilizar

    um agente que no externou a sua vontade, mesmo que tal pensamento seja voltado

    ocorrncia de um dano.

    O fundamento lgico da disposio genrica do art. 186 do Cdigo Civil 10 O Cdigo Penal Brasileiro elenca em seu art. 23 algumas situaes nas quais, ao pratic-las o sujeito estar isento de sofrer imposio sancionatria por parte do sistema jurdico. Eugnio Ral Zafaroni e Jos Henrique Pierangeli verberam que assim como o tipo proibitivo requer uma congruncia entre seus aspectos objetivos e subjetivos, tambm ela requerida no tipo permissivo, nele abarcando aspectos cognoscitivos que so pressupostos necessrios dos volitivos. Os elementos particulares dependem de cada tipo permissivo em especial: assim, a legtima defesa requer o reconhecimento da situao de defesa e a finalidade de defender-se; o estado de necessidade requer o reconhecimento da ameaa sobre o bem maior e a finalidade de evit-lo, etc. (ZAFARONI, Eugnio Ral; PIERANGELI, Jos Henrique. Manual de Direito Penal: parte geral. 5. ed. rev. e atual. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 545). 11 LEITE, Gisele. Consideraes sobre ato ilcito. Jus Vigilantibus. Vitria, 22 jan. 2006. Disponvel em: . Acesso em: 05 jun. 2007. 12 PEREIRA, Caio Mrio da Silva. Instituies de direito civil: fonte das obrigaes. 3. ed. vol. III. Rio de Janeiro: Forense, 1993, p. 452-453. 13 Artigo 186 do Cdigo Civil: Aquele que, por ao ou omisso voluntria, negligncia ou imprudncia, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilcito.

  • reside na necessidade prtica de que sejam alcanadas, na ordem civil, todas as espcies possveis de violaes de direitos que resultem danos, materiais ou imateriais, em razo da impossibilidade concreta de se preverem e definirem todas as hipteses de direitos e deveres infringveis. A amplitude da norma do art. 186 permite que se tenham como includas na categoria de ilcitos todas as situaes em que direitos, dos mais concretos aos mais abstratos, como os direitos transindividuais (chamados, comumente, interesses difusos), sejam violados.14

    Sendo assim, pode-se afirmar, em sentido amplo15, que o ato ilcito o comportamento

    humano ao ou omisso que, ao ser deflagrado, no se encontra de acordo com a

    expectativa da norma. Pode ser eivado de dolo ou de culpa, pouco importando se o agente

    praticou com inteno latente ou se o mesmo foi fruto de mero desleixo. No que se refere

    previso normativa, esta pode ser tanto contratual, como legal.

    Uma vez atingida a incolumidade do mbito jurdico de terceiros, e causando danos que

    podem ser patrimoniais ou morais, incidir sobre o ofensor a responsabilidade civil contratual

    ou aquiliana16, a depender de qual modalidade de fato gerador tenha sido transigido. O sujeito

    ativo do ilcito torna-se obrigado a prover o retorno da situao jurdica do ofendido ao seu

    status anterior, seja atravs do instituto da indenizao ou pelo ressarcimento do bem

    ofendido.

    O ato ilcito no poder ser considerado como uma simples declarao de vontade. Ele um

    ato voluntrio derivado de uma conduta, pois, para sua configurao, necessria uma ao

    ou omisso por parte do ofensor. um comportamento positivo ou negativo que afeta

    diretamente o anseio legal, penetrando na rea de proteo da intangibilidade dos direitos de

    terceiros.

    14 MELLO, Marcos Bernardes. Teoria do Fato Jurdico: plano da existncia. 12. ed. So Paulo: Saraiva, 2003, p. 233. 15 Srgio Cavalieri aponta da direo de que a conceituao clssica de ato ilcito no mais abarca as situaes fticas com a necessria exatido. Para tanto ele conclui que o conceito estrito de ato ilcito, tento a culpa como um dos seus elementos, tornou-se insatisfatrio at meso na responsabilidade subjetiva. Em sede de responsabilidade civil objetiva, cujo campo de incidncia hoje vastssimo, s tem guarida o ao ilcito lato sensu, assim entendido como a mera contrariedade entre a conduta e a ordem jurdica, decorrente de violao de dever jurdico preexistente. (CAVALIERI FILHO, Srgio. Programa de Responsabilidade civil. 6. ed. rev. aum. atual. 2. tiragem. Rio de Janeiro: Malheiros Editores, 2006, p. 33). 16 Os tipos de responsabilidade sero apresentados no transcorrer do presente trabalho. Porm para uma compreenso mais detalhada afirma-se que a responsabilidade civil contratual aquela decorrente de descumprimento de obrigaes derivadas de emanaes de vontade, enquanto a aquiliana resultado da infringncia uma determinao legal.

  • 2.2.1 Aspectos do ato ilcito

    Srgio Cavalieri Filho aponta que a doutrina, at os dias atuais, ainda digladia-se em torno da

    conceituao do que venha a ser o ato ilcito. Segundo seus estudos, doutrinadores clssicos

    como Caio Mrio e Antunes Valera apontam no sentido de vincular o conceito de ato ilcito

    ao de culpa, o que causa grandes conflitos quando se aborda a temtica referente

    responsabilidade civil objetiva, j que, nesta hiptese, no h que se falar em aspectos

    subjetivos do agressor.17

    A transformao social fez com que a tradicional responsabilidade subjetiva, informada pela teoria da culpa e por um princpio de imputabilidade moral, se mostrasse insuficiente para a tutela das situaes jurdicas presentes numa sociedade de grandes massas e, cada vez mais, de consumo. Dentro desta nova realidade social, a reparao da vtima no mais poderia ser engessada num sistema em que a indenizao dependesse, em qualquer hiptese de uma prova (quase impossvel) pra identificar quem, de fato, agiu de forma culposa.18

    O ato ilcito, portanto, deve ser observado sob dois aspectos: o objetivo e o subjetivo. Esse

    duplo enfrentamento seria indispensvel para a configurao desta espcie de ato jurdico.

