psicologia social e os atuais desafios

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A Psicologia Social e os atuais desa os

ético-polí cos no Brasil

Organizadores

Aluísio Ferreira de Lima

Deborah Chris na Antunes

Marcelo Gustavo Aguilar Calegare

Porto Alegre2015

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Catalogação na publicação por: Onélia Silva Guimarães CRB-14/071

P974 A Psicologia Social e os atuais desafios ético-políticos no Brasil[Recurso eletrônico on-line] / organizadores: Aluísio Ferreirade Lima, Deborah Christina Antunes e Marcelo Gustavo AguilarCalegare. – Porto Alegre : ABRAPSO, 2015.510p. ; tabs.

ISBN: 978-85-86472-28-2Inclui referência bibliográfica

1. Psicologia social. 2. Ética. 3. Políticas públicas. 4. MovimentosSociais. I. Lima, Aluísio Ferreira de. II. Antunes, Deborah Christina.III. Calegare, Marcelo Gustavo Aguilar.

CDU: 316.6

Revisão: Jussara RaitzEditoração: Spartaco Edições

Capa e Projeto grá co: Spartaco Edições

Esta obra está licenciada sob uma Licença Crea ve Commons

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Diretoria Nacional da ABRAPSO Gestão 2014-2015

Presidente: Aluísio Ferreira de LimaPrimeiro Secretário: Marcelo Gustavo Aguilar Calegare

Segundo Secretário: Leandro Roberto NevesPrimeira Tesoureira: Deborah Chris na Antunes

Segunda Tesoureira: Renata Monteiro GarciaSuplente: Carlos Eduardo Ramos

Primeira Presidenta : Silvia Ta ana Maurer Lane (gestão 1980-1983)

ABRAPSO Editora

Ana Lídia Campos BrizolaCleci Maraschin

Neuza Maria de Fa ma Guareschi

Conselho Editorial

Ana Maria Jacó-Vilela – Universidade do Estado do Rio de JaneiroAndrea Vieira Zanella - Universidade Federal de Santa Catarina

Benedito Medrado-Dantas - Universidade Federal de PernambucoConceição Nogueira – Universidade do Minho, Portugal

Francisco Portugal – Universidade Federal do Rio de JaneiroLupicinio Íñiguez-Rueda – Universidad Autonoma de Barcelona, España

Maria Lívia do Nascimento - Universidade Federal FluminensePedrinho Guareschi – Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Peter Spink – Fundação Getúlio Vargas

Sobre a ABRAPSO

A ABRAPSO é uma associação sem ns lucra vos, fundada durante a 32a Reuniãoda SBPC, no Rio de Janeiro, em julho de 1980. Fruto de um posicionamento crí-

co na Psicologia Social, desde a sua criação, a ABRAPSO tem sido importanteespaço para o intercâmbio entre estudantes de graduação e pós-graduação,pro ssionais, docentes e pesquisadores. Os Encontros Nacionais e Regionais daen dade têm atraído um número cada vez maior de pro ssionais da Psicologia

e possibilitam visualizar os problemas sociais que a realidade brasileira temapresentado à Psicologia Social. A revistaPsicologia & Sociedade é o veículo de

divulgação cien ca da en dade.h p://www.abrapso.org.br/

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Psicologia social e os atuais desafos é co-polí cos no Brasil

Sumário

ApresentaçãoAluisio Ferreira de Lima, Deborah Chris na Antunes e MarceloGustavo Aguilar Calegare

1

Londres 1948. La guerra, la paz y la familia. Salud mental y

“ciudadanía mundial” en los comienzos de la Guerra fríaHugo Vezze 5

Esse título todo é pra que eu diga como eu aprendi a lutar?Simone Maria Huning e Marcos Mesquita

19

Educação e mídia: o que a Psicologia Social tem a ver com isso?Luciana Lobo Miranda

36

Formação em Psicologia Social – ou quando a vida imita a arteJe erson de Souza Bernardes

51

Desa os contemporâneos do cuidado na saúde mentalAluísio Ferreira de Lima

68

Judicialização da saúde: anotações a par r de Michel FoucaultFlavia Cris na Silveira Lemos

75

Redes de cuidado e a formação/atuação de psicólogos: como“amarrar buracos”?Bárbara Eleonora Bezerra Cabral

90

Podem as polí cas públicas emancipar?Fernando Lacerda Júnior

110

La función de la psicología en contextos carcelariosOmar Alejandro Bravo

128

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Polí ca, movimentos sociais e as vicissitudes da democraciabrasileira atualPedrinho Arcides Guareschi

140

Cartogra as psicopolí cas do co diano: tecnopolí ca e movimentossociaisDomenico Uhng Hur

157

Direitos humanos e movimentos sociais: desa os à democracia(e à psicologia) brasileiraPedro Paulo Gastalho de Bicalho

175

Sujeito contemporâneo e as sexualidades “desviantes”: con nuandoo debateMaria Juracy Filgueiras Toneli

191

Lições para uma psicologia das oprimidasJaqueline Gomes de Jesus

208

Dissidências sexo-eró cas-gendradas: da pornogra a à pós-pornogra a como arte de gozar gostosoWiliam Siqueira Peres

218

Compar lhando afetações: trilhas entre gurações e imaginaçõesde gênero e sexualidadeBenedito Medrado

236

Interfaces disciplinadoras e emancipadorasSilvio José Benelli

257

O jus ceiro e o menino: a educação é alterna va para a (des)criminalização da juventude?

Daniele Nunes Henrique Silva e Candida de Souza

277

Extermínio de jovens e redução da maioridade penalEsther Maria Magalhães Arantes

297

Cultura e Arte: questões para o nosso tempoDeborah Chris na Antunes

315

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Psicologia social e os atuais desafos é co-polí cos no Brasil

A ciber(cultura) e o redimensionamento da experiência (semi)forma va na produção ar s ca de hiper(textos)Isabella Fernanda Ferreira

326

Arte dos limites, limites da arte e releituras sobre iden dadeNancy Lamenza Sholl da Silva

346

O fotografar e as experiências cole vas em Centros de Referênciaem Assistência SocialKa a Maheirie

364

Afe vidade como potência de ação para enfrentamento dasvulnerabilidades

Zulmira Bom m

375

Quilombos e con itos territoriais no Brasil: o caso do Vale doRibeira, SPGustavo Mar neli Massola, Bernardo Parodi Svartman, Alessandrode Oliveira dos Santos e Luís Guilherme Galeão-Silva

390

Inves gación y polí ca ambiental: el papel de la psicologíaambiental

Ricardo García Mira

413

Rural-urbano, estudos rurais e ruralidades: saberes necessários àPsicologia SocialMarcelo Gustavo Aguilar Calegare

437

Psicología Social y desarrollo rural: actualidad y desa os en AméricaLa naFernando Pablo Landini

458

Comunidades indígenas nas áreas rurais de Mato Grosso do SulSônia Grubts 476

Reestruturação produ va à brasileira: as condições concretas devida dos trabalhadoresOdair Furtado

488

Sobre os Autores 505

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Psicologia social e os atuais desafos é co-polí cos no Brasil

Apresentação

A Psicologia social e os atuais desa os é co-polí cosno Brasil: um livro de encontros e diálogos

Aluísio Ferreira de LimaDeborah Chris na Antunes

Marcelo Gustavo Aguilar Calegare

O livro que aqui apresentamos, Psicologia social e os atuais desa- os é co-polí cos no Brasil, foi preparado a par r das contribuições dealguns dos par cipantes dos simpósios realizados durante o XVIII Encon-tro Nacional da Associação Brasileira de Psicologia Social. Ele expressa oresultado dos vários encontros realizados ao longo dos úl mos dois anospela gestão Nacional 2014-2015, composta por Aluísio Ferreira de Lima(Presidente), Marcelo Gustavo Aguilar Calegare (primeiro secretário),Leandro Roberto Neves (Segundo Secretário), Deborah Chris na Antu-nes (Primeira Tesoureira), Renata Monteiro Garcia (Segunda Tesoureira)e Carlos Eduardo Ramos (Suplente), representantes das regiões Norte eNordeste do Brasil, e vice-presidentes, secretários e tesoureiros das regio-nais da ABRAPSO.

Trata-se, portanto, de um resultado de um projeto cole vo realizadono esforço de diálogo democrá co entre pro ssionais de diversas partesdo país com um interesse comum: construir um espaço de encontro no

qual a intenção inicial desta Associação pudesse reverberar, a saber, o po-sicionamento crí co frente a toda e qualquer forma de indignidade huma-na, de violência objetiva e subjetiva cotidianas, explícitas ou mascaradas,da naturalização tanto dos fenômenos psíquicos, individuais e humanos,quanto dos acontecimentos e fatos sociais que tanto contribui para a ma-nutenção de uma sociedade desigual e injusta, e para a perpetuação doautoengano e do sofrimento.

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Lima, A. F., Antunes, D. C., & Calegare, M.G.A. (2015). Apresentação.

Não é sem consequências que o tema escolhido pela ComissãoCien ca deste encontro foi justamente “A Psicologia Social e os atuaisdesa os é co-polí cos no Brasil”, isso porque, como colocamos no sitedo encontro, de modo a apresentá-lo:

Atualmente temos convivido com violências de diversas ordens, com oaviltamento de direitos humanos e o recrudescimento de prá cas de su- jeição, a medicalização da vida, a militarização, a precarização e diversosretrocessos nas polí cas de governo. Ao mesmo tempo, assis mos à con-vocação e presença cada vez maior de psicólogos(as) atuando junto a essaspolí cas.1

Na mesma medida em que a Psicologia – e em especial, a Psico-

logia Social – tem ganhado cada vez mais espaço de atuação na socie-dade brasileira, aumenta nossa responsabilidade por pensar polí ca ee camente esses lugares, formas de atuação da Psicologia neles, bemcomo seus desa os para a construção de uma sociedade emancipada detais relações deletérias. Por isso, esse espaço de encontros e diálogos éprincipalmente um espaço formativo e reflexivo que está muito além dedizer ou ditar regras sobre as temá cas aqui abordadas, mas busca ques-

onar as problemá cas da existência na sociedade hodierna, bem comopensar possibilidades outras, inimaginadas.

É importante lembrar que a elaboração deste encontro, em todasas suas fases, contou com a par cipação dos vice-presidentes, dos coor-denadores de núcleos e demais membros, colaboradores e representan-tes da ABRAPSO em diversos momentos entre os anos de 2014 e 2015.Esses momentos foram possibilitados tanto nas reuniões ampliadas pro-movidas pela diretoria nacional — no IV Congresso Brasileiro Psicologia:Ciência e Pro ssão (novembro de 2014, em São Paulo) e no IX Congresso

Norte Nordeste de Psicologia (março de 2015, em Salvador) — quantonos encontros regionais: nas discussões realizadas durante o XV EncontroRegional Sul da ABRAPSO: “O clamor das ruas: as demandas sociais e asprá cas da psicologia social” (setembro de 2014, Londrina – PR); no IVEncontro Regional N-NE da ABRAPSO: “Movimentos Sociais e Polí casPúblicas: construções entre saberes e prá cas” (outubro de 2014, Ma-

1 h p://www.encontro2015.abrapso.org.br/apresentacao

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Psicologia social e os atuais desafos é co-polí cos no Brasil

naus – AM); no VIII Encontro Regional Rio de Janeiro da ABRAPSO: “OPsicólogo social na cidade: ações territoriais, lutas polí cas e subje vida-de” (novembro de 2014, Rio de Janeiro – RJ); no XIX Encontro Regional daABRAPSO Minas: “A polí ca no co diano: contribuições teórico-prá casda psicologia social” (novembro de 2014, Be m – MG); no XII EncontroABRAPSO Regional São Paulo: “Práxis em Psicologia Social: Desa os ePerspec vas” (março de 2015, Santos – SP) e o II Simpósio da RegionalCentro-Oeste da ABRAPSO: “O que é a Psicologia Social?” (26 a 27 de ju-lho, Campo Grande – MS). E também por discussões virtuais (muito reais)através dos grupos de e-mails criados para este m.

Há de se considerar relevante a importância e o esforço de possi-

bilitar – o melhor possível – o diálogo de Norte a Sul do país de modo aagregar os diversos olhares crí cos, ques onamentos e práxis, uma vezque esses encontros serviram de base para os detalhes da organizaçãodo encontro, para o reconhecimento dos temas e problemá cas atuaise para a indicação da Comissão Cien ca, composta por 26 membrosda ABRAPSO, de diferentes regiões do país. Comissão que, por sua vez,acolhendo as preocupações das diretorias regionais e coordenações denúcleo, de niu o tema, a programação, a proposição da conferência deabertura, os eixos temá cos e os simpósios deles derivados: (1) Educa-ção, tecnologias e sociedade; (2) História, teorias, métodos e formaçãoem Psicologia Social; (3) Polí cas Públicas e Saúde Cole va; (4) Polí caspúblicas, direitos sociais e emancipação; (5) Movimentos sociais e desa-

os à democracia brasileira; (6) Relações de gênero, preconceito e direi-tos sexuais; (7) Assistência Social, vulnerabilidades e violências; (8) Polí-

cas sociais: infância, juventude e novos arranjos familiares; (9) Mídia,cultura e arte; (10) Polí cas e questões socioambientais, emergênciase desastres; (11) Relações étnico-raciais e contextos rurais-urbanos e

(12) Psicologia social e trabalho.Esses úl mos, cujas produções crí cas de sócios e convidados estão

presentes nesse livro, oferecem re exões crí cas, análises teóricas e in-terpretações a respeito do cenário atual vivido especialmente no Brasil apar r de suas temá cas e expressam a busca de estratégias de superaçãoda ordem atual através do reconhecimento do existente problemá co ede propostas de novas possibilidades.

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Lima, A. F., Antunes, D. C., & Calegare, M.G.A. (2015). Apresentação.

Em um momento no qual experienciamos o enrijecimento de posi-ções polí cas sectárias, que se cons tuem em verdadeiros desa os é -cos e polí cos para a atuação dos psicólogos e sobretudo para a vida emsociedade, acreditamos que os textos com os quais o leitor irá se depararaqui podem contribuir com o debate a respeito de uma sociedade que serealiza de forma cada vez mais complexa e que produz e reproduz inces-santemente aviltantes processos de barbárie.

Fortaleza, 29 de outubro de 2015

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Psicologia social e os atuais desafos é co-polí cos no Brasil

Londres 1948. La guerra, la paz y la familia. Saludmental y “ciudadanía mundial” en los comienzos de

la Guerra fría1

Hugo Vezze

El III Congreso Internacional de Salud Mental se reunió en Londresen agosto de 1948, organizado por la Bri sh Na onal Associa on for Men-tal Hygiene. Con nuaba los anteriores congresos de higiene mental. No

voy a detenerme en la historia de la higiene mental. Sólo señalo que setrata de un movimiento nacido en los Estados Unidos y que alcanzó unaproyección mundial. Exis a un Comité Internacional que había organizadoya dos congresos, en Washington (1930) y en París (1937). Estaba previstoun tercer congreso que se realizaría en Brasil en 1942, y que fue posterga-do por la guerra. 2 Pero también buscaba reemplazar el término “higiene”,un poco viejo, que venía del siglo XIX, por “salud” mental. Es posible indi-car dos razones para ese cambio. Primero, en el curso del mismo congresose ins tuía un cambio signi ca vo en el vocabulario: el término “higiene”

será reemplazado por “salud mental”. Ese mismo año había sido creada laOMS (Organización Mundial para la Salud) a par r de una de nición y unprograma ampliado de la salud . Pero además, segundo, la higiene arras-traba todavía sen dos asociados a la tradición eugenésica que ahora que-daba relegada. De hecho, luego del congreso, el Interna onal Commi eeon Mental Hygiene fue reemplazado por la World Federa on for MentalHealth.3 El congreso reunía tres coloquios consecu vos, sobre psiquiatríainfan l, sobre psicoterapia y, el más importante y prolongado, el de higie-ne mental.1 La conferencia expondrá fragmentos de una inves gación sobre psiquiatría, psicoanálisis

y cultura comunista (1949-1964), que forman parte de un libro que se publicará próxima-mente: H. Vezze , Batallas ideológicas y ‘espíritu de par do’. Variaciones sobre psiquiatría, psicoanalisis y cultura comunista. Buenos Aires y Paris, 1949-1964 ( tulo provisorio), BuenosAires, Siglo XXI editores.

2 Interna onal Congress on Mental Health. London 1948, 4 vols., London, H.K. Lewis &Co.,1948, vol. I, pp.33-34.

3 Ver José Bertolote, “The roots of the concept of mental health”, World Psychiatry , 2008June; 7(2): 113–116; en h p://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/ar cles/PMC2408392/

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Vezze , H. (2015). Londres 1948. La guerra, la paz y la familia. Salud mental y “ciudadanía...

¿Por qué se realizaba en Londres? El propósito era doble: por unlado, recuperar los lazos con colegas pertenecientes a naciones que ha-bían sido enemigas durante la guerra; por otro, incluir la cues ón de lasalud mental en un proyecto de reparación y de edi cación de la paz, unproyecto básicamente europeo. El congreso puede ser abordado en el

empo más largo, entonces, como una herencia del movimiento de la hi-giene mental en el período de entreguerras; o puede ser analizado en lacoyuntura corta de la inmediata posguerra. En esta conferencia me voy alimitar a considerarlo en el empo más corto, dominado por los fantasmasde la guerra y por la cues ón de la paz.

La psiquiatría había cambiado mucho a par r de las enseñanzassurgidas de las experiencias de la guerra. La Segunda Guerra Mundialcons tuyó un gigantesco laboratorio de pruebas para las disciplinas psi ,aplicadas en el frente, en centros de tratamiento y rehabilitación y en lasociedad civil, sobre todo en la sociedad norteamericana. Nacía un cam-bio de paradigmas en la disciplina psiquiátrica que dependía de la incor-poración de otros especialistas: psicólogos y psicoanalistas, sociólogos,trabajadores sociales, antropólogos. A par r de un creciente reconoci-miento de la importancia de los vínculos humanos y de las condicionesgrupales en el origen de los trastornos subje vos (y en los acciones deprevención) la medicina tendía a perder su posición dominante. Lo quequiero destacar es que el reducto tradicional de la vieja psiquiatría termi-naba asediado desde dos ancos: el psicoanálisis y las ciencias sociales.Y esas experiencias tuvieron su repercusión en Occidente, a par r sobretodo de trabajos realizados en Inglaterra y en Estados Unidos. Esto esmás conocido, creo. Las experiencias de la psiquiatría y la psicología deguerra contribuyeron al desarrollo de enfoques grupales, de las relacio-nes humanas, las comunidades terapéu cas, la prevención enfocada a lafamilia y la infancia, en n, el programa de una psiquiatría que salía del

hospital psiquiátrico hacia la comunidad.Por supuesto, al enfrentar los males en la sociedad, también impul-

saba, para algunos al menos, una mirada polí ca y reclamos hacia el Es-tado, de modo que el proyecto de salud colec va a menudo entroncabacon un programa social de reformas. Desde los años treinta, por lo me-nos, exis a un higienismo de izquierda, en los Estados Unidos y Europapero también en América La na. En la URSS el proceso iba en la dirección

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Psicologia social e os atuais desafos é co-polí cos no Brasil

opuesta. El movimiento de la “psicohigiene” había sido importante en losprimeros años de la revolución pero terminó aplastado por el estalinismoque promovió las visiones neurológicas de los trastornos y volvió a instalara la psiquiatría en el hospital cerrado.

Condiciones y obje vos. El congreso fue precedido por reunionespreparatorias, comisiones e informes que, de acuerdo con los organizado-res habían abarcado 27 países. La organización apuntaba a conver rlo enun acontecimiento internacional más allá de Europa. Se proponía no sóloretomar contactos e intercambios interrumpidos por la guerra sino “desar-rollar algunos conceptos nuevos en el ámbito de las relaciones humanas”.No estaba pensado como un congreso sólo cien co, tampoco como unareunión dedicada a la psiquiatría o la psicopatología, sino que apuntaba aun conjunto de disciplinas y profesiones consideradas relevantes para losproblemas de salud mental en una perspec va global. 4 La psiquiatría, lapsicología y el trabajo social eran las profesiones más representadas, perotambién par ciparon en el congreso y en las reuniones previas especialis-tas de la sociología y la antropología, el derecho, la educación, la loso ay las ciencias polí cas, de la teología y la administración.5

El modelo de la reunión cien ca se veía alterado también por la de-cisión de culminar con recomendaciones a las autoridades públicas y las

organizaciones de la sociedad. Una comisión internacional pluridisciplinarfue la encargada de preparar una extensa declaración a par r de una en-cuesta y de los informes recogidos del trabajo de grupos en unos veintepaíses, con un predominio abrumador de los Estados Unidos e Inglaterra. 6 La Comisión preparatoria recibió informes del trabajo de unos 350 grupos:Estados Unidos encabeza la lista con 205 informes e Inglaterra sigue con67; Suiza: 13, Francia y Holanda: 11; de América La na enviaron informesBrasil y Puerto Rico, uno cada uno. Por otra parte, la organización de lasdiscusiones, en pequeños grupos, procuraba que la propia ac vidad delcongreso cons tuyera una intervencion que iba más allá del conocimien-to, hacia la conciencia y las mo vaciones de los par cipantes.

Ahora bien, esa proyección mundial que se buscaba tenía referen-cias y un marco preciso. Surgía un objeto nuevo, las relaciones humanas ,4 Interna onal Congress on Mental Health, London 1948, vol. I, pp.35-37.5 p.56.6 p.53.

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Vezze , H. (2015). Londres 1948. La guerra, la paz y la familia. Salud mental y “ciudadanía...

ampliado en la escala del planeta. La idea predominante era que las ame-nazas de la guerra y por consiguiente la edi cación de la paz dependíanmayormente de factores psicosociales. Esta idea fue incluida en la Cons-

tución de la UNESCO y persiste todavía hoy: “puesto que las guerrasnacen en la mente de los hombres, es en la mente de los hombres dondedeben erigirse los baluartes de la paz.” 7 De allí deriva el propósito de es-tudiar y discu r tópicos que emergían como centrales en este proyectode una psicología y una psicopatología social aplicadas a la guerra y lapaz: la agresión, el prejuicio, el con icto grupal, el nacionalismo. Y entreellos se destacaba la importancia atribuida a la familia como agente y es-pacio de construcción de ese ideal ampliado de salud mental. Es más, la

gura de una “familia de naciones” era propuesta por uno de los par ci-

pantes (un psiquiatra infan l norteamericano) como una representaciónde los obje vos que Congreso promovía en su proyección mundial. 8

Programas y promesas . La Comisión Internacional era pluridisci-plinar y mul nacional. Los psiquiatras estaban en minoría; y varios deellos eran psicoanalistas o incorporaban el psicoanálisis, como el norte-americano Harry S.Sullivan o el británico Henry V. Dicks de la TavistockClinic. Había un buen número de psicólogos, entre otros, John C. Flügelpsicoanalista británico; O o Klineberg, canadiense especialista en psico-logía social, Jean Stoetzel, sociólogo y psicólogo social francés y Nina Ri-denour, psicóloga con actuación en el movimiento de la salud mental enlos Estados Unidos. Otros miembros pertenecían a las ciencia sociales,como la antropóloga norteamericana Margaret Mead, muy conocida porsu libro sobre sexo y adolescencia en Samoa, Lawrence K. Frank, cien stasocial con una amplia actuación en temas de infancia, educación y orien-tación familiar, en los Estados Unidos y ligado a la Rockefeller Founda-

on y Torgny Segerstedt, lósofo y sociólogo sueco. También integrabala comision David Mitrany, un académico rumano, naturalizado británi-

co, especialista en historia y teoría polí ca. El grupo se completaba convarias profesionales del trabajo social y un par de teólogos, entre ellosun sacerdote católico, el Rev. E.F. O’Doherty que era además profesor depsicología.

7 La cita corresponde al primer considerando de la Cons tución de la UNESCO. VerTextos fun-damentales , UNESCO, Enh p://portal.unesco.org/en/ev.php-URL_ID=15244&URL_DO=DO_TOPIC&URL SECTION=201.html

8 Ver Frederik Allen,Interna onal Congress on Mental Health, London 1948, vol. II, p.11.

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Psicologia social e os atuais desafos é co-polí cos no Brasil

Mental Health and World Ci zenship es el informe preparado porla Comisión Internacional que, con mínimas alteraciones, fue aprobadocomo declaración nal del Congreso. 9 Una serie de preguntas habían sidoenviadas a cada uno de los miembros de la comisión y a par r de los tex-tos resultantes había sido redactado el documento preparatorio. El tenorde algunas de las preguntas daba cuenta de la escala de los problemas.Por ejemplo, “¿qué cons tuye una buena sociedad? o ¿qué es la ciudada-nía mundial?”10 De las respuestas surgía la posición central de la familia yla postulación de una sección en el congreso dedicada al desarrollo huma-no. Concluía que el obje vo úl mo de la salud mental apuntaba a ayudar ala gente a “vivir con otros en el mismo mundo”; “promover en los pueblosy naciones el mayor nivel posible de salud mental en la dimensión más

amplia, médica y biológica, educacional y social.”11

De entrada surgía la cues ón acuciante, “¿puede ser prevenida lacatástrofe de una tercera guerra mundial?” y el propósito a largo plazo deque los pueblos aprendan a cooperar por el bien de todos y puedan sentarbases para una paz duradera. Esos obje vos eran convergentes, por nodecir idén cos, a los que se proponía la UNESCO. El obje vo de la preser-vación de la paz se cumpliría mediante la colaboración internacional y enese sen do convocaba a formar “una comunidad mundial edi cada sobre[..] el respeto por las diferencias individuales y culturales” así como a lapromoción de la salud mental para “todos los pueblos del mundo”. En lavisión que ofrecía, los temas de la prevención se ampliaban a una escalaglobal que abarcaba la idea de una ges ón internacional de los proble-mas, de nidos con un criterio social.

El problema mayor, en el que los especialistas no entraban, es queya en 1948, con el bloqueo sovié co a Berlín, los sen dos de la “paz” esta-ban some dos a enconadas disputas en el plano internacional. Desatadala Guerra fría, para los Estados Unidos la paz signi caba consolidar el nue-vo orden, expandir la democracia y prevenir el fascismo, pero también elcomunismo, que se consolidaba como el enemigo principal después de la“doctrina Truman”. Para la URSS, los par dos comunistas del mundo y los9 Mental Health and World Ci zenship , Interna onal Congress on Mental Health, London,

1948; disponible en www.americandecep on.com . La composición completa de la comisiónpuede ver en las pp.1-3.

10 p. 4..11 h p://www.wfmh.org/aboutus/annualreports/annualreport2001/about.html

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“compañeros de ruta” la paz era otra cosa: se trataba de prevenir la ame-naza de un ataque contra las posiciones sovié cas, sobre todo en Europa,y de impulsar la lucha an imperialista. El discurso de la salud mental pro-ponía otro sen do de la paz, una utopía humanista, de reforma subje va,que ciertamente encontraba posibilidades de exponerse y discu rse enOccidente y no en la URSS. Dependía de condiciones psicosociales que seconstruirían en la familia y la educación inicial para ampliarse hacia el tra-bajo y la vida social y polí ca. La paz quedaba asociada a una edi caciónde hábitos, valores y ac tudes contrarias al autoritarismo.

La disputa concernía a la idea misma de democracia. No puedo de-sarrollar aquí los sen dos y los modos en los que la cues ón de la demo-cracia se conver a, ya durante la guerra y en la inmediata posguerra, enun problema para las disciplinas psi y para la psicología social en par cu-lar. Estaba presente en el conocido ensayo de Erich Fromm, El miedo a lalibertad publicado en 1941. En línea con sus trabajos anteriores, explora-ba las condiciones psicológicas que habían sostenido la adhesión de lasmasas al nazismo. Y establecía diversas vías de escape a los costos de lalibertad: autoritarismo, destruc vidad y conformismo. Por otra parte, en1939, en la Universidad de Iowa, Kurt Lewin había desarrollado su inves-

gación sobre es los de liderazgo, a través de la dinámica de pequeñosgrupos, y destacaba los rasgos de lo que llamó liderazgo “democrá co” encontraposición con los es los autoritario y laissez-faire. También en estecaso el impulso venía de un autor alemán y judío que había sido profesoren la Universidad de Berlín y había huído a los Estados Unidos en 1933.12

En esos años nacía también el interés por inves gar temas que nohabían formado parte del corpus anterior de la disciplina, como el pre- juicio, el autoritarismo y el an semi smo. El discurso de la salud mentalrecogía esa nueva agenda, ampliaba el elenco de problemas respecto delos temas tradicionales de la higiene mental y consiguientemente convo-caba a las ciencias sociales y polí cas. Se trataba, como se vio, de iluminarlas condiciones de la “buena sociedad”; y un obje vo explícito, en el do-cumento preparatorio, apuntaba a exponer lo que las ciencias sociales yhumanas, la psiquiatría incluida, podían aportar.

12 Ver K. Lewin; R. Llippit; R.K. White (1939). Pa erns of aggressive behavior in experimentallycreated social climates. Journal of Social Psychology , 10. Para una reseña biográ ca de K.Lewin verh p://www.biogra asyvidas.com/biogra a/l/lewin.htm.

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Ante todo, el documento, casi como un postulado de las nuevas cor-rientes de pensamiento, insis a en la “modi cabilidad” y la “plas cidad”de comportamiento y de las ins tuciones humanas. Exponía, en ese sen -do, los cambios en los paradigmas del saber sobre el hombre y la sociedadque se situaban en el empo más largo de la caída de la psicopatologíamédica. La otra contribución se orientaba a un diagnós co de los “obstá-culos” (“prejuicios, hos lidad o nacionalismo excesivo”) que se opondríana un desarrollo óp mo de la personalidad, a ncados en las relacionestempranas, en la familia y en las ins tuciones básicas del aprendizaje so-cial, como la escuela.13 Nacía un nuevo vocabulario para las disciplinas psi ,impregando de un clima progresista: derrotados los fascismos, el espíritude los empos daba por asegurada una era de cambios en las costumbresy las ins tuciones. Se implantaba la idea de la “modernización” económi-ca, social y cultural; y la con anza en la dinámica de un movimiento histó-rico global que dejaría atrás los patrones tradicionales de comportamien-to se trasladaba al discurso de las disciplinas sociales y el psicoanálisis.

En ese marco, la “ciudadanía mundial” era presentada como un ob- je vo que empezaba a realizarse en los cambios atribuidos a la victoriasobre los fascismos. De nida en el documento como “lealtad al conjuntode la humanidad” nacería de un movimiento que abarcaría y superaría laslealtades tradicionales, a la familia, la comunidad y la nación.14 En verdadno dejaba de plantearse un problema en los modos de concebir las rela-ciones entre el grupo familiar y esa ansiada comunidad polí ca mundial.En la medida en que prevalecía una visión tradicional que trasladaba elmodelo de grupo primario a la sociedad concebida como una gran familia,surgía una básica descon anza en las intervenciones del estado o las orga-nizaciones polí cas. Para otros, más radicales, por el contrario, la descon-

anza se refería a la familia misma y las costumbres debían ser objeto deintervenciones reformadoras bastante drás cas por parte de la autoridad.

Por un lado, la psiquiatría abandonaba el molde médico, se amplia-ba de lo invididual a lo social y se proponía fundar lo que se presentabacomo una “psiquiatría de los pueblos”. 15 Por otro, a la luz del documentopreparatorio, el alcance de la salud mental no sólo excedía la psiquiatría13 Mental Health and World Ci zenship, p.7.14 p. 7.15 Eugene B. Brody. Origins of the World Federa on for Mental Health. Disponible en:h p://

www.psych.org/pnews/98-01-19/hx.html.

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hacia la psicología y las ciencias sociales sino que conformaba un núcleode ideas y una visión hacia el futuro, hacia un programa de acción polí casobre la sociedad y los grupos y una nueva sociedad planetaria. El suelo deesos cambios, como se vio, no podía provenir de las formas habituales dela polí ca o el derecho; dependía de un sustrato subje vo, en individuos,grupos e ins tuciones. Así como, para los nuevos paradigmas de la saludpública, la salud no era sólo la ausencia de enfermedad, del mismo modopara la visión ambiciosa de los especialistas de la mente, la paz no erasólo la ausencia de guerra y exigía bases posi vas, psicológicas y morales,que proyectaban una nueva humanidad. Si el síntoma era la guerra, elmundo entero terminaba abarcado en el diagnós co de la enfermedad yen las vías posibles de la prevención y el tratamiento. La idea del desar-

rollo adquiría un sen do más allá de los modelos evolu vos en el indivi-duo, hacia un ideal de progresiva ampliación asocia va, hacia el grupo yla comunidad. Y en el desenvolvimiento de las potencialidades humanasla mira estaba puesta en el salto que conduciría de la comunidad nacionalal mundo:

Los principios de la salud mental no se pueden promover con éxito en lassociedades a menos que exista una progresiva aceptación del concepto deciudadanía mundial. Y la ciudadanía mundial puede ser ampliamente ex-tendida entre los pueblos a través de la aplicación de los principios de la

salud mental. 16

Varias de las guras que organizaban el congreso (como el caso deChisholm) formaban parte de un nuevo elenco de funcionarios y espe-cialistas nucleados en torno de las ac vidades de la ONU. El documentobuscaba intervenir de algún modo en las polí cas del organismo a travésde diversas recomendaciones: la salud mental, en esas proyecciones, secons tuía en un capítulo importante de las relaciones internacionales.Pero al mismo empo, a través de la propia organización que había mo-vilizado docenas de comisiones y grupos en diversos países, también sebuscaba mantener y ampliar una inicia va desde la sociedad civil, conefectos extendidos sobre los profesionales y las organizaciones locales.De modo que no sólo se ampliaba más allá de las ciencias médicas, sinoque igualmente desbordaba el modelo de los congresos o las en dadescien co-profesionales en la medida en promovía la cooperación de los16 pp.6-7.

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especialistas de la salud mental con los funcionarios polí cos y los admi-nistradores. Desde la propia organización del congreso se procuraba crearuna red internacional con capacidad de acción en los dis ntos países, co-nectada al mismo empo con una en dad centralizadora, la FederaciónMundial para la Salud Mental, y con los organismos internacionales, laOMS y la UNESCO.

¿Hasta qué punto el concepto mismo de salud mental, nacido enOccidente, era exportable a otras culturas? El problema no podía ser ig-norado en un elenco de especialistas en el que descollaban antropólogos,como Margaret Mead. El documento admi a el problema; lamentaba laausencia de representantes del este (la URSS) y del Extremo Oriente. Yseñalaba la preocupación por no quedar con nados a las naciones de Oc-

cidente, sobre todo a los Estados Unidos e Inglaterra que, como hemosvisto, aportaban la gran mayoría de los par cipantes. Pero igualmentecon aba en que los valores asociados y el sen do mismo atribuido a lasalud mental, al igual que el de la salud pública, podían cons tuir la basepara un entendimiento común que comprome era a otras naciones.

Ahora bien, ese propósito se revelará de imposible cumplimiento enlos años de la Guerra fría. Las di cultades se eludían y el texto se deslizabarápidamente del diagnós co a la promesa cuando anunciaba una “nuevaera de la ciencia del hombre”. 17 Arrastraba una idea ilustrada, asociada alprogreso, que evocaba el pensamiento del siglo XVIII, pero se distanciababásicamente por dos rasgos novedosos. Primero, ese nuevo corpus de co-nocimiento no encontraba sus fundamentos en la loso a; y en la relaciónproyectada de los especialistas con los funcionarios anunciaba tambiénuna ciencia de la administración de las personas. Segundo, en el énfasisque ponía en señalar obstáculos y distorsiones del desarrollo (concebidocomo el progreso en el nivel subje vo) se exponía una visión menos inge-nua, que reconocía el papel del prejuicio, el autoritarismo y la agresividad.

El documento exponía una visión alarmada del mundo contemporá-neo. Pero las amenazas de una nueva guerra eran expuestas de un modogenérico, como si pudieran provenir de cualquier lado. No se hablaba dela Guerra fría ni de la confrontación estratégica entre los Estados Unidosy la URSS; sin embargo, en la medida en que esa amenaza se especi cabacomo el miedo a una con agración atómica o biológica, era claro para17 p. 4 y p. 10.

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todos que eran lo que comenzaba a llamarse las “superpotencias” las quepodían realizar ese futuro sombrío. 18

La primera tarea en pos del propósito de reforma de las relaciones

internacionales procuraba convencer a los que decidían, a los gobiernos,los polí cos, los funcionarios. Las ciencias de la salud mental, a par r delconocimiento y la experiencia acumulada, se ofrecían para intervenir ycontribuir. Y se consideraban en condiciones de aplicar los conocimientosadquiridos en la guerra a crear y mantener la paz, a intervenir en las cues-

ones del orden colec vo y a la edi cación de una comunidad mundial. Enesa misión combinaban el conocimiento y la teoría con la promesa.

Por otra parte, el horizonte de la salud mental llevaba fuera de loshospitales, hacia la sociedad, la infancia, la familia; y desembocaba nece-sariamente en propuestas educa vas, en un sen do amplio: la paz, losvalores y ac tudes de solidaridad y entendimiento debían inculcarse tem-pranamente en el niño. Un término clave era la “plas cidad” del sujetohumano que jus caba el proyecto de formar y guiar el desarrollo desdela infancia y debía prolongarse en ins tuciones sociales igualmente exi-bles. En el niño se concentraban los esfuerzos y los sueños: una de lasrecomendaciones proponía que los servicios de salud mental en el mundodebían dedicar el mayor esfuerzo a crear centros de orientación infan l de

un modo que conver a al niño en el foco de la acción preven va sobre elfuturo de la familia y los grupos.19

La guerra, la paz y la familia. El nuevo discurso de la salud men-tal destacaba la importancia de las relaciones humanas como un obje voestratégico en la prevención y sobre todo en la promoción de una idealampliado de salud. Para J.C. Flügel,Chairman del congreso de 1948, lasalud mental “es la condición que permite un óp mo desarrollo, sico,intelectual y emocional, del individuo, en tanto es compa ble con el de

otros individuos”.20

Era la de nición de salud de la OMS con el agregadosigni ca vo de los “otros individuos”. No hay salud mental posible, veníaa decir, para un individuo aislado. El obje vo de vivir felizmente con otros18 p.12.19 p.30.20 “Mental health is regarded as a condi on which permits the op mal development, physical,

intellectual and emo onal, of the individual, so far as this is compa ble with that of other in-dividuals.” Citado en José Bertolote, The roots of the concept of mental health, World Psychi -atry , Jun 2008, 7(2): 113–116. Enh p://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/ar cles/PMC2408392/

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Vezze , H. (2015). Londres 1948. La guerra, la paz y la familia. Salud mental y “ciudadanía...

cional debía admi r la pervivencia de emociones y anhelos primarios, deseguridad y dependencia, en la subje vidad adulta. Las prevenciones ylas crí cas frente a la situación contemporánea tenían un mo vo explíci-to: la guerra había exigido “la obediencia al Estado” y a sus representan-tes civiles y militares, había jus cado incluso una suerte de “infan liza-ción” de un individuo descargado de sus responsabilidades. Allí a ncabanlos riesgos que se señalaban en el Estado providencial, los temores deun excesivo dominio estatal y el fantasma polí co de la disolución delindividuo en la masa anónima. La peor amenaza afectaba a la familia. Unrégimen de masiva par cipación en el Estado (no sólo en las experienciasextremas del totalitarismo fascista o comunista) podría “erosionar” lasfunciones de la familia, “la única ins tución capaz de moralizar al indivi-

duo con éxito”.24

Pero el tema de la “ciudadanía mundial” en los propósitos del Con-

greso aludía a una idea de las relaciones humanas que en parte se separa-ba de los vínculos primarios y movilizaba otras referencias emparentadascon la polí ca como ac vidad asocia va y con el programa de una accióndirecta sobre la sociedad. La mirada psicoanalí ca resultaba insu ciente yse exigía la convocatoria a otros especialistas. Eso había empezado bastan-te antes. Margaret Mead se había incorporado al Comité Nacional por laHigiene Mental en 1945.25 Y el encuentro de la disciplina psiquiátrica conlas ciencias sociales había sido impulsado por Harry Stack Sullivan desdelos años veinte, en la Universidad de Chicago, en contacto con Edward Sa-pir, antropólogo y Harold Lasswell, politólogo. Más adelante se incorporóal círculo psicoanalí co y tomó par do por la disidencia culturalista. Esosantecedentes fueron decisivos en la elaboración de su teoría “interper-sonal” para la psiquiatría. Apenas terminada la guerra Sullivan par cipóac vamente en las inicia vas que llevaron a la realización del Congresode 1948 y a la creación de la World Federa on for Mental Health.26 La otra

gura destacada en la nueva organización era John Rees, presidente delCongreso, quien traía la experiencia de la Tavistock en Londres. Rees habíavisitado varias veces los Estados Unidos y estaba en contacto con GeorgeBrock Chisholm, director de los servicios médicos del ejército de Canadá y

24 p.98.25 p.100.26 Ver Lucy D. Ozarin, History Notes. Harry Stack Sullivan: Early In uences and Crea ve Years,

en h p://www.psych.org/pnews/98-05-15/hx.html

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primer director de la OMS.

Los tres, Sullivan en los Estados Unidos, Rees en Inglaterra, yChisholm en Canadá, había cumplido funciones muy importantes en los

servicios psiquiátricos durante la guerra. En ellos se concentraba el pasajedesde los obje vos de la higiene mental al nuevo movimiento de la saludmental. Aunque provenían de ámbitos de experiencia no gubernamenta-les, habían tenido una actuación destacada durante la guerra y en esascircunstancias habían forjado el per l de funcionarios estatales. Su expe-riencia abarcaba no sólo la labor estrictamente profesional (en los méto-dos de tratamientos, rehabilitación y la labor cumplida en la selección yorientación de personal, en la formación de o ciales, etc.) sino la ges ón yla dirección de una empresa colec va que movilizaba hombres y recursos.Por otra parte, el ámbito público de la salud mental se había cons tuido ya anzado durante la guerra también en relación con la población civil. Demodo que si se a ende al papel cumplido por profesionales que se habíanformado a la vez como jefes militares en la organización de la psiquiatríade guerra, las inicia vas que llevaron a la primera organización de la saludmental y a su programa aparecen como una derivación directa de lo quehabía sido construido durante la guerra.

La familia y la guerra sinte zan, puede decirse, dos tópicos mayores

de la nueva formación de saberes de la salud mental. En un caso, el focoeran las relaciones más privadas, ín mas, la comunidad primaria en la quese consumaría el aprendizaje capaz de edi car las bases subje vas delajuste social. En el otro tema, la anormalidad de la guerra llevaban hastael límite las capacidades y resistencias del sujeto, en el interjuego entrelas pulsiones destruc vas, el miedo y el contacto con la muerte. La gurautópica de la “ciudadanía mundial” anudaba los dos tópicos. Por una par-te, con la entrada en la era atómica, las amenazas de la guerra alimenta-ban el fantasma de la destrucción global. En ese sen do, la gura de unacomunidad mundial unida y solidaria adquiría un sen do par cularmentedramá co. La primera interdependencia en el mundo de la posguerra secumplía, no tanto a par r de un ideal posi vo para la humanidad sino porla fuerza de una defensa reac va frente a los efectos mor feros de lasmodernas maquinarias militares. Por otra, la ciudadanía debía construirsesubje vamente. A par r de la situación infan l y las relaciones primariasse establecía el des no público del sujeto en las ins tuciones fundamen-

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Vezze , H. (2015). Londres 1948. La guerra, la paz y la familia. Salud mental y “ciudadanía...

tales de la sociedad: en la escuela, el trabajo, el matrimonio, es decir, enlas funciones generales de la reproducción social y cultural. Posi vamen-te, el modelo, o la utopía si se quiere, de la nueva familia encarnaba lasesperanzas de un cambio que anudaba el des no de los sujetos con el delas naciones y la entera humanidad.

Sep embre de 2015

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Esse tulo todo é pra que eu diga como aprendia lutar?

Simone Maria Hüning

Marcos Ribeiro Mesquita

Nas margens, os contornos da resistência

Os processos de urbanização no Brasil, como discutem vários auto-res (Ivo, 2010; Rolnik, 1999; Santos, 1993; entre outros), andaram ladoa lado com a exclusão social e econômica. Atualmente, longe de termosresolvido os problemas decorrentes dessas formas de exclusão, vemosa exacerbação de projetos urbanís cos que priva zam espaços públicosdas cidades e, em nome do desenvolvimento econômico de alguns, em-purram para as margens aqueles que são considerados como não me-recedores de habitar os espaços de maior visibilidade, intensi cando osprocessos de periferização da pobreza. Esse modelo de desenvolvimentoexacerba o fato de que, embora nos úl mos 30 anos a urbanização estejarelacionada aos processos de democra zação no Brasil, isso não signi cauma distribuição igualitária de direitos ou do exercício da cidadania (Hols-ton, 2009).

Considerando essa problemá ca que passa a produzir cada vez maisquestões para a Psicologia Social, já que concerne ao modo como pesso-as vivem, trabalham, habitam e se relacionam nesses espaços, buscamosaqui compar lhar algumas re exões que se imbricam com essas questõesdos projetos de planejamento urbano, formas de exercício de cidadania,educação e formação polí ca, a par r de uma experiência que acompa-nhamos desde 2009 na cidade de Maceió. Assim, trazemos neste textodepoimentos e notas de campo produzidas ao longo de nosso trabalho deextensão na Vila de Pescadores do Jaraguá. Porém, antes de entrarmosnos aspectos mais singulares dessa experiência, gostaríamos de abordarde forma mais ampla alguns elementos que nela se imbricam.

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Hüning, S. M. & Mesquita, M. R. (2015). Esse tulo todo é pra que eu diga como aprendi a lutar?

Nos trabalhos que analisam historicamente as con guraçõesurbanas brasileiras são feitas, com frequência, referências às cidadespar das, fragmentadas, divididas, principalmente a par r de questõeseconômicas e da divisão de áreas associadas à pobreza e à violência(Caldeira, 1996; Koonings & Kruijt, 2007). Ainda que em muitos espa-ços urbanos contemporâneos possamos ver que as fronteiras que di-videm uns e outros são, muitas vezes, mais simbólicas do que geográ-

cas, assim como também existem situações em que essas fronteirasnão são tão ní das, algumas cidades brasileiras desenvolvem-se comespaços de segregação claramente demarcados e divididos, tanto emtermos sociais como territoriais. Assumimos aqui a compreensão deque, apesar das complexidades das con gurações urbanas contempo-râneas, o cenário do con ito que trazemos para debate expressa umacon guração de ní da fragmentação. A cidade de Maceió organiza--se a par r de uma série de marcadores de espaços diferenciados porquestões econômicas, sociais e culturais, que cons tuem núcleos que,embora algumas vezes se avizinhem, mantêm a diferenciação entre asque são consideradas áreas nobres e áreas de exclusão ou áreas segu-ras e áreas perigosas.

Nesses espaços segregados, se, por um lado, a negação do aces-so a direitos e a marginalização que incide sobre esses sujeitos lhesconfere uma forma de vida nua (Agamben, 2004; Scisleski & Hüning,no prelo), por outro lado, tem, em muitas situações, impulsionadomovimentos de resistência, luta e recusa a essas formas de exclusão.Exemplo disso são os movimentos sociais situados nas periferias ur-banas do Brasil, que, desde o nal do período ditatorial, têm par ci-pado diretamente da conquista de direitos relacionados com ques-tões de moradias, ocupação e legalização de espaços (Holston, 2009;Ivo, 2010).

Atualmente, a exacerbação dos processos de desigualdade e aracionalidade de desenvolvimento da cidade a par r da lógica econô-mica sobreposta aos interesses sociais, o que Santos (1993) chama de“urbanização corpora va” (p. 95), novamente mobiliza cole vos naconstrução de novas formas de cidadania que se ar culam com o di-reito à habitação urbana, dignidade, segurança e mobilidade. Emboraem muitos casos as questões rela vas à moradia cons tuam o pontoinicial da pauta desses movimentos, esses acabam por ganhar ampli-

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Psicologia social e os atuais desafos é co-polí cos no Brasil

tude pela reivindicação por polí cas e reconhecimento sociais de for-ma mais ampla. Nesse sen do, compreendemos as conexões da açãopolí ca com os processos de educação e exercício de cidadania, quebuscamos aqui abordar.

Holston (2009), a par r da análise da produção de periferias po-bres e da desigualdade no Brasil, a rma que se produzem aí novas for-mulações de cidadania, que ele chama de “cidadania insurgente” (p.246), ideia que gostaríamos de trazer aqui. De acordo com o autor, acidadania insurgente emerge da demanda por “direito à cidade e di-reito a direitos” (Holston, 2009, p. 245), principalmente nas periferiaspobres urbanas, onde se fundam novas formas de organização e luta,cons tuindo movimentos de cidadania que confrontam as condiçõesde desigualdade e segregação dos centros urbanos. São novas formasde cidadania intrinsecamente ligadas aos movimentos de resistênciadas periferias que, embora se ar culem diretamente à reivindicaçãode elementos como moradia, direitos, saneamento, segurança, infra-estrutura, a rmam principalmente a luta pelo direito de viver na ci-dade com dignidade de cidadão (Holston, 2009). Esses cidadãos, “noprocesso de construir e defender seus espaços de moradia, não ape-nas constroem uma grande nova cidade, mas, com base nisso, tambémpropõem uma cidade com uma cidadania de outra ordem” (p. 246,tradução nossa).

Compreendemos a trajetória de luta dos moradores da Vila de Pes-cadores do Jaraguá, a par r dessa ideia de cidadania insurgente, comouma trajetória que, na contramão dos processos econômicos hegemôni-cos, não se reduz ao consumo, mas opera a par r da noção de um cole-

vo polí co, fortalecido pelo sen mento de solidariedade e da vida emcomunidade 1.

A Vila de Pescadores do Jaraguá

A história da Vila dos Pescadores do Jaraguá, como tantas outras,tem como elemento central a luta de uma comunidade por seu territó-rio, por moradia digna e saneamento, visibilidade e reconhecimento de1 Trabalho desenvolvido com o apoio do CNPq através do Edital Universal 2013 e Edital do

Programa Ins tucional de Bolsas de Iniciação à Pesquisa-Ação 2014 (PROEX/PROPEP/UFAL).

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Hüning, S. M. & Mesquita, M. R. (2015). Esse tulo todo é pra que eu diga como aprendi a lutar?

suas prá cas culturais e de trabalho. Uma comunidade que se cons tuiuatravés de uma tradição que tem como principal mote a cultura e a econo-mia da pesca, a Vila surge em meados dos anos 1940 com o encontro ouconvergência de diferentes famílias advindas de dis ntas partes do litoralnordes no que ali se instalaram com o intuito de viver e trabalhar.

Talvez sem saber, naquele momento recon guram o espaço e dãosen do a uma das versões reconhecidas acerca do surgimento da cidade.Uma das narra vas históricas sobre a origem de Maceió fala do povoa-mento da região portuária do Jaraguá por famílias de pescadores.

Assim, a vila se cons tui e consolida um jeito de ser, uma cultura eeconomia especí cas, baseadas em prá cas comunitárias e de trabalho;desenvolve uma linguagem própria do lugar, marcada por uma concepçãode mundo e por prá cas culturais que reforçam o pertencimento e a sin-gularidade caracterís cos de uma comunidade pesqueira; produz saberessobre a pesca artesanal, a construção de barcos, a confecção de redes,sobre os modos de tratar o pescado, assegurando elementos que a legi -mam enquanto comunidade tradicional.

Com o processo de desenvolvimento e urbanização da cidade, aaposta no turismo e o crescimento do setor imobiliário, todos ancoradosnuma perspec va empresarial, a vila de pescadores cou secundarizada,cada vez mais invisibilizada e negligenciada pelos poderes públicos e peloEstado, passando por um forte processo de favelização: o projeto de re-vitalização do bairro do Jaraguá não contemplou a comunidade, um dospoucos espaços não comerciais da região.

A falta de infraestrutura, de um planejamento de moradia, de co-leta de lixo ou ainda de equipamentos de saúde são algumas das marcasda ausência do Estado que deu as costas para a comunidade, forjandona mídia e no senso comum da população discursos higienistas que -

nham como centro a necessidade de re rada da comunidade para umlugar mais “digno”. Nesse momento, dois movimentos complementaresse engendram: a produção de discursos a par r de imagens nega vasem torno da vila e uma série de projetos de reestruturação do lugar comfoco na construção de empreendimentos que atendessem aos interessesda elite econômica local. O primeiro legi mava o segundo; o segundosa sfazia os interesses e sonhos de setores econômicos e empresariaismédios e altos da cidade.

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Psicologia social e os atuais desafos é co-polí cos no Brasil

Uma série de discursos desfavoráveis à vila começa a ser construída.A vila, como era conhecida, começou a ser chamada de favela de pesca-dores, e nesse con nuum se transformou para a grande mídia um lugar detrá co e pros tuição. Inicia-se assim todo um processo de marginalizaçãoda comunidade que, para além do “esquecimento” do poder público, co-meçou a sofrer os es gmas produzidos pelos discursos de discriminação(Hüning, 2014).

Foi nesse contexto de insegurança e ameaça à comunidade, ao per-ceber que o direito ao território e à vida comunitária estava sendo coloca-do em questão, que se iniciou um processo de luta e resistência que tevecomo principal bandeira a permanência e urbanização da vila, mas que,certamente, foi para além dela: tratou também do reconhecimento dacomunidade, de suas prá cas culturais como forma de existência daquelapopulação e do próprio direito à cidade. Como a rma Enaura Nascimento,presidente da Associação de Moradores e Amigos do Bairro do Jaraguá(AMAJAR),

a luta é pela moradia, pelo direito à cidade, pelo direito ao espaço porquea gente já está aqui há anos e aí é muito di cil. E as pessoas me perguntam por que a gente que car aqui e por mais que se explique que não é só aquestão da distância, e sim a questão de ser comunidade que vai deixar

de ser, saindo daqui vai deixar de ser. Então aquela vida que se vive na co -munidade conhecendo todos os moradores, desde os mais velhos aos quenasceram agora, a gente conhece todos os moradores. E a convivência édiferente morando e comunidade. Só quem vive é quem sabe como é que sevive, ajudando uns aos outros, olhando os lhos uns dos outros … É muitobom, morar em comunidade é muito bom .2

A negação do direito de permanência desencadeou uma série deresistências e lutas dentro e fora da comunidade, promovendo um pro-

cesso de aprendizado polí co cole vo. A vila, que já nha uma tradiçãoorganiza va desde o surgimento de sua Associação de Moradores (fun-dada em 1988), se fortalece enquanto ator social e se desdobra em ou-tros cole vos e projetos que a ela dão visibilidade. A par cipação no Pro-

2 Fala extraída do documentário “Quem tem juízo resiste e luta” produzido e coordenado pornós, através do edital PIBIP AÇÃO 2014 (PROEX/PROPEP/UFAL). O lme mostra o co dianoda vila, suas prá cas culturais e de trabalho, a luta pela permanência e o despejo da comuni-dade em junho passado.

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Hüning, S. M. & Mesquita, M. R. (2015). Esse tulo todo é pra que eu diga como aprendi a lutar?

grama de Esporte e Lazer do Ministério dos Esportes (PELC) e na rede dosPontos de Cultura, a par r da criação do Ponto de Cultura Enseada dasCanoas, aproxima ainda mais os moradores de uma iden dade demarca-da por suas prá cas e tradições, mas também de seu território. Muitosdos trabalhos e a vidades organizados por esses programas colocavamno horizonte as dimensões da cultura e da comunidade: o olhar que -nham sobre o território, seu co diano, suas prá cas e tradições. As prá -cas de lazer, o trabalho com a capoeira e o maracatu, a representação dacomunidade pelas crianças a par r da fotogra a e da pintura traduzemesse processo que fortalece uma imagem posi va de si.

A inserção na associação, os projetos desenvolvidos por ela, asquestões polí cas que emergem do problema da permanência produ-

zem estratégias de luta ao mesmo tempo em que reforçam formas de sever, de se perceber enquanto comunidade. A luta pelo reconhecimento eregistro de suas prá cas culturais e de trabalho, mais especi camente acultura da pesca e a construção de barcos, como patrimônios imateriais junto ao Ins tuto do Patrimônio Histórico e Ar s co Nacional (IPHAN) foiexpressão desse momento que mesclou polí ca e cultura.

Mas se a organização interna da vila foi fundamental no processode resistência, sua força polí ca para além das fronteiras da comunidade

também o foi. A par r da AMAJAR e de suas principais lideranças, a vilacatalisou uma série de outros atores sociais que com ela sustentaramações de resistência importantes. Seguindo as ações desencadeadaspelo processo de direito de permanência naquele território e inves -mentos de infraestrutura, a luta empreendida pela AMAJAR desde o -nal dos anos 1990, inicialmente em parceria com alguns outros atoresda sociedade civil, como professores e estudantes universitários e repre-sentantes de outros movimentos sociais, ganha amplitude e visibilidadena cidade.

Em 2014, ano em que o con ito com a prefeitura de Maceió se agra-va pela iminência de uma ação de despejo da comunidade, a ar culaçãodesses diferentes atores cria o Movimento Abrace a Vila, um cole vo quese alia às ações de resistência e luta da Vila de Pescadores, ampliando odebate sobre a permanência da Vila para uma questão que não diz res-peito apenas a esse cole vo, mas à cidade.

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Psicologia social e os atuais desafos é co-polí cos no Brasil

Um processo cole vo de luta e aprendizagem

A Vila dos Pescadores se projeta para a cidade por meio das parce-rias e diálogos que faz com outras organizações e movimentos sociais. Asar culações se desdobram e, através da AMAJAR e do Ponto de CulturaEnseada das Canoas, a Vila se insere e par cipa de uma rede de movi-mentos que atua no sen do de pensar a cidade, resis r aos processosde invisibilização, valorizar as manifestações culturais e populares, discu ros desa os urbanos e denunciar os projetos de desenvolvimento exclu-dentes. A par r de sua problemá ca, dialoga com outros atores sociaisda cidade e assume o desa o de cole vamente enfrentar um Estado queco dianamente nega direitos.

Nesse sen do, inicialmente a vila dialoga e estabelece parcerias comgrupos como o Centro de Estudos e Pesquisas Afroalagoano Quilombo(CEPA QUILOMBO), o Movimento Cultural da Zona Sul, Núcleo de Capo-eira, Cole vo Afro-Caeté e Maracatu Baque Alagoano, ou seja, a rede deMovimentos de Cultura Popular; com a Faculdade de Alagoas (FAL) e aUniversidade Federal de Alagoas (UFAL), a par r de projetos de pesquisae extensão lá realizados; ar cula-se com a Rede Estadual de Pontos deCultura e, de modo mais pontual, com outras ins tuições como o Museu

da Imagem e do Som de Alagoas (MISA).Esse processo organiza vo é resultado de uma experiência polí ca

e educa va, de um aprendizado que se tece paula namente na medidaem que suas principais lideranças compreendem a importância da lutapelos direitos. Certamente a radicalidade e compreensão dessa luta pelacomunidade está in mamente ligada aos processos de inserção por suaslideranças no campo polí co como uma experiência libertadora. Um pro-cesso das lideranças que se espraia para o cole vo. Mais uma vez, EnauraNascimento, ao falar de sua experiência, traduz com simplicidade e forçaum processo educa vo que repercu u na própria comunidade:

Fomos fazer a escolha da pessoa que seria o presidente da associação. En -tão eu entrei realmente no empurrão: não, é você, é você! Me escolheram eaí houve eleição e aí então eu comecei a ser presidente da associação desde2008. E hoje não me vejo fazendo outra coisa que não seja a luta pela comu -nidade. Mesmo depois, se a gente conseguir a urbanização, eu sei que tem

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Hüning, S. M. & Mesquita, M. R. (2015). Esse tulo todo é pra que eu diga como aprendi a lutar?

muita coisa que a gente precisa lutar de direito do cidadão, de direito quea população tem, que as pessoas têm, e eu sei que são vários direitos quenão são dados principalmente pra quem mora em comunidade, e a gentevai estar correndo atrás. E eu com certeza nunca vou deixar, aprendi a lutar

e agora cou di cil dizer que isso tá no passado. Cada dia a gente aprendemuito mais das leis e tudo, e eu vou con nuar .3

Esse movimento polí co e educa vo produz uma sustentação eapoio importantes na base da cole vidade de pescadores e marisqueirasque se traduz numa associação cada vez mais forte, com a compreensãodaquilo que precisa ser feito para defender e garan r sua permanência etodos os outros direitos que possui. Assim, o processo dialógico que se es-tabelece entre um movimento mais interno de coesão comunitária, resul-tado de uma experiência que demarca processos de iden dade cole va,e uma inserção polí ca que extrapola os limites da comunidade se tornaum elemento fundamental na cons tuição de uma resistência. Diferente-mente do discurso da mídia e do Estado, que frequentemente associouos moradores a um cole vo desorganizado e anômico, a vila se fortaleceenquanto sujeito cole vo, cada vez mais consciente de seus direitos e danecessidade de lutar por eles.

A importância da associação de moradores como polo de resistência

converge para a análise apresentada por Holston (2009), em relação aosmovimentos que reivindicavam moradia no Brasil nas décadas de 1970 e1980. Porém, como esse mesmo autor indica, a questão da luta por mora-dia é extrapolada pelo processo polí co e educa vo que se cons tui pelaprópria experiência de luta, na recusa às formas de exclusão da cidade,aos discursos de marginalização e na a rmação de uma cultura e modosde vida singulares, ligados, nesse contexto, à relação com a a vidade depesca e o território.

Numa trajetória de aprendizagem cole va, um grupo de mulheres,que protagoniza a representação da Vila junto à associação de moradores,passa a se posicionar de forma diferente diante da própria comunidade e doEstado, estabelecendo uma nova relação com a lei e seus agentes (Holston,2009), par cipando a vamente de novas e alterna vas esferas públicas, aopasso em que busca o fortalecimento de sua luta social e sua cultura.

3 Fala extraída do documentário “Quem tem juízo resiste e luta” produzido e coordenado pe-los autores, através do edital PIBIP AÇÃO 2014 (PROEX/PROPEP/UFAL).

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Destacam-se, assim, mulheres marisqueiras que aprenderam nopróprio processo de luta o exercício e a força polí ca de sua organização.São mulheres que, desa adas a garan r a con nuidade de suas prá cas,a vida comunitária que conhecem e vivem tão profundamente, começama perceber que a luta polí ca é essencial para a conquista de direitos. As-sim, tornam-se lideranças importantes e começam a desa ar os poderespúblicos que insistem em negá-las. Neide, outra liderança comunitária,fala da descoberta da luta em suas vidas e dos desdobramentos subje vosapós a inserção na polí ca.

Eu entrei na luta da associação pela injus ça que meu pai sofreu. Eu nhacerca de 12, 13 anos. Foi quando meu pai que nha um barraquinho, ele perdeu sem direito a nada ... A prefeitura disse que ele escolhesse: ou a

moradia ou o ponto de trabalho. Só que na época minha mãe era doente eele escolheu a moradia. Foi quando eu fui entender a importância da vilatanto pra mim, quanto pro meu pai. Então, foi através daí que eu amadurecie decidi a lutar, através de pessoas que nos deu o direito de nos mostrar osdireitos que nós nhamos, a lutar por eles. Então, me orgulho muito emlutar, de não desis r jamais, porque eu vou dizer, se for pra lutar por essavila eu vou lutar até o m, seja com o prefeito, seja com quem for, porque prefeitura tem de quatro em quatro anos. A gente tá aqui há décadas .4

Enaura a rma:Hoje eu tenho uma visão diferente pela luta de tudo: da polí ca, o povoacredita muito no que se faz, eu tenho uma visão diferente da polí ca; eutenho uma visão diferente dos direitos, e a luta, a luta mesmo e a coragem.Todo mundo tem coragem, todo mundo tem uma defesa, mas a par r domomento em que você descobre que você pode, que você pode brigar, nãotem prefeito, não tem vereador, não tem governo, não tem nada, você dizeu vou lá, e eu vou sem medo mesmo e enfrento. E aí tem que falar? Temque falar mesmo. 5

A par cipação das mulheres na luta da Vila dos Pescadores corres-ponde à imagem da própria comunidade, referida como uma mãe pro-vedora por muitos moradores: podemos dizer que a vila é uma mulher,negra, inicialmente com poucos recursos da educação formal, que para

4 Depoimento gravado pela equipe de produção do documentário “Quem tem juízo resiste eluta”.

5 Fala extraída do documentário “Quem tem juízo resiste e luta”.

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Hüning, S. M. & Mesquita, M. R. (2015). Esse tulo todo é pra que eu diga como aprendi a lutar?

viver com mais dignidade, sem tutela, aprendeu a lutar por seus direitos,por sua existência e pelo reconhecimento de suas prá cas culturais e detrabalho solidárias. Há aqui uma sintonia perfeita entre a composição davila e sua representação na luta. Certo dia, ao convidarmos Enaura parauma mesa in tulada “Processos Polí cos e Pedagógicos da Luta”, ela re-truca: “esse tulo todo é pra que eu diga como eu aprendi a lutar, comoeu me inseri na luta?”. A história de como Enaura e as outras mulheresaprenderam a lutar parece sim a maior expressão ou analogia da históriade toda uma comunidade, a Vila dos Pescadores.

Esse processo cole vo de luta e aprendizagem ar cula dimensõesda polí ca e da cultura. Assim, embora a questão da moradia sempre te-nha demandado atenção especial da associação de moradores e suas lide-

ranças – pela própria urgência e gravidade que representava em relação àprópria condição de existência da Vila –, sempre foi acompanhada de umaluta também no campo da a rmação cultural, principalmente por meio doPrograma de Esporte e Lazer da Cidade do Ministério dos Esportes (PELC)e das a vidades desenvolvidas pelo Ponto de Cultura Enseada das Canoas.

A Vila, como já destacamos anteriormente, cons tui-se como umpolo de resistência à polí ca de urbanização da cidade, ar culando di-ferentes movimentos e promovendo mobilização popular, através de a -

vidades voltadas para a própria comunidade e para o público em geral.Através de exposições fotográ cas e de pinturas produzidas pelas criançasda vila, a vidades culturais na própria comunidade e em outros espaçospúblicos, o cinas de artes e percussão, debates em diferentes esferas dacidade, par cipação em audiências públicas e espaços de planejamentourbano, entre outras a vidades, a comunidade empenhou-se em dar vi-sibilidade a dimensões de seu co diano negadas pelos discursos desqua-li cadores promovidos pelo poder público e amplamente disseminadospela mídia local.

A luta inicial pela moradia tornou-se uma luta de a rmação de sujei-tos polí cos que se compreendem a par r desse processo e de sua impor-tância para suas vidas, como declarava Enaura, meses antes da demoliçãoda Vila:

Hoje a Vila está de pé porque a gente resiste. Então hoje pra mim a vila éo que eu tô vivendo hoje. A vila é que tá me dando coragem pra lutar, dese não ter medo de seguir em frente, apesar do que o pessoal fala de que

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a gente vai sair, de que a gente não pode con nuar, de que não tem jeito...E vai car o aprendizado, ou ganhando ou perdendo, tudo aquilo que euaprendi, aquilo não vai acabar, aquilo vai car pra vida toda. Então, foi atra -vés da vila, através da luta, através da resistência que a gente aprendeu... 6

Sobre a coragem de lutar mesmo diante da assimetria das forças

A desigualdade social e econômica é uma marca histórica que ca-racteriza as relações polí cas em Maceió, capital de um estado onde apropriedade do la fúndio sucroalcooleiro confunde-se com as posiçõespolí co-ins tucionais nas diferentes instâncias do poder estatal. Mesmo

nesse contexto tão adverso, a luta da comunidade ao longo dos anos foisimultânea ao fortalecimento polí co de seus atores como sujeitos singu-lares e como cole vidade.

Infelizmente, mesmo com a mobilização e intensa luta da comuni-dade, a assimetria das forças polí cas e econômicas levou em 17 de junhodeste ano ao despejo e demolição quase total da vila de pescadores, res-tando na área apenas alguns barracos des nados a servirem como depó-sitos provisórios e um imenso armazém de açúcar.

Num processo comba vo da comunidade representada por suas li-deranças junto à AMAJAR, a Vila percorreu diferentes caminhos polí cose jurídicos buscando a garan a de seus direitos mesmo quando esseseram negados e desquali cados pelo próprio poder público municipal: odireito de lutar por inves mentos em seu território e resis r a um projetode urbanização que excluía seus moradores. Considerados como invaso-res pela prefeitura da cidade, que judicializou a disputa pelo território enegou-se a viabilizar um projeto de urbanização que contemplasse suapermanência, os moradores foram tratados como estorvos ao desen-volvimento urbano e econômico do lugar. A forma como se expressoua pressa em re rar os moradores e demolir a Vila, no dia do despejo(cuja data não havia sido comunicada aos moradores), elucida o não re-conhecimento do direito legí mo de resistência desses sujeitos, inclu-sive no campo jurídico. Expressões como “não tem conversa”; “isso jáse arrastou demais”; “não temos mais tempo a perder”, “vocês sabiam

6 Fala extraída do documentário “Quem tem juízo resiste e luta”.

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que teriam que sair”, u lizadas pelos agentes responsáveis pelo despejodiante das solicitações dos moradores para que lhes dessem tempo paraque organizassem seus pertences para sair de suas casas, manifestam acompreensão de que o próprio exercício de defesa e luta dessa comuni-dade no campo jurídico, a par r do processo instaurado pela prefeitura,era considerado uma afronta ilegí ma ao poder ins tucional. Para alémdisso, o despejo ocorreu permeado por inúmeras violações de direitos,desde a falta de aviso sobre a data de sua realização, como a falta deinformação de para onde seriam levadas as mais de 100 famílias que -caram sem moradia, violações à dignidade, falta de atenção especial acrianças, idosos, gestantes e doentes, entre outras.

Entendemos que tanto o não reconhecimento do direito de lutapor direitos quanto a violência que acompanhou as violações de direitosdurante o despejo relacionam-se à ideia de uma “cidadania desigual” ou“diferenciada”, como refere Holston (2009, p. 256), na qual diferençaseconômicas, de raça, gênero e ocupação resultam em tratamentos dife-renciados para determinadas categorias de cidadãos. Essa compreensãoresulta numa distribuição desigual de direitos polí cos, civis e sociais etorna possíveis formas de tratamento que seriam consideradas inacei-táveis em outros espaços e para com outros grupos sociais. Mas é exa-tamente nos espaços onde essa desigualdade se impõe de forma maisviolenta, como na Vila de Pescadores, que se produzem formas de par ci-pação polí ca impulsionadas pela resistência, o que mais uma vez indicao quanto essas lutas extrapolam as questões rela vas à moradia ou infra-estrutura, colocando em questão a própria construção da cidadania e suarelevância para a sociedade de forma mais ampla, e não apenas no queconcerne às demandas locais especí cas. É também contra essa cidadaniadiferenciada que essas pessoas lutam e a rmam sua dignidade e valor.Como diz Marina, uma das lideranças da comunidade, no dia do despejo:

“a gente não tá reagindo não. A gente sabe que perdeu, a gente lutou atéo m com dignidade”.

E seguir lutando...

Após três dias de trabalho de demolição da Vila de Pescadores,ergueu-se em frente à mesma um tapume, isolando-se sua área, junto

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ao qual, um tempo depois, foi colocada a placa com os dizeres “Obrada Prefeitura. Urbanização da favela de Jaraguá”. A cena da placa comseus dizeres revela a forma desrespeitosa como a prefeitura desde oprimeiro momento se relacionou com a comunidade. Indica tambémformas de violência do Estado que se expressam através da usurpaçãodos direitos.

Nesse sen do, duas questões nos chamam a atenção e parecemsimbolicamente importantes para compreender o grau de violência eperversidade do Estado frente à comunidade. A primeira, talvez mais ób-via, expressa o grau de cinismo e desprezo à Vila de Pescadores quando,depois da realização do despejo, coloca na placa o tulo “urbanização dafavela do Jaraguá” como nalidade da obra 7, humilhando ainda mais os

an gos moradores que lutaram por décadas pela urbanização da comu-nidade e que já não têm mais aquele lugar como espaço de moradia. Asegunda indica mudança na des nação dos recursos federais, que pre-viam, inicialmente, a urbanização da área com a permanência da comu-nidade (conforme comprovam documentos de concessão da área pelaSuperintendência do Patrimônio da União e projetos anexados ao pro-cesso judicial), e desprezo pelos desejos, projetos e modos de vida dessaspessoas, já que se empreende essa urbanização desvinculada daquelesque lá habitavam e sem considerá-los. Nos dois sen dos, a negação dosdireitos e o desrespeito à comunidade se fazem presentes.

A Vila, que era composta por aproximadamente 450 famílias detrabalhadores, em sua grande maioria em a vidades de pesca ou cor-relatas, já havia sofrido seu primeiro ataque pela prefeitura em maio de2012, quando re rou, de forma mais ou menos voluntária (houve inú-meros relatos de coação nesses processos), em torno de 300 famílias dolocal, transferindo-as para um condomínio de apartamentos. As 150 fa-mílias que permaneceram resis am por acreditar na luta por seus direi-

tos, como aqueles expressos pela própria legislação para regularizaçãofundiária e concessão de imóvel público para ns de moradia no Brasil(Medida provisória n. 2.220, 2001).

No dia do despejo, 20 dessas famílias foram des nadas a unidadeshabitacionais nesse mesmo condomínio. Após tenta vas sem sucesso de

7 O atual projeto da prefeitura prevê a construção de um centro pesqueiro, lugar de tratamen-to e comercialização do pescado e um grande estacionamento.

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alojamento dessas pessoas em duas escolas, uma centena de famíliasdispersou-se buscando abrigo em casas de familiares ou foi precaria-mente abrigada em uma creche municipal inacabada, sendo informadasque teriam o prazo de três dias para saírem do abrigo e alugarem umacasa, para a qual receberiam três meses de aluguel social no valor de R$250,00.

O Estado, que nas úl mas décadas tratou de tornar mais precárias ascondições de habitação daquelas pessoas em sua comunidade de origempara, assim, jus car a necessidade de sua ex nção pautada em argu-mentos como falta de infraestrutura, trá co de drogas e pros tuição, pro-tagoniza um espetáculo diante da mídia local, a rmando que nalmenteacabou com a favela do Jaraguá, como se essa fosse a solução para os

alegados problemas atribuídos a essa área. Não se fala, no entanto, nofato de que o aluguel social é insu ciente para que essas pessoas encon-trem nova moradia e, tampouco, que longe da área da vila suas a vidadeseconômicas caram comprome das.

A opção do poder público pela re rada da comunidade de seu localde habitação e trabalho (sendo a viabilidade desse diretamente relacio-nada à permanência nesse território), transferindo-a para uma área maisdistante e separando do convívio comunitário muitas dessas famílias, “co-

labora para o aprofundamento de diferenças sociais sobre o solo urbano,di cultando a mobilidade desses trabalhadores entre casa e trabalho e ocompar lhamento de códigos comuns de convívio, integração e sociabili-dade” (Ivo, 2010, p. 19). Hoje, os pescadores e marisqueiras transferidospara os apartamentos encontram, entre outros problemas, di culdadespara o pagamento do transporte necessário ao deslocamento para o localde trabalho (a área onde se encontrava a Vila) e di culdade de acesso dascrianças a escolas, situação ainda mais agravada para aqueles que se dis-persaram por diferentes bairros da cidade na precária condição do aluguelsocial provisório.

Santos (1993) a rma que “é um equívoco pensar que os problemasurbanos podem ser resolvidos sem solução da problemá ca social” (p.113). E a ação de demolição da comunidade do Jaraguá, veiculada na mí-dia de massa como uma operação de sucesso e bem planejada, foi semdúvida um importante passo para um projeto de urbanização segregacio-nista, que, a exemplo de tantos outros no Brasil, empurra cada vez mais

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para as periferias as populações mais pobres. Foi a execução bem sucedi-da de uma plani cação urbana voltada para

aspectos da cidade cujo tratamento agrava os problemas, em vez de resol-vê-los, ainda que à primeira vista possa car a impressão de resultado posi-

vo. Trata-se de plani cação sobretudo técnica, preocupada com aspectossingulares e não com a problemá ca global, plani cação mais voltada parao chamado desenvolvimento econômico quando o que se necessita é deuma plani cação sociopolí ca que esteja de um lado preocupada com adistribuição dos recursos sociais e, de outro, consagre os instrumentos po-lí cos de controle social, capazes de assegurar a cidadania plena. (Santos,1993, p. 113)

Mas a trajetória de formação polí ca e cidadã desses sujeitos nãose apaga. A associação de moradores permanece atuante na denúncia daviolência e violações de direitos sofridas pela comunidade e na busca porsoluções para as mais de 100 famílias que, nesse momento, contam como recebimento de apenas mais um mês de aluguel social. No úl mo mês,o atraso do pagamento da segunda parcela do bene cio levou a uma ma-nifestação dos moradores em frente à área em que se localizava a comu-nidade, colocando abaixo o tapume e, mais uma vez, de forma insurgente,a rmando o efeito de formação polí ca de uma luta cole va e da relaçãocom o lugar.

De nossa parte, como professores e pesquisadores da PsicologiaSocial, juntamente com nossos estudantes que têm nos acompanhado,contribuímos a par r de nosso lugar, e numa perspec va de horizontali-dade, no apoio ins tucional e representa vo da universidade, na re exãocon nua sobre as prá cas de resistência, na escrita e sistema zação dedocumentos e relatórios o ciais em defesa da comunidade, no acompa-nhamento polí co e jurídico da questão, nos processos de organização co-munitária, na mobilização cole va de outros atores sociais, no pedido deregistro das prá cas culturais e de trabalho como patrimônios imateriais,na denúncia de toda forma de desrespeito aos direitos humanos pelo Es-tado e seus agentes. Sempre deixando-nos ser afetados pela experiênciadessa relação, ques onando e re e ndo sobre as nossas próprias prá casacadêmicas e psicológicas.

Assim, como tantos outros atores e movimentos, abraçamos a Vilacom a admiração por esses cidadãos e cidadãs insurgentes e rebeldes

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que se a rmam no enfrentamento às violências ins tucionais co dianas.No trabalho que desenvolvemos com a comunidade, desde 2009, ve-mos a oportunidade de trocar saberes e abrir espaços de diálogo entrea universidade e a comunidade que certamente cons tuíram-se comoespaços de aprendizagem polí ca e cidadã para todos os envolvidos.Essas aprendizagens perpassam formas de relação entre a universidadee a sociedade, entre a psicologia e as pessoas com quem trabalhamos.Aprender sobre a relação que possuíam com seu lugar, sobre suas formasde organização e luta, sobre os limites de uma lógica econômica e de-senvolvimen sta diante de outras formas de vida, sobre uma cidadaniaque não se produz a par r da lógica predominante do consumo. Em umprocesso mútuo de aprendizagem, construímos e a rmamos uma psi-cologia social que se faz como prá ca polí ca, uma psicologia tambéminsurgente e rebelde.

Referências

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Miranda, L. L. (2015). Educação e mídia: o que a Psicologia Social tem a ver com isso?

Educação e mídia: o que a Psicologia Social tem a vercom isso?

Luciana Lobo Miranda

Cena l: Em uma escola pública de ensino médio, como que em um jogo de “gato e rato”, alunos tentam descobrir a senha de wi da ins tui-ção, que apenas funcionários e professores podem acessar, para ns ex-clusivamente pedagógicos. Quando descobrem, vão para um canto ondeo sinal é melhor, se aglomeram, riem e compar lham até a senha ser no-vamente trocada pela direção, para depois ser novamente descoberta...

Cena 2: Professores da rede pública falam dos con itos e das di cul-dades de “disciplinarem“ seus alunos atualmente. Alguns evocam cenasem que chegam a trocar insultos ou mesmo segurar no braço de um alunoque se recusa a sair de sala. Ao se perceberem perdendo o controle dasituação, param, com temor, e pensam: Será que algum aluno me lmou?

Cena 3: Novamente em uma escola pública, uma professora gravano celular parte de sua aula para provar aos alunos que a tarefa foi passa-da e será devidamente cobrada, pois, na aula anterior, eles disseram queela não havia passado a tarefa. Alguns alunos reclamam: Querem o direitode imagem...

Cena 4: Alunos de uma escola par cular de classe média alta pre-ferem rar foto da lousa (quadro-negro) ao invés de copiar o conteúdo.Alguns professores permitem, outros não. As fotos são radas mesmoassim1.

Nos úl mos anos, temos ocupado o lugar enuncia vo de profes-sora na Universidade Federal do Ceará (UFC), através de dis ntas a vi-dades: professora da graduação do curso de Psicologia Escolar/ Educa-cional; supervisora de estágios com ênfase em processos psicossociaise construção da realidade; Orientadora de monogra as, dissertações e1 Estas cenas estão presentes em trabalho Escola e mídia: “Encontros possíveis, despedidas

necessárias” publicado nos Anais do VII Colóquio Internacional de Filoso a da Educação.(Miranda 2014b).

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teses; Coordenadora do Programa de Extensão TVEZ: educação para ouso crí co da mídia2; coordenadora de pesquisas, dentre outras. Todosesses espaços se encontram marcados pela inquietação na inves gaçãoda relação entre os modos de subje vação, a mídia e a educação na con-temporaneidade.

As cenas, ligadas aos lugares enuncia vos anteriormente descritos,foram ouvidas, presenciadas e discu das com diversos atores envolvidosno processo educacional: estudantes, professores, gestores. Seleciona-mos estas, mas poderiam ser outras... O que tais cenas têm em comum? Anosso ver, dentre outras questões, a presença da mídia e das TecnologiasDigitais de Informação e Comunicação (TDIC) de forma NÃO autorizada,periférica no ambiente escolar, mas também são emblemá cas da sua in-

terpelação nos modos de subje vação contemporâneos, marcados pelahiperconec vidade.

Assim, atuamos no campo da Psicologia Social (já que, no meumodo de entender, a Psicologia Educacional faz parte desse domínio), nainterface entre a educação e as tecnologias de comunicação, também cha-madas de mídia. O tulo do presente trabalho “Educação e mídia: O quea Psicologia Social tem a ver com isso?” carrega na interrogação o seuobje vo, isto é: discu r os possíveis deslocamentos que a interface com a

Educação e com a Comunicação Social convoca à Psicologia Social realizar.Para tal, vale a pena problema zar o conceito de sujeito, historicamentedelegado ao saber psicológico. (Gua ari, 1990, 1992; Huning & Guareschi,2005; Miranda, 2000). Posteriormente, discu remos a educação escolar ea mídia como tecnologias de época para então analisá-las como campo depesquisa e atuação da Psicologia Social. Uma Psicologia menos preocupa-da com a localização de seu saber, e mais afeita à inovação e ao convite àtransversalidade.

Modos de subje vação para além da individualização do sujeito

Nos úl mos três séculos, a Psicologia, bem como as Ciências Hu-manas de maneira geral, a m de alcançar a racionalidade cien ca,

2 Desde 2005 coordenamos com a Profª. Dra. Inês Vitorino (comunicação UFC) o Programade Extensão Tvez: Educação para o uso crí co da mídia, que atua na formação de alunos eprofessores em prol do uso quali cado da mídia nas escolas.

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Miranda, L. L. (2015). Educação e mídia: o que a Psicologia Social tem a ver com isso?

alinharam-se às ciências da natureza, buscando modelos matemá cosbaseados em testagens e veri cação experimental (Huning & Guareschi,2005).

Neste movimento, o social normalmente foi considerado como ins-tância secundária, numa ciência que tem como objeto o sujeito indivi-dual. O núcleo psíquico visto como a priori das instâncias cole vas ousociais, sob a mira das inves gações psi 3, reduziria a in uência do socialmuitas vezes à esfera familiar (Miranda, 2000). Na relação cindida entreindivíduo e sociedade, caberia ao primeiro adaptar-se ou não à normasocial, que, por sua vez, instauraria um campo de normalidade/ anorma-lidade (Foucault, 1977). Segundo Huning e Guareschi (2005), a PsicologiaSocial emerge baseada tanto na esta s ca de medição de comportamen-

tos cole vos, quanto na perspec va adaptacionista, sobretudo na Psico-logia Social norte-americana. Para as autoras, mesmo a Psicologia Socialcrí ca, que se contrapõe a esta tradição e discute toda a Psicologia comoeminentemente social, não avança muito na “discussão epistemológicasobre as dicotomias individual/social e sujeito/objeto” (p. 108).

E ainda:A psicologia cons tuída como ciência posi vista propõe, assim, a noção deum sujeito universal que tornaria inques onável a generalização a par r de

pesquisas fundadas metodologicamente em testes de probabilidades esta-s cas. Disso resulta a naturalização tanto de fenômenos psíquicos, dessa‘substância psicológica’, quanto dos conhecimentos que buscariam dar con-ta deles. (p. 111)

A negação da base social para a formação do sujeito tem ganhadoforça na segunda metade do século XX através da biologização da vida,fenômeno que reduz o comportamento, as sensações e os sofrimentoshumanos à ação de neurotransmissores, ao código gené co, dentre ou-

tros fatores, normalmente ligados ao funcionamento cerebral. Aqui nãoapenas a dicotomia sujeito e sociedade se mantém, como há a própriaredução do primeiro a um conjunto de fatores de ordem estritamente

3 De acordo com Rose (2014), as prá cas psi extrapolam o campo disciplinar da psicologia, masencontram-se em dis ntas prá cas sociais ligadas ao gerenciamento da subje vidade: “A dis-ciplina da psicologia certamente não está uni cada em um nível de seu objeto, seu conceito,sua harmonia teórica, seu “paradigma”; a unidade que tem adquirido desde o nal do séculoXIX é uma unidade pedagógica e ins tucional” (p. 24).

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biológica. Como consequência, produz-se a medicalização, na qual o so-frimento e as vicissitudes do processo de aprendizado, por exemplo, sãodescritos como transtorno, tendo quase sempre como tratamento um oumais medicamentos. (Guarido, 2010).

Neste breve percurso até aqui traçado, há a primazia do “sujeitodesde sempre aí” (Veiga-Neto, 2007, p. 107), e não como efeito de con n-gências históricas. Pensar o engendramento dessas con ngências, isto é,suas condições de possibilidades de emergência, é colocar uma centrali-dade na história. Trata-se de colocar não apenas o sujeito, mas a própriaciência inserida numa dimensão discursiva, onde o que é considerado sa-ber verdadeiro encontra-se inevitavelmente inserido nas relações de po-der que circunscrevem o próprio campo da ciência em um determinadocontexto histórico-sócio-polí co. No caso do sujeito, passa-se a analisá-locomo efeito da modernidade histórica 4.

Para inserir a Psicologia em sua dimensão não apenas eminente-mente social, mas problema zar o seu objeto, isto é, o sujeito, sua psi-que, não mais naturalizado, mas circunscrito em prá cas históricas queo ajudam a formá-lo (ou ainda forjá-lo), tomamos como matriz teóricao pós-estruturalismo, sobretudo Michel Foucault, Gilles Deleuze e FélixGua ari.

Em outros escritos, já discu mos a contribuição dos referidos pen-sadores para a problema zação do sujeito como formado pelos atraves-samentos das diversas instâncias que compõem a sociedade, ressaltandoa materialidade de sua construção histórica, em detrimento de uma con-cepção abstrata e apriorís ca de en dade universal (Miranda 2000; Soa-res & Miranda 2009). Aqui se trata de apostar nesta questão para abordá--la visando à interface com questões ligadas à educação e às tecnologiasde comunicação.

4 Foucault (1988) trabalha a ontologia histórica através da genealogia. Longe de ser um méto-do que busca a origem das coisas, e sua universalidade, a genealogia é antes um ethos que seatém tanto na desnaturalização dos objetos que pesquisa, quanto no que difere, nas suas es-peci cidades. Diz Foucault: “Daí, para a genealogia, um indispensável demorar-se: marcar asingularidade dos acontecimentos, longe de toda nalidade monótona: espreitá-los lá ondemenos se os esperava e naquilo que é do como não possuindo história – os sen mentos, oamor, a consciência, os ins ntos: apreender seu retorno não para traçar a curva lenta da evo-lução, mas para reencontrar as diferentes cenas onde eles desempenharam papéis dis ntos;e até de nir o ponto de lacuna, o momento em que aconteceram” (p. 15).