    No primeiro caso h de ser considerada apenas a conduta propriamente dita em detrimento da

    vontade do legislador, ou seja, a sua desconformidade com a previso normativa. Aqui, leva-

    se em considerao apenas se certa conduta ou o resultado desta socialmente vantajosa

    ou nociva.19. Em outras palavras, sendo contrrio ao desejo emanado pelo legislador, dever

    tal atividade inserir-se nesta espcie de ato, j que esta antijuridicidade valorada de acordo

    com determinados valores sociais.

    Sempre que h transgresso a uma previso existente, haver ofensa a um bem jurdico

    protegido pelo legislador, desde que comprovado o liame conector entre a conduta e o

    resultado obtido.

    Por sua vez, no aspecto subjetivo, voltar-se- para o juzo de valor agregado conduta ilcita,

    o que implica em dizer que somente ser considerado passivo de interveno judicial o

    comportamento que vier acompanhado da vontade do agente de atingir aquele resultado. Para

    que haja a configurao da responsabilidade civil do agente, alm do dano e do nexo de

    17 CAVALIERI FILHO, Srgio. Programa de Responsabilidade civil. 6. ed. rev. aum. atual. 2. tiragem. Rio de Janeiro: Malheiros Editores, 2006, p. 30. 18 TOLOMEI, Carlos Young. A noo de ato ilcito e a teoria do risco na perspectiva do Novo Cdigo Civil. In: TEPEDINO, Gustavo. (coord.). A parte geral do Novo Cdigo Civil: estudos na perspectiva civil-constitucional. 2. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.360. 19 Ibidem, p. 32.

  • causalidade existente entre ele e a conduta, ser necessria a observncia do aspecto volitivo,

    ou seja, a identificao de dolo ou culpa por parte do sujeito ativo. 20

    A norma legal, em seu art. 186, estampa como um dos elementos do ato ilcito a ao ou

    omisso do agente que, por sua vez, nada mais do que a delineao de uma atitude culposa

    ou dolosa. A conduta ativa geralmente constitui-se em ato doloso ou imprudente, enquanto a

    conduta passiva estampada normalmente pela negligncia21. Porm, apesar deste no ser o

    momento ideal para tal abordagem, necessrio se faz alertar no sentido de que o elemento

    subjetivo da culpa no transparece mais como fundamental para a configurao da

    responsabilidade civil.

    Seja atravs da obedincia a um comportamento legal desejado, ou da execuo de um ato

    contrrio norma, necessrio frisar que o ato ilcito pode decorrer tanto a partir de um

    conjunto de atos, como oriundo de apenas uma nica prtica.

    Ademais, para que haja a configurao do ato ilcito e, conseqentemente, do dever de

    indenizar, indispensvel a existncia do nexo de causalidade. H situaes, como no caso da

    culpa exclusiva da vtima, que, apesar da existncia do dano, no haver o dever de indenizar,

    pois h uma mitigao deste segundo elemento.

    Por fim, indispensvel a presena do dano. No existindo dano, para o Direito Privado o

    ato ilcito irrelevante.22. Seja no aspecto patrimonial, como no aspecto moral, a

    configurao do dano precedente indispensvel para a concretizao do ato ilcito.

    Assim, aps esta abordagem sumria, torna-se necessrio dar continuidade ao

    desenvolvimento da presente obra para adentrar no contedo atinente responsabilidade civil,

    onde sero novamente analisados tais tpicos de forma mais apurada. Porm, antes de cumprir

    com a orientao metodolgica aqui delineada, no se pode furtar em tecer comentrios, por

    mais breves que sejam, acerca do abuso de direito, pois somente desta forma ser possvel

    abarcar de maneira mais ampla o contedo constante no Ttulo III do Livro III do Novo

    Cdigo Civil.

    20 Orlando Gomes, em sua obra Introduo ao Direito Civil, elenca mais um elemento ao rol apresentado. Segundo este autor, alm da ao ou omisso do agente; da culpa do agente e do dano a outrem, haver a violao de norma jurdica de direito privado. (GOMES, Orlando. Introduo ao direito civil. 19. ed. rev. atual. e aum. de acordo com o Cdigo Civil de 2002. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p.438). 21 VENOSA, Silvio de Svio. Teoria geral do direito civil. 3. ed. atual de acordo com o novo cdigo civil. estudo comparado com o cdigo civil de 1916. So Paulo: Atlas, 2003, p. 593. 22 Ibidem, p. 594.

  • 2.3 DO ABUSO DE DIREITO

    Uma das novidades trazidas com a vigncia do Novo Cdigo Civil est na previso expressa

    constante no art. 187 do chamado abuso de direito. Apesar de atualmente ser esculpido no

    ttulo referente aos atos ilcitos, este instituto no possua previso no diploma normativo

    antecessor23, mesmo sua existncia remontando ao sculo XIX com a doutrina e

    jurisprudncia francesa.

    A liberdade de exerccio dos direitos, to almejada pelos burgueses da poca, passou a ser

    encarada como uma forma legtima de agresso a direitos do semelhante. A sociedade

    convivia com a prtica feroz e intangvel do individualismo. Sendo assim, tornou-se

    necessria a interveno do direito no sentido de estancar este comportamento, a partir da

    formulao de uma teoria que viesse a regular tais liberdades.

    A atual denominao abuso de direito de autoria do autor belga Laurent24 que a instituiu

    para nomear diversas questes esculpidas pela jurisprudncia francesa25 na vigncia inicial do

    Cdigo de Napoleo onde, apesar de reconhecida a existncia do direito do sujeito passivo

    processual, este era condenado pela Corte em razo de irregularidades constantes no exerccio

    destas prerrogativas.

    Outra colaborao bastante salutar veio com a doutrina Alem que a partir de estudos

    baseados em comportamentos socialmente reprovveis, semelhana do que ocorreu na

    Frana, passou a instituir em seu Cdigo Civil BGB previses tais que viessem a mitigar o

    exerccio exacerbado do direito por parte do seu titular.26

    23 Vale salientar que mesmo antes do Cdigo Civil atual, o Cdigo de Defesa do Consumidor j possua previses em seu corpo normativo que delineavam o abuso de direito, conforme pode ser constatado nos arts. 6, IV; 28; 37; 51; 60 e 67 da Lei Consumerista. 24 Diversos autores remontam a autoria do termo em questo ao civilista Belga. Por todos eles, vide CORDEIRO, Menezes. Da boa-f no direito civil. v. 2. Coimbra: Almedina, 1984, p. 670. 25 Neste sentido, afirma Ricardo Seibel de Freitas Lima: ocorre, porm, que o Cdigo de 1804 no s no compreendia qualquer referncia ao abuso de direito, como sequer consagrava limitaes genricas aos direitos subjetivos, razo pela qual de se considerar a originalidade da construo jurisprudencial francesa, formulao inicial da moderna teoria do abuso do direito [...] Assim, respectivamente em 1908 e 1920, condenou-se um proprietrio de uma oficina de chapus que provocava evaporaes desagradveis vizinhana, e um construtor de fornos que, pela ausncia de precaues, causava danos a morador confrontante. Em 1853, temos a clebre deciso que condenou o proprietrio que construiu, em seu terreno, uma falsa chamin para vedar a luz do dia de uma janela do vizinho. Entre inmeras outras decises, cite-se outra famosa, confirmada pela Corte de Cassao em 1915, pela condenao, por abuso do direito, do proprietrio que erguera, em seu imvel, uma estrutura com barras de ferro destinada a danificar os dirigveis construdos pelo vizinho. (LIMA, Ricardo Seibel de Freitas. Pautas para a interpretao do art. 187 do novo Cdigo Civil.. Revista dos Tribunais, So Paulo, v.838, ano 94, ago.2005, p.18). 26 Ao sintetizar a evoluo sentida pelo Direito Alemo sobre o abuso de direito, Ricardo Seibel de Freitas afirma que: o abuso de direito na Alemanha, no nasceu de um aprofundamento doutrinrio em termos centrais

  • Apesar de todo o seu desenvolvimento ocorrer no transcurso do sculo XX, o abuso de direito

    passou a ser germinado no perodo medieval, com sua constatao feita a partir dos atos

    denominados de emulativos (aemulatio), ou seja, aqueles praticados com intuito deliberado de

    causar prejuzos a terceiros. Num momento em que o Estado encontrava-se atrofiado,

    qualquer anseio social tornava-se fonte de conflitos e exacerbao de poder. Sendo assim, era

    por demais comum a prtica de atos que em vez de objetivar alcanar um benefcio para o

    sujeito ativo, buscavam, flagrantemente, prejudicar o sujeito passivo.

    Fora, portanto, atravs das normas da aemulatio que se intentou a relativizao do direito subjetivo de propriedade, o qual, at ento, era compreendido de maneira absoluta. Dessa forma, passou-se a relativizar o direito subjetivo, deixando de lado seu carter absoluto a fim de se iniciar o imprio da funo social dos direitos.27

    O transcorrer dos tempos foi o responsvel por toda a evoluo, ainda que lenta e gradativa,

    do abuso de direito. Desde o direito medieval, passando de forma tmida pelo direito

    romano28, o instituto foi sendo fecundado at eclodir no famoso caso Clement Bayard, datado

    de 1912, que apontado pela doutrina como sendo o leading case no que se refere aceitao

    taxativa da teoria do abuso de direito.29

    Neste sentido, pode-se afirmar que, desde a sua origem, o abuso de direito, configura-se como

    um instrumento vivel para evitar a incidncia demasiada de um ato volitivo que viesse a

    trazer nocividade ao campo de atuao de outrem. Ao comentar sobre o tema, Rui Stoco traz

    baila ensinamentos de Pontes de Miranda que sintetizam de forma perfeita a idia do instituto

    ao afirmar que quando o legislador percebe que o contorno de um direito demasiado, ou

    que a fora, ou intensidade, com que se exerce nociva, ou perigosa a extenso em que se

    lana, concebe as regras jurdicas que o limitem, que lhe ponham menos avanados os

    relativamente ao prprio conceito de abuso, mas, ao contrrio, foi construdo pela sedimentao jurisprudencial e doutrinria de uma sria de situaes tipicamente abusivas, reconduzidas principalmente boa-f objetiva como princpio e critrio jurdico distintivo e basilar para a configurao das hipteses. (Ibidem, p. 19). 27 BARROS, Joo lvaro Quintiliano. Abuso de direito . Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 727, 2 jul. 2005. Disponvel em: . Acesso em: 08 jul. 2007. 28 No que se refere existncia do abuso de direito, no direito romano, Paulo Nader afirma que: a figura do abuso do direito, se no chegou a ser teorizada pelos romanos, pelo menos foi conhecida do ponto de vista doutrinrio". (NADER, Paulo. Introduo ao estudo do direito. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 404.). 29 Segundo prelecionam, tal julgamento ocorreu na Corte de Amiens, no incio do sculo XX. Clement Bayard era proprietrio de uma rea de terras que tinha como zona limtrofe um campo de pouso de dirigveis e bales. Incomodado com a situao de ter sobre a sua propriedade bales sobrevoando-a diariamente, Clement Bayard decidiu, deliberadamente e sem qualquer justificativa plausvel a no ser a sua irritao construir lanas enormes que possuam suas extremidades pontiagudas, objetivando atingir os bales e dirigveis que tentassem pousar na rea ao lado da sua propriedade, colocando em perigo as aeronaves. Ao ser levado o caso ao Tribunal, a corte reputou abusiva tal conduta, constatando o exerccio anormal do seu direito de propriedade.