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Trabalhar no campo da Psicologia, nesta perspec va, signi ca tentarromper com a ideia de subje vidade cons tuída a par r da interioridadedo sujeito, buscando, ao contrário, a prevalência de uma visão transver -salista da subje vidade, em que a caracterização do que é interno e ex-terno ao sujeito perde sen do. No âmbito do conhecimento, a oposiçãotradicional entre sujeito e objeto sucumbe, e a delimitação que de niriaesferas próprias a tais en dades encontra-se borrada.

Gua ari (1992, p. 11), por exemplo, diz que a subje vidade trans-cende ao próprio sujeito e é “produzida por instâncias individuais, cole -vas e ins tucionais”, sem qualquer hierarquia entre elas. O autor adota oconceito de “Produção de subje vidade” (Gua ari, 1990, 1992) para de-marcar que as subje vidades são produzidas socialmente e que o indiví-duo se situa como uma função de terminal, mas que, por sua vez, tambémproduz subje vidade. As interações sociais, em suas diversas instâncias(família, escola, trabalho, religião, hábitos culturais, etc), funcionam comovetores de subje vação (Gua ari, 1992; Miranda, 2000).

Foucault também problema zou o sujeito individual como efeito damodernidade. O termo sujeito assume dois sen dos: “Sujeito ao outroatravés do controle e da dependência e ligado à sua própria iden dadeatravés de uma consciência ou do autoconhecimento. Ambos sugerem

uma forma de poder que subjuga e sujeita” (Foucault, 2013, p. 278). Opensador nos provoca ao colocar o sujeito como invenção moderna, mar-cado por con ngências históricas. Uma invenção menos engendrada pelaautonomia e soberania, como crê o pensamento iluminista, e mais an-corada na sujeição. Dessa maneira, ao invés de pensar o sujeito, o autoranalisa os modos de subje vação preponderantes em determinados con-textos históricos, isto é, discute as prá cas que performa zam sujeitos.Assim, os modos de subje vação, no nal do século XVII e início do séculoXVIII no contexto europeu, foram marcados pelo disciplinamento dos cor-pos individuais e que veram o exército, o hospital, a prisão e a escolacomo ins tuições protagonistas (Foucault, 1977).

A disciplina, discute Foucault (1977), se centra na vida do homem-in-divíduo, em seu corpo, empreendendo uma anátomo-polí ca com vistas aum melhor aproveitamento de suas forças, o que envolve a docilização e adisciplinarização. As prá cas disciplinares têm como nalidade o domíniode cada um sobre si mesmo, visando à produ vidade. Diz Foucault: “O

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indivíduo é sem dúvida o átomo c cio de uma representação ‘ideológica’da sociedade; mas também uma realidade fabricada por essa tecnologiado poder que se chama a ‘disciplina’” (p. 172). Posteriormente acopladosàs prá cas disciplinares, já na segunda metade do século XVIII, engendra-ram-se outros processos de subje vação caracterizados pelo controle dapopulação, por meio de disposi vos de segurança (Foucault, 2008). Ana-lisar os diferentes modos de subje vação que ajudaram a cons tuir o su- jeito individual, muitas vezes atreladas a uma lógica individualista, implicanão apenas na sua desnaturalização, como na busca de processos maiscole vos de subje vação. Diz Foucault: “Temos que promover novas for-mas de subje vidade através da recusa deste po de individualidade quenos foi imposto há vários séculos” (Foucault, 2013, p. 283)

Chegamos aqui a um ponto importante para avançar no campo ar-gumenta vo: os modos de subje vação engendrados nas mais diversasdimensões sociais: família, religião, educação, trabalho, mídia etc. trazempara a esfera da psicologia essas diversas instâncias. Dentre elas, temosnos dedicado a duas: a educação, especialmente a escolar, e as tecnolo-gias midiá cas.

Escola e Mídia: Tecnologias de época, modos de subje vação dis ntos?

Todo projeto educacional envolve um projeto de sujeito que sequer formar: desenvolver potencialidades, intervir nas etapas evolu vas,barrar comportamentos indesejáveis, por vezes buscando um “ser socialautônomo, moralmente livre e empreendendor, apto à vida social e pro-du va” (Costa, 2006, p. 15). As prá cas e os saberes, nos úl mos séculos,ajudaram a consolidar o projeto de Modernidade e de sujeito, em quea educação escolar ocupa um lugar privilegiado. Conforme Veiga-Neto(2007, p. 15): “Foi com base em Foucault que se pôde compreender aescola como uma e ciente dobradiça capaz de ar cular os poderes queaí circulam com os saberes que a enformam e aí se ensinam, sejam elespedagógicos ou não”.

Por outro lado, a contribuição da Psicologia no território educacio-nal tem servido para dar um certo status cien co às prá cas pedagógi-cas, ao mesmo tempo que se coloca como lugar de resolução de proble-

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Miranda, L. L. (2015). Educação e mídia: o que a Psicologia Social tem a ver com isso?

mas ligados à inadaptação e às di culdades de aprendizagem (Hunning &Guareschi, 2005).

As transformações relacionadas às tecnologias de comunicação e à

crescente inserção da mídia em grande parte das prá cas culturais atuais,cons tuindo a chamada sociedade midia zada (Moraes, 2006), acabampor inseri-la como um lugar de formação do sujeito, como um “disposi vopedagógico” da atualidade, (Fischer, 2002). Fischer analisa as tecnologiasde comunicação de massa, principalmente a televisão, visto que o concei-to é de 2002, como produtora de imagens, signi cações e saberes que in-cidem na relação do sujeito com o mundo e consigo mesmo. Além de seruma fonte de informação e entretenimento, a mídia dirige-se à educaçãodas pessoas, ensinando-lhes “modos de ser e de estar na cultura em quevivem” (p. 151).

Assim, acreditamos ser necessário discu r a escola e a mídia comotecnologias de época que vêm atuando nos modos de subje vação, sobre-tudo das novas gerações (Sibilia, 2012).

Voltemos à escola: ampliada no contexto europeu do século XVIII,a ins tuição escolar foi um dos lugares que ajudaram a consolidação doprojeto de industrialização do capitalismo e da cons tuição do sujeito mo-derno (Foucault, 1977). A sociedade capitalista é resultante de três revo-luções: a Revolução Industrial, ocorrida, em meados do século XVIII, naInglaterra; a Democrá ca, que se passou na França, em 1789; e a Educa-cional, que, enraizada no Iluminismo, somente se completa na Europa doséculo XX (Oliveira, 2004). Segundo Sibilia (2012), o projeto de educaçãoescolar expandida a TODOS, de um lado, diz respeito a uma sociedade mo-derna que pensou a si própria (mesmo que idealmente) como igualitária,fraterna e democrá ca, e de outro, pela maximização da força produ vados corpos através do poder disciplinar. Na verdade, trata-se de dois lados

da mesma moeda.Dessa forma, o poder disciplinar encontra na escola um território

fér l, u lizando-se de instrumentos simples como o olhar hierárquico, asanção normalizadora e o exame (Foucault, 1977). No primeiro, cria-seuma subdivisão montada hierarquicamente para que uns possam vigiar osoutros, em uma nova subdivisão de trabalho com mestres, supervisores,coordenadores. A sanção normalizadora, voltada não apenas para a pu-

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nição, mas também para a prevenção de comportamentos, cria a normaque diferencia e classi ca o desenvolvimento e o comportamento de cadaindivíduo em relação aos outros, com base em uma medida quan ta vade normalidade, a exemplo dos testes psicométricos u lizados na educa-ção. Por m, o exame, a combinação entre ambos, baseado em avaliaçõese exercícios regulares, traça o mapa de aprendizagem e a conduta de cadaum. Portanto, o sujeito moderno é um efeito das relações de poder-saberproduzidas em diversas ins tuições, dentre elas a escolar.

O próprio Foucault reconhece que talvez com relação ao corpo,após a revolução sexual do século XX, novas formas de controle estariamemergindo: “Como resposta à revolta do corpo, encontramos um novoinves mento que não tem mais a forma do controle-repressão, mas docontrole-es mulação: “Fique nu ... mas seja magro, bonito, bronzeado”(Foucault, 1988, p. 147). As resistências per ladas na revolução sexual te-riam sido, em parte, capturadas por novas prá cas. Foucault então sen-tencia: “É preciso aceitar o inde nido da luta ... O que não quer dizer queela não acabará um dia” (Foucault, 1988, p. 147). Modos de subje vaçãoassujeitados se entrecruzam com formas de resistências, perfoma zandonovos campos de lutas e de capturas.

Deleuze, retomando Foucault, diz que estaríamos passando por umatransição entre modos de subje vação predominantemente disciplinares(marcados pelo con namento da escola, hospital, prisão, etc.) e socieda-de de controle com formas mais uidas e exíveis, mas cada vez mais ca-pilares. Novas formas de controle em que par cipam máquinas, dentre asquais se destacam as tecnologias de comunicação, a mídia:

É fácil fazer corresponder a cada sociedade certos pos de máquina, nãoporque as máquinas sejam determinantes, mas porque elas exprimem asformas sociais capazes de lhes darem nascimento e u lizá-las ... as socie-

dades de controle operam por máquinas de terceira espécie, máquinas deinformá ca e computadores, cujo perigo passivo é a interferência, e o a vo,a pirataria e a introdução de vírus. (Deleuze, 1992, p. 223)

Máquinas de visibilidade e de vigilância que se estendem ao ar livre;máquinas que expõem nosso co diano banal ao olhar do outro; máqui-nas que ar culam controle e prazer, na contração espaço-temporal (Bruno,2013). São “as sociedades de controle que estão subs tuindo as socieda-

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Miranda, L. L. (2015). Educação e mídia: o que a Psicologia Social tem a ver com isso?

des disciplinares” (Deleuze, 1992, p. 220). Para o lósofo, signi ca que asnovas formas de controle, mais uidas, estão por toda parte, atreladas ànova ordem capitalista voltada para o consumo.

Antes de con nuar a presente re exão, vale uma breve delimitaçãoconceitual de mídia. O termo vem do la m medium, media no plural, quesigni ca meios. De acordo com o dicionário Aurélio, trata-se de uma desig-nação genérica dos meios, veículos e canais de comunicação, como, porexemplo, o rádio, a televisão e o jornal (Ferreira, 2001). Apesar de ser con-siderado amplo, pois pode abranger a comunicação oral, escrita e imagé-

ca desde a an guidade, a grande explosão tecnológica comunicacionalcom o advento do telégrafo, do telefone, do rádio, da fotogra a e do cine-ma consolidou-se ao longo do século XIX (Brigs & Burke, 2006). Se o mo-delo de comunicação broadcas ng (rádio, televisão) - de base analógica,onde um emissor que se conecta a vários receptores, divulgando a mesmainformação - seria um disposi vo pedagógico que ajudaria a cons tuir for-mas de ser sujeito (Fischer, 2002), como caria a relação com a mídia, nocontexto da Web.2.0 5 em que, através da comunicação em rede, tem-seapostado na dimensão colabora va, onde todos podem potencialmentenão só compar lhar, mas produzir conteúdos?

Gua ari, ainda nos anos 1990 do século passado, dissera:

Devem-se tomar as produções semió cas dos mass mídia, da informá ca, datelemá ca, da robó ca etc. ... fora da subje vidade psíquica? Penso que não.Do mesmo modo que as máquinas sociais podem ser classi cadas na rubricageral de equipamentos cole vos, as máquinas tecnológicas de informação ede comunicação operam no núcleo da subje vidade humana, não apenas noseio de suas memórias, da sua inteligência, mas também da sua sensibilida-de, dos seus afetos, dos seus fantasmas inconscientes. (Gua ari, 1992, p. 14)

O autor defendia ser a mídia e as novas tecnologias formas hiper-

concentradas e hiperdesenvolvidas da subje vidade. Elas não são o forada subje vidade, mas ajudam na sua cons tuição, sendo também forma-das por ela.5 Até o nal do século XX, aWeb 1.0 dominava, e nha como principais ações a navegação e

o consumo de informação na internet, tais como, leitura de jornal e troca de e-mails. A Web2.0 passa a ganhar espaço no século XXI, não por ser uma nova tecnologia de acesso, maspelo desenvolvimento da conexão de banda larga que permite novas formas de par cipaçãona internet, possibilitando mais oportunidades de interação e produção de conteúdos pelosusuários. (Ribeiro, 2015)

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Os modos de subje vação interpelados pelas prá cas culturais damídia não são, portanto, recentes. Desde a emergência do cinema, pas-sando pela televisão, os modos de vida das chamadas celebridades noschegam co dianamente. Conforme Bruno (2013), a visibilidade de suasvidas sempre foi estampada, seja na mídia impressa, no rádio ou na te-levisão: “As tecnologias de comunicação de massa, sobretudo o cinemae a televisão, incrementam esse regime de visibilidade, conferindo àsprá cas de ver e do ser visto novas signi cações sociais, esté cas, sub- je vas” (p. 46). Vidas “ín mas” compar lhadas com milhões. Se a mídiabroadcas ng já trouxera a possibilidade de compar lhamento do dia adia das chamadas estrelas ou celebridades, na contemporaneidade, a co-municação digital, as redes sociais digitais parecem inaugurar um novo

tempo, que traz a possibilidade de cada um compar lhar pensamentos eopiniões em fração de segundos, onde agora todos podem publicizar suavida privada (Bruno, 2013; Sibilia, 2008).

Basta zapear na TV ou navegar pela internet que percebemos aatualidade do disposi vo confessional problema zado por Foucault aopesquisar a genealogia da sexualidade moderna (Foucault, 2007) 6. Sejaem reality shows, programas de variedades ou em blogs e redes sociaisdigitais, não faltam exemplos nos quais pessoas confessam o que fazem

para um governamento de suas condutas. Modos imediatos, uidos, masextremamente potentes e dirigidos à educação das pessoas.

Duas tecnologias: escola e mídia. Ambas marcadas pelas condiçõesde possibilidade de suas épocas que se encontram diretamente relacio-nadas com o processo de subje vação de contextos dis ntos, mas quemuitas vezes estão no território escolar: seria possível estabelecer umdiálogo entre essas duas tecnologias de época para além da docilizaçãodos corpos, ou de novas formas de controle?

6 A con ssão, tecnologia de si, originalmente ligada à penitência cristã, se redimensiona apar r do século XVIII. O sexo, antes inscrito numa pastoral católica através da con ssão dospecados da carne, dos desejos, da vontade, passa a ingressar na esfera da ciência, que es-

mula e incita a con ssão de si, como vontade de verdade, como terapêu ca: “A con ssãoganhará sen do e se tornará necessária entre as intervenções médicas: exigida pelo médico,indispensável ao diagnós co e e caz, por si mesma, na cura. A verdade cura quando dita atempo, quando dita a quem é devido e por quem é, ao mesmo tempo, seu detentor e res-ponsável”. (Foucault, 2007, p. 77)

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Miranda, L. L. (2015). Educação e mídia: o que a Psicologia Social tem a ver com isso?

O coe ciente de transversalidade e as prá cas psi

Retomemos as cenas descritas na primeira parte do texto, que têm

em comum um tensionamento destes dois lugares ins tucionais, escolae mídia. De um lado, a escola, locus tradicional de transmissão de sabervoltado ao passado, guiada pela lógica da razão, da durabilidade, do su- jeito cidadão, do telos, tentando, na contemporaneidade, demarcar o seulugar legi mado de transmissão cultural e de disciplinamento. De outro,a mídia, cujo conteúdo, na maioria das vezes, é voltado para a atualidade,para a promoção do impacto e do emocional, para a velocidade, para osujeito consumidor, para o privilégio do agora e do efêmero, marcada pelasedução da imagem, da instantaneidade da informação que coloca corposinfan s e juvenis em conexão, sem necessariamente autorização préviado professor (Vivarta, 2004).

Se pensarmos em ambos como lugares privilegiados de produção demodos de subje vação contemporâneos, muitas vezes em con ito, temosaí um território para a pesquisa /atuação da Psicologia Social, mas, paratal, talvez devamos nos abrir para outros tensionamentos que povoam oterritório escolar, para além dos problemas de aprendizagem e/ou com-portamentos individualizados no sujeito, ou no máximo de suas famílias.Também não podemos esquecer o fato de o co diano escolar ser marca-do pela precarização laboral docente, onde muitas vezes professores nãoconseguem re e r acerca de sua ação pedagógica. Ao falar da interfacePsicologia/Educação, Rocha (1999) é contundente na necessidade de setrabalhar de modo mais transdisciplinar:

A escola … não vive só com os problemas de aprendizagem pedagógica, ou,antes, estes problemas estão cada vez mais intrincados com a complexida-de da vida contemporânea, com desa os como violência, o desemprego, o

excesso de população e a velocidade midiá ca – questões que requeremnovas análises … que abordadas de modo transdisciplinar, para além dasdivisões entre saberes e poderes, podem redimensionar as problemá caseducacionais. (Rocha, 1999, p. 189)

Conforme Huning e Guareschi (2005), Foucault desacomoda a Psi-cologia, provocando-a a se deslocar, de um lado, da “unidade-sujeito paraa rede discursiva em que é produzido” (p. 123), e de outro, por discu r

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a própria Psicologia na produção dessa teia, “assumindo o caráter inter-ven vo da produção teórica da psicologia e dando um adeus à neutrali-dade cien ca” (p. 125). Para isso, faz-se necessário trazer para as nossasprá cas psi a dimensão da criação: abandonando os “aventais brancos”que nos fala Gua ari (1990, p. 22), “a começar por aqueles invisíveis quecarrega na cabeça”, aproximando-nos da arte:

Um pintor não tem por ideal repe r inde nidamente a mesma obra ... Damesma maneira, cada ins tuição de atendimento médico, de assistência, deeducação, cada tratamento individual deveria ter como preocupação per-manente evoluir sua prá ca tanto quanto suas bases teóricas. (pp. 22-23)

Fazendo uso da imagem das viseiras dos cavalos, que, quanto mais

abertas, maior a possibilidade de abrir o campo de visão, Gua ari diz queos pro ssionais psi deveriam ampliar o seu coe ciente de transversalida-de. Este estaria associado à a vação de circulação, de agenciamentos, li-gados à produção de outros modos de ser, de sen r e de atuar, em que ospro ssionais de diversos campos de saber exerceriam prá cas mais trans-disciplinares (Gua ari, 1981).

Por m, acreditamos que nossa prá ca no território psi tem sidomarcada por este encontro transdisciplinar. Ensaiamos, em nosso co dia-no acadêmico-pro ssional, forçar a abertura das viseiras laterais, aumen-tando o coe ciente de transversalidade. Estar na escola problema zandocom jovens e com professores o seu co diano marcado pelo tensiona-mento entre os modos de subje vação escolares e os modos de subje va-ção midiá cos, através de prá cas que transversalizam psicologia, educa-ção e comunicação, tem sido um desa o. Estar no território escolar com estudantes e professores de Psicologia e de Comunicação Social tem sidouma convocação ao exercício da transdisciplinaridade.

Nas escolas, temos desenvolvido trabalhos com o vídeo, como dis-posi vo interessante para a análise dos modos de subje vação atuais.U lizar uma tecnologia audiovisual, na qual a comunidade escolar assiste,discute, aprende a linguagem e cria vídeos sobre a relação com a mídiae sobre o próprio território escolar, tem sido um convite ao exercício denovas prá cas (Miranda, 2014a; Miranda, Souza, Queiroz, Viana, & Coe-lho, 2015). Abrir o coe ciente de transversalidade de nossa prá ca psi nocampo educacional, discu ndo e produzindo vídeo com a comunidade es-

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Miranda, L. L. (2015). Educação e mídia: o que a Psicologia Social tem a ver com isso?

colar sobre os modos de subje vação contemporâneos, ajuda a expandirum campo de possibilidade para que as cenas descritas no início sejamproblema zadas com alunos, professores e gestores, promovendo, assim,a sua ressigni cação. A potência desse encontro não tem qualquer pre-tensão de ser um novo método, mas uma espécie de lugar para se pensara diversidade das situações concretas vividas tanto na relação com a mí-dia, quanto com a própria educação no âmbito das prá cas em psicologiasocial.

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Formação em Psicologia Social – ou quando a vidaimita a arte

Je erson de Souza Bernardes

Formação em Psicologia Social? Estranhei tal expressão no tulodeste Simpósio. Estão querendo discu r as especializações? Ou, como jáouvi por aí, uma graduação em Psicologia Social? Será que tem sen douma formação em Psicologia Social que se afasta da formação em Psico-logia como um todo? Será que é interessante con nuarmos a fragmentarnossos cursos como, historicamente, o fazemos?

Fragmentação que isola, aparta, separa, disjunta (para usar umaexpressão mais cartesiana) a ciência da polí ca, o social da clínica, o in-dividual do social, o macro do micro e, por que não, as áreas de conheci-mento da Psicologia. Apresentarei meu argumento de que não creio serinteressante pensar uma Formação em Psicologia Social isolada de todaa formação em Psicologia. Ao contrário, pre ro re e r como a PsicologiaSocial pode ajudar a construir uma formação em Psicologia mais crí ca,

contextualizada, orientada para o pleno desenvolvimento da cidadania epara transformações sociais. Para isso, apresentarei breves discussões so-bre as ar culações entre duas áreas em especial que marcam, de certaforma, as possibilidades do fazer Psicologia Social ao longo da formação:as áreas da Educação e do Trabalho.

Assim, este texto busca debater como as relações entre os pro-cessos da Educação e do Trabalho delimitaram, em nossos co dianos, aformação em Psicologia. Para isso, apresentarei alguns dos desa os e das

possibilidades na formação em Psicologia, a par r das relações históricasentre estas duas áreas e os sen dos produzidos no co diano da formação,problema zando o conceito de competências.

Parto de uma metáfora com o campo das artes visuais, pois a artepode ser um caminho interessante para auxiliar o debate para a formaçãoem Psicologia. Tenho certa sensação de que a Arte sempre está um passoà frente de leituras, invenções, novos saberes e fazeres em nosso co dia-

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Bernardes, J. S. (2015). Formação em Psicologia Social – ou quando a vida imita a arte

no. Ao menos, com potência para ajudar a tornar a formação mais leve ealegre, visto que perdemos há tempos a leveza e a alegria no olhar de boaparte de nossos alunos.

A relação entre as áreas da Educação e do Trabalho é complexa enão tenho pretensões em respondê-la na profundidade que merece. En-tretanto, arrisco-me a rascunhar algumas considerações, com base nas ex-periências como professor, supervisor e militante no campo da Educação.Tais considerações são melhor pi cadas como dúvidas e re exões e, emalguns momentos, na fronteira com desabafos.

Trabalho no campo da Educação. Mais especi camente, no campoda educação e do ensino na saúde. É a par r deste lugar que falo, inspiradopor diálogos com autores como Paulo Freire (2002), Pedro Demo (2001),Ricardo Ceccim e Laura Feuerwerker (2004a; 2004b), dentre outros.

Divido o presente texto em três tópicos: (a) Formação e Arte – e a vidaimita a arte! (b) Educação e Trabalho – que relações foram/são possíveis?(c) Educação e Trabalho na formação em Psicologia – que competências?

A argumentação principal aqui é o posicionamento favorável à for-mação generalista. Já foram exibidas, em outros momentos, as bases daformação generalista: grosso modo, as possibilidades de ar culação entre

atenção, gestão e educação nas prá cas e saberes da atuação pro ssional(Bernardes, 2004; 2007). Para isso, sugere-se complexi car e ampliar oconceito de competências, central nas discussões educacionais atuais nopaís.

Formação e Arte - e a vida imita a arte!

Concordo com Paulo Freire quando ele a rma que a ingenuidade é

nociva ao pensamento crí co e ao desenvolvimento da autonomia . Toda-via, não são opostos a ponto de ser anulado um pelo outro. O importanteé, nas relações recíprocas, poderem transcender-se e transformarem-seem posturas libertárias (Freire, 2002) .

É neste espírito que inicio falando em “ingenuidade”. E para isso,lanço mão de alguns elementos do universo da Arte, portanto, externos àPsicologia, para o auxílio da compreensão da formação na área.

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Psicologia social e os atuais desafos é co-polí cos no Brasil

Falo especi camente de um es lo de Arte Visual, a Arte Naif ou ArteIngênua, em livre tradução. O termo Arte Naif foi u lizado pela primeiravez no virar do século XIX, para iden car a obra do francês Henri Rous-seau (1844-1910), especialista em cores, considerado por muitos comoprecursor deste es lo. Henri não possuía educação geral, nem tampou-co conhecimento em arte ou pintura ( h p://www.infoescola.com/artes/arte-naif/ ). Em sua trajetória foi severamente cri cado por ignorar princí-pios básicos de geometria e da perspec va.

A Arte Naïf rmou-se como uma corrente que aborda os contextosar s cos de modo espontâneo e com plena liberdade esté ca e de ex-pressão. É a Arte “livre de convenções”, como a rmam seus seguidores. Abaixo um dos quadros de Rousseau:

A Centennial of Independency – Henry Rousseau - 1892 h p://www.zazzle.com.br/um_cen -tennial_da_independencia_henri_rousseau_cartao_postal-239557725157987975.

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Bernardes, J. S. (2015). Formação em Psicologia Social – ou quando a vida imita a arte

O quadro de Rousseau (“A Centennial of Independency” – alusãoaos 100 anos da Revolução Francesa) caracteriza-se, em termos gerais,pela simplicidade e pela ausência de elementos formais dos es los ar-

s cos mais tradicionais: perspec va, cores e tons distribuídos de formaharmoniosa, desenhos clássicos re e dos a par r de regras acadêmicasimportantes, ou mesmo referências tradicionais aos es los de pinturasexistentes.

Mas quero u lizar a Arte Naif por meio de uma de suas caracterís -cas mais marcantes para falar de formação: a regionalidade. Apresento aobra abaixo:

Trata-se de um quadro de uma ar sta plás ca alagoana, chamadaTania de Maya Pedrosa. O quadro in tula-se “Sertão Sempre Vivo”. É des-te quadro que quero falar. E de como ele pode nos ajudar a re e r sobrea formação em Psicologia.

É a “arte ingênua” ou a “arte primi va”, com caracterís cas muitopróprias, por exemplo, ar stas sem preparação acadêmica especí ca. Pre-paração no sen do da hegemonia técnica acadêmica. Mas não se deixemenganar, pois em absoluto signi ca que não estudem. Ao contrário, não se

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orientam pelo formalismo academicista marcado pelas guras com as leisregidas pela geometria ou a anatomia.

O traço da Arte Naif é leve, quase pueril, mas com presença marcan-

te, vibrante. Assemelha-se a desenhos de criança, porém com alto graude complexidade. Na criação da obra há, por parte do autor, liberdadede relações, agregados e desagregações. Para usar expressão latouriana,o autor segue quem quiser, incorporando em sua obra as histórias, rela-ções, narra vas co dianas que fazem parte de seus percursos. Segue aigreja, o mercadinho, o ar sta de rua. Há, portanto, uma aparente sim-plicidade contrastando com a enorme complexidade da vida vivida empúblico. As cores são vibrantes e simultâneas. Não há preocupações emharmonizá-las. Convivem lado a lado como velhos companheiros: brigam,se esfolam, se digladiam, mas permanecem juntas. A harmonia cromá cadepende mais dos olhos atentos que admiram a obra que das intençõesdo ar sta. Ainda há, neste es lo, certa ruptura com os formalismos ge-ométricos e anatômicos hegemônicos, caracterizado pelos traços quasesempre bidimensionais.

Os conteúdos e as temá cas das obras de Arte Naif são caracteri-zados, grosso modo, por certa preocupação com as tramas, as redes, oslaços e as relações entre os diversos atores que compõem cada obra. Tais

tramas e redes apresentam exercícios democrá cos radicais, pois há cons-tantemente a produção de encontros entre diversos. A vida é vivida empúblico, com transparências nas relações (todos no mesmo plano). As pin-turas, no geral, retratam cenas de valorização da cultura/saberes/fazereslocais, principalmente os vinculados aos processos de trabalho, culturais ereligiosos. É o artesão homenageado no canto inferior direito do quadro,o pescador no canto esquerdo inferior, ou a quadrilha de forró no centro.En m, manifestações da vida e da cultura popular preenchem cada cantoda tela. Aliás, destaca-se o protagonismo em cada um destes detalhes, emcada personagem. A cada canto da obra, abrem-se muitas histórias e a ri-queza de narra vas se apresenta. Por m, são caracterís cas expressivas:a leveza, alegria, felicidade, espontaneidade e a produção de imaginárioscomplexos.

A Arte Naif mostra grande riqueza de temá cas co dianas. Riquezatambém encontrada nas experimentações e vivências da formação emPsicologia, por exemplo, quando orientada para a produção da autono-

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Bernardes, J. S. (2015). Formação em Psicologia Social – ou quando a vida imita a arte

mia e do protagonismo dos sujeitos envolvidos nos processos forma vos(estudantes, supervisores, professores, usuários diversos) ou em proces-sos co/autoges onários de grupo, organizações e ins tuições. As aproxi-mações em relação ao quadro são muitas: na tela, cada ator organiza edá sen do ao seu espaço, suas trajetórias e histórias agregados/desagre-gados nas relações com os demais atores.

A problema zação das prá cas, dos saberes/fazeres do co diano, apar r das realidades e contextos locais – são as cenas do co diano, comsua potência, diversidade, explosão de cores e diferenças. Tal aspecto éfundamental para a formação em Psicologia. As Diretrizes CurricularesNacionais apontam para esta preocupação, assim como a Resolução n.350/2005 da Comissão Intersetorial de Recursos Humanos do ConselhoNacional de Saúde (CIRH/CNS)1.

Na formação há, também, a preocupação com o trabalho em gru-pos ou em equipe – mul /inter/trans/inter pro ssional/disciplinar – umavez que produzem redes mais potentes, transparentes, de sujeitos me-nos isolados e solitários, e pro ssionais mais ar culados entre si e maissolidários – na tela as pessoas vivem em público, conectando-se à suamaneira, tecendo relações a todo instante. Salta um dançarino aqui, pas-sa uma moça ali e a vida segue.

Além do trabalho com outros pro ssionais/outras áreas, é possívelpensar nos encontros entre diversos (promoção de diálogos, conversas,encontros, conexões) com comunidades, grupos, ins tuições dis ntasdas acadêmicas – nas redes comunitárias e sociais, culturais, escolar, tra-balho, assistência social, saúde etc. As perguntas para a formação emPsicologia, neste sen do, são: como são os encontros com os diversosnos cenários de prá ca? Que justaposição de cores e tons é possível? Aque atores e diálogos é permi da a circulação pelos vários espaços? Que

processos democrá cos e coges onários podem ser produzidos?Uma formação que foque a aprendizagem no contexto da própria

comunidade/trabalho, em que o aprender e o ensinar se incorporam aoco diano da vida, com suas histórias, narra vas etc. Processos de forma-

1 Estes são os principais documentos que orientam a autorização, reconhecimento e renova-ção de reconhecimento dos cursos de graduação em Psicologia, além, claro, das reformascurriculares.

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Psicologia social e os atuais desafos é co-polí cos no Brasil

ção pro ssional com referências nas necessidades sociais das pessoas edas populações.

Por m, conforme irei explorar mais adiante, que permita o encon-

tro entre os processos nos campos do trabalho e da educação, e não desobreposição ou uso de um dos campos pelo outro. Que problema ze aformação em Psicologia, orientada para perspec vas crí cas, transforma-ções sociais e atenção às necessidades das pessoas e das populações.

Educação e Trabalho – que relações foram/são possíveis?

Transformar a experiência em puro treinamento

técnico é amesquinhar o que há de fundamentalmente humano no ato educa vo: o seu caráter formador(Freire, 2002, p. 16)

Por que, historicamente, a academia (educação) e os serviços (tra-balho) estabelecem, no que concerne à formação, uma relação tão ten-sionada e con ituosa? Uma mirada rápida nos co dianos de nossas prá-

cas e estágios acadêmicos e percebemos tais tensionamentos. São rarosos cursos em que professores, supervisores locais e estudantes discutem

juntos as reformas das propostas pedagógicas, os modelos de estágio ede prá cas, os sistemas de avaliação... convivem como dois mundos es-tranhos um ao outro: à academia é des nado o saber. Aos serviços cades nado o fazer. Relação burocra zada, cindida, binária, sempre entreos polos da teoria, por um lado, e da prá ca, por outro.

Em algum momento da história, as universidades se afastaram domundo do trabalho. Vale lembrar que a origem das universidades é exa-tamente a origem dos o cios e das corporações. Ullmann (2000), ao falar

das origens da universidade, a rma que:Por toda a parte, fervilhava, naquele tempo, a tendência de se formaremassociações ou grêmios ou corporações, sob o nome de universitates , paradefesa dos direitos. No ocaso do século XII e, por longo tempo, depois, uni -versitas aplicava-se à corporação dos comerciantes, dos ar cies, dos bar-beiros, ou seja, a uma associação de pessoas com ocupações idên cas, a

m de salvaguardarem seus interesses. A mesma terminologia passaram ausá-la os estudantes e professores (Ullmann, 2000, p. 101).

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Bernardes, J. S. (2015). Formação em Psicologia Social – ou quando a vida imita a arte

Ullmann argumenta ainda que, com o passar dos tempos, asuniversitates foram se desvinculando dos ofícios e das corporaçõese ficando restritas a estudantes e a professores. Este longo processoatinge seu apogeu na Era Moderna, principalmente, após a RevoluçãoIndustrial.

Por que os campos da educação e do trabalho se afastaram tantoao longo dos tempos? O que aconteceu com as universidades? Por queboa parte delas se afastou tanto do cotidiano da vida e do trabalho?As origens da universidade não são associadas ao universo dos ofí-cios? Por que os ofícios deixaram de ser, paulatinamente, trabalhadosem nossos cursos? Por que não estamos desde o primeiro dia de aulaimersos nas redes de saúde, escolar, assistencial, do universo do tra-balho etc? O que fizemos das salas de aula e dos processos de ensinoe aprendizagem?

Por outro lado, o que aconteceu com o campo do trabalho? Comas práticas e formas de organização do trabalho? Por que a educa-ção neste contexto foi reduzida aos procedimentos técnicos? Por quea aprendizagem neste campo foi retirada de cena? Por que reduzimosofícios a um aglomerado de técnicas? Por que identificamos a exclusi-vidade do ofício do psicólogo a um conjunto de técnicas? O que acon-

teceu conosco neste processo? Por que tanta dificuldade em trabalharcom outros ou em grupos, sendo profissionais diversos ou mesmo compares? Quem, ou o que, garante que fragmentar os objetos, e produzirconhecimentos a partir destes recortes, está proporcionando conhecermelhor as coisas do mundo e a nós mesmos?

Penso que uma boa formação é aquela em que as relações entreeducação e trabalho estejam bem articuladas.

Aqui, há uma recusa a definir, por exemplo, como comumenteouvimos, a formação acadêmica, enquanto teórica, e a formação pro-fissional, enquanto prática... O sentido produzido por isso é claro: adicotomia entre teoria e prática. É aquele aluno que, no primeiro diade aula na graduação, já entra em estado de moratória educacionalafirmando que não adianta estudar agora, visto que só aprenderá “re-almente” quando chegar no estágio (geralmente realizado no últimoano do curso). Chegando ao estágio... não sabe o que fazer e culpabili-

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Psicologia social e os atuais desafos é co-polí cos no Brasil

za o curso por isso. Enquanto profissional, responsabiliza a graduação,e assim vai.

Desabafo: é dolorido ouvir que “a culpa pelo profissional não de-

senvolver tal ou qual questão” em seu universo de trabalho deve-se àmá formação na graduação... Coitada da graduação... É dolorido ouvircolegas, de níveis mais adiantados na formação, culpabilizarem os ní-veis anteriores por formações que consideram mal realizadas.

Desafio: como pensar a graduação (e, por que não dizer, a pós--graduação) que articule teoria e prática em todo o seu percurso, rom-pendo fronteiras territoriais entre instituições (acadêmicas e de ser-viços). Ora, o ensino e a aprendizagem se dão só na academia? Comoarticular os campos da educação e do trabalho no próprio cotidiano davida? Por que não aprender nos diversos ambientes da vida (trabalho,escola, comunidades, redes de saúde etc)?

Claro, isso talvez requeira modificações em nossas formas deconceber relações de ensino e aprendizagem, relações professor/alu-no, assim como nas relações institucionais (academia e cenários depráticas), mas, também, nas relações de trabalho. Os atos de estudar,pesquisar, conhecer, aprender podem ser constitutivos do mundo dotrabalho, por que não? Por outro lado, por que da resistência de algunslocais de trabalho a receber estudantes? Por que, parte das vezes, étão tensionada a relação entre professores/estudantes e supervisores/preceptores?

Para finalizar este segundo tópico, um último desafio, talvez dosmaiores: como pensar a formação articulando a Educação e o Traba-lho? E que, nesta articulação, agregue também a Atenção (clínica, as-sistência, saúde etc)? Que não dissocie, portanto, independentementedo campo de atuação do/a psicólogo/a, modos de educação, gestão eatenção? Ou seja, que problematize a formação generalista e avanceem direção a formações e a atuações profissionais menos fragmenta-das. Que demarque um compromisso com o exercício profissional queseja ético, crítico e orientado para transformações em diversas dimen-sões de nossa vida social. Que, feito a Arte Naif, demarque compromis-sos com a diversidade (constitutiva da Psicologia) de posicionamentos,atores, locais e relações que compõem nossas relações sociais.

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Bernardes, J. S. (2015). Formação em Psicologia Social – ou quando a vida imita a arte

Educação e Trabalho na formação em Psicologia – que competências?

Vários historiadores salientam que boa parte da Psicologia inven-

tada no século XIX foi fortemente in uenciada pelos movimentos da Re-volução Industrial, sobretudo nos campos da educação e do trabalho. Asconcepções mecanicistas derivadas do mundo do trabalho - que passavaa conhecer a máquina, a divisão social do trabalho, a concentração derenda em torno da classe burguesa -, provocaram o surgimento do queconhecemos hoje como Psicologia. Foucault nos alerta para tal questão:

Não resta dúvida que a emergência histórica de cada uma das ciênciashumanas se deu por ocasião de um problema, de uma exigência, de umobstáculo de ordem teórica e prá ca; certamente foram necessárias asnovas normas que a sociedade industrial impôs aos indivíduos para que,lentamente, durante o século XIX, a psicologia se cons tuísse como ciência(Foucault, 2002, p. 476)

A tradição do caráter disciplinar, norma vo e adapta vo da criançana escola, ou da classe trabalhadora na fábrica, por meio dos processosde recrutamento, seleção e treinamento fala das condições que possibili-taram a emergência da Psicologia.

Neste processo histórico, o pensar e a re exão foram, paula na-mente, sendo colocados para fora da escola e do universo do trabalho. Ascrianças cam com o dever de prestarem atenção (o pensamento do indi-víduo é considerado efeito de um jogo intricado de forças ambientais quedevem ser controladas, principalmente a frequência com que determina-do es mulo apareça ao indivíduo). Tudo na escola passa a ser orientadopara o controle do corpo da criança. A arquitetura, as salas, a ornamenta-ção, a distribuição dos espaços por onde se circula, por onde se aprendeetc. Das ins tuições modernas, talvez a escola tenha sido a que menosevoluiu nos úl mos anos. As fotos abaixo mostram uma sala de aula emins tutos educacionais em princípios do século XX.

Por outro lado, no universo do trabalho, aos trabalhadores resta omovimento perfeito, direto, mecânico, automá co. Qualquer interrupçãono processo de repe ção de um gesto na linha de montagem re ra-o dofoco da maior produ vidade. A re rada de cena do pensar (e de todos

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Ins tuto Disciplinar - Salas de aula. Acesso: 18 de setembro de 2015 em : h ps://rosemarie-dubinskas.wordpress.com/page/17/ .

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Bernardes, J. S. (2015). Formação em Psicologia Social – ou quando a vida imita a arte

os processos psíquicos, afetos etc), pois este “atrapalhava” o movimento,produziu distanciamentos do ato de aprender nos processos de trabalho(ou foi reduzido ao ato procedimental, técnico). A aprendizagem agora sedá sempre fora do trabalho: na universidade, nos cursos fora do horáriode trabalho, nos treinamentos aos nais de semana, nos eventos todosetc. Essas questões marcam os modos de fazer a Psicologia, a formação eas prá cas pro ssionais.

Tal contexto produziu a invenção de Psicologias em que o pensarestava fora do sujeito da ação e centrava-se na máquina, no ambiente etc.Todo o surgimento de perspec vas experimentalistas vem desta concep-ção que o pensar era consequência e não motor (para usar uma expressãomecanicista), do psiquismo. Aliás, o próprio psiquismo começa a ser lidou lizando-se metáforas mecanicistas: relações de causa e efeito automá-

cas entre o ambiente e o psíquico, os jogos de forças do operante (“con-ngências de reforçamento”) determinando o mundo interno do sujeito

etc. “Tempos Modernos” de Chaplin ilustra bem este universo em quea máquina determina todos e quaisquer comportamentos, sen mentos,ações do sujeito.

Tempos Modernos – Charles Chaplin

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Contudo, atualmente, o pensar volta a fazer parte do motor do sujei-to psicológico, novamente, em função do universo do trabalho: as novasmudanças no universo do trabalho, especialmente com o advento das no-vas tecnologias, produzem um “sujeito pensante” dis nto do anterior. Seantes o pensamento era consequência, hoje, o pensamento é retomadocom toda a força cartesiana e volta a ser o foco do psiquismo. O mundointerno do sujeito, em termos cogni vos, ganha relevância, principalmen-te, por meio de saberes orientados às Ciências Cogni vas, da PsicologiaCogni va à Neuropsicologia ou dos saberes mais claramente orientados aperspec vas biologicistas como as Neurociências.

Desta forma, percebe-se no debate sobre formação no ensino uni-versitário certo deslocamento entre uma perspec va de educação volta-da para o currículo mínimo (aprendizagem fora do sujeito – na sala deaula, no professor, no ambiente, disciplina, matéria, conteúdo, memori-zação do conteúdo) para uma perspec va em que a aprendizagem passaa se dar, sobretudo, por conceitos cogni vistas, internamente aos sujei-tos: suas competências e habilidades. A in uência maior está centradaem pesquisadores das ciências cogni vas como Perrenoud (1999; 2001;2002), Perrenoud et al. (2001), Thurler (2001), dentre outros.

No entanto, alguns autores, por exemplo, Marinho-Araújo, apresen-

tam o argumento de sua preocupação em não reduzir o desenvolvimen-to de competências ao treinamento de um conjunto de capacidades querealcem, essencialmente, a dimensão técnica da ação pro ssional (Mari-nho-Araújo, 2004, p. 87). A autora argumenta ainda que a noção de com-petência possui origens nos universos jurídicos e do trabalho, mas sempreassociada a quem detém o direito sobre algo (competência) ou quem de-tém a capacidade de fazer algo (técnico). Ao longo dos tempos, tal concei-to foi se complexi cando, tornando-se polissêmico e mul facetado. Mas,apesar desta complexi cação, o campo da educação se apropria destasorigens, em especial da advinda do campo do trabalho, de forma acrí ca,psicologizando tal discurso.

Nesse cenário, se, por um lado, o conceito de competência assumiu no-vos signi cados, atrelados à ampliação do trabalho abstrato e do trabalhonão material, e a uma tenta va de reestruturação produ va integradora dedis ntas formas de trabalho, das mais precárias às mais so s cadas, emcontraponto, se validou a competência quando essa é sustentada por meio

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Bernardes, J. S. (2015). Formação em Psicologia Social – ou quando a vida imita a arte

de extensa, con nuada e bem quali cada escolaridade. O conceito de com-petência se universalizou e re e u-se no campo da Educação, porém, deforma pouco clara, lacunar e super cializando as contradições (Marinho--Araújo, 2004, p. 88)

Ou seja, a educação e os conceitos de competências e habilidadesforam usados pelo universo do trabalho como forma de exibilizar os pro-cessos de produção e de trabalho, provocando adaptações de aquisiçõesindividuais às exigências do mercado.

Freire já a rmava que:Formar é muito mais do que puramente treinar o educando no desempe-nho de destrezas e por que não dizer também da quase obs nação com que

falo de meu interesse por tudo o que diz respeito aos homens e às mulhe-res, assunto de que saio e a que volto com o gosto de quem a ele se dá pelaprimeira vez (Freire, 2002, pp. 9-10).

Os conceitos centrais nas Diretrizes Nacionais Curriculares em todosos cursos de graduação no país, atualmente, são os de competências ehabilidades. Tais conceitos foram introduzidos nesta discussão, em termosins tucionais, em 1997 pelo Edital n. 04/97 do Ministério da Educaçãona época, como sendo balizador das reformas curriculares na graduação

(Bernardes, 2004).É importante, portanto, ressigni car tais conceitos, transgredindo a

égide cogni vista imperante. Apresentar concepções que falem de umacompetência de outras ordens que não reduzidas às questões e aos as-pectos cogni vos/individuais/internos é fundamental. De forma geral, oconceito de competências sempre foi tratado como da esfera do individu-al, como atributo individual, sem implicar um caráter cole vo, contextuale relacional e sua construção (Marinho-Araújo, 2004).

A con guração das competências em uma dimensão educacional mais am-pla, indo além do atendimento imediato do mercado de trabalho, e envol-vendo potencialidades do desenvolvimento humano sob a mediação dassubje vidades individual e social, não se revelavam nas interpretações eestudos sobre competências (Marinho-Araújo, 2004, p. 89)

Desta forma, produzir a formação centrada nas competências é pro-cesso longo, que envolve tempo, que se enriquece com experiências as

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mais diversas, ro nas e acontecimentos únicos. A vivência e a longitudi-nalidade tornam-se princípios importantes, por exemplo, para a con gu-ração das relações entre teoria e prá ca ao longo do curso. O tempo deveser aliado generoso para o planejamento, execução e avaliação dos pro-cessos de construção do conhecimento. A vivência em campos diversos,possibilitados por momentos de prá cas ao longo do curso, desde o seuinício, é fundamental para isso. A vivência em redes que compõem taiscampos é mais importante ainda.

Ressigni ca-se, assim, o conceito de competências, ampliando-o ecomplexi cando-o para as dimensões afe vas e socioculturais, mas tam-bém, para as muitas possibilidades de vivências grupais, organizacionaise ins tucionais:

Ao vincular a noção de competências aos contextos sociais, produzidos emespaços e tempos histórico-culturais, pretende ar culá-la a parâmetros dea vidades cole vas, com obje vos compar lhados em prol de metas co-muns (Marinho-Araújo, 2004, p. 92)

A autora ainda conclui que, ao ampliarmos o conceito de compe-tências, trabalha-se diretamente a autonomia dos sujeitos, por meio deprocessos auto ou coges onários, ampliando o protagonismo em suas a -

vidades, fortalecendo as opções solidárias e ar culando a formação pro-ssional às dimensões é cas e polí cas.

A metáfora com a Arte Naif, anteriormente apresentada, não é àtoa. Esta potência encontra-se presente ali. Muitos processos, aqui exibi-dos, se veem descritos quando ampliamos o conceito de competências:autonomia e protagonismo dos sujeitos, preocupação com as tramas, asredes, os laços, os encontros e as relações entre os diversos atores quecompõem cada obra; exercícios democrá cos radicais, pois há constante-mente a produção de encontros entre diversos; a vida vivida em público,com transparências nas relações (todos no mesmo plano); valorização dacultura/saberes/fazeres locais; a riqueza das diversas narra vas e temá -cas co dianas; as prá cas, o contexto e o co diano são o ponto de par -da para a produção da obra; o trabalho cole vo tornando-se central, pormeio dos encontros, entre diversos (promoção de diálogos, conversas,encontros, conexões, redes). Por m, a produção da leveza, alegria, felici-dade, espontaneidade e de leituras complexas da sociedade.

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Bernardes, J. S. (2015). Formação em Psicologia Social – ou quando a vida imita a arte

Questão: os debates nas reformas curriculares da graduação e cons-tuição de programas de pós-graduação são debates no campo polí co,

das relações de poder. Modelos polí cos naturalizados de formação e deatuação. 2 Vários autores se debruçam sobre tal questão, apresentando aideia de que os currículos são produtores de cultura e modos de ser e deviver. Não são peças neutras.

Assim, nalizando, como fazer e inventar novas formas e modos deformação que levem em consideração os saberes e fazeres já produzidosem Psicologia Social? Que a Psicologia Social dê as cores e os tons neces-sários para apresentar o debate sobre a formação em Psicologia. Por mim,espero que traga questões mais leves e alegres. Que encante a todos denovo. Ou, como diz Ferreira Gullar, o poeta, ao jus car a arte em nossasvidas: “Que a arte existe porque a vida não basta” .

Referências

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2 Para aprofundamento desta questão, sugiro, no campo da Psicologia: Bernardes (2004); Di-menstein (1998; 2001); Ferreira-Ne o (2010); Spink (2007). No campo da Educação: Silva(2000); Veiga-Neto (2004), dentre outros.

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Lima, A. F. (2015). Desafos contemporâneos do cuidado na saúde mental

Desa os contemporâneos do cuidado na saúde mental

Aluísio Ferreira de Lima

Colocar concretamente em discussão os processos que impedem o homemde viver e de expressar suas próprias necessidades em um mundo derepressão e de violência: a miséria imaterial e não apenas material, a

exclusão, a marginalização, a existência de uma racionalidade que de ne,divide, controla, classi cando tudo que não lhe assemelha, ou seja, que tutelao mundo produ vo de tudo que “atrapalha”; a norma que domina e organiza

o con ito fazendo desaparecer o polo mais frágil (Basaglia, 2015, p. 26).

Esse, — disse Franca Ongaro Basaglia na Conferência proferida noSeminário comemora vo dos 15 anos do curso de especialização em Psi-quiatria Social1 da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Ensp/Fiocruz), ocorrido em 1996, no Rio de Janeiro —, é o desa o principalda proposta de desins tucionalização em saúde mental, da luta contra omanicômio. Na ocasião da conferência, Franca aproveitou o tulo amploapresentado para sua fala (Saúde/Doença) para fazer uma re exão centra-da nos fundamentos das ciências médicas. Para ela, o sofrimento, que po-deria chamar aqui de sofrimento psicossocial, como discu do em muitostrabalhos de Vera Paiva, por revelar-se ao mesmo tempo mais complexo emais simples, precisaria de um acolhimento organizado a par r de estru-turas e serviços que, “além de garan r tratamento e assistência, sejam, aomesmo tempo, lugares de vida, de es mulo, de confronto, de oportunida-des, de diversas relações interpessoais e cole vas, visando uma mudançacultural e polí ca, antes social que sanitária” (Basaglia, 2015, p. 28).

Faz quase 20 anos que escutamos a conferência de Franca Basa-glia, que era a expressão de um modo de pensamento mais amplo de“cuidar” do sofrimento psicossocial frente ao modo tradicional iniciadocom a implementação de prá cas derivadas da an psiquiatria iniciadasnos anos de 1950, após as denúncias e trabalhos de David Cooper, RonaldLaing, Thomas Szasz, Franco Basaglia, entre outros. Autores que in uen-ciaram, no nal da década de 1970, a fundação do Movimento de Traba-1 Atualmente denominado Curso de Especialização em Saúde Mental e Atenção Psicossocial.

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Psicologia social e os atuais desafos é co-polí cos no Brasil

lhadores em Saúde Mental (MTSM) e inauguraram a implementação daReforma psiquiátrica brasileira, a qual teve como marco a aprovação daLei 10.216/2001. Pra camente após 20 anos, ainda presenciamos “novascronicidades” nos serviços de saúde mental (Pande &Amarante, 2011).

Certamente, essas “novas” cronicidades são resquícios de algo nãosuperado, efeitos da contemporaneidade, que é uma relação singularcom o próprio tempo, que adere a ele e simultaneamente toma distância,um tempo em que o presente deve viver com o anacronismo (Agamben,2009). Nesse tempo, a persistência dos problemas tem relação direta comas di culdades que se seguiram após a implementação da reforma psi-quiátrica brasileira, de um lado, resultantes da necessidade de defender aprópria reforma dos ataques polí cos e ideológicos, realizando o possívelem condições precárias, e, de outro lado, do uso instrumental, econômicoe polí co da reforma psiquiátrica.

O foco no objeto, na busca pelo órgão doente e seu diagnós co, e,portanto, a suspensão de todo elemento subje vo presente na experiên-cia do indivíduo; o relacionamento diferenciado entre quem é imputávele pode gerir os problemas da vida e quem está subme do a um outro quedecide sobre sua vida; a implementação dos serviços subs tu vos, bali-zados, conforme assinalado por Simone Almeida (2015), especi camente

por critérios relacionados à lucra vidade; e a manutenção da cultura daexclusão e da marginalização têm sido re exos de uma pobreza que cres-ceu na mesma proporção que o capitalismo.

Ficamos pobres, como bem ressaltou Walter Benjamin (2012), em1933, ao discorrer sobre o anseio das pessoas pela libertação das experi-ências e submissão ao progresso técnico, por estarem “cansadas das in-

nitas complicações da vida quo diana, e para as quais a nalidade davida se descor na apenas como ponto de fuga longínquo numa in ndávelperspec va de meios” (Benjamin, 2012, p. 90).

Como forma de pensamento dominante, esse progresso técnico,que se refere aos indivíduos como objetos biopolí cos, tem servido a umanova con guração de um Estado que passa agora a oferecer alguns possí-veis direitos polí cos e de cidadania como um gesto secundário, de acor-do com considerações biopolí cas estratégicas, reconhecendo, por umlado, as vulnerabilidades e os direitos de minorias, e mantendo, por outrolado, seu lugar enquanto origem de todos os males sociais, administrando

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Lima, A. F. (2015). Desafos contemporâneos do cuidado na saúde mental

as contradições sociais. Não é um acaso o fato de que a ocupação centralna administração da sociedade contemporânea seja a do saber médico.

A nal, como bem descreveu Agamben (2002, p. 139), uma das caracterís-cas essenciais da biopolí ca moderna é a integração entre medicina e po-

lí ca, o que “implica que a decisão soberana sobre a vida [seja deslocada],de mo vações e âmbitos estritamente polí cos, para um terreno mais am-bíguo, no qual o médico e o soberano parecem trocar seus papéis”. Nesseterreno, as relações de poder que envolvem os interesses do mercado têmtransformado, cada vez mais, o território da saúde em uma fonte lucra vapara o sistema, principalmente através da venda de medicamentos. (Lima& Santos, no prelo2)

É possível dizer ainda, considerando a hegemonia do progresso téc-nico, que a transitoriedade do lugar da loucura, junto a um conjunto maiorde doenças que são des nadas aos espaços limites, ganharam outra con-

guração na sociedade capitalista atual, que está totalmente distante doideário da desins tucionalização. A nal, incorporada aos interesses dopoder polí co, e u lizada como instrumento de produção da vida nua(Agamben, 2015), ela serve como mais uma das formas de reconhecimen-to ideológico (Honneth, 2012) e de inclusão/excludente, que serve paracontrolar, a céu aberto, a vida de determinados indivíduos. Flávia Lemos

(2015) fala a respeito disso nesse simpósio ao mencionar como a organi-zação das prá cas de saúde funciona na contemporaneidade.

Fazendo uso da linguagem foucaul ana, que não é o meu caso, mascreio que seguindo de forma muito próxima a minha argumentação, elaenfa za como os indivíduos, enquanto objetos da biopolí ca, são redu-zidos a produtos, contribuintes a vos e consumidores de mercadorias(sobretudo medicamentos) e serviços (representantes de uma cidadaniafraca que os torna usuários [dependentes] dos serviços de saúde mental),para somente depois se tornarem objetos de reabilitação e de inclusão nacomunidade.

A mercan lização da vida e da saúde faz parte do cálculo de custos e be-ne cios neoliberais, em que a polí ca como dissidência e complexidade éesvaziada. O tempo é acelerado, na economia polí ca dos inves mentos da

2 Lima, A. F. & Santos, B. O. (no prelo). O diagnós co psiquiátrico como prá ca de reconheci-mento perverso. In J. B. Dantas (Org.), A infância medicalizada: um debate sobre os processosde patologização na atualidade . Curi ba: CRV.

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saúde como dívida, e os corpos entram em um controle social pelo regra-mento da vida enquanto direito e da saúde como disputa judicial. (Lemos,2015, p. 90)

É possível, aliás, dizer que, se antes o manicômio, com sua função deexclusão, aniquilação de subje vidades e de vidas, era o território de des-no e disciplina de todos os pos de indesejados 3, agora, sua existência,

enquanto estrutura material, tornou-se obsoleta. Obviamente, isso nãosigni ca que tenhamos superado nossos “desejos de manicômio”, comoiden caram Leila Machado e Maria Cris na Lavrador (2001), ao se refe-rirem especi camente ao processo de aprisionamento dos técnicos às ca-tegorias tradicionais que con guram o estereó po do louco, que, em suamaterialização co diana, se expressam como formas de reconhecimentoperverso (Lima, 2010) e, quando muito, tentam resolver problemas de or-dem social com a administração de medicamentos (Szasz, 2008, p. 7).

O que se transformou, na verdade, ao longo dos anos, não foi a ide-ologia psiquiátrica e a implementação de um novo projeto de subversãoda ins tuição psiquiátrica, mas sim a apresentação de novos planos, maishumanizados, em relação ao tratamento des nado às pessoas com so-frimento mental. Lembrando que o plano é apenas um momento frag-mentário e provisório do projeto, o momento técnico de uma a vidade,

quando se determina a forma de trabalho mais e ciente, uma etapa paraa implementação de programa 4. No que tange à ins tuição psiquiátrica,muitos planos foram criados e abandonados, programas foram implemen-tados e ultrapassados, mas o projeto permaneceu (Lima, 2010).

O Estado tem recebido apoio e apoiado os movimentos de luta an -manicomial, seja porque muitos dos representantes do governo são an -gos militantes, seja porque o apoio às suas polí cas representa (pelo me-nos hipote camente) uma melhoria nos aparelhos públicos de cuidado,

garan a de medicamentos, previdência e aumento de empregos para os3 Uma vez que não se restringia ao internamento dos chamados insanos, mas também de

homossexuais, militantes polí cos, mães solteiras, alcoolistas, mendigos, negros, pobres,pessoas sem documentos etc., como, mostra-nos, por exemplo, a pesquisa de Daniela Arbex(2013), ao apresentar os horrores da Colônia de Barbacena – MG.

4 Conforme foi assinalado por Cornelius Castoriadis (1982, p. 97), o programa é a “concre za-ção provisória dos obje vos do projeto quanto aos pontos considerados essenciais nas cir-cunstâncias dadas, na medida em que sua realização provocaria ou facilitaria, por sua própriadinâmica, a realização do conjunto”.

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Lima, A. F. (2015). Desafos contemporâneos do cuidado na saúde mental

técnicos, ou ainda, por força das pressões da Corte Interamericana de Di-reitos Humanos, após a condenação do Brasil no caso de Damião XimenesLopes como país violador dos direitos humanos (Pontes, 2015).

Entretanto, o reconhecimento das complexidades e dos desa os queproduzem o sofrimento psicossocial ainda tem se dado a par r de uma re-dução do fenômeno do sofrimento à condição de problema técnico-assis-tencial, reproduzida pela compreensão de que existe uma doença passívelde ser iden cada e medicalizada pela psiquiatria, que direciona e aindaorganiza muitas vezes os serviços subs tu vos. Além disso, percebe-seatualmente a persistência de um abandono de atenção e inves mentos,em todos os níveis, especialmente na dimensão sócio-cultural, “apesar deapresentar uma relevância fundamental na proposta de desins tucionali-zação e reinserção da loucura” (Dimenstein & Liberato, 2009, p. 8). Carên-cia que, inclusive, também se faz evidente no meio acadêmico, conformeassinalam os trabalhos de Sardigursky e Tavares (1998); Colvero, Ide, e Ro-lim (2004); Alverga e Dimenstein (2006); Fontes (2007); Lavrador (2007);Lima, (2010); Koda, (2002); Kyrillos, (2007) e Aragaki, (2006), entre outros.

É nesse sen do que concordo com Bárbara Cabral quando esta nosfala que a “norma zação de modos de vida, com classi cações pouco pre-cisas ou evidentes, calcadas na oposição normal-patológico, segue sendo

uma grande questão a que se deve atentar” (Cabral, 2015, p. 102). Supe-rar o que foi denominado como “prá ca e/ou pensamento manicomial”con nua a ser, a meu ver, um dos grandes desa os do cuidado em saúdee requer, como o tempo tem ensinado, uma ruptura com a obje cação,o trabalho da história, a constante luta de direitos, a mediação das expe-riências e da potência.

Para tanto, é preciso que superemos ainda muitas coisas, a começarpela coragem de realizar a crí ca quali cada das ins tuições que foramcriadas a par r de nossas conquistas históricas no território da saúde cole-

va. É certo que tais ins tuições são a expressão da força de nossa vontadefrente aos problemas de nosso tempo, mas nas condições atuais do capita-lismo e progresso técnico, como espero ter discu do, elas não podem maisser tratadas como promotoras de potência e/ou emancipação. É precisoter coragem de olhar para o abismo que re ete a escuridão de nosso tem-po, como algo que nos diz respeito e não cessa de interpelar-nos.

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Psicologia social e os atuais desafos é co-polí cos no Brasil

Judicialização da saúde: anotações a par r de MichelFoucault

Flávia Cris na Silveira Lemos

O presente capítulo pretende analisar prá cas da judicialização dasaúde, no presente, a par r de algumas ferramentas de Michel Foucault.A rma-se que a in ação jurídica na polí ca de saúde está ligada a umconjunto de efeitos do disposi vo de segurança, na sociedade contem-

porânea. Foucault (2008a) assinalou que o poder pastoral era a gestão doindivíduo e do grupo, simultaneamente, em que o pastor daria a vida pelaovelha e cuidaria de uma delas com a mesma importância que resolveriazelar pelo rebanho.

Os hebreus, na An guidade, exerciam um poder, na modalidadedenominada de pastoral, com o obje vo de salvar almas, séculos depoisde Cristo, na Idade Média. O poder pastoral fora apropriado pela IgrejaCatólica e pelos Protestan smos variados, na lógica carita va e doutrina-dora das comunidades religiosas, ins tuídas em vilas e cidades nascentes.Esse mecanismo foi recorrentemente u lizado, para governar as condutasdo rebanho. A racionalidade dos cris anismos na regulação das condutasfoi apropriada pelos adeptos do liberalismo u litarista, paralelamente àemergência do capitalismo, na modernidade.

A par r de então, o poder pastoral foi deslocado para a condução dapopulação e dos indivíduos, em nome da segurança e na gestão dos ter-ritórios. Mas, ao invés de salvar almas, passou a ser um governo voltadoà salvação da saúde, na criação do Estado Moderno, da medicina social eda economia polí ca liberal, em que os es los de exis r se tornaram em-preendimentos e inves mentos, no mercado da vida (Foucault, 2008a). Agovernamentalidade das condutas se tornou, assim, um modo de poder,baseado na segurança e na in ação jurídica, associada, cada vez mais, aosprocessos de medicalização das condutas, de cálculos de custo e bene -cios dos mínimos atos às decisões macropolí cas, em nome da vida, dadefesa da sociedade e da segurança (Foucault, 1979).

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Lemos, F. C. S. (2015). Judicialização da saúde: anotações a par r de Michel Foucault

O Estado Democrá co de Direito nasce juntamente com a emer-gência de uma sociedade de direitos e, correlata extensão da medicinasocial enquanto polí ca securitária, pautada no governo da saúde dapopulação e dos indivíduos, em prol do aumento de capacidades e dosdesempenhos.

Ainda é possível ressaltar o quanto a segurança está atrelada ao ne-oliberalismo que investe empresarialmente nas relações e na soberania jurídica, cons tu va do sujeito de direitos. A produção da saúde ocorrena esfera da criação de autonomia e do a vismo dos sujeitos biológicos,usuários de um sistema de saúde, organizados em comitês e comunida-des, avaliados em grupos de risco e perigo, mapeados em dados demográ-

cos, calculados em probabilidades e geridos pela vigilância das condutasco dianas e das mais amplas. Esses corpos, denominados de biocidadãos,seriam demandantes do acesso à saúde, ao exercício de capacidades e àpossibilidade de escolher formas de viver.

A gestão de riscos e perigos é colocada no centro das encomendaspelo direito à saúde e dispara uma in ação judicial como pedido de se-gurança. Problema zar tal racionalidade produtora de biocidadanias poruma biole gimidade é uma preocupação. Este ensaio teórico tem o ob- je vo de explicitar algumas indagações sobre a cons tuição do que po-

deria ser denominado le gimidade biológica. Dessa maneira, a rma-seo quanto o acesso à cidadania tem se con gurado pelo direito à vida. Osujeito de direitos passou a ser um sujeito vivente (Foucault, 1988; 1999).A obje vação da cidadania biológica está vinculada à produção do EstadoDemocrá co de Direito, funcionando pela racionalidade de segurança.

O direito à vida: saúde e cidadania como capacidade

A vida, como valor, é efeito de um conjunto de prá cas, baseadasna entrada da vida na história dos corpos enquanto espécie biológica. Ogoverno da população se tornou um procedimento fazer viver e deixarmorrer, em que a saúde é uma racionalidade fundamental para o EstadoModerno. O contrato social é ar culado à gestão calculada da vida, tan-to pela probabilidade esta s ca quanto por regras jurídicas, associadas àmedicina social (Foucault, 1988).

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Psicologia social e os atuais desafos é co-polí cos no Brasil

O direito à saúde ganha destaque na legi midade biológica, porqueé regulador da expansão da medicina social simultaneamente às prá cas jurídicas de defesa da sociedade e para promover a segurança. No Brasil,na Cons tuição de 1988, a saúde é de nida como direito do cidadão edever do Estado. Dessa forma, cuidar da saúde passou a ser uma obriga-ção do Estado Moderno, e receber o cuidado em saúde, por exemplo, setornou um direito do cidadão, que tem se desdobrado em uma série decon ngências e encomendas, disputadas no espaço do Poder Judiciário,no tempo presente (Bobbio, 1992).

Os indicadores de gestão da vida ganharam espaço no planejamentodas polí cas públicas, e os aparatos nomeados de saúde se tornam umdisposi vo que asseguraria supostamente o acesso aos direitos de trata-mento, aos medicamentos, às cirurgias, aos seguros, às coberturas de in-ternação (Scliar, 2007). Ser livre é ter saúde e conseguir usar a autonomia jurídica de cidadão em bene cio do aumento da vida a va e autônoma,mediada por tecnologias econômicas e polí cas, como condição para asalvação da civilização (Sen, 2000). A saúde se tornou a verdadeira religiãoda modernidade, conforme Foucault (2008a).

Por isso, Castel (1987) assinalou o quanto a perícia ganhou relevân-cia, nos encaminhamentos e nas triagens dos acontecimentos reme dos à

lógica da saúde e à ampliação dos desempenhos, em inúmeras a vidadesco dianas pela educação e por meio da assistência social compensatóriade riscos e perigos.

Já não há problema social que não seja tratado em termos de risco; higiene,saúde, poluição, inadaptação, delinquência. E a ins tuição da segurança so-cial faz do seguro a própria forma da relação social. Movimento geral senãode normalização, pelo menos de norma vação a par r da tecnologia dorisco. Tal como não há norma que não seja social, não poderia exis r normaisolada. Uma norma nunca se refere senão a uma outra norma da qual, por

isso mesmo, depende. As normas comunicam entre si, de um nível ou deum espaço a outro, de acordo com uma espécie de lógica modular. Umanorma encontra o seu sen do numa outra norma: só uma norma pode darvalor norma vo à outra norma. (Ewald, 1993, pp. 106-107)

Os exames, tais como diagnós cos, anamneses, triagens, períciase pareceres de especialistas vão balizando a organização das prá cas de

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Lemos, F. C. S. (2015). Judicialização da saúde: anotações a par r de Michel Foucault

saúde, entrecortadas pelo risco e perigo de adoecer, de demandar trata-mentos, do acesso de medicamentos, da reivindicação de cotas em con-cursos baseados em diagnós cos especí cos e de uma série de encomen-das face aos abusos de planos de saúde e di culdades as mais diversas noplano da seguridade social.

O cálculo dos denominados fatores de risco foi construído pela epi-demiologia, pela demogra a, pela geogra a polí ca, pela promoção dasaúde, pela psicologia do desenvolvimento e psiquiatria preven va comu-nitária. O mercado de direito à saúde cresce, na mesma medida em quesão reivindicados os cuidados variados, em nome da vida a ser man da,promovida, garan da e defendida (Castel, 1987; Foucault, 1979).

O impera vo de saúde, na sociedade contemporânea, é efeito deum disposi vo formado por amplo mercado, como uma religião do cui-dado biomédico, adjacente ao recurso judicializante (Foucault, 2008b). Aprópria par cipação social opera pelo pedido de mais saúde e mais vida.As relações sociais e os processos de subje vidade vão ganhando nuances jurídicas e biológicas, no plano da construção de uma cidadania biomédi-ca (Ortega, 2004).

A busca rápida e, muitas vezes, em primeira instância, de ações noPoder Judiciário vem acontecendo, imanente à criação de subje vidades

denunciantes, protegidas e ví mas de danos, em uma sociedade de se-gurança. A in ação jurídica anda junto com a abertura do mercado desaúde, mediado pelas regras do Estado Neoliberal. Os critérios e as regu-lamentações dos planos de saúde, do funcionamento das polí cas sociaise das prioridades em atendimentos vinculadas às normas sociais, as quaisoperam a gestão de riscos e perigos, em saúde e segurança. As prá cassociais contemporâneas têm forjado subje vidades que buscam judiciali-zar as tensões, ao invés de pensar e conversar sob a égide dos desenten-dimentos (Foucault, 2008a; 2008b).

O risco de usar um medicamento e de se submeter a tratamento, oacesso a um exame especí co, o custo de adotar um po de cuidado, ochamado inves mento em patentes, as dimensões bioé cas das pesqui-sas em saúde, a denominada inovação tecnológica e as patentes de medi-camentos, a educação compensatória e a prevenção de doenças variadassão diversas faces de um complexo biopolí co contemporâneo, pautadona oferta de segurança para viver e fazer a vida proliferar (Rose, 2013).

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Psicologia social e os atuais desafos é co-polí cos no Brasil

Os riscos, na verdade, não existem, são fenômenos criados pelas compa-nhias de seguro. Os riscos são a obje vação de determinados aconteci-mentos: morte, acidente, ferimento, perda, acaso, sua regularidade, notempo e no espaço ... As companhias de seguro e as polí cas previden-

ciárias passam a dar o referencial para as perdas do sistema capitalista enanceiro e, nesse sen do, servem de modelo para as prá cas de observa-

ção e as prá cas judiciais. Os sistemas de observação abrem um campo devisibilidade no qual o que conta são as probabilidades, os cenários em quedeterminadas con gurações e acontecimentos podem penetrar na ordemdo cálculo racional. O risco é a colonização do futuro; ele labora as minú-cias, os detalhes das con gurações numéricas do passado e do presente. Odelito, as violências, as depredações, as greves, as rebeliões, assim comoo incêndio, o furacão, a avalancha e o desmoronamento entram na ordem

do seguro. O crime que se tornara desvio agora é risco, não é mais constru-ção única do jurídico nem das disciplinas. (Souza, 2006, p. 251)

Castel (1987) salientava que, cada vez mais, a gestão de riscos se-ria pensada como aumento das oportunidades acessadas, por meio daintensi cação dos desempenhos realizados e potencializados. O direitoàs oportunidades de trabalho, educação, saúde e assistência social fun-cionaria pelo vetor da performance, agenciado em nome da segurança edo crescimento das capacidades produ vas. Alargar a faixa de liberdadecom a manutenção da segurança seria um imenso desa o para os paí-ses, nessa racionalidade. O sujeito de direito se torna também um sujeitoeconômico, de sorte que a soberania do Estado, em termos do direitopúblico, se entrecruza com os interesses econômicos de homem empre-sário de si mesmo.

Foucault (2008b) de ne governo como prá cas concretas que estãosustentadas em determinadas racionalidades dinâmicas, heterogêneas eentrecruzadas, singulares, cons tuindo acontecimentos em uma rede de

relações móveis e múl plas, em deslocamento e em composição perpé-tua. O governo é de condutas e funciona tal como uma arte de governare não como atos apenas do Estado versus uma suposta unidade chamadasociedade civil organizada, como se ambos fossem entes universais.

Governar de certa maneira e com tá cas especí cas, perguntandoa melhor forma de agir, pensando o tempo, a intensidade das prá cas eos corpos aos quais essas estratégias de governo visam a ngir e de que

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Lemos, F. C. S. (2015). Judicialização da saúde: anotações a par r de Michel Foucault

modo devem ser realizadas para alcançar alguns resultados esperados,em contextos de complexidade. Por exemplo, os das medidas denomina-das de riscos e perigos a calcular, no plano neoliberal e mundial integrado,que é o da atualidade, é uma questão polí ca, econômica, histórica, lo-só ca e cultural do presente e, de alguns séculos atrás, com suas descon-

nuidades e con nuidades.

Performances judicializadas em nome da saúde e do desempenho

Uma nova categoria emerge nessa maneira de organizar a vida: aracionalidade da possibilidade de escolher, de ter autonomia e garan r asaúde e a ampliação da vida por meio dos direitos e da modulação das ca-pacidades de manter e fazer agir os potenciais supostamente chamadosde humanos a desenvolver e comercializar (Fassin, 2001). Ser privado demelhorar as capacidades e/ou ser impedido de acessar direitos ligados aogoverno da vida, com liberdade de negociação das prá cas de cuidado dasaúde, traz um campo de problemá cas, na biopolí ca, designadas comodisposi vo de segurança.

Perder capacidades se torna uma disfunção social, a qual impacta aeconomia, a polí ca, a segurança, o mercado de interesses empresariais,as decisões jurídicas, a limitação das liberdades e dos desenvolvimentossociais e culturais (Castel, 1987; Foucault, 2008b). Não haveria direitosem liberdade, para Sen (2000), e só poderia ocorrer aumento da produ-ção e mobilidade do mercado pela gerência das capacidades ampliadas.

O direito à saúde é relacionado às condições sociais e econômicas,às condições de moradia, ao acesso à alimentação e à educação e tam-bém a uma polí ca de saneamento básico e segurança (Camargo, 2007).Governar em nome da vida se torna, assim, uma biopolí ca, organiza-

da pela visão de que há uma cidadania biológica a cuidar com atenção.Uma polí ca econômica é cons tuída, especi camente enquanto uminves mento na mercan lização da saúde e no direito à vida, simulta-neamente.

Em uma perspec va de empresariamento das condições de gover-no em nome do aumento dos direitos à saúde são empreendidas inú-meras prá cas chamadas de biocidadania. Fazer viver e deixar morrer

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Psicologia social e os atuais desafos é co-polí cos no Brasil

é um jogo permanente de cálculo de direitos e de mercado, no campoda segurança, território e população, do Estado Democrá co de Direito,na atualidade. No bojo das tensões entre interesses variados, no mer-cado da saúde e na luta por direito à vida, observam-se a formação desociedades pautadas na cultura do desempenho, das performances, daspopulações ágeis, da busca dos modos saudáveis de exis r, da gestão dascapazes de fazer escolhas e arcar com suas consequências; em um jogoininterrupto de mediações do contrato social pelas regras jurídicas dapolí ca pública e privada de governo das condutas (Rose, 2011; 2013).Um dos efeitos dessas prá cas é a judicialização da saúde, que passou aocorrer sistema camente, no Brasil, nos úl mos anos.

Para Scliar (2007), a saúde é produzida por um campo de garan assem as quais não é possível promover cuidado a vo de si, cons tuído pe-las polí cas públicas, sendo integradas, intersetoriais e sustentadas porum eixo de equidade. Um aumento signi ca vo de processos judiciais,em prol do acesso à saúde, é resultante do cálculo dos danos causadospela ausência da garan a da saúde, prevista como obrigação do Estadona Cons tuição Brasileira de 1988. Nesse aspecto, a cidadania biológi-ca é colocada em cena, através da biopolí ca contemporânea, forjandosubje vidades biocidadãs e a vas na solicitação da polí ca da vida. Emnome do que poderia ser designado como viver com qualidade, a par rdas regras e dos valores estabelecidos pelo disposi vo de segurança, no-vas encomendas são criadas para promover um bem comum baseado noEstado Democrá co de Direito, atrelado à busca da biopolí ca enquantosegurança (Foucault, 2008b).

Na relação entre cidadania e biologia, veri cam-se inves mentosde uma economia polí ca neoliberal, amparada na lei e na ordem bioju-dicial (Foucault, 2008a; 2008b). Um disposi vo é forjado por leis, normas,documentos, equipamentos, saberes, técnicos, operadores do Direito,tecnologias, criação de casos, cálculos matemá cos, análise de custos ebene cios, gestão do território e das comunidades etc. (Foucault, 2004;2008b). Em O nascimento da biopolí ca e em Segurança, território e po - pulação, Foucault (2008a; 2008b) demarca que a questão a ser gerida éa vida com segurança, em um meio e diante dos uxos de circulação emum território, pois neste circulam não apenas pessoas e populações, masprodutos e informações, tecnologias e valores.

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Lemos, F. C. S. (2015). Judicialização da saúde: anotações a par r de Michel Foucault

Disciplinar tais circuitos e organizá-los demanda normas compar-lhadas e negociadas em fóruns mul laterais, bilaterais, em segmentos

com conselhos e representantes/delegados que vão efetuar a todo instan-te tomadas de decisão, nas polí cas, em nome da suposta defesa social.Nesse aspecto, opera-se a governamentalidade pela ordem e lei, na buscainterminável de mais segurança, sendo que esta é de nida como um:

Conjunto cons tuído pelas ins tuições, procedimentos, análises e re e-xões, cálculos e tá cas que permitem exercer essa forma bastante especí -ca e complexa de poder, que tem por alvo a população, como forma princi-pal de saber a economia polí ca e por instrumentos técnicos essenciais osdisposi vos de segurança. (Foucault, 1979, pp. 291-292)

Efe va-se o controle social das polí cas públicas, por meio da pre-sença em conselhos e conferências de direitos, a proposição de projetosde lei e a tenta va de criar uma formação, sustentada em biodiagnós cosrelacionados à perícia técnica judicial. Castel (1987) salienta essa prá -ca de avaliação, baseada em especialistas e técnicas de gestão de riscos,mediando decisões e encaminhamentos na esfera dos direitos e das com-pensações de danos e perdas sofridos por alguma falta de acesso às opor-tunidades de aumentar e modular capacidades produ vamente e comrentabilidade, no mercado dos direitos.

A busca da sociabilidade, pautada na saúde e pelo desempenho ex-pandido no trabalho, na família e na educação, vem crescendo, em váriospaíses, tendo ganhado dimensões gigantescas enquanto um negócio alta-mente rentável no mercado da saúde e signi ca vo na esfera pro ssionaldo Direito (Rose, 2013). Os pro ssionais das mais variadas áreas, comoos médicos sanitaristas, os psiquiatras da reforma, os trabalhadores so-ciais, os psicólogos e psicanalistas, pedagogos dos movimentos de base eeducação popular, ar stas, lideranças comunitárias, familiares e usuários

da rede de saúde mental e cole va intersetorial e integrada, assumiramo compromisso de forjar outras maneiras de cuidar orientadas para osdireitos humanos.

A tenta va de criar prá cas de redução de danos, de organizaçãomilitante por um atendimento com par cipação social, opera um puni -vismo à esquerda, com a encomenda de jus ça como vingança e retribui-ção dos danos sofridos. A judicialização antecipada realiza a busca pela

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Psicologia social e os atuais desafos é co-polí cos no Brasil

ideia de restauração de uma paz c cia (Miller & Rose, 2012). Muitos mo-vimentos sociais têm lutado pela punição do Estado e de grupos sociais,colocando a problemá ca da saúde mental e cole va. No plano da ordem jurídica, incen va-se a in ação jurídica como resposta à sociedade de la-cunas nas coberturas dos direitos, implementados em polí cas sociais edo acesso aos mesmos, em diferentes territórios e por segmentos da po-pulação (Nunes, 2009).

Desse modo, as pessoas não só recorrem, cada vez mais, ao Judici-ário, a m de que se cumpram as leis, mas também há uma expansão dacapacidade norma va do sistema jurídico, com a criação de leis que tradu-zam os interesses – individuais ou de grupos – em direitos. Por exemplo,a encomenda pela equidade na jus ça opera pela procura de compensa-

ções judiciais para diferentes grupos, de nidos como vulneráveis e que sesentem prejudicados, na esfera da oferta de oportunidades.

Com efeito, uma judicialização é acionada na lógica de reparaçãodos danos dessa racionalidade de equiparação face aos prejuízos nasperdas de oportunidades, calculadas, em comparação com outros gru-pos sociais. Ademais, a reivindicação da reparação de danos é de nidade jus ça equita va e se tornou um princípio do Sistema Único de Saúde,no Brasil. Um caso para exempli carmos é o da avaliação dos danos à

saúde, em função dos preconceitos sofridos e de várias discriminaçõesnega vas vividas pelos grupos es gma zados, tais como: negros, mulhe-res, povos indígenas, pessoas com diagnós cos de sofrimento psíquicoe também de portadoras de necessidades especiais etc. A busca dessesgrupos por uma con nua demanda de direitos à reparação é agenciadapor uma prá ca de judicialização, no presente do governo da saúde, empolí cas a rma vas.

Assim, a busca de equidade e acesso à saúde pela via judicial temcon gurado uma encomenda biopolí ca, pautada em um disposi vo desegurança pela judicialização da vida. As prá cas jurídicas são propostascomo uma suposta solução para reivindicar o direito à saúde e a governara vida. A reivindicação de polí cas sociais reparadoras dos danos sofridosvem ganhando espaço na sociedade e grande incidência polí ca. A nãogaran a de acesso aos medicamentos e tratamentos, por exemplo, estádesembocando em lutas pela compensação de danos e faltas de acesso àsoportunidades de desenvolver capacidades, de tratar perdas de desempe-

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nhos por variadas situações, avaliadas como incapacitantes por peritos danorma e gestores de riscos.

A saúde e o direito vão ganhando dimensões de segurança e defesa

da sociedade, no fazer viver e deixar morrer. Recorrer ao Poder Judiciárioe ao saber médico-psicológico, a m de modular tensões e reivindicar di-reitos à vida, traz uma oferta anterior da promessa de seguridade frustra-da de acesso às polí cas públicas. O ressen mento de não ter garan doum direito à saúde e um cuidado com a vida promove mais judicialização eencomenda de compensação discriminatória pela equidade jurídica comopauta de movimentos sociais. A segurança se efetua basicamente na re-lação entre gestão da saúde e governo da vida, ao circular no meio e a serelacionar com os outros.

A emergência do valor de viver e por um longo tempo com umaperspec va de acessos variados às polí cas públicas foi resultante de umasérie de acontecimentos, da modernidade. Entre os quais, as promessasdas revoluções francesa, inglesa e norte-americana de fazer valer os direi-tos civis, polí cos e sociais como princípios fundamentais de um EstadoDemocrá co de Direitos. As ressonâncias dessas promessas se materiali-zaram na criação dos ideários republicanos e liberais da igualdade, da fra-ternidade e da liberdade, os quais foram modulados pelo aparecimento

da polí ca do direito à vida, na história (Foucault, 1988).A economia neoliberal passa a ser gerida na era dos direitos pelo go-

verno da saúde como busca permanente de um bem-estar, como qualidadede vida e como inves mento, em uma dívida in nda de mais saúde e maisacesso a tudo que esse direito pode propiciar. Santos (1996) ressalta comoo protagonismo do Judiciário, nas democracias contemporâneas, não é re-cente, em termos de soberania jurídica, nesse caso (Foucault, 1979).

A diferença do comportamento dos tribunais, no passado, era o altograu de conservadorismo e de suas intervenções ocorrerem pontualmen-te (Santos, 1996) e, hoje, há um protagonismo jurídico, o qual aponta parauma in ação do direito, na sociedade, alçando a vida como direito uma judicialização da polí ca e da economia em nome da gestão da saúde e dagovernamentalidade. Prado (2012) pondera que a jus ça deixa de ser li -gio entre indivíduos para ser um problema de manutenção de soberaniapela regulação do Poder Judiciário e da cidadania biológica, na história.

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Psicologia social e os atuais desafos é co-polí cos no Brasil

O Estado Democrá co de Direito realizou um controle sobre todos esobre cada um, de modo a aumentar o governo de sujeitos de direitos quesão seres viventes. Dessa forma, não só há uma intervenção na maneirade estar vivo, mas também há uma intervenção que dita como se deveviver (Foucault, 1999). O Estado apenas é um regulador como uma reali-dade compósita e plural e não uma en dade abstrata organizada somentepelo contrato social de soberania; apesar desse arcabouço, possibilita de-

nições do Direito Público para mediar relações entre Estado e socieda-de. Nesse sen do, o governo é uma prá ca a delimitar regras de um jogonegociadas de forma permanente por todos os que integram a sociedade.

De alguma maneira, implica movimentos, posições e estratégias re-lacionais, móveis e históricas sempre tensas e de resistência, com tenta -vas de submissão frustradas, já que opera por meio de forças com forças,forças contra forças, forças em composição com outras e em deslocamen-tos ininterruptos (Foucault, 2008b). No caso especí co da biopolí ca eda judicialização, estas vão sendo agenciadas no plano dos contratos deempresariamento da vida que se tornam cada vez mais recorrentes, namedida em que somos incen vados a contratar e a estabelecer cláusulaspara os chamados empreendimentos co dianos.

A forma jurídica geral que garan a um sistema de direitos em princípio

igualitários era sustentada por esses mecanismos miúdos, co dianos e si-cos, por todos esses sistemas de micropoder essencialmente inigualitáriose assimétricos que cons tuem as disciplinas .... Aparentemente, as discipli-nas não cons tuem nada mais que um infradireito. Parecem prolongar, atéum nível in nitesimal das existências singulares, as formas gerais de nidaspelo direito. (Foucault, 1999, p. 183)

A luta pela vida e pela sua defesa passou a ser um assunto do Direitoe da democracia, com o aumento indiscriminado de encomendas por jus-

ça, medida por tribunais da lei e da norma permanentes, em um clamorpela lei e ordem, pela prisão e pelo recrudescimento penal, em nome davida. Os discursos de proteção/prevenção andam lado a lado com discur-sos e prá cas que preveem penas mais duras. É o encarceramento emnome da proteção e em nome da vida.

As demandas por direitos são realizadas juntamente no plano daeconomia polí ca e das racionalidades governamentais que tais prá cas

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Lemos, F. C. S. (2015). Judicialização da saúde: anotações a par r de Michel Foucault

de gestão da conduta mobilizam, em termos de impacto econômico epolí co mundial, nos Estados governamentalizados e em contextos ne-oliberais, nos quais os direitos humanos guram em um plano do Estadode Direito soberano, em arranjos sobrepostos e ar culados com a econo-mia polí ca neoliberal (Foucault, 2008b). Assim, os chamados indicadoresde crime, de cultura, de saúde, de educação, de habitação, de emprego,de saneamento básico, de acesso à cidade e ao transporte são maneirasde governar condutas em nome da baliza entre liberdade e segurança deuma sociedade neoliberal e democrá ca, que operam por meio da gover-namentalidade.

Considerações nais

As forças rea vas entram em cena e são mais solicitadas com proe-minência pela racionalidade da segurança, a qual amplia a judicialização,de sorte que a biocidadania é um dos seus efeitos. O li gio pelo jogo denormas e leis, mediado pela polí ca da vida e pelo empresariamento dasrelações, despontecializa a trama das tensões e da diferença como possi-bilidade de existência. A mercan lização da vida e da saúde faz parte docálculo de custos e bene cios neoliberais, em que a polí ca como dissi-dência e complexidade é esvaziada. O tempo é acelerado, na economiapolí ca dos inves mentos da saúde como dívida, e os corpos entram emum controle social pelo regramento da vida enquanto direito e da saúdecomo disputa judicial.

Nesse cenário, uma das encomendas mais reivindicadas é a criaçãode mais e mais leis e mais punição. Acredita-se que uma proliferação le-galista e puni va dará conta de aplacar o trágico da existência e amenizara tensão das relações a rma vas. É como se lutar pela liberdade fora doesquadro da lei produzisse medo e um pânico social cada vez mais ali-mentado pela encomenda de mais e mais direitos, de maior regulaçãosecuritária.

Enquanto os sistemas jurídicos quali cam os sujeitos de direito, segundonormas universais, as disciplinas caracterizam, classi cam, especializam;distribuem ao longo de uma escala, repartem em torno de uma norma,hierarquizam os indivíduos em relação uns aos outros, e, levando ao limite,desquali cam e invalidam. (Foucault, 1999, p. 183)

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Psicologia social e os atuais desafos é co-polí cos no Brasil

Apenas as populações consideradas vulneráveis receberão polí cascompensatórias atreladas aos indicadores de equidade social e de jus -ça caracterizados por cotas e níveis de pobreza diferenciados. Os gover-nantes e os governados negociam, avaliam e de nem juntos, por diversosacordos, discussões, concessões recíprocas, transações e agendas cons-truídas, as maneiras de serem governados, por quem serão e como serão,de que modo o serão e, ainda, até quando e em que medida. O PoderJudiciário parece converter-se em uma espécie de possibilidade inicial eúnica, para a qual convergem todas as preocupações sociais.

Os discursos em nome da diminuição de de ciências e aumento dasperformances ins tuem terapias para variados níveis de supostas anor-malidades e desvios de desempenho. Em meio a este campo de questões,o pro ssional da saúde é um diagnos cador que julga por perícia com-portamentos em níveis de desvio das normas e os registra em dossiês,em laudos, o cios de encaminhamentos e prescrições de tratamentos ecompensações de de cit (Castel, 1987).

A judicialização é um acontecimento, o qual se manifesta na ascen-são das democracias: representa va e par cipa va, embora de modo he-terogêneo em ambas. Foucault (1999) já havia assinalado que a guerra éa polí ca con nuada por outros meios e que, quando estamos suposta-

mente em paz, não estamos de fato, porque há jogos de poder-saber e degovernamentalidade permanentes que não cessam nunca.

O cálculo da seguridade não se restringe somente aos direitos, mes-mo no Estado de Direito, porque o que vem antes, para a racionalida-de neoliberal que o sustenta, é a economia polí ca, e os direitos só sãoacionados na medida em que poderão ser agenciados pelo mercado, emespecial em sua dimensão de ordem e lei. Por isto, a oferta de segurança ede liberdade oscila em paradoxos de governo das condutas, em nome da

defesa da sociedade.Concluindo, é nesse sen do que Castel (1987) declara que o esta-

tuto do diagnós co de de ciência confere um status e um lugar social,bem como de ne circuitos especiais e direitos especí cos. A polí ca so-cial é organizada como um mercado dos desadaptados, dos suspeitos edos diagnos cados com anomalias diversas, racionalizados em bancos dedados. O Estado e a sociedade são chamados a funcionar como empresas

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Lemos, F. C. S. (2015). Judicialização da saúde: anotações a par r de Michel Foucault

que devem ter máxima e ciência, e cácia e produção, avaliando desem-penhos, aumentando performances, exaltando méritos, fomentando as-sociacionismos e a inicia va privada.

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Cabral, B. E. B. (2015). Redes de cuidado e formação/atuação de psicólogos: como “amarrar

Redes de cuidado e formação/atuação de psicólogos:como “amarrar buracos”?

Barbara Eleonora Bezerra Cabral

Para que essa comunicação, a nal?

Dentre as mais ins gantes de nições de “rede” com que me deparei

ao longo do meu processo forma vo, na busca de me cons tuir psicóloga/pro ssional de saúde e, nos úl mos sete anos, docente – obviamente ten-do sempre como pano de fundo a minha formação permanente e in ndá-vel como pessoa –, está uma anedota apresentada por Guimarães Rosa:“Uma porção de buracos, amarrados com barbante...” 1.

Essa foi seguramente a primeira lembrança que ve ao começar apreparar este relato, ins gada pelo tema: “Desa os para a produção deredes de cuidado em saúde”, a ser apresentado e deba do em mais um

Encontro Nacional da ABRAPSO (o XVIII), no Simpósio de Polí cas Públicase Saúde Cole va. Lancei-me o desa o de pensar como a Psicologia vemse situando nesse cenário, ou melhor, como tenho percebido esses movi-mentos em relação à atuação do psicólogo.

Fiz, então, a opção de elaborar um texto de caráter medita vo emtorno do tema, recorrendo às minhas memórias rela vas à minha inser-ção no campo das polí cas públicas e recortando a minha atuação comoprofessora em universidade pública federal, rela vamente recente, emque sigo me sen ndo trabalhadora do SUS e rea rmando a necessidadede um grau de militância no exercício docente. De algum modo, o convitea este Simpósio me garan u a oportunidade de revisitar essa trajetória,iden cando alguns incômodos que me parecem indicar, ainda, a impor-tância de debates e reposicionamentos rela vos à atuação da Psicologia

1 Anedota contada no prefácio in tulado Aletria e Hermenêu ca, em Tutaméia (Terceiras estó-rias), de Guimarães Rosa, na página 37 de sua 8ª edição, pela Editora Nova Fronteira do Riode Janeiro.

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Psicologia social e os atuais desafos é co-polí cos no Brasil

no contexto das polí cas públicas e ar culando algumas notas crí cas apar r desses marcadores aos desa os da tessitura de redes de cuidado.

Não me preocupei em dar ao texto um caráter conceitual, embora

visite alguns conceitos e tenha referências que dialogam ou fundamen-tam cada provocação apresentada, as quais explicitarei na medida em queisso se tornar imprescindível. A rigor, inves em uma escrita mais uida,conectada à dimensão da oralidade, do conto, da narra va do que vivi (evivo) nesse âmbito de atuação, já imaginando a minha comunicação noevento. Decidi, outrossim, resgatar produções anteriores, em especial mi-nhas pesquisas de mestrado e doutorado. Pretendi, desse modo, elaborarum texto ncado na experiência, atentando ao que aconteceu comigo – e,sobretudo, o que me tocou – nos diversos encontros co dianos, seja emsala de aula, nos momentos de pesquisa, extensão, supervisão ou reuni-ões diversas com colegas professores ou pro ssionais da rede de saúde.Desde a minha entrada na universidade, como professora do Colegiado dePsicologia, tenho delineado um plano de trabalho que inclui a graduaçãoem Psicologia e as residências mul pro ssionais em saúde, além de inser-ção em projetos de extensão e pesquisa, que adota como caracterís ca ainterface da atuação do psicólogo (e outros pro ssionais de saúde) com asredes públicas de atenção.

Apesar de mergulhar em um dado plano interpreta vo/re exivo,como costuma se caracterizar a escrita, esforcei-me por não me afastardo plano acontecimental/experiencial, guiando-me pela compreensãode experiência apresentada por Larrosa (2002). A escrita deste texto foi,assim, uma chance de me distanciar da correria, item presente no cardá-pio de cada dia, e sen r o sabor do que faço, rea rmando-me como umadocente que decidiu assumir o protagonismo em defesa do público e deuma formação que se alimente do mantra “aproximação ensino-serviço”,atentando à importância de manter a universidade em conexão direta eviva com o real da produção de cuidado nos diversos disposi vos das re-des delineadas pelas polí cas públicas.

Fundamental esclarecer que o tema da formação – especialmentedo pro ssional de saúde, mas compreendendo saúde do modo mais alar-gado possível – tem se tornado central em minha trajetória docente epenso que, nisso, posso ter encontrado um certo ponto de equilíbrio en-tre ser docente e ainda me perceber como trabalhadora do SUS. Em geral,

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Cabral, B. E. B. (2015). Redes de cuidado e formação/atuação de psicólogos: como “amarrar

a frase “O SUS é lindo na teoria, porém, na prá ca...” é entoada em diver-sas con gurações, nos mais diversos contextos, o que nos alerta acerca danecessidade de constante defesa do que já foi conquistado em termos dedireitos sociais – dado que, no campo polí co, nada parece estar jamaisgaran do – e de seguir atualizando modos de produção de cuidado sinto-nizados com a existência das pessoas.

Oportunizar esse po de debate nas mais diversas instâncias for-ma vas me parece impera vo. Considero que protagonismo e militânciadocente se respaldam nessas necessidades e, ainda, que re e r sobrea própria formação e empreender modos arrojados para que essa for-mação aconteça é seguramente uma das vias para con gurar redes quepossam de fato sustentar as pessoas que, em sofrimento, buscam os pro-

ssionais que assumem o cuidado como o cio. Nós, os psicólogos, esta-mos nesse rol...

Redes têm necessariamente buracos, lacunas, vazios. Paradoxal-mente, elas devem sustentar, apoiar, não deixar passar ou cair... Que osseria per nente tecer para alinhavar os buracos? Que modos seriam pos-síveis para “amarrar os buracos” e sustentar o sofrimento, produzindovias para, legi mando-o, encaminhá-lo de modos diferentes? Como coserredes que de fato apoiem as pessoas que surtam e sofrem com isso? Dos

seus familiares? Das mulheres que são violentadas co dianamente porseus parceiros? Das crianças negligenciadas? Dos gays, lésbicas, transexu-ais e transgêneros ví mas de preconceitos? Como acolher tantos outrosmodos de sofrimentos engendrados em nosso convívio humano? Comocoser redes para amparar a dor e potencializar as brechas de vida, expan-dindo-as?

Redes, como a de pescar ou a de dormir, são artefatos... Redes deatenção e cuidado são também artefatos: construídas a par r da ação de

humanos, que ocorre entre humanos. Agir é próprio dos humanos que,por essa via, da ação, iniciando processos, são capazes de produzir mila-gres, como defende Arendt (2001). As redes precisam ser quentes, vivase acolhedoras... O motor crucial são as pessoas que as cons tuem, paraalém dos disposi vos já desenhados nas diversas redes dos mais varia-dos campos das polí cas públicas – sendo exemplos bem interessantes asRedes de Atenção à Saúde do SUS e a Rede SUAS. A par r dessa compre-ensão, tentarei dar conta de discu r os desa os na produção de redes de

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Psicologia social e os atuais desafos é co-polí cos no Brasil

cuidados, pelo viés da formação dos pro ssionais do cuidado, com desta-que aos psicólogos, expressando e re e ndo sobre alguns velhos – masespantosamente ainda novos – incômodos que sinto em minha prá cadocente.

Incômodo 1: por que, ainda, o estranhamento na ar culação Psicologiae Polí cas Públicas no âmbito da formação?

Na contemporaneidade, parece-me clara a compreensão de que aPsicologia deve se relacionar com o campo das polí cas públicas, havendouma indução histórica importante a par r da atuação do Conselho Federale dos Conselhos Regionais de Psicologia (CFP e CRPs). A criação do Centrode Referências Técnicas em Psicologia e Polí cas Públicas (CREPOP), apro-vada em 2005, é um re exo desse movimento. Seu obje vo principal é ode “sistema zar e difundir conhecimento sobre a interface entre prá caspsicológicas e polí cas públicas”, a par r de uma cartogra a das prá casem andamento, em consultas sistemá cas aos pro ssionais que atuamnos diversos setores das polí cas de saúde no país. Dentre os obje vosespecí cos dos CREPOP – que se estruturam em rede, com instância na-cional no CFP e representações em todos os Estados, vinculadas aos CRPs

–, destacaria o de “oferecer possíveis contribuições para a construção depolí cas públicas humanizadas, fortalecendo a compreensão da dimensãosubje va presente nessas polí cas” 2.

A par r disso, podemos a rmar que há um reconhecimento de queo campo das polí cas públicas cons tui um pro cuo cenário para a prá cade psicólogos, desde o âmbito da execução e atenção quanto da formu-lação e gestão de polí cas e serviços. A crescente atuação de psicólogosnos diversos cenários das polí cas públicas, envolvendo-se, portanto, em“questões sociais”, demandou a construção de outros paradigmas de in-tervenção, pondo em questão a função do psicólogo na realidade brasi-leira. Eis um dos fatores que impulsionaram o surgimento do conceito decompromisso social da Psicologia, que se caracterizou como uma conexãoentre esse núcleo de saber e as polí cas públicas (Conselho Federal dePsicologia, 2011).

2 Informações disponíveis em h p://crepop.pol.org.br

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Cabral, B. E. B. (2015). Redes de cuidado e formação/atuação de psicólogos: como “amarrar

Assumir que há um compromisso social da Psicologia implica redi-mensionar radicalmente um projeto pro ssional que se alinhou, histori-camente, ao projeto da elite de modernização do país, nas décadas de50/60, culminando na condição de primeiro do mundo a regulamentar apro ssão e a formação em Psicologia, com a aprovação da Lei n. 4119/62.De acordo com Bock (2008), a legi mação da Psicologia não se tratava deuma demanda da maioria da sociedade brasileira, que mal conhecia essesaber ou suas possibilidades prá cas. Interessava apenas à elite “instalare desenvolver a Psicologia no Brasil, pois ela prome a com sua tecnolo-gia – os testes psicológicos – contribuir para a previsão e o controle doscomportamentos, tarefas necessárias naquele momento de instalação deum novo projeto de sociedade” (Bock, 2008, p. 2).

A rigor, a autora indica que, ainda que regulamentada, a pro ssãonão nha um projeto próprio, sintonizado a uma corporação que es vesseiden cada, a par r de obje vos comuns, para sustentar a Psicologia e seulugar na sociedade. Portanto, a grande tarefa era “inventar a pro ssão”,como destaca Bock (2008), em uma sociedade que não havia reivindicadoesse núcleo de saber. A tese de autora é de que a Psicologia sempre man-teve um compromisso com a sociedade, ou uma pequena parcela dela: aselites e seu referido projeto de modernização social. Indica, entretanto,que a entrada do psicólogo no contexto da Saúde Pública e as experiênciasda Psicologia Comunitária foram cruciais para a recon guração do lugarsocial da Psicologia, tornando explícita a necessidade de um compromissoda prá ca desse pro ssional com a maioria da população brasileira, vol-tando-se para as polí cas públicas, para a é ca, para os direitos humanos,redimensionando-se, assim, a perspec va de compromisso social.

A inserção no contexto público demandou a ar culação com pro-ssionais de outras categorias. Como apontei em outro trabalho (Cabral,

2011), destaca-se que, apesar de a inserção de psicólogos em equipes desaúde no contexto público vir ocorrendo desde a década de 1970, inú-meros estudos apontam as discrepâncias entre a formação pro ssional eos desa os da intervenção nesse contexto, indicando a urgência e algunscaminhos para uma reinvenção dessas prá cas.

Construir um novo projeto de pro ssão – processo que acredito es-tar ainda em curso – necessariamente passa pela re exão em torno daformação. Em pleno século XXI, apesar dos enormes avanços que alcança-

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Psicologia social e os atuais desafos é co-polí cos no Brasil

mos na construção de um lugar social que garanta à Psicologia uma expan-são de seus horizontes conceituais e de intervenção, temos signi ca vosdesa os que implicam ir além do discurso “poli camente correto”, supe-rando efe vamente perspec vas naturalizantes, universalizantes e nor-ma zadoras, que ainda parecem sustentar as prá cas co dianas dessespro ssionais nas redes de cuidado. Isso remete, em signi ca va medida,à formação.

As Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Psicologia(Conselho Nacional de Educação, 2004) destacam, entre os princípios ecompromissos que devem respaldar a formação do psicólogo, a compre-ensão crí ca dos fenômenos sociais, econômicos, culturais e polí cos dopaís e a atuação em diferentes contextos, levando em conta necessidadessociais e direitos humanos. Assim, aponta-se a importância de uma forma-ção que se conecte à vida humana e aos modos como ela se con gura nasmais diversas realidades, requerendo um olhar-intervenção que se renda àcomplexidade e se desvencilhe de modelos de subje vação abstratos e na-turalizados, tão próprios da história desse núcleo de saber (Cabral, 2015).

Assim, os avanços no projeto pro ssional da Psicologia, em que serealça seu compromisso com a realidade social do país e sua população,são precisos e circunscritos, em várias instâncias legisla vas, inclusive,

com respaldo do Sistema Conselhos de Psicologia, havendo já diversosdocumentos que referenciam essas prá cas nas redes de cuidado e emvários de seus disposi vos. Porém, a mudança de a tude pro ssional éum desa o real para a produção de redes de cuidado. Diante de proble-mas extremamente complexos que se apresentam nas diversas realidadesde um país que ainda carrega tantas desigualdades, tanta violência, tantadesassistência, tanto preconceito, tanto desrespeito à condição cidadã,os desalojamentos provocados no pro ssional de psicologia que se aven-tura nesses cenários são con nuos e, por vezes, paralisantes. Não é di cilque se recorra, assim, na tenta va de garan r um reconhecimento, aosan gos paradigmas e modos de atuação do psicólogo, que se relacionamao modelo clínico tradicional, como pra cado em geral nos consultórios,que, apesar de seu mérito, reconhece-se que não parece (cor)responderàs demandas que se revelam nos territórios.

Complexi car o olhar e a capacidade de intervenção desse pro-ssional, discu r modos possíveis para construir projetos terapêu cos

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singulares nos territórios diversos (e não apenas entre quatro paredes),discu r a importância da ar culação de redes, re e r sobre o sen doé co-polí co da atuação, ampliar a habilidade de promover encontros ede dialogar, expandir uma a tude de acolhimento e escuta para além dese ngs pré-formatados, es mular a disponibilidade de trabalhar cole -vamente – o que implica correr o risco de “sair do umbigo” da Psicologia,por vezes –, ins tuir a re exão em torno do que se faz, alargar a capaci-dade de lidar com a alteridade e a diversidade da condição humana: eisalguns dos pontos a serem trabalhados em um processo forma vo, comvistas à cons tuição de um pro ssional com possibilidades ampliadas deatuação nas complexas teias da vida, nos territórios “vivos” em que seinserem as redes de cuidado. A produção de redes de cuidado só pode

acontecer na conexão direta com as pessoas e a vida que levam, sem jul-gamentos, classi cações, interpretações, imposição de saberes.

Sim, ainda percebo que há um certo estranhamento nessa ar cu-lação da Psicologia com as Polí cas Públicas no âmbito acadêmico. Claroque isso ca mascarado sob discursos poli camente corretos, mas se re-vela em detalhes, bastante su s, como a escolha de um divã para repre-sentar a atuação do psicólogo em convites de formatura – e obviamente,com essa a rmação, não quero desmerecer a Psicanálise, abordagem te-

órico-prá ca que respeito tanto quanto todas que se puderem cons tuire legi mar no âmbito da Psicologia! Como é di cil nos livrarmos de nossoranço histórico de compromisso inicial com um projeto eli sta...

Pensar e es mular a que se pense para que e para quem a Psicologiapode e deve servir é uma responsabilidade dos formadores... Pode serpara quem quer que possa se bene ciar, mas é necessário re e r perma-nentemente sobre o lugar social desse saber: suas funções, suas possibi-lidades interven vas no contexto em que vivemos. Penso que a formação

deve se comprometer com isso.

Incômodo 2: toda psicologia não deveria ser social?

Levando adiante minhas re exões, apresento aqui, para debate ere exão, um outro incômodo. Mesmo reconhecendo a Psicologia Socialcom um núcleo de saber-fazer/fazer-saber, com suas produções teórico-

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-epistemológicas e ar culações metodológicas, dentro do campo comumda Psicologia, sempre me ques onei se toda Psicologia não deveria sertomada como social. Uma vez, estudando Medicina Psicossomá ca nagraduação (de Psicologia), intriguei-me com a a rmação do professor deque toda a Medicina deveria ser psicossomá ca. Não se valorizaria, assim,uma dicotomia corpo-psíquico, mas a tenta va de uma perspec va decompreensão complexa e integral do humano e seus processos de adoeci-mento e, por que não dizer, de produção de saúde.

Ao me deparar com a Psicologia Social, também ainda como gradu-anda, achei que fazia muito sen do – aliás, óbvio! – pensar o sujeito emseu contexto social, inserido no mundo. Ficava a me ques onar: “não de-veria toda a Psicologia ser Social, então?”. Com apoio da Filoso a e Epis-temologia, dei-me conta da perspec va dicotômica que costuma embasarnosso modo ocidental de pensar e boa parte das produções teóricas aque temos acesso, o que valia também para a Área de Psicologia. Requermuito esforço escapar dos dualismos e da força do paradigma racionalista,que nos guia a pensar o mundo de modo binário, ressaltando-se opostose contraposições. Ou é claro ou é escuro!

A possibilidade de pensar a vida como um grande jogo de forças emcon ito e embate, em que permanentemente se sustenta uma tensão, foi

apresentada a mim por meio do contato com o pensamento nietzschiano,que me alargou a capacidade de leitura da vida. Não necessariamente temque ser isto ou aquilo; não necessariamente as sínteses ocorrem. Podeser isto e aquilo; pode ser uma terceira coisa, que não necessariamen-te resulta de uma síntese de duas coisas anteriores: é simplesmente umoutro, diverso, e não diferente em relação a um padrão ou norma – algoque sempre se inventa, no mais das vezes com obje vos de controle bemprecisos, mas nem sempre revelados.

Na contemporaneidade, era que alguns caracterizam de pós-mo-derna, variadas questões se apresentam aos humanos, de forma que osofrimento assume as mais inusitadas e surpreendentes con gurações. Acompreensão do sofrimento contemporâneo deve levar em consideraçãoo contexto em que vivemos. Fica cada vez mais patente que os processosde subje vação se conectam ou são atravessados pelos modos de vidacontemporâneos e o sofrimento expresso carrega as marcas dessas con-

gurações de vida. Com todo o avanço tecnológico, não conquistamos o

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mundo melhor garan do pelo projeto cien co da modernidade, em nsdo século XIX. O mundo segue marcado por contradições, desigualdades,violência, exploração e injus ças. A norma zação de modos de vida, comclassi cações pouco precisas ou evidentes, calcadas na oposição normal--patológico, segue sendo uma grande questão a que se deve atentar, sobpena de movimentos de restrição dos modos de vida e patologização defenômenos da existência.

A Psicologia precisa se posicionar nesse cenário, ampliando suas fer-ramentas de compreensão do sofrimento humano, em sua mul facetadamanifestação, e escapando à perspec va de controle e norma zação docomportamento. O que seria “natural” no âmbito humano, tendo em vistaos atravessamentos cons tu vos de aspectos culturais, sociais, econômi-cos? Em que o paradigma racionalista e os modelos de explicação produ-zidos nas ciências naturais contribuem efe vamente para compreenderesse humano? O quão estamos convencidos dos seus limites? O quantoagimos em respeito à complexidade dos fenômenos humanos? Será quede fato conseguimos escapar de uma atuação classi catória, imposi va,norma va?

O caráter norma vo que aqui retomo está relacionado ao poder dis-ciplinar que sustenta, especialmente a par r do século XVIII, a organiza-

ção de nossas sociedades ocidentais, como indicado por Foucault (2007).A norma zação, ncada no poder disciplinar, restringe a ação humana: háque se respeitar o que se convencionou como padrão – fazendo-se crerque se trata de algo natural, que tem que ser, da ordem da obrigação. In-teressante perceber que Canguilhem (1990) recorre à capacidade norma-

va dos humanos, ou seja, à habilidade de criar regras, normas e modospossíveis de con guração da vida, como o cerne de sua compreensão desaúde, ao discu r normal versus patológico. Saúde seria uma margem detolerância às in delidades do meio, que se apresenta tanto maior quantomaior for a capacidade de lidar com as adversidades que a própria vidaapresenta.

Ao defender sua tese, o autor destaca a atenção necessária ao cará-ter singular de cada ser vivo, para que se analise sua condição de saúde:é imprescindível comparar o sujeito com ele mesmo. Ainda é necessárioacrescentar que o autor põe em questão a dicotomia saúde-doença, rom-pendo com a equalização, bastante comum, de saúde com normalidade e

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de doença com anormalidade. Normas estão presentes tanto em estadossaudáveis como patológicos, com a diferença de que nesses há uma capa-cidade norma va mais restrita.

Percebo que essa compreensão de Canguilhem potencializa a am-pliação do conceito de saúde também no âmbito das polí cas públicas – oque inclui o nosso Sistema Único de Saúde –, em que já se assume (ao me-nos teoricamente) que os determinantes e condicionantes dos processosde saúde/doença se relacionam às próprias condições de vida das popu-lações/pessoas. Cuidar da saúde de alguém, de uma comunidade, implicaconhecer os modos como se transita nos territórios, o grau de acesso aosdisposi vos de cuidado e das redes de apoio, a condição socioeconômica,a organização familiar, en m, como a vida é levada.

Um pro ssional de saúde precisa estar atento a esses modos de vidapara que possa propor projetos terapêu cos, preferencialmente com ooutro, e não para o outro. A m de conhecer isso, a aproximação com aspessoas que buscam cuidado – ou às vezes nem buscam – precisa ocorrercom a criação de vínculos, possível mediante uma a tude inicial de aco-lhimento e interesse. As tecnologias de cuidado mais importantes nessaaproximação e tenta va de (re)conhecimento de quem sofre e como so-fre – e, por isso, demanda cuidado – são as leves, a par r da classi cação

proposta por Merhy (2002). Tecnologias que remetem à dimensão rela-cional, ou seja, a como eu encontro o outro, como legi mo seu modo deser, de como, por uma sintonia com o que sente e com o modo como vive,afetando-me, posso me abrir às possibilidades de construção de modosde cuidar junto a esse outro. Fundamental considerar: esse outro com-preende que precisa de cuidado? Esse outro revela uma compreensão daimportância do cuidado de si? Caso não, há ainda uma delicadeza maiorrequerida na atuação pro ssional.

No processo de construção de projetos de cuidado, o pro ssionalde saúde precisa conhecer minimamente as redes dispostas e se posi-cionar como um “costureiro” dessas redes, dispondo-se a ar culá-las ea vá-las. Como pro ssional do cuidado, o psicólogo deve transitar nessesterritórios onde a vida acontece, sendo desalojado a ponto de precisar iralém do “modelar” e do “tradicional”. Invenção de modos de cuidado éuma habilidade exigida no âmbito das redes de cuidado: cria vidade, co-municação, ar culação, sempre a par r de aproximação com a situação

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e com quem requer cuidado. Chegamos à necessidade de um destaque:romper com a ideia de “se ngs” de atuação, exercitando uma a tude--plantão 3.

Em um dado fórum de debates, no contexto da discussão de proje-tos terapêu cos envolvendo pro ssionais de disposi vos públicos diver-sos de um município do sertão, chamou-me atenção a referência que umpsicólogo de um Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) fez àatuação nesse disposi vo do Sistema Único de Assistência Social (SUAS)como tendo um caráter “mais social”: seria uma Psicologia “mais social”.Realmente quei intrigada e incomodada, re e ndo que aquele talvezfosse um modo de tentar garan r maior segurança a uma prá ca pro s-sional realizada, que, porém, me parecia revelar a velha dicotomia sujeito--mundo. Pensei que, provavelmente, por ser um pro ssional inserido naRede SUAS, a importância do adje vo “social” se zesse per nente, a par-

r de sua visão. Mas quei pensando na atuação do psicólogo nos Núcleosde Apoio à Saúde da Família (NASFs), nos Centros de Atenção Psicossocial(CAPSs), nas Equipes de Consultório na Rua e tantos outros: não precisa-mos ser tão clínicos quanto sociais e também polí cos, em nossa prá -ca nesses disposi vos? Como dar conta de “integrar” e “complexi car” oolhar – e sobretudo a intervenção – no contexto das redes de cuidado? Eisum signi ca vo desa o à produção de cuidado em rede.

Correntemente uma grande preocupação dos núcleos pro ssionaisé aquela de circunscrever a especi cidade da atuação. Retomo essa pre-ocupação nesta altura do texto – e a retomarei mais adiante, quandoda discussão do trabalho em equipe – apenas para pontuar que talvez omais próprio da Psicologia, no contexto do redimensionamento do com-promisso social da pro ssão com a sociedade brasileira, seja o de agircomo agente de mudança no âmbito das polí cas públicas, sendo agen-ciador de prá cas que respeitem os processos e modos de subje vaçãoe os afetos aí implicados, desnaturalizando compreensões, provocando3 Faço essa discussão a par r da experiência de Plantão Psicológico, tal como proposta pelo

Ins tuto de Psicologia da USP, onde primeiro se elaborou essa modalidade de atenção psi-cológica, cuja marca principal é a plas cidade e o acolhimento a quem chega, como chega,sem necessidade de marcação prévia, de classi cações nosológicas ou urgência de encami-nhamento. Recebe-se “quem sofre”, experimentando-se o acolhimento e uma a tude clínicavoltada à tenta va de compreender, na relação plantonista-usuário, a situação que faz sofrer,no sen do de construir rumos possíveis ao próprio sofrimento.

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outros olhares, promovendo a circulação da palavra. Pro-mover cuidadoimplica se movimentar na direção da abertura à diversidade, de uns comoutros, de cada um consigo próprio. Morato (1999) destaca a função depromoção de cuidado, pela via da formação, na atuação do psicólogo,no contexto das redes de apoio da Saúde e da Educação: os psicólogosseriam, assim, agentes sociais de mudança. Mas seguramente a discus-são do cuidado e das tecnologias relacionais, conforme discussões con-temporâneas, precisa atravessar a formação de todos os pro ssionais desaúde.

Incômodo 3: será que toda psicologia não deveria ser clínica (e polí ca)?

Como indica Amarante (2003), Basaglia sofre algumas crí cas re-la vas a um certo descuido da clínica em suas propostas de desins tu-cionalização da atenção em saúde mental na Itália. Tais crí cas indicamo privilégio de uma ação de caráter mais polí co. Entretanto, Amaranteargumenta contra esse posicionamento, destacando que a proposta basa-gliana implicava uma relação direta dos agentes de cuidado com os sujei-tos ins tucionalizados ou em intenso sofrimento psíquico. Respaldado nacompreensão de que era fundamental “pôr a doença entre parênteses”,

para efe var prá cas genuínas de cuidado a um segmento populacionalviolentado socialmente, como é o das pessoas diagnos cadas como tendotranstornos psiquiátricos. Fundamentalmente isso quer dizer: encontrar ooutro, abrir-se à sua alteridade, não patologizar modos diversos de exis r.A par r dessa a rmação de Basaglia, não parecia haver uma negação dacondição patológica – que imprimia uma restrição da capacidade norma-

va, se resgatarmos a compreensão de Canguilhem –, mas tão somenteo reconhecimento de que essa não poderia ser a caracterís ca de nidorada existência da pessoa. Os italianos reformistas defendiam que a atenção

maior deveria ser à existência que sofre, como via para a construção dequalquer possibilidade de cuidado.

Parece-me haver nisso uma oportunidade de aprendizado imensaaos pro ssionais que tomam o cuidado como o cio. Não se pode separaruma atuação clínica de uma perspec va polí ca, ou vice-versa, quandoestamos tratando de projetos terapêu cos nos mais diversos setores daspolí cas públicas. Como aponta Benevides (2005), a inseparabilidade en-

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tre clínica e polí ca é fundamental à atuação do psicólogo no contextodo SUS – e penso que isso pode ser estendido a qualquer cenário deatuação. Em nossa pro ssão, essa a rmação faz muito mais sen do, pelahistória de nossa cons tuição; contudo, penso fazer sen do para todosos pro ssionais que têm como campo comum a atuação nas polí cas pú-blicas, sobretudo na Saúde e Assistência Social (mas não só), convocadosque são a prá cas em parceria, para encaminhar projetos de cuidadomais per nentes.

Intervir é inventar modos possíveis de cuidado entre humanos, par-ndo de um exercício de compreensão da questão-problema. Intervenção

só se torna possível mediante a valorização da experiência dos envolvi-dos, como fonte primeira de produção de cuidado/saúde. Valorizando-sea experiência, aprende-se a reconhecer e legi mar os modos diversos deexis r, sem julgamento ou preconcepções. Penso que encontrar vias para,no processo forma vo, promover a experimentação de experiência é umimpera vo. Projetos de extensão, de pesquisa interven va, de ensinoconectado às redes podem fornecer oportunidades para um tal aprendi-zado, signi ca vo, em que se es mule a re exão permanente acerca dadimensão é co-polí ca da atuação do psicólogo. A rmar isso remete àconsideração de que também a formação docente precisa urgentementeavançar; inevitável pensar nas signi ca vas contribuições do pensamentode Paulo Freire, que se contrapunha a um ensino transmissivo, focado norepasse de conteúdo, sem conexão com a própria vida – sobretudo a vidade quem é aprendiz.

Resgatando a compreensão originária de “clínica”, Simone (2004)aponta a origem do termo “clínica” no verbo grego inclinare, a par r daprá ca dos médicos na Grécia an ga, que se inclinavam sobre o leito deseus pacientes, para com eles conversar, como parte do ato de cuidar/tratar. Indica também, nessa garimpagem e mológica, o vocábulo gregoklíne, que indica leito, cama, repouso. Tal sen do e mológico revela ocaráter primordial de inves gação e produção con nua de sen dos pormeio do debruçar-se sobre um determinado fenômeno, na busca decompreendê-lo, contudo parece preservar a relação com o aspecto pa-tológico.

Não à toa a discussão em torno do sen do da prá ca clínica de to-dos os pro ssionais de saúde – e, por que não, pro ssionais do cuidado,

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como campo comum? – segue como algo extremamente atual. A introdu-ção da perspec va da Clínica Ampliada (Campos, 2003), largamente incor-porada – ao menos em tese – nas propostas de atuação nas redes de aten-ção do SUS, apresenta um prisma que nos põe no campo de tensão entresaúde-doença, singular-cole vo: demanda-se uma atuação que percebao sujeito, além do processo de adoecimento, porém sem desconsiderá--lo, mas também sem torná-lo um ente. Já ouvi argumentos, em debatesde que par cipei, de que esse conceito apenas retoma algo que já erapróprio da clínica em seus primórdios, atualizando uma perspec va ori-ginária, apenas com nova nomenclatura. Eu, par cularmente, acredito naforça das produções em torno de uma atuação clínica que se amplia, pelaprópria ampliação do objeto – não mais a doença abstrata, mas a pessoa

e sua existência “concreta”, que adje va de modo muito próprio qualquer“adoecimento”.

Referir-se a uma ampliação da clínica remete a uma mudança pa-radigmá ca na atuação em saúde – na atualidade ainda marcada pelahegemonia da racionalidade biomédica –, visando uma compreensãoque ultrapassa a questão sintomatológica apresentada pela pessoa –sem, contudo, negá-la –, valorizando sua inserção no mundo e, portan-to, suas caracterís cas existenciais. Há aqui uma ressonância da propos-ta basagliana, de “pôr a doença entre parênteses”. A expressão ClínicaAmpliada pode parecer redundante, pois toda atuação em saúde deve-ria se pautar numa perspec va ampliada de consideração do humano;entretanto, marcar essa diferença me parece um caminho interessante,escapando-se à sua u lização como mero jargão ou modismo (Cabral,2004).

Aposto que qualquer atuação do psicólogo, no âmbito da produ-ção de redes de cuidado, precisa ser clínica, social e polí ca, em res-peito à complexidade das situações com que nos deparamos e que de-mandam cuidado: inves gar, sem a pressa de classi car ou explicar pornexos causais, compreender, ultrapassar a dicotomia sujeito-mundo,considerar a mul plicidade dos fatores que atravessam a cons tuiçãode ser gente e, só assim, pensar conjuntamente caminhos possíveis depromover atenção/cuidado. Como me parece di cil, na condição de do-cente, es mular essas re exões, diante de uma primazia do tecnicismo,que ainda parece imperar em nosso mundo ocidental.

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Incômodo 4: o trabalho transdisciplinar tem que ser pensado como sen -do da ordem “transcendental”?

De acordo com Michelazzo (2000), a razão tecnológica se con guroucomo diapasão totalitário a nando todas as a vidades humanas no mun-do contemporâneo. Ainda que tal privilégio pareça “natural”, legi mando--se a par r da hegemonia do saber cien co, importa apreciar cautelo-samente o lugar da técnica, sobretudo quando se trata de compreendercampos de atuação em que a relação entre pessoas tem preponderância,como é o caso da produção de redes de cuidado.

A atenção em saúde, par cularmente no contexto das polí cas pú-

blicas, não pode prescindir da relação pro ssional-usuário, em que se des-tacam as tecnologias leves. A forma como esse contato acontece é viacrucial na des nação das situações com que se defronta o pro ssional desaúde/cuidado no co diano de sua prá ca. Então, impõe-se a re exão –como esse pro ssional se situa em sua prá ca diária: caracteriza-se ummero técnico ou assume o lugar de cuidador?

Desse modo, retomar o sen do de técnica importa. Assim, a ga-rimpagem feita por Heidegger (2002) sobre tal tema contribui a essadiscussão. Comumente pensada como um meio para que se a nja umdeterminado m ou como uma a vidade do homem, sobressaindo-se aperspec va de causalidade, de ne-se a determinação instrumental e an-tropológica da técnica. No entanto, Heidegger defende que tal caráter ins-trumental, ainda que correto, não deixa aparecer a essência da técnica.

Apontando o sen do originário de causa ( ai a, em grego), Heideg-ger discute que, antes de ser ponto de par da, algo que desencadeia umefeito, causa é o que conduz qualquer coisa ao seu aparecer, fazendo umacoisa vir à sua presença, ou seja, causa seria o que conduz do encobri-mento ao des-encobrimento, pela via da poiésis, a pro-dução. A técnicase revelaria como uma forma de desvelamento, aproximando-se do sen-

do grego de verdade, como alethéia , algo que se produz na medida dodesvelamento, não se deixando aprisionar em um sen do único, correto.Para esse lósofo, a essência da técnica implica desvelamento, pois nes-se se funda toda pro-dução, repousando a possibilidade de elaboraçãoprodu va.

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Resgata, assim, a relação de técnica com techné, que se refere aodesencobrimento que levava a verdade a fulgurar em seu próprio brilho,ou à pro-dução da verdade na beleza, e, ainda, à poiésis das belas-artes.Esse sen do originário de técnica enquanto techné, que remete ao fa-zer do artesão, foi se perdendo ao longo da história. Uma das razões foio aprisionamento da técnica atrelada ao sen do de verdade, em la m,como veritas, o correto de uma representação.

Retomar esse sen do originário de técnica também pode ser umavereda para o redimensionamento do fazer-saúde, implicando a produçãode redes de cuidado. Não podemos nos desvencilhar do sen do que atécnica assumiu no mundo contemporâneo, mas, recorrendo à poesia deHölderlin, Heidegger aponta uma saída: “Ora, onde mora o perigo, é láque cresce o que salva”.

Na sua compreensão do dizer do poeta, Heidegger (2002) indica quesalvar não diz apenas “re rar, a tempo, da destruição o que se acha ame-açado em con nuar a ser o que vinha sendo”, mas diz ainda “chegar à es-sência, a m de fazê-la aparecer em seu próprio brilho” (p. 31). Da própriatécnica pode medrar a força salvadora. O pensamento que medita, quere ete sobre o sen do de tudo, seria uma saída, a par r de uma a tu-de de serenidade (Heidegger, 1959) para com o mundo que privilegiou a

técnica e o controle, pela supremacia do paradigma cien co tradicional – das ciências naturais.

Essa incursão pela discussão do sen do de técnica me transpor-tou, durante a composição deste relato, ao que Arendt (1999) discute:a capacidade de pensar é nossa única via para escapar da banalidade domal. Assim, estaríamos fadados a re e r con nuamente sobre os nossosrumos, nossas decisões, nossos modos de encaminhar nossos projetos.Considero que isso é bastante per nente para o nosso trabalho nos diver-

sos setores das polí cas públicas: garan r espaços/momentos de re exãosobre o que fazemos e, por essa via, construir o sen do é co e polí co denossa atuação, permanentemente...

Assim, em minha trajetória pro ssional, fui cons tuindo uma com-preensão: a de que o trabalho em equipe é fundamental para alargar aspossibilidades de intervenções mais consistentes e per nentes. Decidipesquisar isso em tese de doutorado (Cabral, 2011) que, em certa medida,

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deu con nuidade à pesquisa do mestrado (Cabral, 2004), ambas brotadasno contexto de minha prá ca pro ssional como trabalhadora do SUS.

Aposto, assim, na possibilidade do trabalho em equipe na perspec -

va entredisciplinar (Ceccim, 2008), que compreendo como muito próximaà compreensão de uma ação transdisciplinar como produção cole va (Ca-bral & Andrade, 2012). Algo possível, da ordem da imanência, como coisaconcreta, mas apenas arduamente conquistada, pois demanda reuniões,debates e construção cole va do sen do do trabalho. A disponibilidadede parar para re e r sobre o que se faz, pôr em análise/inves gação, peloexercício da comunicação, é requisito básico.

Optei, assim, por recortar fragmentos da tese, na expecta va de fo-mentar esse debate:

O trabalho em equipe que extrapole a simples soma de diversos olhares eperspec vas se respalda na noção de que, do encontro entre pro ssionaisde diferentes áreas, havendo uma direção par lhada do(s) projeto(s) deatenção em saúde, surgem outros modos, que não correspondem mera-mente ao que é trazido por cada um, decorrendo da invenção e construçãoconjunta. A principal direção-sen do emergente é de que o fundamentalsão os encontros, dado representarem fontes possíveis de produção e cria-ção de novos modos, estratégias, métodos. Nisso reside o fundamental da

aposta trans . (Cabral, 2011, p. 175)E, ainda:O que se revelou como caminho auspicioso para ação transdisciplinar comoprodução cole va foi a garan a de espaços cole vos, com inves mento naexpansão da capacidade de sustentar a tensão que con nuamente virá àtona no contexto da atenção à saúde, alargando-se o exercício de comuni-cação entre integrantes, pela disponibilidade de falar/escutar comentários,sugestões, crí cas, elogios, e es mulando-se a atuação cria va e inovadora

nas propostas de intervenção ... O trans não cabe nas prescrições, passan-do pela criação na hora, em ato, ganhando contornos próprios em cadacontexto, a par r dos encontros e misturas que ali ocorrem. Passa, portan-to, pela criação, pela poiésis. A aposta trans está, consequentemente, paraalém das especialidades – embora não as negue –, caracterizando-se comoinven va e jamais prescri va. Não cabe nas norma zações, implicando ou-sadia, transformação e, fundamentalmente, a sustentação de tensão, peloexercício de borrar as fronteiras que sua ação põe em ato. Qualquer possi-

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bilidade de ação transdisciplinar, como produção cole va, só se sustenta nohiato do que está prescrito, em meio ao inusitado das situações com que sedepara na atenção à saúde ... não comporta ênfase nos ‘especialismos’, massim nas pessoas que estão se relacionando na feitura das prá cas. As forças

que compõem a aposta trans não medram das categorias, mas, sobretudo,da disponibilidade de saltar das ilhas disciplinares – e, acrescentaria, dequalquer ilha: pessoal, ideológica, sen mental ... – sustentando o medo datravessia. (Cabral, 2011, pp. 174-175)

Considerações nais, na perspec va de expandir...

Finalizo recorrendo novamente a Larrosa (2002), em sua retomadado sen do e mológico da palavra “experiência”, que passa pelas noçõesde perigo e travessia ... Sustentar a tensão... Saltar das ilhas... Não se dei-xar seduzir por perspec vas totalitárias ou reducionistas... Respeitar acomplexidade da vida... E agir... Iniciar... Disparar processos... Transitar nasredes, valorizando os encontros...

Aprendi, até esse ponto de minha trajetória, que é necessário sairdo umbigo da Psicologia, inclusive para também compreender melhorsuas possibilidades interven vas. Expandir pode provocar medo, espe-cialmente pelo risco de perder um chão, pretensamente seguro. Não pen-so que essa tendência à expansão, pica da contemporaneidade, no quetange às múl plas compreensões de humano, de saúde, de vida, seja algoruim. Escapar de modelos rígidos, ou de modelos como roteiros fechadosde atuação, parece-me potente para uma prá ca consistente na produçãode redes de cuidado.

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Lacerda, F. (2015). Podem as polítcas públicas emancipar?

Podem as polí cas públicas emancipar? 1

Fernando Lacerda Júniorr

Entre direitos iguais, quem decide é a força.(Marx, 1890/2013, p. 309)

Introdução

Não é di cil iden car a importância das polí cas públicas nos de-bates sobre a relevância social da Psicologia brasileira. Além da crescentepar cipação de pro ssionais em equipamentos públicos, há diversas pu-blicações problema zando questões é co-polí cas e teórico-metodológi-cas na atuação da Psicologia nesse campo. O deslocamento que houve nacurta trajetória da Psicologia Comunitária brasileira é um exemplo ilustra-

vo: das experiências pioneiras que enfa zavam a ação direta na comu-nidade provocada pelo ce cismo em relação ao papel do Estado (Góis,2003), passou-se para uma crescente ênfase nas polí cas públicas (paracitar apenas alguns exemplos: Freitas, 2007; Oberg & Zamora, 2013; Xime-nes, Paula & Barros, 2009).

O exemplo é ilustra vo porque, como se sabe, a Psicologia Comu-nitária é um espaço que aglu nou esforços de pessoas engajadas com acrí ca do conhecimento dominante em Psicologia e com a transformaçãoda sociedade brasileira (Lacerda, 2010; Ximenes & Góis, 2010; Ximenes,Cidade, Nepomuceno & Leite, 2014). Também é ilustra vo porque mostraque muitos dos esforços – para não dizer a totalidade – envolvidos na aná-

lise das interfaces entre Psicologia e polí cas públicas não escondem a im-plicação com processos de mudança social e emancipação. Grande partedas publicações acerca das interfaces entre Psicologia e polí cas públicasou polí cas sociais problema za compromissos é co-polí cos e limites do1 O presente texto contém algumas re exões que são parte do desenvolvimento do projeto

de pesquisa “Ontologia do ser social e a história da psicologia: buscando as contribuiçõesteórico-metodológicas do marxismo para a Psicologia”, que recebeu aporte nanceiro doCNPq.

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conhecimento psicológico, além de apresentar importantes crí cas à fun-ção social tradicional da Psicologia2.

Em outras palavras, a ar culação entre Psicologia e polí cas públicas

se converteu em uma das principais tenta vas contemporâneas de “sal-var a Psicologia” de seu caracterís co conservadorismo (sobre este tema,ver: Yamamoto, 1987). Assim, parte da literatura sobre a Psicologia e aspolí cas públicas aponta caminhos para superar a natureza norma va eadapta va de determinadas prá cas psicológicas (Reis & Zanella, 2015) ouenfa za a exigência de a Psicologia tomar posição nas disputas por “umaou outra forma de sociabilidade” (Guzzo, Mezzalira, & Moreira, 2014, p.232). Porém, tais preocupações raramente são acompanhadas de umaanálise crí ca a respeito dos insuperáveis limites das polí cas sociais na

sociedade capitalista e de uma adequada angulação sobre as possibilida-des reais de um pro ssional assalariado fortalecer processos de emanci-pação humana por meio de sua ação em seu local de trabalho 3.

Ao se ignorar os limites das polí cas públicas, pode-se, facilmen-te, hipertro ar o protagonismo do papel da Psicologia em processos detransformação social. Isto é: para se a rmar que a a vidade pro ssionalda Psicologia pode contribuir para a emancipação, apresenta-se o terrenodas polí cas públicas e, especialmente, das polí cas sociais como espaços

que possibilitam o orescimento da emancipação. No entanto, se emanci-pação não rima com capitalismo, então esperar das polí cas públicas con-tribuições emancipatórias signi ca esperar que brotem forças de naturezaan capitalista no interior de mediações polí cas estatais.

Mas e se as polí cas públicas forem estruturalmente incapazes decontribuir para a emancipação humana? Então, reduzidos serão os resul-tados das diversas exigências para que a Psicologia apresente posiciona-mentos explícitos contra a ordem existente, mude o seu compromisso2

O livro organizado por Oliveira e Yamamoto (2014) reúne um conjunto de textos que anali-sam esses temas (crí cas ao papel da Psicologia, preocupações com os modelos de atuação,etc.) em diferentes áreas das polí cas sociais: saúde, educação, assistência social, etc.

3 Isto não signi ca que não existem explícitos alertas e cristalinas preocupações frente aosprojetos em disputa no interior de nossa sociedade e nos aparatos estatais (ver, por exemplo:Ximenes, Paula & Barros, 2009). Apenas signi ca que raramente se aponta o estreito laçoentre polí cas sociais e capitalismo. Como exceção que con rma a regra, há um conjuntode trabalhos que mostra a necessidade de se analisar as polí cas sociais fazendo remissãoà questão social, ou seja, ao conjunto de problemas que nascem do con ito entre capital etrabalho (Oliveira & Amorim, 2012; Yamamoto, 2007; Yamamoto & Oliveira, 2010; 2014).

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social, invente prá cas para além da norma zação, elabore mudanças naformação em Psicologia ou construa novas bases teórico-metodológicas 4.Se as polí cas públicas são incapazes de produzir mudanças substanciaisno funcionamento de uma sociedade estruturalmente desigual, então asuperação da função norma va e adapta va do psicólogo ou dos defeitoscongênitos das teorias psicológicas dominantes não resultará, no longoprazo, em emancipação humana.

Pensar este problema é de especial importância, sobretudo paraquem não quer fazer falsas ou demagógicas promessas para trabalhado-ras e trabalhadores assalariados que, normalmente, atuam em condiçõesextremamente precárias e se frustram co dianamente com a incapacida-de de seu “compromisso social” produzir mudanças signi ca vas no co -diano da classe trabalhadora 5.

Este trabalho explora uma pergunta que foi abordada apenas su-per cialmente em outro momento (ver Lacerda, 2013): será que, ao tra-balhar com as polí cas públicas, a Psicologia brasileira contribui para aemancipação? Ou a preocupação da Psicologia com as polí cas públicas éo subproduto do processo de acomodação do pensamento crí co em Psi-cologia ao clima ideológico conservador criado pela ofensiva neoliberal?

Para tanto, o trabalho começa problema zando os termos polí cassociais e polí cas públicas, além de apresentar uma concepção especí ca

4 Para evitar mal-entendidos: o presente texto não tem a pretensão de in rmar a importânciados esforços que almejam mudar profundamente a formação em Psicologia, superar referen-ciais teóricos individualistas e limitados ou construir prá cas que não favorecem processosde dominação e exploração. A questão levantada é: podem os limites das polí cas públicasimpossibilitar e interditar as melhores prá cas e intenções de psicólogas e psicólogos quebuscam cri car e transformar a Psicologia e a sociedade?

5 Há ainda um agravante nesta situação: a entrada da Psicologia nos serviços públicos não éproduto de uma tomada de consciência sobre o eli smo e conservadorismo que caracterizou

a pro ssão. O que houve foi um processo de crescente assalariamento dos pro ssionais daPsicologia que, raramente, foi precedido ou acompanhado por uma re exão sobre a inade-quação dos modelos de atuação dominantes na Psicologia brasileira em relação às necessi-dades da classe trabalhadora (Yamamoto, 2007; Yamamoto & Oliveira, 2010). Assim, a cres-cente atuação da Psicologia no campo das polí cas públicas indica que hoje há pro ssionaismais pobres que buscam sobreviver em um mercado cada vez mais restrito para aquelesque alimentam o sonho de ser um pro ssional liberal. O trabalho em equipamentos públicose ONGs apenas nos revela que há pessoas trabalhando com con ngentes que sofrem coma pobreza, ou seja, não são a vidades efe vadas por pro ssionais que, necessariamente,estão preocupados em problema zar a função social da Psicologia.

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de emancipação humana. Isto é especialmente importante em uma épocana qual pululam teorias que fe chizam a individualidade isolada e, conse-quentemente, o seu contraponto teórico: o perspec vismo pós-moderno.Por isso, especi car o que signi ca emancipação é uma necessidade bá-sica para o estabelecimento de qualquer análise crí ca. Se emancipaçãoé apenas uma mudança no olhar ou nas prá cas especí cas do sujeito,então não há muito o que se debater: pra camente qualquer coisa podepromover emancipação. Todavia, se emancipação supõe mudanças estru-turais em nossas condições de vida, então a questão presente no tulodeste trabalho se torna um problema a ser enfrentado.

Em seguida, o trabalho exibe duas hipóteses sobre as razões pelasquais a defesa das polí cas sociais exerce uma força magné ca para seto-res progressistas da Psicologia: (a) a implicação com certos projetos polí -cos de mudança social que hegemonizaram as lutas sociais no século XX;(b) o ce cismo produzido pelo fracasso das revoluções sociais do séculoXX; (c) o fato de as polí cas sociais serem alvo de ataques dos agentes docapital que buscam eliminar qualquer conquista ou concessão feita aossetores explorados e oprimidos da sociedade burguesa.

Por m, nas considerações nais, destacam-se, de maneira esque-má ca e polêmica, algumas implicações da análise anterior para aquelas

e aqueles implicados com a luta por emancipação humana. A ideia é que,para além da a vidade pro ssional com polí cas sociais, a emancipaçãohumana exige a vismo insurgente e an capitalista com e nos movimentossociais.

Polí cas públicas, polí cas sociais e emancipação

Apresentar uma de nição geral dos termos “polí cas públicas” ou

“polí cas sociais” é uma tarefa ingrata e problemá ca. Em primeiro lu-gar, porque, como todo processo social, as “polí cas públicas” mudam deacordo com a par cularidade histórica. Em segundo lugar, há diversas de-

nições que se confundem. Hö ing (2001) de ne polí cas públicas como“estado em ação”, isto é, toda ação de um governo que, par ndo do Esta-do, busca implementar seu projeto especí co para setores da sociedade.As polí cas públicas passam pelo Estado, mas ar culam diversos agentes:organizações não governamentais, órgãos públicos e agentes privados. Já

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as “polí cas sociais”, para a autora, são ações ligadas ao padrão de pro-teção social implementado pelo Estado. As polí cas sociais redistribuembene cios sociais que enfrentam desigualdades com a nalidade de darrespostas às movimentações da classe trabalhadora.

Seguindo caminho parecido, Souza (2003; 2006) também sublinhaa existência de diversas de nições do termo “polí cas públicas” e a rmaque o que há de comum é a ênfase no lócus das polí cas públicas: o go-verno. A soma de ações de governo buscando resultados especí cos ca-racteriza as polí cas públicas, enquanto as polí cas sociais são um po es-pecí co de polí ca pública. Vianna (2009) também apresenta a de niçãode polí ca social como um po de polí ca pública. Porém, a autora a rmaque a de nição de polí ca social como ação de governo com obje vos es-pecí cos é marcada por dois problemas: em primeiro lugar, não especi cao po de governo que está atuando e, em segundo lugar, não especi caos obje vos almejados. Tudo isso só se revela por meio de uma análisehistórica, ou seja, a autora está, justamente, enfa zando a importânciade se entender que as polí cas sociais (sua abrangência, suas ações, seus

ns, etc) mudam de acordo com contextos históricos especí cos.

Para além de intermináveis debates sobre as de nições, são as aná-lises que consideram a historicidade e as determinações das polí cas so-

ciais que oferecem melhor esclarecimento acerca da sua natureza e seuslimites. Nesses trabalhos (ver, por exemplo, Behring, 2009; Behring &Bosche , 2009), as polí cas sociais são processo e resultado de relaçõesentre Estado e sociedade civil. Assim, as lutas de classes no processo deprodução e reprodução do capitalismo, as opções polí cas, econômicas esociais de governos e a inserção de uma formação social especí ca no ca-pitalismo mundial são determinantes fundamentais das polí cas sociais.Nesta concepção, o Estado con nua sendo agente central, mas a cons-

tuição das polí cas sociais é entendida como processualidade de nidapelas respostas que as classes sociais com hegemonia polí ca dão às lutassociais e aos movimentos da sociedade burguesa. Por isso, é preciso anali-sar as polí cas sociais no interior de uma par cularidade histórica.

Não obstante as diferenças na con guração das polí cas sociais emdis ntas conjunturas históricas, o fato é que elas sempre são determi-nadas pelas lutas de classes, isto é, sempre estão relacionadas com acontradição estrutural entre capital e trabalho. Ao serem media zadas

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pelo con ito estrutural de classes e, portanto, pelo Estado, as polí cassociais, ainda que marcadamente contraditórias, sempre estão sob aregência do capital (Behring, 2009; Behring & Bosche , 2009; Faleiros,2004; Lessa, 2013).

É importante mencionar que as diferenças nas de nições de “polí-cas sociais” e “polí cas públicas” também se manifestam no campo da

Psicologia. Por exemplo, Saadallah (2007) a rma que o Estado trabalhacom polí cas públicas para enfrentar problemas da vida social. Dessemodo, segundo a autora, as polí cas públicas são projetadas para a vidaem comum, enquanto as polí cas sociais são polí cas públicas especí -cas projetadas para garan r condições de sobrevivência. Além de traba-lhos semelhantes ao citado anteriormente, há importantes contribuiçõesprovenientes de um grupo de pesquisadores na Psicologia que destacoua necessidade de se compreender e analisar as polí cas sociais fazendoremissão à questão social (Oliveira & Amorim, 2012; Yamamoto, 2007;Yamamoto & Oliveira, 2010; 2014).

A expressão “questão social” surgiu pra camente no mesmo mo-mento histórico em que apareceu a expressão “socialismo”. O termoaparece quando, após a Revolução Francesa, dis ntos crí cos sociaisinsa sfeitos com os descaminhos da sociedade burguesa começaram a

problema zar o fato de que a derrubada da aristocracia não produziu ummundo de igualdade, fraternidade e liberdade (Bronner, 2001).

Para Ne o (2010; 2012), a expressão aparece quando crí cos so-ciais começam a perceber algo novo na dinâmica do pauperismo massi-vo produzido pela industrialização capitalista: a existência da pobreza emcondições sociais que, cada vez mais, explicitam a possibilidade de sua su-peração. Por isso, ainda conforme Ne o (2010; 2012), a expressão “ques-tão social” refere-se ao pauperismo da classe trabalhadora na sociedade

capitalista e suas refrações são múl plas: desemprego, fome, “carências”,etc. A “questão social” é a manifestação da desigualdade social em socie-dades regidas pelo capital, ou seja, formações sociais marcadas por umadinâmica em que a pobreza convive com o permanente crescimento dacapacidade humana de produzir riquezas.

A lógica da acumulação capitalista se desenvolve de tal maneira quea questão social não é um pequeno defeito no funcionamento da máquina

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Lacerda, F. (2015). Podem as polítcas públicas emancipar?

capitalista, mas corolário necessário. Enquanto exis r exploração e acu-mulação capitalista, exis rá questão social 6. Em outras palavras: “ A ‘ques-tão social’ é cons tu va do capitalismo: não se suprime aquela se este seconservar ” (Ne o, 2012, p. 206). Por isso, o autor conclui: “Sem ferir demorte os disposi vos exploradores do regime do capital, toda luta contraas suas manifestações sócio-polí cas e humanas (precisamente o que sedesigna por “questão social”) está condenada a enfrentar sintomas, con-sequências e efeitos ” (Ne o, 2010, p. 157).

As polí cas sociais jamais tratam da questão social, mas de suas re-frações. Não há uma polí ca social que dá resposta à desigualdade so-cial, mas sim polí cas sociais setoriais que enfrentam “problemas sociais”parciais: moradia, pobreza, saúde, etc. Ao tratarem da refração e não daquestão fundamental, as polí cas sociais não respondem cabalmente aoproblema fundamental posto pela contradição antagônica entre capital etrabalho (Behring & Bosche , 2009; Faleiros, 2004; Yamamoto & Oliveira,2010; 2014).

Do que foi a rmado não se pode concluir que não existem desdo-bramentos importantes produzidos pelas polí cas sociais. A concessão dedireitos sociais resulta de importantes lutas sociais. Dessa maneira, Marx(1890/2013) ressaltou que as disputas sobre regulamentação da jornada

de trabalho sempre são “uma luta entre o conjunto dos capitalistas, i.e.,a classe capitalista, e o conjunto dos trabalhadores, i.e., a classe trabalha-dora” (p. 309)7.

Contudo, ao não tratarem da causa fundamental, as polí cas sociaispodem apenas repor sobre novas bases o processo de produção e repro-dução do capitalismo. Em outros termos: as polí cas sociais não podemproduzir, por si só, a superação do capitalismo, isto é, não podem produziremancipação humana.

6 Isso não signi ca que não seja necessário inves gar a especi cidade da questão social em di-ferentes formações sociais em dis ntos momentos históricos. “Se a lei geral opera indepen -dentemente de fronteiras polí cas e culturais, seus resultantes societários trazem a marca dahistória que a concre za” (Ne o, 2012, p. 208).

7 Há importantes polêmicas a respeito das implicações teóricas e polí cas das análises deMarx sobre a redução da jornada de trabalho que não podem ser abordadas aqui. No entan-to, pode-se citar a existência de dois exemplos que demonstram alguns dos principais pontosda polêmica: de um lado, o trabalho de Behring e Bosche (2009) e, de outro, o de Paniago(2003).

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Na tradição marxista, o termo “emancipação humana” possui umsigni cado muito preciso. Marx (1843/2010) diferencia emancipaçãopolí ca e emancipação humana. A primeira foi produto de revoluçõesburguesas que libertaram o Estado da religião e da nobreza, mas nãolibertaram os seres humanos, pois a nova sociedade está marcada pelaalienada oposição entre indivíduo privado e cidadão público.

O limite da emancipação polí ca ca evidente de imediato no fato de oEstado ser capaz de se libertar de uma limitação sem que o homem real -mente que livre dela, no fato de o Estado ser capaz de ser um Estado livresem que o homem seja um homem livre. (Marx, 1843/2010, pp. 38-39)

A emancipação humana busca a superação da cisão entre indivíduo

privado e cidadão público, busca ir além da mera cons tuição de direi-tos jurídico-polí cos, ou seja, busca igualdade real e não mera igualdadeformal. Ao discorrer sobre a emancipação humana, Marx (1843/2010)enfa zou a necessidade de se superar as condições materiais que pro-duzem a alienação: há emancipação humana quando o indivíduo esta-belece uma relação consciente com o gênero humano. A superação dasalienações na sociedade burguesa supõe a supressão da propriedadeprivada, a “viga mestra” da oposição entre indivíduo privado e cidadãopúblico (Löwy, 1978).

A oposição entre indivíduo privado e cidadão público manifesta-senas disputas e ar culações entre sociedade civil e Estado, que, por suavez, possuem um núcleo central: a propriedade privada. Nesta conclusãomarxiana está implícito um pressuposto teórico: é absolutamente impos-sível compreender as condições e as possibilidades da emancipação hu-mana sem uma análise que considere a relação dialé ca entre formas desociabilidade e con guração do poder polí co (Chasin, 1984/2000).

Chasin (1984/2000) aponta para o desdobramento desta contri-buição de Marx ao a rmar que o Estado, democrá co ou não, é o reinoda sociedade cindida pelo con ito entre capital e trabalho. Mais precisa-mente: é o “circuito ins tucional do capital” (p. 93). Por isso, o autor a r-ma que os limites das ações do poder polí co são sempre os limites dasformas materiais de sociabilidade organizadas em torno do con ito entrecapital e trabalho. Iden car emancipação com a defesa de uma formamais humanizada de domínio do capital sobre o trabalho não passa de

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Lacerda, F. (2015). Podem as polítcas públicas emancipar?

um perigoso reducionismo. Emancipação supõe superação da alienaçãoe efe vação da liberdade humana.

Lutas sociais e o aparente potencial emancipatório das polí cas sociais

As considerações anteriores sinalizam a importância de não seiden car desenvolvimento de polí cas sociais com emancipação hu-mana. Entretanto, é necessário explicar por que expressivos setores pro-gressistas, inclusive na Psicologia, apostam nas possibilidades emancipa-tórias das polí cas sociais. Da mesma forma, também é preciso explicarpor que, na conjuntura atual, as polí cas sociais de caráter público são oprincipal alvo de crí cas dos principais agentes do neoliberalismo 8. Sãodois problemas extremamente complexos que não podem ser detalhada-mente analisados aqui, mas podem-se apontar três hipóteses explica -vas: (a) a defesa das polí cas sociais foi, e segue sendo, subproduto dasduas concepções de transformação social que dominaram as lutas sociaisdo século XX; (b) o “possibilismo” que advoga como horizonte apenasreduzir os danos da pobreza aviltante, ao invés da radical superação dadesigualdade social, é o desaguadouro do ce cismo produzido pelo fra-casso das experiências que intentaram, ao longo do século XX, superar ocapital; (c) as lutas em defesa das polí cas sociais, ainda que não levemà emancipação humana, são importantes para aqueles preocupados emmudar o mundo, porque, na conjuntura atual, entram em contradição di-8 Signi ca vamente, o processo de desquali cação dos bene ciados pelo “Programa Bolsa

Família” pelos setores mais conservadores da sociedade brasileira nos úl mos anos expressacomo a mera sombra da “redistribuição de renda” aparece como uma ameaça à estrutura decomando e poder das classes dominantes atuantes no país. Todavia, os crí cos da Bolsa Fa-mília só problema zam a intervenção do Estado quando este desvia recursos dos bolsos docapital. Quando se trata da “Bolsa Banqueiro” paga pelo atual governo para os detentores de

tulos da dívida pública, não há qualquer crí ca dos comentaristas que adotam o ponto de

vista da burguesia. A Bolsa Banqueiro, apenas em 2014, des nou 45,11% do orçamento exe-cutado no ano, ou seja, R$ 978 bilhões para o mercado nanceiro (Fa orelli & Ávila, 2015).Este é um exemplo que ilustra o fato de que o incremento no desenvolvimento de polí cassociais não entra em contradição com o movimento do capital, mas, pelo contrário, é parteimportante dele (sobre este tema, ver a detalhada análise apresentada por Lessa, 2013). As-sim, não há nada de novo na existência de um governo que combina o desenvolvimento depolí cas sociais e a implementação de ajustes neoliberais. Desse modo, a natureza neoliberaldos governos Lula e Dilma (Maciel, 2013; Ne o, 2012) não deixa de exis r apenas porqueapareceram algumas polí cas sociais que impactaram efe vamente a vida dos setores maisaviltados pela estrutural desigualdade de nosso país.

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reta com o processo de erosão dos direitos sociais defendido pelos agen-tes do neoliberalismo.

Para descrever a primeira hipótese explica va, é importante come-

çar relembrando que as lutas sociais por emancipação humana do séculoXX foram marcadas pela hegemonia de duas estratégias: a “socialdemo-cracia” e o “stalinismo”.

A primeira estratégia defendia a tese de que a transição do capita-lismo para o socialismo dependeria de conquistas parciais ob das, prio-ritariamente, por ações ins tucionais ou parlamentares. O acúmulo dereformas no interior do capitalismo necessariamente conduziria para arealização, em algum momento de um futuro abstrato, do comunismo.Trata-se de uma estratégia que busca “reformar” (ou humanizar) o capital,ou seja, trata-se de “inves r as energias de um movimento social na ten-ta va de reformar um sistema substan vamente incontrolável (Mészáros,2011).

A segunda estratégia foi, fundamentalmente, produto do fracas-so da revolução russa de 1917. O socialismo sovié co, ou o marxismo--leninismo, foi uma produção da burocracia que vivia da exploração dosobre-trabalho na União Sovié ca (Mandel, 1978). Era, portanto, expres-são teórica da máquina de exploração e opressão que se cons tuiu como“porta-voz o cial” do marxismo no movimento comunista (Konder, 1984).Esta corrente propôs uma concepção de socialismo que transformou otermo em sinônimo de esta zação de setores amplos da economia deum país e concentração do poder polí co e econômico nas mãos de umaminúscula, parasitária e, muitas vezes, violenta burocracia pertencente aalgum par do comunista. Tal camada burocrá ca buscava por meio deplanos econômicos uma tenta va de controlar burocra camente o capi-tal. Por isso, Mészáros (2011) a rma que as experiências de transição do

século XX criaram sociedades pós-capitalistas em que o capital con nuavavigente. Consequentemente, quando o sistema global do capital entra emum período de crise estrutural, também entra em crise o “bloco sovié co”.

Desenvolver polí cas sociais é o caminho prioritário das estratégiasdescritas anteriormente. Enquanto o sistema do capital con nuou vigentenos governos reformistas ou stalinistas, estes ampliaram a função legi -madora do Estado pelo desenvolvimento de polí cas sociais. No entanto,

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Lacerda, F. (2015). Podem as polítcas públicas emancipar?

como aponta Mészáros (2011), nenhuma dessas estratégias resultou emqualquer movimento rumo à ex nção da exploração do trabalho.

Na atualidade, tanto as propostas socialdemocratas ou reformistas,

quanto as propostas stalinistas, perderam a importância que veram noséculo XX. De um lado, a “socialdemocracia” conseguiu alcançar o poderestatal em diversos países, mas, para isso, abandonou qualquer progra-ma de “reformar o capital” e adotou o programa neoliberal. De outro,os regimes pós-capitalistas que tentaram “controlar o capital” resultaramem restauração do capitalismo, da mesma maneira que ocorreu no LesteEuropeu, na URSS e na China (Mészáros, 2011; Paulino, 2008).

O fracasso das experiências de transição do século XX produziuenorme desmoralização das ideias e lutas socialistas. A rmações sobre aimpossibilidade ontológica de se superar o capital tornaram-se lugar co-mum. O resultado polí co foi a emergência fortalecida do “possibilismo”: já que não é possível superar o capital, cabe reduzir os sintomas da po-breza por meio de polí cas sociais, ações voluntárias no terceiro setor eevitar a erosão de direitos sociais (Montaño, 2012; Ne o, 2012; Pinassi,2009). Aceita-se como único caminho possível uma impossibilidade com-provada historicamente: controlar o movimento do capital.

A tese de que as polí cas sociais podem produzir emancipação e atese de que o único caminho possível é a redução de danos dos male ciosproduzidos pela sociedade do capital alimentam-se da hegemonia dastenta vas de se reformar e controlar o capital e do ce cismo imperanteapós a queda do muro de Berlim. Porém, há um terceiro e nuclear ingre-diente que faz da defesa das polí cas sociais uma questão especialmentevalorizada pelos sujeitos implicados com a tarefa de transformar o mun-do: a ofensiva neoliberal.

Como se sabe, o neoliberalismo “é a ideologia mais bem-sucedidada história mundial” (Anderson, 2000, p. 17). Sua concepção de homemcomo ser atomizado, compe vo, possessivo e calculista combinada coma tese de que a sociedade é apenas o meio de realização dos ns privadosindividuais converte a desigualdade em força-motora da vida social. Re-toricamente o neoliberalismo defende o “Estado mínimo”, efe vamenteconverte o Estado em instância-chave de domínio de classe e efe vaçãodos interesses do capital nanceiro (Ne o & Braz, 2006; Ne o, 2012).

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O principal alvo do neoliberalismo foi o conjunto de funções “legi-madoras” do Estado criadas em resposta às lutas sociais, especialmen-

te do proletariado organizado poli camente (Behring & Bosche , 2009;Ne o, 2012). Esse conjunto de ataques para desmantelar a intervenção“social” do Estado começa na década de 1970, quando se inaugura o pe-ríodo de crise estrutural do capital 9.

Ao entrar em crise, o capital, para con nuar seu permanente e in-controlável10 movimento em busca de expansão e acumulação, ampliasua dimensão destru va. Isso signi ca que para con nuar se reproduzin-do o capital precisa destruir: seja a natureza, seja o ser humano. Por isso,há: ampliação dos processos de exploração; crescimento da importânciado complexo industrial militar; intensi cação do processo de destruiçãodo meio ambiente; e, o que especialmente interessa aqui, redução oueliminação de qualquer mecanismo que onere o capital no processo deprodução e reprodução da força humana que trabalha (Mészáros, 2011).

Em outras palavras, a crise estrutural diminuiu o campo de possibi-lidades que antes exis a para o estabelecimento de mecanismos de con-trole do movimento do capital. Para con nuar reproduzindo, o capital foiobrigado a eliminar todo po de barreira ao seu processo de circulaçãoe expansão. “Sob o impacto devastador de uma taxa de lucro declinante,

a margem de manobra da ação polí ca tradicional tem sido reduzida àfunção de executar servilmente os ditames postos pelas necessidadesmais urgentes e imediatas de expansão do capital” (Mészáros, 2011, p.1000).9 A par r da década de 1970, esgota-se a onda expansiva do processo de reprodução do capi-

tal. Após o esgotamento dos “trinta anos dourados” do capitalismo, inicia-se uma profundacrise que se manifesta sintoma camente por meio da redução das taxas de lucro e cresci-mento econômico. A par r de então, a ofensiva neoliberal ar cula-se para: re rar direitossociais e aprofundar a exploração da força de trabalho – a “ exibilização”; ampliar a liberda-

de de movimentação do capital nanceiro – a “desregulamentação”; e entregar riquezas eempresas públicas ao mercado ou garan r intervenções estatais tão-somente para favorecero movimento do capital – a “priva zação” (Ne o & Braz, 2006; Ne o, 2012). Análises maisaprofundadas acerca da “crise estrutural do capital” podem ser encontradas sobretudo nostrabalhos de Mandel (1990) e Mészáros (2011).

10 “Com relação à sua determinação mais profunda, o sistema do capital é orientado para aexpansão e movido pela acumulação ... Sob as condições de crise estrutural do capital, seuscons tuintes destru vos avançam com força extrema, a vando o espectro da incontrolabili-dade total numa forma que faz prever a autodestruição, tanto para este sistema reprodu vosocial excepcional, em si, como para a humanidade em geral” (Mészáros, 2011, p. 100).

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Lacerda, F. (2015). Podem as polítcas públicas emancipar?

Em síntese, a entrada do capital em um período de crise estruturalsigni cou: (a) ampliação da dimensão destru va do capital; (b) bancarrotade todas as tenta vas de controlar ou impor limites à expansão do capital.Ne o (2012) a rma que esse processo esgotou qualquer tendência civili-zatória do capitalismo. Manifestação visível do esgotamento deste poten-cial é a ofensiva contra os direitos sociais que foram concedidos em res-posta às lutas da classe trabalhadora que não foram capazes de quebrar odomínio de classe da burguesia. As únicas polí cas sociais que interessamao capital na atualidade são aquelas que desresponsabilizam o Estado ecolocam para a sociedade civil (o “terceiro setor”) a responsabilidade porresolver os “problemas sociais” (ver a crí ca de Montaño, 2002).

Para o movimento irracional do capital em busca de lucro, as polí -cas sociais de caráter público e suas contribuições civilizatórias (condiçõesde vida menos aviltante, formação humana, seguridade social, etc) sãoalgo impossível de se efe var. Daí que, em um período de crise estrutu-ral do capital, a existência dos direitos sociais se torna, cada vez mais,um problema para a existência do capital – mesmo no caso de “quase--direitos” que nem mesmo arranham a existência do domínio do capitalsobre o trabalho (tal como é o caso do Programa Bolsa Família). Emergea situação, aparentemente paradoxal, em que a mera demanda para queo Estado responda a alguma das múl plas refrações da questão social seconverte em um problema para burocratas, gestores e governantes.

Por isso, não obstante todos os limites das polí cas sociais, a suadefesa ganha uma face de contestação. A defesa de polí cas sociais, es-pecialmente aquelas universais, cria inúmeras tensões na ordem socialvigente e é precisamente este ponto que produz a força magné ca daspolí cas sociais para psicólogas e psicólogos progressistas. No entanto,se é fato que a defesa de polí cas sociais que oneram, ainda que mini-mamente, o capital coloca sujeitos sociais em rota de colisão com apo-logetas da ordem, também é fato que a ideia de recriar um mundo depolí cas sociais que enfrentam as refrações da questão social é limitada eutópica. Limitada porque emancipação humana não signi ca meramentedistribuir migalhas para os miseráveis. Utópica porque, no longo prazo,ela é irrealizável.

O século XX presenciou muitas tenta vas mal sucedidas que almejavam asuperação das limitações sistêmicas do capital, do keynesianismo ao Estado

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intervencionista de po sovié co, juntamente com os con itos militares epolí cos que eles provocaram. Tudo o que aquelas tenta vas conseguiramfoi somente a “hibridização” do sistema do capital, comparado a sua formaeconômica clássica (com implicações extremamente problemá cas para o

futuro), mas não soluções estruturais viáveis. (Mészáros, 2000, p. 9)

As possibilidades de emancipação humana só se efe vam em umaestratégia de mudança social que conduz à estruturação de uma ordempara além do capital. Dessa forma, ainda segundo Mészáros (2011), aofensiva socialista é historicamente atual.

Para além da democra zação das polí cas públicas

Em um trabalho de balanço das “propostas alterna vas” de Psicolo-gia que emergiram da crí ca ao eli smo e conservadorismo da Psicologiabrasileira, um arguto crí co a rmou que:

A despeito do valor que possa ter como “alívio do sofrimento humano”, oucomo denúncia da dominação, deve-se perder a ilusão de um papel quehistoricamente não está reservado ao psicólogo enquanto um trabalhadorintelectual geralmente pertencendo às camadas médias, muito menos àPsicologia, no processo de transformação estrutural da sociedade, por maistênue que seja a ligação. (Yamamoto, 1987, p. 80)

Assim, toda a vidade da psicologia que busca a defesa conscientede direitos sociais e a criação de polí cas sociais voltadas para os setoresmais injus çados de nossa sociedade é, obviamente, algo muito melhordo que as clássicas atuações que giram em torno da “é ca do umbigo” desetores abastados e do que aquelas prá cas que fortalecem diretamenteo processo de extração de mais-valia.

A relação da Psicologia brasileira com as polí cas sociais abriu es-paço para que um maior número de pro ssionais olhasse para uma par-cela da população que historicamente foi negligenciada, quando não foipatologizada, por nossa pro ssão. Tal relação também revelou o quantoé limitada a formação em Psicologia no Brasil e incen vou re exões depsicólogos e psicólogas sobre algumas das mais graves fraturas sociais dasociedade brasileira. Porém, a oferta de precarizados serviços para vidas

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Lacerda, F. (2015). Podem as polítcas públicas emancipar?

precarizadas não é um processo de ruptura com a lógica do capital (Yama-moto, 2007). Em outras palavras, a atuação com as polí cas sociais nãopode resultar e não resultará em emancipação humana.

Se emancipar não é tentar humanizar a vida inerentemente desu-manizante, então as inicia vas de pessoas na Psicologia que buscam ummundo diferente devem ser mais ousadas do que o trabalho, nada fácil,com as polí cas sociais. Se, como a rmou Chasin (1984/2000), a constru-ção de uma sociedade democrá ca só é possível a par r de mudançaseconômicas estruturais, então o horizonte daqueles que buscam emanci-pação humana deve ser o de produzir uma sociedade em que há sobera-nia da força humana que trabalha, isto é, da classe trabalhadora.

Assim, se existe alguma possibilidade de psicólogas e psicólogos, dealguma maneira, oferecerem contribuições para a emancipação humana,então o foco destes pro ssionais dever estar nas possíveis alianças commovimentos sociais insurgentes e an capitalistas. Uma tarefa ainda maisdi cil do que o trabalho com polí cas sociais. Se queremos revolução so-cial (e é disso que se trata qualquer ação que busca emancipação huma-na), então temos que fazer mais do que ser bons pro ssionais... precisa-mos ser militantes socialistas.

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Bravo, O. A. (2015). La función de la psicología en contextos carcelarios

La función de la psicología en contextos carcelarios 1

Omar Alejandro Bravo

Introducción

Las polí cas públicas hacen parte siempre de modelos de Estado,que son los que marcan el verdadero sen do de las mismas y su capacidadde impactar socialmente. Para entender entonces el marco estructural enque estas polí cas se instalan, es necesario primero analizar al propio Es-tado, en su estructura y funcionamiento.

Para este propósito, y entre las varias formas de interpretar el ca-rácter, sen do y funcionamiento del Estado, es preciso rescatar el análisisque el marxismo realizó (en sus varias ver entes) y la lectura posterior deBourdieu (2013).

El marxismo considera al Estado como una forma de dominación deuna clase sobre la otra, siendo quizás Lenin (1917/2006) quien expusoesta idea de forma más contundente. Luego Althusser (2005) desde unenfoque estructuralista, mantendría esta consideración general, dis n-guiendo entre las formas en que los aparatos del Estado se con guraríany actuarían, a la manera de aparatos ideológicos des nados a la reproduc-ción del sistema capitalista. Se combinan aquí prác cas y discursos másdirectamente coerci vos, con otros que actuarían de manera más velada,pero con los mismos propósitos (la educación, por ejemplo).

Para Bourdieu (2013) este análisis resulta muy general e impreciso.

En su opinión, el Estado no es apenas una instancia que marca un ordensocial ni la universalización del interés par cular de los dominantes quese imponen a los dominados. Esto indica la complejidad de la ins tuciónestatal, donde se encuentran y conviven discursos y prác cas que parecen1 Parte de las re exiones contenidas en este texto hicieron parte de la ponencia presentada en

el coloquio organizado en el año 2014 por la Universidad Autónoma de Occidente, de Cali,denominado HUMANIDADES, TERRITORIO Y CULTURA y van a ser publicadas en las memoriasde dicho evento.

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Psicologia social e os atuais desafos é co-polí cos no Brasil

re ejar una cierta tensión entre polí cas represivas y otras, supuestamen-te de carácter más humanista y progresista, pero que pueden acabar fun-cionando como complemento de las primeras.

La prisión, en su enorme complejidad y par cularidades, es un es-pacio de encuentro entre estas dos perspec vas mencionadas como su-puestamente contradictorias, pero que acaban abonando a un propósitocomún.

En este sen do se pueden diferenciar, por un lado, a las prác casde encierro y re ro del orden social de determinados sujetos y gruposcuyas conductas fueron pi cadas como ilegales, como una forma de cas-

go que se apoya también en una creciente expecta va social de punicióncada vez más amplia y contundente y, por otro lado, a un discurso basadoen lo que Za aroni (2006) denominó como paradigma “re”, que supone laposibilidad de que a través de la aplicación de técnicas e intervencionesprofesionales, estos sujetos podrían pasar por un proceso de conversiónmoral que les permi ría reinsertarse socialmente, evitando de esta mane-ra que cometan futuros delitos.

Para poder ejercer un análisis crí co de esta segunda perspec va, esnecesario analizar los efectos reales del encarcelamiento En este sen do,y a pesar de haber transcurrido casi medio siglo desde su publicación, laobra de Go man, Internados. Ensayo sobre la situación social de los enfer -mos mentales (2001), man ene una indudable vigencia.

Go man destacó la mor cación sistemá ca y la mu lación del yoque las ins tuciones totales (entre ellas, la cárcel) producen en las perso-nas que por ellas transitan, sujetas a ru nas de despersonalización y des-culturación, como el reemplazo del nombre propio por un número o unrótulo clínico y la eliminación de la privacidad. Esto contribuye a anular lacondición de sujeto de los internos, borrando cualquier diferencia rela vaa su singularidad o condiciones culturales o sociales.

Esta vigencia del análisis go maniano puede ser interpretada desdevarios lugares. En primer término, cabe destacar su per nencia en relaci-ón a las condiciones ins tucionales y las formas de socialización que prin-cipalmente las cárceles promueven, que enen que ver con la con nuidadde unas prác cas y discursos que de enden la privación de libertad comomedida casi exclusiva para los infractores a la ley, sostenida en general

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desde el eufemismo de un tratamiento penitenciario que permi ría tor-nar a este sujeto asocial en una persona capaz de respetar la ley.

Por otro lado, esta recurrente apelación al texto de Go man, junto a

la célebre obra de Foucault, Vigilar y cas gar(1975), puede indicar tambi-én la falta de una producción signi ca va, de carácter crí co, que coloqueen cues ón a estos disposi vos carcelarios.

En parte, la falta de una acción crí ca más contundente permite quelas ins tuciones carcelarias se reproduzcan de manera acelerada apoya-das, en términos de consenso social, por un cierto afán de revanchismosocial que apunta a separar socialmente a los infractores a la ley, de la for-ma más prolongada y cruel posible (Ariza & Iturralde, 2011; Kessler, 2009).

Puede mencionarse inclusive una radicalización actual de estos dis-posi vos de reclusión, percep bles en la aparición de las cárceles denomi-nadas de máxima seguridad, que impiden en algunos casos que las perso-nas allí recluidas puedan tener cualquier contacto o diálogo con visitanteso agentes penitenciarios, como si la peligrosidad que se les atribuye pu-diese tener un cierto carácter viral.

Esta exasperación del potencial an social de ciertos sujetos estápresente en los trabajos de Charles Murray, Losing ground (1984) , Richard

Herrnstein denominado Q. I. na meritocracia (1973) yThe bell curve: intel -ligence and class estructure in american life (Herrnstein & Murray, 1994)En ellos se considera que las uniones ilegí mas y las familias monoparen-tales, entre otras causas, afectan el desarrollo intelectual de las personasy las predispone a infringir la ley.

La ya célebre de nición de la vidriera rota de Wilson (1982), es he-redera de estas suposiciones anteriores, a rmando que quien rompe unvidrio futuramente cometerá crímenes peores, caso no haya una interven-ción correc va temprana, de carácter penal.

Producto de esta arquitectura discursivo ins tucional, en Colombiaen par cular el número de personas privadas de libertad ha sufrido uncrecimiento acelerado, superando hoy los 115.000 reclusos, la mayoría encondiciones de hacinamiento y maltrato (INPEC, 2014).

Contra la explicación simplista e interesada, que sitúa en los propiossujetos la exclusiva responsabilidad por su situación legal, cabe destacar

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otros factores, como por ejemplo las polí cas económicas neoliberales,que provocaron un proceso brutal de exclusión social en los países dondefueron aplicadas, principalmente en el contexto la noamericano (Mar -nez, 2005). Esto trajo como consecuencia un desgarramiento del tejidosocial y un aumento de la violencia social e ins tucional en las sociedadesque sufrieron estos procesos.

Cabe en este sen do citar a Herbel (2002), cuando indica queLa fragilidad del sistema social urbano produce una violencia estructuralcuya respuesta trasvasa los diversos mecanismos legales, para ubicarse ensintonía con la demanda social de represión generada por múl ples facto-res de entre los que podemos destacar, en primer orden, el posicionamien-to de los sujetos que hegemonizan el discurso puni vo en una comunidad,

al colocarse como de nidores tanto de la realidad delictual cuanto de lanecesidad de una cierta estrategia puni va. (Herbel, 2002, p. 16)

Por esto, el Grupo de Derecho e Interés Público indicó queEl trato que reciben los internos de las cárceles colombianas, bajo las con-diciones que se han probado, les genera un sufrimiento sico y mentalintenso y severo, que resulta violatorio de la dignidad humana y de dere-chos como la vida, la salud y la integridad sica y psicológica. (Grupo deDerecho e Interés Público y Carlos Costa Inmigra on and Human RightsClinic, 2010, p. 91)

De esta manera, si considerados los efectos subje vos de la prisiónasí como, desde una perspec va jurídica, los altos niveles de reincidenciaentre población penitenciaria, las cárceles muestran su absoluto fracasoen relación al propósito de provocar un proceso de re exión en los sujetospresos que les permita su futura inserción social y evite la realización denuevos delitos (Za aroni, 2006)

Por este mo vo, Cesano (2003) considera que las penas de prisióncons tuyen un fracaso histórico: no solamente no socializan, sino que, apar r de las inves gaciones sociológicas desarrolladas desde el enfoque delinteraccionismo simbólico, han aportado valiosos datos para demostrar locontrario. No obstante, anclada en su lógica de mero espacio de cas go yaislamiento social, la can dad de sujetos presos y de ins tuciones penalesaumenta rápidamente. (Cesano, 2003, p. 865)

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La psicología al servicio del sistema

Dentro del paradigma “re” mencionado, la psicología suele cum-

plir una función esencial, desde la expecta va ins tucional de que sustécnicas facilitarían una conversión moral del sujeto y podría contribuira evitar su reincidencia criminal. Eventualmente, y respondiendo a unademanda de la jus cia, la psicología podría también establecer un pro-nós co que permi ría detectar la permanencia de tendencias asocialesen los sujetos, sugiriendo eventualmente la necesidad de postergar sali-das an cipadas parciales.

De esta forma, el disposi vo benthamiano de vigilancia y control

descripto por Foucault (1975), se ex ende hacia una suerte de vigilanciainterna del sujeto a cargo de profesionales que podrían ejercer una mira-da regular y certera de aspectos ocultos de su personalidad.

Pudorosamente, dada la triste historia asociada al término, se sueleevitar mencionar la palabra peligrosidad a la hora de hacer estos diag-nós cos, u lizándose lenguajes más su les o categorías psicopatológi-cas, pero del mismo carácter.