  • marcos, que lhe tirem um pouco da violncia ou do espao que conquista.30

    2.3.2 O Abuso de direito no direito brasileiro. No que se refere ao direito brasileiro, conforme dito anteriormente, no existia previso

    expressa do abuso de direito ao tempo do Cdigo de Bevilqua. poca, havia o tratamento

    legal referente aos atos ilcitos em apenas dois dispositivos: um tratava do aspecto geral a

    partir de uma previso mais abstrata (art. 159), enquanto que o outro se referia a alguns casos

    que excluam a ilicitude ou contrariedade do ato praticado. (art. 160)31.

    Partindo desta escassez legal, a identificao do abuso de direito se deu de forma reflexa

    previso constante no art. 160 do diploma revogado. Segundo o seu inciso I, no constituem

    atos ilcitos os praticados em legtima defesa ou no exerccio regular de um direito

    reconhecido. Isso implicava dizer que, a contrrio senso, no havendo a subsuno da norma

    ao ato praticado este se adequaria nos moldes do instituto do abuso de direito.32

    A influncia mais marcante da disposio em pauta parece ser a doutrina francesa, especialmente na vertente expressada por Saleilles, que identifica o abuso como o exerccio anormal do direito, tanto que o art. 160, I, se refere ao uso irregular de um direito. A tradio germnica, que em outras partes influenciou a elaborao de nosso Cdigo de 1916, nesse ponto no se fez to presente.33

    A ausncia de apuramento maior por parte do legislador civil ptrio fez com que pouco se

    desenvolvesse a teoria atinente ao abuso de direito. Apesar de estar evidente que todo direito

    deve ser considerado relativo quanto ao seu exerccio, mesmo diante do seu carter absoluto,

    no houve uma dedicao maior quanto aos estudos sobre tema, que, por sua vez, passou a

    ganhar forma, semelhana do que ocorreu com os franceses, quase que exclusivamente, a

    partir de decises emanadas pelos Tribunais.

    Os crescentes reclames sociais quanto a atos praticados alm do limite considerado como 30 STOCO, Rui. Abuso do Direito e M-f Processual. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 56. 31 Art. 159, CC/16 Aquele que, por ao ou omisso voluntria, negligncia, ou imprudncia, violar direito, ou causar prejuzo a outrem, fica obrigado a reparar o dano. A verificao da culpa e a avaliao da responsabilidade regulam-se pelo disposto neste Cdigo Art. 160 CC/16 No constituem atos ilcitos: I - os praticados em legtima defesa ou no exerccio regular de um direito reconhecido; II - a deteriorao ou destruio da coisa alheia, a fim de remover perigo iminente 32 Caio Mrio aponta a existncia de outro exemplo de abuso de direito constante no Cdigo Civil de 1916. Segundo ele, o art. 554 previa uma hiptese de configurao do instituto em questo quando mencionava que o proprietrio, ou o inquilino de um prdio tem o direito de impedir que o mau uso da propriedade vizinha possa prejudicar a segurana, o sossego e a sade dos que o habitam. Em outras palavras seria o mesmo que dizer que ao possibilitar esta interferncia do inquilino sobre o direito de propriedade do vizinho, dentro das hipteses ali estabelecias, estaria o legislador legitimando a teoria do abuso de direito. 33 LIMA, Ricardo Seibel de Freitas. Pautas para a interpretao do art. 187 do novo Cdigo Civil.. Revista dos Tribunais, So Paulo, v.838, ano 94, ago.2005, p. 21.

  • suportvel passaram a pressionar o legislador ptrio quanto orfandade legal relativa ao tema.

    A necessidade do regramento expresso era evidente. No foi por outra razo, que a partir da

    vigncia do Cdigo Civil de 2002, o sistema jurdico ptrio passou a contar com a previso

    expressa constante do art. 187 acerca do Abuso de Direito.

    justamente essa "lgica" que vem rompida pelo novo Cdigo Civil. Alterou-se, profunda e significativamente, o regime da ilicitude, seja ao estatuir a regra do art. 187, seja ao desconectar, metodologicamente, a conseqncia geral (isto , o dever de indenizar) da ilicitude, inserindo-a em ttulo prprio (art. 927 e ss). Da no ser "indispensvel", para os efeitos da tutela conferida pelo art. 187, nem a ocorrncia de um evento danoso, nem que o mesmo tenha sido causado por culpa: o art. 187 no , nem de longe, a "reproduo" do art. 160, inciso I, do Cdigo de 1916 (cuja regra foi apreendida, de resto, no art. 188 do novo Cdigo), no estando, bem assim, limitado verso subjetiva da Teoria do Abuso, de construo francesa, mas doutrina do exerccio inadmissvel de posies jurdicas, que no se limita a operar com a noo de "direito subjetivo", preferindo a categoria das "situaes jurdicas subjetivas", existenciais e patrimoniais.34