La historia de este concepto es también, parcialmente, la histo-ria de la propia psiquiatría, disciplina fuertemente marcada por la su-posición de la relación entre locura y peligrosidad. Ya el propio Pinel(1793/2007) había alertado de la existencia de sujetos que mostrabanconductas agresivas, sin presencia de delirios, que los harían objeto ne-cesario de un examen par cular y de un eventual tratamiento ins tucio-nal diferenciado.

Más tarde, Esquirol intentará responder a esta pregunta desdela gura clínica de la monomanía, que en sus varias formas afectaría la

conducta, el intelecto o el afecto, pudiendo por esto provocar su agresi-vidad. A este respecto, resulta de interés consultar el dictamen que Es-quirol realiza sobre el caso descripto por Foucault (2009) en Yo, Pierre Ri -viere, habiendo degollado a mi madre, mi hermana y mi hermano , dondese expresa esta perspec va clínica en relación al crimen considerado y suautor, un humilde campesino de la campiña francesa que atentó contrasu propia familia.

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Posteriormente Morel consigue situar el origen de ciertas conduc-tas socialmente reprochables (sea locura o crimen) en la degeneraciónque se adquiriría y reproduciría por las malas costumbres de generacio-nes anteriores, que se transmi rían familiarmente, como el alcoholismo,por ejemplo. La novedad aquí es que estos desórdenes conductuales ad-quieren base e ológica, a diferencia de caracterizaciones clínicas anterio-res, que situaban el origen de estos disturbios en una esfera moral.

Lombroso (1913/1979) encontró las bases de esas conductas en eta-pas pretéritas del desarrollo humano, lo que denominó como atavismo.Esta perspec va recogió varias tendencias de la época, la frenología porejemplo, para poder a rmar que la peligrosidad de un sujeto estaría es-tampada en su cuerpo y sería posible de medir a través del tamaño de sucráneo, brazos, orejas o la presencia de tatuajes, entre otros registros. Adiferencia de Morel, no se degeneraría un po ideal de sujeto, sino que lossujetos portadores de estas anomalías representarían una forma humanaanterior, primi va y violenta.

El lombrosismo no consigue a rmarse en este grado de radicali-dad, entre otras cosas, por su enfrentamiento con los jueces, cuya fun-ción perdería sen do en los disposi vos ins tucionales derivas de estateoría (¿para qué un proceso jurídico donde determinar culpabilidad o

inocencia, si la maldad estaría en el propio sujeto, en grado actual opotencial?)

No obstante, la herencia lombrosiana se prolongó en varios sen -dos, tanto en las prác cas y discursos expresados en los campos de exter-minio nazis, como en ciertos modelos psicopatológicos de la psiquiatría,parcialmente compar dos por algunas áreas de la psicología.

En la actualidad, la noción de psicopa a propuesta por Hare (1991)domina buena parte de las intervenciones en el campo forense y viene asinte zar esta relación entre personalidad y peligrosidad. El formato deentrevista que permi ría detectar las bases psicopá cas de la conduc-ta se resumió, de forma de poder ser u lizado de manera más rápida yefec va. Se evalúan aquí la locuacidad de las personas, su es lo de vidaparasitario y su inconstancia laboral, entre otros ítems.

Esta perspec va convive con un creciente auge de los modelosneuropsicológicos, que mapean el funcionamiento cerebral a la búsque-

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da de regularidades que permitan detectar patologías y formas de fun-cionamiento social, como la peligrosidad, entre otras.

La función de la psicología en los sistemas penitenciarios está enton-

ces fuertemente atravesada por esta historia y perspec vas, que se hacenpresentes aún en los discursos que pretenden apuntar a la resocializaciónde las personas privadas de libertad.

Pueden citarse aquí, a manera de ejemplo, los programas de tra-tamiento descriptos por Cas llo Monge (2011), englobados en lo que sedenomina como programa de Pensamiento social, que intenta incen varel desarrollo de habilidades sociales y control emocional y modi car even-tuales pensamientos impulsivos, así como facilitar una re exión personal

en torno a las consecuencias de determinadas conductas.Se aplica, dentro de este programa, la denominada Intervención en

ansiedad que se propone reducir el impacto en la conducta de los es -mulos estresantes y evitar así respuestas impulsivas. En el mismo sen do,actuarían las técnicas denominadas como de control de la violencia intra-familiar, de la drogodependencia, del comportamiento agresivo y de laagresión sexual.

La aplicación de este programa requiere de una clasi cación inicial

de la población objeto de la misma, que considere la diferencia entreinfractores, donde no habría un padrón conductual vinculado a la ilegali-dad; delincuentes, con una forma de vida vinculada regularmente al deli-to por mo vos económicos y los delincuentes que encontrarían placer eninfringir la ley. Para los delitos sexuales existe un esquema interpreta vopar cular.

Desde el análisis de este po de modelos teóricos y las prác casasociadas, Cesano (2003) de ne a esta ideología del tratamiento como

“un mero conduc smo; una manipulación de la personalidad del inter-no; una negación de sus derechos y libertades fundamentales” (Cesano,2003, p. 866).

De esta forma, esta tradición teórica y funcional de la psicología yla psiquiatría en el ámbito carcelario ha sido performa va de una formade relación entre la población penitenciaria y los/as profesionales de estecampo, lo que di culta cualquier forma de diálogo y obje vos de trabajo

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que se distancien de la expecta va de las personas privadas de libertaden mostrar su grado de resocialización y distancia respecto de ese otro (élmismo), que come ó el delito.

De esta forma, este entramado de discursos y prác cas, tanto lasque a rman la necesidad de radicalizar las polí cas de encarcelamiento ylas condiciones del mismo, como las que pretenden contribuir a resocia-lizar a los sujetos presos a través de un tratamiento o técnicas, con uyenen un ins tuido (Barembli , 2005) que reproduce la necesidad de sepa-rar socialmente a determinados grupos y sujetos a par r de su supuestaanormalidad y el riesgo que la misma signi caría.

Hacia una crí ca radical y necesaria del sistema

La crí ca a estos modelos ins tucionales debe ser entonces categórica,de forma de eliminar la con nua suposición de que ciertas reformas podránotorgarle un funcionamiento adecuado y permi rle responder a sus propósitosformales.

Esta crí ca estructural puede sostenerse desde varios puntos de vista yteorías. Se prioriza aquí el de la salud mental, entendiendo que desde este cam-

po se ha hecho una crí ca radical de las ins tuciones manicomiales (lo que enbuena media contribuyó a su progresivo desmantelamiento) pero escasamentese ha hecho hincapié en las consecuencias que para la salud mental acarreanlas prác cas carcelarias.

La de nición de salud mental impulsada por Galende (1997) ofrece unsoporte interesante en este sen do, al situar a la misma en un plano que exce-de la mirada médica para colocarla en el seno de las relaciones sociales por lascuales la persona transita, dimensionando así “las relaciones que permitenpensar conjuntamente al individuo y su comunidad” (p. 31)

De esta forma, la salud mental puede ser entendida como

un ámbito mul disciplinario des nado a prevenir, asis r y propender a larehabilitación de los padecimientos mentales, y lo hace desde una com-prensión de los lazos sociales deseables, implementando determinadaspolí cas dirigidas a la integración social y comunitaria de los individuos in-volucrados. (Galende, 1997, p. 108)

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En este caso, la referencia a padecimientos mentales debe ser en-tendida como el sufrimiento psíquico que la cárcel produce en los suje-tos, al ser despojados de cualquier atributo de singularidad, privacidad yrespeto. Este impacto se produce de manera diferenciada, atendiendo ala singularidad de las personas y sus caracterís cas culturales y sociales.

La noción de integración comunitaria apunta a romper con los para-digmas de resocialización o reinserción, siendo que la integración suponeun doble movimiento: del sujeto hacia la comunidad y de esta hacia elsujeto. Esta integración, según Galende y Kraut (2006), supone la posibili-dad de disolver los rasgos de iden dad dados por la ins tución “para po-sibilitar al individuo una par cipación plena en los intercambios sociales ysimbólicos” (Galende & Kraut, 1996, p. 32).

Ya dentro de la cárcel resulta más di cil pensar en comunidad comotal. Si quizás, y a manera de resistencia contra esas condiciones de vida,sería posible colocar la posibilidad de producir lazos sociales comunita-rios, de carácter fraterno, que permitan atenuar los impactos del encar-celamiento.

Esta es una tarea di cil, dado que, como Bauman (2003) a rmacompar r el es gma y la humillación pública no convierte en hermanos alos que sufren; alimenta la irrisión, el desprecio y el odio mutuos. Una per-sona es gma zada puede simpa zar o no con otro portador del es gma,los individuos es gma zados pueden vivir en paz o estar en guerra entre sí,pero es muy improbable que desarrollen respeto mutuo. (Bauman, 2003,p. 144)

Por esto, cabe reivindicar lo que Pacheco (2010) denominó comoclínica de la resistencia, que se dirige a aumentar el coe ciente de auto-nomía y autocuidado de los sujetos en contextos sociales e ins tucionalesagresivos.

También en términos de reducir esta forma de agresión ins tucio-nal, puede mencionarse a los disposi vos de jus cia reparatoria, que, re-presentan una alterna va a la prisión y una manera diferenciada de tratarlas infracciones a la ley.

En estos modelos, se apunta a incorporar a la víc ma y a la comuni-dad en la solución del con icto, ya que parte de la de nición del crimen

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como un problema de orden interrelacional. En este modelo, entre todosdebe intentarse reparar la relación quebrada; cuando alguien delinque, nosólo viola una norma, un bien jurídico abstracto, sino que lesiona concre-tamente a una persona, a una comunidad, y es por ello que en el procesode reparación deben intervenir ac vamente todas las partes involucradas(Fortete, citado por Cesano, 2003, p. 875).

Se plantea entonces la necesidad de dirigir la acción del profesionalde la psicología hacia otros obje vos, diferentes a los comprendidos en losparadigmas resocializantes aquí cri cados. Estos obje vos deben par rdel principio é co de promover y respetar la voz y el deseo de la poblacióna la que se dirigen, sin la intención de guiarlas desde una postura paterna-lista, basada en una supuesta imposibilidad (ins tucional, estructural, delorden que sea) de que estos sujetos de tomar las decisiones adecuadas.

Una verdadera prác ca emancipadora es aquella que promueve unaacción catalí ca (Montero, 2008), que permite el despliegue de poten-cialidades y deseos, no reglados ni mediados por quienes impulsan ini-cialmente esos procesos ni sujetos a los impera vos que las ins tucionescarcelarias y judiciales colocan.

Por lo ya expresado, un proceso ins tuyente debe plantearse, comoobje vo estratégico, la necesidad de acabar con los sistemas carcelarios.La crí ca a estos sistemas y su funcionamiento no debe suponer la obli-gación de ofrecer alterna vas, cuya creación dependerá de cambios es-tructurales en el modelo económico y social que permite las prisiones ylas jus ca.

En de ni va, la cues ón de las cárceles, su sen do y sus efectos sub- je vos, sociales y personales merece una mayor atención y producción decarácter crí co por parte de las ciencias sociales y humanas en general yde la psicología en par cular, en la medida en que las mismas mantenganel compromiso de contribuir con una sociedad más justa y solidaria.

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Guareschi, P. A. (2015).Polí ca, movimentos sociais e as vicissitudes da democracia brasileira...

Polí ca, movimentos sociais e as vicissitudes dademocracia brasileira atual

Pedrinho Arcides Guareschi

Introdução

Talvez não haja tema mais atual, no Brasil dessa segunda metade do

ano de 2015, do que o proposto para esse simpósio. A primeira coisa queme veio à mente foi que, ao exibir tais re exões, já possa ter havido rup-turas profundas em nossa sociedade, não excluída a mudança do própriogoverno. Tão sérias se apresentam, no momento atual, as vicissitudes dademocracia brasileira. Não tenho lembrança de ter experimentado umasituação semelhante em minha história de vida. Tendo isso em conside-ração, vou tentar colocar essas re exões de tal modo que, tanto no casode ruptura, como no de con nuidade, elas nos possam ajudar a avançarna busca de uma democracia autên ca, uma vida social digna e plena.

Essa seria também, para mim, a nalidade principal da psicologia social: aconsecução de uma vida boa.

Vou organizar tais re exões do seguinte modo:

- Primeiramente, discu rei o que entendo por polí ca. Creio quenem poderia ser diferente e, se quiser ser honesto, tenho de dizer o queentendo pelos termos que emprego. Esses termos possuem diferentes en-tendimentos, são polifásicos, carregam muitos sen dos.

- Em segundo lugar, situarei o que se pode entender – e o que eupretendo signi car – com o conceito de movimento social . Vou precisar aspossibilidades de sua formação e as contradições que ele implica.

- Finalmente, arrisco introduzir uma re exão que julgo extrema-mente per nente para o momento atual e que, no meu entender, não ésu cientemente levada em consideração: re ro-me ao papel central dosmeios de comunicação social na dinâmica tensional de uma sociedade.

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Psicologia social e os atuais desafos é co-polí cos no Brasil

O que vou entender por polítca

Vou me restringir a uma re exão crí ca, a par r de um referencial

histórico, losó co, mas também sociológico, ou psicossocial. Com isso,quero dizer que farei um esforço de oferecer um referencial tal que tornepossível a interpretação, em diferentes épocas, de diferentes prá cas deestruturação e funcionamento das diversas formações sociais.

Não é possível falar em polí ca sem que se faça referência, combase na história que conhecemos, às prá cas que deram origem e àsexperiências que marcaram o nascimento e desenvolvimento de muitospovos. Todos os analistas desse tema são unânimes em buscar elemen-

tos em tais experiências históricas. Entre os referidos analistas, selecionoapenas uma, Hannah Arendt (2011, 2012), que se dis nguiu nessas re-exões, e sublinho alguns pontos que julgo per nentes a nossa análise.

Hannah Arendt foi uma mulher que viveu - e sofreu – intensamen-te as di ceis vicissitudes do século XX. Não fugiu ao compromisso e àresponsabilidade de procurar entender e decifrar os sinais dos tempos econtribuiu, de maneira inteligente e inovadora, para aferir sen do às lu-tas da humanidade, num século conturbado por duas guerras mundiais.

Arendt vai buscar na polis grega e na civitas romana inspiraçõespara poder entender, por um lado, e sugerir, por outro, como nossa po-lí ca pode ser.

Como era a polis grega? Certamente não se poderia dizer que elaera, ou mesmo tenha chegado a ser, um modo de vida universal e gene-ralizado para todos os gregos. Ela pretendia se cons tuir, isto sim, numasituação ideal em que as pessoas, já libertadas do labor (trabalho), ne-cessário para sa sfazer às necessidades vitais (o espaço da necessidade),

e também já tendo superado o domínio da obra, isto é, da fabricação etransformação da natureza para a construção de bens (o espaço da u -lidade), poderiam viver com mais plenitude aquela dimensão em que sesituaria o verdadeiramente humano, o espaço da ação como discurso, ouseja, o espaço polí co, onde se poderia falar e viver em liberdade. Expli-citando melhor: a proposta de Arendt é re e r sobre o que fazemos. Paraisso, ela se detém em três a vidades humanas fundamentais: o trabalho,que corresponde ao processo biológico do corpo humano, das necessida-

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Guareschi, P. A. (2015).Polí ca, movimentos sociais e as vicissitudes da democracia brasileira...

des vitais e cuja condição humana é a própria vida; a obra, ou fabricação,que corresponde ao ar cialismo da existência humana, produção de ummundo “ar cial” de coisas, e cuja condição humana é a mundanidade;e, por m, a ação (discurso), que é a única a vidade que se exerce dire-tamente entre seres humanos sem a mediação das coisas ou da matériae que corresponde à condição humana da pluralidade (Arendt, 2011).

Qual a argumentação que Arendt segue para chegar a essas a r-mações? Não é possível a rmar que a interpretação que damos seja aúnica correta, se é que alguém pode dizer que possui uma interpretaçãocorreta de algum escrito ou fala. Mas ela pode ser jus cada. É o quearrisco fazer aqui.

Arendt começa asseverando que “o que dis ngue o convívio doshomens na polis de todas as outras formas de convívio humano, queeram bem conhecidas dos gregos, era a liberdade” (2012, p. 47). Mas apolí ca não era um “meio” para possibilitar a liberdade. “Ser livre e viver--numa- polis eram, num certo sen do, a mesma e única coisa” (idem). Elogo adiante explicita mais: “O sen do da coisa polí ca aqui, mas nãoseu obje vo, é os homens terem relações entre si em liberdade, paraalém da força, da coação e do domínio... (eles) regulamentavam todosos assuntos por meio da conversa mútua e do convencimento recíproco”

(2012, p. 48).A coisa polí ca se centra em torno da liberdade, entendida nega -

vamente como não ser dominado e não dominar; e, posi vamente, comoum espaço que só pode ser produzido por muitos... “sem esses outros,que são meus iguais, não existe liberdade alguma” (p. 48).

Arendt assinala que, normalmente, ao falarmos de igualdade, vin-culamos tal conceito ao de jus ça, e não ao de liberdade. E insiste: “ Iso-nomia não signi ca que todos são iguais perante a lei, nem que a lei seja

igual para todos, mas sim que todos têm o mesmo direito à a vidadepolí ca ... isonomia é, antes de mais nada, liberdade de falar e como talo mesmo que isegoria; mais tarde, em Polibios, ambas signi cam apenasisologia” (Arendt, 2012, p. 49). Há aqui um detalhe importante: “O falarna forma de ordenar, e ouvir na forma de obedecer, não eram avaliadoscomo falar e ouvir originais; não era uma conversa livre ... mas sim (com-prome da) por um fazer que pressupunha o forçar e o ser forçado” (p.49). Por isso, conclui Arendt, os gregos diziam que os escravos e bárbaros

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eram aneu logou, não dominavam a palavra, encontravam-se em umasituação na qual era impossível a conversa livre.

Assim, polí ca, liberdade e comunicação (fala, discurso) estão

in mamente ligadas. A ação autên ca, no pensamento de Arendt, é apossibilidade de dizer a palavra, expressar a opinião, manifestar o pen-samento, na comunidade-sociedade, necessariamente com os outros ,indispensáveis para a realização do ser humano: “o acessório indispen-sável, a constante presença de outros, o relacionamento com iguais napublicidade da ágora , a isegoria torna-se o verdadeiro conteúdo do ser--livre. Ao mesmo tempo, a mais importante a vidade para o ser-livredesloca-se do agir para o falar, da ação livre para a palavra livre ... o pró-prio falar era compreendido a priori como uma espécie de agir” (2012,p. 56).

Há dois anos decidi pesquisar um ponto que sempre me inquie-tava e que permanecia como uma interrogação constante e sem res-posta: que pensam nossos polí cos da comunicação, especi camentedos meios de comunicação? Teriam eles consciência da importância damídia e da situação da comunicação no Brasil? Arrisquei-me nesse em-preendimento e fui perguntar a eles próprios, os que vivenciavam esseproblema, o que eles pensavam.

Entrevistamos 14 atores polí cos, entre senadores, deputados fe-derais e estaduais, vereadores, de seis dos principais par dos polí cos,e conferimos alguns dos achados com dois pesquisadores que trabalhamessa questão. Duas conclusões principais que julgo centrais:

A primeira é a indiscu vel subordinação dos polí cos à mídia. Ape-sar de não concordarem que isso deva ser assim, eles confessam que amídia os apavora. Não dizem claramente, mas dão a entender que, dequalquer maneira, é preciso estar bem com a mídia. Os que já usufru-íram dela para poderem se eleger negam que tenha sido através delae em parceria com ela – antes ou durante sua a vidade polí ca – quetenham chegado até lá. Os que não puderam fazer uso dela a rmamque nunca veram coragem de enfrentá-la e que, se não vessem douma convivência pací ca com ela, não teriam conseguido se eleger. Mastodos eles, tanto os que defendem sua atuação como é, como os queques onam seu poder auto-atribuído – pois os donos dos meios não re-

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ceberam esse poder do povo, uma vez que, como a rma a Cons tuição,em seu primeiro ar go, todo o poder promana do povo e em seu nomeé exercido – todos, repito, dobram os joelhos diante de seu indiscu velpoder, inclusive em assuntos referentes à polí ca, tanto geral, como es-pecí ca.

A outra constatação, talvez mais dolorosa, é o absoluto desconhe-cimento da relação intrínseca entre mídia e polí ca. Nenhum deles fezreferência ao papel da mídia na construção da cidadania, seu papel fun-damental para a possibilidade de uma verdadeira polí ca que garantaa liberdade – no sen do que Hannah Arendt fala da polí ca. Para eles,a mídia é um apêndice da polí ca, não é a verdadeira polí ca, o espaçodo discurso e da fala livres, em que os/as cidadãos/ãs se realizam comoseres humanos em sua completude e auten cidade.

A verdadeira polí ca é, pois, garan r o espaço da fala, situaçãoespecí ca de exercício da liberdade. Dito com outras palavras, ser cida-dão é par cipar. Mas precisamos estar atentos e discernir de imediatosobre o que queremos signi ar com o ato de par cipar. Numa dis nçãoprimeira e central, podemos dis nguir ao menos três pos de ações par-

cipa vas: par cipar no planejamento , na execução e nos resultados . Oque se nota, ao primeiro exame de nossa polí ca, é que os/as cidadãos/ãs são convocados e par cipam, de corpo inteiro, na execução: são elesos construtores da nação com seu trabalho árduo. Quanto à par cipa-ção nos resultados , basta dizer que o Brasil é o vice-campeão mundialde má distribuição de renda. A questão crucial, precisa ser dito comclareza, é a par cipação no planejamento , visto que é no planejamentoque se decidem os outros dois pos de ação: quem faz o que (execução)e quem ca com o que (resultados). Ação polí ca, ação cidadã é, con-sequentemente, par cipar no planejamento . É a esse nível que todo/toda cidadão/ã é convocado a dizer sua palavra, externar sua opinião,manifestar o seu projeto. E tudo isso de maneira livre, sem coação. Aação par cipa va no planejamento da cidade é o que se pode chamarde verdadeira ação polí ca.

Democracia implica par cipação no sen do de ter o direito de“apresentar seu projeto”, dizer sua palavra, original e única, indispensá-vel para a construção da cidade. Sem que isso exista, não há verdadeira

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democracia. E liberdade é a própria condição da verdadeira polí ca, istoé, de um po de vivência social que se dá quando existe a possibilidadeda livre expressão do pensamento de todos, e não apenas de alguns.

Formação e estratégias dos movimentos sociais

O obje vo, nesse segundo ponto, é tentar situar e deixar, enquan-to possível, compreensível o que entendemos e por movimentos so-ciais. Para isso, proponho um referencial de como se pode entenderuma formação social e, dentro dela, a formação e o desenvolvimentode movimentos sociais. Uma sociedade não é, como muitos imaginam,algo parado e está co. Estamos acostumados a ver organogramas e grá-

cos de uma sociedade, e não nos damos conta de que a sociedade éum mar revolto, é um rio que corre. Por quê? Porque o que de ne umasociedade são as relações que se estabelecem entre as pessoas, porum lado, e entre as pessoas e as coisas que as rodeiam, por outro. Asrelações de produção, que se não são preponderantes em determinadomomento histórico, são sempre necessárias, pois sem comer ninguémvive. E no caso de nossa sociedade – re ro-me ao Brasil, mas pode-seestender essa visão a todas as formações sociais capialistas - são extre-

mamente tensas, con i vas e contraditórias (Guareschi, 2014).Não é segredo para ninguém que o Brasil se alinha dentro de uma

formação social que é chamada de capitalista. Tal sociedade se de nepor duas relações especí cas, que denominamos de dominação e de ex-ploração. Dominação signi ca que são poucos, ao redor de seis por cen-to, os que possuem os meios de produção, os que são donos, enquantoos outros trabalham para eles. Nas relações entre pessoas, no referenteaos meios de produção, a relação fundamental é então de dominação.

Junto com a dominação, há outra relação estruturante que se cos-tuma chamar de relação de exploração . Sendo que é apenas o trabalhoque pode produzir riqueza, isto é, valor econômico, os que detêm osmeios de produção somente se podem enriquecer a par r da expropria-ção do trabalho humano. A tal relação se costuma chamar de exploração.

É fácil constatar que essas relações nem sempre são pací cas. Aocontrário, à medida que elas se generalizam e que as pessoas tomam

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delas consciência, o resultado é a tensão e o con ito. Aqui está a origem,por um lado, e o segredo, por outro, para se compreender toda a estru-turação de uma sociedade: ela é muito mais que um conjunto de organi-zações referentes às dimensões econômicas, polí cas, culturais, sociais.Essas relações se apresentam tensas e contraditórias. Para superar taiscon itos e contradições, é necessário criar e legi mar normas, leis, acor-dos, negociações, com o intuito de reproduzir e garan r essas relações,muitas vezes desiguais e injustas, chamadas por alguns de superestrutu-ra, ou Estado. Compreende-se bem o que seja Estado quando se vai à suaraiz: estado é o par cípio passado do verbo estar e, em sua origem, nãosigni ca nada mais do que aquilo que cou, aquilo que se solidi cou, es-tabeleceu-se como resultante das tensões existentes nas relações con i-

tuosas na produção. Ele vai tomar as feições e responderá aos interessesde quem mais poder possuir nas relações con ituosas ali presentes. O Es-tado é, pois, o resultado das negociações construídas a par r das tensõesentre diferentes interesses originadas nas relações de produção. Quandotais interesses, ou negociações, conseguem se materializar, temos o quese costuma chamar de “ins tuições”. Nenhuma ins tuição caiu do céupronta, ou foi fruto de geração espontânea. Elas têm sua origem nas ten-sões existentes entre os membros e grupos de determinada sociedade.Resumindo: é das relações de tensão existentes dentro de uma socieda-

de que nascem as ins tuições, as quais têm como função a con nuidade,a reprodução social e a legi mação dessa sociedade.

Algumas dessas ins tuições criadas usam a força, a coerção, a re-pressão. São in tuladas de ins tuições ou aparelhos repressivos. Outrasempregam prá cas e processos que usam a persuasão ou a ideologia,conhecidas como ins tuições ou aparelhos ideológicos (Althusser,1985).

Gostaria de chamar a atenção e enfa zar, com base na Figura 1, aseguir, a importância dos meios de comunicação. Eles ocupam um lugarespecí co e estratégico: são imprescindíveis para que uma sociedade sereproduza socialmente, ou seja, no que concerne a seus padrões de vida,seus valores, seus costumes, sua é ca etc. Para que uma sociedade sereproduza materialmente, é necessário que haja alimentos, moradia, es-tradas etc; mas a reprodução social é bem mais complexa. Mais: a repro-dução social vai contribuir para que determinada sociedade se reproduzamaterialmente de determinado modo.

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Figura 1. A dinâmica con i va de uma sociedade capitalista

É a essa altura de nossa análise que podemos entender o que são osmovimentos sociais. Eles se originam das tensões existentes nas relaçõesestruturantes de uma sociedade e se organizam de muitas maneiras dife-rentes, conforme as tensões predominantes em determinados momentose a par r de temas e propostas dos diferentes grupos de interesse.

Podemos assim ver movimentos que se originam do próprio capital,principalmente movimentos ideológicos que usam ideias e crenças paralegi mar situações de dominação e exploração. A maioria dos movimen-tos sociais nasce, contudo, de quem sofre relações e situações de domi-nação e exploração. A lista seria longa se quiséssemos enumerar a todos,mas eles perpassam os diferentes estratos de uma sociedade, podendosurgir de problemas originados no campo econômico, como os sindicatos;movimentos ligados à terra, à água, à ecologia; como podem se originar

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de relações que podemos chamar de culturais, como gênero, raça, etnia,religião, iden dade social. O que é comum a todos eles é sua luta pela su-peração de situações injustas, desiguais, discriminatórias. À base de todasessas situações podemos entrever, ao menos indiretamente, relações decominação ou exploração. Evidentemente, todos os movimentos sociaiscarregam consigo também valores que, na sua concepção, não são respei-tados e aceitos no espectro é co de uma sociedade.

Não é sempre fácil iden car os verdadeiros interesses de deter-minados movimentos sociais. É preciso muita perspicácia e análise crí capara se poder descobrir e iden car estratégias camu adas por detrásde muitos deles que, muitas vezes, se apresentam e são considerados atémesmo como espontâneos.

Seria possível analisar alguns das centenas de movimentos queexistem hoje, tanto em âmbito mundial, como brasileiro. Vou me arris-car, então, a comentar alguns movimentos, ou melhor, mobilizações, quetomaram conta de nossa sociedade nos úl mos anos. Estou consciente deque essa é uma análise arriscada e polêmica. Mas é para isso que estamosaqui: para re e r, termos visões plurais de nossa vida social, cons tuídapor tensões e contradições.

Vou me ater à análise de duas mobilizações que aconteceram no Bra-

sil nos úl mos dois anos: as manifestações de junho de 2013 e as manifes-tações ocorridas principalmente neste ano de 2015, após a vitória da atualpresidenta do Brasil. Analiso nesse item a primeira, pois, no meu entender,é um bom exemplo de como “ tensões” existentes numa sociedade vão setransformar em atos de reação, resistência e até mesmo certa estrutura-ção de determinadas mobilizações. Deixo para o item seguinte a análisedas manifestações deste ano de 2015, já que elas só foram possíveis, aindadentro do meu entendimento, devido a uma variável que está sempre pre-sente em qualquer movimento nas sociedades modernas que, se não é apreponderante, está sempre presente: os meios de comunicação.

Por onde se poderia iniciar uma análise das mobilizações de junhode 2013? Estudos mais minuciosos e posteriores às mobilizações são unâ-nimes em localizar o início dos atos generalizados em certos grupos sociaisque há alguns anos já vinham reagindo e lutando contra situações de ex-tremo stress social que foi se agravando e se tornando quase insuportável.Entre essas situações, talvez as principais seriam as condições desumanas

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no transporte. O estopim foi o aumento de 20 a 30 centavos nas passa-gens em algumas capitais, primeiro em Porto Alegre, depois em S.Pauloe Rio de Janeiro. As reações se alastraram como pólvora e pegaram desurpresa prefeitos, governadores, legisladores, aparelhos de segurança eoutros órgãos o ciais. As ar culações eram feitas através das mídias so-ciais e os supostos líderes não se apresentavam claramente como líderes,ou disfarçavam seus papéis.

A análise de tais atos deixa evidenciada, de modo paradigmá co,a contradição fundamental contra a qual eles se rebelavam, não se sabecom que grau de consciência: em primeiro lugar, os bancos, os represen-tantes primeiros e centrais do capitalismo nanceiro internacional; de-pois, algumas organizações, muitas vezes mul nacionais, com claro viéscapitalista (McDonald, etc). E não caram de fora, também, os própriosedi cios que abrigam poderes polí cos – estaduais e municipais – numaclara demonstração de que, para esses jovens, o governo e o Estado são acara exposta do capital.

É bastante ilustra vo examinar as estratégias da Grande Mídia 1 nacobertura desses acontecimentos (Guareschi & Guerras, 2015). Inicial-mente, as mobilizações foram totalmente ignoradas. É a estratégia picada invisibilização:se um acontecimento não é veiculado, para a imensamaioria da população ele não existe. Essa estratégia se deu em nível na-cional e os movimentos só saíram da invisibilidade quando a Grande Mídiapercebeu que não podia mais deixar de no ciar as manifestações, as quaisestavam sendo cons tuídas por mul dões cada vez maiores e espalhadaspelas mais diversas cidades de todo o país. Desse momento em diante,a estratégia u lizada passou a ser a de criminalização: tais ações eramcrimes contra a ordem pública e a propriedade privada. Mas a essa altura,alguns fatos novos e inesperados aconteceram: os repórteres que cobriam

as manifestações passaram a ser agredidos e até mesmo feridos pela polí-cia que a própria mídia nha conclamado a que “pusesse ordem nas ma-nifestações”. A par r daí, a estratégia passou a ser de cooptação , ou derecuperação (Guareschi, 2001, p. 56 ), isto é, tentar apropriar-se das expli-

1 Por Grande Mídia entendemos o fenômeno de ter-se materializado entre nós um sistema decomunicação em que a maior parte dos meios, sobretudo os eletrônicos, ter sido apropriadapor um pequeno grupo de famílias que possuem fundamentalmente a mesma orientaçãoideológica, defendendo e legi mando os pressupostos liberais capitalistas (Guareschi, 2013).

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cações possíveis e admissíveis de tais manifestações e apresentá-las comosuas. A ação colocada em prá ca foi a mesma dos conquistadores roma-nos: divide et impera, ou seja, discrimine e então você poderá dar umanova versão coerente com os “donos” da mídia. Os manifestantes foram,desse modo, divididos em dois grupos: por um lado, os bons, os legí mos,que estavam mostrando sua vontade de par cipar democra camente,exercer sua cidadania; e, por outro lado, os baderneiros, “vândalos”, de-sordeiros, um pequeno grupo que deveria con nuar a ser reprimido.

O que gostaria de ressaltar, com esse exemplo, é que os movimen-tos sociais e outras mobilizações da sociedade se originam das tensõese contradições existentes nas relações que cons tuem uma sociedade; eentre essas relações, as mais importantes são as relações de produção.Os proprietários das empresas de transporte, respaldadas pelo Estado,exageraram a dose de exploração sobre os milhões de trabalhadores quedia a dia têm de suportar várias horas de deslocamento para seu localde trabalho onde, muitas vezes, con nuariam a ser ainda explorados. E oincêndio se alastrou.

Evidentemente não pretendo a rmar que essa situação de stress so-cial tenha sido a única que originou os movimentos, ou que tenha estadopresente em todos eles. Outras contradições foram tmbém se apresen-

tando. O que desejo mostrar é que as mobiliziações e movimentos têm,na maioria das vezes, origem nas tensões existentes nas relações de umaformação social, principalmente nas relações de produção.

Tais movimentos são imediatamente comba dos, primeiramente,pelos aparelhos ideológicos que empregam estratégias de persuasão econsen mento, em especial os meios de comunicação em seus diversosmodos de ação. Somente quando essas estratégias deixam de funcionar,são postas em execução ações de coação e repressão, com a convocação

de aparatos que usam a força e a violência, como as polícias e, em úl mocaso, o exército.

A midiação invisível da mídia

Vou, nessa úl ma parte, sublinhar algumas estratégias da nos-sa “Grande Mídia”, tentando mostrar como as mobilizações que vêm se

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repe ndo, e parecem nunca terminar, nesses primeiros meses de 2015,passam a ser mais inteligíveis no momento em que nos concentramos navariável mídia.

Como já mencionamos acima, os meios de comunicação se cons -tuem hoje numa midiação indispensável para a compreensão da dinâmi-ca das sociedades modernas. Se, em determinados momentos, não sãoos preponderantes, eles são, contudo, sempre necessários. Uma análiseperspicaz vai iden car suas estratégias su s. Numa sociedade como anossa, isto é, numa formação social capitalista, os próprios conglomera-dos midiá cos se transformaram em empresas de capital. Exercem, en-tão, um duplo efeito nas relações sociais: como uma empresa capitalistae como aparelhos de reprodução e legi mação das relações centrais denossa sociedade.

As mobilizações atuais, para quem as toma à primeira vista, mos-tram-se difusas, múl plas, polivalentes, aparentemente plurais, declaran-do,, inclusive não possuírem uma “ideologia” especí ca; todas elas, po-rém, insistem em se declararem “representantes” da população brasileira.Não pretendo que a análise que passo a fazer seja a única, ou completa.Apresento-a como ainda precária, para ser discu da.

Busco elementos para este estudo, num trabalho do lósofo e ana-lista social Boaventura de Sousa Santos (2014), que apresenta uma análisecuidadosa das referidas mobilizações, indicando como elas têm suas ori-gens já nos meses que antecederam as eleições de outubro de 2014. Elemostra como aquelas eleições eram assunto frequente dos grandes meiosde comunicação mundiais que faziam uma cobertura hos l à candidataDilma, do mesmo modo que a “Grande Mídia” brasileira. A rma até mes-mo que a revista Veja chegou ao ponto de enveredar “por uma via prova-velmente criminosa”. Mostra que todas as vezes que o New York Timesse

referia à candidata era com o epíteto de ex-guerrilheira. The Economist eFinancial Times, junto com as agências de ra ng, criaram um terrorismoeconômico. Qual seria a razão de tão desesperada hos lidade, que con -nuou após as eleições e se prolonga até os dias de hoje?

Na a rmação do estudioso, tudo isso aconteceu, e acontece, pois “oBrasil é hoje o exemplo internacionalmente mais importante e consolida-do da possibilidade de regular o capitalismo para garan r um mínimo de

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jus ça social e impedir que a democracia seja totalmente capturada pelosdonos do capital, como acontece hoje nos EUA e está para acontecer umpouco por todo o lado”. Essa a razão de ter havido, e ainda haver, um enor-me inves mento para derrotar a atual Presidenta do Brasil.

Um exame minucioso dos embates que se prolongam no Brasil vaievidenciar que há por detrás de todas essas mobilizações dois projetos,que vão revelar a contradição fundamental persistente no Brasil, que éainda a existente entre a Casa Grande e a Senzala. Aqui estaria a origemcomum das inúmeras manifestações dos úl mos meses. Há uma tensão,um receio, de que alguma ruptura, ou alguma mudança, possa ser leva-da a efeito com o avanço de um novo projeto que venha ferir, ao menosde leve, os interesses do capitalismo nanceiro nacional e mesmo inter-nacional.

Os estudos qualita vos realizados durante os principais movimentosdeste ano, principalmente os de abril e agosto, vão mostrar com clarezao per l dos manifestantes contra a presidente. Ao redor de 75% são pes-soas as quais, na eleição de outubro, votaram no candidato da oposiçãoque, se não chegava a se apresentar claramente, era considerado comorepresentante das elites e do capital. A maioria deles ganhava mais dequatro salários mínimos. Os que ganhavam até um salário não chegavam

a 3%. As referências e rejeição a personalidades que claramente se iden-cam à busca de uma sociedade mais justa e democrá ca, como PauloFreire, são fortemente reveladoras dos interesses de quem coordenavaessas manifestações.

Mas há ainda alguns dados muito signi ca vos: as pesquisas apon-taram que chegava a quase 30% o número dos que não nham clarezados mo vos pelos quais estavam protestando. As explicações foram asmais diversas possíveis, desde mo vos pessoais contra determinadas pes-soas, até formulações contraditórias aos próprios propósitos declaradosdos “organizadores” do movimento. Isso sugere que boa parte dos quepar cipavam possa ter sido levada apenas por propaganda da mídia. Issoé corroborado pelo fato de que surpreendeu, nessas mobilizações, a fraca,ou mesmo contraditória, representa vidade dos supostos organizadores.Mas ao mesmo tempo, sobretudo na manifestação de abril, cou claroque, sem a “coordenação” da Globo News, que de 15 em 15 minutos in-tervinha por aproximadamente 5 a 7 minutos na divulgação e, segundo

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alguns, orientação do movimento, não teria havido outro agente quepoderia ser chamado de “integrador” das mobilizações. Não há estudossobre o papel da mídia no ‘antes’ e no ‘depois’ dos movimentos, mas osno ciários foram, de qualquer modo, extremamente pródigos.

Ficam evidentes nas análises o papel e a postura da “Grande Mídia”.Nas palavras de Santos, “a agressividade da ‘Grande Mídia’, o desesperoque levou alguns deles a cometer atos considerados por muitos comopróximos a crime, assenta no interesse da grande burguesia em recupe-rar o pleno controle da economia e realizar os lucros extraordinários daspriva zações por fazer, especialmente a Petrobras e o Pré-Sal. Não tendopodido derrotar a candidata, essa burguesia transnacional, sob a égide docapital nanceiro, con nua a pressionar abertamente pela composição

de uma equipe econômica que sa sfaça os impera vos dos mercados.Esse braço arrastou consigo setores importantes da classe média que é,em boa parte, um produto das polí cas de inclusão do próprio governodos úl mos 13 anos, que assumem o discurso da agressividade que trans-forma o adversário em inimigo.”

Estas análises poderiam ser ainda muito ampliadas. Gostaria, con-tudo, de trazer à discussão uma estratégia bastante comum e muito em-pregada pela mídia para incrementar as contradições da sociedade no

intuito de fazer prevalecer os interesses dos grupos dominantes. Comoé impossível mudar a direção de uma nação – ou, em outras palavras,dar um golpe – sem que haja o apoio, ao menos silencioso, da maioriada população, a mídia, quando a serviço da elite dominante, vai dia adia construindo o que poderia ser chamado de “fato consumado”, ou anaturalização de determinados pressupostos, como: “Estamos em crise;o desemprego está incontrolável; a in ação cresce dia a dia; os preços ex-plodem”, etc. Isso vai criando na população uma “convicção generalizada”de que a situação está insuportável. É o trabalho diuturno e con nuo de

fabricar assustados para produzir insa sfeitos . Esse é um exemplo ilustra-vo de profecia autorrealizada : repe r con nuamente que algo está mal,até que isso se transforme em realidade. Vou exempli car tal estratégiaaproveitando as informações de uma pesquisa.

O Ins tuto Vox Populi fez uma pesquisa sobre os “sen mentos eexpecta vas a respeito da economia” (Dias, 2015, p. 53). A pesquisamostra que a quase totalidade dos brasileiros, depois de serem bom-

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bardeados durante tanto tempo com a noção de “crise”, perdeu a capa-cidade de enxergar com realismo a situação da economia. Alguns dadosimpressionantes:

- Acerca da quan a imaginada para comprar, daqui a um mês , o quese compra hoje com 100 reais, 98% descon am de que vão precisar mais,ou muito mais: 73% temem uma alta superior a 10%. Quase a metade,47%, es mam uma in ação acima de 20%. E 35% receiam que os preçossubirão mais de 30%. Isso num mês!

- Perguntados sobre como estará a situação no m do ano, 1% dizque os preços subirão em média 5%. Outro 1% es ma uma alta entre5 e 10%. Resumindo: 1% errou para menos, e 1% está na média. Agoravejam: 98% erraram para mais, desmesuradamente: quase a metade seapavora com a perspec va de uma in ação superior a 50%! E destes, umterço fantasia uma in ação de 80%!

- Quanto ao desemprego hoje: apenas 7% sabem que hoje o de-semprego é menos de 10%. Um quarto (25%) acredita que o desempregovaria de 10 a 30%. E 38% imaginam que a proporção de brasileiros sememprego ultrapassa 40%!

- Desemprego no m do ano: 40% acreditam que o desemprego em

dezembro vai cas gar metade da população a va!

Além dessa prá ca que é generalizada na mídia, ainda poderiam serelencadas outras estratégias que se prestam a interesses de uma mídiacomprome a com o capital. Michel Carvalho da Silva (2015) fez um es-tudo sobre o que ele denominou como a “viralização do senso comum”,uma espécie de “envenenamento” da opinião pública com no cias falsas,ou alarmantes, colocadas comumente na boca de determinados perso-nagens polí cos ou auto-promovidos analistas da polí ca, que se escon-dem atrás de blogs e outras mídias sociais.

Questões para con nuar a pensar

Pretendeu-se, nessa comunicação, pensar os movimentos sociaisdentro de uma sociedade capitalista como a brasileira. Tentamos, a par r

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de um referencial crí co – histórico e losó co - uma breve re exão arespeito do que se poderia entender por polí ca. Passamos a discu rcomo poderiam ser compreendidos os movimentos sociais numa forma-ção social capitalista. Finalmente, arriscamos fazer uma análise – certa-mente incompleta e polêmica – de mobilizações que chamaram a aten-ção nos úl mos dois anos no Brasil: os movimentos de junho de 2013 eas mobilizações frequentes registradas principalmente após a eleição deoutubro de 2014.

Demos especial atenção ao papel dos meios de comunicação socialnessas mobilizações. É nosso entendimento que a polí ca nas sociedadesmodernas não pode prescindir da mídia. Sem chegar a a rmar, como al-guns pensadores atuais, que a mídia é, hoje, a polí ca e, vice-versa, que apolí ca é a mídia – pois deixamos espaço ao surgimento de mobilizaçõessociais que parecem brotar de sen mentos cole vos reprimidos e repre-sados e de vivências sofridas de ingentes con ngentes de populações,como seria o caso da primavera árabe e, para alguns, as mobilizações de junho de 2013 no Brasil – não vemos como se pode prescindir da mídia,especi camente da “Grande Mídia”, para um entendimento mais profun-do e completo dos fenômenos polí cos nas sociedades modernas.

Referências

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Guareschi, P. (2014). Sociologia crí ca: alterna vas de mudança (64ª ed.).Porto Alegre: Edipucrs.

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Guareschi, P. A. (2015).Polí ca, movimentos sociais e as vicissitudes da democracia brasileira...

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Santos, B. S. (2014). A grande divisão. In Canal Ibase. Acesso em 30 de agos-to, 2015, em h p://www.canalibase.org.br/brasil-a-grande-divisao/

Silva, M. C. (2015, 21 de agosto). A viralização do senso comum. Observatórioda Imprensa. Acesso em 30 de agosto, 2015, em h p://observatoriodaim-prensa.com.br/redes-sociais/a-viralizacao-do-senso-comum/

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Psicologia social e os atuais desafos é co-polí cos no Brasil

Cartogra as psicopolí cas do co diano: tecnopolí cae movimentos sociais

Domenico Uhng Hur

Introdução

Discu r a Psicologia Social e as prá cas polí cas na atualidade nos

confronta com as novas con gurações que as formações sociais vêm as-sumindo, com a sua correlata produção de subje vidade. Já não há aque-le bipolarismo polí co que marcou a guerra fria no século XX, os atoressociais não se de nem apenas pelo conjunto de ideais que defendem,a esquerda polí ca, ao tomar o poder do Estado, não mudou o mundo,como pretendia, e houve o ressurgimento de grupos ultraconservadorescom discursos e pleitos que beiram o fascismo. Mas o que deu errado?O que mudou e o que permanece o mesmo? Por que os processos detransformação social parecem mais di ceis que outrora? Por que a demo-

cracia exercida no co diano não levou à autonomia e emancipação, masao esvaziamento do polí co? Qual é o papel do intelectual e da PsicologiaSocial e Polí ca mediante este quadro? O que as prá cas dos movimentossociais podem nos ensinar frente à intensi cação da gramá ca neoliberal?

Com este ensaio visamos realizar uma cartogra a psicopolí ca doco diano, em que discorremos sobre a transição de modelos polí cos queestamos atravessando, a produção de uma subje vidade capitalista e asprá cas de insurgência fomentadas pelos movimentos sociais a par r da

polí ca nômade. Realizamos uma re exão acerca dos desa os para umaautonomia dos cole vos sociais mediante a transformação dos cenáriospolí cos através da intensi cação da axiomá ca do capital. Não nos cen-tramos num exemplo empírico concreto, pois optamos discu r teorica-mente os vetores de forças atuantes no campo social. Como método paranosso ensaio u lizamos conceitos de autores pós-estruturalistas, comoGilles Deleuze, Félix Gua ari e René Kaës.

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Hur, D. U. (2015). Cartografas psicopolí cas do co diano: tecnopolí ca e movimentos sociais

Da polí ca à tecnopolí ca

As disputas polí cas no século XX foram marcadas pela crença de

que, ao se tomar o poder do Estado, seja pela via eleitoral ou armada, po-deria ser realizada a transformação social. Obje vava-se assim dominar aaparelhagem estatal como forma de operacionalizar os obje vos polí cos.Entretanto, a experiência histórica nos mostrou que muitas vitórias da es-querda polí ca resultaram no contrário, havendo mais rigidez nas formashierárquicas de poder do que a autogestão pretendida. Ao invés de trazera transformação social almejada, houve uma maior estra cação das es-truturas de poder (Holloway, 2003), numa espécie de reatualização dasformações imperiais-despó cas, quando o soberano entrava num regimede sobrecodi cação dos uxos sociais a par r de seu desejo (Deleuze &Gua ari, 1976).

Nesse po de formação, existe uma xação do inves mento dese- jante aos estratos de poder ins tucional, no polo paranoico (Deleuze &Gua ari, 1976), gerando um agenciamento psicopolí co em que a ins -tuição e os processos de ins tucionalização ocupam lugar central, que de-nominamos de estratopolí ca:

É o agenciamento polí co que se baseia em estratos, lugares e posições quese ocupa dentro da estrutura ins tucional, numa prá ca que valoriza maiso ins tuído e o cristalizado, ao invés do ins tuinte; os processos de xação,ao invés do uxo e do movimento; os resultados ao invés do processo; maisa uma lógica do ser e do estado de coisas, do que pela lógica do devir. (Hur,2014, pp. 21-22)

Nesse agenciamento psicopolí co há uma fusão (Bleger, 1975) entreator-cole vo polí co e ins tuição, em que esta se torna uma espécie deprótese psíquica para sua atuação (Kaës, 1979). Por isso erigem-se linhasde segmentaridade rígida (Deleuze & Gua ari, 1996), nas quais os pro-cessos de conservação e estra cação são predominantes. As condutassão codi cadas e normalizadas da mesma forma do diagrama disciplinar(Foucault, 1984), cons tuindo-se prá cas polí cas codi cadas e com umaiden dade padronizada. Na estratopolí ca, busca-se uma totalização dasprá cas e pensamentos; a diferença é negada. Por exemplo, isso pode servisto com a intolerância de par dos polí cos com novos enunciados e pro-

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postas. Fazemos um paralelo com o que Byung-Chul (2012) a rma sobreo funcionamento social desde uma forma imunológica, através da defesae do ataque, na qual se tenta exterminar o estranho, o externo e o dife-rente. Consideramos, assim, que a estratopolí ca opera por uma dialé cada negação, em que o outro é visto como inimigo e deve ser ex rpado eeliminado da ins tuição.

Entretanto, com a intensi cação da axiomá ca do capital na segun-da metade do século passado, constatou-se uma modi cação nas ins tui-ções sociais e nas prá cas polí cas. A axiomá ca do capital surge comoum novo maquinismo social que não opera através de códigos e normas,mas a par r da desterritorialização dos uxos sociais codi cados. Todavia,não atua apenas pela descodi cação, assume um segundo movimento,que é a reterritorialização dos uxos descodi cados desde a sua lógica(Deleuze & Gua ari, 1976). É como se osocius deixasse de operar predo-minantemente por códigos e signi cantes e passasse a atuar por um fun-cionamento capitalista, subs tuindo o molde pela modulação (Deleuze,1992). “A axiomá ca do capital opera a par r da lógica de funcionamentodo capitalismo, que consiste na incitação à produ vidade, compe vi-dade, livre inicia va e atualização da lógica privada e do acúmulo” (Hur,2013b, p. 205). Portanto, proporciona uma estratégia de ação, e não uma forma; um programa, e não um po; uma fórmula, e não um código. Des-se modo, a axiomá ca do capital rou a primazia e determinância dosestratos ins tucionais para a prá ca polí ca, subs tuindo-os pela lógicada gramá ca neoliberal. É a intensi cação da axiomá ca do capital queincita a transição das sociedades disciplinares às sociedades de controle(Deleuze, 1992), ou melhor, denominadas como sociedades de rendimen-to (Byung-Chul, 2012).

Então não é que o Estado se uidi ca, ou se desterritorializa, con-forme o pensamento pós-moderno defende (Lewcowicz, 2004), mas seuscódigos e sua pragmá ca passam a ser modulados pela axiomá ca docapital, conformando o conhecido Estado neoliberal. A ins tuição estatalpermanece, mas seus códigos são norteados pela matriz capitalista. Entãoas prá cas polí cas e a razão governamental não serão mais guiadas porideologias, crenças polí cas, ou o desejo do governante, mas sim a par rda axiomá ca do capital. Isso signi ca que as prá cas polí cas estarãovetorizadas pela lógica do rendimento , ou que chamamos de diagrama de

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Hur, D. U. (2015). Cartografas psicopolí cas do co diano: tecnopolí ca e movimentos sociais

empresa (Hur, 2015b)1. E para alcançar esse melhor rendimento na gestãogovernamental, os saberes e tecnologias psi são fundamentais. Dessa ma-neira, cada vez mais os saberes psi estarão acoplados ao governo da vida,tornando-se importante ferramenta biopolí ca e noopolí ca (Lazzarato,2006), exercendo o poder sobre a vida e sobre o pensamento, os afetos ea memória. Emerge assim um novo agenciamento psicopolí co, que,

ao invés da função estratégica de ocupar lugares ins tucionais para rea-lizar prá cas polí cas, focaliza-se mais no desenvolvimento de saberes etécnicas que fomentem uma gestão mais e caz do social. En m, há todoum desenvolvimento de uma tecnologia da polí ca, de uma tecnologia degovernabilidade, que conforma outra lógica de processos polí cos frente àsprá cas polí cas tradicionais, que chamamos aqui de tecnopolí ca. (Hur,2013a, p. 11)

Assim, na tecnopolí ca há uma mudança em que não se importamais quem gere o Estado, mas sim se as prá cas polí cas estão respalda-das pelo saber técnico de gestão da vida, mas um saber que siga o diagra-ma de empresa, reduzindo os gastos e maximizando os rendimentos. Porisso, independentemente das ideologias polí cas do governante, o queimporta é como gerir os uxos nanceiros e polí cos de maneira a gerarmais lucros e menos prejuízos. Há, dessa forma, a subs tuição da polí -

ca enquanto debate ideológico e utópico, para a polí ca enquanto sabertécnico de governo da vida e dos cole vos sociais e que traga resultadosprá cos de seu rendimento e e cácia.

Na tecnopolí ca não há mais a an tese do inimigo polí co, pois,para a gestão da vida na axiomá ca do capital, deverá haver a composiçãoe a gestão das diferenças. Não há como governar isolado dos dis ntossetores, visto que a polí ca agora se trata da gestão e da maximização daprodução de uxos sociais, materiais e imateriais. Transita-se, assim, de

um modelo pautado na nega vidade do outro para a posi vidade des-te outro, em realidade, a mul plicidade das posi vidades de inúmerosoutros. O desa o de gestão aos governantes, além do saber técnico, é:como gerir e compor com a variação das diferenças que se coloca parao governo da vida? Como gerir os múl plos e contraditórios interesses?Portanto, neste novo diagrama, há uma descentralização do governo, de1 Hur, D. U. (2015b). Axiomá ca do capital e ins tuições: abstratas, concretas e imateriais

(mimeo.).

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um an go centro (o Estado) para uma rede rami cada, dispersa e cada vezcom mais conexões.

Então não há mais o an go modelo imunológico da defesa e do ata-

que, mas um modelo neuronal (Byung-Chul, 2012) em que se deve manteras diferentes sinapses. Não é mais o an go modelo piramidal, mas ummodelo horizontal em rede, cons tuído por células de trabalho. O perigona governabilidade não é mais a crise do an go sistema estatal, pois agorase está em perpétua crise. O problema na gestão tecnopolí ca não é adefesa e o ataque, mas sim as possíveis fraturas e desconexões na rede,os curtos-circuitos e sobrecargas no sistema; a demência e o acidente-vas-cular cerebral. Não é à toa que, na gestão da presidenta do Brasil que sereiniciou em 2015, seu terror foi perder as conexões com o empresariado.Este setor, consciente de sua força, atua a par r da chantagem e da espe-culação dos uxos nanceiros para manter seu quantum de poder econô-mico. Tomado pelos leigos como “neutro”, o mercado historicamente éoperado pelos megainves dores como forma de persuasão e chantagempolí ca sobre um governo. E vem obtendo êxito, pois, na recessão econô-mica brasileira, os bancos con nuam a bater recordes de lucros.

Esquema zamos na gura 1 a ar culação da axiomá ca do capital àaparelhagem do Estado. Par mos da discriminação realizada por Althus-

ser (1980) entre aparelhos repressivos e aparelhos ideológicos de Estado.Dis nto de Althusser, diferenciamos os aparelhos repressivos em duasmodalidades: repressivos e jurídicos. Ao invés de aparelhos ideológicos,subs tuímos pelos saberes e tecnologias psi, como a psiquiatria, psicolo-gia, antropologia, esta s ca, publicidade e comunicação. Demos ênfase àaxiomá ca do capital que passa a incidir diretamente na gestão da vida,em que o Estado, a mídia, os saberes e as tecnologias psi atuam a par rde seu funcionamento. A governamentalidade resultante segue o agen-ciamento tecnopolí co, buscando maior rendimento e e cácia em suasações polí cas. Vale ressaltar que as polí cas públicas são a “formaçãomista” entre aparelhagem estatal, saberes psi e axiomá ca do capital.Portanto, estão muito mais a serviço da governamentalidade e da neoco-lonização, ao invés de processos de autonomia e emancipação. Entende-mos a neocolonização como a transmissão dos valores dominantes numasobrecodi cação dos uxos sociais na lógica do capitalismo e nas normasadapta vas do Estado, sendo uma espécie de colonização e doutrinação

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Hur, D. U. (2015). Cartografas psicopolí cas do co diano: tecnopolí ca e movimentos sociais

subje va dos cole vos sociais (Hur, 2013c, p. 50). Com tal perspec va, apolí ca pública assume um caráter maior de captura do que de contribui-ção ao social, como era propagado recentemente pelo Sistema-Conselhosde psicologia.

Figura 1. Estado e axiomá ca do capital: a tecnopolí ca

Este agenciamento psicopolí co, a tecnopolí ca, passa a produziruma modalidade subje va conformada nas mesmas linhas preconizadaspela axiomá ca do capital. Agencia os processos de norma zação confor-me as sociedades disciplinares, bem como a modulação e regulação dassociedades de controle. Então os indivíduos e cole vos também sofremuma descodi cação dos valores tradicionais, para terem seus uxos psi-

cossociais reterritorializados a par r da fórmula capitalista. Passam assima ser programados por tal lógica, naturalizando-a como a forma corretade agir e operar no mundo. A mais-valia e o lucro nas relações de trocapassam a ser pressupostos em qualquer po de relação, até nas relaçõesafe vas. O indivíduo reatualiza o diagrama de empresa e o assume parasi: o indivíduo se torna a sua própria empresa (Hur, 2015b). Logo, nessediagrama do rendimento, não é mais necessário con nar o indivíduo den-tro dos muros ins tucionais, pois no campo aberto ele con nua a operar

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na lógica da axiomá ca do capital, buscando sempre aumentar e maximi-zar sua produção: ele está programado para operar nesse funcionamento,que, a princípio, não tem fronteiras, nem limites. “A autonomia do self nãoé, portanto, a eterna an tese do poder polí co, mas um dos obje vos einstrumentos das mentalidades e estratégias modernas de condução daconduta” (Rose, 2011, p. 216).

Dessa forma, resulta-se uma subje vidade capitalista que buscauma hiperprodução não apenas no âmbito do trabalho, mas em todasas suas esferas de vida. Seus indicadores de realização serão o aumento

nanceiro no extrato bancário, o aumento quan ta vo de conquistas afe-vas na festa, o aumento de ar gos no seu currículo la es e o aumento

de músculos no corpo. A prá ca “amadora” co diana do siculturismoé a expressão da axiomá ca do capital no âmbito corporal. Maximizar ehipertro ar os músculos, fazendo-os adquirirem dimensões descomunais.Queimar as gorduras, obtendo índices quase mínimos de gordura corpo-ral. E alimentar-se de suplementos e hormônios que levarão a esse corpoidealizado, hipertro ado e livre dos “excedentes econômicos corporais” (agordura). A testosterona se torna o hormônio paradigmá co da subje vi-dade capitalista, empreendedora de si e hipertro ada, tanto para homenscomo para mulheres. Não se para de crescer, mas nunca está su ciente. O

siculturista amador se vê no espelho, mas sempre acha que deve treinarpara car mais forte e queimar mais gorduras. Nunca está sa sfeito com ocorpo e se sente em perpétua dívida com o ideal. A subje vidade capita-lista é o sujeito endividado (Lazzarato, 2014). Ou então o sujeito esgotadoe cansado (Byung-Chul, 2012).

Constata-se que, nesse ideal da hiperprodu vidade técnica em to-dos os âmbitos da vida, há o declínio do debate e da par cipação polí ca.Par cipar de reuniões, de debates e manifestações polí cas é visto comoperda de tempo, pois, ao invés de perder horas ali, o indivíduo pensa quepoderia estar trabalhando, ou se diver ndo de outra forma. Prefere u -lizar seu tempo para extrair alguma mais-valia, visto que os espaços po-lí cos não são a priori rentáveis. Com a intensi cação da axiomá ca docapital, a polí ca converte-se em tecnopolí ca, o indivíduo em empresa ehá um declínio da polí ca mediante o ideal da hiperprodução.

Não apenas o Estado, como a população de uma forma geral e atéos movimentos sociais, padecem da modulação da axiomá ca do capital.

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Hur, D. U. (2015). Cartografas psicopolí cas do co diano: tecnopolí ca e movimentos sociais

Para Deleuze e Gua ari, a axiomá ca do capital assume sua concretudeno Capitalismo Planetário Integrado. Poucos anos mais tarde, Hardt e Ne-gri (2005) passam a denominar essa aparelhagem como Império, a formaparadigmá ca de governo na sociedade atual. É uma

nova forma de poder que não se localiza mais no Estado-nação e consistenuma outra forma de soberania, trans-nacional, descentrada, desterrito-rializada e em rede; um Capitalismo transnacional. Nessa nova con gura-ção, nas relações internacionais, há um processo de diluição das fronteirasdos Estados e eliminação das distâncias espaciais, como se houvesse umalinguagem universal e compar lhada por todos: a gramá ca neoliberal. OImpério passa a ser a nova forma de soberania, tornando-se uma instânciatranscendente aos Estados-nação. O imperialismo, pautado nas tradicio-nais relações de dominação de um país sobre o outro, torna-se secundáriofrente à cons tuição de uma rede mundial difusa e descentrada. O Impériopassa a axioma zar o funcionamento de todos os Estados. Já não são paísesque dominam outros países, mas a lógica imperial que axioma za o funcio-namento de todos esses países. (Hur, 2013b, p. 212)

Não apenas como funcionamento global, o Império, tal como a axio-má ca do capital, fomenta a produção local, da subje vidade capitalis-ta. Quando a rmamos que os movimentos sociais podem padecer dessamesma lógica, é quando vemos an gos militantes que passam a brigar porum salário do movimento, ou quando recebem um cargo de assessor emdeterminado governo ou município, e muitas vezes quando o movimentosocial se converte em organização não governamental - ONG. Nessa tran-sição de movimento para ONG, há a mudança de militante polí co paramilitante remunerado empregado, em que se tornam mais importantes asa vidades de “captação de recursos” do que a militância polí ca anterior-mente assumida. Outros tempos, outras prá cas. Não queremos entrarem juízos de valores, apenas salientar que tal transição dos movimentos

às ONGs expressa a incidência da axiomá ca do capital também nestesmovimentos polí cos. Cons tui-se assim a democracia do capital.

As manifestações a favor do impeachment são movimentos sociais?

Os movimentos sociais têm inúmeras de nições. U lizamos umaconcepção que ressalta o caráter de transformação do movimento so-

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cial. Nela, não se categoriza qualquer cole vo de pessoas como movi-mento social, mas sim uma “ação cole va cuja orientação comportasolidariedade, manifesta um con ito e implica a ruptura dos limites decompa bilidade do sistema ao qual a ação se refere” (Melucci, 2001, p.35). Entendemos assim um movimento social como um conjunto de in-divíduos ar culados por um regime de sociabilidade que tem uma açãoinsurgente de reivindicação e que porta relações de forças que buscamuma transformação das relações sociais ins tuídas. Um movimento so-cial está invariavelmente ligado à transformação, ao fomento das forçasins tuintes e de acordo com demandas direcionadas à autonomia, sen-do assim uma ação eminentemente de uma sociedade contra o Estado.Os movimentos sociais são a expressão da resistência e da insurgência,

lutando contra a captura do Aparelho de Estado e a modulação da axio-má ca do capital.

Nessa de nição, não consideramos como movimentos sociais aação de cole vos sociais que buscam a sua conservação e a sua reprodu-ção, seja da lógica estatal, ou do capital. Estes não lutam pela transforma-ção, mas pela manutenção do status quo . Citamos os grupos conservado-res que atualmente saem às ruas pedindo o impeachment do governo daPresidenta Dilma Rousse . A princípio, pode parecer que estão clamandopela transformação do país, pois imaginam que, com a saída do Par dodos Trabalhadores do poder, toda a corrupção seria ex rpada da esferapública. Algo inalcançável devido às inúmeras denúncias de corrupçãoenvolvendo polí cos de quase todos os par dos.

Porém, o que se constata é que a manifestação destes grupos con-servadores não é nada mais que a expressão da axiomá ca do capital,mas de duas formas. A primeira refere-se à a rmação exaltada, orgulhosae superiora da subje vidade capitalista. Os grupos lutam contra as polí -cas sociais do governo e um par do da esquerda polí ca no poder. Posi-cionam-se também contra as ins tuições tradicionais polí cas, clamandopelo m do Congresso, do Senado e até do Supremo Tribunal Federal.Compreendem que o sistema público acarreta apenas prejuízos ao con-tribuinte e deve ser enxugado, senão ex rpado. Expressam assim a lutapolí ca de um neoliberalismo, cons tuído pela axiomá ca do capital,contra uma social-democracia. É a expressão declarada e intensi cadado projeto neoliberal reinante.

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Hur, D. U. (2015). Cartografas psicopolí cas do co diano: tecnopolí ca e movimentos sociais

A segunda forma refere-se à indeterminação e insegurança sofridapor estes grupos pela desterritorializacão dos uxos sociais proporcionadapela axiomá ca do capital. Em virtude da descodi cação dos códigos ins -tucionais, gerou-se uma inde nição, uma incerteza sobre os sen dos e as

nalidades da vida e da sociedade, uma vez que as ins tuições proporcio-nam esse processo de regulação psíquica (Kaës, 1991). Com a fratura doscódigos ins tucionais e dessas formações sociais, muitos perderam suasreferências iden tárias e psíquicas. A axiomá ca do capital, ao cons tuiruma subje vidade capitalista em que toma o indivíduo como empresa desi, investe num individualismo que pode levar a um isolamento na vidapessoal e afe va, incitando afetos de ressen mento e angús a. Parado-xalmente nunca es vemos tão conectados, mas tão isolados, que é um

dos problemas polí co-existenciais vividos no co diano. Compreende-mos, desse modo, que as expressões fascistas clamando pela intervençãomilitar, pela defesa família e contra o marxismo nas escolas são sintomasdo mal-estar pela descodi cação generalizada. É uma forma de codi ca-ção e iden cação de urgência (Kaës, 2011) frente à desterritorializacãofomentada pela axiomá ca do capital. Clamar pela disciplina (exército),pela família, pela religião são mecanismos defensivos para lidar com omal-estar e o desconhecido. Pedem o retorno do código, dos moldes, dasnormas e formatos ins tuídos, pois não se consegue suportar as transfor-

mações do co diano moduladas pela axiomá ca do capital. Nesses pro-cessos de iden cação de urgência, não apenas se buscam signi cantespara se amparar, como também se criam os bodes expiatórios para seculpar (Pichon-Rivière, 1986), por isso que o ódio e a vontade de aniquilaro outro, o diferente, são tão intensos. O totalitarismo imaginariamente évisto como uma forma de salvação frente às ansiedades primi vas quecirculam. E esta é uma forma de atuação bastante regressiva, do ponto devista cogni vo e afe vo. Perante as incertezas trazidas pela tecnopolí ca,investe-se novamente na estratopolí ca.

A bandeira do impeachment da Presidenta Dilma apenas foi haste-ada em função de uma disputa pelo poder entre os dis ntos atores polí -cos par dários, mas parte signi ca va da população acreditou que fossepor um ideal mais “nobre”. Pois os setores que ges onam a sociedade naaxiomá ca do capital percebem que grandes desconexões na rede da go-vernabilidade não são bem vistas. Da mesma maneira que o governo cedeàs chantagens para que o empresariado não se desconecte da rede, este

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setor também precisa do governo. Não é à toa que importantes empre-sários alicerçados no discurso neoliberal opinaram publicamente contra oimpeachment. Até a maior emissora televisiva do país se posicionou con-trariamente ao impeachment. Uma quebra de tal magnitude signi cariauma diminuição do inves mento nanceiro externo no país, o que con-traria a lógica do capital e dos setores que governam o Brasil. Não haveráimpeachment; renúncia, quem sabe.

Dessa forma, compreendemos que tais manifestações não são mo-vimentos sociais, conforme a de nição de Melucci (2001), já que os gru-pos manifestantes conservadores não estão implicados na transformação,ou numa luta contra o Estado, tal como está estruturado, mas apenas naa rmação reiterada da axiomá ca do capital e da subje vidade capita-lista, ou à regressão e codi cação em estratos mais rígidos que impeçamquaisquer processos de mudança.

Movimentos sociais: mul dão e insurgência

Não é de hoje que os movimentos sociais não necessitam dos inte-lectuais e da Universidade. Eles têm um saber e valores que norteiam suasações. Para a Psicologia Social e Polí ca, enquanto saberes psi, resta umacerta ferida narcísica ao constatar que o movimento social prescinde dosaber do técnico e do intelectual. Por um lado, isso é posi vo, pois o mo-vimento social foge dos processos de norma zação e regulação social quea Psicologia está historicamente envolvida, mas, por outro, também podeexpressar um certo fechamento do cole vo social, que se cerra em si nãoaceitando possíveis contribuições de nossas disciplinas e campos de sabe-res. Entretanto, devemos insis r e procurar processos de composição como movimento social, de tal maneira que com nossos disposi vos teóricos

e técnicos possamos ampli car seu potencial de pensamento, de afecçãoe de ação, e nos fortalecermos a par r de seus processos de insurgência.Contudo, devemos sair do lugar de messias, de professor e de oráculoe aprender a escutar as demandas dos movimentos sociais, tal como ozapa sta Subcomandante Marcos disse, que, quando chegaram na SelvaLacandona, apenas sabiam falar. Porém, quando aprenderam a escutaros indígenas, é que o movimento zapa sta realmente se cons tuiu. Por-tanto, não devemos assumir o lugar de doutrinadores, mas sim de poten-

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Hur, D. U. (2015). Cartografas psicopolí cas do co diano: tecnopolí ca e movimentos sociais

cializadores dos saberes e fazeres desses cole vos. Assim, ao invés de aPsicologia, tão axioma zada pelo capital, querer ensinar os movimentossociais, por que não é a Psicologia que pode ser ensinada pelos movimen-tos sociais? De forma semelhante que Pavón-Cuellar 2 traça alguns posicio-namentos que a organização guerrilheira mexicana Exército Popular Revo-lucionário pode trazer à Psicologia crí ca, mapeamos enunciados geraisque os movimentos sociais podem incitar na Psicologia social. Traçamosapenas caracterís cas de movimentos sociais que apelam a novas prá case formas de ser em sua polaridade mais radical e insurgente, pois sabe-mos que sua atuação é muito ampla e variada.

Autogestão e afetos potencializadores

Nos movimentos sociais, seus par cipantes prescindem da moda-lidade compe va e de rivalidade de relação social que a subje vidadecapitalista assume. Atuam a par r da solidariedade, considerando o ou-tro não como inimigo, ou rival, mas como companheiro, que e mologi-camente signi ca aquele que compar lha o pão. Agenciam-se através deuma forma de poder horizontalizada, numa autogestão em que todostêm direito à voz e voto. Quando há uma diretoria, uma federação, ouum comando, é pela necessidade de tomar as decisões mais pragmá -cas e operacionais. Mas quando se tomam decisões importantes parao movimento, é u lizado o disposi vo das assembleias, crucial para oexercício democrá co. Desse compar lhamento do poder geram-se bonsencontros, os quais aumentam os afetos potencializadores de seus mem-bros. Os afetos e corpos mais potencializados também podem aumentaro potencial de ação dos cole vos (Deleuze, 2002), visto que os par ci-pantes estão em uma relação de composição, e não de decomposição,tal como é marcada a rivalidade capitalista. Em pesquisa recente, encon-tramos correlação esta s ca signi ca va entre o aumento do grau de

afe vidade e a vontade de par cipar cole vamente em par cipantes daParada LGBT – Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros - de Goiás (Hur,Lacerda et al.)3.

2 Pavón-Cuellar, D. Para além do comportamento agressivo: luta guerrilheira e determinaçãoestrutural-ins tucional da violência no discurso do Exército Popular Revolucionário (EPR) doMéxico (mimeo.)

3 Hur, D. U., Lacerda, F., Castro, T. C., Silva,T. M. G., Silveira, G. M., Menezes, N. R. C. et al. Aspolí cas da afe vidade na Parada LGBT de Goiânia (mimeo).

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A autogestão generalizada não se restringe à polí ca, mas a ngetambém as dis ntas esferas da vida, em que o militante passa a compar-

lhar o poder no seu trabalho, na sua família, com seu grupo de amigos,no âmbito do desejo, etc. A autogestão nos movimentos sociais é umaautên ca revolução molecular (Gua ari, 1987).

Polí ca nômade

Os movimentos sociais atuam a par r do que denominamos como apolí ca nômade, ou nomadopolí ca, que é o agenciamento psicopolí coque traça movimentos centrífugos, de mudança, ao invés das tradicionaisins tuições polí cas que traçam movimentos centrípetos, de conservação.Caracteriza-se “por um agenciamento fugidio, uido, que atua na primaziados movimentos e dos deslocamentos, numa ação mais autônoma, uidae molecular” (Hur, 2015a). O nomadismo polí co não busca as xaçõesàs ideologias, ao par do, ao Estado, ou à modulação capitalista, mas temcomo implicação o movimento e o deslocamento em si. “Atua pelo prima-do da desterritorialização, numa luta contra as prá cas ins tuídas de Esta-do e do Capitalismo Mundial Integrado. Assume um potencial ins tuintede uma máquina de guerra contra o Aparelho de Captura, atualizando alógica do guerreiro frente à do legislador” (Hur, no prelo). Então esse no-madismo é o que faz com que os movimentos sociais fujam do sedentaris-mo da lógica estatal e não se enredem na axiomá ca do capital. O conceitode máquina de guerra (Deleuze & Gua ari, 1997) foi criado para pensarnum agenciamento que não es vesse sobrecodi cado pela lógica do Esta-do, e fosse derivado do agenciamento de forças de um fora. Movimentossociais, a guerrilha contra o Estado, indígenas sem Estado, cons tuem ex-emplos de máquinas de guerra (Hur, 2012). Tal agenciamento psicopolí coatualiza o potencial disruptor e insurgente do que denominamos comomovimentos sociais nômades históricos brasileiros, como a impetuosidade

da malta dos cangaceiros de Lampião e Corisco, bem como a insurreiçãoindígena de trinta tribos indígenas nômades, ar culada por Mandu-Ladi-no, contra os colonizadores portugueses no nordeste brasileiro.

Linhas de luta e não apenas linhas de fuga

Os movimentos sociais com suas reivindicações e organização nãoapenas traçam linhas de fuga frente ao aparelho de Estado e a axiomá-

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ca do capital, traçam linhas de luta. As linhas de fuga referem-se à pos-sibilidade de agenciarem-se diferentemente das linhas estra cadas, desegmentaridade rígida, do Estado, ou de segmentaridade aparentementemaleáveis, da axiomá ca do capital. É a possibilidade de criar novos regi-mes que desterritorializem o ins tuído e estra cado.

Entretanto, fugir não basta aos movimentos sociais. Discordamos deDeleuze e Parnet (1987), pois não é na fuga que se busca uma arma. Massim na luta e no confronto direto com os setores que causam a opressãoaos cole vos sociais, sejam os la fundiários, o Estado, o patriarcalismo, ofalocentrismo, etc. Os movimentos sociais traçam linhas de luta, de com-bate, se potencializam e se singularizam a par r dessa atuação, beligeran-te, seja no âmbito direto, seja no da negociação. As linhas de luta são comomarretadas contra os estratos duros, aumentando assim seu potencial para

ssurar e destruir os bloqueios que limitam suas possibilidades de vida.

“Método da insurgência”

Consideramos que os movimentos sociais u lizam o método da in-surgência em suas prá cas polí cas. A revolta, a desobediência e a in-surgência são o combus vel de sua ação polí ca. A insurgência é o atoque fomenta a desterritorialização dos estratos, o embaralhamento doscódigos, a ssura no ins tuído, a intensi cação da crise. Aqui vemos a cri-se como o momento potencial de desterritorialização e reelaboração daexperiência para possibilidades mais produ vas e potencializadas de vida.Compreendemos que a atuação insurgente dos movimentos sociais é umaesquizoanálise em ação, já que opera a par r das duas tarefas enuncia-das por Deleuze e Gua ari (1976): as tarefas nega vas e posi vas. Comsuas linhas de luta, tratam de operar a tarefa nega va de raspagem e de-molição dos elementos coerci vos, sejam sociais, sejam psíquicos, seja

o capitalismo, seja o Édipo. Em seguida, operam as tarefas posi vas decartografar o funcionamento das máquinas sociais, de criar suas teoriza-ções e tomadas de consciência sobre as con ngências psicossociais quelhes a ngem, para conectar, desse modo, os inves mentos desejantes aocampo social. Seja criando suas novas modalidades de sociabilidade, atra-vés da autogestão, e por conseguinte, uma nova modalidade subje va.Fomentam em suas prá cas processos de elaboração que superam os so-frimentos existenciais advindos da axiomá ca do capital, para a criação de

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novas modalidades de vida. O método da insurgência é um grito da vidacontra a opressão.

Cons tuição de uma subje vidade nômade e insurgente

Cons tui-se, assim, com base nas prá cas polí cas dos movimentossociais e do método da insurgência, uma nova modalidade subje va, emcontraposição à subje vidade capitalista, que denominamos de subje -vidades insurgentes (Hur & Lacerda, 2013)4. U lizamos no plural, pois setrata de um processo de subje vação múl plo, heterogêneo e variado,mas que se ar cula pela insurgência e rechaço da lógica estatal e da axio-má ca do capital. Assemelha-se ao conceito de mul dão, por tratar-sedessa mul plicidade híbrida, que não foi capturada pelo Império:

A mul dão está engajada na produção de diferenças, invenções e modos devida. Deve, assim, ocasionar uma explosão de singularidades. Essas singu-laridades são conectadas e coordenadas de acordo com um processo cons-

tu vo sempre reiterado e aberto ... A mul dão é a forma ininterrupta derelação aberta que as singularidades põem em movimento. (Hardt & Negri,2006, p. 7)

De tal forma que as subje vidades insurgentes não são aquelas queatuam apenas através da revolta e do rechaço, mas principalmente pelassuas capacidades de agenciamento cole vo que lhes possibilitam a inven-ção e a criação de novas formas de vida, que vão além da axiomá ca docapital. Mas talvez no que podemos denominar como uma dialé ca des-truição/criação, em que se deve lutar contra as formas de sujeição social edesejante, para desbloquear o inves mento desejante e libertar/construiras potências de vida. Em todo processo de demolição, há criação.

Considerações nais

Neste ensaio, buscamos realizar uma cartogra a psicopolí ca doco diano, primeiramente discu ndo a transição da polí ca tradicional àtecnopolí ca, desde a intensi cação da axiomá ca do capital. A nosso4 Hur, D. U. & Lacerda, F. Ditadura e insurgência na América La na: psicologia da libertação e

resistência armada. Ar go vencedor do Prêmio Psicologia e Direitos Humanos: Ditadura Civil--Militar e repercussão sobre a Psicologia como Ciência e Pro ssão, concedido pelo ConselhoFederal de Psicologia em 2013. (mimeo).

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Hur, D. U. (2015). Cartografas psicopolí cas do co diano: tecnopolí ca e movimentos sociais

ver, as manifestações contemporâneas a favor do impeachment da Pre-sidenta Dilma apenas expressam a axiomá ca do capital, não portandonenhum po de transformação, não sendo consideradas, portanto, comomovimentos sociais. No úl mo tópico, trouxemos cinco modos de fun-cionamento dos movimentos sociais que podem inspirar os saberes e asprá cas da Psicologia Social e Polí ca. Assumir formas de sociabilidadeque privilegiem a autogestão e os afetos potencializadores, ao invés denossas estruturas piramidais e afetos muitas vezes de decomposição.Adotar uma polí ca nômade e não as tradicionais formas sedentarizadasde fazer polí ca, em que nos inspiraríamos a par r dos deslocamentose experiências dos movimentos sociais nômades. Abandonar, ou melhor,so s car as conhecidas linhas de fuga, pelas linhas de luta; é no combate

que se encontra uma arma, forja-se o ser e o cole vo. U lizar o métododa insurgência, e não da obediência, nem do rendimento da axiomá cado capital, em nosso trabalho. E para nalizar, transmutar-se da subje -vidade capitalista em direção às subje vidades insurgentes. Concluímos,assim, que os movimentos sociais trazem modalidades de ser e devir queatualizam relações de resistência à axiomá ca do capital, que pode poten-cializar a vida e inspirar a Psicologia Social e Polí ca la no-americana paranovas prá cas e con gurações. Com o Império e a axiomá ca do capital,não se chegou ao m da história, pois os movimentos sociais nômades e

insurgentes instauram modos de ser que estão levando à produção de umnovo comum.

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Direitos humanos e movimentos sociais: desa os àdemocracia (e à psicologia) brasileira

Pedro Paulo Gastalho de Bicalho

A tarefa que habitualmente se espera da Psicologia é de individu-alizar (e interiorizar) a subje vidade, para que o saber (cada vez mais“suposto”, ou “suspeito”) promova o desvelamento de uma determinada“essência” do sujeito. Em meio a tal hegemonia, problema zamos a dis-cussão que ar cula direitos humanos, movimentos sociais e democracia àemergência de determinados processos de subje vação, ar culados a umdebate localizado na Psicologia Social. Apostamos na construção de umcomum, capaz de acessar (e construir) um território ar culado aos pro-cessos psicossociais, junto à análise das demandas dos movimentos so-ciais. Com quais polí cas do comum nos aliamos e com quais concepçõesnos comprometemos é ca e poli camente? E de que modo tais aliançase comprome mentos auxiliam nos desa os de problema zação da demo-cracia (e da Psicologia) que co dianamente vêm sendo construídas emterritório brasileiro?

Colocamos em análise, aqui, discursos hegemônicos que têm o po-der de marcar, es gma zar e matar o outro, pela força e presença de certaperspec va epistemológica de corte posi vista, que insiste em um projetoobje vista, assép co, neutro, inodoro e incolor para a Psicologia, cujasdemandas são endereçadas a intervir e resolver problemas de desajusta-mento em situações de nidas como problemas.

A Psicologia, hegemonicamente, tem se cons tuído como ferra-menta de adequação e ajustamento in mizado, universal, natural e a--histórico, não se colocando, assim, a questão que se refere a prá casdatadas historicamente, ins tuindo modelos de ser e de estar no mundosegundo padrões de normalidade produzidos como únicos e verdadeiros,inferiorizando e desquali cando os lugares ocupados pelos chamadosdiferentes, anormais, perigosos, desvinculando-os dos seus contextossócio-histórico-polí co-sociais, tornando-os não humanos. A estes seriaendereçado um constante monitoramento, vigilância e tutela. Caberia,

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Bicalho, P. P. G. (2015). Direitos humanos e movimentos sociais: desafos à democracia (e à...

a esta Psicologia, a tarefa de desvelar (sob o estatuto do diagnós co) adiferença.

Aos que fogem aos modelos pré-cons tuídos de cidadania, a con-

dição de cidadão parece não se fazer valer. Uma vida que, a exemplo dohomo sacer de Agamben (2004), nada vale, ou vale muito pouco, ou valemais aprisionada, pois movimenta a indústria de segurança, com maiorsegurança que estando liberta; a essa vida não é merecida a proteção in-tegral, mas uma coerção e controle em nome da ordem.

E os indesejados, de algum modo, serão geridos ou exterminados – ainda que em vida, mediante a supressão de seus modos singulares deexistência.

Tirar a vida, o impera vo da morte, só é admissível, no sistema de biopo-der, se tende não à vitoria sobre os adversários polí cos, mas à eliminaçãodo perigo biológico e ao fortalecimento, diretamente ligado a essa elimi-nação, da própria espécie ou da raça. A raça, o racismo, é a condição deaceitabilidade de rar a vida numa sociedade de normalização. (Foucault,2002, p. 306)

Atualmente, dentro do proclamado contexto de incerteza e in-segurança pública, cada vez mais o psicólogo é convocado a atuar nas

agências o ciais de manutenção da ordem e de promoção da segurança.Nada para se estranhar. A própria cons tuição da regulamentação daPsicologia no Brasil, por meio da lei 4.119 de 1962, aponta como umadas funções do psicólogo a “solução de problemas de ajustamento”.Complementar as engrenagens de vigilância e disciplinarização com téc-nicos competentes, supostamente capazes de produzir disciplina, comvistas à tarefa de “defender a sociedade” de seus refugos parece ser,neste contexto, um bom modelo de intervenção. A atuação do saber--fazer psicológico vai sendo convocada pelas instâncias da ordem e, pa-radoxalmente, ampliam-se também as possibilidades de ar culação comos movimentos sociais. Às vezes como aliados, às vezes na qualidade deopressores.

Movimentos sociais, aqui, não serão reduzidos como a ação de gru-pos sociais voltados à promoção de interesses morais, é cos e legais es-pecí cos, mas como toda a possibilidade de transformações drás cas daordem, incluindo sistemas norma vos, polí cos e econômicos vigentes,

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sob a égide dos mais variados suportes ideológicos e em diferentes con-textos históricos e sociais (Touraine, 1973). Movimento social, portanto,como prá ca de promoção de singularização. Movimentos sociais comoprá ca de promoção (e garan a) de direitos humanos.

Terminada a Segunda Guerra Mundial, foi criada em 1945, pelaCarta de São Francisco, a Organização das Nações Unidas (ONU), pro-pondo-se à comunidade internacional a discussão e o resgate da noçãode direitos humanos. Tais propostas “consumaram-se” 1 redundando napromulgação, em 1948, de uma declaração que, embora des tuída deforça legal, cons tuía-se como uma carta de recomendações, compostapor um preâmbulo com sete considerações e mais trinta ar gos. Os vintee um primeiros abrangiam direitos civis e polí cos (direitos e garan as doindivíduo), os sete seguintes tratavam dos direitos econômicos, sociaise culturais e os dois úl mos, respec vamente, da responsabilidade doindivíduo em relação à sua comunidade e da vedação de qualquer in-terpretação da Declaração de modo a “destruir” os direitos e liberdadesnela estabelecidos.

Desta forma se transmite o tema direitos humanos: como se nãohouvesse uma história anterior à Declaração Universal de 1948, com suasimplicações na Segunda Guerra Mundial e na criação da ONU2. De modo

análogo, os movimentos sociais: como se fossem apenas aqueles ins tu-ídos com demandas especí cas em torno de certa concepção de vida emsociedade.

Trindade (2002) chama a atenção para o fato de que, em nome dosideais de igualdade e fraternidade con dos nas inúmeras concepções dedireitos humanos, foi erigido, por meio do AI-5, um dos regimes que maiscrimes cometeu contra os mesmos direitos em toda a história brasileira.Ou o Main Kampfde Adolf Hitler, livro sobre o qual o mesmo escrevera:

“Os direitos humanos estão acima dos direitos do Estado”. Resta para nós,en m, a questão: se os direitos humanos são argumentos u lizados portão diferentes prá cas sociais, a nal, de que direitos se trata, ou ainda, deque humanos está se tratando? Como nos diz Trindade (2002):

1 Para aqueles que acreditam que os temas “direitos humanos” e “movimentos sociais” esgo-tam-se no direito posi vo (e, portanto, norma vo).

2 Esta é a história ins tuída. A questão dos direitos humanos, porém, já se anunciava há muitomais tempo, em especial com o advento das Revoluções Burguesas.

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Talvez não tenha havido opressor nos úl mos duzentos anos, ao menos noOcidente, que não vesse, em nenhum momento, lançado mão da lingua-gem dos direitos humanos. Hitler foi apenas mais um a adotar esse proce-dimento ... Por que tem sido tão fácil falar em direitos humanos e por que

essa expressão tornou-se assim maleável, tão complacente e moldável, aponto de a vermos ser pronunciada sem rubor pelos mais insólitos perso-nagens? O que signi ca ela exatamente? (pp. 5-16)

Movimentos sociais, do mesmo modo, pode servir para denominarexperiências contraditórias. Touraine (1976) aponta que, para se compre-ender os movimentos sociais, mais do que pensar em valores e crençascomuns para a ação social cole va, seria necessário considerar as estrutu-ras sociais nas quais os movimentos se manifestam.