    Atualmente, para o ordenamento civil, o ato ilcito, formado a partir de dois pilares: um

    decorrente da clusula geral de ilicitude configurada a partir da culpa ou do dolo do agente,

    previsto no art. 186, e o outro relacionado ao abuso de direito constante no art. 18735. Este

    ltimo, por sua vez, caracteriza-se por ser objetivo36, ou seja, independe da inteno do agente

    para que sejam delineados seus contornos, mas apenas o excesso manifesto. Neste sentido,

    comenta Ricardo Seibel de Freitas que o art. 187 deve, sem dvida, ser concebido como um

    modelo jurdico aberto e como uma clusula geral, informada pelos princpios fundamentais e

    inserida nesse sistema aberto e mvel que est na base da idealizao do novo Cdigo

    Civil.37

    O mais relevante, porm, observar que nesse novo modelo a ilicitude no

    34 MARTINS-COSTA, Judith. Breves anotaes acerca do conceito de ilicitude no NCC (estruturas e rupturas em torno do art. 187). Disponvel em: < http://www.migalhas.com.br/mostra_noticia_articuladas.aspx?op=true&cod=1726>. Acesso em: 01 jun. 2007. 35 Art. 186, CC/2002 Aquele que, por ao ou omisso voluntria, negligncia ou imprudncia, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilcito. Art. 187, CC/2002 Tambm comete ato ilcito o titular de um direito que, ao exerc-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econmico ou social, pela boa-f ou pelos bons costumes 36 Em sentido contrrio h uma parte da doutrina, a exemplo de Humberto Theodoro, que afirma que o abuso de direito possui caractersticas subjetivas: Neste sentido, aponta o autor que o sistema jurdico atual adotou claramente a orientao preconizada pela teoria subjetivista do abuso de direito. Primeiro ela definiu o ato ilcito absoluto, como fato humano integrado pelo elemento subjetivo (culpa) (art. 186). Em seguida, qualificou, de forma expressa, o exerccio abusivo de direito como um ato ilcito (art. 187). (THEODORO JNIOR, Humberto. Comentrios ao novo Cdigo Civil. vol. III, tomo II. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p.118). A corrente que assegura o carter objetivo ao ato ilcito foi sedimentada a partir do enunciado 37 da I Jornada de Direito Civil que determina: a responsabilidade civil decorrente do abuso de direito independe de culpa, e fundamenta-se somente no critrio objetivo-finalstico. 37 LIMA, Ricardo Seibel de Freitas. Pautas para a interpretao do art. 187 do novo Cdigo Civil.. Revista dos Tribunais, So Paulo, v.838, ano 94, ago.2005, p. 24.

  • apenas "ilegalidade" nem "contrariedade culposa a preceito contratual", pressupondo uma idia de direito subjetivo que integrante das complexas situaes jurdicas subjetivas, existenciais ou patrimoniais no "poder da vontade", antes situando-se na integrao de liberdades coexistentes, como algo que j nasce "conformado" no jogo de ponderaes entre os diferentes princpios que se pem como vetores axiolgicos fundamentais do ordenamento.38

    Para que no venha a cair no pecado de fugir ao tema aqui proposto e, conseqentemente,

    descarrilar do pensamento ora em desenvolvimento, torna-se imperioso abrir mo da anlise

    das teorias negativistas e positivistas referente ao abuso de direito. Parte-se, portanto,

    diretamente para a apresentao do conceito esculpido pelo professor Cristiano Chaves a

    partir das palavras de Helosa Carpena quando afirma que o abuso de direito nada mais do

    que:

    aquele pelo qual o sujeito excede os limites ao exerccio axiolgico, ou seja, o abuso surge no interior do prprio direito, sempre que ocorre uma desconformidade com o sentido teleolgico, em que se funda o direito subjetivo. O fim - social ou econmico de um certo direito subjetivo no estranho sua estrutura, mas elemento de sua prpria natureza.39

    Tomando como base tal determinao conceitual percebe-se claramente que, no que se refere

    ao abuso de direito, no h uma transgresso direta previso normativa. Nestes casos, o

    sujeito estaria, em princpio, agindo no exerccio de seu direito, porm violando os valores

    que justificam o reconhecimento desse direito pelo ordenamento jurdico.

    Afirma-se, portanto, que, no ato ilcito h inobservncia de limites lgico-formais, enquanto

    que no abuso de direito esta desobedincia ocorre num patamar axiolgico-material.40 Neste

    sentido, alerta Helosa Carpena: a doutrina do abuso do direito est em sintonia com a

    mudana da racionalidade jurdica, que se dirige superao do ideal de completude do

    ordenamento, cone do positivismo e da conduta liberal, que no encontra guarida no direito

    civil contemporneo.41

    38 MARTINS-COSTA, Judith. op. cit. 39 FARIAS, Cristiano Chaves de. FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito Civil: teoria geral. 2. ed. Rio de Janeiro: Lmen Jris, 2005, p. 519. 40 CAPERNA, Helosa. O abuso do direito no Cdigo de 2002. Relativizao de direitos na tica civil-constitucional. In: TEPEDINO, Gustavo. (coord). A parte geral do novo cdigo civil: estudos na perspectiva civil-constitucional. 2. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 377-396. 41 Ademais, continua a autora a sua anlise afirmando que: fcil verificar que h inmeras hipteses a partir das quais pode ser delineado o abuso de direito. Sendo assim, o legislador ptrio optou por um sistema aberto de identificao do ato praticado como abuso de direito, deixando ao aplicador a possibilidade de constatar a sua existncia perante os conflitos cotidianos, ao revs de descrever taxativamente suas hipteses de incidncia. Sendo assim, tornou-se necessrio o preenchimento do conceito do que venha ser exerccio ilegtimo do direito, relacionando-o diretamente ao caso concreto, a fim de constatar o transbordamento dos limites impostos pelo seu fim econmico ou social, pela boa-f ou pelos bons costumes.

  • Percebe-se claramente que o abuso de direitos apresenta-se como um instrumento hbil para o

    balizamento, e at mesmo a correo, de possveis desvios morais fomentados a partir da

    prtica de um direito inerente ao seu titular, mas que tem seu exerccio distorcido pelo

    mesmo. Desse modo, cada direito tem de ser exercitado com respeito ao seu esprito

    peculiar, sem desvio de finalidade ou de sua inafastvel funo social42, no podendo

    esquecer, tambm, da sua estreita relao com o instituto da boa-f objetiva que serve como

    parmetro para a identificao dos atos anti-jurdicos.

    Verifica-se, assim, que a adoo do abuso de direito pelo legislador civil busca adequar a

    norma ordinria ao estudo constitucional que deve permear todo o ordenamento jurdico

    ptrio. Isto porque, ao utilizar-se de conceitos abertos, vinculados a princpios basilares como

    o da boa-f e o da funo social, o legislador ordinrio deu uma maior volatilidade , antes

    engessada, engrenagem civil, possibilitando uma acessibilidade maior s constantes mutaes

    sociais.

    Diante de todos estes parmetros, torna-se cristalina a importncia do estudo da teoria em

    questo para o desenvolvimento da temtica proposta. Ao suscitar as influncias da boa-f43,

    Os princpios contm os valores que fundamentam o ordenamento, valores estes que se encontram em grande parte constitucionalizados e representam verdadeiros vetores de aplicao da lei, garantidores da unidade e coerncia do sistema. O contedo axiolgico a Constituio constitui o fundamento da ordem jurdica positiva, obrigando o julgado a resolver as questes que lhe so submetidas a partir da investigao desses valores. Essa valorao constitui expresso da normatividade dos princpios e permite a atualizao do ordenamento como um todo, alcanando-se efetividade pela constante adequao s exigncia de nosso tempo (Ibidem, p. 383-384). 42 FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito Civil: teoria geral. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Jris, 2005, p. 520. 43 Numa abordagem bastante superficial pode-se afirmar que a expresso boa-f foi cunhada inicialmente em primrdios bastante remotos que datam do imprio romano e era decorrente do termo fides que, por sua vez, significava, confiana, honestidade, lealdade, sinceridade. Porm, com a Idade Mdia, a boa-f foi bastante mitigada, j que, com a hegemonia da Igreja Catlica, ela passou a ser considerada como significado de ausncia de pecado. Com isso, deixou de ser aplicada posse ou s obrigaes, restringindo-se apenas a acordos meramente consensuais. Ainda neste perodo histrico, a burguesia ganha grande ascenso, absorvendo o princpio da boa-f em razo da autonomia da vontade. A ideologia de que os contratos faziam lei entre as partes e esta era suprema impedia o Estado de intervir nas relaes. Este comportamento em relao boa-f continuou durante o perodo das codificaes, que, com o absolutismo legal, no concebia o devido espao para o desenvolvido deste princpio. A grande reviravolta se deu com o BGB que esculpiu em seu 242 previso acerca da boa-f. Apesar de distanciar algumas dcadas, quando se refere ao Brasil, somente possvel encontrar qualquer previso acerca da boa-f a partir da Constituio Federal de 1988 que, ao promover uma reinterpretao do ordenamento civilista, a partir da insero do princpio da dignidade da pessoa humana, deu fora ao princpio da boa-f. Atualmente ele considerado um dos princpios de maior importncia e influncia no ordenamento jurdico, reflexo da nova insero da tica no fenmeno jurdico. Hoje, sua existncia se d em duas vertentes: a boa-f subjetiva e objetiva. Porm numa conceituao ampla e unitria, pode-se afirmar que ela busca pautar um comportamento voltado moral social.Flvio Alves Martins preceitua com o seguinte posicionamento: "A boa-f guarda em si uma antiga e (hoje) notria distino entre a chamada boa-f subjetiva e a boa-f objetiva. Aquela, considerada como a concepo na qual o sujeito ignora o carter ilcito de seu ato, esta, um pouco mais exigente, considera-se como a que no protege o sujeito que opera em virtude de um erro ou de uma situao de ignorncia o seu comportamento no o mais adequado conforme a diligncia socialmente exigvel". (MARTINS, Flvio Alves. Boa-f e sua formalizao no direito das obrigaes Brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Jris, 2000, p. 16).

  • dos bons costumes44 e da funo social45, o legislador trouxe indiscutvel carga valorativa

    social aos direitos tratados, mais especificamente, no direito civil, sejam eles individuais ou

    coletivos.

    No por outra razo que Helosa Caperna afirma que todo e qualquer ato jurdico que

    desrespeite tais valores, ainda que no seja ilcito por falta de previso legal, pode ser

    qualificado como abusivo, ensejando a correspondente responsabilizao.46

    Por fim, frise-se que, apesar da diferenciao doutrinria existente entre o ato ilcito e o abuso

    de direito mesmo tendo o Cdigo Civil esculpido sua previso normativa dentro do ttulo

    dos atos ilcitos , perfila-se com o posicionamento de que ambos os casos desguam na

    ocorrncia de responsabilizao civil por parte daquele que pratica tal ato, lembrando sempre

    que no abuso de direito tal responsabilizao configura-se como objetiva.47

    2.4 DA RESPONSABILIDADE

    A vida em comunidade exige respeito a uma gama de direitos alheios, que devem ser

    mantidos inclumes para que haja o estabelecimento de uma ordem social. Somente a partir

    desta limitao que ser possvel separar aqueles atos considerados como permitidos dos