Foucault pensa o homem como a sionomia de uma forma domi-nante, como uma resultante de relações de força que compõem tal for-ma (Deleuze, 1992). Homem, assim, é pensado como relação, como “umsingular que não pode exis r sem o outro” (Conselho Federal de Psicolo-gia, 2004). Homem, desta maneira, é pensado como subje vação. Forma--homem como resultante de relações de força (sempre em relação comoutras forças) que cons tuem o poder. Do mesmo modo, Foucault nãoemprega a palavra sujeito como pessoa ou forma de iden dade, mas o

termo ‘subje vação’ como processo. Trata-se da invenção de modos deexistência e de possibilidades de vida que não cessam de se recriar, e nãopessoas ou iden dades (Deleuze, 1992).

É neste sen do que Foucault nos ensina que o homem não pos-sui uma interioridade, pois é formado como resultante de forças que oatravessam. Forças que se con guram enquanto prá cas históricas queo obje vam, que o subje vam e que provocam um exercício é co (Revel,2005). São produções que dizem respeito a um solo histórico, com arran- jos polí cos, com jogos de saber, de poder e de técnicas de si. O homemé, portanto, efeito de uma cons tuição que se dá na imanência históri-ca, sem essências, sem naturalizações, sem um caráter de a-prioris ou detranscendência.

Par mos, então, do pressuposto de que o mundo, os objetos quenele existem, os sujeitos que nele habitam e suas prá cas sociais são pro-duzidos historicamente, não tendo, assim, uma existência em si, coisas jádadas, essência ou natureza. Somos solicitados, de acordo com Gua ari

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e Rolnik (2000), “o tempo todo e de todos os lados a inves r a poderosafábrica de subje vidade serializada, produtora destes homens que somos... Muitas vezes não há outra saída ... Corremos o risco de sermos con na-dos quando ousamos criar quaisquer territórios singulares 3, independen-tes das serializações subje vas” (p. 12) Ainda segundo eles:

O sujeito, segundo toda uma tradição da loso a e das ciências humanas, éalgo que encontramos como um ‘être-là’ , algo do domínio de uma supostanatureza humana. Proponho, ao contrário, a idéia de uma subje vidade denatureza industrial, maquínica, ou seja, essencialmente fabricada, modela-da, recebida, consumida ... A produção de subje vidade cons tui matéria--prima de toda e qualquer produção ... A problemá ca micropolí ca não sesitua no nível da representação, mas no nível da produção de subje vidade... Todos os fenômenos importantes da atualidade envolvem dimensões dodesejo e da subje vidade. (pp. 25-28)

Hegemonicamente produzem-se subje vidades normalizadas, ar -culadas por sistemas hierárquicos, por sistemas de valores e sistemas desubmissão, internalizados por uma ideia de subje vidade que precisa “serpreenchida”, oposta a um modo de subje vação singular, conceituado porGua ari e Rolnik (2000) como “processos de singularização” – que recusa-ria os modos de manipulação preestabelecidos.

Direito humano é, como nos diz Almeida (2002), “direito de viverbem, direito de acesso às polí cas, direito de conviver na diversidade, di-reito de viver com todos em um mundo melhor” (p. 23).

Os ‘Direitos Humanos’ (substan vo), ao contrário, são concebidos – desde a sua gênese – enquanto um objeto natural, como prerroga vainalienável à essência de um determinado modelo de homem.

Pensar direitos humanos como produção de subje vidade é a a r-mação de direitos locais, descon nuos, fragmentários, processuais, emconstante construção, produzidos pelo co diano de nossas prá cas eações. Deste modo, não entendemos a noção de direitos humanos a par r3 O termo ‘singularização’ é usado por Gua ari para designar os processos de ruptura com o

modo de produção da subje vidade capitalís ca. Gua ari chama a atenção para a importân-cia polí ca de tais processos, entre os quais se situariam os movimentos sociais, as minorias – en m, os desvios de toda a espécie. Gua ari u liza também outros termos, como revolu-ções moleculares, minorização ou autonomização. Conforme ele: “É um devir diferencial querecusa a subje vação capitalís ca” (Gua ari & Rolnik, 2000).

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de uma história linear assinalada por grandes eventos marcados e discri-minada em períodos históricos, mas a par r da noção de acontecimento 4,como condições de possibilidade que assinalam formas diferentes de sa-ber e poder, que representam rupturas na forma de conhecer as coisas ouna forma das relações de poder.

Assim, não faz sen do con nuar falando de “direitos humanos” demodo genérico, sem pôr em questão de que humanos ou de que direitos – e de que concepção de cidadania – se fala. Polí cas do comum como um“estar com”, em detrimento de um “conhecer sobre”.

Podemos lembrar das lutas por direitos humanos, de modo en-carnado, ao pôr em questão o escravismo e o trá co de ‘carne humana

negra’5

ou a primeira greve de mulheres operárias, em 8 de março de1857, na cidade de Nova York, em que 129 tecelãs pararam seu trabalhoe exigiram redução de carga de trabalho – até então de quatorze horas – em que a polícia cercou e incendiou o prédio, terminando o protestoem tragédia.

Pode-se citar a bomba atômica de Hiroshima e Nagasaki ou a Comu-na de Paris, experiência de construção de um poder popular em que maisde 20 mil parisienses morreram combatendo – milhares fuzilados logoapós se renderem –, além de 43 mil aprisionados e 13.400 condenados àdeportação, à prisão perpétua com trabalhos forçados ou à morte.

Temos ainda os movimentos operários europeus e o 1º de maio de1886, em Chicago, quando, em uma greve que reivindicava oito horas detrabalho diário, a polícia matou e feriu operários e explodiu uma bombasobre grevistas remanescentes em uma praça.

4 “Acontecimento, para Deleuze, Gua ari e Foucault, mesmo em suas su s diferenças, é umefeito sem corpo, um traçado de linhas e percursos que cruzam estruturas diversas e con-

juntos especí cos. O acontecimento não se dá a par r de uma intenção primordial ou comoresultado de algo; ele põe em cena o jogo de forças que emerge no acaso da luta. Produzrupturas, decompondo o que se apresenta como totalidade excludente; é datado, localizadoe funciona por conexão e contágio. Nele não há sujeito. As quebras que produz podem seirradiar, encontrar ressonância em uma mul plicidade de outros acontecimentos ainda invi-síveis, e suas potenciais invenções numa forma de atualização” (Neves, 2002, pp. 2-3)

5 Referência à “A carne mais barata do mercado é a carne negra/ E vai de graça pro presídio epara debaixo do plás co/ E vai de graça para o sub-emprego e para os hospitais psiquiátri-cos”, trecho da canção “A carne”, de Marcelo Yuka, Wilson Capelle e ‘Seu’ Jorge, gravadapor Elza Soares (álbum “Do cóccix até o pescoço”, 2002)

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Lembremos, inclusive, do período pós Primeira Guerra e seus efei-tos sobre uma infância vi mada, bem como o fomento da formação edu-cacional de uma nova geração pautada na paz e na democracia. Tal con-texto produz a primeira Declaração para os Direitos da Criança em 1924sob uma prerroga va de proteção da infância.

Pode-se falar ainda do holocausto vivido pelos judeus ou do movi-mento que cou conhecido como ‘Stonewall’, de 28 de junho de 1969,data em que se comemora o dia Internacional do Orgulho Gay, quandohomossexuais frequentadores do bar Sonewall Inn, em Greenwich Villa-ge, revidaram, pela primeira vez, às habituais agressões e abordagens dapolícia, dando início a um confronto que durou dias na região. Ou ainda‘analisadores locais’ (e que não são poucos), como as chacinas da Can-delária, Vigário Geral ou a que cou conhecida como a ‘chacina do pan’,ocorrida em 2007 no denominado Complexo do Alemão; e tantas outrasque habitualmente ocorrem nos “redutos pobres” do Brasil 6 – subje vi-dades que unem indissolúvel e naturalmente pobreza e criminalidade. Apropósito: onde está o Amarildo?

Há, portanto, que se perguntar, em relação aos direitos humanos,não somente quais (ou o que) são esses direitos, mas também o que é ohumano, tarefa à qual a Psicologia não pode se esquivar, por mais emba-

raçoso que seja considerado seu objeto (Canguilhem, 1972). Não cabe,aqui, dizer do que realmente se trata, mas sinalizar que o modo peloqual vem sendo tratado não corresponde a uma “natureza verdadeira”do humano, mas à construção de um modelo possível, a par r de tec-nologias de controle social, advindas de um contexto e uma concepçãohegemônica e burguesa do que é (ou o que é possível ser) o mundo noqual vivemos. Retomando a pergunta de Canguilhem (1972) em “O queé a Psicologia?”, podemos tentar responder: depende das forças que seapoderam dela.

Façamos, en m, como nos sugerem Deleuze e Gua ari (1997), nos-sas máquinas de guerra, que signi cam aqui a ousadia de colocar emanálise algumas produções de subje vidades – umas hegemônicas, ou-tras nem tanto – que forjam certa sionomia para o objeto Direitos Hu-

6 De acordo com Negri (2003): “Na modernidade ... o mundo dos direitos humanos é, ao mes-mo tempo, proclamado e rompido pelo uso produ vo e pelo assujeitamento polí co do po-bre” (p. 123).

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manos, como também são forjadas (e disseminadas) algumas tenta vasde desquali cação dos movimentos sociais: estes que existem porque osdireitos não são para todos os humanos. Cole vos que existem para nosalertar para que não nos acostumemos com prá cas co dianas de viola-ções dos mais diferentes direitos, fazendo com que não percamos nossacapacidade de estranhamento e, por conseguinte, de indignação, acredi-tando na possibilidade de experimentação de ferramentas que a rmemdiferentes potências de vida.

Signi ca, assim, pensar tais movimentos (e cole vos) como data-dos historicamente, não sendo, então, naturais, pois dizem respeito aomodo como se fala, age e pensa no mundo, a par r de um permanenteprocesso de modelização conforme con gurações de forças que são pro-duzidas o tempo todo na história – construções competentes e e cazesadvindas dos mais diversos equipamentos sociais, as quais estão semprepresentes, atravessando, in uenciando e transversalizando as prá casdiárias. Prá cas de psicologia, inclusive; como poderosos e e cientesprocessos de subje vação que forjam existências, vidas, bandidos e mo-cinhos, heróis, vagabundos e vilões, excluídos e perigosos.

Pôr em análise nossas prá cas não signi ca estar aquém ou alémde uma adesão ou recusa de suas enunciações. O que interessa, aqui, é

problema zá-las e pensá-las em seus efeitos, nos agenciamentos queproduzem e atualizam, expressos nas ‘diferentes formas de se estar nosverbos da vida’ (Neves, 2002).

Autores como Foucault e Deleuze nos ensinam que a produçãosocial da existência é tecida em meio à complexidade das combina-ções entre forças presentes e atuantes no homem, advindas do mun-do que cerca e atravessa esse homem, produzindo, portanto, umadada forma hegemônica sempre ‘metamorfoseável’. “Cada configura-

ção histórica exibe suas dominâncias imbricadas nos entrelaces dosprocessos de saber, poder e subjetivação” (Neves, 2002, p. 40). O so-cius , aqui, não é pensado como um todo autônomo, mas “um campode variações entre uma instância de agregação (máquinas molares – técnicas e sociais) e uma superfície de errância (máquinas dese- jantes) como regimes diferentes de uma mesma produção imanente(Neves, 2002, p. 44). Tal afirmação implica, por um lado, à desna-turalização das análises que inscrevem o campo social numa dicoto-

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mia totalizante e excludente entre molar (macropolítica) e molecular(micropolítica)7.

A Psicologia compõe o imenso aparato de saberes e prá cas que,

de diversas formas, vão interferir nos modos de existência do humano.Bap sta (1999) aponta para o fato de que discursos hegemônicos tomama diferença e a existência fora da norma como nega vos, transformandosujeitos em carentes de cuidado e dignos de pena, que podem ainda sereliminados pela sua condição menos que humana. O autor a rma aindaque prá cas que desquali cam populações determinadas são genocidas,pois eliminam modos de existência e potências de vida.

Foucault (2005) entende o surgimento da Psicologia como uma ci-ência do indivíduo, como uma disciplina da norma que regula, que vigia,que realiza uma ortopedia das subje vidades. Segundo o autor, ela nasceno nal do século XIX, dentro de um exercício de poder não mais centradono corpo, mas na subje vidade. É uma ciência que tem a norma como seuinstrumento técnico. Tal instrumento de poder permite estudar e compa-rar os indivíduos, elaborar uma curva normal por meio de uma matemá-

ca polí ca – a esta s ca – criando norma zações, construindo padrõesa priori de normalidade e depois normalizando os indivíduos que são en-caixados nesta curva, onde são marcados seus desvios ou sua normalida-de. Posteriormente, esses desvios são nomeados, ins tuídos, criam-se osdiagnós cos e os tratamentos. Através da Psicologia, é possível avaliar evalidar os comportamentos conforme as regras. Entendemos, assim, quea Psicologia surge para dar conta das individualidades, o que torna tal sis-temá ca um problema polí co ao invés de um problema simplesmentetécnico, já que se trata de um saber produtor de verdades, produtor derituais e de técnicas, produtor de realidade.7 Molar e molecular são dois modos de recortar a realidade, são planos indissociáveis que,

apesar de terem seus modos próprios de funcionamento, se atravessam o tempo todo ... O

plano molar seria o plano da segmentaridade dura, do visível, dos processos cons tuídos,onde encontramos a predominância das linhas duras (família, pro ssão, trabalho...). Estassão subordinadas a um ponto de referência que lhes dá sen do e implicam disposi vos depoder diversos que sobrecodi cam os agenciamentos em grandes conjuntos, iden dades,individualidades, sujeitos e objetos. O plano molecular, por sua vez, refere-se ao plano deformalização do desejo, do invisível, onde não se tem unidades, mas intensidades. Neletemos a predominância das linhas exíveis ( uxos, devir...) que buscam se desviar da so-brecodi cação totalizadora das linhas duras e das linhas de fuga que, compondo um planosubmolecular, nos conectam com o desconhecido, operando aberturas para um campo demul plicidades (Neves, 2002, p. 45).

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A Psicologia contribuía (e se cons tuía) com (em) moldes discipli-nares, propondo ortope zar transgressores, encarcerando aqueles àmargem do sistema, discorrendo acerca de personalidades com padrõestransgressores. Atualmente – e não que isso tenha totalmente se ex n-guido –, ela opera na promoção da dignidade e dos direitos humanos dosapenados muitas vezes agenciando um “modelo-de-melhor” ao viabilizar,em conjunto com outros discursos e prá cas, propostas ditas mais hu-manas. Produzimos, dessa maneira, formatos-modelos de dignidade e dehumanidade para os que se encontram à margem do sistema, mas nãoestranhamos tais discursos e tais prá cas, não pensamos novos modos deexistência, não ques onamos nossa valoração que con gura um modelopara a aquisição de Direitos Humanos. Saberes e ações que, sem estra-

nhamento, se reservam inques onáveis e verdades únicas.Uma prá ca da Psicologia compromissada com os Direitos Huma-

nos pode produzir outras alterna vas, que não envolvam a criminaliza-ção e tenta va de adequação de modos de existência. As psicólogas e ospsicólogos não precisam (e não devem) ocupar o lugar de ortopedistassociais. Pelo contrário, podem colocar em análise prá cas naturalizadas eressigni car a diferença, tomada como nega va, para a possibilidade deinvenção de novos processos de experimentar o mundo e as relações, empermanente transformação.

Esta Psicologia não é ensinada em modelos. Nem exposições teóri-cas sobre Direitos Humanos ou explanações do Código de É ca Pro ssio-nal. Há uma dimensão deste aprendizado que se dá no encontro micro-polí co, pois se falamos de uma prá ca de Direitos Humanos, precisamostrabalhar no exercício de fato. E mais: a graduação não dá conta. Não háresposta pronta, não há uma formação em Psicologia enquanto saberpronto a ser ob do, concluído e aplicado. Há que se pensar de formaé co-polí ca nas fragilidades da formação em Psicologia e na complexi-dade de seu campo problemá co. Para tanto, faz-se necessário ir contraa urgência das soluções demandadas a nós, em prol da construção de umcampo de indagações sobre quais forças estão atravessadas na produçãode uma demanda.

Para Michel Foucault (1979), a produção de verdades é sempre tran-sitória, polí ca e associada aos seus efeitos. Não há uma verdade úl ma,um ponto de origem a ser desvendado ou uma nalidade na história, mas

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a construção tá ca de relações de poder. Neste sen do, o que entende-mos hoje como violência é efeito de relações entre exercícios de poderese produção de saberes sobre o humano.

Entendemos aqui a violência como um disposi vo - um espaço depermanente reconstrução, onde se encontram linhas de discursos, de prá-cas e de subje vação. O disposi vo, de acordo com Foucault, signi ca:

Um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, ins tui-ções, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidasadministra vas, enunciados cien cos, proposições losó cas, morais, -lantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do disposi vo.O disposi vo é a rede que se pode estabelecer entre esses elementos. (Fou-cault, 1979, p. 244)

Os disposi vos operam na invenção e conexão com outros dispo-si vos. Assim, tomar a violência como um disposi vo revela uma sériede relações de poder. O poder, em seu aspecto tá co, funciona em umarede, um emaranhado onde as construções e disputas se atravessam e seafetam. As tensões a respeito do que é ou não aceitável como violênciadão visibilidade a linhas de força, processos de produção de subje vidade.

Entre as inúmeras formas de violência, encontram-se os processos

de criminalização dos movimentos sociais. E, na perspec va de análiseproposta com o presente texto, par mos de uma premissa: a de que osprocessos de criminalização correspondem à cons tuição histórica e so-cial de sistemas norma vos, não necessariamente aliados à pi caçãopenal (Dornelles, 1988). Tais sistemas norma vos se cons tuem a par rde postulados aliados a uma ideologia de defesa social (Bara a, 2013)e, ao serem transgredidos, produzem ações das mais variadas rela vas àideia de punição. Os processos de criminalização indicam a cons tuiçãode critérios de de nição de es gmas e periculosidade; portanto, indicamos caminhos dos efeitos de marginalização social.

Foucault (2001) apresenta as três guras que cons tuem o terrenodo discurso sobre o ‘anormal’: o monstro humano, o indivíduo a ser corri-gido e a criança masturbadora. O monstro humano, deste modo, é aqueleque cons tui, “em sua existência mesma e em sua forma, não apenas umaviolação das leis da sociedade, mas uma violação das leis da natureza” (p.69). O monstro humano combina o impossível com o proibido e, mesmo

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sendo o princípio de inteligibilidade de todas as formas da anomalia, omonstro é, em si, ininteligível ou dotado de uma inteligibilidade tautoló-gica. Neste contexto, o anormal é, no fundo, um monstro co diano, ummonstro banalizado.

Já o “indivíduo a ser corrigido” habita a família e suas relações comdemais ins tuições. Enquanto o monstro é sempre uma exceção e remon-ta ao domínio da teratologia, a existência do indivíduo a ser corrigido é umfenômeno normal, ele é espontaneamente incorrigível, o que demanda acriação de tecnologias para a reeducação, uma forma de ‘sobrecorreção’que lhe permita a vida em sociedade. A par r da gura do ‘indivíduo acorrigir’ é possível a germinação daquilo que, no nal do século XIX, emer-girá em meio aos domínios disciplinares como o saber sobre o crime: acriminologia.

Por m, há a gura da ‘criança masturbadora’, e envolve exclusiva-mente a família burguesa entendida como um disposi vo de poder res-ponsável por velar pela masturbação: “O segredo universal, o segredocompar lhado por todo mundo, mas que ninguém comunica a ninguém”(Foucault, 2001, p. 74). A ‘criança masturbadora’, o ‘onanista’ será a guraque acabará por encobrir as demais e deter o essencial dos problemas quegiram em torno da anomalia. Virtualmente, qualquer patologia mental,

debilidade sica ou vício moral poderia ser desencadeado devido à prá cado onanismo segundo o então ideário médico burguês.

De toda forma, essas três guras vão permanecer claramente de-limitadas somente até meados do século XIX. Após o desenvolvimentoda noção de degenerescência por Morel, toda sorte de anormalidades éatribuída a uma ‘fonte orgânica difusa’ que perturba cons tu vamenteas funções mentais e/ou sicas de certos indivíduos e, de modo cada vezmais grave, de seus herdeiros biológicos. Essa teoria da degenerescência

é a origem de todas as teorias eugênicas que irão desenvolver-se, espe-cialmente as discussões evolucionistas spencerianas que se apoiam emDarwin para iden car es gmas sicos da anormalidade como indica vosde uma criminalidade, como é o caso da escola italiana de Lombroso eseus discípulos.

Este formato se mantém: há um modelo hegemônico de como ossujeitos devem exis r. Existências que servem para fundamentar, por

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meio de argumentos e da circulação de discursos, a perpetuação (e legi -mação) de algumas formas de violência, e do não reconhecimento destascomo tais.

Inventam-se diferentes estratégias para enfrentar um sistema per-verso de produção baseado na exploração e opressão. Intencionalmenteou não, são resistências, produções de vida. Mas também são exercíciosde poder, de dominação. O poder se dá na relação e, para todos estes quetransgridem a norma, há efeitos sérios: processos de renorma zação, deexclusão e de eliminação.

Para Bap sta (1999), diversos especialistas constroem teorias, ideiase conceitos sobre determinadas categorias de sujeitos, divulgadas ampla-mente na mídia, e exercitadas em diferentes prá cas. Falas que tomama diferença como uma carência, algo nega vo, que necessita de tutela ede pena. Jus ca-se, assim, a eliminação de populações a par r de seusmodos de existência que não se enquadram nas normas.

O o da faca que esquarteja, ou o ro certeiro nos olhos, possui algunsaliados, agentes sem rostos que preparam o solo para esses sinistros atos.Sem cara ou personalidade, podem ser encontrados em discursos, tex-tos, falas, modos de viver, modos de pensar que circulam entre famílias, jornalistas, prefeitos, ar stas, padres, psicanalistas, etc. Des tuídos de

aparente crueldade, tais aliados amolam a faca e enfraquecem a ví ma,reduzindo-a a pobre coitado, cúmplice do ato, carente de cuidado, fraco eestranho a nós, estranho a uma condição humana plenamente viva. (Bap-

sta, 1999, p. 46)

Os amoladores de facas, diz o autor, “à semelhança dos cortadoresde membros, fragmentam a violência na co dianidade, remetendo-a apar cularidades, a casos individuais” (Bap sta, 1999, p. 46). Onde esta-rão, pergunta ele, os amoladores de facas? E con nua:

Já que invisíveis no dia a dia, a presença desses aliados é di cil de detec-tar. A ação desse discurso é microscópica, complacente e cuidadosa. Nãoseguem as regras dos torturadores, que reprimem e usam a dor. Ávidospor criarem perguntas e respondê-las, por criarem problemas e solucioná--los, defendem um humanismo que preencha o vazio de um homem fracoe sem força, um homem angus ado e perplexo, necessitado de tutela.”(Bap sta, 1999, p. 48)

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O que têm como em comum, a nal, os amoladores de facas? “Apon-tar o preconceito seria uma ingênua dedução, uma análise que jus ca ealimenta os autoritários ‘pontos de vista’, os rela vismos e a ênfase na boaou má consciência” (Bap sta, 1999, p. 49). Os ‘pontos de vista’ fundam-seno que os amoladores de facas têm em comum: a presença camu ada doato genocida. “São genocidas, porque re ram da vida o sen do de expe-rimentação e de criação cole va. Re ram do ato de viver o caráter plenode luta polí ca e da a rmação de modos singulares de exis r” (Bap sta,1999, p. 49).

Por que trazer para uma discussão sobre direitos humanos e movi-mentos sociais o conceito de amoladores de facas? Porque para além daquestão da criminalização está a pergunta: ‘onde estão essas prá cas que

amolam facas?’ E em que sen do a prá ca de amolar facas são prá casque vão de encontro a prá cas de direitos humanos? Quem são os amo-ladores de facas? E, ainda, em quais momentos amolamos facas? O quefazer para modi car a situação co diana de violência e exclusão de modosde existência?

Perguntemo-nos, recorrentemente: que efeitos têm sido produzidosem nosso co diano? Que sujeitos, saberes e objetos – os quais não exis-tem em si -– estamos o tempo todo produzindo? É preciso colocar emanálise nossas prá cas, discu ndo que psicólogos estamos produzindo eque saberes estamos perpetuando.

Recusamos, aqui, a perspec va que incompa biliza psicologia e po-lí ca, um po hegemônico de racionalidade que impõe a oposição dico-tômica entre teoria e prá ca, ciência e ideologia. Habitualmente, intervircomo psicólogo pressupõe analisar um território individual, interiorizadoou, no máximo, circunscrito a relações interpessoais, transferindo as pro-duções polí cas, sociais e econômicas ao campo de estudos de um “outroespecialista”. “São exteriores à realidade psíquica”, talvez seja esse o argu-mento. Tentar percorrer outros caminhos e recusar tal des no, lançandomão de uma ‘caixa de ferramentas’ teórico-conceitual, foi (é) o desa o.Recusar o lugar de ‘ortopedista social’, com seus saberes prontos em pla-nejamentos metodológicos assép cos, mesmo sabendo que inúmeras ve-zes fomos (somos) capturados pelo enfoque posi vista.

Nossas prá cas envolvem uma concepção de mundo, de sociedade,de homem, de humano, exigindo um posicionamento sobre a nalida-

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de da intervenção que fazemos, a qual envolve a certeza de que nossasprá cas têm sempre efeitos, exigindo que tomemos, portanto, posições.

Comum é exercício. E exercício é sempre o exercício de uma po-

lí ca. Aqui, polí ca do comum. Como acessar (e construir) um mundocomum? Que esta pergunta nunca deixe de ser feita, em quaisquer in-tervenções que construímos como lugares a serem ocupados. E que, as-sim, a Psicologia, esteja a serviço da escola, da jus ça ou do trabalho,cons tua-se como uma Psicologia do Comum. Que este seja o sen dode uma Psicologia, de fato, ar culada aos movimentos sociais. E que sir-va para, no interior da própria epistemologia e da construção do saberpsicológico, revolucionar nossas ordens e cons tuir, de dentro, como ummovimento social. Movimento que opere revoluções drás cas ao que he-gemonicamente temos construído.

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Sujeito contemporâneo e as sexualidades “desviantes”:con nuando o debate

Maria Juracy Filgueiras Toneli

Pensar a questão do sujeito e dos processos de subje vação nomundo contemporâneo tem se mostrado uma tarefa desa adora que nãocessa de me interpelar. Ao realizar um mapeamento de minha trajetóriaacadêmica com a nalidade de ser avaliada para a categoria de professora

tular, iden co agora mais claramente algumas escolhas que parecemdizer algo acerca dessa interpelação. É possível considerar que se eviden-cia, nesse percurso, um certo nomadismo teórico-metodológico alicer-çado, entretanto, em uma sólida (creio eu) e clara escolha é co-polí caque privilegia interlocutores na/da pesquisa e na/da extensão – se é quepossa separá-los – que, grosso modo, cons tuem parcelas da populaçãoaviltadas em seus direitos sociais (quiçá “naturais”), os “desprovidos” ou“despossuídos”, como discu rei mais adiante. São crianças, jovens e adul-tos, em geral pobres e discriminados por mo vos diversos. Minha via deacesso a eles e elas tem sido, com frequência, serviços e polí cas públicasem áreas dis ntas como educação, saúde, assistência social e segurançapública, assim como os movimentos sociais. Mais recentemente, nos úl-

mos cinco anos, a parceria com uma organização não governamental ea proximidade cada vez maior com os movimentos LGBT permi ram umacesso mais direto a essa população e têm me colocado novos desa osteórico-metodológicos.

A despeito desse nomadismo teórico 1, considero que um eixoimportante transversaliza essas diversas concepções no que diz res-1 Chamo aqui de nomadismo teórico os deslocamentos teórico-conceituais que venho efet-

uando em minha trajetória acadêmica. Ele inclui incursões pelo materialismo histórico-di-alé co, em especial pela teoria vygotskiana, uma formação no psicodrama de base fenom-enológica-existencial, e, last but not least , uma dedicação – por vezes intermitente - desdemeu Mestrado, concluído em 1988, pela obra de Michel Foucault e pelas teorias feministaspós-estruturalistas.

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peito aos processos de subjetivação. Trata-se da assertiva da produçãodiscursiva de sujeitos históricos imersos na cultura, posicionados naordem societária de forma assimétrica/desigual marcada por registrosde classe, raça/etnia, sexo/gênero, dentre outros vetores fundantesdaquilo que podemos chamar ainda que precariamente de sujeito.Aqui entendo sujeito, portanto, o efeito dinâmico e provisório dessamalha/rede de poder que, a partir de pontos nodais, produz a ficçãode substância, unidade e coerência que a metafísica da presença buscaafirmar na modernidade.

Aprendi com os feminismos, dentre tantas coisas, a proble-matizar os pressupostos modernos e cartesianos que, entre outrospilares, apostam “n a ciência e no método científico” 2 como vias deacesso para a descoberta da “verdade”. Objetividade, imparcialida-de/neutralidade, universalidade são construtos fundamentais nessa/para essa perspectiva, assim como a ideia de uma Razão incorpora-da no/pelo sujeito moderno uno, indivisível, coerente e consistente,masculino, branco, heterossexual, como denunciou a crítica femi-nista. Os pares binários como corpo-mente, sujeito-objeto, interno--externo, masculino-feminino, natureza-cultura, bem-mal, transver-salizam essa racionalidade constituindo sujeitos no mundo por elesmarcados. O mal-estar gerado em mim por essas concepções levou--me cada vez mais a me posicionar academicamente a partir da in-tenção de me manter questionando-as, sabendo, de antemão, de suaimpossibilidade absoluta, cunhada que sou por essa “racionalidade”moderna.

A posição que escolho parte das ideias de “fundamentos con-tingentes” (Butler, 1998), “saberes localizados” (Haraway, 1995) e “ci-ência engajada” (Haraway, 1995). Tenho travado, então, pequenos egrandes exercícios cotidianos de combate comigo mesma, na tenta-tiva constante de desconstruir minhas concepções normativas e clas-sificatórias, formada que sou, também, no âmbito de uma disciplina“normatizadora e normalizadora” como a Psicologia. Dos feminismostambém trago a ideia de posicionalidade, uma vez que, ao sermos pro-

2 Quando coloco esses termos-conceitos entre aspas quero enfa zar que eles “estão sob crí -ca”, na busca por problema zá-los e designá-los “como lugares de debate polí co” (Butler,1998, p. 28).

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duzidos como sujeitos no mundo, sempre o somos a partir de um sis-tema de referência posicional 3.

Mais recentemente (úl mos cinco anos), enveredando pela obra de

Judith Butler, em diálogo constante com as problema zações empreendi-das por Michel Foucault, venho me dedicando às chamadas “sexualidadesdesviantes”. De volta do pós-doutorado, desloquei meus interesses paraos processos de subje vação no mundo contemporâneo que de algumamaneira problema zam a (cishetero)norma 4, cada vez mais dedicada àsteorias feministas de base pós-estruturalista com forte diálogo com aobra de Michel Foucault. A parceria com a organização não governamen-tal ADEDH (Associação em Defesa dos Direitos Humanos com Enfoque naSexualidade)5, consolidada ao longo dos úl mos cinco anos como já men-cionado, tem se mostrado de fundamental importância para o desenvolvi-mento de trabalhos de inves gação (pesquisas nanciadas pelo CNPq, Mi-nistério da Saúde e Secretaria de Direitos Humanos), extensão (projetosdesenvolvidos no âmbito da ONG, como Segundas Trans-tornadas, Cine D,Clínica da Diversidade, De Volta às Aulas, dentre outros), capacitação (téc-nicos das Secretarias Municipal e Estadual – Florianópolis e Santa Catarina – nas áreas da Saúde, Educação, Assistência Social e Segurança Pública) eensino (disciplinas da graduação e da pós-graduação, bem como estágiocurricular em Psicologia Social).

O caráter relacional do conceito gênero, somado ao seu franco bina-rismo, obriga-me a manter uma perspec va que orientou e orienta o meuolhar para a assimetria e o caráter de poder que as relações de gênero3 Penso mais especi camente na proposta de Adrienne Rich (2002) com a ideia de uma “polí ca

de localização”, ao denunciar a constante secundarização das questões raciais e de classe pelofeminismo branco liberal, propondo o corpo como o primeiro lugar da experiência. Rich nãofoi a única. É preciso destacar a importância de feministas como Bel Hooks, Gloria Anzaldúa,Gayatri Spivak, Audre Lorde, Cherríe Moraga, Judith Butler, dentre tantas outras que colab-

oraram para a elaboração de uma analí ca interseccional, posicionada, entre sexo/gênero,raça/etnia, classe social, geração, dentre outros marcadores que nos cons tuem e posicionamcomo sujeitos no mundo. Nessa perspec va, a despeito das diferenças entre as autoras, opessoal, o público e o polí co são vistos como inexoráveis e profundamente interligados.

4 Compreendida aqui como o modelo norma vo que toma a heterossexualidade e a corre-spondência entre iden dade de gênero e a genitália de nascença como “naturais”, normais eo único modelo aceitável, con gurando expecta vas, demandas, restrições e obrigações queregulam a vida societária e modos de subje vação.

5 Organização não governamental sediada em Florianópolis que tem sua origem em um grupode traves s e se mantém, há 22 anos, trabalhando pelos direitos da população LGBTTT.

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comportam. Nesse cenário complexo, sen -me inquieta com o que iden-quei como uma insu ciência das categorias marxistas para dar conta

das modulações presentes nos processos de subje vação que produzemsujeitos posicionados não apenas em conformidade com sua origem declasse. O sistema sexo/gênero 6, os marcadores de raça/etnia, gerações,território, dentre outros, mostram-se fundamentais para o entendimentodas hierarquizações e discriminações por meio das quais os sujeitos sãoproduzidos no mundo.

Nesse cenário tenho em mente o que Foucault (1995, p. 235) a r-mou sobre uma das três formas de lutas contemporâneas por ele iden-

cadas: “aquela contra o que liga o indivíduo a si mesmo e o submete,deste modo, aos outros (lutas contra a sujeição, contra as formas de sub-

je vação e de submissão)”. Explicita o autor, no mesmo texto, que enten-de sujeito como “sujeito a alguém pelo controle e dependência, e preso àprópria iden dade por uma consciência ou autoconhecimento” (Foucault,1995, p. 235).

O fato de considerar o sujeito como sujeito a (alguma coisa, pessoa,ins tuição, sistemas norma vos, formas de dominação e exploração, den-tre outros), no entanto, exige o avanço na compreensão, por um lado, daslutas contra a submissão da subje vidade e, por outro, daquelas que, mais

ou menos difusamente, como vêm se expressando nas manifestações derua, opõem-se às formas de domínio de uns sobre os outros, seja atravésdos arranjos econômicos, dos saberes ins tuídos e seus privilégios, dosefeitos do poder que operam a despeito dos limites nacionais ou de for-mas par culares de governo. É notório, por exemplo, o rechaço de parteexpressiva dos manifestantes a par dos polí cos, sindicatos, organizaçõesreligiosas e demais ins tuições que, tradicionalmente, congregaram inte-resses chamados de cole vos.

Ao mesmo tempo, os desa os das novas realidades sociais e tecno-lógicas me colocaram frente a problemá cas – ainda que não necessaria-mente novas, ao menos produzidas e visibilizadas de maneiras diferen-tes – que me incitaram à busca de formas outras de pesquisar dis ntas6 Para Gayle Rubin, o sistema sexo-gênero “é um conjunto de arranjos através dos quais uma

sociedade transforma a sexualidade biológica em produtos da a vidade humana, e no qualestas necessidades sexuais transformadas são sa sfeitas” (Rubin, 1975, p. 159). Note-seque aqui a autora parte de uma separação entre natureza e cultura que, embora já bastanteproblema zada, ainda parece funcionar como importante regulador da vida societária.

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daquelas nossas “velhas” conhecidas. Trata-se de oportunidade rica nosen do da re exão teórico-metodológica que potencializa o movimentoda pesquisa. No meu caso, o conjunto de inves gações empreendidaslevou-me a algumas considerações fundamentais que se centram na dis-cussão da (cishetero)norma que regula os processos de subje vação econforma sujeitos norma zados (assim como os “desviantes”, sua outraface cons tu va).

Nesses processos que incidem sobre a matéria e produzem corpossexuados, a violência parece ser um efeito (e uma estratégia) semprepresente, adquirindo inclusive o formato daquilo que se convencionouchamar de homofobia 7. As relações entre gênero, sexo e corpo, no entan-to, permanecem polêmicas (teórica e poli camente) e, nesse contexto,

os corpos desviantes são alvo de discriminação encarnada em situaçõesde injúria e humilhação co dianas que, por vezes, culminam em atosde crueldade extrema (como os assassinatos de traves s demonstram).Que efeitos esses corpos produzem? Quais entrelaçamentos propiciam aaversão que geram? Como inves gar essas produções? Como enfrentar aviolência da (cishetero)norma? Como subvertê-la?

Com o intuito de avançar no aprofundamento dessas questões,coordenei o projeto que incidiu sobre o corpo em sua intersecção com

o sistema sexo/gênero. A pesquisa in tulada “Gênero, sexo e corpo tra-ves : abjeções e devires” 8 possibilitou conhecer mais de perto a realida-de co diana das pessoas traves s, assim como suas trajetórias de vida,permi ndo, portanto, visualizar suas di culdades no que diz respeito aoenfrentamento dos preconceitos. Essas di culdades se tornam mais agu-das quando do momento/percurso das transformações corporais maisradicais. Ou seja, esses corpos que parecem não se adequar à (cishetero)

7 Compreendida aqui genericamente como a discriminação (em suas várias dimensões e for-

matos) contra pessoas com orientação sexual e/ou iden dade de gênero dis ntas do modeloheteronorma vo.8 Coordenada pela professora Maria Juracy Filgueiras Toneli do Núcleo de PesquisaMargens:

Modos de vida, família e relações de gênero, do Departamento de Psicologia da Universi-dade Federal de Santa Catarina, teve como parceiros os núcleos LabESHU (Laboratório deSexualidade Humana) da UFPE e o Núcleo de Pesquisas e Prá cas Sociais em Polí cas Públi-cas e Saúde (P.P.S) da UFJF, equipes que incluem ex-doutorandas do Núcleo Margens, hojedocentes pesquisadoras e orientadoras, Karla Galvão Adrião e Juliana Perucchi (respec va-mente). Contemplada pelo Edital MCT/CNPq/MEC/CAPES nº 02/2010 - Ciências Humanas,Sociais e Sociais Aplicadas e com Bolsa PQ (2011/2015).

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norma inquietam, afetam os demais, suscitando, não raro, reações extre-madas. Ainda assim, as traves s insistem em não abrir mão de seu desejoe seguem buscando a produção de um corpo, na maioria das vezes idea-lizado a par r daquilo que o imaginário social atribui ao corpo feminino(novamente o binarismo aqui se faz presente). Simultaneamente, nessecaso, subversão e submissão à norma desa am a racionalidade modernaque determina que tudo “é ou não é”.

Penso o denominado corpo, portanto, no entrelace do materialcom o simbólico, bem como do sexo com o gênero. Assim, por um lado,problema zo a disjunção operada pelo binarismo e pela hierarquia pre-sente no sexo e gênero entendendo o con nuo deslizamento e interfaceentre esse par. Por outro lado, entendo a materialidade posta no corpocomo associada tanto à dimensão simbólica e discursiva quanto à biológi-ca e concreta. Ou seja, parto da premissa de que, a despeito do biológico,não há a priori uma materialidade real inegável, uma verdade irredu velsobre/do corpo, e sim uma série de discursos estratégicos que produzemcorpos de acordo com certos regimes de verdade, conforme Cavarero eButler (2007) propõem.

Essas pontuações incidem na necessidade da u lização de re-cursos teóricos e estratégias de produção de conhecimento afeitas à

concepção epistêmica e ontológica adotada. Dessa forma, o recurso àimagem, na pesquisa, possibilitou o contraponto à linguagem calcadade forma acentuada no simbólico e no conceito, uma vez que é na pró-pria auto(re)produção imagé ca dos corpos das pessoas traves s quea uidez entre corpo biológico e corpo simbólico (penso eu) pode seranalisada.

Uma das preocupações que tem me mobilizado é a de compreen-der melhor os modos de assujeitamento nos contextos urbanos moder-

nos, nos quais imagens idealizadas do feminino e do masculino tornam--se hegemônicas, o que quer dizer que se trata de um modelo que seimpõe sobre todas as demais formas de ser no mundo. Como modelo,deve-se considerar sua incapacidade de corresponder diretamente aoque as pessoas vivenciam concretamente. No entanto, a posição de mo-delo hegemônico implica a constrição de outras possibilidades que, em-bora existentes, são desquali cadas, deslegi mizadas, menosprezadas,invisibilizadas e, portanto, violentadas em suas expressões.

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Chama atenção aqui qualquer forma de sexualidade e de corpora-lidade que não corresponda àquela da (cishetero)norma, expressa pelobinômio masculino-feminino colado a corpos de homens e mulheres vis-tos em sua dimensão biológica (machos e fêmeas). Uma das conclusõesa que cheguei a par r das pesquisas que tenho realizado foi a de que nabase da discriminação e do preconceito, mais do que a homofobia talcomo a conhecemos hoje, encontra-se exatamente a (cishetero)norma.São sua força e seu impera vo que parecem possibilitar as várias modali-dades de violência, inclusive a domés ca contra as mulheres. A despeitodos sistemá cos posicionamentos do Conselho Federal de Psicologia noBrasil9 e de outras organizações cien cas estrangeiras (que incluem asAssociações Americanas de Psiquiatria e de Psicologia), os preconceitos

e patologizações dos “desvios” da (cishetero)norma são lugar-comum.As sexualidades desviantes/divergentes mantêm-se, no entanto, comouma realidade desa adora do clichê “a biologia é o des no”.

Na con nuidade desse percurso, outra pesquisa em fase de con-clusão com apoio do CNPq, in tulada “Direitos e violências na experi -ência de traves s e transexuais em Santa Catarina: construção de per l psicossocial e mapeamento de vulnerabilidades” 10, tem possibilitadocaracterizar essa população do ponto de vista sociodemográ co, bemcomo iden car suas vulnerabilidades e formas de acesso (ou não) àspolí cas públicas no Estado de Santa Catarina. Para tanto, contamoscom procedimentos diversi cados (assim como na pesquisa anterior)que incluem ques onário especialmente elaborado para essa popula-ção (n=100), entrevistas em profundidade e grupos focais com pessoastraves s e transexuais, bem como entrevistas com gestores e análise dedocumentos. Os resultados demonstram bem as vulnerabilidades a queestão expostas/os.

O conceito de vulnerabilidade, no entanto, merece uma discussãomais cuidadosa. Em seu diálogo com Judith Butler sobre a noção de9 Ver o documento do CFP, em resposta ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro,

rea rmando a resolução nº 01/1999. A norma va do CFP acerca da homossexualidade temsido alvo constante de resistência por parte de grupos marcados pelos fundamentalismos re-ligiosos, haja vista os projetos de lei na tenta va de descaracterizá-la ou mesmo de anulá-la.

10 Chamada Pública MCT/CNPq - N º 14/2012 - Universal / Universal 14/2012 - Faixa B. Projetodesenvolvido em parceria com o NUH/Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT do De-partamento de Psicologia da UFMG, coordenado pelo Prof. Dr. Marco Aurélio Máximo Prado.

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“dispossession”, (Butler & Athanasiou, 2013) a rma que, em termos dacondição poli camente induzida a que certos grupos são diferenciada-mente expostos, como injúria, violência, pobreza, debilidade e morte,podemos considerar que a ideia de “precariedade” corresponde oudescreve as vidas daqueles cujo “lugar próprio é ‘não-ser’”. A rma, ain-da, que essa condição é certamente relacionada com uma posicionali-dade/distribuição assinalada socialmente (fundamental para o regimeneoliberal), assim como com várias modalidades de valorações comomorte social, abandono, empobrecimento, racismo, fascismo, homo-fobia, assédio sexual, militarismo, desnutrição, acidentes industriais,injúrias no trabalho e uma governamentalidade liberal da “aversão eda empa a”.

É importante considerar a relação dos conceitos despossessão eposicionalidade com a noção de precariedade de Butler (2004) e seuduplo sen do: precariedade como uma categoria existencial que pre-sumiria um compar lhamento equânime, e precariedade como umacondição de indução de desigualdade e des tuição. A raiz dessa ideiaencontra-se no pressuposto ontológico da vulnerabilidade. A vulnerabi-lidade é o centro do eu relacional, o eu que não se consegue considerartotalmente: ser exposto aos outros, ser essa exposição, é o que quali -ca o humano como tal. Ou seja, a condição humana é exatamente a deprecariedade, dependência e vulnerabilidade, uma vez que nossos cor-pos e nossa existência subje va são socialmente cons tuídos, sujeitos aoutros, ameaçados pela perda, expostos e susce veis a outros pos deviolência em razão dessa exposição (Butler, 2004). Diz Butler,

Isso signi ca que cada um de nós é em parte cons tuído poli camente pelafragilidade de nossos corpos, como um campo de desejo e vulnerabilidade

sica, ao mesmo tempo asser vo e exposto. A perda e a vulnerabilidade pa-recem prover do fato de sermos corpos socialmente construídos, vinculado

a outros, com o risco de se perder esses vínculos, exposto aos outros, sob orisco da violência em virtude da exposição. (Butler, 2004, p. 20)

Todos vivemos esta vulnerabilidade par cular, uma vulnerabilida-de para o outro e para uma chamada repen na (interpelação) de ou-tro lugar que não podemos prever. A autora esclarece que, desde o iní-cio da vida, mesmo antes da individuação em si e em virtude de nossa

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existência corporal, somos “dados ao outro”, e esta “condição inicial dedesapropriação” (ou despossessão) é uma condição geral do ser huma-no (Butler, 2004). Essa cons tuição está intrinsecamente relacionada ànorma vidade vigente na cultura na qual o sujeito está inserido, que emgeral impõe e sinaliza quais corpos e es los de vida são legi mamente“reconhecidos”, “aprovados” e “apoiados” pela sociedade que os ins tuicomo “normais” e “de valor” (Butler, 2003).

A vulnerabilidade é acentuada sob certas condições sociais e po-lí cas, especialmente naquelas onde a violência é um modo de vida eos meios para que garantam a autodefesa são limitados (Butler, 2004).Se desde a infância somos “algo que se entrega para ser cuidado”, poroutro lado e simultaneamente, nem toda vida é des nada à proteçãoque merece (Butler, 2006). Algumas vidas são muito mais protegidas,e o atentado contra a sua integridade sica ou psicológica basta paramobilizar as “forças da guerra”. Outras vidas não gozam de um apoiotão imediato e zeloso, e não se quali cam a ser incluídas nas “vidas quevalem a pena”, como Butler (2004) argumenta a par r dos atentados de11 de setembro de 2001 ao World Trade Center, que jus caram que osEstados Unidos da América ceifassem a vida de dezenas de crianças efamílias iraquianas e afegãs. Ou ainda, como temos acompanhado, Isra-el jus ca ao mostrar ao mundo todo sua capacidade de eliminação dapopulação civil pales na.

No caso das pessoas traves s e transexuais, penso que essa lógicacombina, no cenário brasileiro, processos de fazer e deixar morrer, in-cluindo simultaneamente negligência por parte do Estado e eliminaçãopor parte de membros da sociedade civil (homicídios). Os movimentossociais vêm há tempos demonstrando tal combinação e reivindicandoo acesso a direitos e cidadania para essas pessoas. Isso inclui evidente-mente o alargamento de direitos assegurados à população heterossexual

como o casamento, adoção e tecnologias reprodu vas, herança, segurose pensões, hormonioterapia, dentre outras possibilidades, mas também,e sobretudo, o alcance do status de sujeito polí co, ainda que sob a viada judicialização desse. O fato, por exemplo, de nem fazerem parte dasesta s cas “o ciais” de governo (embora possam ser problema zadassob a ó ca das estratégias de controle e das biopolí cas) demonstra suainvisibilidade e, portanto, sua “inexistência”.

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Toneli, M. J. F. (2015). Sujeito contemporâneo e as sexualidades “desviantes”: con nuando o...

Pessoas traves s e transexuais em Florianópolis

Em nossa úl ma pesquisa aqui mencionada, chamam a atenção al-

guns aspectos mapeados, por sua importância na relação com as violên-cias e o (não acesso) a direitos. Os dados ob dos con rmam o que há mui-to o movimento de traves s e transexuais vem denunciando. Violência,desassistência, invisibilidade e negligência são palavras que surgem quan-do se trata dessa população. Das pessoas entrevistadas: 40,3% pararamde estudar entre 14 e 18 anos, 41,9% saíram da casa da família entre 14e 18 anos, 33,9% a rmam ter saído da casa da família em decorrência dotrabalho e 19,4% pela violência e o preconceito sofridos dentro de casa.Delas, 82,3% a rmaram já ter feito sexo por dinheiro ou outros bene -

cios, 58% se declararam pros tutas e 72,4% começaram a usar roupas dogênero oposto ao designado no nascimento antes dos 18 anos. A grandemaioria já fez sexo por dinheiro ou outros bene cios quando era bastante jovem: 40,3% o zeram entre 8 e 17 anos.

Há, portanto, uma relação evidente entre o momento da experi-mentação mais explícita do gênero oposto ao que lhes foi atribuído e aescalada de violência a que são subme das. Essa se inicia na família deorigem, levando à saída de casa, passa pela escola, levando ao “abando-

no” da escolaridade, e chega à idade adulta com o direcionamento aomercado do sexo, uma vez que outras possibilidades são sistema camen-te negadas a essas pessoas.

Com relação às outras formas de violência, 76% dessas pessoas de-clararam já ter sido ví mas de violência psicológica, 62% de violência -sica, 43% de violência ins tucional, dentre outras modalidades. É precisopontuar que, durante a aplicação do ques onário, tornou-se necessárioesclarecer o que de nia cada uma delas e que, não raro, foi possível iden-

car uma certa “naturalização”, uma vez que comentários como “isso énormal”, assim como a di culdade de nomear o episódio, mostraram-sepresentes. Nesse caso, é possível concordar com o que a rmam Amorim,Vieira e Brancaleoni (2013):

A vivência constante da discriminação faz com que muitas traves s aca-bem por signi car a condição de exclusão como inexorável, não se reconhe-cendo en quanto sujeitos de direitos, mas sim enquanto pessoas que atépodem receber pequenos bene cios dados por órgãos governamentais ou

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não governamentais. Assim, acabam por acreditar que devem “se conten-tar” com a vida que possuem. (p. 526)

Dentre os agentes de violência, a população em geral foi menciona-da por 65% das pessoas, 53% iden cam colegas de trabalho, 52% clien-tes e 30% as “donas de casa” (cafe nas), assim como 41% citam familiares.Chama a atenção que 46% iden cam a polícia, 42% os pro ssionais dosserviços de educação, 40% os pro ssionais dos serviços de saúde e 15%os do SUAS. Quanto aos serviços de saúde, por exemplo, na pergunta “nosúl mos 12 meses, alguma vez você achou que precisava de consulta mé-dica ou odontológica, mas não procurou?”, 68% das pessoas par cipantesresponderam que sim, e quando ques onadas sobre o acompanhamentode doenças das quais já receberam diagnós co, 88% disseram que nãofazem acompanhamento médico. Ou seja, um espaço supostamente decuidado, para essas pessoas, mostra-se hos l, por medo da discriminação já vivenciada ou imaginada a par r de outras experiências. Essa situaçãofaz com que muitas vezes busquem auxílio entre amigos ou em outroslugares e espaços, como os das religiões.

A par r de suas experiências etnográ cas com traves s de SantaMaria, Souza, Signorelli, Coviello e Pereira (2014) dizem:

Para compreender como as traves s percorrem trajetórias para o cuidado éimportante conhecer as estratégias u lizadas em seus i nerários, e as solu-ções encontradas para evitar espaços em que sabidamente sofrerão precon-ceitos e violências por suas opções de gênero, por sua sexualidade e pelasmodi cações corporais. (Souza, Signorelli, Coviello, & Pereira, 2014, p. 2278)

Portanto, o extermínio das vidas abjetas nem sempre é visível, ho-mogêneo e diretamente letal. Pode ser encontrado no alijamento dessapopulação das ins tuições públicas de saúde, assim como nas di culda-

des de acesso a serviços públicos de educação, assistência e segurança(Amaral & Toneli, 2013). É localizado nas violências sicas e psicológicasvivenciadas co dianamente por pessoas traves s e transexuais no contex-to escolar, do trabalho, da família e nos relacionamentos próximos.

Por sua vez, os dados divulgados pela Transgender Europe (TGEU),organização europeia que mantém o monitoramento sistemá co dos as-sassinatos de pessoas trans a par r de relatos ao redor do mundo, con-

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Toneli, M. J. F. (2015). Sujeito contemporâneo e as sexualidades “desviantes”: con nuando o...

rmam o alto índice de mortalidade e descaso para com essa população,especialmente no Brasil. O úl mo monitoramento, divulgado em 30 deoutubro de 2014, demonstra que, no período de outubro de 2013 a se-tembro de 2014, foram assassinadas 226 pessoas trans em 28 países. Opaís com o maior número de ví mas é o Brasil – em doze meses foramregistradas 113 mortes –, seguido do México com o segundo maior núme-ro, 31. É importante salientar, também, que muitas dessas ví mas sequersão iden cadas, uma vez que lhes faltam documentos ou que neles nãohouve alteração do nome e do sexo.

De acordo com esses dados, não parecem sobrar muitos locais segu-ros de circulação para as pessoas traves s e transexuais. Conseguimos, porexemplo, iden car que poucas circulam pela cidade, com exceção dos lo-cais de trabalho (ruas). Quando não estão trabalhando, permanecem emcasa dedicando-se aos cuidados esté cos, vendo televisão, conversandocom as “colegas” ou nas redes sociais por meio do telefone celular.

Também não são raras as situações de pessoas traves s e transexu-ais sem local de moradia ou com moradia i nerante. De 2014 a 2015, so-mente na ADEDH, foram iden cadas três dessas pessoas sem teto e comsérias di culdades de encontrar abrigo na rede de assistência em funçãode sua iden dade de gênero. Quanto ao nomadismo, pode-se relacioná-

-lo com di culdades rela vas à própria sobrevivência, que fazem com quese desloquem autonomamente em busca de novos locais de trabalho napros tuição ou por pressão das “donas de casa”, por exemplo, em repre-sália por terem ampliado sua rede de sociabilidade para além do círculode in uência e controle das cafe nas. Mesmo residindo em casa própria,muitas das que se mantêm na “pista” devem pagar pelo uso do território,uma vez que a cidade é zoneada entre elas.

O cenário, portanto, é claro no sen do do aviltamento de direitos e

de sujeição a violências de todos os pos.

Traves s, transexuais e transgêneros como sujeitos polí cos: a coragemda verdade

Penso ser importante indagar, parodiando Butler (1990) quandopergunta quem é o sujeito do feminismo: quem é o sujeito dos movimen-

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tos Ts11? São aquelas e aqueles que, reiteradas vezes, denunciam sua in-visibilidade também nos movimentos LGBT, transversalizados que são porregulações moralizadoras e higienizadoras capturadas pelo/do sistemanorma vo vigente.

As pessoas traves s e trans escancaram sua iden dade de gênero,sua sexualidade e seu desejo, contrariando o que é esperado, subverten-do a expecta va (cishetero)norma zadora/normalizadora. Há aqui umapercepção de si marcada pela diferença e uma miríade de sen dos éaberta a par r dessa ousadia. Se a ideia de ambiguidade, de circularida-de, de transitar pelos polos dos pares binários homem/mulher, feminino/masculino, macho/fêmea não é nova, não é recente, parece recente, noentanto, a forma como visibilizam esse trânsito e como o percebemos e oproblema zamos.

Sobre esse trânsito, Wiliam Siqueira Peres (2012) a rma que:As traves s inauguram um novo es lo de existência na contemporaneida-de, marcado pela expressão de suas singularidades, e, por isso, produzemnovas tomadas de consciência crí ca, o que solicita mais discussões nasdiversas esferas de convivência social, polí ca e cultural, produzindo novasformas de perceber, sen r, pensar e agir com e no mundo que não se orien-tem pelos binarismos e pelos universalismos. (Peres, 2012, p. 542)

Essas pessoas quebram a norma sexo/gênero, criando a possibili-dade de que essa seja ques onada, posta em evidência e contestada.Inventam es los de existência que trazem proposições é cas e esté casem confronto com outras proposições reguladas pela (cishetero)norma.Há aqui, portanto, uma crí ca à vida imposta pelas regulações do sistemasexo/gênero binário e um apelo a uma vida outra.

Frédéric Gros (2006) a rma que a vida outra será ao mesmo tempo

uma crí ca e um chamado para uma outra forma de vida que apela porum mundo diferente. Trata-se de uma relação do sujeito com sua própriaconduta, que adota e/ou transgride as normas vigentes. O estabeleci-mento do polí co está marcado, proposto na diferença, e a esté ca daexistência aponta a diferença e a alteridade, assim como assinala modoshegemônicos e autoritários de ser.

11 Por Ts aqui situo as pessoas traves s, transexuais e transgêneras.

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Toneli, M. J. F. (2015). Sujeito contemporâneo e as sexualidades “desviantes”: con nuando o...

Trata-se de uma relação polí ca que se dá nas relações e nos mo-dos de existência, diversas modalidades de ser sujeito em relação com asdiversas formas de orientação sexual e de gênero. Traves s, transexuaise transgêneros, em suma, são maneiras de ser sujeito e, em meio a seusmodos de subje vação, instalam uma forma polí ca, por meio de umaexperimentação de si. O elemento polí co da esté ca da existência tem aver aqui com o que faz diferença, o que fura a norma regulatória. Trata-sede um gesto polí co que fura a maneira generi cada e binária de viver, a(cishetero)norma e seu regime de verdade. Se o cuidado de si, o trabalhoconsigo, está relacionado com a é ca de viver, a construção de si é entãopolí ca. Pensando o polí co como um efeito da busca de si, há um ato po-lí co em dizer a verdade sobre si e há um ato polí co ao se produzir como

pessoa traves e transexual no mundo.Gustavo Mallea (1988) indica que:Foucault dis nguió claramente las “tecnologías del yo” y las fórmulas delcuidado de sí del temperamento coerci vo de las técnicas de dominación.En ambos casos se trata del “poder” en la plena manifestación de sus efec-tos. Pero el camino que conduce a la propia creación del carácter moral in-viste al sujeto de los atributos que lo inducen a resis r tanto el asedio de lospeligros como la imposición de cualquier agente del poder. Por lo tanto quizáse pueda concluir que la é ca signi ca “poder resis r” en el propósito con-secuente de la autonomía y que siendo así, posiblemente, algunos sueños,proyectos o utopías puedan volver a reinventarse. (Mallea, 1988, p. 47)

Tornar pública uma instância individual e posicioná-la como ato po-lí co é o que o transfeminismo busca nesse momento. Considerando todaa possibilidade de serem subme das à violência transfóbica e suas decor-rências, posso pensar que a coragem da verdade que essas pessoas têmao dizer sobre si e performa zar um es lo de existência em conformidadecom seu desejo pode ser compreendida por meio da ar culação entremodo de existência e parresia, com o auxílio de Foucault em seu úl mocurso ministrado na Universidade de Berkeley, em 1984, quando a rma:

quem usa a parresia, o parresiasta é alguém que diz tudo o que tem emmente, não oculta, nada, senão, que abre completamente seu coração esua mente a outras pessoas mediante o discurso ... na parresia, o parre-siasta atua em consideração dos demais, mostrando-lhes tão diretamentecomo é possível aquilo que realmente acredita ... a especí ca “a vidade

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discursiva” da enunciação parresiás ca, portanto, toma a forma: sou quempensa isto e isso, sou quem pensa isto e o outro. (Foucault, 2003, p. 266)

Não sem riscos e cientes deles, as pessoas traves s e transexuaisseguem em sua processualidade cons tu va inventando novos modos devida, dizendo a verdade de si mesmas e desa ando as norma vidades re-gulatórias. O cenário brasileiro atual é preocupante, entre outros mo vospelos constantes ataques aos direitos sociais conquistados nos úl mosanos. O avanço dos grupos conservadores, dentre eles o cons tuído porparlamentares, colocam em risco os parcos direitos a que essa popula-ção teve acesso. Os movimentos sociais LGBT12 e diferentes setores dasociedade civil, assim como pesquisas acadêmicas, seguem, no entanto,alertando de forma insistente para a vulnerabilização dessa população.Trata-se, como aqui exposto, de um co diano atravessado pelo precon-ceito, desatendimento de direitos fundamentais e pela exclusão estruturalque con guram esse desamparo e demonstram a precariedade do acessoà cidadania (Jesus & Alvez, 2010).

Finalizo, então, com a proposta de que, para além da subversão oucaptura, pensadas de forma dicotômica, a própria coragem de não abrirmão do seu desejo e inventar-se como si em um mundo marcado pela (ci-shetero)norma é um ato polí co. Cabe a todos nós desconstruirmos nossosistema regulatório que impede as pessoas que por ele não se deixamcapturar de forma absoluta a alçarem o status e a legi midade humana. APsicologia deve ter algo a dizer e a fazer sobre isso.

Referências

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12 Sigla do movimento social e polí co de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Traves s, Transexuais eTransgêneros.

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Jesus, J. G. (2015). Lições para uma psicologia das oprimidas

Lições para uma psicologia das oprimidas

Jaqueline Gomes de Jesus

Só essas modi cações internas, embora vindas de fora, renovavam paramim o mundo exterior (Marcel Proust)

O meu corpo não é objeto,sou revolução (Éle Semog)

Preâmbulo

É possível fazer Psicologia sem patologizar? É o que ambiciono nomeu trabalho inves ga vo. A história da nossa ciência-pro ssão tem sidopautada por uma ânsia pelo controle, pela colonização dos corpos, pelapatologização.

O pensamento religioso fundamentava a rotulação dos “anormais” – os não normais, os fora da norma – como pecadores, e o tratamento ne-cessário (a remissão, a expulsão da comunidade ou o expurgo pela morte).

Quando o Estado – pretensamente – tornou-se laico, o que era pe-cado tornou-se crime.

E quando o crime já não era mais aceitável para os consideradosmonstros, o pensamento cien co se apresentou como o portador danova verdade sobre os corpos: eles deveriam ser patologizados.

Do pecado ao crime. Do crime à doença. Não necessariamente em

estágios totalmente diversos, e de fato bastante imiscuídos. Herdamosdos padres o estatuto da con ssão. Como nos mostrou um não psicólogo,tão caro e tão repudiado por tantas vertentes da Psicologia, Freud, olha-mos as fraturas do cristal no afã de compreender a pedra intocada (Freud,2010).

Pesquiso e escrevo acerca da diversidade humana, mais frequente-mente a sexual, racial, de gênero. E quando faço isso, parto da acepção

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Psicologia social e os atuais desafos é co-polí cos no Brasil

dessas dimensões como eixos estruturantes das relações sociais, e nãoapenas como variáveis independentes.

No dia a dia, texto a texto, debate a debate, sou ques onada, por

alguns pares, empoderados ou não, a respeito da cien cidade daquiloque trato, como se alguns temas fossem mais “cien cos” do que outros.Como se alguns cargos conferissem maior cien cidade a quem escreveo texto, a quem profere a fala.

Nessa conjuntura não me parece, tão-somente, que o problemaseja o subalterno não dominar a linguagem hegemônica (Spivak, 2010).Há que se problema zar tão incensada acepção. Há os que conhecem eu lizam os vocabulários dos campos, mas nem por isso são reconhecidoscomo integrantes plenos deles.

A patologização de alguém está relacionada ao es gma (Go man,1988) que ela carrega, algum aspecto de sua interação com o mundo que,sob os olhares da sociedade, não é visto como plenamente “humano”.

Lembre-se (ou você não sabia?): vivemos numa sociedade emque há pessoas sem direito ao próprio corpo, sem direito a ocupardeterminados espaços, sem direito ao próprio nome, sem direito àprópria identidade, ou com esses direitos tutelados pelo Estado, sob o

aval das Ciências, ou pelo menos de determinados cientistas (inclua--se uma parcela dos psicólogos), politicamente comprometidos com ocontrole sobre corpos (Jesus & Alves, 2010; Jesus, 2013a; 2013b; 2014;2015).

Em verdade vos digo: fazer Psicologia é viver para amar .

Meus pressupostos

Faz-se mister estabelecer que — penso — qualquer intelectual de-veria compreender por que um capítulo de livro não é um ar go cien co.Ponto.

O texto que você ora lê é delineado pela intertextualidade.

Eu, pronome curioso, senão controverso, para se referir a tantasiden dades, quereres e sonhos que nos fazem quem somos.

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Jesus, J. G. (2015). Lições para uma psicologia das oprimidas

Eu, cole vo do que, na cola da consciência, organiza todos nós, numemaranhado de pensamentos, sensações e sen mentos. Nalguns mo-mentos estranha teia por nós tecida: “Para os outros, eu não era aquelemundo que trazia dentro de mim, sem nome, todo inteiro, indivisível evariado” (Pirandello, 2001, p. 78).

Eu — tendo delineado previamente minha cons tuição — anteve- jo uma Psicologia que está em gestação, uma Psicologia que poderíamosdizer queer , ou melhor, hoje desconhecida e tomada, igualmente, comoesquisita, estranha, porque o normal, hoje, é outra Psicologia, ou outras.Psicologia como um contramovimento.

Uma an -Psicologia, quando fazer Psicologia signi ca direcionar osolhares de nossos interlocutores (comumente chamados de clientes, usu-ários, pacientes, sujeitos) para os melhores produtos desta sociedade, osmais bonitos, os plurais masculinos do progresso universal, espelho douniverso dos bem-afortunados. O engano de um po de moral que enco-bre horrores com os mantos da religião, do entretenimento, da academia,entre outros.

Uma Psicologia estranha que ques ona, outrossim, a falácia da su-premacia meritocrá ca; desnuda psicólogos do véu confessional. Ao invésde adular, de abanar a cauda aos poderosos ou de rosnar contra os diver-gentes. Uma Psicologia que resmunga ante o poder ins tuído.

Seria essa uma Esquizoanálise? (Deleuze & Gua ari, 1996). Uma Psi-cologia Ins tucional? (Bleger, 1984). Boa questão. Creio que possa ser, po-rém mais que isso, ou melhor, concebida fora do útero eurocêntrico. Nãosó uma negação; com um postura necessariamente descolonial, porqueepistemicamente desobediente : “La crí ca del paradigma europeo de laracionalidad/modernidad es indispensable. Más aún, urgente ” (Quijano,1992, p. 447).

Para a maior parte de nós desconhecida, entretanto, principalmen-te, uma Psicologia ignorada: uma Psicologia dos Oprimidos (Freire, 2005),das Oprimidas. Para as/os Oprimidas/os. COM a/o Oprimida/o.

Uma Psicologia desavergonhada de seu gênero, feita por mulheres ehomens que não se envergonham de serem representados pelo cole vo“as”, porque essa Psicologia se pretende – no mínimo – plural e feminista

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– não necessariamente feminina nem masculina – e de ni vamente an --masculinista.

Ela não serve à direita privilegiada, nem à esquerda fes va, que per-

versamente menosprezam ou caçam os não engajados.Mas também uma Psicologia que ama o humano. Transpira afeto

pela humanidade, e não apenas sede de observar e descrever. Conhecepela empa a. Valoriza o choro e o riso.

Seus agentes seriam psicólogas/os que, em primeiro lugar, amam asi mesmas/os. Sem esse motor primeiro, não serão tais pessoas capazesde se abrirem para o outro, de estabelecerem relações sem a necessidadede introduções ao outro , antes de conhecê-lo .

Fazer Psicologia é trabalhar com o amor . E como podemos amar senão vivemos o amor, se não vivemos de amor, se viver de amor é conside-rado uma ingenuidade fadada ao fracasso? Vivemos todas e todos seden-tos por sermos amados, mas como é di cil, para a maioria de nós, amar!

Se o amor cura (Hooks, 1995), quem sabe uma Psicologia inclusiva,que ame o humano (e não o tome como um mero objeto de estudos),possa curar o sofrimento e o ódio, quiçá promover uma vida mais plena?

Isso pode soar como um paradoxo, aos ouvidos de quem reproduz aPsicologia como uma mera aplicação de técnicas e instrumentos, a serviçodas ins tuições. Daí pergunto: qual é a necessidade de exis r um cursosuperior para que apenas se apliquem técnicas e instrumentos?

O trabalho com a humanidade é tão complexo, e autorreferenciado,quanto o é a própria diversidade humana (Allport, 1954) .

Ser humanas/os

Eu falo de uma Psicologia que se assume, desavergonhadamente,como Ciência Humana (portanto Ciência Social), que perscruta o humanoa par r de premissas e com obje vos próprios, o que a diferencia de ou-tros campos do conhecimento cien co: se a História se arroga a tratar doque o ser humano foi (curiosamente, o próprio ser humano é cons tuídopela História da Humanidade, uma história que ele deveras ignora) (Niet-

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Jesus, J. G. (2015). Lições para uma psicologia das oprimidas

zche, 1887/1998); o Direito do que o ser humano deveria ser; a Psicologiafoi calcada pela descrição do que o ser humano é. Agora. No seu momentode inves gação.

Mas o que é a humanidade? A humanidade é um projeto em curso.É algo que somos, em parte, mas igualmente algo que buscamos, comoum cole vo de pessoas. Humanizamo-nos (Jesus, 2012). Algo que cremosser, mais do que ser algo que sejamos, strictu sensu, apesar de, comumen-te, nossa concepção do que seja humano exclua os que diferem do idealde humanidade de nosso tempo, ou melhor, do espírito do nosso tempo(retomo aqui o zeitgeist hegeliano: Hegel, 1807/2011) .

A humanidade é algo almejável, que vem sendo lapidado há milê-nios, mas que ainda – e talvez jamais – somos plenamente.

Há algo de desesperador , ao pensar que o ser humano é capaz deesperar por aquilo que nunca vem, geralmente porque, para todos, a vidaé frágil e breve. E para os oprimidos e excluídos é mais precária. De gera-ção em geração, dentro de cada geração, a promessa é repe da, sem queos pósteros a vejam concre zada. Esperamos como os que esperam Go-dot (Becke , 1952/1990), somos visitados por constantes mensageiros ...

Acreditamos. Temos fé. Aderimos a hipóteses.

A diferença entre os saberes cien cos e outros é a dúvida que per-meia nossa re exão, é o teste daquilo que teimamos em transformar emdogma. Os fundamentalismos não são apenas religiosos. Cuidado.

Fundamentalmente, o ser humano deseja ser amado. O amor nosmove: “l’amor che move il sole e l’altre stelle”(Alighieri, 1321/2015, Para-diso, XXXIII, 145).

A crueldade

Porém, uma a tude que me causa incômodo, desa a minha capaci-dade re exiva e perturba o meu sono , com ques onamentos recorrentes , é a crueldade.

Os colegas da Psicologia Animal que me digam se há outros animaisnão humanos que cul vam a crueldade tanto quanto a nossa raça humana.

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Psicologia social e os atuais desafos é co-polí cos no Brasil

Crueldade, explico, compreendida não como agressão ins n vaou decorrente da necessidade de sa sfazer alguma necessidade, como afome, mas entendida como uma tendência comportamental a fazer ou-trem sofrer, pelo hediondo prazer que isso traz à pessoa cruel.

Com tal a rmação estou sendo moralista, atribuindo um valor a essaa tude, que se expressa em comportamentos corriqueiros , como apanharuma or (pensa-se no impacto disso para a planta?), interagir com umanimal domés co, ou em atos desprezíveis, como agressões, torturas eassassinatos.

Suponho que esta sociedade tenha selecionado, ao longo dos milê-nios de uma pedagogia da violência, os indivíduos mais perversos entre osgrupos opressores, os mais resilientes entre os grupos oprimidos, em umprocesso de modi cação da gené ca pela cultural (tal como fazemos naagricultura e com os animais que escravizamos (Singer, 2004) , para nossoentretenimento e sa sfação de afetos, como os cães e gatos, ou para anossa alimentação, como os bovinos e as aves — estou aqui escrevendocomo brasileira, em outras culturas há outras formas u litaristas de veresses animais, e outros, como alimento ou passatempo), que eu chamode seleção ar cial .

Ainda somos tribais. Só que, ao invés de vivermos na aldeia pré--histórica de no máximo 30 pessoas (que temiam os moradores da aldeialogo ali no outro morro, por não saber se poderiam escravizá-los, matá-losou mesmo comê-los — eis a fonte dos estereó pos), hoje vivenciamos aaldeia global, em maiores e menores proporções. Porém , os estereó posse modi caram pouco nos úl mos séculos.

Como nossa evolução nos trouxe a tudo isto que aqui está?

É inú l hoje procurarmos os responsáveis por tanta subalterni-zação e aniquilação, são fantasmas em nossas mentes. Fantasmas does gma, que se confundem com aquilo que consideramos mais nosso,mais único de nossas iden dades pessoais, que, no entanto, é par lha-do socialmente.

Engana-se quem u liza o conceito de grupo ou cole vo como a merasoma de indivíduos. Ora, quem de nós não vive a papear consigo mesmo?Somos muitas vozes na mesma cachola. Não se engane: o cole vo, antes

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Jesus, J. G. (2015). Lições para uma psicologia das oprimidas

de estar ao nosso redor, habita em cada um de nós, por pré-de nição he-reditária e por aprendizado social.

As Psicologias podem se nutrir de muitas hipóteses e teorias a res-

peito de como chegamos a ser quem somos, como humanidade, todavia,sua mais relevante contribuição será o desenvolvimento de uma tecno-logia humana que nos permita evoluir em outro sen do, ins gando rela-ções interpessoais e intergrupais menos violentas e mais isonômicas; quenos es mulem a conviver saudavelmente entre nós, humanos, e com osdemais animais, com seus graus de consciência e senciência tão diversosdos nossos.

Sermos psicólogas/os

Uma das coisas que aprendemos, para nos tornarmos pro ssionaisda Psicologia, é a iden car padrões. Observamos os comportamentosdas pessoas e reconhecemos o quanto os indivíduos agem de forma se-melhante. Não importa nossa especialização, se Psicologia clínica, escolar,organizacional, do trabalho, ambiental, dos processos básicos, social etcetera ; mudam apenas os termos e as teorias para iden car e lidar comesses padrões.

É algo que, de uma forma ou de outra, em geral involuntariamente,também acompanha nossa vida pessoal. Mais do que constatar como issopode ser empoderador, sinto um quê, uma ponta de tristeza, ao ver pa-drões nos quais as pessoas se declaram únicas e diferentes.

O pior, nessas situações, é mostrar ao sujeito, secamente, que elenão está sendo original, autên co, mas, isso sim, que está reproduzindoformas de pensar e fazer deveras naturalizadas — entenda, quando u li-

zo essa palavra, eu me re ro à crença de que algo é da maneira como épor uma essência imutável, e não por acasos e intercorrências históricase culturais.

Faz-se necessário o trabalho de “comer pelas beiradas”, o cuidadocom o afeto do outro, tanto quanto o respeito para com sua capacidadede conceber e elaborar racionalmente o que se lhe apresenta... E acimade tudo, reconhecer que nossa percepção, como pro ssionais, pode es-

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Psicologia social e os atuais desafos é co-polí cos no Brasil

tar completamente enviesada pelas limitações de nossa tecnologia cor-rente ou pelo senso comum.

Compaixão talvez seja a palavra certa para o sen mento que deve

nortear nosso procedimento, apesar de tão menosprezada. E igualmenteum quinho de humildade.

Escutar a vamente; comunicar-se asser vamente, contudo semagressividade, e atuar no afã de promover o protagonismo: eis o desa onuclear, na minha visão, para quem pretende ser psicóloga(o).

Nosso saber-fazer, nesta ignota Psicologia das Oprimidas, precisacaminhar do es gma à vida que se ambiciona ser plena. Entre o idea-lismo feérico de Dom Quixote e o realismo pedregoso de Sancho Pança.

Tomando-se referenciais brasileiros, embrenhando-se e lidandocom o meio termo que predomina na psiquê nacional, pouco abertaa mudanças imediatas, porém impaciente para com as de longo prazo(como nos ensinou Câmara Cascudo, somos um povo do meio-termo, aténa hora de nos alimentarmos, que usa a farinha para secar o alimentoúmido, e a água para molhar o alimento seco (Cascudo, 1963/2011).

As psicólogas e os psicólogos deveriam aprender que é imprescin-dível pensar no contexto, no polí co que deriva do social e se imiscui nopsíquico: generalizações geralmente não funcionam adequadamente emsituações par culares, o que responde às demandas das nações centraispara o capitalismo pós-industriais, costumam não atender à nossa reali-dade altamente segregada e desigual, na qual não existe uma sociedadecivil, como ensinado por Milton Santos (2000), e cuja elite é formada poruma autocracia burguesa, conforme descrito por Florestan Fernandes(1975).

Tola seria se pretendesse esgotar o assunto. Pelo contrário, espero

ter provido os estudiosos e os observadores com um aterro que sustentesuas edi cações.

Alea jacta est 1. Não preciso falar que sou revolução, porque já sourevolução. Falo de revolução para que outros também sejam. A Psicologia

1 “O dado está lançado”, comumente conhecida como “a sorte está lançada”, máxima la naatribuída a Júlio Cesar, para se referir ao que não tem mais retorno, não importa o queaconteça.

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Jesus, J. G. (2015). Lições para uma psicologia das oprimidas

pode ser socialmente ú l (deveria ser, por vezes é), basta os psicólogos seengajarem, visceralmente, nesse intento. A sociedade que lide com isso.

Eu já escrevi o que me deu na veneta. Mas e você, que final

você quer?

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Peres, W. S. (2015). Dissidências sexo-erótcas-gendradas: da pornografa à pós-pornografa...

Dissidências sexo-eró cas-gendradas: da pornogra aà pós-pornogra a como arte de gozar gostoso

Wiliam Siqueira Peres

Este texto se propõe a problema zar as prá cas eró cas sexuais con-temporâneas e sua composição com as intensidades dos modos de gozar,situados inicialmente dentro de um viés higienista, burguês, cristão e pro-cria vo, e a emergência de novas prá cas afe vas, eró cas sexuais que

intensi cam os gozos em perspec vas ampliadas, nômades e marginais.Trata-se de dissidências de sexo/gênero/desejo/prá cas sexuais que

escapam das armadilhas norma vas do sexo meramente procria vo parainventar novas corporalidades que se jogam no universo dos prazeres queousam dizer seus nomes e atualizar desejos resistentes ao modelo hege-mônico de como se deve fazer, sen r, pensar e gozar fora dos reducionis-mos higienistas.

De modo esclarecedor, apresenta teorizações que fundamentam oescopo conceitual e metodológico de pesquisa em andamento in tulada“Para Além do sexo domés co-procria vo: pós-pornogra a e subje va-ções eró co-sexuais desejantes na era farmacopornográ ca.

As sexualidades e suas prá cas com nalidades meramente pro-cria vas, restritas ao casal heterossexual, branco, classe média, casado,monogâmico, cristão, já não são mais aquelas; cada vez mais somos sur-preendidos com discursos, cenas e gurações que expressam diferentesdiscursos, sensações e prá cas sexuais nas mais diversas esferas da exis-

tência, sejam nos circuitos de amizades, nas cenas de novelas e lmes dasessão da tarde televisiva, nos espaços de putarias, no cinema e revistaspornográ cas, sejam nos relatos de pacientes que frequentam os consul-tórios de psicólogas e psicanalistas (Navarro, 2012).

A mera proposta de prá cas sexuais ensinadas pelas famílias, igre- jas, escolas e certas psicologias regulatórias e adaptacionistas, inclusivemediadas pelo próprio Estado neoliberal, enviesadas pela moral burguesa

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Psicologia social e os atuais desafos é co-polí cos no Brasil

e higienismos e assepsias sobre os corpos e seus prazeres, caem nas risa-das das próprias crianças e adolescentes que têm acesso às redes infor-macionais escritas e visuais que mostram outras possibilidades de amplia-ção de suas fantasias e prá cas para a obtenção de prazeres e gozadascria vas e singulares.

A in uência dos essencialismos biológicos, psicológicos atravessadospela moral cristã par cipa dos processos de subje vação norma zadoresque produzem indivíduos reduzidos a sistemas de pensamentos binários,sedentários e universalizantes, produzidos e produtores de discursos quereduzem as crenças das pessoas para que acreditem na existência de umúnico corpo, um único sexo, um único gênero, conforme denuncia BeatrizPreciado (2008), e que complementamos com a redução da crença em ummodelo único de prá ca sexual e um único aparelho mental.

Par mos da ideia, junto com Gilles Deleuze e Félix Gua ari (1985),de que o ser humano não se reduz a uma unidade, totalizado, mas queele é múl plo, diverso e polifônico, que se compõe pela mul plicidadede linhas que o tecem e o cons tuem como sujeito em um determinadotempo sócio-histórico, pelos efeitos de discursos norma vos que apre-sentam regimes de verdades e de aprisionamentos iden tários (Foucault,1988), bem como, por discursos de resistências e de composição com

devires outros que facilitam a emergência de es lís cas da existência, ouseja, de expressões de singularidades que pedem passagem e reivindi-cam direitos de exis r, estar e circular no mundo.

Enquanto mul plicidade, os sujeitos se apresentam como territóriosexistenciais compostos por lineamentos que colocam em interseccionali-dade diversos elementos, tais como marcadores de classe, sexos, raça/cor,etnias, gêneros, orientações sexuais, gerações, es los de vida, mas tam-bém dos modos como somos autorizados a gozar e levados a perceber,

sen r, pensar, desejar e agir no e sobre o mundo.Essas demarcações podem ser tratadas como modos discursivos que

se inscrevem sobre os corpos, produzem sensibilidades e modos desejan-tes, problema zados por Judith Butler (2003) como atos performa vosde discursos que se materializam sobre os corpos e que de nem os luga-res dos sujeitos no mundo, compondo iden dades sexuais e de gêneros,dando manutenção para o sistema sexo/gênero/desejo/prá cas sexuais

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Peres, W. S. (2015). Dissidências sexo-erótcas-gendradas: da pornografa à pós-pornografa...

que regulam e disciplinam os corpos reduzindo-os à heterossexualidadeobrigatória (Rich, 2001), a função reprodu va e de manutenção da famíliapatriarcal, higienista, burguesa e cristã.

Os discursos norma vos, em uma perspec va da cartogra a, podemser associados a linhas de subje vação e, enquanto tal, nos permitem fa-lar em modos de subje vação individualizadora, norma zada produtorade indivíduos em série, de forma fabril, restritos a papéis e funções regu-ladas e disciplinadas pelo Estado neoliberal e moral fundamentalista, eque, assessoradas pelas ins tuições médicas, eclesiás cas, jurídicas, psi-cológicas, dão manutenção para o exercício de biopolí cas de indivíduoscon dos, culposos, submissos, úteis e dóceis para que não ques onemos regimes de verdades impostos como normas absolutas dos modos deexis r (Gua ari & Rolnik, 1986).

Concomitante a tais linhas de subje vação norma zadoras, depara-mo-nos com outros lineamentos que se expressam como resistências àslinhas de subje vação norma zadoras e que criam/inventam/expressamprocessos de singularização, logo, de subje vação de sujeitos singularesnos modos de ser, estar e circular no mundo que se expressam enquantovidas em diferenças transbordantes que gozam em abundância.

Quando nos atemos especi camente às linhas sedentárias de sexu-alidades e de gêneros, podemos dizer que, como efeito das linhas de nor-ma zação dos sujeitos, seus desejos e seus prazeres estarão restritos aomodelo procria vo das prá cas sexuais, programados para a reprodução,com pouca valorização dos prazeres que excedem o modelo heterossexual(inclusive por heterossexuais) de pra car sexo de modo higienista e com

nalidade de descarga e relaxamento.

Em uma perspec va da subje vação singularizadora de linhas nô-mades, encontramos a emergência de sujeitos dissidentes ao sistema

sexo/gênero/desejo, que buscam diversi car as formas de prazer sexual ecriar disposi vos de resistência e de busca de abertura para novas experi-ências, novas prá cas, novos prazeres, novas sensibilidades, novas signi -cações, novos modos intensivos de gozar nas prá cas sexuais.

Como guração dessas proposições nas quais o eró co e sexual semisturam com o polí co e emancipatório, em uma perspec va queering,podemos problema zar o movimento nacional de traves s e transexuais

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no Brasil que vem conquistando direitos sociais, polí cos e culturais quenão só expandem as possibilidades de produção de prazeres dissidentes,que se distanciam das armadilhas da heteronorma vidade higienista, comoinauguram novas es lís cas dos modos de gozar e viver. (Peres, 2015)

Essas possibilidades de variação dos desejos norma zados e dasdisponibilidades para experimentar diferentes formas de prazer sexualse dão em decorrência daquilo que Beatriz Preciado (2011) problema zacomo sendo poten a gaudendis, isto é, os modos como a força orgás case dirige em direção de seus objetos eró cos iden cados.

De acordo com Preciado (2008), uma cartogra a do presente evi-dencia um mapa a respeito das transformações que se seguiram no úl -

mo século e que se a rmaram como o grande negócio do novo milênio:“La ges ón polí ca y técnica del cuerpo, del sexo y de la sexualidad”; isto,por sua vez, nos permite a realização de “un analisis sexopolí co de laeconomia mundial” (Preciado, 2008, p. 26), movida pelas demandas daglobalização e da aceleração midiá ca informacional e tecnológicas.

As análises das transformações ocorridas nas úl mas décadas cla-ri cam a respeito do aumento da visibilidade das mulheres nos espaçospúblicos, a inserção ampliada no mercado de trabalho e a emergência denovos lugares polí cos que até então se restringiam ao universo mascu-lino (Braido , 2000); da mesma forma, podemos perceber a emergênciade novas formas polí cas de visibilidade das homossexualidades (casa-mento igualitário, adoção de crianças por pares homossexuais, leis depunição à homofobia, lesbofobia e transfobia) (Teixeira, Peres, Rondini, &Souza, 2013), assim como de garan as de direitos à iden dade/expres-são de gêneros advindos das conquistas sociais e polí cas do movimentosocial, polí co e emancipatório de traves s e homens trans e mulherestransexuais nas mais diversas esferas da vida.

Paralelo às conquistas polí cas e emancipatórias de grupos e pes-soas dissidentes do patriarcado falocêntrico e da heteronorma vidadecompulsória, deparamo-nos com as novas tecnologias a liadas à bio-medicina que trazem no cias do surgimento de drogas potentes e deesteroides sinté cos que contribuem para a produção de corpos mo-di cados pelo poder farmacológico e que se aliam à difusão global deimagens pornográ cas em escala acelerada pela produção de cenas e

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Peres, W. S. (2015). Dissidências sexo-erótcas-gendradas: da pornografa à pós-pornografa...

sensações trazidas pelas salas de bate papo e demais páginas advindasda web, lmes e revistas pornográ cas de fácil acessibilidade, espaçosde lazer e promoção de paqueras, pegação e orgasmos em suas maisvariadas e diversas possibilidades de prazeres, quer norma vos, querdissidentes.

Para Beatriz Preciado (2008), essas referências aos (psico) fármacose à produção de imagens eró cas e sexuais contribuem para o apareci-mento de regimes pós-industriais, globais e midiá cos gerados desde osurgimento da pílula an concepcional, das revistas eró cas-pornográ cascomo a Playboy, entre outras, anunciando a emergência do que a autoranomeia como sendo uma sociedade farmacopornográ ca.

Preciado (2008) nos alerta que durante o século XX se deu a mate-rialização dos processos farmacopornográ cos, e, neste sen do, a Psico-logia, a Sexologia, a Medicina e, em especial, a Endocrinologia, no augede seu poder de autoridade no assunto, têm proposto conceitos de psi-quismo, de libido, de consciência, de feminilidade e masculinidade, deheterossexualidade e homossexualidade como relações tangíveis, comosubstâncias químicas e moléculas comercializáveis, em corpos e bió poshumanos, bens administráveis pelos laboratórios de empresas mul na-cionais farmacológicas (Preciado, 2008).

Seguindo a perspec va da autora, podemos perceber os avançosdas tecno-ciências que transformam nossa depressão em Prozac, nossamasculinidade em testosterona, nossa ereção em Viagra, nossa fer lida-de/esterilidade em pílula an concepcional, de modo que ca di cil saberquem vem antes, se a depressão ou o Prozac, se o Viagra ou a ereção, sea masculinidade ou a testosterona, en m, tais marcadores seriam o autofeedback do próprio poder farmacopornográ co. De acordo com BeatrizPreciado:

La sociedad contemporânea está habitada por subje vidades toxicoporno-grá cas: subje vidades que se de nen por la substancia (o substancias) quedomina sus metabolismos, por las prótesis ciberné cas a través de las quevuelven agentes, por los pos de deseos farmacopornográ co que orientansus acciones. Así, hablaremos de sujetos Prozac, sujetos canábis, sujetoscocaína, sujetos alcohol, sujetos ritalina, sujetos cor sona, sujetos silicone,sujetos heterovaginales, sujetos doblepenetración, sujetos viagra, etc. (Pre-ciado, 2008, p. 33)

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Essas asser vas nos permitem problema zar novos processos desubje vação em curso e que se atualizam através das novas demandase visibilidades humanas em consonância com as biotecnologias e a in-dustrialização farmacológica que se mostram presentes no co diano daspessoas, o que, por sua vez, coloca em tela o poder das indústrias farma-cêu cas enquanto liderança do capitalismo neoliberal quer seja dentro daformatação legal, quer advinda do mercado negro das drogas sinté case/ou ilegais do trá co de drogas. De modo complementar se somam asdiversas formas de produção de imagens e sensações decorrentes da in-dústria pornográ ca com as ofertas grá cas e videográ cas disponíveisem livrarias, sites, cines e cabines em sex-shoping e bancas de revistas.

Nesse sen do, Preciado (2008) nos adverte que:

Las verdadeiras matérias primas del proceso produc vo actual son la ex-citación, la erección, la eyacula ón, el placer y el sen mento de autocom-placencia y del control omnipotente. El verdadeiro motor del capitalismoactual es el control farmacopornográ co de la subje vidad , cuyo produtosson la serotonina, la testosterona, los an ácidos, la cor sona, los an bió-

cos, el estradiol, el alcohol y el tabaco, la mor na, la insulina, la cocaína,el citrato de sideno l (Viagra) y todo aquel complejo material-virtual quepuede ayudar a la producción de estados mentales y psicossomá cos deexcitación, relajación y descarga, de omnipotência y de total control. Aquí,incluso el dinero se vuelve un signi cante abstrato psicotrópico. El cuerpoadicto y sexual, el sexo y todo sus derivados semió cos-técnicos son hoy elprincipal recurso del capitalismo pos ordista. (Preciado, 2008, p. 37)

Com essas demarcações, podemos dizer que a produção farmaco-pornográ ca par cipa de um novo período da economia polí ca mundialcontemporânea, aliando-se à emergência de novos processos desejantesque con guram o surgimento dos novos sujeitos apontados em consequ-ência dos efeitos dos psico-fármacos e imagens eró cas sexuais disponí-veis para o consumo neoliberal, indo desde a biotecnologia agrária até aindústria virtual de comunicação, espaços marginais dos desejos, escalasde desigualdades e de norma zação.

Nas análises realizadas por Preciado (2008), ca claro como a indús-tria farmacopornista e de edição grá ca par cipa dos modos de produçãoe consumo das pessoas, evidenciando processos de subje vação que mo-

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Peres, W. S. (2015). Dissidências sexo-erótcas-gendradas: da pornografa à pós-pornografa...

dula as prá cas sexuais e de expressão de gêneros, con gurando modosespecí cos de prazeres e de intensidades de tempo masturbatório da vidaque se centra em imagens norma vas alucinatórias dos corpos, guraçõesesté cas e excitações; tais determinações norma vas masturbatórias (ospunheteiros/siririqueiras ainda se mantêm na invisibilidade) produzemdisposi vos de autovigilância e difusão ultrarrápida de informações par-ciais sobre si, o que gera modos con nuos e sem repouso de desejar, re-sis r, consumir, destruir, evoluir e autoex nguir sensações, pensamentos,desejos e prá cas que escapem dos padrões norma vos autorizados eesperados das pessoas em suas relações amorosas, afe vas, eró cas, se-xuais e orgás cas.

Toda essa demarcação advinda da farmacopornogra a agiria sobre

os corpos em geral, e, neste sen do, seu foco principal se dá através da-quilo que a autora denomina “fuerza orgásmica o poten a gaudendi”, quediz respeito à intensidade de excitação total de um corpo, seja atual, sejavirtual. Segundo Beatriz Preciado (2008):

Esta poten a es uma capacidad indeterminada, no ene género, no es nifeminina ni masculina, ni humana ni animal, ni animada ni inanimada, no sidirije primariamente a lo feminino ni a lo masculino, no conoce la diferenciaentre heterosexualidad y homosexualidad, no diferencia entre el objeto y elsujeto, no sabe tanpoco la diferencia entre ser excitado, excitar o excitarse--con. No privilegia un órgano sobre outro: el pene no posee más fuerzaorgásmica que la vagina, el ojo el dedo de un pie. La fuerza orgásmica nobusca su resolución imediata, sino que aspira a extenderse en el espacio yen el tempo, a todo y a todos, en todo lugar y en todo momento. Es fuerzaque transforma el mundo en placer-con. La fuerza orgásmica reúne al mis-mo tempo todas las fuerzas somá cas y psíquicas, pone en juego todos losrecursos bioquímicos y todas las estruturas del alma. (Preciado, 2008, p. 38)

Através dessas demarcações, podemos perceber que as formas de

prazer catalogadas e reduzidas ao padrão procria vo limpinho moral dei-xam evidente que as nominações e sensações atribuídas a esses mesmosnomes que de nem e dão sen do aos nossos genitais e suas prá cas eprazeres, se pensados na perspec va da poten a gaudendi, perdem seussen dos e signi cados, pois a reprodução se daria por mero acaso, ou,como diria Glória Careaga (2013), como acidente de percurso: as sexuali-dades e suas prá cas teriam como obje vos principais os prazeres gera-

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dos pelas prá cas sexuais ejaculatórias e orgásmicas ou não, sejam elassolitárias, a dois ou cole vas, com humanos, com animais, com vegetais eminerais e de modo secundário, a procriação propriamente dita.

Tais problema zações abrem precedentes para inves gações acercadas prá cas e dos prazeres que escapam das determinações dos mode-los de prá cas sexuais restritos à lógica da procriação heterocentrada, edar vozes e visibilidades para outras formas de prazeres inventadas pelaspessoas, que, na maioria das vezes, são catalogadas como eró cas, por-nográ cas e, mais contemporaneamente, de pornoterrorismo e/ou pós--pornogra a.

O eró co, o pornográ co e a pós-pornogra a

Desde a publicação da obra clássica: O ero smo de George Bataille(1987), o autor abre discussões a respeito do conceito de ero smo e nosclari ca que:

Do ero smo é possível dizer que ele é a aprovação da vida até na morte.Para falar a verdade, isto não é uma de nição, mas eu penso que esta fór-mula dá o sen do do ero smo melhor que uma outra. Se se tratasse dede nição precisa, seria necessário par r certamente da a vidade sexual de

reprodução da qual o ero smo é uma forma par cular. A a vidade sexualde reprodução é comum aos animais sexuados e aos homens, mas, aparen-temente, só os homens zeram de sua a vidade sexual uma a vidade eró -ca, e o que diferencia o ero smo da a vidade sexual simples é uma procurapsicológica independente do m natural encontrado na reprodução e napreocupação das crianças. (Bataille, 1987, p. 10)

Seguindo as problema zações iniciais feitas por George Bataille, ar-riscamos pensar o ero smo como uma dimensão intrínseca aos processos

de subje vação humana, de sua conexão com a poten a gaudendi proble-ma zada por Beatriz Preciado que concebe as sexualidades, suas prá cas,prazeres e modos de gozar antes mesmo de serem capturadas pelo siste-ma sexo/gênero/desejo, perpetuadores dos binarismos homem/mulher,macho/fêmea, heterossexual/homossexual, a vo/passivo, limpo/sujo.

O ero smo, na leitura de George Bataille, não é apresentado comooposição à pornogra a, mas se a rma como expressão do psiquismo hu-

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Peres, W. S. (2015). Dissidências sexo-erótcas-gendradas: da pornografa à pós-pornografa...

mano e sua relação com a própria sexualidade. A sexualidade, enquantodimensão eró ca e de livre inves mento da poten a gaudendi, seria ex-pressão da vontade e necessidade humana de ampliar suas capacidadesdesejantes e de variação de prazeres e dos modos “gozantes”, logo, autô-nomas e independentes em suas conexões corporais, sensoriais, afe vas,emocionais, sexuais e esté cas.

Com a emergência de disposi vos de controle e de regulação doscorpos analisados por Michel Foucault (1988), as sexualidades e seus pra-zeres vão sendo restritos aos padrões heteronorma vos, falocêntricose procria vos, roubando a liberdade de expressão e de gozos intensos,dando passagem somente para a repe ção dos modelos ascé cos e hi-gienistas de como pra car o sexo, favorecendo a emergência daquilo quepodemos denominar de obsceno, de obscenidade, o que, por sua vez, seamplia para a de nição do que seria da ordem pornográ ca. Tudo o queescapa da cena autorizada para o sexo procria vo, que se expande outransborda em excessos do ritual norma vo reprodu vo, inicialmenteserá catalogado como obsceno, ou seja, (obs) cena, fora da cena, reco-nhecidos como transgressores, perigosos e passíveis de exclusão.

Porém, nas úl mas décadas, podemos notar que o ero smo temsaído da marginalidade e cada vez mais vem se integrando ao cenário

contemporâneo ocidental, perdendo a conotação nega va de perigo eindecência.

Jorge Leite Júnior (2006) faz um recorrido interessante a respeito darelação entre o ero smo e a pornogra a se apropriando de uma proposi-ção feita por Alain Robbe-Grillet (citado por Leite, 2006, p. 33), que a rmaque “a pornogra a é o ero smo dos outros”. Ao que pesa o moralismocristão fundamentalista e os higienismos médicos e psicológicos essen-cialistas, a tendência dos discursos enquanto repe ção e manutenção do

sexo limpo e regrado para a procriação aponta os outros como eró cos/pornográ cos e se xa nos lugares da normalidade, enquanto corpo sau-dável e descente, intenso de sen mentos e por isso eró co, contrapondo--se à sexualidade do outro, que é promíscua, perver da, animalesca, vul-gar, grotesca, logo, pornográ ca.

Pode-se dizer que o ero smo e a pornogra a compõem os dois la-dos da mesma moeda, em que a pornogra a será sempre situada no lugar

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maldito a ser evitado, enquanto o ero smo será legi mado como aceitá-vel socialmente e administrável dentro da lógica norma va. Essas contra-posições entre o que seria eró co e o que seria pornográ co levou Leite(2006) a fazer a seguinte problema zação:

A imagem de um pênis penetrando uma vagina pode ser então consideradade dois modos: se for es lizada, u lizando-se das mais variadas técnicasditas ar s cas para amenizar o impacto de tal cena, é considerada eró ca,pois, por envolver uma “re exão” e uma “técnica” sobre a obra, tende maispara o campo da “arte”. Por outro lado, se esta mesma gura for apresen-tada com a intensão de ressaltar uma certa crueza, sacri cando uma idea-lizada re exão em nome de uma demonstração, é da como pornográ ca.(Leite, 2006, p. 33)

Tais proposições denunciam a respeito da hipocrisia reinante nosdiscursos sobre as sexualidades, suas prá cas e prazeres, pois podemosconstatar que a maioria das pessoas, senão em sua totalidade, em algummomento de suas vidas transitam do ero smo para a pornogra a, seapropriam e usam das cenas e diálogos assim reconhecidos como por-nográ cos em bene cios próprios, sejam de modo solitário, a dois, emgrupos, nos espaços públicos ou in mistas, etc.

Mas a pornogra a não seria tão comprometedora à ordem norma -va se percebermos, junto com Jorge Leite (2006, p. 41), que ela “visa, emprimeiro lugar, à introdução do prazer obsceno no campo do “correto”, da“ordem”, “saúde” e “beleza”, para desta maneira transgredi-lo”. A proi-bição, diria Bataille (1987, p. 94), sempre vem associada à dimensão doprazer, “e nunca o prazer surge sem o sen mento da proibição”.

Se analisarmos os roteiros dos lmes pornôs, quando têm, a grandemaioria é voltada para os/as heterossexuais, com sequências repe vase exaus vas de prá cas sexuais clichés que beiram ao ero smo, se consi-

derarmos restrições ao sexo penetra vo genital; qualquer variação que seproponha a incluir sexo oral, anal, uso de brinquedos eró cos seria catalo-gada como lme hard core, cando os mais “leves” – entenda heterosse-xual higienista – como so core (Leite, 2006).

De acordo com Roberto Echavarren (2009), o termo pornogra a temsua origem nos vocábulos gregos porné e grafos, que signi ca escriturasde puta.

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A pornogra a, ou os textos pornográ cos, tem sua origem reco-nhecida por estudiosos do tema, tais como Lynn Hunt (1999), RobertoEchavarren, Amir Hamed, e Ercole Lissardi (2009). Jorge Leite (2006), queaponta, como primeiro escrito reconhecido como pornográ co na era mo-derna, o livro do escritor inglês John Cleland de 1748, in tulado FannyHill: memórias de uma mulher de prazer.

Em pesquisa realizada junto ao Wikipédia acerca do lme documen-tário que trata da história de Fanny Hill, somos informados se tratar doprimeiro romance eró co moderno, do como um dos grandes retratosda Europa do século XVIII. Em formato de cartas e narrado em primeirapessoa pela jovem Fanny Hill, o livro relata as aventuras de iniciação sexu-al de uma jovem – nem tão inocente assim – que, órfã aos quinze anos, vaipara Londres tentar a vida e acaba se tornando uma requisitada cortesã.

Antes da virgindade de Fanny ser posta à venda por uma cafe -na, a jovem se apaixona por outro jovem chamado Charles, com quemfoge. Começam a viver juntos, mas, inesperadamente, ele precisa deixara cidade e Fanny passa, então, de menina insegura a cortesã de muitosamantes. Nesse ponto, o romance se torna inovador, já que Fanny, alémde não mostrar arrependimento pelas suas ações, descreve com deta-lhes explícitos suas aventuras, conferindo à obra um caráter de elogio aoprazer sexual.

A publicação das tais cartas causa muita polêmica. Editado em doisvolumes – o primeiro, em novembro de 1748, e o outro, em fevereiro de1749 – Fanny Hill não agradou em nada à patrulha religiosa da época.Após o lançamento, Cleland, os editores e os impressores foram presos,acusados de obscenidade, e, posteriormente, em juramento, o escritorteve que desis r da distribuição da obra, o que, por sua vez, con nuousendo de acesso somente como edições piratas que, mesmo assim, aju-

daram a divulgar os escritos.De modo paralelo, Roberto Echavarren (2009) informa que, em

1881, surge outra obra que marcaria a pornogra a voltada para o sexo en-tre homens, através da publicação do livro Sins of the Ci es on the plains, que tratava de relatos autobiográ cos considerados como “la primera no-vela inglesa que trató de las relaciones homoeró cas” (Echavarren, 2009,p. 31).

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A par r de tais referências, muitas outras obras foram surgindo emoutros países, como a França e a Alemanha, todavia sempre sujeitas àsperseguições da igreja, por reis e outras autoridades do poder que, orien-tados por moralidades e higienismos, perseguiam editores e consumido-res das obras, chegando, muitas vezes, a prisões e punições em níveis detrabalhos forçados, agelação de corpos e, em úl ma instância, enforca-mentos e outros modos de aniquilamento e pena de morte.

Como enfa za Echavarren (2009, p. 45), “el pornô se volvió un ins-trumento polí co de los derechos humanos para explorar el cuerpo emconpañia, para aprender el placer”. A emergência dessas primeiras pu-blicações na Inglaterra permi u ao referido autor analisar, sob a forte in-

uência da moral vitoriana, a disseminação do controle dos corpos paraoutras localidades em que a Inglaterra nha domínio em colônias queeram administradas pela coroa inglesa.

Nesta perspec va, Roberto Echavarren denuncia que a própria dis-seminação da homofobia em diversas localidades do mundo teria comopossíveis disparadores os valores conservadores impostos pela coloniza-ção inglesa, conforme nos esclarece:

El colonialismo britânico criminalizó la sodomia en Iraq después de laprimera guerra mundial. El edicto fue parte de un vasto cuerpo de leyescoloniales creado por los administradores britânicos sobre todo en mea-dos del siglo XIX, al que los ingleses llamaron “ el código penal hindu”. Elcódigo no era autóctono de la India. Fue el sistema legal que los coloni-zadores britânicos impusieron al país en 1860. El ar culo 377 de esse có-digo colonial hizo del “comercio carnal contra natura” un delito cas gadocon hasta veinte años de exilio o hasta diez años de prisión. (Echavarren,2009, p. 50)

Essa prá ca de contenção britânica se estendeu por diversos outrospaíses administrados pela Inglaterra, inclusive no Brasil, contudo,

en Gran Bretaña la sodomia entre adultos consin entes fue discriminaliza-da em 1967, la ley de 1860 del “Código Penal Hindú” fue levantada por laCorte Suprema de Nueva Delhi recién el 2 de julio de 2009, a rmando quelas relaciones homosexuales entre adultos ya no pueden ser consideradasun delito en la India, Esta ley colonial sujetó al subcon nente a una prohi-bición que duró 150 años. (Echavarren, 2009, pp. 50-51)

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Peres, W. S. (2015). Dissidências sexo-erótcas-gendradas: da pornografa à pós-pornografa...

Tais proibições e perseguições que se seguiram sobre as homosse-xualidades eram extensivas para toda e qualquer prá ca entre homense mulheres que alteravam o intercurso sexual procria vo, sendo aindahoje prevalência em muitos países gerenciados pelo fundamentalismo re-ligioso. Dentro dessas perseguições sobre as prá cas sexuais dissidentes,incluem-se toda a produção de imagens consideradas pornográ cas e emdesalinho com a moral dos bons costumes e suas expressões denomina-das indecentes e impuras.

Em tempos atuais, o pornô ganha status de entretenimento, comonos esclarece Jorge Leite (2006), estabelecendo uma imensa indústria dapornogra a que coloca no mercado da carne que goza a emergência desex-shoppings, revistas e vídeos eró cos disponíveis em bancas de revis-

tas, seções especí cas de vídeo locadoras para lmes pornográ cos, as-sim como, de web sites voltados para a troca de parceiras e de promoçãode encontros sexuais entre as mais variadas formas de se fazer sexo, sejaela solitária, a dois, em grupos ou outros cole vos, variando desde o sexoconvencional, chamado de “papai e mamãe”, até os modos de sexos en-tre homens, entre mulheres, com traves s, homens trans e transexuais,de prá cas sadomasoquistas, de realização de fantasias e fe ches comanimais, vegetais, brinquedos eró cos e outras formas em que suportar anossa imaginação.

Embora possamos encontrar as mais diversas formas de variaçãode produção de prazeres e modos de gozar, em sua maioria a produçãopornográ ca ainda se situa em uma perspec va domés ca e higienista,ou seja, há uma tendência de manutenção ao sexo do como “natural”,“limpo”, “saudável”, de reprodução de modelos restritos a casais heteros-sexuais, sejam casados ou não.

Em contraposição à indústria do pornô domés co e de restrição àsprá cas associadas às escrituras sobre putas, a pornogra a passa a:

ser pensada fundamentalmente enquanto fenômeno de massa e portantoem função de uma mercan lização da sexualidade voltada para a maximiza-ção do lucro, por outro lado, quando pensada especi camente em relaçãoàs salas de projeção nas quais é veiculada, a pornogra a é um dos elemen-tos cons tuidores de territorialidade, onde a possibilidade de gestar um“devir minoritário” está dada na socialidade que encaminha. (Vale, 2000,p. 27)

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Essas problema zações suscitam a emergência daquilo que NéstorPerlongher (2008) denominou de territorialidades marginais dos desejos , considerando sua con guração na uidez dos corpos que cria vamenterompem com os modelos norma vos dos modos de se fazer sexo e dãopassagens para que devires outros possam se efe var enquanto camposexistenciais. Tais devires permitem a ampliação das análises sobre as prá-

cas sexuais e seus orgasmos, assim como de outros modos de exis rno mundo que escapam do caldo norma vo e se a rma como potênciaeró ca posi va e afe va de vida que transborda e se compõe como di-versidade.

Será nesta perspec va que Perlongher (2008) problema zará aemergência dos devires minoritários, e aqui acrescentamos os “gozos mi-

noritários”, as expressões humanas que não coadunam com a repe çãodo mesmo norma vo, que ousam inventar novas possibilidades de rela-ções, de corporalidades, de putarias, de prazeres e modos de gozar. Quan-to a esses devires, Perlongher nos adverte:

No se trata de una passión morbosa por lo exó co, ni de algún liberalismoromân co o extremo sino, más bién, de pensar cuál es el interesse de essasminorias desde el punto de vista de la mutación de la existência cole va.Ellas estarian indicando, lanzando, experimentando modos alterna vos,dissidentes, contraculturales de subje vación. Su interés, residiria, enton-ces, en que abren “puntos de fuga” para la implosión de certo paradigmanorma vo de personalidade social ... ès preciso, entre tanto, no confundir“devenir” con “iden dad”. (Perlongher, 2008, pp. 67-68)

As contribuições de Nestor Perlongher abrem perspec vas parapensarmos as relações humanas e suas invenções para além da formata-ção iden tária, do crivo norma vo e reducionista dos modos de fazer sexoe de gozar, o que, por sua vez, propõe problema zarmos os processosde subje vação intercessora, isto é, que a subje vidade não se restringeao indivíduo acabado e totalizado, mas que a subje vidade se encontraem construção permanente, sempre revisando posições e ampliando re-ferências de forma genérica e, em especí co, sobre as possibilidades doscorpos afetarem e serem afetados, de produzirem gozos nos outros, nasoutras e consigo mesmas. Como diria Jávier Sáez e Sejo Carrascoza em suaobra Por el culo: polí cas anales (2011, p. 14): “abre tu culo y se abrirá sumente”.

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Quando problema zamos a subje vação, a produção da subje vi-dade, necessariamente, temos que dialogar com as sexualidades e suasinterfaces com classe, raça/cor, gêneros, orientações sexuais, gerações,prá cas sexuais que atuam como reducionismos atrelados às iden da-des xas e acabadas, mas também, com a produção e emergência dedevires outros que atestam a diversidade humana e sua potência cria-dora, a emergência das diferenças das diferenças. Essas subje vaçõestambém par cipam da produção de sistemas de pensamentos, de sen-sações, imagens e prazeres, expressões de gêneros, de desejos e prá -cas sexuais que ora regulam e controlam os corpos, suas prá cas sexuaise modos de gozar, ora favorecem a cria vidade e passagem para quenovas sensações, prazeres e gozos sejam possíveis.

Dentro dessa lógica a tendência da pornogra a em restringir suasprá cas e prazeres a modelos absolutos perde seu sen do e abre pre-cedentes para pensarmos outras formas de expressões pornográ cas eeró cas que não se alinham às tendências reducionistas de sexo binário,higienista, heteronorma vo, procria vo e falocêntrico.

Para contrapor a armadilha reducionista do pornô higienista e pro-cria vo, urgem, nos anos 80/90, algumas problema zações trazidas porAnne Sprinkle, citada por Echavarren (2009), atriz pornô e professorauniversitária, que cri cam a produção pornô norma zada e voltada parahomens, anunciando assim a emergência do que viria a ser denominadode pós-pornô. A atriz propõe uma pornotopia:

Tengo una visión del futuro en el cual toda la educación sexual necessáriaestará disponible para todos; no hablá necesidad de abortar ni transmi-sión de enfermidades por vía sexual... El sexo es una arma cura va po-derosa que será usada regularmente en hospitales y clinicas siquiátricas.Aprenderemos a usar el orgasmo para prevenir y curar enfermidades taly como los an gos tântricos y taoístas hicieran. Los trabajadores sexualesserán ampliamente respetados... y él deseo dejará de ser un crime. Loshombles serán capaces de tener múl plos orgasmos sin eyacular, por locual podrán mantener una erección cuanto quieran. Las mujeres eyacula-rán... A nadie le importará con gente de qué sexo éne sexo cada quién.En el futuro todos estarán tan sa sfechos sexualmente que será el nde la violência, la violación y la guerra. (Sprinkle citado por Echavarren,2009, p. 68)

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Com a pós-pornogra a se fortalecerá cada vez mais que o sexo épolí co e, portanto, passível de negociação de poder em que toda prá casexual e eró ca negociada e de comum acordo entre seus pares não deveser catalogada, classi cada ou tratada como patologia, perversão, desvioou qualquer outra categoria que possa ser inventada.

O pós-pornô analisado por Maria Llopis (2010) seria um disposi -vo pornográ co con gurado através de entrecruzamentos polí cos e decrí cas culturais ao mesmo tempo conectados e descon nuos, mesmoporque não se tratará de reducionismos iden tários, mas de expressãocole va em que as demandas do desejo de uma pessoa estão implicadasnas demandas cole vas de uma mul dão. A esse respeito, um grupo espa-nhol chamado Descontroladas de ne suas iden cações:

Somos brujas, putas, refugiadas, transexuales, gordas, freaks, mujeres,sodomitas, hadas, queers, sados, locas, inmigrantes, acas, las que abor-tan, desviadas, marujas, bolleras, sin-papeles, ateas, travolakas, guarras,niñas, pobres, maricas, sin techo, viejas, santas viciosas, drag, reinas yreyes, rebeldes, precárias, piratas, zorras, presas, rabiosas, seroposi -vas, amigas, bukkakes, madres... si tocan una, tocan todas. (Echavarren,2009, p. 71)

A proposta da pós-pornogra a se apresenta como novas formas deanálises que se distanciam dos estudos de caso e se cons tuem comoexpressões de cole vidades, se distanciam das marcas reducionistas doindivíduo e cri cam a pornogra a tradicional por venderem papéis de gê-neros, modos de pra car os sexos e estereó pos de corpos que somen-te rei cam e mantêm os padrões norma vos que se mostram caducosdiante das demandas contemporâneas dos modos de fazer sexo, gozar,ter prazer e ser feliz.

Dentro das análises das Psicologias biopolí cas e mantenedoras dos

modelos norma vos vigentes, que reduzem os comportamentos a clichêse estereó pos advindos do século XIX, surge a necessidade da revisão daformação e prá cas psicológicas em uma perspec va polí ca e emanci-patória que respeite e posi ve as diferenças, de modo a reconectar coma realidade que se compõe pela mul plicidade do afetos e gozos e pelasdiversidades eró cas sexuais humanas, mesmo porque não há nada maisa ser classi cado, binarizado, diagnos cado, tratado ou curado diante das

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Peres, W. S. (2015). Dissidências sexo-erótcas-gendradas: da pornografa à pós-pornografa...

expressões eró cas, sexuais e de gêneros, restando somente problema -zações que respeitem a vida como valor maior.

Para problema zar a emergência de novos sujeitos do desejo e suas

prá cas eró cas, sexuais e expressões de gêneros, propomos colocar emanálise, a par r dos processos de subje vação que se con guram em tem-pos atuais, as prá cas e expressões que escapam das imposições norma-

vas advindas do sexo domés co procria vo e da pornogra a higienistatradicional.

Conforme nos esclarece Richard Senne em texto construído jun-tamente com Michel Foucault (1988), não é possível problema zar a pro-dução da subje vidade sem levar em consideração as sexualidades, e,neste sen do, problema zar as diversas nuances que as prá cas eró cassexuais contribuem para a emergência dos sujeitos e das sujeitas na atu-alidade, quer seja reproduzindo os modelos xados pela pornogra a tra-dicional, quer seja pela emergência da pós-pornogra a e suas interfacescom as classes sociais, raças/cor, sexos, gêneros, es los de vida e esté cascorporais.

Que nenhuma expressão sexual e de gênero e seus modos de foderseja juiz e polícia de outras!

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Medrado, B. (2015). Compar lhando afetações: trilhas entre gurações e imaginações de...

Compar lhando afetações: trilhas entre gurações eimaginações de gênero e sexualidade 1

Benedito Medrado

Introdução

Este ensaio apresenta algumas ideias que visam menos à produção

e divulgação de conhecimentos e mais ao compar lhamento de afeta-ções; um exercício inspirado, sobretudo, em Jeanne Favret-Saada (1990),para quem a par cularidade de uma pesquisa está na capacidade do/apesquisador/a de ser afetado por outras experiências.

Assim, assumo aqui um compromisso com vocês de não apresen-tar conceitos ou a rmações acabadas, mas sim de compar lhar o desa ode pensar os limites e as possibilidades que produzimos (ou ampliamos)quando abordamos temas rela vos à sexualidade, a par r de uma pers-pec va feminista (portanto, crí ca) de gênero (portanto, relacional), ins-pirada em Donna Haraway (1995). Ou seja, quando apostamos na rupturaradical da dicotomia ciência versus polí ca.

Neste sen do, preciso iniciar retomando a crí ca aos usos e abusosdo conceito de gênero; uma crí ca ainda necessária, especialmente nosdias de hoje em que “ideologia de gênero” passou a ser incorporada emdiscursos fundamentalistas que visam retroceder conquistas.

Mesmo fora desse uso distorcido, infelizmente, ainda hoje, gênero

quase sempre é tomado como construção social sobre o sexo e as pesqui-sas sobre de/gênero tem produzido fotogra as óbvias da dicotomia e de-sigualdade entre homens e mulheres ou mesmo entre feminino e mascu-lino. Re ro-me aqui às variadas pesquisas que se dizem “de gênero”, porque estudam apenas mulheres ou porque estudam “ambos os sexos”, e1 Uma versão ampliada deste texto, em castelhano, foi apresentada durante o “V Coloquio

Internacional de Estudios sobre Varones y Masculinidades” e encaminhada para publicaçãono Dossiê Temá co da RevistaSexualidad , Salud y Sociedad .

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que resultam quase sempre em uma leitura catalográ ca sobre modos di-versos de converter diferenças em desigualdades. Ou seja, pesquisas que já iniciam com resultados muito previsíveis e, no nal, apenas a rmamque a subordinação do feminino é construída socialmente. 2

Ainda que essas denúncias sejam necessárias, elas não bastam, A -nal, a construção social sobre o sexo é mais precisamente a de nição depapéis sexuais, que antecedem o conceito de gênero e contra a qual osestudos de gênero se construíram. Esse é o argumento central da histo-riogra a sobre o conceito de gênero, produzida por Henrique Gomáriz, de1992, para pensar os homens e as masculinidades.

Essa leitura crí ca de gênero se ampliou, sobremaneira, ao longodas úl mas décadas, especialmente depois de Joan Sco (1999) quandode ne gênero como ins tucionalização primária do poder, Gayle Rubin(1986) e sua leitura sobre o sistema sexo-gênero e depois da ampla divul-gação das leituras de Thomas Laqueur (1990) sobre a construção social dosexo, só para citar alguns.

Essas produções (principalmente as de Rubin e Laqueur) nos ofere-ceram uma leitura sobre o sexo e a sexualidade também como construçõespolí cas, baseadas em (e produtoras de) uma crença numa diferenciaçãoproduzida (portanto, “não natural” como muitas vezes somos levados a

crer) entre o masculino e o feminino, entre homens e mulheres, entrehetero e homo, entre cis e trans. Esta diferenciação seguramente é estra-tégica, polí ca e economicamente ú l, mas não dá conta da complexa teiaque con guram nossos objetos de interesse cien co (Costa, 1995).

O que acontece é que, felizmente, como nos adverte Joan Sco(1999), nossas vidas são sempre muito mais cria vas do que o que nosoferecem nossas categorias de análise ou nossas categorias polí cas(especialmente as que se baseiam em iden dades). Além disso, quando

aproximamos das discussões sobre gênero aos debates sobre sexualida-de, a cria vidade da vida e as experiências são ainda mais amplas e asanálises se colocam ainda mais complexas, evidenciando os limites donosso verbo e dos nossos sen dos, pois ousamos tocar o intocável, falarsobre o silenciado, publicizar as experiências protegidas sob o manto dain midade, sob a égide do privado.2 Ian Hacking (1999) trás excelentes re exões sobre o uso desmedido e muitas vezes irre e do

sobre a expressão “construção social”.

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O que quero enfa zar aqui é que, por um lado, sensibilizar e falar de/com as pessoas, especialmente aquelas tradicionalmente silenciadas (ne-gros, pobres, mulheres, pessoas trans, etc) sobre temas rela vos à saúde,sexualidade e direitos é muito importante e necessário, ainda que negros,pobres, mulheres, pessoas trans etc. sejam, por principio, uma produçãodo ponto de vista de um “essencialismo estratégico” (Spivak, 1989).

Ou seja, são sujeitos fabricados, tendo em conta nossos interessesé co-polí cos de produzir transformações de gênero. Por outro lado,creio que é necessário entender essas categorias de sujeito sempre: (a)como categoria polí ca estratégica, não como condição natural de exis-tência (Laqueur, 1990; Costa, 1995); (b) como categorias situadas, portan-to, construções provisórias, precárias e parciais (Haraway, 1995); (c) comouma construção que se desenvolve em dimensões relacionais/pessoal,mas também simbólico/cultural e principalmente ins tucional, via “peda-gogia da repe ção” (Spink, 2004).

Pensando, então, a par r dessa matriz crí ca sobre a noção de su- jeito e de um posicionamento polí co sobre a produção cien ca sobresexualidade, resolvi compar lhar com vocês algumas ideias ou mais pre-cisamente apresentar gurações de gênero e sexualidade, como umaestratégia para pensar sobre (im)possibilidades e resistências cria vas àheterossexualidade compulsória .

Estou usando aqui o termo “ gurações” tomando de emprestadoas ideias do psicólogo social Tomás Ibáñez, apresentadas em um ar goin tulado “Elogio da imaginação”, publicado em 2009, no periódico Qua-derns de Psicologia.

Figurações e imaginação: “la locas de la casa”

Segundo Ibáñez (2009), as imagens cumprem uma função instru-mental (necessárias no jogo da comunicação) de “reenvio” e de “suplên-cia”, ou seja, a imagem “funciona” como um meio de “teletransporte” eesta função (como efeito de verdade) é extremamente ú l e potente, des-de que o mundo é mundo.

Por exemplo, os mapas e as pinturas foram fundamentais no tempodas grandes navegações, da colonização (ou mais precisamente explora-

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ção) da Europa sobre as Américas, no século XVI. A crença de que essesmapas e outras imagens reproduziam com verossimilhança o que exis aalém-mar foi fundamental para este empreendimento real (ou mais pre-cisamente, da realeza).

Assim, o que seriam das grandes navegações do século XVI se nãofosse a função representa va atribuída aos mapas? Do mesmo modo, nosdias de hoje, o que seriam dos hotéis, se não fosse a função representa vadas imagens fakes dos apartamentos de 12 metros quadrados, que maisparecem 140? O que seria da “pegação virtual” se não fosse a função re-presenta va das imagens ( com ltro ou fotoshopadas ) postadas em apli-ca vos de encontros tais como o Grindr ou Tinder .

Certamente, crer que as imagens mantém suposta relação com o“objeto representado” é muito ú l para a produção de verdades e paraproduzir controle e jogos de poder ou mais precisamente de dominação.

Mas para Ibáñez (2009), apesar da potencia de sua função repre-senta va, uma imagem não se esgota nessa função. A imagem transbordaessa função. Ou seja, imagens não estão sujeitas apenas a este performa-

vo (de produzir verdades). Quando pensamos nos problemas sociais davida co diana (onde se incluem a sexualidade e as relações de gênero),

a imagem e o ato de se relacionar com ela (que Ibáñez, 2009, chama de“imagem em ação”, a “imaginação”) não transita exclusivamente pelos ca-minhos da produção de verdades, e sim (na maioria das vezes) distorceesses caminhos.

Segundo ele, a função da imaginação “parece ser a da distorção darealidade, o da fantasia ou do delírio, do engano e do erro” (p. 45). Paradesenvolver esta ideia sobre imaginação, Ibáñez (2009) produz uma en-cantadora distorção sobre uma obra do cartesiano Malebranche para di-zer que a imaginação é “la loca de la casa”.

Segundo Ibáñez, ao caracterizar a imaginação como “la loca de lacasa”, Malebranche se equivocava em parte, mas não por completo.

Malebranche errava completamente ao pensar que estava desquali candode ni vamente a imaginação ao de ni-la como “la loca de la casa”… Comefeito, é precisamente porque a imaginación escapa da censura da razão, éporque ela joga livremente com as regras da lógica, e porque ela zomba das

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restrições e exigências da realidade, que a imaginação pode, precisamente,desempenhar sua função de es mular o pensamento, e de gerar novidadesem relação ao que existe, que está estabelecido. (p. 45)

Neste sen do, para Ibáñez (2009), a imaginação é nossa instânciamais cria va, precisamente porque é a instância mais independente dasrestrições e limites que o mundo dos impõe. Fazendo referencia a JeanPaul Sartre, o autor a rma que:

una conciencia que no fuera capaz de imaginar, no sería propiamente unaconciencia, porque se encontraría totalmente atrapada en lo existente, in-capaz de captar otra cosa que lo dado. Incapaz de establecer esa distanciacon lo dado que permite proceder a su evaluación y a su enjuiciamiento, esdecir, que permite, ‘tener conciencia de… Es porque la imaginación sobre-pasa constantemente lo existente por lo cual la conciencia se hace posible(p. 45)

Inspirado nessas ideias de Ibáñez sobre imaginação, decidi nãotentar fazer migrações para o formato textual das imagens que tenhovisto e/ou produzido ao longo dos úl mos anos em que tenho me de-dicado a pesquisar sexualidade e memória (focalizando, sobretudo, emproduções esté co-polí cas que provocam deslocamentos nas formas

“existentes” no campo do gênero e da sexualidade). Ou seja, tentareinão cair no risco de produzir encarceramento da imaginação. Talvez fos-se até mais fácil e mais rápido, em virtude da prá ca acadêmica, porém,não produziria, com certeza, os efeitos que eu gostaria de provocar comeste ensaio.

Pelo contrário, o que tentarei aqui é convida-los e convidá-las aoexercício da imaginação, a par r de algumas gurações, não descritas esim inscritas neste texto, as quais nomeio de “intervenções esté co-polí-

cas em gênero e sexualidade”.

Com efeito, essas intervenções podem nos ajudar a promover ima-ginação, no campo da sexualidade e de gênero e oxalá ajudem-nos aabrir possibilidades para pensar maneiras de viver nossa sexualidade demodo cria vo, para além da dicotomia masculino-feminino; heterosexu-alidade-homosexualidade; sagrado-profano e tantas outras xações de/do gênero.

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este evento envolve ar stas, jornalistas, fotógrafos, intelectuais e curio-sos, tendo como ponto de concentração a “Praça da República”, no centrocomercial da cidade de Belém, capital do estado de Pará, no norte do Bra-sil (Souza, 1997).

Vários/as autores/as (entre eles/as Coelho, 2007; 2011; Milagre &Fernandes, 2013; Needell, 1993; Silva, 2005;Weinstein, 1993) enfa zamque Belém foi uma das cidades mais importantes do Brasil, entre ns doséculo XIX e século XX, em razão da exploração do látex, que se expressamais fortemente entre 1890 e 1910.

Nas artes e na historia polí ca do nosso país, este período é conhe-cido como a Belle Époque Tropical , um período, cultural e polí co impor-

tante na história do Brasil, ainda que a maioria dos brasileiros desconheçaessa informação. Este período começou no nal do “Brasil Império” e seprolongou até o m da “República Velha” (entre 1889 e 1931).

A “Belle Époque”, no Brasil, difere de outros países, seja pela dura-ção, seja pelo avanço tecnológico e se con gurou no Brasil, sobretudo, nasregiões mais prósperas do país, naquela época: a zona do café (São Paulo)e a zona do ciclo da borracha (Região Amazônica, que inclui Belém, ondehavia o mais importante porto de transporte do látex do mundo).

Naquela época, viviam na região muitos europeus que, ainda quelhes incomodasse o calor úmido e a biodiversidade, que inclua insetos eoutros animais raros (aos olhos verdes ou azuis dos colonizadores), su-portavam toda sorte de intempéries, em função da possibilidade de setornarem mais e mais ricos.

Em linhas muito gerais, em virtude de disputas econômicas e ques-tões polí cas no governo central de Brasil, a Amazônia foi perdendo, pou-

co a pouco, o protagonismo polí co e o monopólio da extração do látexpara o Ceilão, Malásia e a África tropical, onde os ingleses, com sementeslevadas da Amazônia, passaram a produzir látex com mais e ciência e pro-du vidade.

Ainda que esta história tenha se passado há quase um século, Belémmanteve algumas marcas desta época, seja em sua arquitetura, seja emsua cultura, seja em algumas tradições que persistem ao longo do tempo.

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Neste cenário de tradições culturais, acontece desde muito antes do“Ciclo da Borracha”, uma das maiores manifestações religiosas da AméricaLa na: o Círio de Nazaré.

O Círio é uma procissão católica que existe deste o nal do séculoXVIII, mais precisamente desde 1793, organizado por uma Diretoria deFes vidades da ordem de “Nossa Senhora de Nazaré”, coordenada pelaIgreja Católica. A palavra “Círio” vem do la m “cereus” (cera), que signi ca“grande vela de cera”. Por ser essa vela a oferenda principal dos eis nasprocissões em Portugal, com o tempo o “círio” se converteu em sinônimoda procissão em Belém e muitas outras cidades do interior do estado doPará4

Par cipam desta procissão aproximadamente dois milhões de pes-soas que advêm de diferentes lugares da região amazônica, mas tambémde outras regiões do Brasil de Brasil e inclusive de outros países mais pró-ximos. Há ainda os “na vos” (ou ca vos) do Pará que vivem em lugaresmais distantes e que voltam todos os anos a Belém para “pedir a bençãoda santa” e assim poder “seguir sua vida”. 5

Figura 01. Cartazes de divulgação do Círio de Nazaré (1926, 2012 e 2014)

4 Fonte: h p://www.ciriodenazare.com.br/portal/romaria.php5 Essas foram expressões recorrentes enunciadas por meus interlocutores.

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Os dias mais importantes da procissão são o segundo sábado e se-gundo domingo de outubro. Porém, a festa dura mais ou menos um mês,com a vidades em diferentes lugares e a par r de diferentes modalida-des, como a moto-romaria (de motocicleta), romaria uvial (de barcos),entre outras. A tabela abaixo ilustra a duração e o total (em quilômetros)percorrido pelas romarias, que resultam em 30 horas de duração e 107quilômetros, tomando como referência o ano de 2013.

Tabela 1. Distâncias percorridas pelas romarias o ciais que integram o Círiode Nazaré

Nº ROMARIAS OFICIAIS CÍRIO DE NAZARÉ/2013

DATA DAREALIZAÇÃO

DURAÇÃODO EVENTO

DISTÂNCIASPERCORRI-DAS

01 Traslado Ananindeua 11/10/2013 12 h 40 min 55.000 km

02 Romaria Rodoviária 12/10/2013 03 h 00 min 24.000 km

03 Romaria Fluvial 12/10/2013 02 h 00 min 18.500 km

04 Moto Romaria 12/10/2013 00 h 55 min 2.400 km

05 Trasladação 12/10/2013 05 h 35 min 3.750 km

06 Círio de Nazaré 13/10/2013 06 h 15 min 3.600 km

TOTAL 30 h 25 min 107.250 km

Fonte: DIEESE/PA – Diretoria da Festa de Nazaré 2013. www.ciriodenazare.com.br

Há também a potente imagem da corda, em volta da qual se po-sicionam peregrinos, pessoas que estão ali para pedir algo à virgem oupara agradecer pela graça alcançada e estão ali, portanto, pagando pro-messa feita. Há ainda uma recorrente referência à tradição (reprodução/repe ção) de prá cas familiares.

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Figura 02. Imagem da corda procissão do Círio de Nazaré

Fonte: www.pnscben ca.com/2010/10/icones-do-cirio-de-nazare.html

Na con guração da procissão, por incrível que pareça, há referênciaa claras divisões de classe, pois as pessoas “de classe média” em geral,

segundo meus interlocutores, preferem acompanhar o cortejo durantea noite de sábado, que antecede o Círio (“trasladação”) a estar pelo solquente da tarde de domingo do Círio.

Há também divisão sexuada de corpos, pois homens e mulheres nãoestão juntos. Escutei algumas versões sobre as razões para esta divisãosexual em torno da corda. Há uma explicação baseada na força sica, ouseja, que as mulheres se colocariam em situação de desvantagem e pode-riam sofrer danos. Há outra linha de argumento que diz que esta divisão

por sexo foi necessária porque alguns homens se excitavam durante o per-curso da procissão entre corpos quente e suados. Muitos inclusive teriamsido adver dos e re rados das cordas, por exemplo, quando começavamou insinuavam começar a masturbar-se, próximos à corda. Assim, separarhomens de mulheres garan ria a proteção das mulheres contra a violên-cia sica ou sexual, baseando-se na ideia de que homens são sempre maisfortes sicamente que as mulheres e de que homens se excitam apenasna fricção com corpos femininos.

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É muito curioso que em Recife, não por acaso, uma boate voltada es-pecialmente ao público homossexual masculino, exibiu por muitos anos,em uma de suas paredes, uma grande e sedutora imagem do Círio de Na-razé, na qual guram-se apenas os duros músculos das pernas suadas dehomens, em curtos shorts, um encaixado atrás do outro.

Além da corda, há também outra imagem potente na con guraçãodo Círio: a própria imagem da santa. Esta imagem se caracteriza como -pico “actante” (ou atuante), conceito central da Teoria Ator-rede, propostapor Bruno Latour (1996) e outros autores/as. “Atuante” seria qualquer coi-sa que atua, ou modi ca uma ação (Akrich & Latour, 1992; Cordeiro, 2012).

No Círio, há uma complexa teia de atuantes, entre eles o manto da

santa, que segundo meus interlocutores/as é confeccionado (ou patrocina-do) por senhoras da elite católica da cidade, porém por vezes, ca a cargode es listas da cidade, “assumidamente” homossexuais. Relatos sobre dis-putas nesta a vidade foram recorrentes em minhas andanças por Belém.

Há também nesta trama de atuantes, a “Berlinda”, estrutura de ma-deira e vidro decorada com belos arranjos orais e uma especial instala-ção de luzes. Porém, a corda (abordada anteriormente) e a imagem dasanta são, de fato, os atuantes mais potentes desta rede.

Figura 3. Imagem da Berlinda, que envolve a imagem de Nossa Senhora deNazaré, durante o Círio

Fonte: www.ciriodenazare.com.br

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Sobre esta imagem, as pessoas falam de uma maneira peculiar.Como se fosse uma viajante que passeia por vários lugares, às vezes, sevê cansada, tem que dormir numa igreja, para seguir viagem, no dia se-guinte, viaja de motocicleta, de barco, muda de roupa todos os anos... Ain midade com a santa é tamanha que muitos inclusive a chamam pelocarinhoso apelido de “Nazica”.

Há duas versões o ciais sobre a aparição desta imagem, segundo in-formações disponíveis na página web o cial do Círio6 e no aplica vo “Kd aBerlinda?”, desenvolvido pela Empresa de Tecnologia da Informação e Co-municação do Pará (Prodepa), disponível para download para aparelhoscelular, a par r do qual os peregrinos podem saber a localização exata dasanta, quando começam as romarias.

Figura 04. Mapa (no site e no aplica vo) para acompanhar, “em tempo real”o deslocamento da imagem de Nossa Senhora de Nazaré, durante o Círio

Fonte: www.ciriodenazare.com.br

A imagem considerada “autên ca” é uma escultura de madeira (de28 cm que leva em seus braços o menino Jesus, com um globo em suasmãos) foi encontrada no ano de 1.700, por um caboclo clamado Pláci-

do José de Souza, lho de um português com uma indígena na va. Estaescultura original, segundo informações disponíveis na website o cial doevento, ca alojada na Basílica Santuário de Nossa Senhora de Nazaré e sóé re rada de sua redoma de vidro una vez por ano, durante a cerimoniada “Descida da Imagem” o a “Descida do Glória”, que ocorre na vésperado Círio, ao meio dia.6 www.ciriodenazare.com.br

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No entanto, por questão de segurança, desde 1969, foi criada umaversão da santa (que alguns chamam de “cover”), que é uma cópia da ima-gem que se encontra na Basílica. Esta se chama “imagem peregrina” por-que é a gura que é transportada em todas as procissões e cerimônias o -ciais da festa de Nazaré. Na página o cial do Círio, há uma informação deque esta imagem se encontra, durante todo o ano, na sacris a da Basílica.

Tive a oportunidade de estar por três vezes nesta procissão e pos-so assegurar que é uma emoção tão inesquecível como indescri vel, queenvolve um volume expressivo de pessoas, entre jovens, adultos, crian-ças e idosos, pessoas cisgênero 7 e pessoas trans 8, brancos, indígenas, massigni ca vamente corpos pobres e negros…9; um acontecimento de porlágrimas nos olhos e arrepiar os cabelos, inclusive em pessoas que, comoeu, não se iden ca com nenhuma matriz religiosa.

A “trasladação”, anteriormente referida, é um momento de que visarecordar o primeiro milagre da santa, quando foi “descoberta”. Sobre isso,reproduz-se uma narra va comum a quase todos os mitos sobre origemdas imagens de santos e santas católicas, ou seja, de que um pobre homemencontrou a imagem da virgem em um lugar distante (no caso, às margensdo igarapé Murucutu, onde hoje se encontra a Basílica Santuário), levou--a a casa e, no dia seguinte, não estava mais lá. Voltando à beira do rio,encontrou-a no mesmo lugar. Voltou a leva-la à casa e, mais uma vez, avirgem voltou ao ponto onde havia sido encontrada. O feito (milagre) teriase repe do várias vezes até a imagem ser enviada ao Palácio do Governo.

No local onde a imagem foi encontrada, foi construída uma pequenacapela, situada hoje no território de um tradicional colégio da cidade (Co-légio Gen l Bi encourt), situado em uma “zona nobre” da cidade, onde,ao nal, a imagem da santa, após o Recírio, ca disposta grande parte doano. O Círio de Nazaré termina, assim, com o “Recírio”, uma curta procis-

são, que acontece na segunda feira, após o chamado “Domingo Fiesta” (oterceiro depois do Domingo do Círio).

7 Cisgênero é um termo usado para referir-se a pessoas cuja iden dade de gênero correspon-de ao seu sexo biológico designado ao nascer.

8 “Pessoas trans” refere-se aqueles/as que se de nem como traves s ou transexuais.9 Certamente, há camarotes e outras formas de diferenciação de classe entre os éis que par-

cipam da procissão, mas a grande massa de romeiros é, de fato, composta por pessoasoriundas de classes populares.

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No entanto, o que mais me chamou a atenção no Círio é a relaçãohíbrida entre o sagrado e o profano. Em uma entrevista publicada no pe-riódico “Beira do Rio” da Universidade Federal de Pará, a professora doIns tuto de Arte e Ciências da Universidade Federal do Pará (UFPA), ZéliaAmador de Deus, fundadora do Centro de Estudos e Defesa dos Negrosdo Pará, argumenta que a única divisão que separa o sagrado do profanodurante a “festa mariana” são as paredes do templo:

A festa, com o passar do tempo, agrega valores diversos e se transforma emuma manifestação que converge tradições, de forma equivalente tanto parao religioso quanto para o cultural, daí as diferentes maneiras de homenage-ar Nossa Senhora, que é o obje vo comum de todo o momento. 10

Entre essas “diferentes maneiras”, incluem-se o “Auto do Círio” ea Festa da Chiquita, nos quais, há uma expressiva presença da popula-ção LGBT, especialmente homossexuais masculinos, traves s e mulherestrans.

De fato, a presença da população LGBT na preparação da procissão,pois, segundo meus interlocutores e interlocutoras, a santa é muito vai-dosa e que precisa de um manto novo a cada ano, muitas vezes produzidopor um es lista assumidamente e reconhecidamente gay, como referido

anteriormente. Do mesmo modo, a berlinda, onde ca disposta a “cover”,é preparada, na maioria das vezes por “bichas cria vas” da cidade, poiscomo me disse, em certa ocasião, uma senhora com quem puxei conversana praça da República, “quando a decoração é feita pelas senhoras dasfamílias tradicionais não ca tão bonita”.

Mas, parece ser o “Auto do Círio” um momento especial de presen-ça de corpos LGBT; um momento em que se percebe uma clara presençadesta população, encenando ou assis ndo.

Idealizado em 1993, pelo Ins tuto das Ciências de Artes da Universi-dade Federal do Pará, e registrado em 2004, pelo Ins tuto do PatrimônioHistórico e Ar s co Nacional (Iphan), o Auto do Círio consiste em um cor-

10 SOUZA, Jéssica. 2015. “Manifestações profanas dividem espaço no calendário”. Jornal daUniversidade Federal do Pará. Ano XXIX Nº 126, Acesso em 12/08/2015 em h p://www.jor-nalbeiradorio.ufpa.br/novo/index.php/2008/13-edicao-65/129--manifestacoes-profanas--dividem-espaco-no-calendario

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tejo pelas ruas do centro histórico de Belém, com paradas em pontos es-tratégicos, nos quais são feitas apresentações de teatro, música e dança.

O Auto envolve cerca de 500 ar stas e de 15 mil espectadores e,

como parte da programação profana da festa, ar cula uma matriz religio-sa em uma esté ca carnavalesca (com muitas fantasias, adereços, palcose cenários), com muitas cores e exposição de corpos, especialmente mas-culinos, lisos e musculosos. Entre os/as espectadores/as, muitos olhares(nem sempre tão) discretos, ertes e paqueras. Esta manifestação aconte-ce na sexta-feira anterior ao domingo do Círio.

Além do “Auto do Círio”, há também o “Arrastão de Pavulagem”,promovido por um grupo musical que vêm a Belém a par r da cidade

de Bragança, interior do estado do Pará. “Pavulagem” é uma palavra quevem do “pavão”, que signi ca “formoso”, “belo” e exuberante. No sen docoloquial, refere-se àquele/a que gosta de aparece, exibido.

A festa é organizada como um grande cortejo carnavalesco, que co-meça exatamente depois da chegada de centenas de barcos da RomariaFluvial ao porto uvial de Belém. A imagem da santa vem da cidade deIcoaraci, pela manhã, com des no à “Estação das Docas”, porto de Belém.

Enquanto a santa segue seu i nerário, agora de motocicleta, para aIgreja de Nossa Senhora de Nazaré, o “Arrastão do Pavulagem” cria uma“bifurcação”, em direção à Praça do Carmo, na “Cidade Velha”, centro his-tórico de Belém. A música mescla “carimbó” com a expressão folclórica do“boi bumbá” e o “arrastão” é regado a muita cerveja e, outra vez, é palcode muitos ertes e paqueras, não somente, mas também entre LGBT.

No entanto, a mais impressionante de todas as manifestações quecompõem o Círio, sem dúvida, é a “Festa da Chiquita”.

Uma importante informação para entender o exercício de “imagina-ção” ou “des-marginação” que estou propondo aqui é que, a festa da Chi-quita acontece durante a “trasladação”, numa praça central da cidade, poronde passa a procissão. Esta é a “Praça da República”, onde está instaladoo “Bar do Parque”, um espaço boêmio, lugar de encontro não apenas, mastambém de população LGBT, como os que existem na grande maioria doscentros comerciais das grandes metrópoles.

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Figura 05. Praça da República em Belém do Pará: Bar do Parque, à direita eTeatro da Paz ao Fundo

Fonte: Street view do site Google Map

Além de ponto de encontro e circulação de corpos abjetos, precá-rios e invisíveis (Butler, 2010), o “bar do parque” con gurou-se, ao lon-go dos anos de ditadura militar no Brasil, como um espaço de produçãoesté co-polí ca cria va e rea va.

Em 1976, houve um importante incidente crí co (Galindo, 2003)neste espaço, quando alguns ar stas, intelectuais, publicitários e undergrounds de toda sorte, ou seja “los locos da casa” (como aludido noinício deste texto) decidiram fazer uma “homenagem” à santa, a par rde uma representação (ou mais precisamente uma guração) do Círio,pondo, em lugar da santa, a imagem de um “veado” sobre uma platafor-ma de madeira.

Em virtude da ironia e da grande divulgação do feito, como espe-rado, esse episódio gerou fortes reações da igreja católica. Apesar disso,no ano seguinte, o grupo voltou a aparecer na Praça da Republica, destavez como uma festa, com shows especialmente de “ traves s de luxo” e“drags caricatas ”, entre outros ar stas da cena gay paraense.

Essas apresentações, algumas de forte apelo eró co (como striptease quase completo de um jovem presenciado por nós, em 2012), in-

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tegram-se a apresentações de grupos tradicionais de carimbó, 11 sobre omesmo palco.

Figura 06. Festa da Chiquita

Foto: Thiago Araújo Fonte: h p://www.diarioonline.com.br

Um dos pontos altos da festa são as homenagens, em forma de“veado”, sendo mais desejado, o “veado de ouro”, que originalmente erasimbolicamente oferecido aos personagens mais homofóbicos da épo-ca, mas que posteriormente, se transformou em um premio desejado

inclusive por personalidades da cultura e polí ca local, e mesmo nacio-nal. Hoje não é mais um prêmio “distorcido”, e sim uma “homenagem dehonra”.

Ainda que a resistência da igreja católica siga a mesma e que emtodos os anos haja rumores de que a festa vai acabar, por pressão con-servadora ou por falta de recursos, desde 2004, a “Festa da chiquita” éreconhecida pelo Ins tuto do Patrimônio Histórico e Ar s co Nacional(Iphan) como parte das manifestações não-religiosas do Círio.

À guisa de (in)conclusões

Em virtude das dimensões deste texto, optei por focalizar linhas etramas que se cruzam em (e pela) Chiquita, como dito anteriormente, sem

11 O carimbó compreende um dança na qual os homens cortejam as mulheres, que se exibempara eles, em longas saias rodadas.

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a intensão de uma abordagem completa, mas, sobretudo, o compar lha-mento/produção de afetações. 12

Vale a pena destacar, porém, que enquanto sejam inúmeras as pos-

sibilidades de gurações e “efeitos de verdade” (Foucault, 1999) que estanarra va pode produzir, não a compreendo como uma narra va linear,nem tão pouco se pretende completa.

Por exemplo, as mudanças e a suposta aceitação da festa não neu-tralizam o recorrente rechaço de muitas pessoas à festa da Chiquita, quese expressa de maneira por vezes agressiva, quando tentam proibi-la ouquando a ignoram por completo, como se não exis sse.

De algum modo, o atual organizador da Festa da Chiquita (Eloi Iglé-sias) muitas vezes diz que só quer um lugar ao sol, que só quer, como to-dos, “ver a santa passar”, para saldá-la, para fazer-lhe pedidos e/ou agra-decer pelas graças alcançadas. Porém o faz à sua maneira.

O que parecem desejar, em alguma medida, é o reconhecimento,como parte do organismo do “monstro”, resgatando mais uma vez a ex-pressão de Haraway (1995). Talvez não seja a aludida barriga do monstro, como aludido por Haraway, mas no gado, onde por vezes se produz anão tão agradável biles. Em outras palavras, em alguma medida, ao invés

de ordenar a sexualidade pelo ins tuído religioso, a festa consiga, pelomenos em intensão, sexualizar esse ins tuído.

Creio, por m, que estas gurações ajudam-nos a produzir olharesmenos ingênuos e mais capilares, mais “rizomá cos” ou pelo menos “me-nos dicotômicos” em nossos estudos sobre a construção de verdades so-bre gênero e sexualidade, ampliando horizontes em nossas análises.

Do mesmo modo que, como nos disse Foucault (1987), onde há po-der há resistência, é possível pensar que onde há dicotomias há hibridis-mos, e nas brechas, pistas e rastros dessa fusão talvez encontremos algu-mas saídas. Abandonar o exercício de buscar a relação entre signi cante12 Para uma leitura mais acurada sobre a festa da Chiquita e seus efeitos, recomendo a leitura

de etnogra a produzida por Milton Ribeiro, publicada em: Ribeiro, M. (2015). E a quadrilhatoda grita... Viva a Filha da Chiquita: notas etnográ cas da Festa da Chiquita em Belém doPará. Ponto Urbe (USP), 16, 1-15; Ribeiro, M. (2014). Eu sou a lha da Chiquita Bacana...:notas antropológicas sobre a Festa da Chiquita em Belém do Pará. Gênero na Amazônia, 6,183-212.

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Medrado, B. (2015). Compar lhando afetações: trilhas entre gurações e imaginações de...

e signi cado que funda leituras de gênero, talvez possa nos ajudar a pro-duzir outras gurações, potencializando a imaginação, “La loca de la casa”.

Alguns breves agradecimentos

Num texto que se baseia em afetações, não poderia deixar de regis-trar meu afeto na forma de agradecimentos a vários amigos/as: ao irmãoRicardo Méllo (Ercilia, Bia e Caio), que me apresentou a Belém e me levoupela primeira vez àquela cidade; a Lúcia Lima (e Erick) que me acolheutão bem ao ponto de me fazer sen r em família, em um almoço domingode Círio; a Mônica Conrado (e Caio) que tornou possível e agradável essaexperiência; a Milton e Ramon que me acompanharam em tantas viagense Chiquinho que me deu a mão e me acompanhou, com disponibilidadede amigo e carinho insuperáveis.

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Psicologia e Assistência Social: interfacesdisciplinadoras e emancipadoras

Silvio José Benelli

Situando a perspec va metodológica da discussão

Pode não parecer evidente – inclusive, inusitado – considerar que a

Psicologia, como ciência e fazer disciplinar, possua semelhanças radicaiscom a Assistência Social. Esse ar go é um pequeno recorte de um tra-balho teórico-prá co intenso no campo da Assistência Social. As hipóte-ses apresentadas estão apoiadas numa visão de conjunto e contém certanovidade, podendo causar certo estranhamento e resistência no leitor,exigindo re exão e trabalho do pensamento de sua parte.

Par ndo de uma concepção ins tucionalista (Barembli ,1998; Be-nelli & Costa-Rosa, 2011; Lourau,1995), consideramos que a lógica dosfenômenos não está explícita em supostos “fatos em si” que comporiamo cenário da realidade social, mas essa lógica precisa ser construída porum trabalho conceitual do pensamento que revele sua estrutura essenciale concreta, que seria construída por múl plas determinações. Nesse sen-

do, procuramos analisar um amplo e complexo conjunto de fenômenospresentes tanto na Psicologia quanto no campo socioassistencial, cons -tuído pelos fatores e planos que vamos explicitar ao longo desse texto,procurando formular, em raciocínios dialé cos, algumas hipóteses geraissobre a compreensão que construímos sobre eles.

A elaboração do pensamento dialé co permite a construção de ca-tegorias analí cas que alcançam o estatuto de conceitos estruturais, quepor sua vez são dotados de forte capacidade explica va e interpreta va. Aconstrução desses conceitos fundamentais passa por uma imersão atentanum determinado campo de análise, o que pode ser realizado, por exem-plo, por meio da observação par cipante, podendo ainda incluir uma co-leta de dados quan ta vos, a realização de entrevistas, bem como um

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mental, fruto, talvez, de uma suposta degeneração da raça . Essa leituradescamba rapidamente para o racismo preconceituoso. Uma psicologiapsicométrica (Pa o, 1997; 2010) pode diagnos cá-la como um problemade personalidade, como uma caracterís ca inata e endógena, própria doindivíduo. Esse desajuste de comportamento seria passível de mensura-ção, de tratamento e de cura.

Análises monocausais simplistas, calcadas em perspec vas posi vis-tas e funcionalistas, podem levar a diagnós cos mis cadores e, daí, sepode passar a propor possibilidades de buscar sua solução por meio dacriação de estabelecimentos ins tucionais que implementem prá cas deatenção que incluem a restrição total ou parcial de liberdade, a punição,a ressocialização, o tratamento. Sobretudo, pretende-se cons tuir umapedagogia capaz de promover efeitos terapêu cos e corre vos (Casella,2004; Machado, 2004; Neiva, 2010; Silva, 2002). Isso pode ser realizadopor meio de um conjunto de técnicas e prá cas de vigilância hierárquica,de sanção normalizadora e de exames – fundamentando uma clínica euma pedagogia do olhar – visando promover a ortopedia social adapta -va, a cura das possibilidades patológicas desviantes e, nalmente, fomen-tando a integração social dos indivíduos à norma (Foucault, 1999a).

O estudo da interface entre a Psicologia Clínica tradicional e a Assis-tência Social, no âmbito das polí cas públicas, revela interessantes inter-secções e atravessamentos entre esses dois campos, aparentemente dis-

ntos e diversos. A clínica psicológica tradicional é pautada na intervençãosobre o indivíduo, tendo como seu núcleo central a consciência racional,visando sobretudo a prevenção-tratamento-cura-reabilitação do objeto,nomeado também como caráter, conduta, comportamento, personalida-de, iden dade. Nessa vertente clínica psicologizante, de acordo com ascrí cas aos limites teórico-técnicos, sociais, polí cos e é cos da Psicologiacomo saber e fazer, é possível a rmar que o terapêu co se baseia numaordem que se impõe (governo do outro), na admoestação moralizante,num conselho que pretende persuadir ou no efeito imaginário mágico dasugestão (Dionísio & Benelli, 2012). Uma análise histórica, dialé ca e crí -ca, tanto da Psicologia Clínica, como a proposta por Bock, Gonçalves e Fur-tado (2002), quanto da Assistência Social, por Behring e Bosche (2006)e por Benelli e Costa-Rosa (2010; 2011; 2012a; 2013), também revela que

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Benelli, S. J. (2015). Psicologia e Assistência Social: interfaces disciplinadoras e emancipadoras

esses dois campos ins tucionais compostos por saberes e prá cas, dis-posi vos e equipamentos, discursos e poderes, tanto num plano macroquanto micro sico, promovem efeitos semelhantes de patologização doindivíduo e de adaptação social. A Psicologia Sócio-Histórica tem apresen-tado importantes contribuições para a Psicologia e também já tem formu-lado propostas visando a inserção crí ca do psicólogo no campo das polí -cas públicas (Gonçalves, 2010). Outras perspec vas interessantes podemser encontradas em abordagens ins tucionalistas (Benelli & Costa-Rosa,2011; 2012a; 2013). Uma leitura genealógica da Psicologia Clínica e daAssistência Social revela que ambas são fenômenos que se cons tuíramno bojo da sociedade disciplinar, e, a hipótese de Foucault (1999a, p. 250),segundo a qual “em sua função, esse poder de punir não é necessaria-

mente diferente do de curar ou educar”, permite uma problema zaçãoda emergência dessas duas modalidades de produção da vida social comosendo essencialmente disciplinares, correcionais e normalizadoras.

Há um conjunto importante de crí cas à Psicologia – localizadano bojo maior das ciências humanas – enquanto campo de saberes ede prá cas. Foucault (2002, p. 227) a rma que “toda psicologia é umapedagogia, toda decifração é uma terapêu ca, não se pode saber semtransformar.” Portanto, a Psicologia inclui prá cas pedagógicas, decifra-

doras, terapêu cas e transformadoras, produzindo efeitos na realida-de. As crí cas feitas à ciência moderna também se aplicam à Psicologia, já que ela se alinha com as premissas e com as prá cas metodológicasdessa forma de produção de conhecimento e realidade social. O grandeproblema está no processo de obje cação que as ciências em geral in-

igem ao homem, fazendo dele um objeto sobre o qual se pode estudar,categorizar, intervir, modelar, formatar, docilizar, disciplinar, controlar,adaptar e normalizar. Análises que explicitam cri camente a dimen-são disciplinar e normalizadora da Psicologia podem ser encontradasem Foucault, (1999a), Ferreira (2005; 2006), Ferreira (2004), Huning eGuareschi (2005) e Prado (2005). A par r de uma perspec va crí ca,considera-se que a Psicologia se encontra com a Assistência Social nummovimento de psicologização da vida co diana, bem representado peloque já se convencionou denominar de expansão e cul vo de uma “cul-tura psicológica” (Castel, 1987; Ferreira, 2004). Nota-se uma tendênciada Psicologia a patologizar e psicologizar o que é eminentemente social,

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terapeu zando a vida social na direção da instauração e consolidação deuma cultura psicológica. Aparentemente a Psicologia, como ciência hu-mana, parece estar superando a mera função de mis car as contradi-ções das relações sociais, dirigindo-se para uma prá ca mais ampla quevisaria ao cul vo do relacional ou à expansão de uma cultura relacionalde ma z psicologizante, inves gada por Benelli (2009).

Faz-se necessário, nesta re exão, destacar o intenso processo de pe-dagogização da clínica psicoterapêu ca, que é observado nas ofertas porparte da Psicologia no âmbito da Assistência Social, ao buscar construirintervenções denominadas amplamente com os termos “prá cas sociais”,“intervenção psicossocial”, “intervenção ins tucional”, etc., sem maior ri-gor conceitual e é co. Bons exemplares disso são os trabalhos de Silva(2002), de Casella (2004), Machado (2004) e de Neiva (2010), marcadospelo ecle smo acrí co. Isso se torna explícito quando a Psicologia propõeque nalidades terapêu cas sejam ob das por meio de diversos proces-sos pedagógicos, educa vos e socializadores, numa perspec va que sedenomina psicossocial , mas que, quando examinada mais de perto, apre-senta um notável viés adapta vo, corre vo e vigilante, visando o ajusta-mento normalizador do indivíduo. Neste ar go o termo psicossocial é to-mado a par r da acepção conceitual apresentada por Costa-Rosa (2013),

que inclui um conjunto de prá cas bastante diversas das tradicionalmentedisciplinares e pedagógicas, inspiradas em contribuições do materialismohistórico, da Filoso a da Diferença e, sobretudo, da Psicanálise do campode Freud e Lacan.

Por seu lado, nota-se que a Assistência Social, enquanto ins tuição(Benelli & Costa-Rosa, 2013), se encontra com a Psicologia num processode terapeu zação do “problema social”, movimento no qual a contradiçãocapital-trabalho, tal como postulada pela perspec va marxista (Althusser

& Badiou, 1979; Marx, 1987), é transmutada e traduzida em termos dedimensões psicológicas individuais, passíveis de intervenções “socioedu-ca vas” de fortes ma zes psicológico-terapêu cos, de vigilância-monito-ramento dos riscos sociais – procurando evitar a surpresa, elemento picodas ações dos movimentos populares (Saliba, 2006) –, bem como corre-cional-puni vos. Assim como a Psicologia propõe umaterapêu ca peda -gogizada, a Assistência Social parece propor uma pedagogia psicologiza-

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Benelli, S. J. (2015). Psicologia e Assistência Social: interfaces disciplinadoras e emancipadoras

da (Benelli & Costa-Rosa, 2012a). Prá cas pedagógicas, enquanto técnicasde socialização e de ressocialização, e prá cas psicológicas, sob as formasdo tratamento psicoterapêu co grupal e/ou individual, são u lizadas en-quanto instrumentos promotores de correção disciplinar, de ortopediado comportamento e de vigilância puni va. Elas cons tuem as aporiasepistemológicas que se pode mapear como pano de fundo paradoxal noqual se debate a Assistência Social, como polí ca pública na atualidade,na sua interface com a Psicologia, de viés tradicional clínico e psicométri-co. Vigiar e punir, educar e tratar ainda são as condições de possibilidadesparadigmá cas – eminentemente disciplinares – observadas ins tuindoa Assistência Social como disposi vo no cenário contemporâneo. A par rdo exposto, é plausível considerar a proposta o cial da Assistência Social,

enquanto polí ca pública, como sendo de caráter fortemente psicologi-zante; pois, a literatura o cial sobre a Assistência Social parece revelarum grau elevado de despoli zação e, na mesma medida, manifesta umanotável intensidade terapêu ca. Aparentemente, a pobreza, que é umacategoria de ordem polí ca, econômica e social, seria naturalizada e re-traduzida, nos documentos o ciais da Assistência Social, em termos decategorias psicológicas: “vínculos afe vo-relacionais”, “laços afe vos”,“potencialidades”, “habilidades”, no bojo de um intenso processo de psi-cologização do problema social e de suas refrações (Conselho Nacional deAssistência Social - CNAS, 2006, Ministério do Desenvolvimento Social -MDS, 2006; 2009a; 2009b; 2009c; 2009d). Há muitas técnicas psicológicasque são adotadas nas prá cas em Assistência Social: entrevistas, grupossocioeduca vos, dinâmicas de grupo, o cinas, ludoterapia, psicoterapia,sendo que pro ssionais são contratados para executar essas ações (Be-nelli & Costa-Rosa, 2012a; 2013; Conselho Federal de Psicologia, 2009;Cruz, 2009; Macedo & Dimenstein, 2009). No processo de imersão con-creta, realizada no campo das polí cas sociais, nota-se uma ausência de

quaisquer estratégias da área propriamente polí cas, tais como prá casbaseadas na par cipação, na mobilização social transformadora e revo-lucionária. E, certamente, toda ação transformadora exige estratégias in-tersetoriais: polí cas de habitação, saúde, educação, trabalho, segurança,lazer e cultura, etc. Observa-se que, em diversos casos, o poder públicoquer apenas uma população dócil, subordinada, colaboradora e que nãocoloque empecilhos para a gestão da máquina municipal.

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Um novo paradigma para a Assistência Social: a produção social dacidadania

A Cons tuição Federal de 1988 nalmente elevou as prá cas assis-tenciais que eram realizadas para enfrentar o problema social ao estatutode polí ca pública de Estado. No ano de 1993, o presidente da Repúblicasancionou a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) (MDS, 1993), regu-lamentando e promovendo a implementação dos disposi vos cons tu-cionais. A maturação desse processo de ins tucionalização a ngiu ummomento importante com a publicação da Polí ca Nacional de Assistên-cia Social (PNAS) (MDS, 2004); foi coroada com a construção do SistemaÚnico de Assistência Social (SUAS) (MDS, 2005, 2012), fruto de uma lutahistórica na área, que nalmente se tornou lei federal no ano de 2011,quando a LOAS de 1993 foi revista e emendada (MDS, 2011).

A Assistência Social, ao ser ins tuída como polí ca pública de Esta-do, passou a ser organizada de modo sistêmico e racional, visando a umaoferta de estabelecimentos ins tucionais, de programas, projetos e servi-ços pro ssionalizados e de qualidade. Mas não é di cil veri car que a pro-mulgação do SUAS, enquanto sistema racionalizado e programá co, por si

só, não modi ca as formas históricas de prá cas assistenciais baseadas naajuda samaritana, na lantropia assistencialista e no paternalismo clien-telista, profundamente enraizadas na cultura brasileira. A racionalizaçãodas polí cas públicas de Assistência Social, como resposta ao problemasocial , não representa, necessária e automa camente, a transformaçãodos modelos históricos assistenciais efe vamente operantes na realidadesocial brasileira.

A estrutura burocrá ca piramidal de ma z autoritário e ver cal épredominante nos serviços públicos do país. Os gestores costumam atuara par r de uma lógica baseada em cálculos eminentemente quan ta vos,que se prestam para ser organizados e apresentados em quadros esta s-

cos (Traversini & Bello, 2009). Tais análises esta s cas podem, então, sercapitalizadas como realizações governamentais, representando o resulta-do de obras que podem gerar dividendos eleitorais no plano dos interessespolí co-par dários que buscam hegemonia no cenário global da polí cao cial. Portanto, não é incomum que análises simplistas e simpli cadoras,

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que se pautam pela noção linear de causa-efeito postulem a existência deproblemas especí cos simples, desconectados e descontextualizados daglobalidade social, complexa, – em suas múl plas dimensões históricas,culturais, econômicas, polí cas e psíquicas – que, uma vez detectados, cir-cunscritos, pretensamente compreendidos e explicados, seriam passíveisde solução, com o emprego e u lização de medidas simples. Essa tradiçãoe perspec va são altamente nefastas para a ar culação paradigmá ca daAssistência Social como promotora efe va da cidadania; contudo, estãofortemente presentes na documentação o cial (MDS, 2004; 2005; 2006;2009a, 2011).

Observando a realidade, trabalha-se com a hipótese de que as váriasformas de operação das prá cas assistenciais vigentes con guram mode-los de assistência, modelos baseados em lógicas ins tucionais diversas.Postula-se a tese de que é preciso construir uma transformação radical domodelo assistencial, no plano estrutural e paradigmá co da AssistênciaSocial. Para que a Assistência Social possa buscar um efe vo equaciona-mento do problema social , é necessário que ela se paute radicalmentepela produção social de cidadania, noção que indica que todos possuemdireitos polí cos (civis) e sociais (trabalho, moradia, saúde, educação,transporte, lazer e cultura) concretos e reais, que devem ser contempla-

dos (Mariano, 2011), bem como “a competência de saber fazer-se sujeitohistórico capaz de pensar e conduzir seu des no” (Demo, 1995, p. 133).Por isso, denomina-se o novo paradigma para organizar o campo ins tu-cional da Assistência Social de modelo da cidadania integral, superando acidadania formal, pica do liberalismo, na qual a lei garante direitos abs-tratos que o Estado não se preocupa em concre zar para os cidadãos,tratando-os apenas como consumidores (Conselho Federal de Psicologia,2012). Se a Assistência Social, como ins tuição que ar cula disposi vosins tucionais (Benelli & Costa-Rosa, 2013), não é capaz de produzir cida-dania, numa ação intersetorial poli zada e é ca, alinhada com os interes-ses das classes oprimidas, isso se deve ao fato de que, numa sociedadecapitalista neoliberal, ela tende a ser atraída pela força gravitacional dosoutros modos de produção social de assistência: a caridade, a promoçãohumana, a lantropia e o clientelismo das autoridades públicas.

O discurso o cial do Estado brasileiro, rela vo à Assistência Social,enuncia o sen do é co radical que deve orientar os efeitos das prá cas

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assistenciais: o sujeito cidadão de direitos. Deduz-se, portanto, que, a As-sistência Social deve ser capaz de produzir a cidadania, atuando por meioda intersetorialidade com as demais polí cas públicas. Mas, para que issopossa se efe var concretamente, é preciso reformular e explicitar essalógica paradigmá ca calcada na cidadania. A construção do paradigmada Assistência Social, como produtor de cidadania, exige um conjunto demudanças e transformações em diversos níveis: na concepção do proces-so pobreza-cidadania, nos modelos assistenciais diversos e, também, nassuas prá cas assistenciais. Sobretudo, seria necessário modi car o modode governo da coisa pública, da cidade, do município. E sabe-se que essatarefa não é responsabilidade exclusiva da Assistência Social, mas do cole-

vo social organizado em busca das transformações, que urgem.

A concepção do objeto ins tucional delinqüência/marginalidade--ressocialização e também o da pobreza-inclusão subordinada, consen dadevem ser subs tuídos pelo binômio pobreza-cidadania. Já os modos deatenção assistencial , baseados na ajuda samaritana, na benemerência -lantrópica e no paternalismo assistencialista, devem ser subs tuídos pelomodo da Atenção Socioeduca va, produtora de cidadania por meio deprá cas socioeduca vas crí cas e poli zadas, superando prá cas assis-tenciais repressivas, alienadoras, moralizantes e normalizantes do com-portamento individual (Benelli & Costa-Rosa, 2012a; 2013). O trabalhopsicossocial fundamenta-se numa perspec va teórico-técnica especí ca,que instrumentaliza uma série de recursos teórico-assistenciais, técnico--assistenciais, jurídico-polí cos e socioculturais, para operacionalizar aAtenção Socioeduca va. A Atenção Socioeduca va se concre za em ser-viços ins tucionais que oferecem acolhimento, escuta, atendimento espe-cializado, técnicas grupais, o cinas, ar culados com redes de apoio, comserviços, programas e projetos diversos, realizando encaminhamentoscom acompanhamento e monitoramento regular e atentos, visando for-

talecer a garan a de direitos, o acesso a serviços de Assistência Social,Saúde, Educação, Jus ça, Segurança, Esporte, Lazer, Cultura, Geração deRenda e de quali cação pro ssional, a par r de um compromisso é co--polí co alinhado com os interesses e necessidades dos membros dasclasses populares dominadas, exploradas e oprimidas. A Atenção Socio-educa va se pauta por um viés crí co e poli zante dos problemas sociaisem geral, sendo que seu equacionamento integral passa necessariamentepela construção de uma cidadania radicalmente democrá ca e popular.

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Benelli, S. J. (2015). Psicologia e Assistência Social: interfaces disciplinadoras e emancipadoras

O governo da cidade, ao invés de privilegiar os interesses da elite eda classe média, de modo exclusivo, promovendo prá cas incipientes e deefeitos meramente simbólicos, quanto às necessidades e demandas dasclasses populares, deve se pautar por um ideário radicalmente democrá -co e par cipa vo. Postula-se que o novo paradigma cidadão da Assistên-cia Social exige um conjunto de transformações em diversos parâmetros:o da concepção do objeto ins tucional e dos meios de trabalho (teoria etécnica), relacionado com o processo pobreza-cidadania e o plano econô-mico, os modos e as prá cas de atenção, que incidem, sobretudo, nos pla-nos cultural e ideológico, cogni vo e tecnológico, os quais devem passarpor profundas mudanças polí cas.

Há um importante conjunto de atores sociais alinhados com diferen-tes projetos, e será necessário promover uma formação teórico-técnicacrí ca, poli zada e pro ssionalizante, construir consensos e hegemoniaem torno da pauta é ca da cidadania. No plano ideológico, há diversosmodelos a serem superados, quando se pretende estruturar a lógica daatenção assistencial pela concepção da cidadania integral, alinhada comas demandas populares; o que exige a implementação de prá cas essen-cialmente socioeduca vas poli zadas. Tudo isso certamente representa aimplantação de uma profunda mudança cultural; o que não se realiza demodo fácil nem rápido. O projeto de uma Assistência Social voltada paraa produção social de cidadania também inclui a apropriação e a invenção,a u lização de conhecimentos, de informações, bem como de técnicascoerentes com os pressupostos ideológicos e polí cos adotados.

A interface psicossocial singularizante entre a Psicologia e a AssistênciaSocial: sujeito cidadão e sujeito de desejo

Par ndo da premissa de que o usuário da Assistência Social é sujeitocidadão de direitos, a rma-se resolutamente que o pro ssional psicólogodeve, necessariamente, estar atento para as implicações é co-polí casdo seu trabalho. É fundamental manter em permanente funcionamentoa “análise da implicação” (Barembli , 1998; Lourau, 1995) do pro ssio-nal psi , a re exão crí ca sobre o sen do da sua prá ca pro ssional. Atu-almente, diversas abordagens teóricas instrumentalizam as prá cas psi .Muitas são, de fato, e cazes como instrumentos de intervenção pragmá-

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ca, abrangendo aspectos interacionais e psicológicos nas diversas áreasde ação psi . Mas o psicólogo não pode se limitar a ser um técnico bemtreinado e munido apenas de ferramentas adequadas de trabalho, se nãoquiser permanecer alienado em sua a vidade pro ssional como especia-lista do campo psicológico; entenda-se campo subje vo, interno, interiorao indivíduo.

O psiquismo possui existência e consistência especí ca, mas estassão bastante dis ntas da perspec va psicologizante e imaginária maiscomum (Cabas, 2009). O psiquismo e as diversas teorias psi que procu-ram ar culá-lo são produto/produtoras, também são fruto de comple-xas relações e produções sociais do mundo burguês. Portanto, o traba-lho de um psicólogo num estabelecimento de Assistência Social podeprestar-se a um papel mis cador e alienante, psicologizando questõespolí cas, localizando-as em traços de personalidade, num espaço de in-terioridade psíquica; ou sociologizando as relações de poder, atribuindoaos problemas intra-ins tucionais, causas exógenas, localizadas no sis-tema social; ou, ainda, pedagogizando o jogo de forças, buscando de-senvolver um controle disciplinar so s cado para a solução dos con itos

picos do funcionamento ins tucional. Nesse sen do, a Psicologia querser pedagógica e a Pedagogia, terapêu ca. Tais prá cas têm como efeitoé co a correção ortopédica, no sen do da adaptação, subme mento esubordinação. Para além desse viés psicologizante, é preciso reconhecera especi cidade da dimensão psíquica do sujeito cidadão, já seja adul-to, criança ou adolescente. O homem é, ao mesmo tempo, um cidadãona ordem da polí ca e um sujeito em constante processo de subje va-ção, tal como ensina a Psicanálise do campo de Freud e Lacan (Costa--Rosa, 2013), pois, a subje vidade, nessa acepção psicanalí ca, inclui anoção da ausência de solução entre o individual e o social. Consideraras questões do sujeito do direito e o sujeito do inconsciente é o grande

desa o que se coloca: postula-se que a Psicanálise possui importantesferramentas teórico-técnicas para instrumentalizar os psicólogos queatuam no campo da Assistência Social, no sen do de superar prá casdisciplinares e normalizadoras (Lima & Altoé, 2005; Poli & Susin, 2012).A opção é por uma é ca singularizante nas prá cas clínicas. É ca,aqui,signi ca produção de sujeito autônomo, capaz de ação, agente. Inclui oindivíduo como cidadão de direitos e também o sujeito do inconsciente,tal como postulado por Freud e Lacan.

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É importante, ainda, considerar que – embora não seja evidente àprimeira vista –, todo problema psicológico individual é também um pro-blema situado num contexto social e ins tucional, no qual ele emerge, ecom o qual está intrinsecamente relacionado (Costa-Rosa, 2013). Portanto,é preciso adotar uma perspec va social crí ca e ins tucional complexa parasituar e contextualizar os problemas, di culdades e impasses que o sujei-to apresenta, como uma exigência radical da é ca da Atenção Psicossocial(Costa-Rosa, 2013). A dimensão ins tucional deve ser problema zada pelopro ssional psicólogo, sob pena dele desenvolver uma intervenção ingê-nua, aparentemente bené ca, mas atendendo à encomenda ins tucionale desconhecendo a demanda. Sendo a sociedade um tecido formado poruma rede de ins tuições sociais, os problemas psicossociais devem ser con-

textualizados nos planos ins tucional e sócio-polí co nos quais emergem,para serem adequadamente equacionados, sob pena de se permanecer emconsiderações funcionalistas que apenas mascaram a realidade do poder eda polí ca, reduzindo-os a questões de ordem psicológica ou sociológica in-dividuais. Muitas vezes, provavelmente, o que se toma como efeito colate-ral é, na verdade, o produto principal da ação ins tucional, apesar de todosos discursos altruístas, plasmados nos seus projetos o ciais.