    44 O termo bons costumes apresenta-se como sendo de conceito aberto, o que dificulta em muito a delimitao de parmetros estanques o que demandaria uma anlise muito mais aprofundada, extrapolando, assim, os objetivos deste trabalho. A sua volatilidade coaduna-se com a evoluo social. No h como dizer o que efetivamente bons costumes, na medida em que com as transmutaes que ocorre no mbito social, a sua definio tambm acompanha este comportamento. Os bons costumes conforme determina a Lei de Introduo ao Cdigo Civil dever ser utilizada em caso de lacuna legal, orientando o julgador na hora de adotar um posicionamento diante do conflito que lhe apresentado. 45 A partir da promulgao da Constituio Federal de 1988, o Pas acompanhou um fenmeno inspirador de todo o ordenamento jurdico denominado de funcionalizao. A prpria Carta Magna trs em diversos momentos do seu texto a expresso funo social, como, por exemplo, no caso da propriedade. Isso decorre dos chamados direitos de terceira gerao que, por sua vez, possuem como caractersticas a solidariedade e fraternidade social. Neste mesmo trilhar, o Cdigo Civil de 2002, valoriza a funcionalizao com previses diversas, como a estampada no art. 421 que trata da funo social do contrato. Em linhas gerais, a conceituao da funo social surge a partir da prevalncia do interesse pblico sobre o privado e a conseqente magnitude do proveito coletivo em relao ao individual. H portanto uma tendncia a buscar a abordagem massiva, causando fissuras no antigo brocardo latino suum cuique tribuere. A natureza distributiva, com a conseqente, tentativa de incluso social dos excludos, uma ferramenta bastante importante para assegurar a meta de cumprimento dos objetivos fundamentais da Repblica Federativa do Brasil. Assim, pode-se dizer que a funcionalizao do direito vem de encontro ao pensamento burgus, antes dominante, de manuteno hegemnica da capacidade econmica em detrimento pessoa. 46 CAPERNA, Helosa. O abuso do direito no Cdigo de 2002. Relativizao de direitos na tica civil-constitucional. In: TEPEDINO, Gustavo. (coord). A parte geral do novo cdigo civil: estudos na perspectiva civil-constitucional. 2. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 394. 47 Cristiano Chaves de Farias anuncia que alm da responsabilidade civil, o abuso de direito gera tambm a nulidade do ato, em conformidade com o art. 166, VI, do Cdigo Civil, quando se refere fraude de lei imperativa. (FARIAS, Cristiano Chaves de. FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito Civil: teoria geral. 2. ed. Rio de Janeiro: Lmen Jris, 2005, p. 522).

  • proibidos, mantendo, assim, a convivncia harmoniosa perante os povos.

    No de hoje que se busca o estabelecimento de pilares limtrofes liberdade plena de

    exerccio. Aquele que no obedece s normas morais ou legais determinadas socialmente

    sempre foi alvo de inmeras constries a fim de torn-lo responsvel pelos danos provocados

    em razo da atitude tomada48.

    Ao inaugurar a anlise do tema atinente responsabilidade civil, Antunes Varela afirma que:

    Trata-se de figura que, deps dos contratos, maior importncia prtica e terica assume na criao de vnculos obrigacional, seja pela extraordinria freqncia com que nos tribunais (sobretudo em pases de educao cvica mais apurada ou de prtica judiciria mais avanada) so postas aces de responsabilidade, seja pela dificuldade especial de muitos dos problemas que o instituto tem suscitado na doutrina e na jurisprudncia. Dificuldades que se localizam quer na fixao das solues, quer na sua fundamentao face do direito constitudo, que principalmente na sua sistematizao doutrinria ou cientfica.49

    Por esta razo ser necessrio, preliminarmente, separar as responsabilidades apresentando

    a moral, penal para, por fim, mergulhar nas turbulentas guas da responsabilidade civil.

    2.4.1 A moral na responsabilidade

    A maioria dos indivduos possuem a capacidade de reflexo e aprimoramento da conduta a ser

    externada antes da concretizao de qualquer atitude. Em outras palavras: h a maturao,

    atravs do pensamento, do ato a ser praticado.

    Em poucas palavras, a moral o conjunto de regras de conduta do ser humano impostas pela sua conscincia pessoal sem qualquer tipo de sano externa. H aqui o estabelecimento de relaes entre o indivduo e sua conscincia, uma espcie de seno moral, desenvolvendo-se tais embates no ntimo de cada ser. moral ficam reservados somente deveres a serem obedecidos pelo ser humano. Muitos so os deveres morais, como: a) expressar somente a verdade (no mentir nas oportunidades em que lhe for aberta tal possibilidade); com ofensa a esta regra moral deste exemplo, extraem-se as principais caractersticas da moral, quais sejam ser ela interna

    48 A preocupao em estabelecer regras que viessem a aplicar algum tipo de punio para aquele que transbordasse sua rea de atuao sempre foi algo evidente no transcorrer da histria. Seja num mbito moral e religioso, ou at mesmo no universo jurdico, os escritos traziam consigo determinaes com inmeras conseqncias a prtica de um ato no permitido. Segundo o salmo 1 das escrituras sagradas bem-aventurado o homem que no anda segundo o conselho dos mpios, nem se detm no caminho dos pecadores, nem se assenta na roda dos escarnecedores. Antes tem seu prazer na lei do Senhor, e na sua lei medita de dia e noite. Pois ser como a rvore plantada junto s correntes de guas, a qual d o seu fruto na estao prpria, e cuja folha no cai e tudo quanto fizer prosperar. No so assim os mpios, mas so semelhantes moinha que o vento espalha. Pelo que os mpios no subsistiro no juzo, nem os pecadores na congregao dos justos; porque o Senhor conhece o caminho dos justos, mas o caminho dos mpios conduz runa. 49 VARELA, Joo de Matos Antunes. Das obrigaes em geral. 6. ed. vol. I. Coimbra: Almedina, 1989, p. 489.

  • (da conscincia) e no contar com sano; b) cumprir as promessas feitas livremente em qualquer ocasio; c) honrar os pais (no desonrar os pai dentro dos padres estabelecidos pelo prprio ncleo familiar); d) agir corajosamente (no agir com covardia)50

    Vale salientar que nos primrdios da antiguidade, no havia previso que especificasse uma

    preocupao entre a moral e o direito, j que ambos compunham o ideal de justia. No havia

    espao destacado para o direito, sendo que este se misturava com a moral: ambos reinavam

    juntos. O mesmo preceito foi seguido pelos romanos que, por sua vez, passaram a buscar a

    diferenciao entre o honesto e o ilcito.