Normalmente o psicólogo é chamado para resolver os problemasafe vos das pessoas. Ele seria alguém que poderia dar um jeito nos indi-víduos problemá cos. Seus serviços psicoterapêu cos podem se tornaracréscimos quase luxuosos num determinado contexto ins tucional glo-bal. Não se espera, evidentemente, que esse pro ssional esteja ali paracolaborar com os diversos agentes ins tucionais: ele deve apenas fazerpsicoterapia individual. Esse é o papel clássico que se atribui ao psicó-logo: como a subje vidade é reduzida à interioridade psíquica do indiví-duo, a função desse pro ssional seria atuar numa clínica intersubje va etrabalhar na ortopedia da individualidade iden tária. Tanto que é fácil se

esquecer dele, não vê-lo, não notá-lo no estabelecimento, não avisá-lode a vidades que coincidem com seu dia e horários de atendimento. Issoindica sintoma camente a relevância desse pro ssional no contexto ins -tucional. Muitas questões pedagógicas, psicológicas, psiquiátricas, hospi-talares, da saúde cole va, etc., podem se tornar mais inteligíveis quandoinseridas num marco ins tucional global. Os problemas ins tucionais sãotambém problemas sociais, neste modo de apreensão. Soluções técni-cas muitas vezes não são su cientes para resolvê-los. Eles exigem solu-

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ções polí cas para sua metabolização. A polí ca não é meramente umaquestão técnica (e cácia administra va) nem cien ca (conhecimentosespecializados sobre gerenciamento ou administração), é ação e decisãocole va quanto aos interesses e direitos do próprio grupo social (Benelli,2012). Os problemas psicológicos apresentados pelos indivíduos, além dasua dimensão propriamente social, também contêm um certo protesto erepresentam, ainda, uma contestação crí ca a uma realidade social insu-portável, de opressão, exploração e de exclusão. Aprende-se com a Psi-canálise do campo de Freud e Lacan que os sintomas psíquicos tambémrepresentam uma objeção crí ca à (des)ordem social vigente (Costa-Rosa,2013). Nesse sen do, procurar solucioná-los por meio de concepções fun-cionalistas e de estratégias lantrópicas, que visam a adaptação social,

representa um desserviço ao sujeito cidadão.Quanto ao lugar do psicólogo no campo da polí ca pública de As-

sistência Social, é possível perguntar se haveria alguma especi cidade noseu trabalho, desenvolvido nesse contexto ins tucional e nos seus diver-sos estabelecimentos. Essa é uma questão recorrente na atualidade. Elaé colocada não porque se tenha interesse em defender alguma supostareserva de mercado, embora possa parecer assim, mas porque ela per-mite problema zar uma importante questão na complexa interface da

Psicologia com a Assistência Social. O que dis nguiria – não no sen dode ser melhor, mas no da sua singularidade – o trabalho do psicólogo emrelação ao dos demais pro ssionais: assistentes sociais, advogados, tera-peutas ocupacionais, fonoaudiólogos, sociólogos, professores, educado-res e técnicos de várias áreas? Qual seria o lugar do psicólogo no campoda polí ca pública de Assistência Social? Para responder a essa questão,foi preciso equacionar um conjunto complexo e amplo de questões refe-rentes à Psicologia, enquanto ciência e pro ssão, bem como com relaçãoà Assistência Social, como ins tuição.

Pode-se considerar que em geral, na atualidade, o lugar é co possí-vel para o psicólogo estaria entre a tutela normalizadora, o agente polí coe a Atenção Psicossocial. Postula-se que as ins tuições e os estabeleci-mentos nos quais elas se materializam são promotores de efeitos é cos:suas prá cas de atenção e de cuidados são produtoras de efeitos é cosespecí cos (Benelli & Costa-Rosa, 2013). Em outras palavras, as prá cas desenvolvidas pelos atores ins tucionais – cons tuídas pelo atravessa-

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mento de discursos e de saberes, ar culados a poderes, e legi madas porinteresses polí cos – são produtoras de sujeitos, de realidade social, obje-

va e subje va. Dessa forma, trabalha-se com a hipótese de que um dosfatores principais que determina o desdobramento dos pedidos de ajuda – com suas diferentes formas de disposição transferencial inicial – está nomodo especí co como eles são recebidos, acolhidos, ouvidos e, nalmen-te, escutados . Isso quer dizer que os resultados da atenção assistencial –em termos de e cácia e efeitos é cos – dependem radicalmente do mododas ofertas de possibilidades transferenciais. Nesse caso, pode-se a rmarque os técnicos, os trabalhadores – e, dentre eles, os psicólogos, que sãoos que poderiam ter uma formação especí ca para compreendê-lo –, es-tão incluídos na produção dos efeitos ins tucionalmente produzidos. Tais

efeitos podem ser adapta vos e de alienação (serializados) – nos quais oindivíduo se reconhece apenas nas imagens iden tárias oferecidas pelomercado, as quais consome, reproduz e a par r das quais se posicionacomo uma ví ma impotente e sem implicação nos problemas dos quaisse queixa. Mas, numa perspec va certamente inusual, também, podemser efeitos que possibilitam alguma brecha na direção da implicação sub- je va e sócio-cultural (singularização) – na qual o indivíduo se posicionacomo um sujeito diante dos con itos e contradições do próprio desejo ede suas conexões com a realidade social mais ampla, sendo capaz de umavida produ va –, propiciando abertura para os ideais, o desejo e o careci-mento, conceito complexo que, de acordo com Costa-Rosa: (2000, p. 163)

abarca uma dimensão do homem que inclui o desejo (como se o propõena psicanálise) e toda a abertura para os Ideais, possíveis ou não de ime-diato, e para o usufruto de todos os bens da produção social, muito alémdo preenchimento de necessidades, no contexto de determinada FormaçãoSocial. Pode-se considerar que aqui estão incluídas também as criações daFiloso a, da Arte, da Ciência, e da Religião, porém não sem passar pela aspi-ração per nente ao usufruto das comodidades socialmente produzidas nomais alto grau da sua evolução histórica. (Costa-Rosa, 2000, p. 163)

Conclusão

Quais são os pressupostos teóricos e é cos que fundamentam osdocumentos o ciais da Assistência Social? Para responder a essa questão,

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é necessário elaborar uma grade analí ca com um conjunto de parâme-tros que permitam problema zar tais documentos. Também é necessáriodelimitar os campos disciplinares que podem estar incidindo no âmbitoda Assistência Social enquanto polí ca pública. Logo de saída, podemosrelacionar disciplinas tais como o Serviço Social, a Sociologia, a Psicologia,a Pedagogia, a Filoso a e a Psicanálise. De um modo esquemá co, seriapossível mapear tendências conservadoras, renovadas progressivistas,dialé co-crí cas e transdisciplinares em cada um desses campos. Aqui jáse esboça a complexidade da visada pretendida.

Podemos observar claramente que o discurso o cial presente na do-cumentação da Assistência Social não parte de uma “crí ca da EconomiaPolí ca”. Pelo contrário, ele rapidamente escamoteia questões tais comoa luta de classes, a relação capital/trabalho, as prá cas de exclusão/inclu-são produzidas pelo modo intrínseco de funcionamento do mercado, apobreza como efeito direto do Modo Capitalista de Produção.

Não podemos deixar de notar que a polí ca de Assistência Social,da forma como se apresenta na atualidade, seria composta por discur-sos e por prá cas lacunares e mais ou menos contraditórias. Ao mesmotempo em que enunciam direitos e cidadania para os pobres, notamosque, quando passam a ins tuir os instrumentos para promovê-los, ela se

apresenta como uma pedagogia social bastante tradicional e psicologizan-te. Poderíamos arriscar que a Assistência Social poderia ser consideradacomo uma pedagogia que produz efeitos terapêu cos e que a socioeduca-ção consis ria em vigiar e punir, educar e tratar, assis r e proteger na atu-alidade. Aos psicólogos, e não apenas a eles, cabe o trabalho de subverteros discursos e prá cas eminentemente disciplinares que permeiam essaárea das polí cas públicas nas quais atuam.

Na interface disciplinar entre a Psicologia e a Assistência Social, são

realizados atendimentos cuja modalidade alcançam o estatuto de uma clí-nica tradicional, que visaria reparar disfunções, incluindo uma perspec vapreven va, que pretenderia evitar que as disfunções ocorressem. A peda-gogia u lizada poderia incluir inclusive a estratégia da sedução e revela--se su lmente manipuladora dos indivíduos sobre os quais se realiza aintervenção, com um mínimo de coerção e de in midação. Tal condutapro ssional promove claramente uma mis cação ideológica e psicolo-gizante das causas estruturais e conjunturais de ordem social, polí ca e

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econômica envolvidas na produção da “questão social” em geral e da po-breza, em par cular.

Buscando superar as aporias disciplinares e tuteladoras, pedagógi-

cas e cuidadoras, protetoras e terapêu cas, puni vas e vigilantes, adap-ta vas e normalizadoras, tanto da Psicologia quanto da Assistência Social,é preciso avançar para a invenção de prá cas de produção de cidadaniae de qualidade de vida, de prá cas socais e é ca promotoras de subje -vidade singularizada. Numa pespec va singularizante e emancipadora, oatendimento já começa com uma oferta de escuta do sujeito que emergeno indivíduo que busca por atenção nos diversos serviços assistenciais.Sabe-se que a complexidade da realidade – que é tanto social quantosubje va – exige medidas complexas para seu eventual equacionamento.Para tanto, é fundamental buscar soluções programá cas e estruturais,que promovam efeitos cole vos, nos mais diversos âmbitos.

Discu r sobre polí cas públicas na universidade representa um esfor-ço por conhecer, estudar e analisar com rigor os temas da Assistência Social,da Saúde, da Educação, dos conselhos municipais, da administração públi-ca, dos movimentos sociais, na ó ca dos direitos humanos, da cidadania e,sobretudo, na perspec va da subje vidade. O psicólogo é um ator social eum pro ssional cuja atuação tem uma dimensão claramente polí ca – que

tanto pode promover a adaptação social, na direção de uma subje vida-de serializada e capitalís ca, quanto a transformação social, no sen do dasingularização subje va e desejante –, atuação certamente contextualizadaem marcos ins tucionais do campo da Assistência Social e da própria cate-goria pro ssional. Uma formação é ca, crí ca e instrumentalizada de novospro ssionais psi é um dos elementos signi ca vos para que possam, comsua atenção, escuta e atuação é ca, colaborar para que o SUAS promova,de modo mais efe vo, a cidadania para os seus usuários, trabalhando nadireção da superação das desigualdades e das injus ças sociais.

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O jus ceiro e o menino: educação ou criminalizaçãoda juventude?

Daniele Nunes Henrique Silva

Candida de Souza

O fotógrafo jornalís co Luiz Morier passava pela Estrada Grajaú--Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, quando percebeu uma blitz. Imediata-mente, desceu do carro e decidiu fotografar a ocorrência policial, masfoi surpreendido com a cena de seis negros amarrados pelo pescoço. Daídecorre uma sequência de fotos in tulada “Todos Negros” (1983) 1, a-grando seis moradores de uma comunidade sendo presos por um policialmilitar, remetendo-nos às referências iconográ cas do tempo da escravi-dão no Brasil.

1 Com essa sequência de imagens, Luiz Morier ganhou o Prêmio Esso de fotogra a e deu visi-bilidade internacional ao modo como o racismo e a pobreza eram vivenciados no Brasil.

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Silva, D. N. H. & Souza, C. (2015). O justceiro e o menino: educação ou criminalização da...

Em entrevista sobre as imagens, Luiz Morier relatou que o que maislhe incomodou diante da situação foi o sen mento de humilhação soma-do ao fato de que os negros estavam ves dos como operários e portavamcarteira de trabalho. Para ele, nada jus cava as cordas no pescoço. Alémdisso, as pessoas não representavam periculosidade e não precisavamestar con das 2.

Em 11 de fevereiro de 2014, um adolescente de 15 anos foi torturadoe preso nu no bairro Flamengo, no Rio de Janeiro. Depois de espancado,dois rapazes prenderam o menino no poste com uma trava de bicicleta e,após rarem as suas roupas, cortaram-lhe parte da orelha com uma faca.

Respeitadas as diferenças de contexto histórico, as fotogra as pro-duzidas nos revelam um importante aspecto da sociedade brasileira, a sa-ber: a sua herança escravocrata. Além disso, elas apontam para o limiteda barbárie; a tensão máxima em que as questões relacionadas ao Direitosão violadas ao extremo e por isso conseguem ganhar visibilidade social.

2 Mais tarde, as impressões do fotógrafo se con rmariam: “Todos Negros” eram trabalhadorese não possuíam envolvimento com a ilegalidade.

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A situação do menino preso ao poste foi no ciada pela imprensa,repercu ndo de forma ampla na sociedade. Debates televisivos sobre otema foram organizados; editoriais de jornais e revistas fomentaram adiscussão, dando ênfase ao problema. Um grupo concordava com a a tu-de dos rapazes, a rmando que a violência urbana é intolerável e tem im-posto aos membros da sociedade uma a tude individual, já que o Estadoé ine ciente. Outro grupo, por sua vez, defendia que a tudes isoladasnão resolvem o problema da criminalidade e que somente a polícia temautoridade para solucionar as questões relacionadas à violência, princi-palmente, quando ela envolve adolescentes.

O antagonismo presente nesses dois grupos se acirra e confrontaprojetos de sociedade que são divergentes, que atendem a interessesdis ntos. Para além de análises lineares e rápidas, essa divergência mere-ce ser analisada, a nosso ver, à luz de outra ó ca; a relação entre funçãosocial e regulação das relações sociais em um Estado de Direito. A nal,quem é quem nesse cenário social?

No entrever da segunda imagem, podemos deduzir a presença dedois personagens: o jus ceiro e o menino. Eles estão polarizados em umarelação que subjaz a foto. Vivem a situação e dão sen do a ela. Ou seja,não há jus ceiro sem menino e vice-versa. Por um lado, temos o primei-

ro, que corta a orelha do menino no poste, em razão de uma suposta ino-perância da polícia. Por outro, encontramos o menino, que é a síntese dofracasso das polí cas de proteção – da família, da assistência, da saúde e,principalmente, da educação –, que se torna bandido. Tanto no lugar do jus ceiro, como no lugar do menino, o que temos representado é a crisedo Estado na condução de suas polí cas. Mas não apenas isso, observa-mos também uma distorção das funções sociais dos protagonistas – umainversão do papel do herói e do vilão.

O justiceiro é hegemonicamente legitimado na sua ação e na suaresposta social, pois assume o papel de policial sem sê-lo. Tendo dis-torcida a sua função social e, comprometido com uma lógica vingativa,ele atua individualmente, em nome de um pretenso coletivo, para cor-rigir a falha da polícia. No clamor por justiça, ele contraditoriamenteage como criminoso – torna-se o violador. Além de não possuir o usolegítimo da força – que é próprio do Estado – ainda extrapola o limitedo que seria exclusivo ao Estado, ao se utilizar de mecanismos de tor-

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Silva, D. N. H. & Souza, C. (2015). O justceiro e o menino: educação ou criminalização da...

tura e não apenas de contenção. Apesar disso, sua violação é social-mente aceita.

O menino, por sua vez, também tem distorcida a sua função social;

ele furta e tra ca drogas como trabalho. Mata, rouba e violenta. Para con-seguir seus obje vos, u liza-se de meios ilícitos, violando as normas erompendo com o contrato social. Ele precisava estar brincando e estudan-do, mas não está nos bancos da escola. Ele deveria ter proteção integral eprioridade absoluta (Lei n. 8.069, 1990), mas está desprotegido pelo Esta-do. Contudo, sua violação é socialmente inaceitável.

Esse paradoxo do que é – ou não – aceito socialmente parece serdesconsiderado na análise sobre a situação que envolve o jus ceiro e omenino. Mas por que isso ocorre? Por que uma violação é legí ma (do jus ceiro) e a outra não (do menino)? Há um desequilíbrio moral e é co,na nossa maneira de entender, entre o lugar de fala ocupado pelos prota-gonistas. Parece-nos que, para a sociedade, o lugar do menino é crimina-lizável, enquanto o do jus ceiro é jus cável.

O nosso foco argumenta vo vai na direção de que existe um com-prome mento na relação entre o Estado, a sociedade civil e os modos deatuação social. No cerne desta questão situa-se a problemá ca da prote-ção x segurança; a nal, quem deve proteger quem do quê?

No choque desses elementos, o que está em jogo, afora a evidênciado fracasso das polí cas, é o projeto de cidadania que se disputa. Sabe-mos que a cidadania é o conjunto de direitos e deveres que cada sujeitopossui diante da sociedade e o seu exercício é a garan a de tais direitose deveres (Marshall, 2002). No conjunto desse debate, no que tange àsituação de crianças e adolescentes, a literatura tem privilegiado a discus-são de que ambos são sujeitos de direitos (Araújo & Lopes Oliveira, 2010;Monteiro & Castro, 2008; entre outros). Isso implica em uma responsabi-lidade do Estado, da família e da sociedade no dever de garan r que essacondição seja vivida plenamente. Ou seja, é o adulto que deve proteger acriança e o adolescente, pois eles se encontram em situação peculiar dedesenvolvimento (Nogueira, 2010).

Voltando ao tema do jus ceiro e do menino, queremos sugerir quea gravidade da situação encontrada no contexto que dá origem à foto,para além de algo que evidencia as desigualdades no acesso às polí cas

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públicas, também revela a crise do conceito de cidadania. Tal conceito,em nossa opinião, passa a ser inviabilizado cada vez que uma situaçãocomo essa se repete e se legi ma. Aqui, está ques onado o sen do daresponsabilidade social que cada pessoa assume no exercício de uma de-terminada função. Por exemplo, não é esperado que um médico delibe-radamente mate seu paciente; um professor não pode ensinar errado aoaluno etc. Em úl ma instância, o adulto tem que proteger a criança e oadolescente. Quando essas relações sociais são corrompidas, evidencia--se o cerne das contradições intrínsecas de nossa sociedade.

Nesse ínterim, as polí cas sociais assumem centralidade. São elasque regulam a interface entre o Estado e a sociedade, impactando asdinâmicas sociais. A educação, em especial, é o ponto angular, já queé por meio dela que a cidadania é erigida (Monteiro & Castro, 2008).Assim sendo, a crise do sistema educacional popular é, no limite, a de-sintegração da cidadania e isso está in mamente vinculado ao papel doEstado, conforme discu remos adiante. Nessa linha argumenta va, nãotem como analisar a educação desvinculada do contexto geral das polí -cas de proteção.

De acordo com Behring & Bosche (2010), a falta de inves men-to nas polí cas de proteção é decorrente do projeto polí co burguês. Isso

signi ca dizer que elas cumprem uma função contraditória de, ao mesmotempo, amenizar as consequências da questão social e atender aos inte-resses da classe dominante, contribuindo para a manutenção do sistemacapitalista. Isso faz do Estado (e suas polí cas) um agente legi madorque mais se aproxima do papel assumido pelo jus ceiro, distanciando-seda sua responsabilidade na vida do menino.

Nosso argumento vai na direção de que, na medida em que o Estadose desresponsabiliza das polí cas de proteção social – e o menino re ete

isso –, ele assume a sua face mais puni va. Tal problemá ca aparece deforma contundente no debate acerca da redução da maioridade penal.Neste caso, o Estado coloca no sujeito – adolescente ou criança – a culpapor um crime que quem cometeu, primeiro, foi o próprio Estado. O Estadodeixa de ser providência e passa a ser penitência, conforme adverte Wa-cquant (2003). Quando isso ocorre, temos o que o pesquisador denomi-na por Estado penal. Para ele, o pouco inves mento nas polí cas sociaisar cula-se a um aumento no inves mento puni vista. O cárcere passa a

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Silva, D. N. H. & Souza, C. (2015). O justceiro e o menino: educação ou criminalização da...

ser o local privilegiado para conter as atribulações e desiquilíbrios quedecorrem do desmantelamento do Estado social.

Na sociedade capitalista atual, é importante observar que a

hiperin ação carcerária é caracterizada pela prisão de pessoas que co-meteram pequenos delitos e que não representam a grande estrutura dacriminalidade – como: trá co internacional de drogas, armas, pessoas eas relações decorrentes das organizações criminosas internacionais. Osencarcerados, também conhecidos como delinquentes, são, em sua maio-ria, jovens negros e pobres da classe trabalhadora (Fórum Brasileiro deSegurança Pública, 2014). Ou seja, não são os jus ceiros, mas os meninosentrevistos na foto. Podemos dizer que estamos diante da criminalizaçãoda juventude pobre e negra, como tem sido discu do por vários autores(Arantes, 2012; Coimbra, 2005; Cruz, 2010, dentre outros). Essa percep-ção nos convoca à problema zação do conceito de juventude e como eletem sido tratado no campo da Psicologia Social em interface com a Psico-logia do Desenvolvimento (Souza, 2014). Nessa linha, indagamos: quem éo menino da foto?

A criminalização da juventude: a jus ça às avessas

Nas úl mas décadas, a juventude brasileira tem sido alvo de diver-sos estudos e inves gações. No âmbito da academia, grupos de pesquisacom diferentes referenciais teóricos e em dis ntas áreas do conhecimentose dedicam a compreender o problema da juventude pobre (Abramo &Branco, 2008; Beozzo & Franco, 2013; Castro, Aquino & Andrade, 2009;Novaes & Ribeiro, 2010). Na esfera pública, trata-se de um segmento po-pulacional que tem ganhado cada vez mais atenção , por meio de marcosnorma vos e polí cas sociais especí cas. Até mesmo nas polí cas públi-cas estruturais – tais como: educação, saúde e emprego – o público jovem

gura em lugar de destaque, ao menos em âmbito norma vo (Organiza-ção Internacional do Trabalho, 2009; Novaes, 2007).

A construção social da juventude segue uma trajetória de ambigui-dades ao longo da história. Forjada enquanto um período da vida no qualos sujeitos estão em fase de transição e ocupam um lugar de vir a ser , a juventude representa, ao mesmo tempo, o ideário de um futuro melhor

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Psicologia social e os atuais desafos é co-polí cos no Brasil

e, contraditoriamente, é o público mais impactado com os problemas dopresente (Souza & Paiva, 2012).

Vários autores discutem essa ambiguidade presente na visão hege-

mônica sobre a juventude (Fraga, 2008; Iulianelli, 2003; Novaes, 2007)que, a nosso ver, está relacionada à desigualdade social; não é a juventu-de pobre que é vista como um agente de transformação social, tampoucoé creditada a ela a esperança de perpetuação da é ca e da moral. A estacabe a pecha de protagonista da violência que assola a América La nadesde a década de 1980, o alijamento do mercado de trabalho, a exclusãodo acesso a níveis mais elevados de ensino e a perpetuação perversa deum não lugar de cidadania. Assim, a expecta va depositada nesses jovensnão passa de uma abstração que não possui bases concretas na realidadee tem servido para reproduzir valores que não são aqueles compar lha-dos pelos jovens das comunidades periféricas do nosso país. A respeitodesse aspecto, Souza & Paiva (2012) a rmam que:

Essa ambiguidade se torna mais evidente na juventude, especialmente aose analisar que a alta incidência de violências que perpassa esse público omarginaliza, enquanto que, ao mesmo tempo, a sociedade capitalista, aoforjá-lo enquanto modelo ideal, o enaltece. (p. 355)

Diante dessas contradições, perguntamo-nos: como creditar na con-ta dos jovens o recrudescimento da criminalidade e, simultaneamente,difundir a ideia de que a juventude é o futuro da nação?

O con ito que subjaz tal indagação está re e do e refratado no dis-curso hegemônico da sociedade de classes. Nela, as inicia vas estataisnão superam as consequências da questão social e é preciso atribuir a res-ponsabilidade a alguém pela sua existência (Ne o, 2009). Cria-se, então,uma cultura de culpabilização do indivíduo que inverte a lógica do cicloda violência: os jovens, que são as principais ví mas da violência urbana(Waisel sz, 2015), transformam-se nos principais algozes, como ocorrecom o menino da foto.

Essa contradição aponta para uma problemá ca inerente ao capita-lismo periférico: existe um fosso abissal entre a realidade dos jovens bra-sileiros pobres e ricos. Isso se re ete, em termos prá cos, nas polí casvoltadas para aquele público, de modo que, por mais que exista priorida-

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Silva, D. N. H. & Souza, C. (2015). O justceiro e o menino: educação ou criminalização da...

de para esse segmento, não se consegue atender às reais necessidadesdos sujeitos que precisam de polí cas de proteção. Como abordamos an-teriormente, o resultado disso é a ar culação entre o fortalecimento doEstado penal e a construção de polí cas sociais insu cientes (Wacquant,1999).

Estado, Violência (urbana) e Juventude

Uma das principais problemá cas dos centros urbanos se refere àcriminalidade violenta. De fato, o processo de desenvolvimento do capitale da concentração de riqueza coexistem com o fenômeno da violênciaurbana.

Nessa linha, a gentri cação, a urbanização caó ca e a priva zaçãodos espaços públicos são elementos que indicam uma reorganização dacivilização urbana, de tal maneira que “a informalização da urbanizaçãoé uma resposta das populações carentes à globalização e às polí cas desegurança, na medida dos seus meios” (Pedrazzini, 2006, p. 23).

Os centros urbanos consolidam o seu desenvolvimento de modo asegregar os setores da sociedade de acordo com o seu nível econômico.

Essa segregação aparece de forma mais ou menos visível em diferentescentros urbanos, dependendo da forma de ocupação. Para Pedrazzini(2006), a globalização econômica impactou gravemente na ocupação dosterritórios urbanos, provocando o rompimento de uma coesão social ecriando terrenos propícios para o recrudescimento da pobreza e da reso-lução de con itos por meio da violência.

Assim, nem sempre o progresso na economia de uma determina-da cidade signi ca a redução das problemá cas sociais e a melhoria devida da população como um todo. Nos espaços com menor concentraçãode riqueza, o impacto do desenvolvimento econômico tem sido pouco ouquase nenhum. Isso quer dizer que o desenvolvimento econômico de umaregião não necessariamente está relacionado ao desenvolvimento socialda população (Souza, 2012). Esse abismo existente entre as duas formasde desenvolvimento faz emergir e acirrar fenômenos sociais indesejáveis,cuja compreensão ultrapassa uma explicação mecanicista, pois eles estãono âmago das injus ças produzidas no sistema capitalista.

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Psicologia social e os atuais desafos é co-polí cos no Brasil

Wacquant (2008), ao caracterizar o que seriam os guetos – nos pa-íses de primeiro mundo – nos dá subsídios para compará-los às comuni-dades periféricas brasileiras, quanto à sua organização interna. Tanto lácomo cá, observamos uma forte redução da presença do Estado comopromotor e assegurador de direitos. Isso provoca a criação de outras for-mas de regulação do contrato social – a estruturação de um poder pa-ralelo que tem na foto do menino, por exemplo, sua síntese dramá ca.Aqui, então, o Estado Penal é fortalecido, uma vez que ele precisa con-ter a insurreição do poder nessas lógicas paralelas. Contraditoriamente,o Estado passa a atuar para o recrudescimento da violência não só poromissão na resolução de con itos, mas também por ação.

Dessa forma, é importante não nos limitarmos a discu r somenteacerca da relação da violência em interface com a juventude como sefosse um processo de segregação per si . É mister entender como esse fe-nômeno tem contribuído para a reorganização da própria violência con-temporânea e em que medida o Estado atua em seu recrudescimento.

Pensar sobre a temá ca da juventude nesses contextos tambémsigni ca compreendê-la a par r dos sen dos que atravessam as relaçõessociais permeadas pela violência. Segundo Ribeiro & Lourenço (2003), aatuação do Estado nesse cenário, por vezes, exerce uma função legi ma-dora da violência, devido à falta de garan a de direitos sociais básicos,aliada às prá cas coerci vas.

Nas comunidades periféricas, a atuação do Estado, enquanto agentecatalisador da violência, se traduz de diversas formas:

• Na gura da polícia, que, em vez de estabelecer uma relação decaráter preven vo nas comunidades, opta pela coerção como princi-pal estratégia de combate à criminalidade;

• Na manutenção de grupos de extermínio, que contam com agen-tes públicos e civis;

• Na atenção sele va de abordagem aos jovens pobres e negros emterritórios urbanos de classe média-alta;

• No corpora vismo ins tucional, que faz vista grossa para a inves-gação do alto índice de autos de resistência seguida de morte; e

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• Nas prá cas de corrupção policial, que mantêm inabalada a es-trutura organizada do crime por meio de acordos em troca de bene-

cios, muitas vezes, pecuniários.

A atuação do Estado neste processo não se dá apenas no plano deexecução da polí ca pública de segurança. Também no âmbito legisla vo,encontramos recorrentes inicia vas que não são somente restri vas dedireitos, mas também promotoras, de forma direta ou indireta, do recru-descimento da violência. No caso especí co dos jovens, que nos interes-sam, o maior exemplo disso são as propostas de aumento da punição parao come mento de delitos, que se traduzem em proposições legisla vas deredução da maioridade penal e de aumento do tempo de encarceramentode adolescentes.

Ocorre que, na arena de disputa ins tucional, setores especí cos doCongresso Nacional – liderados por parlamentares com ideais conservado-res e com interesses econômicos no sistema penitenciário – seguidamen-te apresentam propostas para a redução da idade mínima para ingressono sistema prisional e, por consequência, redução do número de adoles-centes que poderiam ser acompanhados pelo Sistema Socioeduca vo.Atendendo a um clamor social baseado na desinformação, na lógica davingança puni vista e na personi cação da violência existem, atualmente,

mais de cinquenta inicia vas de projetos de lei que tramitam no CongressoNacional sobre essa pauta. Tais proposições contam com forte apoio dosmeios de comunicação hegemônicos, sinte zando a gura do jus ceiro.

Para entender a real complexidade dessa questão, é importantedestacar os elementos centrais que estão colocados na polí ca de aten-dimento aos adolescentes que cometeram atos infracionais, bem como oque está por trás das propostas de maior punição para os referidos jovens.Atualmente, existem cerca de 23 mil adolescentes cumprindo medida deinternação (medida priva va de liberdade) em um sistema de responsa-bilização diferenciado dos adultos: o sistema socioeduca vo. Trata-se deuma polí ca nacional que se propõe a realizar um atendimento não so-mente baseado na jus ça retribu va, mas também no caráter pedagógi-co, possibilitando a revisão de projetos de vida. Essa dupla face do sistemasocioeduca vo (sancionatória e pedagógica) é uma conquista histórica,decorrente de um processo de intensa mobilização social, desde o perío-do de redemocra zação do Brasil (Arantes, 2009).

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O art. 227 da Cons tuição Federal de 1988 diz que:É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao ado-lescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação,à educação, ao lazer, à pro ssionalização, à cultura, à dignidade, ao respei-to, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los asalvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência,crueldade e opressão. ( Cons tuição Federal, 1988)

A regulamentação desse ar go, decorrente de incidência dos movi-mentos sociais garan stas, ocasionou a promulgação do Estatuto da Crian-ça e do Adolescente (ECA - Lei n. 8.069/1990). De acordo com essa legis-lação, devido às caracterís cas peculiares do desenvolvimento, o Estadodeve reservar às crianças e aos adolescentes uma atenção diferenciada noâmbito da garan a de direitos. Seguindo a doutrina da proteção integral,tal legislação versa sobre direitos fundamentais, acesso a produtos e ser-viços, medidas de proteção, atos infracionais come dos por adolescentes,acesso à jus ça e criação de ins tuições especí cas a esse público.

Acerca do come mento de atos infracionais, foi ins tuído, a par rdo ECA, o Sistema Nacional de Atendimento Socioeduca vo (SINASE), re-gulamentado pela Lei nº 12.594/2012, que preconiza a execução de medi-das socioeduca vas (em meio aberto e restri vas de liberdade) a adoles-centes com até 18 anos incompletos que cometeram algum po de delito.

Assim, a esses adolescentes cabe um regime diferenciado de acom-panhamento, que visa não só segregar o sujeito da sociedade, mas ressig-ni car os limites da legalidade na sua trajetória. Essa seria a resposta ade-quada que o Estado deveria dar ao menino que foi preso ao poste, caso o jus ceiro não vesse agido primeiro: apuração judicial do suposto ato in-fracional come do pelo menino, aplicação de uma medida socioeduca vae acompanhamento jurídico, psicossocial e pedagógico do cumprimento

dessa medida. Entretanto, vale salientar que, mesmo que o aparato esta-tal houvesse chegado antes do jus ceiro, isso não seria garan a de queseus direitos não seriam violados.

Violações ins tucionais como superlotação, tortura, carência depro ssionais, de infraestrutura e de acompanhamento pedagógico aindasão desa os a serem enfrentados na efe vação do SINASE (Silveira, 2014).Além disso, é fundamental uma revisão crí ca sobre o projeto pedagógico

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Silva, D. N. H. & Souza, C. (2015). O justceiro e o menino: educação ou criminalização da...

que estrutura a educação nessa polí ca. Não se trata de uma escola regu-lar apenas, mas de um espaço educacional que precisa desenvolver estra-tégias pedagógicas que permitam a produção de novos sen dos sobre oexercício da cidadania. Não se trata também de uma proposta de ressocia-lização, a nal a condição de privação de liberdade não aliena o sujeito dasua condição social, pelo contrário, pode rea rmar seu lugar social: pobre,preto e periférico – inclusão perversa (Sawaia, 2014).

O desa o de diferenciar o sistema socioeduca vo do sistema carce-rário reside exatamente em compreender a sua função úl ma, na qual oprocesso de responsabilização está, por princípio, atrelado à construçãode alterna vas que passem pela educação. Nesse aspecto, quando se de-fende a ex nção dessa polí ca (materializada nas propostas de reduçãoda idade penal, por exemplo), está se inviabilizando um projeto de juven-tude, comprometendo o desenvolvimento social e econômico do país,acirrando desigualdades e concorrendo para a manutenção de privilégiose recrudescimento da violência.

Estado, Educação e Juventude

Para Monteiro e Castro (2008): “A Educação é o que primeiro se con- gura enquanto direito social ... pois tem sido considerada historicamentecomo um pré-requisito para existência dos demais direitos” (p. 277). Issoquer dizer que o Direito depende da educação para ser compreendido emsua plenitude. Uma sociedade que negligencia a educação de seus mem-bros assume o risco do não desenvolvimento social.

Essa constatação é óbvia. Todos os representantes da sociedadeapregoam a importância da educação. A escola virou a resposta prontapara os problemas sociais. Todavia, temos um sistema educacional falido

que perpetua as contradições do sistema capitalista no interior da sala deaula (Mendonça & Silva, 2015).

De fato, no âmbito dos princípios, há uma predominância do dis-curso da educação enquanto potencial promotora da emancipação hu-mana. Mas, de acordo com Tonet (2013), o modelo de educação capi-talista está alinhado com o desenvolvimento da reprodução do capital.Nesse sen do, a preparação para o trabalho se cons tui como o seu

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conhecimento (Padilha & Braga, 2012). Por outro lado, cons tui-se en-quanto um local de mobilidade das trajetórias subje vas e, por conseguin-te, um locus privilegiado na transformação dos sujeitos.

Nessa linha, a educação talvez seja a única ins tuição burguesa compotencial de provocar ssuras no próprio sistema, visto que o acesso aoconhecimento pode ser emancipador, produzindo transformações sociais,através da “socialização do conhecimento cien co, ar s co e losó coem suas formas mais desenvolvidas” (Duarte, 2013, p. 20). Concluímos,assim, que é nesta esfera, dentro do projeto polí co burguês, que a edu-cação se con gura como uma arena de disputa.

O debate suscitado até aqui nos redireciona ao problema dos ado-lescentes pobres, ao papel da escola e à questão que envolve a reduçãoda maioridade penal. Se há algum lugar em que o Estado pode fazer di-ferença na vida de tais pessoas, esse lugar é a escola; seja ela como polí-

ca estrutural e/ou vinculada ao sistema socioeduca vo. O que diferen-cia, por exemplo, uma prisão de uma unidade de internação é a propostapedagógica enquanto parte cons tu va da responsabilização. Diminuir amaioridade penal é, no limite, optar por restringir ainda mais o acessoàs polí cas do Estado que, para essa população, como podemos ver atéaqui, já são bem escassas e de cientes. No discurso a favor da redução da

maioridade penal, presenciamos uma face da violência do Estado contraa população mais pobre.

Considerações nais

Para compreender essa totalidade social e suas contradições, deci-dimos contextualizar o debate da violência e sua intrínseca relação com aestrutura do sistema capitalista, problema zando as tensões entre juven-

tude, criminalização e violência, a par r de uma perspec va histórica. Issonos trouxe a re exão sobre a atuação do Estado como um dos principaisresponsáveis pela manutenção da violência e criminalização dos jovens,na medida em que sua omissão ou ação reforçam interesses que são legi-

madores da ordem social excludente perversa.

O menino preso no poste e os trabalhadores amarrados pelo pes-coço escancaram o signi cado perverso de ser negro e pobre no Brasil.

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Silva, D. N. H. & Souza, C. (2015). O justceiro e o menino: educação ou criminalização da...

As imagens aqui apresentadas provocam indignação e serviram de pontode par da para re e rmos sobre o modo como o Estado, mediante aspolí cas sociais e da segurança pública, tem atravessado a cons tuiçãodessas pessoas, comprometendo o exercício da cidadania e implicandoem distorções nas funções sociais. Tais elementos colocam em crise o pro- jeto societário.

Para buscar alterna vas a essa crise, propusemo-nos a repensar opapel da educação para além de uma polí ca social. Advogamos, portan-to, a favor de um projeto educacional coadunado com a possibilidade detransformações subje vas; de emancipação humana por meio do conhe-cimento democra zado, levando em consideração a sociedade de classe.

Concordamos com Tonet (2014) que:

Não basta, à classe trabalhadora, ter acesso aos conteúdos tradicionais. Aclasse trabalhadora tem necessidade de um conhecimento de caráter re-volucionário, isto é, de um conhecimento que lhe permita compreendero conjunto do processo histórico de tal modo que ela se veja como sujeitocapaz de transformar radicalmente o mundo. Portanto, de um conhecimen-to que esteja, pela sua própria con guração, in mamente ar culado com atransformação radical do mundo. (p. 6)

Desse modo, não é su ciente que a classe trabalhadora tenha con-tato com o conhecimento. Mais do que isso, é necessário que tal conheci-mento seja construído de forma a permi r que ela se reconheça como ca-paz de transformar a realidade. Isso exige que se coloque em pauta todoo problema que envolve o sistema educacional popular (incluindo o siste-ma socioeduca vo), ques onando o projeto pedagógico que sustenta asprá cas ins tucionais voltadas para a realidade da juventude periférica ebuscando alterna vas para o projeto de sociedade vigente.

Para tanto, é preciso inves r em pesquisas que consolidem alterna-vas teóricas e metodológicas para o enfrentamento das questões levan-tadas até aqui. Para Mezsáros (2008):

O papel da educação é soberano, tanto para a elaboração de estratégiasapropriadas e adequadas para mudar as condições obje vas de reprodução,como para a automudança consciente dos indivíduos chamados a concre -zar a criação de uma ordem social metabólica radicalmente diferente. (p. 65)

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Seguindo esse argumento de que o papel da educação é soberano,concluímos o texto respondendo à pergunta do tulo de que não há comopensar sobre alterna vas de projeto de sociedade e nem mesmo a cons-trução de polí cas sociais para a juventude periférica sem considerar aeducação como caminho principal.

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Psicologia social e os atuais desafos é co-polí cos no Brasil

Extermínio de jovens e redução da maioridade penal

Esther Maria de Magalhães Arantes

Considerações iniciais

Pensamos iniciar este texto por uma breve retomada histórica dotema da infância, para melhor situarmos os argumentos contrários à re-dução da maioridade penal e suas relações com o extermínio de jovensno Brasil.

O nosso propósito, com estas breves considerações históricas, é ofe-recer algumas indicações dos caminhos pelos quais chegamos até estemomento: porque estamos novamente discu ndo propostas de reduçãoda maioridade penal e com quais implicações.

Assim, e correndo o risco de sermos um tanto repe vos com res-peito ao que já dissemos em textos anteriores, começamos por a rmarque:

Durante os primeiros séculos da colonização portuguesa, a prá ca em rela-ção à criança indígena era a de separá-la de sua família para moldá-la aoscostumes ditos civilizados e cristãos, e em relação à criança negra, era ade sua incorporação como força de trabalho escrava, tão logo a ngisse aidade dos sete anos. Quanto à assistência, limitava-se ao recolhimento deexpostos e órfãos em ins tuições carita vas. Não exis a, àquela época, “a”criança, pensada como categoria genérica, em relação à qual se pudessededuzir algum direito universal, pois não exis a o pressuposto da igualdadeentre as pessoas, sendo a sociedade colonial construída justamente na re-lação desigual senhor e escravo. (Arantes, 2008, p. 1) 1

A própria palavra criança não era comum ou frequente nos docu-mentos do Brasil Colônia. O que exis am eram categorias diferenciadas

1 Arantes, Esther Maria de Magalhães. A reforma das prisões, a Lei do Ventre Livre e a emer-gência no Brasil da categoria de “menor abandonado”. Acessível na página no CFP: h p://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2008/12/A_reforma_das_prisxes.pdf

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Arantes, E. M. M. (2015). Extermínio de jovens e redução da maioridade penal

de crianças, como, por exemplo: o menino da “terra”, o menino do “rei-no”, o “negrinho” ou, então, o “cabrinha”, o “pardinho”, o “crioulinho”. E,

nalmente, o “ lho ou lha de família”, que era, talvez, o modelo ideali-zado de criança: “Filho legí mo de legí mo matrimônio cristão”, confor-me documentos da época.

A escravização da criança africana, por si só, não colocava problemaao ordenamento social, uma vez que ela se encontrava sob a tutela dosenhor de escravos. O que causava problemas era a existência de criançasnão tuteladas, como os “expostos” e os “órfãos” - categorias da an gacaridade cristã.

Os “ lhos legí mos de legí mo matrimônio cristão” não colocavam pro-blemas à ordem social, pois que, justamente, encontravam-se sob o con-trole do “pai de família”, que nha poderes quase ilimitados. Da mesmaforma, os meninos da “terra”, con dos nos colégios jesuítas e os “negri-nhos”, propriedades do senhor, encontravam-se controlados socialmenteatravés destas relações de posse e assujeitamento. Os “expostos” e os “ór-fãos”, embora sem o suporte familiar, encontravam nos estabelecimentosman dos pela caridade, como as Casas da Roda e os Recolhimentos dasÓrfãs, o seu guardião legal. (Arantes, 2008, p. 1)

Os “expostos”, como sabemos, são os recém-nascidos que não fo-ram acolhidos no seio das famílias e sim deixados nas portas das igrejas,conventos, residências ou mesmo nas ruas, praças, beiradas de rios ou naspraias, ou mesmo nas matas, e que eram encontrados, em sua maioria,mortos ou muito adoecidos, sem que vessem recebido o ba smo – o queera mo vo de muito escândalo. Para tais recém-nascidos foram reserva-das, em consonância com o modelo da assistência carita va portuguesa,as Casas dos Expostos ou Casas da Roda dos Expostos, que veram iníciono Brasil a par r do século XVIII2. Estas Casas encarregavam-se, primeira-

mente, de ba zar os expostos para salvar-lhes a alma e, posteriormente,enviá-los a uma ama de leite para alimentá-los, uma vez que, naquele mo-mento histórico, o leite materno ou da ama de leite era o único alimentocapaz de salvar a vida do recém-nascido.

2 No século XVIII, três Rodas dos Expostos foram criadas no Brasil: a da Bahia, em 1726, a doRio de Janeiro, em 1938, e a de Recife, em 1789. Outras Rodas foram criadas no Brasil noséculo XIX.

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Para as crianças órfãs foram criados, sobretudo para as meninas,os Recolhimentos das Órfãs3, uma vez que a proteção da menina se faziamais urgente devido ao receio de que ela viesse a ser desvirginada, per-dendo a honra e a possibilidade de uma vida digna e cristã.

Seguindo o modelo português, tal assistência carita va era prestadapelas irmandades leigas, sendo uma das mais importantes a Irmandadeda Misericórdia, que teve aos seus cuidados não só órfãos e expostos,mas também os assim denominados insanos e desvalidos, dentre outrosindigentes e necessitados.

Com pequenas variações de um lugar para outro, podemos dizer, demaneira genérica, que foi esta assistência carita va que teve lugar duran-te todo o período colonial e que só começou a se modi car no Imp ério,

principalmente a par r do reinado de Pedro II. No entanto, o Império - quese queria moderno e cujo monarca era considerado pessoa culta, amigadas artes e das ciências -, convivia com uma grande contradição: a perma-nência da escravidão. Assim, ao lado de inúmeras propostas de reformasdas prisões, para transformá-las em casas de correção e não con nuassemsendo meros cárceres fétidos e imundos , man nham-se os terríveis Cala-bouços, que eram as prisões para os escravos onde, não raro, lhes eramadministradas 50, 100 e até mesmo 400 chibatadas a mando de seus se-nhores.

As condições sanitárias do velho Calabouço eram horrorosas, da mesma for-ma que o calor e a feden na nos compar mentos sem ven lação e a escassacomida que se supunha que os carcereiros fornecessem com as taxas cobra-das dos proprietários. Um dos problemas recorrentes no Calabouço era que,quando as taxas devidas pelo sustento do escravo ou pela correção que lhefora aplicada ultrapassavam o que o dono achava que o escravo valia, elesimplesmente abandonava sua propriedade humana. Os procedimentos exi-giam que os escravos assim deixados em mãos do E stado fossem vendidosem leilão para o governo recuperar o que pudesse dos custos administra -vos da ins tuição, para se abrir espaço no cárcere e para fazer os escravosretornarem às mãos de alguém que pudesse rar proveito. (Holloway, 2009)

3 O Recolhimento das Órfãs da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro foi inaugurado em15 de setembro de 1740, funcionando em estabelecimento anexo ao Hospital Geral da SantaCasa da Misericórdia até o ano de 1842. Por decreto de 14 de março de 1852, foi criado porD. Pedro II o Recolhimento de Santa Thereza, des nado a meninas desvalidas, cando tam-bém sob a administração da Santa Casa do Rio de Janeiro. Em 1866, os dois Recolhimentospassaram a funcionar no prédio des nado ao Recolhimento das Desvalidas de Santa Thereza.

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Arantes, E. M. M. (2015). Extermínio de jovens e redução da maioridade penal

Devemos lembrar que a Abolição da Escravatura (1988) deu-se ape-nas um ano antes da Proclamação da República (1889). Ou seja, a escra-vidão legal, formal, exis u no Brasil durante quase 400 anos. A superaçãodo passado escravagista ainda não se deu inteiramente. Daí a importânciade conhecê-lo, iden car os nós que ainda nos atam a este passado e quenos impedem de dar passos adiante e criar outros possíveis.

Especi camente no que tange às crianças, podemos dizer que omodelo tutelar até então vigente começa a se fraturar a par r da Lei doVentre Livre (1871), dada a contradição de se ter uma criança nascida livrecuja mãe permanecesse escrava, não tendo autonomia para alimentar ecuidar do lho - situação que poderia não mais interessar ao senhor, jáque a criança não era mais sua propriedade.

A Lei de 1871 produziu o ingênuo para a sociedade brasileira. Essa novagura social era toda a criança nascida do ventre escravo a par r de 28

de setembro de 1871. Essa lei facultava ao senhor duas possibilidades: aprimeira era car com o menor até ele completar 8 anos e então entregá-loao Estado em troca de uma indenização (menos frequente) ou car comele até a idade de 21 anos – maioridade legal no período – usufruindo deseus serviços como forma de pagamento pelas despesas com a criação dele(mais frequente). (Cardozo, 2012, p. 89)

Apresenta-se, então, do ponto de vista jurídico e assistencial, umasituação diferente das existentes anteriormente, pois ainda não está de-

nido qual será o lugar da criança livre e pobre nesta República que seinicia. Como tal criança não pode ser considerada órfã ou exposta, nãopode ser enviada aos estabelecimentos de assistência carita va existen-tes à época. Também não pode ser considerada criminosa, visto que nãocometeu delito algum, situação que permi ria ao Estado enviá-la para aprisão. Tampouco é escrava, já não tendo um dono.

Até o nal do Império, Igreja Católica e Estado seguiram lado a lado na ad-ministração da nação – o chamado Padroado Régio. Como religião o cial, aIgreja Católica deveria desempenhar funções administra vas tais como tero controle sobre os registros de nascimentos, casamentos e óbitos, tanto dapopulação livre quanto da escrava. Mas, com a Lei Rio Branco, essa ins tui-ção foi obrigada a possuir um quarto livro para registrar os nascimentos deingênuos, pois esses não se enquadravam nem na categoria livre e nem nade escravo. (Cardozo, 2012, p. 90)

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Tem início aí uma preocupação: o que fazer com essas crianças po-bres e livres cujos pais não possuem o status e a condição de “pais defamília”, crianças que começam a povoar as ruas das cidades brincando,pedindo esmolas, trabalhando como carregadores de verduras e frutasou vendedores de jornais, ou eventualmente pra cando algum pequenofurto?

Assim, insistentemente se pergunta: como de nir tais crianças? Paraonde encaminhá-las? Como prestar-lhes alguma assistência? Como o po-der público deve proceder em relação a elas?

A par r da iden cação das referidas crianças como sendo “meno-res abandonados moral e material” - signi cando isto dizer que são “ór-

fãos de pais vivos” e “futuros criminosos” -, tal situação jus cará a des -tuição do pátrio poder e o envio desses “menores” aos estabelecimentoscorrecionais e de reforma, aos Patronatos, às O cinas da Marinha e às ca-sas de família, tendo o trabalho como pedagogia preven va e correcional.

Pelo exposto, consideramos a Assistência Pública ao Menor, gestadaneste nal do século XIX, com vigência ao longo de quase todo o séculoXX, como um grande disposi vo de sequestro da infância pobre ou de suareescravização.

Por quais caminhos e jus ca vas foi isto possível? Permitam-nosuma longa citação:

O que se constata, ao longo de todo o Império, é uma preocupação constan-te com as mudanças na legislação penal e com a reforma do sistema carce-rário que deveria advir como consequência dessas mudanças 4, uma vez quea penalidade mais comum passa a ser a privação da liberdade e não mais aspenas de morte, degredo e galé. Ao mesmo tempo em que se elogia o pro-gresso civilizatório que as novas leis representam, equiparando-se o Brasilaos países do primeiro mundo, tais leis são constantemente comba das,na medida em que se acredita que elas atrapalham o trabalho da polícia,servindo mais para proteger os malfeitores que os cidadãos honrados, alémde que, com as prisões superlotadas, pela primeira vez depara-se o Estadocom uma massa carcerária a ser administrada, passando as prisões a seremde nidas como “escolas do crime”.

4 Código Criminal (1830) e Código do Processo (1832), antecedidos pela Constituição doImpério (1924).

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Arantes, E. M. M. (2015). Extermínio de jovens e redução da maioridade penal

É neste contexto - em que se discute a situação das prisões e a criação deum sistema penitenciário em virtude das novas leis penais e do processo,onde o acusado adquire o direito de se defender e impetrar recursos, e apena deixa de ter o caráter de vingança e adquire a função de regeneração,

e apenas após as leis abolicionistas, quando cresce o número de pessoaspobres vivendo e trabalhando nas ruas das grandes cidades - que a justificativa para a apreensão da criança pobre será formulada, definindo-acomo “abandonada”, passando a ser voz comum a ideia de que deveriamser encaminhadas às “ins tuições preven vas”. (Arantes, 2008, p. 3)

A di culdade de se administrar a questão prisional passa a ser pen-sada, retroa vamente, como decorrendo diretamente do “problema domenor”:

o que servirá como jus ca va “cien ca” para que os “menores crimino-sos”, mas não sujeitos à lei penal por não terem agido com discernimento,e os menores que nenhum crime haviam come do, mas eram considerados“mendigos”, “ociosos” e “vadios”, pudessem ser encaminhados às escolascorrecionais e de reforma mediante a suspensão ou des tuição do pátriopoder, ou a pedido dos próprios pais, por serem os lhos considerados “de-sobedientes” ou “incorrigíveis”, ou a pedido da mãe viúva, por se sen rincapaz de sustentar os lhos ou de proteger a honra da lha. (Arantes,2008, p. 3)

Ao serem recolhidos nas ruas pela polícia e levados à presença doJuiz (inicialmente ao Juiz de Órfãos e posteriormente ao Juiz de Menores)para receberem “des no”, a grande maioria destas crianças e adolescen-tes foi encaminhada ao trabalho ou para o aprendizado do trabalho.

A República, ao invés de redirecionar esta discussão e reverter esteprocesso, o aprofundou, buscando ins tuir uma legislação especí ca paraos ditos menores. É quando começa a ser gestada uma Assistência Públicaao Menor, assistência pensada como braço da Jus ça, composta por umJuizado de Menores, um Código de Menores e um Juiz de Menores.

Como mencionado acima, consideramos este aparato tutelar comoum grande sequestro da infância pobre. Isto porque, no momento emque se abole a escravidão e se ins tui o chamado trabalho livre, acertadomediante contrato entre trabalhadores e patrões, a criança pobre recebeuma sentença do juiz que a obriga ao trabalho - sentença da qual não

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Psicologia social e os atuais desafos é co-polí cos no Brasil

pode escapar e terá que cumprir como se fosse uma medida de assistên-cia e em nome de sua proteção.

Tal aparato tutelar acabou por criar ou reforçar a divisão da infância

brasileira entre “criança” e “menor”, divisão só ques onada do ponto devista da legislação com a Cons tuição de 1988 e o Estatuto da Criança edo Adolescente (1990), mas que atualmente corre o risco de ser descons-truída pelos enormes retrocessos que estamos presenciando e pelos fre-quentes ataques às lutas por direitos humanos, desquali cando-as comosendo “proteção de bandidos”.

Assim, decorridos 25 anos da aprovação do Estatuto da Criança e doAdolescente (Lei 8.069/1990), forçoso reconhecer que as mudanças atéagora ob das não correspondem à esperança dos movimentos que luta-ram por sua aprovação. Em nome do equilíbrio scal e do cumprimento demetas pactuadas com organismos internacionais, logo no início da décadade 1990, o Brasil diminuiu consideravelmente os gastos com as polí cassociais básicas, inviabilizando, na prá ca, o cumprimento da legislação. Acrise que se instalou, a par r daí, combinou desemprego, desesperança eviolência, em que os jovens pobres do sexo masculino foram e con nuamsendo as maiores ví mas, sendo que um alto percentual de mortes nes-ta faixa etária acontece por mo vação externa: acidentes e assassinatos

(Waisel s, 2015).Como mostram as diversas edições do Mapa da Violência, no perío-

do compreendido entre os anos de 1980 e 2012, o crescimento popula-cional se deu em torno de 61%. No entanto, as mortes por arma de fogocresceram 387%, sendo que, entre os jovens de 15 a 29 anos, esse percen-tual foi superior a 460%. Ou seja, um verdadeiro extermínio da juventudepobre, em sua maioria negra e parda.

Embora persis ndo os altos índices de mortalidade por armas defogo entre adolescentes e jovens, podemos dizer, no entanto, que vemosalgumas conquistas e avanços na área das polí cas voltadas principalmen-te para as crianças pequenas no período 2003-2010. Houve diminuição damortalidade materno-infan l e cresceu de maneira signi ca va o acessoà educação básica.

Constatam-se, também, ao longo desses anos, esforços governa-mentais e não governamentais feitos através dos Conselhos de Direitos

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Arantes, E. M. M. (2015). Extermínio de jovens e redução da maioridade penal

e dos diferentes Fóruns e Conferências, para a estruturação do Sistemade Garan a de Direitos e da Rede de Proteção e, especialmente, para aformulação de Polí cas Públicas, Planos e Ações voltadas para a área5.

Mais recentemente, porém, a par r principalmente da segunda dé-cada do novo século, em função de uma conjuntura que alia crises polí cae econômica, veri ca-se um crescimento da intolerância e mesmo de ódioàs lutas dos direitos humanos, numa tenta va de retroceder não apenasnos direitos conquistados na área da criança e do adolescente, mas tam-bém em relação às populações indígenas, LGBT, mulheres, meio ambien-te, etc, além de medidas para impor o ensino religioso confessional nasescolas públicas, bem como medidas que possibilitem maior vigilância econtrole dos estudantes, numa crescente judicialização e medicalizaçãodos comportamentos e da indisciplina escolar. Notam-se, também, ten-ta vas de militarização do ensino fundamental, seja colocando policiaisfardados e armados nas escolas, seja repassando a gestão das escolas àPolícia Militar.

Para um país que ousou sonhar com a educação libertadora de Paulo Freire,a tendência agora é militarizar as escolas públicas consideradas “problema”.Já existem 93 escolas públicas no Brasil em que os alunos têm de bater con-

nência para policiais armados na entrada das aulas, o cabelo tem de serquase raspado para os meninos, as meninas têm de prendê-lo. Maquiagem,brincos e esmalte nas unhas, nem pensar. O uniforme é como uma farda.

Namoros são proibidos. O afeto é subs tuído por aquela gritaria pica dequartéis: “Sim, senhor!” “Não, senhor!”

O argumento mais usado para defender a militarização é o de que a políciapõe ordem na bagunça e permite que, assim, a escola melhore sua capaci-dade de difundir conhecimentos.

Goiás tem o maior número de escolas assim (26) e ele (governador) prome-te inaugurar mais 24 até o nal do ano. (“PM assume escolas”, 2015)

Nesta conjuntura, voltam à pauta, desta vez com maior força, impul-sionados por certos setores da mídia e pela união de bancadas conserva-5 Como: Sistema Nacional de Atendimento Socioeduca vo; Plano Nacional de Convivência

Familiar e Comunitária; Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infan l eProteção ao Adolescente Trabalhador, dentre outros.

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doras no Congresso Nacional, projetos de leis que visam tanto a reduçãoda maioridade penal como o agravamento das medidas socioeduca vasde internação, divulgando-se insistentemente, como causa da violênciano país, uma suposta impunidade proporcionada pelo Estatuto da Criançae do Adolescente, cuja única nalidade seria a de “proteger bandidos” –criando na população uma indiferença face ao trágico des no de milharesde jovens pobres, tanto dos que são executados sumariamente quantodos que se encontram privados de liberdade.

Neste sen do e a títul o de ilustração, citamos alguns casos ocorridosno Rio de Janeiro6 que evidenciam a tudes de intolerância e preconceitoem relação a crianças, adolescentes e jovens negros e pobres.

• Jovem negro é acorrentado nu em poste por grupo de ‘jus cei-ros’. Ele foi espancado e levou uma facada na orelha (“Jovem negro”,2014).• Aluno é barrado de entrar em escola municipal por usar guias doCandomblé (“Aluno é barrado”, 2014).• Menina ví ma de intolerância religiosa diz que vai ser di cil es-quecer pedrada. (“intolerância religiosa”, 2015).• Pedestre pede a morte de crianças negras que brigavam em fren-

te ao Shopping da Gávea. Um senhor que passava chutou as criançasque já estavam no chão de das por um policial (“Menor agredido”,2015).• PM impede adolescentes da periferia de ir às praias da zona sul(2015).

A gravidade deste úl mo caso se dá não apenas pelo fato em si, mastambém por ter sido protagonizado pelo poder público, nos dias 22 e 23de agosto de 2015.

Neste nal de semana, cerca de 160 jovens cariocas foram recolhidos pelaPolícia Militar do Estado do Rio de Janeiro sem nenhum mo vo aparente.Todos estavam a caminho das praias da zona sul da cidade e eram de dife-rentes regiões periféricas do Rio. Nenhum portava drogas, armas ou estavapra cando nenhum po de ato infracional.

6 Limitamo-nos a fatos ocorridos no Rio de Janeiro apenas pelo nosso maior conhecimentodesta realidade.

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Arantes, E. M. M. (2015). Extermínio de jovens e redução da maioridade penal

A Polícia Militar montou uma blitz especialmente para essa operação. Antesde os ônibus atravessarem o Túnel Rebouças (que liga as regiões norte e sulda cidade), a polícia fez os adolescentes descerem do transporte público eentrarem no cole vo especial da PM que os levou até o Centro Integrado de

Atendimento à Criança e ao Adolescente.

Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, as únicas hipóteses quepermitem a detenção de um menor são duas: quando ele é pego em a-grante ou quando há uma ordem judicial expedida pela autoridade compe-tente, o que não era o caso dos jovens.

Procurada sobre o caso, a PMERJ declarou por meio de sua assessoria que“as ações preven vas realizadas pela Corporação têm por obje vo encami-

nhar para os abrigos da prefeitura crianças e adolescentes em situação derisco. Muitos desses jovens, além de estarem nas ruas sem dinheiro paraalimentação e transporte, apresentam condição de extrema vulnerabilida-de pela ausência de familiares ou responsáveis”.

O governador Luiz Fernando Pezão não cri cou a ação da polícia e aindaa rmou que ela foi realizada para evitar arrastões e outros crimes que sãocome dos nas praias por adolescentes.

Além de não poder frequentar as praias da zona sul quando bem entender,o jovem carioca pobre também precisa se esquivar do tratamento policialoferecido nas periferias. Segundo o relatório apresentado no começo domês pela Anis a Internacional (“Policia do Rio mata”, 2015)”, mais de oitomil pessoas morreram entre 2005 e 2014 por causa de intervenções po-liciais no Estado do Rio. As ví mas são majoritariamente homens (90%),negros (70%) e jovens entre 15 e 29 anos (75%).

Redução da maioridade penal

No dia 31 de março de 2015, a Comissão de Cons tuição e Jus ça(CCJ) da Câmara dos Deputados, por 42 votos a favor e 17 votos contra,aprovou a admissibilidade da Proposta de Emenda à Cons tuição (PEC)171, que visa alterar o ar go 228 da Cons tuição Federal, reduzindo amaioridade penal de 18 para 16 anos. O texto seguiu para uma ComissãoEspecial antes de ser votado em 1º turno no Plenário da Câmara.

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Psicologia social e os atuais desafos é co-polí cos no Brasil

Em sessão do dia 1º de julho de 2015, a Câmara rejeitou o texto deautoria da Comissão Especial sobre o tema.

O Plenário da Câmara dos Deputados rejeitou, na madrugada desta quarta--feira (1º), o texto da comissão especial para a PEC que reduz a maioridadepenal (PEC 171/93). Foram 303 votos a favor, quando o mínimo necessárioeram 308. Foram 184 votos contra e 3 abstenções. (Câmara rejeita PEC quereduz maioridade penal para crimes hediondos, 2015)

Em data posterior, o Plenário ainda teria a possibilidade de votar otexto original da proposta ou outras emendas que tramitam em conjunto.

Ainda não há data para a retomada da discussão. Eduardo Cunha disse quea proposta poderá voltar à pauta na semana que vem ou, se isso não for

possível, no segundo semestre. Antes do recesso, o Plenário ainda precisavotar o segundo turno da PEC da Reforma Polí ca.

A proposta rejeitada reduziria de 18 para 16 anos a maioridade penalpara crimes hediondos , como estupro, latrocínio e homicídio quali cado(quando há agravantes). O adolescente dessa faixa etária também poderiaser condenado por crimes de lesão corporal grave ou lesão corporal seguidade morte e roubo agravado (quando há uso de arma ou par cipação de doisou mais criminosos, entre outras circunstâncias). O texto original, que podeir à votação, reduz a maioridade para 16 em todos os casos. (Câmara rejeitaPEC que reduz maioridade penal para crimes hediondos, 2015)

Entretanto, um dia após ter sido rejeitada, a matéria volta ao Ple-nário da Câmara e é aprovada, ensejando protestos e contestação destavotação no STF. Para diversos deputados, o presidente da Câmara passoupor cima do regimento interno e, portanto, a votação deveria ser anulada.

Apenas 24 horas após o plenário rejeitar a redução da maioridade para crimesgraves, a Câmara dos Deputados colocou novamente o tema em votação e

aprovou na madrugada desta quinta-feira (2) a Proposta de Emenda à Cons -tuição (PEC) que reduz de 18 para 16 anos a idade penal para crimes hediondos,homicídio doloso e lesão corporal seguida de morte. A manobra do presidenteda Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), revoltou deputados contrários à mu-dança cons tucional, gerando intensas discussões. Para virar lei, o texto aindaprecisa ser apreciado mais uma vez na Casa e, depois, ser votado em outrosdois turnos no Senado. (Após manobra, Câmara aprova proposta para reduzirmaioridade, 2015)

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Arantes, E. M. M. (2015). Extermínio de jovens e redução da maioridade penal

Em segundo turno, no dia 19 de agosto de 2015, a proposta foi apro-vada na Câmara, seguindo para o Senado, onde aguarda votação.

Diante disto, devemos nos perguntar sobre os mo vos para tanto

empenho da Câmara em re duzir a idade penal, visto que o tema se encon-tra bastante polarizado.

Podemos dizer, de maneira geral, que os parlamentares, assim comoa opinião pública, encontram-se divididos em três grupos. O primeiro gru-po é formado pelos que defendem a redução da maioridade penal de 18para 16 anos, argumentando que os adolescentes que verem de discer-nimento sobre o caráter lesivo de seus atos devem ser julgados e punidoscomo adultos. Tem sido comum ouvir: “Se podem votar, também podemser presos”.

Dentre este grupo, encontramos opiniões mais radicalizadas, comoa do deputado federal Laerte Bessa:

“Um dia, chegaremos a um estágio em que será possível determinar seum bebê, ainda no útero, tem tendências à criminalidade, e se sim, a mãenão terá permissão para dar à luz”. Essa a rmação foi feita pelo deputadofederal Laerte Bessa (PR-DF) em matéria publicada pelo jornal inglês TheGuardian no dia 29 de junho (2015). O parlamentar é relator da PEC 171/93,que reduz a maioridade penal ... Na mesma reportagem, Bessa deixou bemevidentes suas pretensões de não se contentar com a redução de 18 para16 anos em casos de crimes hediondos (estupro, sequestro, latrocínio, ho-micídio quali cado e outros), homicídio doloso e lesão corporal seguida demorte, como ocorreu no úl mo dia 2. “Em vinte anos, reduziremos para 14,depois para 12″, disse. Para ele, a proposta, aprovada em primeiro turno naCâmara após manobra do presidente Eduardo Cunha (PMDB-RJ), “é umaboa lei que acabará com o senso de impunidade em nosso país.” (“Relatorda redução da maioridade penal sugere aborto de bebês”, 2015)

Na matéria in tulada Brazil’s prison system faces ‘profound dete-riora on’ if youth crime law passes, o jornal inglês menciona a situaçãocalamitosa das prisões brasileiras, cuja população carcerária já está entreas quatro maiores do mundo – situação que se agravará com a redução damaioridade penal.

Do segundo grupo fazem parte aqueles que acreditam que não sedeve reduzir a maioridade penal e sim modi car o Estatuto da Criança e

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do Adolescente (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990). Apontam o tempomáximo de privação de liberdade permi do no Estatuto como sendo insu-

ciente, defendendo também mudança no Código Penal para endurecera punição do adulto que aliciar adolescente para o come mento de atosinfracionais.

Neste grupo estão boa parte dos senadores, entre os quais o pró-prio presidente do Senado, para quem alterar o Estatuto é mais e cientedo que reduzir a maioridade penal, colocando-se contrário à propostaaprovada na Câmara. Pelo projeto aprovado no Senado, os jovens que te-nham come do crimes considerados hediondos poderão car internadosem centros de atendimento socioeduca vo por até dez anos.

Nós já votamos alteração no ECA, que parece ser mais consequente, maiseficiente e que olha melhor para o futuro da juventude

Renan se referiu ao projeto de lei aprovado pelo Senado que altera o ECA eaumenta o tempo de internação de menores de 18 anos. A matéria seguiupara votação na Câmara dos Deputados. (Renan diz que alterar o ECA émais e ciente que reduzir maioridade penal, 2015).

O terceiro grupo, contrário à redução da idade penal e ao aumentodo período de privação de liberdade, no qual nos incluímos, acredita que

a redução da maioridade penal agravará os problemas que se quer com-bater, não sendo os adolescentes os responsáveis pela chamada violênciano país. Acredita também que o agravamento da medida de internaçãopenalizará demasiadamente os jovens negros e pobres, dada a reconheci-da e evidente sele vidade do sistema prisional e socioeduca vo.

Assim, em diversas ocasiões já nos manifestamos contrários à re-dução da maioridade penal, sendo nossas principais razões assinaladasabaixo (CFP, 2013):

1. O ar go 228 é Cláusula Pétrea da Cons tuição Federal e não podeser modi cado, estando de acordo com o padrão adotado pelos maisimportantes documentos internacionais de Direitos Humanos, como aConvenção sobre os Direitos da Criança, ra cada pelo Brasil em 1990.

2. O Princípio do Direito Internacional dos Direitos Humanos queproíbe reforma norma va para pior, para patamares de direitos hu-manos mais baixos aos existentes;

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Arantes, E. M. M. (2015). Extermínio de jovens e redução da maioridade penal

3. Não se deve confundir inimputabilidade penal com impunidade.O fato de o adolescente ser inimputável não o exime de serresponsabilizado com as medidas socioeducativas previstas noEstatuto da Criança e do Adolescente, inclusive a medida deinternação (privação de liberdade), responsabilizando o adolescentea partir de 12 anos de idade.

4. Todas as esta s cas indicam que os adolescentes não são os res-ponsáveis pela chamada violência no Brasil, uma vez que a maioriados crimes é pra cada por adultos, sendo os adolescentes e os jo-vens as maiores ví mas da violência, conforme as diversas ediçõesdo Mapa da Violência.

5. O rebaixamento da maioridade penal enviará adolescentes, emsua grande maioria pobres, para as prisões de adultos, diminuindosuas chances de não reincidência e de conclusão dos estudos e pro-

ssionalização. Contribuirá, também, para o aumento da populaçãocarcerária, agravando a situação já existente nos presídios brasileiros,considerados dos piores do mundo.

6. O rebaixamento da idade penal terá implicações muito sériaspara as adolescentes grávidas. Estarão impedidas de serem acompa-nhadas nos programas para gestantes adolescentes? Serão algema-das para o parto, conforme ainda acontece com as presas adultas?Terão seus lhos criados nas celas? Serão des tuídas do poder fa-miliar, sendo as crianças encaminhadas para abrigos ou adoção? Equanto aos adolescentes com sofrimento mental, serão enviados aosManicômios Judiciários?

7. Reduzir a maioridade penal, além de não resolver o problemada violência, criará muitos outros, pois terá implicações nas áreas daEducação, Saúde e Assistência, por exemplo, alterando a Doutrina da

Proteção Integral e a prioridade absoluta assegurada às crianças eaos adolescentes no ar go 227 da Cons tuição Federal de 1988.

8. Há que se reconhecer a ausência de políticas públicas depromoção de direitos para os adolescentes e jovens, incluindo aspolí cas culturais, esporte e lazer, não se podendo permi r que opopulismo penal seja a resposta dado ao vazio deixado por tais po-lí cas. Urge que toda a população brasileira tenha acesso a serviços

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Psicologia social e os atuais desafos é co-polí cos no Brasil

de qualidade e que os projetos implementados para crianças e jovenssaiam do circuito penal.

Considerações nais

Sempre que um crime choca a opinião pública e tem a par cipa-ção de adolescentes, os jornais e a televisão no ciam exaus vamente ofato, recolocando na pauta nacional a discussão sobre o rebaixamento damaioridade penal. É su ciente passarmos os olhos nas cartas de leitoresenviadas aos jornais de grande circulação nacional para constatarmos oquanto vem sendo difundida a ideia de que “as leis são brandas” e que“direitos humanos servem apenas para defender bandidos”.

Assim, apesar de diversos e reiterados posicionamentos contrários àredução da maioridade penal por conselhos, fóruns, comissões, en dadesde classe e de defesa de direitos humanos, tramitam no Congresso Nacio-nal, como vimos, diversos projetos de leis favoráveis à redução da maiori-dade penal ou do agravamento da medida socioeduca va de internação.

Na realidade, a existência de tais propostas suscita o debate dequestões que há muito estão sendo negligenciadas: o lamentável e inde-fensável estado em que se encontram e funcionam as prisões brasileiras;o fato de o Estatuto da Criança e do Adolescente não ter sido implantadodevidamente e em sua totalidade, incluindo aí o SINASE7; e a própria le-gislação an drogas, que pi ca como tra cantes pessoas envolvidas novarejo da droga.

No VII Encontro das Comissões de Direitos Humanos do SistemaConselhos de Psicologia, em setembro de 2005, foi escolhido, por una-nimidade, o tema da privação de liberdade para a campanha anual daComissão. A escolha do tema, por unanimidade, não foi por acaso, já quevários estudos constatam um adoecimento dos pro ssionais que traba-lham nesses lugares.

Foi realizada uma inspeção nacional às unidades de privação de li-berdade de adolescentes, em ação conjunta das Comissões de DireitosHumanos dos Conselhos de Psicologia com as Comissões de Direitos Hu-7 Sistema Nacional de Atendimento Socioeduca vo (SINASE), ins tuído pela Lei Federal

12.594/2012 em 18 de Janeiro de 2012.

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Arantes, E. M. M. (2015). Extermínio de jovens e redução da maioridade penal

manos e as Comissões da Criança e do Adolescente da OAB. A par r desteinteresse comum, e conforme metodologia apropriada para inspeção, asvisitas foram organizadas para acontecer em um mesmo dia, resultandono relatório Direitos Humanos - Um retrato das unidades de Internação deadolescentes em con ito com a lei , disponível na página do CFP8.

Finalizando, gostaríamos de chamar a atenção, principalmente denós psicólogos, para o processo que está em curso, de caracterizar o ado-lescente autor de ato infracional como sendo monstro, animal, incorrigí-vel, anormal, subespécie, perigoso, inimigo, não humano. Portanto, a par-

r de tal caracterização, “não importa” se ele for torturado ou executadosumariamente, uma vez que, não sendo considerado nem humano nemcidadão , nada o protege.

Atravessamos um momento di cil, de enormes retrocessos na pautados direitos humanos, lutando contra a maré, contra interesses variados,que insistem em dizer que os direitos humanos servem apenas para de-fender bandidos e não os homens de bem, não se aceitando que presosadultos ou adolescentes em con ito com a lei tenham direitos. Como psi-cólogos, não podemos compactuar com este processo.

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Psicologia social e os atuais desafos é co-polí cos no Brasil

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Mídia, cultura e arte: questões para o nosso tempo

Deborah Chris na Antunes

O presente ar go visa a introduzir a discussão proposta para o sim-pósio “Mídia, Cultura e Arte” do XVIII Encontro Nacional da ABRAPSO, re-alizado em Fortaleza em 2015, e iniciar um diálogo com os textos de suassimposistas presentes nessa publicação. O referido simpósio concerne aoeixo temá co que obje va acolher trabalhos e re exões sobre as

formas como a mídia afeta as subje vidades e relação entre as diversas ex-pressões ar s cas e os processos de subje vação na sociedade contempo-rânea. Acolhe trabalhos que discutam a respeito das redes sociais virtuais,papel das mídias na cultura atual, polí cas públicas de comunicação, cultu-ra do espetáculo, público x privado, virtual x real, formas de subje vaçãocontemporânea, estratégias de resistência e expressão. Acolhe ainda traba-lhos que realizam a interface entre diferentes Polí cas e Projetos Sociais eCulturais que têm como foco a garan a e promoção dos Direitos Humanos 1. (Associação Brasileira de Psicologia Social - ABRAPSO, 2015)

Realizarei aqui uma visão bastante geral, mas profundamente crí-ca, acerca da relação entre os meios de comunicação e a formação do

sujeito contemporâneo, pensando, ao nal, junto com Isabella Ferreira,Nancy Lamenza e Ka a Maheirie, os problemas e as potencialidades quetangem tal questão.

A revolução tecnológica dos meios de comunicação de massa é umarealidade imposta na contemporaneidade e que se con gura como umcaminho no qual não há retorno, frente aos avanços e à popularização

dos diversos aparatos que surgem diariamente e visam a facilitar a co-municação entre as pessoas. O mundo tem assis do a uma explosão deinvenções de diversos aparelhos, tais como os chamados laptops, smar -tphones e tablets. Eles conjugam em uma única interface a possibilidadede receber informações, de enviar informações e de atuar de modo inte -ra vo com pessoas ao redor do mundo. No ano de 2011, a organização

1 Descrição do eixo temá co Mídia, cultura e arte - XVIII Encontro Nacional da ABRAPSO..

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Antunes, D. C. (2015). Mídia, cultura e arte: questões para o nosso tempo

de grupos de pessoas que usaram essas plataformas, com acesso à redemundial de computadores e às assim chamadas redes sociais virtuais, a

m de realizar manifestações sociais polí cas apar dárias chamou a aten-ção de intelectuais e de chefes de Estado do mundo todo:

Houve algo de dionisíaco nos acontecimentos de 2011: uma onda de ca-tarse polí ca protagonizada especialmente pela nova geração, que sen uesse processo como um despertar cole vo propagado não só pela mídiatradicional da TV ou do rádio, mas por uma difusão nova, nas redes sociaisda internet, em par cular o Twi er , tomando uma forma de disseminaçãoviral, um boca a boca eletrônico com mensagens replicadas a milhares deoutros emissores. (Carneiro, 2012, p. 9)

A referência aqui são os diversos movimentos realizados com forçaem países como Portugal, Espanha, Grécia e Estados Unidos, e que ca-ram conhecidos como Occupy . Importante mencionar que tais movimen-tos também ocorreram no Brasil, embora em menor amplitude ou de for-ma menos divulgada pelas mídias tradicionais, e têm se dado como formacon nua de ar culação 2. De acordo com Carneiro, “em todos os paíseshouve uma mesma forma de ação: ocupações de praças, uso de redes decomunicação alterna vas e ar culações polí cas que recusavam o espaçoins tucional tradicional” (2012, p. 8 – grifo meu). Essas manifestações se-riam uma forma de um novo despertar de euforia polí ca em contradiçãocom o “individualismo” que reina na organização social atual ilusoriamen-te con nua e “sem contradições”, contudo carente de projetos efe va-mente cole vos para o futuro. No ano de 2013, os protestos ar culadospelo Movimento Passe Livre em todo o Brasil também zeram amplo usodos meios de comunicação de massa digitais (Judensnaider, Lima, Ortella-do, & Pomar, 2013), e ainda hoje protestos das mais variadas vertentes – das mais liberais às mais conservadoras – encontram no meio digital oambiente propício para comunicar ideias e organizar encontros e manifes-

2 Embora sem a mesma magnitude dos movimentos ocorridos em outros países, no Brasilesse movimento possui a “peculiaridade de mobilizar setores da juventude e de excluídossociais, alvos, em 2011, de uma sistemá ca repressão policial, desde as marchas da maconhaem São Paulo e da entrada de tropas de choque na USP até a expulsão dos moradores doPinheirinho e dos projetos higienistas no centro das capitais” (Carneiro, 2012, p.12). Outrosexemplos brasileiros são o “Ocupa Sampa” e o “Ocupe Estelita”. Para mais informações sobreesses movimentos, acessar os sítios eletrônicos: h ps://ocupasampa.milharal.org/ e h ps://direitosurbanos.wordpress.com

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Psicologia social e os atuais desafos é co-polí cos no Brasil

tações polí cas. Há também aqueles que buscam nas mídias digitais novasformas ar s cas e esté cas, na fronteira entre arte, ciência e tecnologia,onde espaços novos de pensamento poderiam surgir de maneira crí ca,pensando a arte por meio de novos recursos (Rodrigues, 2012).

A nal de contas, quais as reais potencialidades dessas mídias digi-tais em termos de possibilitar a existência de sujeitos capazes de realizarmovimentos emancipatórios, polí cos, ar s cos e mesmo revolucioná-rios na luta por direitos humanos e libertação?

Os meios de comunicação e a formação da consciência

Não é de hoje, ou com o surgimento das chamadas novas mídias,que a comunicação é essencial para compreender o fenômeno humano.Ela de ne a passagem, desde os tempos an gos, do individual ao cole -vo e serve à promoção da socialização, assim como à formação das iden-

dades e decorrentes processos de subje vação. É na alteridade que ohomem adquire consciência de si, interioriza comportamentos e se formaenquanto sujeito de dada sociedade e em dado momento histórico. Con-tudo, os modos como tal comunicação se dá, as formas com as quais elase encontra mediada, implicam, inclusive, transformações da consciênciahumana. Baseando-se nos estudos de McLuhan 3, Aranha (2006) apresen-ta três etapas da evolução da humanidade, a par r de seus meios de co-municação. A primeira etapa é marcada pela comunicação oral dos povose é anterior ao advento da escrita; nela, a comunicação é marcada pelapresença e pelo vivido, havendo o predomínio da consciência mí ca. A se-gunda é marcada pela escrita – apesar de inicialmente restrita a pequenosgrupos e apenas posteriormente no século XVI socializada com a invençãoda imprensa; o advento da escrita teria proporcionado o distanciamentonecessário para a a tude re exiva e para o desenvolvimento da consciên-cia crí ca, o que teria intensi cado o processo de individuação marcado3 Embora com ideias muito cri cadas, McLuhan teve o mérito de suscitar, na década de 1960,

vários debates sobre os meios de comunicação. Quando a rmou que “o meio é a mensa-gem”, ele inverteu o núcleo de atenção dos estudiosos e indicou que mais importante doque o conteúdo de uma mensagem é a análise de seu veículo. (Aranha, 2006). Por isso, com-preende-se que é importante analisar os canais de comunicação u lizados ao se estudardeterminada cultura: eles implicam os modos de recepção e também de subje vação e iden-

dade.

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Antunes, D. C. (2015). Mídia, cultura e arte: questões para o nosso tempo

pelo confronto das ideias do sujeito com ideias alheias. A terceira etapasurge com o advento dos meios de comunicação de massa no século XX,tais como o rádio, o cinema e a TV. Aqui, o grande volume de informaçõesin uenciaria de modo marcante o homem contemporâneo. Quais seriamos efeitos dos meios de comunicação de massa? Que po de in uênciaeles exercem na formação do homem contemporâneo?

Aranha (2006) indica que essa in uência é ora posi va – quandopossibilita a ampliação dos horizontes e ajuda a superar estereó pos -, oranega va – quando homogeneíza e descaracteriza a cultura, em especialdeterminadas culturas tradicionais solapadas pela imposição de culturasimperialistas. É nessa direção que Adorno (1995) também reconhece oduplo papel da televisão, por exemplo. Para ele, a televisão poderia secolocar diretamente a serviço da formação cultural, como é o caso das TVseduca vas. Por outro lado, ela teria – no caso das transmissões sem ob- je vo educacional explícito, como as de entretenimento e no cias – umaproblemá ca função deforma va em relação à consciência das pessoas;contribuindo para divulgar ideologias e para dirigir a consciência dos es-pectadores em determinado sen do.

Indústria cultural e estereo pia

A par r dos avanços tecnológicos e cien cos, sobretudo após aPrimeira Guerra Mundial, os meios de comunicação ganham uma formacada vez mais e caz de a ngir um número cada vez maior de pessoas.Há, nesse período, o advento dos meios tecnológicos de comunicação demassa com invenções como o telégrafo e o rádio. Trata-se de um terre-no perfeito para o surgimento daquilo que Horkheimer e Adorno (1985)denominaram “Indústria Cultural”. Na Dialé ca do Esclarecimento, os ci-

tados autores se remetem ao conver mento da cultura seja popular, sejaerudita em um nicho da produção industrial. Com o advento da IndústriaCultural, os bens culturais passaram a ser veiculados de forma massivapelos meios de comunicação, transformando-se em meros bens de consu-mo. Desse modo, ocorreu a transformação da cultura e da arte em mer-cadoria. A questão aqui é que a arte, tal qual as diversas manifestaçõesculturais, tem uma força crí ca que decorre de sua oposição à sociedade.Entretanto, como apontei em outra ocasião (Antunes, 2014), essa força

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crí ca parece ser neutralizada quando é assimilada comercialmente pelasmassas. Isso por dois mo vos basilares: (a) a par cipação intelectual, are exão a va no ato de consumo é vetada ao consumidor dos produtos daIndústria Cultural; (b) a forma original da “arte” assimilada pelas massasnão é conservada, mas sim adaptada segundo padrões mercan s com oobje vo de ser vendida/consumida prontamente; nesse processo, se arru-ínam suas caracterís cas cons tu vas de oposição.

Ao consumir os “produtos culturais” sem a possibilidade da re e-xão que caracteriza o processo forma vo, os consumidores “aderem”aos valores invariavelmente propagados pela cultura industrializada. Se,como mencionado inicialmente, os meios de comunicação se relacionamdiretamente como nosso processo forma vo, com o advento da IndústriaCultural, a subje vidade acaba por ser construída no âmbito da circulaçãoe do consumo de mercadorias culturais. Isso não signi ca que os sujeitosnão deixem de exis r, mas o que ocorre é a existência de um “sujeito daadequação”, como apontado por Maar (2000, p. 90), que se apresentacom o desenvolvimento de uma falsa consciência. É importante lembraraqui que Adorno diferencia formação ( Bildung) e semiformação (Halb--bildung). Em termos gerais, a primeira se cons tui pela “experiência, acon nuidade da consciência em que perdura o ainda não presente e emque o exercício e a associação fundamentam uma tradição no indivíduo”,enquanto a segunda se caracteriza por “um estado informa vo pontual,desvalorizado, intercambiável e efêmero, e que se deve destacar que ca-rá borrado no próximo instante por outras informações” (Adorno, 1992,p. 51)4. Tal subje vidade marcada pela semiformação representaria umamediação de ciente entre o universal e o par cular, na qual o segundodesapareceria pela imposição do primeiro. (Antunes, 2014).

Esse processo não se dá sem implicações maiores para a psicolo-gia do sujeito, pois, ao aderir a uma ideia/produto de modo irre e do,esse sujeito passa a estranhar aqueles que não fazem o mesmo ou, ain-da, aqueles que aderem a outros estereó pos. Cabe citar o conceito defalsa-projeção (Horkheimer & Adorno, 1985). Ele se caracteriza por ummecanismo de defesa com papel fundamental na psicologia daqueles quese pautam pela visão estereo pada de mundo. O que falta à falsa-proje-4 Adorno, T. W. (1992).Teoria da semicultura (N. Ramos-de-Oliveira, Trad.). Araraquara: UNE-

SP. (mimeo.).

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Antunes, D. C. (2015). Mídia, cultura e arte: questões para o nosso tempo

ção é a diferenciação entre o mundo interno e o externo, é a capacidadede re exão e afastamento necessários para a formação do eu. Na falsa--projeção, o que é projetado no outro como “estranho” não pertence aoindivíduo, mas à cultura que faz do próprio processo de iden cação, detornar-se sujeito, falso. Os sujeitos consumidores dos produtos e das ideo-logias da Indústria Cultural não se tornam, nesse processo, indivíduos au-tônomos e livres, embora tenham introjetado ideias e valores especí cos.

Está dada a forma contemporânea de propagação dos preconcei-tos, das visões estereo padas de mundo e da divisão social do mundo emendogrupo e exogrupo . Adorno et al. (1969) compreenderam que essavisão é simbólica do sujeito autoritário. Foi desse modo que Horkheimer eAdorno (1985) denunciaram a Indústria Cultural como produtora de pes-soas potencialmente fascistas, an democrá cas – até mesmo e principal-mente em sociedades liberais e consideradas democrá cas.

Em uma das etapas dos estudos sobre o rádio realizados por Adorno(2008), ele pensou a existência de um “novo po antropológico de ho-mem”, com base nas caracterís cas dos meios através dos quais as subje-

vidades se formavam ao receber as informações. A esse po ele denomi-nou radio genera on e descreveu como segue:

Ele é o po de pessoa cujo ser está no fato de que ele não mais experienciaqualquer coisa por si mesmo, mas deixa o aparato todo poderoso e opacoditar todas as experiências para ele, isso é precisamente o que impede aformação do ego , mesmo de uma “pessoa”. (Adorno, 2008, p. 465)

Cinco mudanças aconteceram na sociedade tardio-capitalista e te-riam levado ao desenvolvimento subje vo da geração do rádio: a falta deimagens ar s cas oferecidas às crianças; a mecanização dos objetos; umamudança estrutural no processo de trabalho; a desintegração da autorida-de familiar e a quan cação tecnológica do corpo (Adorno, 2008).

O diagnós co de Adorno (2008) é trágico, mas, se é na tragédia quetambém se encontra a força de libertação, ele mesmo apresenta a ideiade que o ponto de par da para a transformação desta sociedade não deveser encontrado fora dela, mas na própria natureza da sociedade que sesedimenta nos sujeitos. Segundo ele, a ausência de algumas habilidadesque outrora se revelavam nos sujeitos não ocorre sem a liberação de ou-tras; aquelas passíveis de realizar mudanças que não seriam possíveis an-

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teriormente, de acordo com o estado da sociedade e do sujeito que nelase desenvolve. Adorno aponta que a quebra de um indivíduo fechado emsi mesmo é a principal caracterís ca que deve ser levada em consideraçãopara se pensar as potencialidades desse novo homem. Será que as novastecnologias de comunicação e intera vidade seriam capazes de potencia-lizar essas novas habilidades capazes de gerar transformação social? Quaismudanças antropológicas as gerações atuais estão sofrendo em virtudede suas novas formas e seus novos meios de comunicação?