    Sem querer adentrar nas entranhas mais profundas do entrave doutrinrio e filosfico sobre o

    tema, afirma-se que a relao entre direito e moral sentida desde perodos bastante

    pretritos. inegvel que o direito e a moral assemelham-se no que se refere apresentao

    como normas de conduta, onde, atravs delas, passa a ser exigido o cumprimento obrigatrio

    das determinaes. H, por sua vez, algumas normas morais que so absorvidas pelo direito,

    perfazendo-se como regramentos de fundo moral.51

    Porm, apesar da idia de paridade, acredita-se que a moral antecede a idia prpria de

    direito. Ao comentar sobre o tema, Miguel Reale contorna a idia de que:

    pode ser reproduzida atravs da imagem de dois crculos concntricos, sendo o crculo maior o da Moral, e o crculo menor o do Direito. Haveria, portanto, um campo de ao comum a ambos, sendo o Direito envolvido pela Moral. Poderamos dizer, de acordo com essa imagem, que tudo o que jurdico moral, mas nem tudo o que moral jurdico.52

    Neste nterim, percebe-se que tanto o direito, como a moral, em muitos momentos,

    encontram-se unidos de tal forma que a primeira passa a ser dependente da segunda.

    Sendo assim, no h como negar que a moral uma pea chave para a formao do direito. A

    este cabe resguardar a preservao do mnimo existencial daquele, apesar desta tarefa no ser

    to fcil como se pode deduzir num primeiro momento. Como nem todos podem ou querem

    realizar de maneira espontnea as obrigaes morais, indispensvel armar de fora certos

    50 GAMA, Ricardo Rodrigues. Moral e Direito. Revista dos Tribunais, So Paulo, v. 83, ano 96, jan. 2005, p. 728. 51 Sobre o tema, Ricardo Rodrigues Gama lembra que a vida em sociedade anima a ocorrncia de transformaes, como a converso de regras morais em normas jurdicas, com se ocorresse a moralizao do direito, sem que essas normas deixem de ser consideradas regras morais. Em sentido contrrio, algumas normas deixam o mundo jurdico para se converterem em regras morais, como o adultrio que deixou de ser crime em muitos pases da Europa. (Ibidem, p. 738). Nesta esteira, apesar de no ser o foco do presente trabalho, torna-se necessrio lembrar que o adultrio tambm foi descriminalizado no Brasil confronte a Lei n. 11.106 de 2005. 52 REALE, Miguel. Lies preliminares de direito. 27. ed. So Paulo: Saraiva, 2002, p. 42.

  • preceitos ticos, para que a sociedade no soobre53.

    A desobedincia de uma regra moral atinge o mago, o aspecto interior do indivduo, ao

    tempo em que, quando se fala em ilicitude, esta se apresenta no seu aspecto externo, ou seja,

    surge a partir da norma jurdica. Paralelamente ao direito, que se mostra como uma obrigao,

    a moral delineia-se como uma recomendao. Em razo disso, no se pode falar numa

    coercibilidade por parte de terceiros no que se refere ao descumprimento de uma norma no-

    jurdica.

    2.4.1.1 A responsabilidade moral e a defesa da integridade social

    No que se refere responsabilidade, a diferenciao entre ambos os planos torna-se ainda

    mais evidente. Sendo assim, a doutrina fomenta dois aspectos atinentes responsabilidade: a

    jurdica e a moral.

    A responsabilidade moral possui uma ligao com o aspecto ntimo do agente. Geralmente,

    ela vinculada ao ato pecaminoso, pois imprime o sentimento de responsabilidade do ser

    humano perante sua prpria conscincia, seus preceitos fundamentais. Em conseqncia, h

    tambm a vinculao direta sua concepo religiosa, o que implica em dizer que para

    apurar se h, ou no, responsabilidade moral, cumpre indagar do estado de alma do agente: se

    a se acusa a existncia do pecado, de m ao, no se pode negar a responsabilidade

    moral54.

    Assim, no h que se falar na existncia, ou no, de prejuzos, j que a sua configurao

    permeia por entre vias intrnsecas pessoa e restritas exclusivamente a ela, o que escapa

    amplitude do direito que, por sua vez, destinado a assegurar a harmonia e o equilbrio das

    relaes entre os indivduos.

    Por sua vez, no mbito jurdico, refuta-se a sua insero, enquanto no houver a configurao

    do prejuzo. Sendo assim, ao ameaar a ordem e a paz social, o ofensor deve ser ferido

    atravs da arma da responsabilidade com o propsito de impedir que venha a praticar

    novamente tal ato, preservando, com isso, os anseios da coletividade ou simplesmente a

    integridade individual.

    Ulpiano foi o responsvel pela elaborao de trs grandes bases fundamentais para a

    53 Ibidem, loc.cit. 54 DIAS, Jos Aguiar. Da responsabilidade civil. 10. ed. rev. atual. vol 1. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 4.

  • sustentao do direito nos contornos atualmente conhecidos. O filsofo estabeleceu como

    vigas estruturais trs princpios indispensveis que so: honeste vivere, neminem laedere,

    suum cuique tribure55. Estas, por sua vez, so normas que ultrapassam o aspecto jurdico puro

    e isolado para agregar-lhe valor moral.

    A fulminao de um destes pilares acarretar em sanes abrangentes ao foro ntimo de cada

    um, ou seja, na conscincia do indivduo, e que, a depender da gravidade e da amplitude de

    interferncia deste, poder tambm refletir no aspecto jurdico.

    A trade principiolgica apresentada forma uma cadeia de dependncia conectora dos

    princpios ali existentes de tal maneira que um passa a transformar-se em requisito, ou

    conseqncia, do outro. Por exemplo: para que o homem possa viver de forma honesta

    (honeste vivere), ele deve respeitar os direitos pertencentes ao seu semelhante, (neminem

    laedere) ou ento dar ao que pertence a ele (suum cuique tribure).

    O desrespeito a estes li