Da virtualidade à arte da periferia e dos territórios: múl plos tempos,espaços e possibilidades

Isabella Fernanda Ferreira, Nancy Lamenza S. Silva e Ka a Maheirienos ajudam a pensar tais questões. Em sua fala sobre “A ciber(cultura)e o redimensionamento da experiência (semi)forma va na produção ar-

s ca de hiper(textos)”, Ferreira pensa a arte no ambiente digital virtuale o redimensionamento da experiência com a criação de obras cole vasmediada pelo aparato técnico digital. A autora apresenta o conceito decibercultura e ciberespaço como o ambiente em que a interação humanaadquire formas novas, uidas, virtuais e ubíquas, onde tecnologia e inte-

ração humana se entrelaçam e associam, proporcionando uma espéciede “inteligência cole va”, para posteriormente ques onar essa concepçãomediante uma análise minuciosa acerca da construção de ciber-romance,ciberpoesia e cibernarra vas – novas formas de produção cole va de hi-pertextos virtuais – obras-processo sempre em estado inacabado.

Se, como apontado anteriormente, os meios de comunicação agemdiretamente na formação da subje vidade daqueles que através deles serelacionam, está apropriada a compreensão de Ferreira de que “o redi-

mensionamento, tanto das técnicas como das formas esté cas, terminatambém por atribuir caracterís cas diferentes na esfera subje va da cria-vidade dos seus ar stas” (Ferreira, 2015, P. 295). Isso porque tanto o

aparato técnico, quanto a subje vidade têm caracterís cas especí casconcernentes ao seu tempo obje vo, social, econômico, tecnológico ehistórico. Conforme a autora, as caracterís cas especí cas dos meios digi-tais virtuais, por meio dos quais ciberpoemas, ciber-romances e cibernar-ra vas são produzidos, determinam também certo “redimensionamento

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Antunes, D. C. (2015). Mídia, cultura e arte: questões para o nosso tempo

do processo subje vo de criação”. Para ela, anteriormente, tal processoestava fundamentado na exigência pela totalidade do processo cria vo. Apar r da era digital, ele se fundamentaria em um processo cria vo frag-mentado, pari passu à fragmentação do processo subje vo inerente aoato cria vo - ao que se poderia comparar o trabalho em série na fábrica,onde o trabalhador é impedido do conhecimento de todo o processo deprodução, que anteriormente dominava na manufatura. Com isso, a auto-ra se coloca como radicalmente crí ca da arte digital, denunciando os en-godos de uma crença ingênua em seu potencial libertário, embora apontea necessidade de realização de pesquisas empíricas aprofundadas com osgrupos de ar stas que a realizam.

É exatamente do empírico que parte Silva (2015), ao trazer para odebate as narra vas do Cole vo Neo muralista Neza Art Nel e da Associa-ção Cultural Nós do Morro, o primeiro formado por ar stas plás cos noMéxico, o segundo por moradores da favela do Vidigal, no Rio de Janeiro,com percurso no teatro. São grupos de ar stas que não estão na “realida-de virtual”, e buscam agir efe vamente no mundo material co diano pormeio de suas intervenções através da esté ca da periferia que vai paraalém do próprio bairro, na proposição de um modo de viver outro comoproposta esté ca que visa à alteração de consciências, ao rompimentode certa anestesia emocional e corporal, sensória, como luta e militância.Esse processo não se dá sem con itos entre a busca por reconhecimentoe a delidade à certa origem; con ito que ocorre a par r da consideraçãoda existência de diversas esferas de poder, onde a própria arte tem a po-tencialidade, ela mesma, de subverter e pressionar a experiência numaoutra direção, para além do já ins tuído.

É interessante como, na fala de Silva, o papel polí co de tais ma-nifestações não se coloca somente em relação ao outro, àquele a ngidopelas produções ar s cas, mas primordialmente em relação àqueles quese colocam como os próprios ar stas que, ao realizarem suas obras, serealizam também, recon guram sua própria relação consigo mesmo, suahistória e sua sociedade – recon guram sua própria iden dade na relaçãocom o outro, consigo e seu olhar para o mundo.

O universo digital e a periferia se encontram e se entrelaçam no tra-balho de Maheirie “O fotografar e as experiências cole vas em Centros deReferência em Assistência Social”. Nele, a autora parte de uma re exão

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sobre a arte, sua relação com o lugar de onde falamos e o devir, e pensaa esté ca – em sen do amplo - como uma forma de experiência correlataao agir polí co como prá ca recon guradora da ordem existente, capazde desnaturalizar a lógica da dominação em voga. Ela relata uma experi-ência de intervenção em um Centro de Referência em Assistência Socialde Florianópolis onde se dá um trabalho de o cina de fotogra a com jo-vens, que se u lizam de seus aparelhos celulares para a produção de ima-gens. Para Maheirie, essa produção de novas imagens que se dá atravésde um exercício e de um “estranhamento do olhar por meio da apropria-ção técnica” (2015, 328) é extremamente potente. Isso porque é capaztanto de promover o fortalecimento de si mesmo enquanto indivíduo eenquanto cole vidade, quanto possibilita a desnaturalização dos espaços

e a invenção de novas possibilidades interpreta vas desses espaços paraalém das visões estereo padas existentes. Maheirie vê nessa experiênciainterven va uma dinâmica de emancipação, na qual os jovens se vêemcomo artesãos, rompendo com o que lhes parecia caminho único no papelde trabalhadores assalariados.

Considerações nais

Mídia, cultura e arte se realizam neste momento histórico demúltiplas formas. O advento de novas tecnologias – sempre mais recen-tes, sempre mais novas – não anula a existência de formas esté cas “ana-lógicas”, tampouco suas possibilidades e limites frente ao tempo presenteque se recon guram. São múltiplos espaços-tempos que coexistem aindaque em um mesmo momento histórico repleto de contradições e lutase que tornam esta sociedade cada vez mais complexa, tanto em termosde formas de dominação, quanto em termos de possibilidades de liberta-ção. Poderíamos ser tentados a conceber, pelas re exões de nossas duas

primeiras autoras, que haveria um potencial libertador maior nas formasanalógicas das produções ar s cas, do que nas formas digitais - a primeirapossibilitaria uma recon guração da iden dade, de maneira crí ca, base-ada na experiência, enquanto à segunda restaria a submissão ao processode semiformação. No entanto, o trabalho de Maheirie nos ins ga a pen-sar nos usos das tecnologias e seus contextos, que poderiam possibilitarformas esté cas e polí cas de recon guração da percepção, da existênciae da vida em um âmbito polí co e emancipatório. Todas essas questões

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Antunes, D. C. (2015). Mídia, cultura e arte: questões para o nosso tempo

precisam ser analisadas com muito cuidado, para não cairmos em um du-alismo ingênuo sobre as benesses de determinadas formas ar s cas, emdetrimento de outras; e também para não acreditarmos, de modo pueril,na inocência da técnica que dependeria de seus usos. É preciso pensarem termos de racionalidades e suas apropriações como forma que inevi-tavelmente traz implicações ao conteúdo. Nesse sen do, a crí ca precisaestar presente na análise da relação entre as formas e os conteúdos, entreos meios e os ns de cada expressão, na relação que cada manifestaçãoar s ca estabelece com o momento histórico em que ela se realiza e seapresenta para nós. O grande potencial desse simpósio, frente às múl -plas análises e experiências apresentadas, está em não nos oferecer essasrespostas, mas nos ins gar a problema zar essas questões.

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Ferreira, I. F. (2015). A ciber(cultura) e o redimensionamento da experiência (semi)forma va...

A ciber(cultura) e o redimensionamento daexperiência (semi)forma va na produção ar s ca de

hiper(textos)

Isabella Fernanda Ferreira

Quem cria obras que são verdadeiramente concretas e indissolúveis, queverdadeiramente se opõem às oscilações da indústria cultural e da manipu-lação, é quem pensa com maior rigor e intransigentemente em termos deconsciência técnica. (Adorno, 2001, p. 24)

O presente capítulo procura tecer uma análise com o auxílio dosescritos teóricos crí cos, sobretudo de Theodor W. Adorno, acerca doredimensionamento da experiência técnica ‒ intraesté ca e/ou extraes-té ca ‒ a que passa o sujeito ao produzir hipertextos com os suportesintera vos propiciados pelo ciberespaço que interferem diretamente noprocesso cria vo de obras caracterizadas como uidas, como processuaisporque construídas por uma inteligência que se pretenda cole va.

Ciberespaço e inteligência cole va como cons tu vos da cibercultura

Com o advento das tecnologias da informação e, especialmente, apresença da internet como uma das centrais veiculadoras de informação,e promotoras de todo um aparato técnico que possibilita conexões queproduzem um po especí co de comunicação a distância – encontramosa produção de uma cibercultura. A cibercultura pode ser compreendida

como um universal sem totalidade. Nas palavras de Lévy (1999):O universal da cibercultura não possui nem centro nem linha diretriz. É va-zio, sem conteúdo par cular. Ou antes, ele os aceita todos, pois se contentaem colocar contato um ponto qualquer com qualquer outro, seja qual fora carga semân ca das en dades relacionadas. Não quero dar a entender,com isso, que a universalidade do ciberespaço é “neutra” ou sem consequ-ências, visto que o próprio fato do processo de interconexão já tem, e terá

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Psicologia social e os atuais desafos é co-polí cos no Brasil

ainda mais no futuro, imensas repercussões na a vidade econômica, polí-ca e cultural. Este acontecimento transforma, efe vamente, as condições

de vida em sociedade. Contudo, trata-se de um universo indeterminadoe que tende a manter sua indeterminação, pois cada novo nó da rede de

redes em expansão constante pode tornar-se produtor ou emissor de novasinformações, imprevisíveis, e reorganizar uma parte da conec vidade glo-bal por sua própria conta. (p. 111)

Segundo Lévy (1999), a cibercultura pode ser compreendida comoum conjunto de técnicas tanto materiais como intelectuais que se ma-nifestam no ciberespaço. Nesse sen do, podemos compreender que asimplicações culturais originadas do ciberespaço compõem a cibercultura . De acordo com Ma ozo e Specialski (2000, p. 1):

O termo ciberespaço foi u lizado pela primeira vez em 1984, na novelaNeuromancer, do escritor de cção cien ca William Gibson... Na concep-ção de Gibson, o ciberespaço aparece como uma “alucinação consensual”,formada pelo conjunto de redes de computadores, à qual os personagensconectam-se por meio de chips implantados no cérebro. A Matrix é a mãe,o útero da civilização pós-industrial povoado por diversas tribos, onde cow-boys circulam sempre em busca de informações vitais para suas empresasou suas vidas.

O ciberespaço está associado, conforme Saldanha (2001), à virtua-lidade do espaço que se manifesta em virtude do desenvolvimento da in-formá ca que produz novas formas de interação humana que se caracte-rizam por serem uidas, virtuais e onipresentes. Tal conjunto cons tuídopela tecnologia e por essas interações humanas de ne as caracterís casdo ciberespaço. Lévy (1999, pp. 92-93) esclarece-nos:

Eu de no o ciberespaço como o espaço de comunicação aberto pela in -terconexão mundial dos computadores e das memórias dos computadores.Essa de nição inclui o conjunto dos sistemas de comunicação eletrônicos(aí incluídos os conjuntos de redes hertzianas e telefônicas clássicas), namedida em que transmitem informações provenientes de fontes digitais oudes nadas à digitalização. Insisto na codi cação digital, pois ela condicionao caráter plás co, uido, calculável com precisão e tratável em tempo real,hipertextual, intera vo e, resumindo, virtual da informação que é, parece--me, a marca dis n va do ciberespaço.

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Ferreira, I. F. (2015). A ciber(cultura) e o redimensionamento da experiência (semi)forma va...

Para Saldanha (2001), além do conceito de ciberespaço, o que ajudaa elucidar a de nição de cibercultura pode ser a de nição de inteligênciacole va, uma vez que estaria alocada nela mesma a gênesis intelectualdo ciberespaço ‒ que apresenta como consequência social a cibercultura.Especi cado de outra forma, a inteligência cole va seria a central carac-terís ca das manifestações do ciberespaço, tornando-a central na ciber-cultura, que, de nida de modo simpli cado, nada mais é que a culturaproduzida no ciberespaço.

A inteligência cole va, segundo Lévy (1996, p. 68), desencadeiacomo determinantes essenciais um “macropsiquismo” que pode ser de-composto em quatro diferentes dimensões complementares, de nidascomo:

- uma conec vidade ou um “espaço” em transformação constante: associa-ções, vínculos e caminhos;

- uma semió ca, isto, é um sistema aberto de representações, de imagens,de signos de todas as formas e de todas as matérias que circulam no espaçodas conexões;

- uma axiologia ou “valores” que determinam tropismos posi vos ou ne-ga vos, qualidades afe vas associadas às representações ou às zonas doespaço psíquico;

- uma energé ca, en m, que especi ca a força dos afetos ligados às ima-gens.

Para que a inteligência cole va presente nas obras textuais do ci-berespaço se manifestasse, ocorreu o fenômeno de redimensionamentoda cultura do texto impresso para uma cultura do texto virtual, ou seja, atransição histórica do texto para o hipertexto.

Do texto para o hipertexto e suas pologias

Através de um breve i nerário histórico, da passagem da escritaan ga para a digitalização eletrônica do texto até a cons tuição do quecitamos anteriormente de inteligência cole va, é que podemos percebercom maior clareza esse processo de redimensionamento do texto e daexperiência forma va:

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Evoluindo quanto ao suporte material, passando pelo pergaminho e pelopapiro (e tomando a forma de rolo), a escrita encontra mais tarde a página(e as técnicas de paginação) e o livro na estrutura de códex. O manuscrito seestabelece e toda uma a vidade de escribas e copistas acompanha o desen-

volvimento da escrita. Durante muito tempo, ao longo de toda a Idade Mé-dia, o texto do manuscrito coroou uma série de evoluções na escrita e reinoupra camente absoluto. Até que surgiu a imprensa. (Saldanha, 2001, p. 43)

O surgimento da imprensa fez com que o livro permanecesse coma estrutura dos manuscritos, entretanto, promovendo uma nova experi-ência técnica de difusão que propiciou ao livro uma maior circulação e,com ela, possibilitando uma comercialização e manuseio até então nuncaassis dos na história.

Estamos no início do século XV presenciando, com o surgimento daimprensa, a gênese de uma cultura de massa, de uma civilização de mas-sa e estandardização que perdurou até o século XVIII coexis ndo com acultura do manuscrito. Um período marcado pela coexistência da culturaimpressa e da cultura do manuscrito e que , atualmente , se manifesta coma coexistência da cultura impressa e a cultura digital.

No que diz respeito, em especí co, à cultura digital e com ela o textodigital, Saldanha (2001) considera que, sem um processo de intervençãocria va e subje va do escritor - esse seria tão somente a manifestaçãodo texto impresso em outro suporte tecnológico – sendo, portanto, umaescrita eletrônica com as mesmas caracterís cas das do texto impresso.Entretanto, quando essa escrita eletrônica associa formas de interaçãocria va e cole va com o texto que somente são possíveis pelo suportetecnológico presente no computador com acesso à internet, então, te-mos o que Levy (1996) denomina de processo de virtualização do texto.Tais processos de virtualização do texto hoje se manifestam em diferentes

pologias de hipertexto, como, por exemplo, o ciber-romance, a ciberpo-esia, como também, as cibernarra vas.

Esses diferentes pos de hipertexto – o ciber-romance, a ciberpoe-sia e as ciber- narra vas – são textos eletrônicos considerados virtualiza-dos porque trazem em si mesmos o que de nimos anteriormente como“inteligência cole va” possibilitada pelo hipertexto que “mistura” o ato daescrita com o ato da leitura em uma espécie de leitura e escrita cole va:

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Ferreira, I. F. (2015). A ciber(cultura) e o redimensionamento da experiência (semi)forma va...

Assim a escrita e a leitura trocam seus papéis. Todo aquele que par cipada estruturação do hipertexto, do traçado pon lhado das possíveis dobrasde sen do, já é um leitor. Simetricamente, quem atualiza ou manifesta esteou aquele aspecto da reserva documental contribui para a redação, conclui

momentaneamente uma escrita interminável. As costuras e remissões, oscaminhos de sen do originais que o leitor inventa podem ser incorporadosà estrutura mesma dos corpus. A par r do hipertexto, toda leitura tornou--se um ato de escrita. (Lévy, 1996, 46)

Nos três pos acima já citados de hipertextos – o ciber-romance, aciberpoesia e as cibernarra vas – ocorre essa mistura de atos imediatosde escrita e leitura possibilitados pela virtualização do computador, ouseja, o ciberespaço com seu suporte tecnológico com ferramentas inte-ra vas.

Saldanha (2001) explica que o ciber-romance, também conhecidocomo ciber cção, trata-se de uma narra va que procura dar destaque àcriação cole va, na qual o texto é produzido por inúmeros leitores/escri-tores. É construída uma proposta de texto inicial pelo “escritor primário”,“escritor propositor”, como também, “escritor moderador”, e em seguidaum grupo de interessados nessa proposta inicial vai contribuindo com ou-tros “caminhos”, compondo o romance em um processo permanente de

atualização do texto.Desse modo, veri camos que o escritor que promove a narra va

em seu início possui um papel de moderador na par cipação dos leitores,que também são escritores na produção do ciber-romance, e que o faz setornar algo distante do que inicialmente poderíamos denominar de autor,editor, e leitor, pois este po de confecção cole va da obra transforma oescritor em leitor, o leitor em escritor, e ambos em editores.

Outra possibilidade de hipertexto, descrita por Saldanha (2001),seriam as ciberpoesias. A ciberpoesia ou hiperpoesia u liza as ferramen-tas que a internet oferece para incorporar em seus poemas eletrônicosimagens digitalizadas, animações e até mesmo sons, alterando com issoa concepção de poesia caracterizada pelos limites impostos pelo suporteimpresso. Temos uma poesia eletrônica que é criada com um suportetecnológico que lhe permite a inserção, inclusive, de grá cos em trêsdimensões.

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Sendo assim, Saldanha (2001) conclui que o texto confeccionadopelos ciberpoetas, não mais se limitam às palavras, visto que a potênciaimagina va ganha novos es mulos ‒ visuais e sonoros ‒ que, integradosao próprio poema, proporcionam meios para sensações e leituras imagi-na vas do poema, agora não mais suges onadas apenas pela imagem,sonoridade, sen dos e dimensão espacial das palavras numa folha.

No que diz respeito às cibernarra vas, os processos de leitura eescrita também se misturam nesse processo de interação do leitor, quese torna um potencial escritor pelas ferramentas presentes no suportetecnológico do computador quando este se virtualiza con gurando umciberespaço.

As cibernarra vas como os ciberpoemas e os ciber-romances setornam obras processo porque permanecem constantemente inacaba-das e, portanto, abertas a interferências dos seus leitores que são poten-ciais escritores. De acordo com Falci e Jardim (2007, pp. 1-2), as ciber-narra vas apresentam completudes, ainda que temporárias:

Entende-se aqui como processo de construção a narra va que permeiaessas obras, a forma como elas são “contadas” e as relações estabele-cidas entre aqueles que criam tais narra vas e aqueles que lêem essasnarra vas. Os processos de construção narra va são, segundo Paul Ri-

coeur (1994), o que permite ao homem perceber o tempo e, dessa for-ma, conseguir falar sobre o tempo, categoria fundante da experiência.Isso se deve ao fato de que as narra vas permitem estruturar o temponuma con guração em que os fatos aparecem ordenados de determi-nada maneira, de modo a poderem ser contados com um determinadosen do. Entretanto, as narra vas só se completam quando há a presençado leitor, que se confronta com a organização narra va sugerida e a re-con gura segundo a sua própria percepção, o que confere a essa relaçãoo caráter de intersubje vidade. Assim, o ato de criação de uma narra -va é também um ato baseado na criação de um processo que exige, emalguma medida, o contato de autores e leitores em partes e momentosdis ntos da mesma, para que a narra va apresente completudes, mesmoque temporárias.

No caso das cibernarra vas, veri camos também um constante“movimento relacional” entre os atos da escrita e os atos da leitura tantono que concerne à produção cria va dos seus autores como no que se

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Ferreira, I. F. (2015). A ciber(cultura) e o redimensionamento da experiência (semi)forma va...

refere à maneira como ela se apresenta materialmente pelo suporte tec-nológico de caracterís cas intera vas no ciberespaço.

Compreendemos , desse modo, que a literatura produzida por uma

tecnologia que faz sua escrita simultaneamente digital e virtual possui acaracterís ca da instabilidade no processo de sua criação cole va. Atu-almente, encontramos inúmeras de nições conceituais do que sejam oshipertextos e suas diferentes manifestações , como já citamos anterior-mente , o ciber-romance, a ciber-poesia, bem como as cibernarra vas.(Falci & Jardim, 2007).

Nessas tenta vas de de nições, uma questão que emerge comopreocupação em comum é a de se compreender como ocorre o processode produção dessas obras considerando as intervenções

, que o suporte

tecnológico a priori já realiza subje vamente no ar sta, no que tangeao modo como será construído o seu processo cria vo. Sinte zando deoutra forma, a questão que nos é apresentada seria a tenta va de com-preender as consequências para a experiência forma va no tocante aoprocesso cria vo do ar sta, quando em relação com um suporte tecno-lógico, que de antemão já determina alguns princípios para a expressãoda sua técnica , termina por in uenciar o processo de manifestação dasua subje vidade, redimensionando-a . De que modo o aparato técnico

apresentado pelo ciberespaço redimensiona a subje vidade no ato damanifestação da cria vidade dos ar stas no momento em que estão pro-duzindo a sua arte?

O ques onamento por nós apresentado só pode ser problema -zado se levarmos em consideração um elemento comum que permeiatais produções ar s cas (cibernarra vas, ciber -poesia e ciber-romance)que são produzidas no ciberespaço, isto é , o fato de todas poderem serconsideradas obras em constante processo e, por isso, abertas, uidas,

des tuídas de permanente totalidade.A ciberarte e o seu impera vo categórico da comunicação universal

As obras ar s cas produzidas no ciberespaço , ao se apropriaremdas ferramentas tecnológicas que a internet proporciona , redimensio -nam tanto as técnicas u lizadas para a produção de suas obras, assim

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como as suas formas. Esse redimensionamento, tanto das técnicas comodas formas esté cas, termina também por atribuir caracterís cas dife-rentes na esfera subje va da cria vidade dos seus ar stas. Nesse pro-cesso, percebe-se uma relação dialé ca entre a tecnologia e a cria vi-dade do ar sta , nas quais esses dois polos cons tu vos das obras dearte no ciberespaço ora se negam , ora se rea rmam em uma constantesimbiose.

Tal relação é presente em todo o processo de criação de uma obraar s ca e não somente nas obras ar s cas presentes no ciberespaço.Todavia, para re e rmos sobre essa relação, faz-se necessário levantaras peculiaridades do suporte técnico proporcionado pelo ciberespaço , como também as peculiaridades do ato cria vo dos ar stas que produ-

zem arte nesse espaço e que, por conseguinte, são a vos no processo deedi cação da cibercultura.

Lévy (1999) assinala que o ar sta do ciberespaço é aquele queopera com virtualidades, pois seu trabalho consiste em um movimentoconstante de criação virtual, no qual é preciso arquitetar os espaços decomunicação com suas diferentes caracterís cas. Podemos considerardois pos de mundos virtuais: o que denominamos de o -linee o que de-nominamos de on-line. O mundo virtual o -line é considerado “fechado”

porque é limitado e editado, como , por exemplo, os CD-ROMs, ao passoque o mundo virtual on line é possível de ser acessado através de umain nita rede aberta à interação e com ela à transformação e também àconexão com outros mundos virtuais. Embora consideremos a existênciadesses dois “mundos” virtuais, nossa re exão se debruça sobre o mun-do virtual on line , que traz consigo algumas caracterís cas especí cas naprodução de suas artes.

Uma das caracterís cas mais constantes da ciberarte é a par cipação nasobras daqueles que as provam, interpretam, exploram ou lêem. Nessecaso, não se trata apenas de uma par cipação na construção do sen do,mas sim uma co-produção da obra, já que o “espectador” é chamado aintervir diretamente na atualização (a materialização, a exibição, a edição,o desenrolar efe vo aqui e agora) de uma sequência de signos ou de acon-tecimentos ... Tanto a criação cole va como a par cipação dos intérpretescaminham lado a lado com uma terceira caracterís ca especial da cibe-rarte: a criação con nua. A obra virtual é “aberta” por construção. (Lévy,1999. pp. 135-136)

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Para além dessa questão da constante intera vidade, uma centralespeci cidade da ciberarte seria o que Lévy (1999) denomina de ausênciada gura do autor e da gravação.

Tanto a ausência da gura do autor como a ausência da gravação sãocaracterís cas imanentes das obras ar s cas presentes no ciberespaço , estas se tornam possibilidades em função das ferramentas que o suportetecnológico oferece, sobretudo, pela internet. O declínio da gravação e oda imagem de um autor se esfacelam em virtude da intera vidade carac-terís ca da produção ar s ca no ciberespaço (Ferreira, 2005) .

Todos os receptores das obras ar s cas no ciberespaço são , em po-tencial, autores pela possibilidade que as tecnologias do computador ofe-

recem a eles de , ao receberem uma mensagem , poderem reestruturá-las , o que perpetua um movimento constante de criação cole va. Tal criaçãocole va, por sua vez, por desencadear um processo de universalização datotalidade somente por momentos até que outra interação ocorra , de-sencadeia o processo de declínio da gravação que estaria relacionada àcapacidade da obra se perpetuar como a mesma, ou seja, de se conservaratravés dos tempos.

Nesse raciocínio, a obra de arte do ciberespaço seria uma obra“aberta” pela possibilidade de estar se reinventando constantemente e,portanto, desprovida de totalidade de conservação , e seria também uni-versal pela possibilidade do acesso à produção ar s ca garan da pelaintera vidade. A ciberarte estaria “marcada” pela interconexão e pela in-teligência cole va:

Para a cibercultura, a conexão é sempre preferível ao isolamento. A cone-xão é um bem em si ... Este é o impera vo categórico da cibercultura ...Os veículos de informação não estariam mais no espaço, mas, por meio deuma espécie de reviravolta topológica, todo o espaço se tornaria um canal

intera vo. A cibercultura aponta para uma civilização da telepresença gene-ralizada. Para além de uma sica da comunicação, a interconexão cons tuia humanidade em um con nuo sem fronteiras, cava um meio informacionaloceânico, mergulha os seres e as coisas no mesmo banho de comunicaçãointera va. A interconexão tece um universal por contato. (Lévy, 1999. p. 127)

O impera vo categórico da cibercultura pela universalidade da co-municação também ocorre na ciberarte. Nesse sen do, compreende-se

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que a obra de arte intera va produzida no ciberespaço alcança a sua uni-versalidade à medida que se apresenta onipresente na rede. Porém, nãose trata apenas de uma universalidade ao acesso de contemplação dasobras, mas ao acesso universal quanto à possibilidade de se tornar um ar-

sta e interferir cria vamente na obra acessada. Nessa interação cole va , as obras de arte se tornam “abertas” porque deixam de possuir um fecha-mento de sen do causado pelo autor e deixa de ser uma obra que se pos-sa conservar porque se metamorfoseia com o passar do tempo na rede.

Pensando sobre a mimese e a racionalidade na produção ar s ca dehipertextos

A arte para conseguir expressar-se, ou seja, para conseguir alcançar aque-la linguagem imediata que permite a expressão daquilo que nenhuma lin-guagem consegue expressar, esta necessita da tensão entre os elementosmimé cos e racionais inerentes a ela. O elemento mimé co permite aoindivíduo o encontro com o natural, com o encantamento, efetuando aapresentação do irracional, isto é, fornece a possibilidade da expressão doinconsciente, das sensações, dos sen mentos, do afeto que o ar sta conse-gue demonstrar, quando em contato com o natural, encontra por meio doelemento racional, ou seja, com o seu momento criador e organizador, ou

até diria, de planejamento, a possibilidade de transformar em linguagemtoda a sua irracionalidade. Porém, para que esta linguagem se torne con-creta, para tornar-se obje va, faz-se necessária à presença da técnica comoo meio para a consolidação da expressão racional do elemento irracionalque é a mimeses. (Ferreira, 2005, pp . 8-9)

Toda expressão ar s ca , independente da sua natureza e do tempohistórico na qual está inserida a sua produção , necessita de dois elemen-tos que são imanentes à sua cons tuição: a mimese e a racionalidade.

A mimese se refere diretamente à manifestação da subje vidade do ar-sta e à racionalidade ao modo como ele organiza tecnicamente toda asua irracionalidade. Nessa relação, a técnica se cons tui o elemento demediação entre a mimese e a racionalidade dos ar stas no momento daprodução de suas obras.

Conforme Adorno (1988), esses dois elementos cons tu vos na pro-dução de uma obra ar s ca devem se manifestar em uma relação dialé-

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ca de permanente tensão, ou seja, não deve imperar nenhum elementode maneira absoluta sobre o outro para que a obra produzida consiga serverdadeiramente expressiva.

A garan a da permanência da tensão dialé ca entre os elementosmimé cos e racionais na produção de uma obra de arte se apresenta cadavez mais obstaculizada pela problemá ca social a que Adorno e Horkhei-mer (1985) denominaram de indústria cultural.

A categoria de análise “indústria cultural” se trata de um conceitoque busca inves gar sobre toda a problemá ca da cultura que se apre-senta massi cada. Além de trabalhar com a problemá ca da massi ca-ção da cultura, o conceito “indústria cultural” está indissociável do con-

ceito de “semiformação cultural”. Para Adorno e Horkheimer (1985), apresença obje va da indústria cultural produz , ao mesmo instante , umaconsequência subje va que eles denominam de “semiformação cultu-ral”. Nesse sen do, as categorias de análise (indústria cultural, semifor-mação cultural e formação cultural) são totalmente integradas de modoa impossibilitar suas de nições de maneira separada, pois , ao se tentarexplicar uma, faz-se necessária a menção às outras. Talvez alguns trechosda de nição Kulturindustrie (indústria cultural), presente no livro Pala-vras e Sinais (1995, pp. 237-238), possam auxiliar na compreensão desta

categoria:Com o termo consumo chegamos ao cerne da concepção ... de indústriacultural: na sociedade contemporânea, as produções do espírito já não sãoapenas também mercadorias como o eram outrora, mas tornaram-se inte-gralmente mercadorias, isto é, são inteiramente orientadas – da concepçãoà apresentação – pelo regime do lucro.

A indústria cultural, além de deformar a produção e a circulação doconhecimento, invade também a área da esté ca, apoderando-se da arte,criando o que Adorno (1996) considera como sendo um falso ar s co. Osprodutos da indústria cultural sempre se repetem e se renovam, de ma-neira padronizada e uniformizada, cristalizando o el estado de coisas. Emum processo de iden cação com o cole vo, o indivíduo almeja sen r--se seguro por meio dos “aplausos” que recebe da dominante ideologia,descartando o que ele teme, que nada mais é do que o pensamento capazde possibilitar manifestações advindas do outro, promovendo muito mais

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um processo de iden cação almejado pela ideologia do que de diferen-ciação dentro do cole vo.

Para Adorno (1996), a indústria cultural o mizada pela reprodu bi-

lidade técnica analisada por Benjamin (1993) seria a face obje va da facesubje va a que ele denomina de “semiformação cultural”, que é o para-doxo da formação cultural. Adorno, no seu texto “Teoria da semicultura” , de niu a semiformação cultural como sendo o

símbolo de uma consciência que renunciou a autodeterminação, prende--se, de maneira obs nada, a elementos culturais aprovados. Sob seu male-

cio gravitam como algo decomposto que se orienta à barbárie. Isso tudonão encontra explicação a par r do que tem acontecido ul mamente, nem,certamente, como expressão tópica da sociedade de massas, que, aliás,nada consegue explicar mesmo, apenas assinala um ponto cego ao qualdeveria se aplicar o trabalho do conhecimento. Apesar de toda ilustração ede toda informação que se difunde (e até mesmo com sua ajuda) , a semi-formação passou a ser a forma dominante da consciência atual, o que exigeuma teoria que seja abrangente . (Adorno, 1996, p. 389)

Como já relatado anteriormente , as obras de arte no ciberespaço , eem especí co citamos a ciberpoesia, o ciber-romance e a cibernarra va,possuem duas caracterís cas centrais: a ausência do autor e a ausência dagravação. Para os adeptos e o mistas dessas produções ‒ podemos des-tacar como expoente Pierre Lévy ‒ autor e gravação estariam alojados nodeclínio da totalidade das referidas obras, o que seria , nessa perspec va,mo vo para que elas conseguissem alcançar o seu status de universalida-de. Estamos diante de uma obra de arte que renuncia a autodeterminaçãoda autoria e da gravação em seu ato cria vo.

A universalidade da ciberarte é consumada por centrais mo vos, asaber: o declínio do autor e com ele da gravação; a onipresença da rede ecom ela do acesso; e, por m, as in nitas possibilidades de atualização des-sas obras. Tais atualizações ocorrem por meio da interação e da imersão:

En m, a interação e a imersão, picas das realidades virtuais, ilustramum princípio de imanência da mensagem ao seu receptor que pode seraplicado a todas as modalidades do digital: a obra não está mais distante,e sim ao alcance da mão. Par cipamos dela, a transformamos, somos emparte seus autores ... A imanência das mensagens aos seus receptores,

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sua abertura, a transformação con nua e coopera va de uma memória-- uxo dos grupos humanos, todas essas caracterís cas atualizam o declí-nio da totalização ... Quanto ao novo universal, realiza-se na dinâmica deinterconexão da hipermídia on-line, na divisão do oceano mnemônico ou

informacional, na ubiquidade do virtual no seio das redes que o transpor-tam. Em suma, a universalidade vem do fato de que nos banhamos todosno mesmo rio de informações, e a perda da totalidade, da enchente dilu-viana. Não contente de correr sempre, o rio Heráclito agora trasbordou.(Lévy, 1999 p. 151)

Levando em conta que o declínio da totalização na ciberarte é umacaracterís ca imanente, isto é, cons tu va dela, faz-se necessário pensaro que tal peculiaridade traz de repercussão para o seu leitor-escritor no

que diz respeito à sua experiência forma va no âmbito da esté ca.Adorno (1996) de ne a semiformação ‒ a condição subje va a que

o sujeito se encontra frente ao processo totalitário da indústria cultural –como uma consciência que renuncia à autodeterminação.

Com relação à produção de obras ar s cas, independente dessasrealizadas no ciberespaço, tal renúncia da consciência à sua autodetermi-nação se realiza de modo consciente e também de maneira inconscien-te. Um exemplo de renúncia à autodeterminação consciente é quandoo ar sta já produz a sua arte pensando nas condições para que ela sejaconsumida pelo mercado; e um exemplo de renúncia à autodeterminaçãode maneira inconsciente seria quando o ar sta não está preocupado emproduzir uma obra para ser vendida, contudo, termina por produzir algoestandardizado , por já apresentar os seus sen dos regredidos pelas obrasda indústria cultural , que tem contato no co diano de sua vida.

Na produção da ciberarte, encontramos um elemento que con gurauma “nova” forma de renúncia à autodeterminação da consciência que já

se estabelece a priori pelo aparato tecnológico que impossibilita ao seuar sta a totalidade da sua criação. Estamos diante de um processo deprodução ar s ca - imposto primeiramente pelo aparato tecnológico - decria vidade fragmentada.

Os o mistas de tal processo de criação argumentam que o declíniode totalidade da ciberarte proporciona a possibilidade de todos serem ar-

stas, entretanto, não problema zam o que todos esses ar stas perdem

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de racionalidade e de mimese nesse processo no qual o aparato tecnológi-co minimiza essa par cipação em pequenos episódios de criação.

A minimização dessa par cipação cria va e, portanto, fragmentada,

exige do ar sta uma formação técnica menos so s cada ‒ o que é empo-brecedor no que se refere ao elemento racional de organização da mime-se. Outra questão é que a própria manifestação da mimese também seapresenta compactada em fragmentos de expressão. Temos um conjuntode subje vidades fragmentadas sendo materializadas em obras.

Não estamos defendendo um argumento tecnofóbico que transfor-me a arte em um processo a-histórico que negue as transformações a quea sociedade vem passando com a inserção das novas tecnologias, massim problema zando a dialé ca em que tais processos apresentam paraa formação dos ar stas. Esses processos podem auxiliar na regressão dossen dos de tais ar stas e colaborar para a fe chização da ciberarte.

Com essa exposição ca-nos clara a exigência que Adorno (2001)anuncia sobre a necessidade de rigor com relação à consciência técnica naprodução de uma obra ar s ca para que ela consiga oferecer resistênciaao totalitarismo da indústria cultural e, com isso, consiga ser concreta eindissolúvel.

Temos a clareza de que os ar stas , que fazem uso desse aparatotecnológico para a criação de obras no ciberespaço , podem ter na suahistória de vida uma formação ar s ca técnica que lhes ofereça a habi-lidade para criar uma obra em sua totalidade . Porém, nesse contexto daciberarte, tal formação deixa de ser uma exigência A exigência da tradição,condição para a formação , deixa de exis r imposta pela própria técnica.

Em Adorno, e com ele concordamos, uma das condições essenciaispara a formação é a tradição que , com sua perda ocasionada pelo “desen -cantamento do mundo” (expressão weberiana), desencadeia um estadode carência de imagens e formas incompa vel com a formação, pois aautoridade, ainda que não tão bem, efetuava a mediação entre a tradiçãoe os sujeitos.

Não se trata aqui de procurar uma solução para a generalização dasemiformação no passado , com a tradição refutando todas as possibili-dades de produzir arte proporcionadas pelas tecnologias atuais, mas simde não negar todas as conquistas efetuadas pela formação para a pro-

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dução de obras de arte até então, procurando uma resolução no futuro,retomando o conceito hegeliano denominado Au ebung . Este, que é oconceito da ideia de conservar a transcendência, o que signi ca conservaro já absorvido por meio da tradição e devolver algo mais, desencadeandoum confronto que no plano obje vo esclarece, pois tal conceito já é emsi mesmo uma expressão de uma superação que preserva ‒ dito de outromodo, conserva os contrários u lizando o elemento nega vo para obterum resultado posi vo. Nisto, segundo Zuin, Ramos-Oliveira e Pucci (2000),cons tui o seu trajeto histórico.

A problemá ca que estamos pontuando é que as técnicas presen-tes no ciberespaço para o desenvolvimento de obras de arte , que se- jam “abertas” a todos os leitores que desejem ser também autores , jácarregam em si mesmas a negação da Au ebung , isto é, a exigência deuma formação que seja capaz de conservar a transcendência. Tal negaçãoocorre no mesmo instante em que é oferecida ao leitor a possibilidadede ser autor. A negação da conservação da transcendência chega ao seuapogeu quando se elimina totalmente a gura do autor e, com ela, todatradição – autoridade que estabelece a mediação entre o sujeito e a pro-dução da sua obra de arte.

Para explicitar sua ideia de fragmentação causada pela semicultu-

ra com uma aparência de totalidade, Adorno (1996, p. 405) apoia-se naseguinte a rmação: “O semiculto dedica-se à conservação de si mesmosem si mesmo”, ou seja, o indivíduo acredita que possui uma cultura etrabalha para mantê-la, quando , na verdade , não a tem, pois a semifor-mação nega a este indivíduo tanto a experiência como o conceito, forma-dores da subje vidade e, portanto, meios para uma formação cultural.Cria-se, então, um indivíduo sem memória.

A memória, que necessariamente passa por uma dimensão histó-

rica e, portanto , de tradição, exige do indivíduo a experiência e não umafragmentação imposta pela semicultura como totalidade, isto é, umafragmentação que impõe um estado forma vo pontual, que desencadeiao que Adorno (1996, p. 405) expressou como: “É isso sem julgamento”,caracterizado como isolado, agressivo e conformista, carregando um po-tencial destru vo da cultura, na medida em que gera a gura do medíocreque não se aprofunda e nem permite que o outro se aprofunde. Sendoassim, Adorno posiciona-se alegando que:

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A semiformação é uma fraqueza em relação ao tempo, à memória, únicamediação que realiza na consciência aquela síntese da experiência que ca-racterizou a formação cultural em outros tempos. Não é por acaso que osemiculto faz alarde de sua má memória, orgulhoso de suas múl plas ocu-

pações e da consequente sobrecarga. Talvez todo esse barulho que a ideo-logia losó ca atual faz em torno do tempo resulte deste ter se extraviadopara os homens e, por isso, deva ser conjurado . (1996, p. 406)

A fraqueza, com relação ao tempo e à memória , é realizada de ma -neira explícita nas obras de arte produzidas no ciberespaço quando ocorreo redimensionamento do conceito clássico de universalidade de arte parao conceito de universalidade baseado na concepção de acesso à produção.

A concepção clássica de universalidade da arte está fundamentadana concepção de que uma obra de arte se torna universal à medida que , em diferentes tempos históricos – ainda que sendo a mesma e, portanto,conservada – possa ser reinterpretada de diversas formas. A universalida-de da arte nessa perspec va clássica está relacionada com a capacidadeque uma obra possui de fomentar inúmeras re exões, em inúmeros luga-res, em diferentes épocas. Nesse aspecto, discordamos com os defensoreso mistas da ciberarte que a rmam que uma obra de arte portadora detotalidade ‒ autor e gravação ‒ negaria a possibilidade da sua universa-

lidade.O entendimento sobre universalidade , na produção dos hipertextos ,

passa por um redimensionamento que atribui a caracterís ca de univer-sal às obras de arte produzidas no ciberespaço não pela possibilidade deatribuição de diferentes sen dos que se perpetuam durante os tempos,mas estaria alocada na possibilidade de acesso à interferência no proces-so cria vo. Trata-se, portanto, de uma universalidade sem totalidade aque Lévy (1999) denomina de “completudes mesmo que temporárias”.

No entanto, está na totalidade a possibilidade de resgate da tradição e daideia de conservação da transcendência. Nesse sen do, a ausência de to-talidade se torna uma fraqueza em relação ao tempo e à memória e, dessemodo, carrega em si mesma a potência semiforma va.

Uma problemá ca como essa não é passível de a rma vas sociaisgeneralizadoras, já que os sujeitos que u lizam tais técnicas no ciberespa-ço para a produção de obras de arte como a ciberpoesia, o ciber-romance

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e a cibernarra va podem tanto fazer uso delas de maneira intraesté cacomo de maneira extraesté ca.

A técnica pode ser, por um lado, intra-esté ca ajudando a arte como ummeio para efe var a sua expressão, ou, por outro lado, tornando-se extra--esté ca, ou seja, um m em si mesma, desencadeando a plena integraçãoda obra de arte no seio da indústria cultural, rompendo a tensão entre oselementos mimé cos e os elementos racionais, destruindo sua diale cida-de, isto é, acabando com a sua possibilidade de expressão e gerando tãosomente uma manifestação ar s ca que é interpretada ilusoriamente pelasociedade como sendo expressão, mas na realidade é tão somente umamanifestação que não consegue se expressar . (Ferreira, 2005, p. 9)

O redimensionamento da técnica para a produção de hipertextos – ciberpoemas, ciber-romances e cibernarra vas – produz também umredimensionamento do processo subje vo de criação que, se antes sefundamentava na exigência pela totalidade do processo cria vo, agora sefundamenta na fragmentação do processo cria vo que, por consequên-cia, também é uma fragmentação do processo subje vo que é inerentea todo ato cria vo. Tal fragmentação se assemelha ao trabalho fabril emsérie, no qual os escritores não conseguem se visualizar ao nal do pro-cesso como autores.

Efetuamos as seguintes ponderações com relação às sínteses postu-ladas pelos o mistas da ciberarte na produção de hipertextos – ciberpo-emas, ciber-romances e cibernarra vas – já anunciadas durante o nossocapítulo:

As técnicas que proporcionam a intera vidade virtual , ao se decla-rarem como o mo vo das obras ar s cas no ciberespaço serem “abertas”porque oferecem a possibilidade de todos serem escritores em poten-ciais, negam no mesmo instante essa “abertura” no momento em que o

a priori técnico fragmenta o processo cria vo antes da sua manifestação.O acesso é “fechado” e não “aberto” , como a rma ser no que diz respeitoao processo de criação, exatamente porque o constrange tecnicamente,fragmentando-o.

Ao tratarem da universalidade na ciberarte, ela é entendida comoa consequência advinda da destotalização que as técnicas possibilitam , àmedida que podem ser constantemente modi cadas por meio do uxo

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de constantes interações de leitores que se tornam no mesmo instantetambém escritores. Nessa compreensão , ao se tratar do conceito de uni-versalidade da arte, ela é apresentada como acesso à interferência e nãocomo a possibilidade de a arte conseguir perdurar ao longo do tempo , podendo ser reinterpretada de inúmeras formas, sendo universal pelossen dos que lhe são atribuídos pelo transcorrer dos tempos, entretanto:

O relacionamento da obra de arte com o universal torna-se tanto mais pro-fundo quanto menos a obra tenha a ver explicitamente com universalida-des; quanto mais se impregne com seu próprio mundo em destaque, comseu material seus problemas, sua consistência, sua maneira de expressar--se. Apenas a ngindo o ápice da individualização genuína, apenas obs -nadamente seguindo os desideratos de seu concre zar-se é que a obra setorna verdadeiramente portadora do universal. (Adorno, 2001, p. 25)

Embora denunciemos que as técnicas intera vas para a produçãode hipertextos tenham em si mesmas uma caracterís ca semiforma vaporque exige a fragmentação, tal a rma va não pode ser generalizadasem levar em consideração o conhecimento da formação ar s ca queseus autores possuem ao u lizarem tais técnicas, o que impele essa dis-cussão para pesquisas de cunho antropológico de po estudo de casopara a inves gação desses grupos de ar stas. Porém, aceitar a síntese de

que essas formas de fazer arte no ciberespaço , em virtude das suas téc-nicas intera vas, se tornem portadoras da universalidade e de um pro-cesso cria vo “aberto” porque “ uxo” à medida que é “destotalizável” , também se con gura como uma ingenuidade epistemológica diante darealidade macrossocial no que toca ao estado semiforma vo dos sujeitospar cipantes porque iguala de uma maneira simpli cada o conceito àrealidade.

Nesse sen do, para Adorno , em sua obra Dialé ca Nega va (2009,p. 129), a “Iden dade é a forma originária da ideologia”, e tal linearidadeargumenta va produz pseudossínteses que, enquanto ideologia, descon-sidera a não iden dade do conceito e a realidade como processo histó-rico. Essa não iden dade é uma construção humana e é, portanto, fun-damentada em constantes contradições , havendo, nesse aspecto, umadependência entre conceito e realidade, o que garante uma duplicidadepara tal conceito que é desconsiderada na gênese da sua própria elabo-ração, tornando-se , dessa forma , ideológica ao a rmar que conceito e

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realidade se coincidem. Eis aqui o engodo de tais a rma vas realizadaspelos o mistas dessas técnicas u lizadas no ciberespaço para a produçãodos hipertextos.

A negação das pseudossínteses é um esforço da dialé ca nega vaem resgatar tudo o que não está subme do à totalidade, isto é, aos fatosobservados, rejeitando, dessa maneira, uma leitura sistêmica da realida-de para – por oposto que aparente ser – elaborar uma análise macro dasociedade sem, contudo, re rar o con ito entre o par cular e o universal . Isso jus ca a nossa problema zação conceitual com relação a tais a r-ma vas o mistas na realização das técnicas presentes na produção dehipertextos , e a nossa proposição de não recair em crí cas generalistasdivulgando a necessidade de pesquisas empíricas com os referidos gru-pos de ar stas, e que se busque iden car a formação que a priori essessujeitos possuem em um processo forma vo anterior à u lização dessastécnicas que lhes são apresentadas pelo ciberespaço e como se estabele-cem a relação de tais sujeitos com elas.

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Silva, N. L. S. (2015). Arte dos limites, limites da arte e releituras sobre iden dade

Arte dos limites, limites da arte e releituras sobreiden dade

Nancy Lamenza Sholl da Silva

Por algum mo vo estranho ou desejo desconhecido para enfrentaro desa o de relacionar estas três palavras: mídia, cultura e arte, recor-reremos a Lispector (1999). Não é propriamente uma citação, mas umaapropriação e reciclagem. São fragmentos que surgem como um novo

texto. São reverberações. O trabalho com as palavras me faz supor que éem mim, como um representante de nós, que devo procurar fatos irredu-veis, mas revolta irredu vel também, a violenta compaixão da revolta.

Eu sou o outro. Eu quero ser o outro. Porque quero que venha uma jus-ça um pouco mais doida. Uma que levasse em conta que a fala humana

falha, que às vezes o silêncio é tão bruto que sobra apenas o indizível. Aviolência é o indizível e somente uma jus ça um pouco doida ajuda a lem-brar que nossa grande luta é a do medo. Não quero as coisas que foramse tornando as palavras que me fazem dormir tranquila: quero o áspero.

Durante o período em que vivi na Cidade do México, experimenteialgumas impossibilidades, fatos e revoltas irredu veis. Contudo, a grandedescoberta foi o indizível. Não um indizível qualquer, desses que surgemporque você não domina outro idioma. Porém, no distanciamento cultu-ral, o reconhecimento de que somos iguais. Descobri a violência que calaporque produz a vamente a inexistência e se alimenta do medo. Fiz umdoutorado em Estudos La no-Americanos e foi a primeira vez que sen omal-estar da civilização encarnado em minha história. Comecei a indagar

como o chamado processo civilizatório ou de civilização destruiu civiliza-ções. Entretanto, a destruição não veio somente do extermínio, mas daprodução de um selvagem. A maior violência foi ensinar a conviver comdiferentes projetos civilizatórios apenas para validar o que poderíamoschamar de projeto civilizatório “eurocêntrico”. Mesmo correndo o risco deperder a complexidade do contexto,o eurocêntrico é retomado como umametáfora estratégica para sinalizar a coexistência de outros projetos civi-lizatórios que levamos à deriva do inatual. Podemos usar recortes étnicos

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ou geográ cos para ressaltar as existências que foram transformadas eminexistências através da negação do outro: o projeto africano, indígena,asiá co, árabe, indiano.

Só uma jus ça muito doida para ajudar a encontrar o terreno, o lugar,o espaço, o local. O terreno foi esvaziado, mas o vazio pode ser produzidocomo ausência, carência ou o não dito. Este trabalho deseja compar lharexperiências que tentam fazer da consciência do vazio uma descobertada potência do não dito que gera um dizer para além da subalternidade.Não posso garan r que são experiências hegemônicas, amplas, represen-ta vas. Posso a rmar que são experiências germinadoras. É dessas subje-

vidades rebeldes que lutam com sua alteridade conformista que desejofalar. Começaremos pelas narra vas dos ar stas que compõem cole vose associações ar s co-culturais. Aqui serão privilegiadas as narra vas doCole vo NeomuralistaNezaArtNel e da Associação Cultural Nós do Morro.O primeiro é um cole vo de ar stas plás cos da periferia da Cidade doMéxico, formados pelo Centro Nacional das Artes; o segundo é uma As-sociação que trabalha com teatro na favela do Vidigal, na zona sul do Riode Janeiro, formado por moradores com percurso pro ssional no teatro.

Entre discursos e narra vas

Há narra va quando as histórias conservam seu poder germina voe são radicalmente incompa veis com informações autoexplica vas. Asnarra vas guardam o poder do estranhamento, as informações guardamo poder dos esclarecimentos. Acompanharemos ar stas que se nomeiam,de um lado, como executores de uma arte não protegida e, de outro,como mul plicadores. Tais nomeações falam de uma posição com relaçãoà arte.

Esses remedos, imitações ridículas ou grosseiras de vanguardas que existematualmente já não inovam mais, não têm um compromisso com a socieda-de, o ar sta converteu-se num pro ssional da publicidade, da autopromo-ção, um pro ssional que gera coisas estranhas, aparentemente obscuras,aparentemente estranhas. Servem para esse fenômeno que se chama arte...e é um instrumento que serve para ra car status, para dividir o cultodo popular, para que os ricos se sintam ricos e mais especiais comprandouma obra que somente eles entendem. Pobre da massa estúpida que nãoentende a arte, por isso tem bem merecido o que possuem, são pobres, sãoidiotas, são feios. (Silva, 2008,p. 166)

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Silva, N. L. S. (2015). Arte dos limites, limites da arte e releituras sobre iden dade

O Cole vo trabalha a par r de uma ideia de arte de bairro e apresen-ta uma crí ca ao que denomina covardia e traição da origem, através daqual iden cam um medo que alimenta um neoexo smo que revela umaatualização da vergonha do colonizado; covardia e traição da origem querevela uma tensão entre a globalização e o local, entre a homogenização ea alteridade, entre a diferença e a iden dade, entre a colonização, a pós--colonização. Este repúdio à cultura anterior gerou uma banalização dasraízes e um vazio referencial. Banalização que faz perguntar: se não nospercebemos como possuidores de nenhuma riqueza cultural, nenhumvalor social, como buscar a legi mação de si sem recorrer à negação desua origem?

A estratégia proposta é conceber o ar sta como um executor deuma arte não protegida porque é uma arte que se encontra na rua e tempor obje vo criar pontes entre a obra e o público que não visita galerias,nem vai a museus. “Pintamos na rua porque nos interessa a gente quepassa por aqui, a gente do bairro.” (Silva, 2008, p. 166) A arte deve assu-mir um compromisso com a realidade que se vive, a arte e seu executordevem ser uma arte que possa sofrer intervenções, uma arte que possaser apropriada. “Com que intenção? Porque Neza Arte Nel é um bas ãoda iden dade, o que querem é retomar e dar importância à iden dade efalar de seu bairro e de todos os bairros” (Silva, 2008, p. 166). O Cole voNeza Arte Nel a rma desde um fora que é dentro. Desde este contexto defende uma esté ca que possui o propósito de negar a ausência de va-lor. Tal esté ca não pretende colocar o popular como um novo culto, masuma ideia de local que a rma uma experiência esté ca de bairro. Não ésu ciente ocupar o bairro e intervir no bairro este camente. A arte debairro é uma esté ca que pode e deve ser transportada para diferentesterritórios. O Cole vo iden ca na forma de viver da periferia uma esté -ca da qual se apropria.

Observamos que existe uma proposta esté ca que busca alcançaruma consistência, todavia ao mesmo tempo esta proposta esté ca vemmarcada pela lógica de bairro. Seja porque os ar stas se de nem porsua origem, seja pela valorização das expressões do bairro, seja por ocu-par espaços do bairro ou espaços populares. O bairro são as pessoas,o lugar e o valor a ser trabalhado. Entretanto, o bairro, como valor dereferência, não é uma tarefa fácil. Tomar consciência de seu valor é um

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processo através do qual se transparecem muitos outros con itos entrearte e cidade.

Estes con itos exigem uma arte na qual o ar sta sempre está em

estado de luta e principalmente exige que cuide de um fenômeno queo Cole vo denomina “covardia da origem”, que surge de forma clara nofragmento abaixo:

Ela foi uma pessoa que me entendeu quando estávamos na Esmeralda,porém algo que nha é que era uma menina “desclassada”, diria que pre-tendia estar numa “parada” que não estava, numa fantasia que desejavaestar ... desprezava os demais, como uma espécie de covardia da origem.(Silva, 2008, p. 180)

A covardia de origem gera a autotraição como ar sta. É uma crençade que, para ser um ar sta reconhecido ou um ar sta que tenha a opor-tunidade de entrar no mercado de arte, fosse necessário desfazer-se desua origem e transformar-se num remedo, ou numa imitação barata daelite. Este fenômeno acaba por produzir uma arte manietada, subjugadapor questões comerciais, e uma arte que não gera con itos porque estásubme da à indústria cultural, às galerias, ao curador, ao crí co de arte.Tal sistema obedece à manutenção de uma série de clichês de classe, em

que a liberdade de uma arte sem referenciais sociais na realidade alimen-ta um classismo.Não é lamentável buscar outras coisas, isso é legí mo, é importante con-quistar coisas para ter um melhor nível de vida, porém de ni vamentenão te coloca num melhor nível de vida você trair a si mesmo e trair a suaorigem, ao contrário, produz uma qualidade inferior de vida, te transformanum ente mesquinho e pouco cria vo, porque o que te move é o medo, omedo de estar bem ...a cria vidade ocorre na segurança e a segurança é aiden dade que garante, é o fato de ser você mesmo, é o fato de acreditar

que pode gerar coisas. (Silva, 2008, p. 180)

Os referidos elementos con ituosos são elementos que atualizama questão ainda presente do exó co-folclórico versus o autên co. Esteneoexo smo que tem como base o bairro, ou no caso brasileiro-Rio de janeiro, a favela, parece estar relacionado a uma questão mais ampla,que seria a vergonha do colonizado, cito :

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Silva, N. L. S. (2015). Arte dos limites, limites da arte e releituras sobre iden dade

Começa a exis r uma vergonha, existe um medo da origem, da pobreza,da colonização, da derrota que teve o indígena, essa vergonha segue sen-do muito forte, da pobreza ...seu pai é operário ...seu pai é camponês, umíndio, baixinho, desnutrido, débil, ignorante. Esse horror à origem gera

um fenômeno muito nefasto de repúdio à cultura anterior. (Silva, 2008,p. 182)

Tal percepção dos efeitos nefastos do repúdio à cultura anterior re-força a hipótese de que a legi mação, o reconhecimento e a visibilidadeexigem um posicionar-se, exigem um território de referência. Quandoeste território está sobredeterminado de denominações que desquali -cam e classi cam, o vazio produz a necessidade de gerar algo próprio. Sea confrontação com o outro produz um desvalor ou a negação de si, abusca da iden dade é a busca de outra alteridade.

Você vinha de um lugar junto ao cu da cidade, ao lixão, a um dos lixõesda cidade que se enchia de pó, que nas chuvas era um lamaçal, que nostempos de seca era um lugar de rodamoinhos de pó constantemente; umlugar que fedia a lixo, era um lugar que signi cava tudo de mau e entãoa surpresa, se gera um fenômeno de iden dade muito forte. Sinto que éessa consciência de vazio que de repente faz com que se comece a gerarsímbolos ...dizem os sociólogos que a iden dade surge da apropriação deum lugar. (Silva, 2008, p. 183)

Apropriar-se para desenvolver a autoridade, para dizer o que noscons tui e nos caracteriza e o que não nos expressa. Desenvolver umaautoridade para de nir-se exige a capacidade de construir estratégias deluta contra a imposição de critérios que partem de cima. Apropriar-se édesenvolver a capacidade de exercer o poder de realizar-se. Nesta reali -zação que desfaz o vazio, nos confrontamos com uma arte que ora surgecomo arte dos limites e ora, como o limite da arte.

A arte dos limites tensiona, brinca e cria a par r dos princípios daigualdade e diferença, como a rma Miguel:A questão local é muito importante ...é este reves r-se, do que tu és, essavalen a, de assumir-se com tudo, com suas limitações e virtudes ...umacura, um bálsamo contra esse ódio e também contra essa ira da origem edo lugar no qual te tocou estar e também acredito que é importante ...esteautor-reconhecimento, de ver-se como diferente e de gozar-se nessa dife-

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rença e de gozar as diferenças e de solidarizar-se com as diferenças e deestar contra as imposições.(Silva, 2008, p. 184)

O autorreconhecimento é uma cura que exige como obje vo quea produção tenha o poder de intervenção na representação do lugar, napercepção do lugar e na vivência do lugar. A arte associada à produçãosimbólica não pode signi car um descolamento da realidade social, senãouma intervenção que possa ressigni car e re-orientar as relações sociais.Nas palavras do Cole vo: “Não poderíamos aportar se não véssemos ospés bem plantados no piso do que somos” (Silva, 2008, p. 193). É uma artedos limites na medida em que ao cole vo “não interessa car na margina -lidade e tampouco se integrar e perder a iden dade” (Silva, 2008, p. 194),não deseja através da arte de bairro se encapsular, a intenção é a rmar apar r da margem como uma forma de se ver desde fora e o de fora desdedentro. É construir uma percepção desde a margem, sem u lizar de formamercan l a marginalidade, a carência e a pobreza. O jogo que se realizacom a margem é para de nir o território de luta. É um projeto esté co epsicossocial, porque a transformação do marginal em uma lógica ar s cagera um posicionamento iden tário e outra elaboração de determinadosfenômenos sociais marcados pela lógica da exclusão. É a rmar:

Disso que dizem não haver nada ou ser a falta de outra coisa que deveria ser;desse lugar falamos. Falamos a par r do pincel reciclado, do muro do metro,da nta vinílica. Falamos a par r desse lugar, não para con rmar a pobrezado material, mas a inteligência da improvisação ...falara par r da margemé sair do ideal mediano, da classe média que se mantém na forma de vidamediana ...o ideal médio é o mundo da mediocridade ...sem grandes com-promissos, sem grandes esforços, sem grandes ideais. (Silva, 2008, p. 195)

Podemos considerar que depois de tantas narra vas cabe uma per-gunta: a arte não tem limites?

Entramos nos meandros dos regimes de poder. O cole vo coloca querelacionar-se com diferentes regimes de poder é “operar conjunturas”, noRio de janeiro, a Associação Cultural Nós do Morro fala da mul plicação,uma espécie de sistema estratégico de replicação. Nesta zona de contatoentre a arte dos limites e o limite da arte, há um dimensionamento do po-der da arte. É uma zona de contato que revela condições desiguais de tro-ca, através das quais se cons tuem resistências, rejeições, assimilações,

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Silva, N. L. S. (2015). Arte dos limites, limites da arte e releituras sobre iden dade

imitações, traduções, subversões, con itos, tensões. O poder da arte seconfronta com a arte de poder.

Eu acredito que a arte conforta. Conforta no sen do da a tude. É denúncia.Não denúncia como arma, mas uma denúncia através do diver mento, doentretenimento, da pesquisa, da busca. Ela serve de re exão. Masela estálonge de resolver esta guerra na qual vivemos. Muito longe. E nem é da suacompetência ... Ela ajuda a sobreviver. Acredito que é nesse sen do. Ela teajuda a manter-se vivo. Mas não soluciona ... Eu acredito que é enfrentar oinimigo sem arma. Porém, é a muito longo prazo.(Silva, 2008, pp. 112-113)

O diferencial, a grande mudança, a grande transformação através desseprojeto é justamente a a tude ... Acredito que a grande mudança socialque nós podemos fazer não é somente na questão de que você tem essaoportunidade e vai se dar bem na vida. Não é isso! É sua a tude diante dacomunidade, diante do cole vo. (Silva, 2008, p. 128)

O diferencial é manter-se vivo e a transformação por meio de umaa tude. A a tude associada à ideia de mul plicadores são referências debase que orientam o trabalho a ser desenvolvido. O principal trabalho écons tuir-se a par r de uma loso a de vida. É uma loso a de vida quesurge para garan r projetos de vida. Dar acesso a quem não tem acesso,dar oportunidade a quem não tem oportunidade é a chave da mul plica-ção. Contudo, não se está falando somente da democra zação dos meiosde produção, ou da democra zação da cultura. É a mul plicação de uma

loso a de vida, que inclui uma re exão sobre o eu no mundo, o eu nocole vo.

“A arte é compreender como um saber que é uma inves gação, umporquê” (Silva, 1998, p. 182). A inves gação formal é uma inves gaçãosobre a vida, tanto vida social, como vida vivida como pessoal. Uma in-ves gação que pretende uma transformação. Ser ar sta não é pertencera uma companhia de teatro, desenvolver uma carreira pessoal, entrarno mercado, pintar uma obra, escrever um livro, ter sucesso, conseguirreconhecimento pessoal. Ser ar sta é transbordar-se . Ser ar sta é esta-belecer contato e expandir-se. É como se exigisse da arte uma vocaçãopública. Ser público, tornar público.

No entanto, cons tuir uma loso a de vida é um processo a longoprazo e cole vo. E, nesse caminho, encontramos assimetrias de experi-

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ências e vivências que necessitam de tempo e espaço para amadurecer,con gurar e recon gurar. É nesse contexto que aparece a função de for-mar cidadãos. A arte estaria associada ao exercício da cidadania a par rda compreensão de que as descobertas formais levam a uma percepçãodiferente do dia a dia, a uma abertura da visão de mundo, proporcionan-do subsídios para mudar a realidade vivida, porque ampli ca o imaginárioe a capacidade ressigni car. A cidadania é associada a uma consciênciados problemas mais próximos e co dianos, que gerariam uma percepçãomais ampla e geral dos problemas. Acredita-se que mediante experimen -tações esté cas se possibilita uma forma de romper com uma aneste -sia emocional e corporal que fortalece o sen mento de inferioridade.Os movimentos ar s co-culturais parecem defender uma ideia de luta

e militância que seja sustentada pela reorientação e ressigni cação doafeto , compreendida como um método para produzir o contato, o encon-tro e o confronto. A arte parece ser o suporte para alcançar diferentes ob- je vos. Obje vos polí cos, sociais, educa vos, subje vos e formais. A artenão fala somente da arte, fala do ser humano, fala da socialização, fala doexercício de poderes, fala de sobrepor o hábito, o ins tuído.

Nós temos que estar trabalhando todo o tempo na questão da diferençaporque um vem sujinho, e o outro não quer colocar a mão. Porque outrotem dentes cariados, ou quase não tem dentes na boca, ninguém quer dara mão, ninguém quer estar perto. (Silva, 2008, p. 122)

Este exercício de arte do poder e poder da arte, que faz misturarcidadão com ar sta, ajuda a retomar os efeitos da violência. As marcas docorpo sujo, maltratado, ferido, com mau cheiro, são mais do que imagens,são experiências concretas que às vezes são associadas à violência intra-familiar ou à violência da pobreza. Mas são compreendidas com maiorfrequência como signo do abandono do outro e de si mesmo. Todavia, po-deríamos perceber tais experiências como uma espécie de anestesia quedomina o corpo. Parece que a narra va está falando de corpos subme -dos, corpos que perderam o poder de expressar-se e se encontram comoví mas da ausência de sen do. A insistente associação entre pobreza, vio-lência e falta de higiene nos remete a um corpo vazio, que apenas reagee incorpora uma percepção de não valor. Por outro lado, existe um corpoque brinca. Quando brincamos, também nos sujamos. Quando damos amão para brincar a uma criança sujinha e sem dentes, presenciamos a

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Silva, N. L. S. (2015). Arte dos limites, limites da arte e releituras sobre iden dade

contradição de corpos subme dos e corpos brincantes. Através de jogosde corpo e jogos de cena, a linguagem teatral coloca o corpo como supor-te e produz efeitos diretos que bagunçam as relações entre subme mentoe brincadeira. Por isso, funciona como uma intervenção, mais do que umcontrole pelo pedagógico.

Nesta tensão entre um ato pedagógico e uma intervenção, surgecomo tema repe vo a questão da autoes ma. E, toda vez que este temasurge, também aparecem perguntas: Por que a preocupação com a auto -es ma num projeto sociocultural? Para que serve trabalhar a autoes -ma num contexto que pretende formar cidadão? Como podem produzirautoes ma estratégias esté co-formais? Auto-es ma talvez não seja amelhor palavra, mas talvez revele a falta de palavra. Então, melhor buscar

para onde nos leva o remedo de palavra que surge do indizível.A violência já é a própria pobreza ...porque é triste que uma criança, umpai em dia de chuva tenha que colocar um plás co no pé (porque sua rua épura lama) ... isso já cria uma violência nele(a) , que é a violência aonde eleestá ... o local é pobre. O banheiro (da escola) é pobre, é deprimente. Issoinconscientemente vai gerar um pensamento, que empobrece ainda mais oespírito dessa criança. Ela vai crescer tendo que ir ao banheiro e não poderse sentar ... porque não está cuidado ... sai do banheiro da escola e entra narua que não está asfaltada ... essa violência que é sair de casa para trabalhar

e ver a cidade bonita e você tem que voltar para a lama. (Silva, 2008, p. 125)

A lama e a periferia são imagens muito recorrentes para descreveros espaços populares. Entretanto, a lama, quando atravessa a fronteira etransita pela cidade bonita nos pés e na roupa dos moradores, o que apa-rece é algo que a cidade bonita não reconhece como sua, mas como umamarca do indivíduo que a carrega.

Intervir neste corpo com lama é trazer a violência da pobreza dolocal para fora desse registro que se apresenta como mera tatuagem. Oespaço não é algo que se ocupa, é uma experiência que gera pensamento.O espaço comunica, expressa e produz sen mentos, raciocínios, percep-ções. Desmecanizar as relações entre o corpo e o espaço é uma estratégiaesté co-formal, representada aqui nos jogos de corpo e jogos de cenaque compõem o projeto de teatro, que em alguma medida produz umefeito sobre o crescer tendo que ir ao banheiro e não poder sentar porqueestá sujo, depredado e deprimente. Entre as estratégias esté co-formais

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e os comportamentos sociais, existe uma área de trabalho que faz movera “pobreza de espírito”, que tenta colocar em questão o sen mento e acrença na inferioridade.

A lama fala da cidade, do local e de como estão estruturados os ser-viços. A lama pertence à cidade, o indivíduo com lama pertence a uma ci-dade que ainda tem lama e sujeira. O sujeito brincante, quando encontracom o colega sujo no jogo de cena e de corpo, traz uma iden cação comaquele que está sujo. A brincadeira aproxima e também gera reconheci-mento. Necessitamos de encontro, desencontro, reconhecimento, aproxi-mação, confronto e estranhamento.

O que as ações ar s cas e o sujeito brincante podem produzir dediferencial é a introdução da cria vidade no espaço, ou da relação a va,a rma va com o espaço, seja o espaço de si, o espaço social, o espaço dooutro.

O outro, representado pelo companheiro de seu grupo ou pelo mun-do no qual está inserido, aparece como peça fundamental para a busca dosen do corporal que atravessa a convivência social. O teatro oferece umadinâmica onde atuar é ao mesmo tempo perceber, mostrar, pensar e fazer.É um fazer carregado de sen do. E neste sen do, tornar o corpo presentee expressivo, dar corpo a suas sensações e pensamentos, incorporar sen-

mentos é uma tarefa da vida que o teatro potencializa. A potência doteatro surge enquanto ato público . Tal experiência de ver-se a si mesmoatuando e compar lhar esta ação com outro que assiste ou atua é umaação de aproximação e distanciamento . Movimentos que proporcionamacomodações e ques onamentos, que podem rea rmar o já vivido ou po-dem recon gurar o que se pensava sabido ou podem dar forma ao quenão se sabe e ao não vivido.

Ainda persistem muitas perguntas: será que a arte tem tanto po -

der de transformação? Podemos perceber que as intervenções produ -zidas parecem estar centralizadas em ações sobre o indivíduo. Seráindivíduo ou iden dade?

O conceito de iden dade em tempos de mul culturalismo e diferen-ça não tem sido visto como um discurso atual e potente. Contudo, reven-do as narra vas dos ar stas dos movimentos ar s co-culturais entrevis-tados, nos encontramos diante da exigência de problema zar o que estão

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Silva, N. L. S. (2015). Arte dos limites, limites da arte e releituras sobre iden dade

falando quando falam da “autoes ma”, da “necessidade de ser algo”, “au-torreconhecimento”; “trair a si mesmo”; “a rmação iden tária”; “bas ãode iden dade”. A par r desta convocação, gostaria de retomar algumasre exões com as quais as narra vas poderiam dialogar: a concepção dees gma como manipulação da iden dade deteriorada de Go man (1975);a iden dade como verbo, em que a relação entre a posição e a reposiçãode mim cons tui um constante processo de iden cação apresentado porCiampa (2004); iden dades subalternas que se ancoram num modo deprodução de “diferenciação desigual”proposto por Sousa Santos (2004).

Num primeiro momento, ca a impressão de que as experiênciasque narram os efeitos do desvalor poderiam servir como um campo deanálise que pudesse realizar uma releitura do conceito de es gma, desen-volvido por Go man (1975). Na medida em que através dessas narra vasos ar stas partem do princípio de que são percebidos socialmente comopessoas portadoras de caracterís cas que não coadunam com o quadrode expecta vas sociais exigidas a um indivíduo considerado “normal”,podemos dizer que estão falando que são es gma zadas. Portanto, sãonarra vas que falam de es gmas: es gma da favela, es gma do favelado,es gma da periferia, es gma do indígena, es gma do operário ou cam-ponês, es gma do pobre, es gma de classe. Todas estas caracterís casencontram-se sobrepostas aos ar stas. São reduzidos a tais caracterís -cas e tal redução marca as relações sociais que estabelecem. Logo, antesde serem vistos como ar stas são vistos como favelados ou pobres. Des-crevem processos de manipulação de uma iden dade deteriorada. Suaarte tem que sobrepor estas caracterís cas para que seja concebida comoarte. Descrevem um processo pelo qual passam a ter que se posicionarsobre sua “origem” a m de serem “aceitos socialmente”. Os ar stas emquestão fazem desta exigência uma luta.

Porém, como ressalta o sub tulo do livro de Go man (1975), suaanálise está centrada na manipulação da deteriorização. Go m an descre -ve muito bem como deterioramos uma iden dade a par r de relaçõesnorma vas que desvalorizam determinadas caracterís cas classi cadascomo “anormais”. Inclusive explica como as pessoas portadoras dessacaracterís ca es gma zada desenvolvem estratégias de aceitação socialque passam por processos de correções diretas e indiretas do ego e ga-nhos secundários com o es gma. Porém, não podemos iden car nas

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análises de Go man (1975) por que determinadas caracterís cas sãodeterioradas e desvalorizadas e outras não são alvo desta deteriorizaçãoe desvalorização. Porque a deteriorização e o desvalor recaem sobre onegro, o favelado, o pobre, a mulher, o indígena? Citando Mar n-Baró(2007), o problema sobre a in uência social ou a facilitação social consisteem nos perguntar o que se facilita e o que se di culta em uma determi-nada sociedade ou grupo social num determinado momento histórico enuma determinada pessoa. Dito de outra maneira, as in uências sociaisnão são interferências assép cas, mas impactos valora vos sustentadosem a vidades e interesses em jogo, ou seja, toda in uência é concretaporque potencializa ou obstaculiza determinadas ações de acordo comregimes e estruturas de poder.

Nas narra vas existe, para além da denúncia da manipulação e dadeteriorização, uma busca urgente, necessária e indispensável de um po-sicionamento de si que não rea rme a marginalização, mas que potencia-lize um fazer e falar a par r da margem. Aqui passamos a dialogar comCiampa (2004).

Na linguagem de Ciampa (2004), eles tomam a “posição-de-si” (oseu ser posto) não como uma iden dade atemporal e abrem este sistemade nomear as coisas através de estratégias de re-posição, que revelam a

obje vidade social ou as relações concretas que media zam os nomescon rmando, negando ou a rmando novas possibilidades. A iden dadepré-suposta não é algo dado, mas um processo de produção que é o pró-prio processo de iden cação. Seriam estratégias para romper com pro-cessos de substancialização das posições-de-si, romper com a iden dadecomo substância. Ruptura que permite um exercício iden tário comoverbo na medida em que as relações são estabelecidas pelo agir, pelaprá ca. Ao invés de pressupor a iden dade do pecador antes do pecar,diríamos que “é pelo agir, pelo fazer, que alguém se torna algo”(Ciampa,

2004, p. 64).Por isso, é per nente e necessário o movimento de “negação da ne-

gação”, princípio que orienta o projeto do Cole vo NeomuralistaNezaArt-Nel. Este princípio não fala somente da lógica de conservação e paralisaçãodo processo de iden cação que é gerado pela negação a va do outro,mas ao mesmo tempo tenta produzir uma a rmação. Uma a rmação quenão segue as estratégias sociais apontadas por Go man (1975), porque

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um dos pontos que nega é o uso do próprio es gma como alavanca paraa superação. Não é o direito de produzir a par r de uma iden dade nãonormal, mas criar uma nova norma vidade a par r de sua “origem”. Nãoé su ciente reconhecer que toda sociedade constrói expecta vas norma-

vas, não basta denunciar o desacreditável agregado a determinadas ca-racterís cas, não se trata de aceitação social. Estamos no território dos di-reitos sociais e culturais. Não é aceitar minha diferença cultural como umasubstância que enriquece e diversi ca a cultura. Falar desde seu lugar oulocal não é um ato de correção do ego, nem ganho secundário, é disputapolí ca pelo direito de expressão. É ques onar o próprio sen do de socie-dade no qual vivemos desde os diferentes modos de viver, é o desejo deconstruir um campo de validação e de referências a par r de um território

diferencial, não de um território ideal. São estratégias por meio das quaisa luta se baseia na capacidade de redimensionar os territórios referenciaisque favoreçam outro sistema de validação iden tária. Não é a mesmice demim já dada permanentemente, mas uma relação a va e cria va com o“outro do outro”, uma “alterização da minha iden dade”.

Tal alterização da iden dade estaria relacionada ao que Sousa San-tos(2004) destaca como nova relação entre o respeito á igualdade e oprincípio do reconhecimento da diferença. A igualdade não pode ser ho-mogeneização, nem a diferença exclusão. Todavia, explorar esta tensãoentre igualdade e diferença no campo da iden dade e no contexto histó-rico de um povo colonizado não é um exercício fácil. Não acredito que adiscussão sobre colonialismo irá dar conta de toda a complexidade destecampo, mas é uma dimensão que ainda merece ser trabalhada. Aqui in-teressa, principalmente, ar cular o colonialismo do poder e a subalter-nidade a m de compreender por que mediações concretas cons tuem,sustentam, reproduzem e rompem a posição-de-si desvalorizada.

O outro do outro no contexto da subalternidade associada à ideia deum pós-colonialismo desenvolvida por Sousa Santos (2004) ajuda a tornarmais complexa essa discussão. Segundo o autor, a iden dade modernaocidental é, em grande medida, produto do colonialismo. No entanto, emse tratando do colonialismo português, exis ria uma especi cidade, o co-lonialismo subalterno. Portugal combinaria traços de colonizador e colo-nizado, tendo em vista que é um país semiperiférico no sistema mundialcapitalista e sua cultura é uma cultura de fronteira.

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A iden dade do colonizador português não se limita a conter em si a iden-dade do outro, o colonizado por ele, pois contém ela própria a iden dade

do colonizador enquanto colonizado por outrem ... A iden dade do coloni-zador é duplamente dupla, cons tuída pela conjunção de dois outros: o ou-

tro que é o colonizado e o outro que é o próprio colonizador enquanto co-lonizado ... Pode-se, pois, concluir que a disjunção da diferença é bem maiscomplexa no caso do pós-colonialismo português - uma complexidade queparadoxalmente pode redundar em conjunções ou cumplicidades insuspei-tas entre o colonizador e o colonizado ... Ao contrário do pós-colonialismoanglo-saxão, não há um outro ... O outro-outro (o colonizador) e o outro--próprio (o colonizador ele próprio colonizado) disputam na iden dade docolonizador a demarcação das margens de alteridade, mas nesse caso a al-teridade está ...dos dois lados da margem. (Sousa Santos, 2004, pp. 18-19)

O autor, com base em tais premissas, avalia que, neste sen do, seriamais importante a questão do colonialismo interno do que o pós-colo-nialismo, porque a independência, no caso do Brasil especialmente, foiuma das mais conservadoras da América La na. Esta foi caracterizada pelaoligarquia, o que ele chama de representante da colonialidade do poderque dispensa um colonialismo externo na medida em que já foi instaladoum colonialismo interno. Nesse contexto, “é crucial responder à perguntasobre quem descoloniza o que e como.”(Sousa Santos, 2004, p. 23)

Este colonialismo interno possui algumas caracterís cas a seremenfa zadas e problema zadas: a indecibilidade do colonialismo portu-guês e a incomensurabilidade das diferenças. “ As iden dades são sem -pre relacionais, mas raramente são recíprocas ... quem tem o poder paradeclarar a diferença tem poder para declará-la superior às outras dife-renças em que se espelha.”(Sousa Santos, 2004, p. 23) A iden dade é,conforme o autor, um modo de produção de poder que denomina: dife-renciação desigual. As iden dades subalternas seriam, então, uma com-binação entre o poder de declarar a diferença e o poder para resis r auma declaração que demarca uma inferioridade. “Sem resistência não háiden dade subalterna, há apenas subalternidade ... A iden dade domi-nante reproduz-se assim por dois processos dis ntos: pela negação totaldo outro e pela disputa com a iden dade subalterna do outro”(SousaSantos, 2004, p. 24). Pensar os modos de produção da iden dade do-minante é defrontar-se constantemente com a ambivalência, porque a

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Silva, N. L. S. (2015). Arte dos limites, limites da arte e releituras sobre iden dade

negação total do outro só existe através de uma produção a va da ine-xistência do outro. O desejo do outro adquire a forma de uma ausênciaabissal, de uma carência insaciável.

Entretanto, também podemos imaginar que a produção a va deuma ausência ou de uma carência acaba por abrir a possibilidade de criarformas de resistências nas quais se produza a vamente uma negação daausência e da carência. Uma resistência a rma va desde uma exteriorida-de dessa subalternidade.

Seria este o esforço dos movimentos ar s co-culturais cujas narra-vas aqui apresentamos? Produzir uma experiência de exterioridade ra-

dical que possa ir além da sobreposição da subalternidade e abrir o ter-reno para um outro dizer? Seriam estratégias para romper o silêncio doindizível e uma diferença que reclama por uma semelhança que não sejamesmismo, mas iden cação e reconhecimento? O lugar do qual falampoderia ser o das chamadas subje vidades rebeldes que, em contrapontoàs reformistas, reivindicam uma dimensão emocional no conhecimento?

Estas perguntas demandam voltar a pensar sobre os limites da artee o poder da arte. Os limites e as possibilidades da arte passam por in-terrogações que o próprio campo da arte tem feito a si mesmo desdeque se propôs como um campo autônomo, porque não é uma janela darealidade, mas uma dimensão da realidade. Ou seja, não é possível rara arte da vida. Porém, a arte apresenta um problema: sua necessária vin-culação com o sensível. A arte, por sua relação intrínseca com a matéria,não pode sustentar-se em bases idealistas. E, por outro lado, por estarassociada necessariamente ao sensível, exige outra relação com o univer-sal, porque esta necessidade a faz deter-se nas par cularidades múl plasda con ngência.

Ferry (1994) fala da autonomia da arte. Autonomia que produziu

extremas inves gações de linguagem e gerou muitas discussões com rela-ção ao realismo e ao abstracionismo. Este novo contexto impõem outrosdesa os: para que serve a arte? Qual é sua função? Qual é sua relaçãocom o mundo?

Nesta discussão entre realismo e abstracionismo, é fundamentalretomar a posição de Nunes (1989), que a rma que abstrair signi caenvolver-se com o mundo movediço das formas que somos capazes de

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fazer. “Abstrair não é a rmar uma existência separada do mundo. A von-tade ar s ca, plasmadora, com a liberdade que conquistou, exerce, emrelação com o universo extremamente mutável em que vivemos, o papelde domar as con ngências.” (Nunes, 1989, p. 122) A arte como par ci-pante da produção de formas concretas da vida social possui uma carac-terís ca singular: a autonomia da arte como liberdade de expressão eexperimentação está inserida num contexto de busca de uma libertação.

Entre nossos modernistas, a libertação pode ser iden cada comoutros nomes. Andrade (1978) defendia a necessidade de um des-recal-que das forças étnicas e Andrade (2000) acreditava na proposta da u li-dade da arte através da construção de um ar sta comum como resultadoda pesquisa, da atualização e da consciência. Boal (1996), que desenvol-veu o Teatro do Oprimido, defendia um combate esté co que deveria sertransbordado para a vida fora do teatro por meio da mul plicação e extra-polação. Mul plicação e extrapolação que se fazia através do jogo entreiden cação, reconhecimento e ressonância. É um processo de atos delibertação no mundo que colocam em disputa imagens e posições de si,imagens e relações como o outro, imagens e relações de mundo.

Os movimentos ar s co-culturais trazidos neste texto por intermé-dio das narra vas selecionadas são germinadores porque ajudam a iden-

car, problema zar e acreditar em caminhos desde a margem, em es-tratégias de exterioridade à subalternidade. Compar lhar estas narra vascons tui uma tenta va de mul plicação, ressonância e transbordamento.O encontro com tais narra vas proporciona consciência de muitas coisasnão ditas e coloca a responsabilidade do trabalho com as palavras. Atual-mente, em tempos de produ vismo, autopromoção e carreirismo, cadavez mais sinto a necessidade e di culdade de falar a par r do coraçãodo pensamento. Não é especi cidade dos movimentos ar s co-culturaisconstruir e possibilitar uma dimensão emocional do conhecimento, auniversidade também tem em algum lugar este compromisso. A nal, elapossui uma origem a qual precisa retomar: a legi midade do conhecimen-to. A legi midade é sustentada na relação com a comunidade, o lugar, acidade, o espaço, o território, o terreno. A universidade deveria se con-frontar com a covardia e traição a sua origem, assim como seu medo deestar bem, alimentado por uma subalternidade do mercado e da mídia dosaber. Trazer a universidade para este campo da mídia, cultura e arte não

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Silva, N. L. S. (2015). Arte dos limites, limites da arte e releituras sobre iden dade

é uma provocação, é uma convocação. É a tal jus ça um pouco doida quebusca o terreno, não a casa.

E, como começamos buscando o áspero, termino virando a página

e novamente reciclo, só que agora reciclo a poesia de Benede (1986,1991).Ahoratengo fechaLas preguntas y dudas convocadasSon formas de nacerenlonacidoSoylo que soy porque losotrossonHay una historiaen cada amaneceryen cada transparenciadel crepúsculoSin volver esta página

Nadiepuede ser alguienPara cruzarlo o para no cruzarloAhí está elpuenteEnlaotraorillaalguién me esperaConundurazno y un paísNunca he traído tantas cosasNunca hevenidocontanpocoNo vayas a creerlo que te cuentandel mundoEnrealidadel mundo es incontáble

En todo esprovincia de Enel mundo el abismo es un vício.

Referências

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Maheirie, K. (2015). O fotografar e as experiências cole vas em Centros de Referência em...

O fotografar e as experiências cole vas em Centrosde Referência em Assistência Social 1

Ka a Maheirie

Ao falarmos sobre arte, obje vações e prá cas ar s cas, é importan-te atentarmos para o lugar de onde falamos e as capacidades provisórias,parciais e sempre em devir que nossos lugares disciplinares nos permiteme possibilitam.

Minha aproximação com a pesquisa neste campo temá co se iniciano doutorado em Psicologia Social na PUC/SP, sob a orientação da Profª.Dra. Bader Sawaia. Na época, pesquisei a música como uma linguagemafe vo-re exiva capaz de se fazer mediadora na construção de iden da-des cole vas (Maheirie, 2001). A psicologia sócio-histórica, em especialVigotski, e autores da Etnomusicologia foram meus principais interlocu-tores na construção do potente argumento que põe a esté ca na inteli-gibilidade dos fenômenos da vida. De lá para cá, ampliando conceitos eautores, por meio da aproximação do pensamento de Rancière, tenho me

debruçado na tese de que há sempre uma esté ca na polí ca, focando oolhar nas prá cas ar s cas como experiências sensíveis que podem pos-sibilitar a construção do cole vo, assim como a transformação de modosde viver e interpretar o mundo.

Não raras vezes, as obje vações e prá cas ar s cas provocam rup-turas no universo sensível, descon gurando lugares e abrindo outras pos-sibilidades. Sob esta ó ca, as experiências esté cas são como experiên-cias nas quais sujeitos e cole vos constroem visibilidades, audibilidadese pensabilidades, con gurando-se em modos especí cos de viver e com-preender o universo do possível (Rancière, 2010). Para Rancière (2010),é a ruptura no universo sensível que cria a abertura de possibilidades emum mundo par lhado.1 Este trabalho é fruto do projeto in tulado “Experiências Cole vas em Contexto do SUAS:

o cinando nos CRAS”, o qual teve nanciamento do PROEX - Universidade Federal de SantaCatarina. Agradecemos imensamente às equipes dos Centros de Referência em AssistênciaSocial (CRAS) Saco dos Limões e Rio Tavares, do município de Florianópolis (SC), por teremacolhido e par cipado a vamente deste projeto.

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É importante frisar que, em Rancière, a esté ca deve ser compre-endida em seu sen do amplo, para além das obje vações e prá cas ar-

s cas, apontando para seu caráter sensível e presente em toda a formade ver, ouvir, sen r, pensar e agir humanos. Toda pensabilidade, audibili-dade, visibilidade e invisibilidade são permeadas por uma concepção demundo, com suas regras, con gurações e par lhas. Vale alertar, assim,que ela não pode ser considerada como emancipatória em si, mas antes, éa forma como se compreende um mundo e, justamente, por isso, pode serpautada em acordo com as con gurações da par lha ou na sua ruptura,podendo restringir ou ampliar o campo dos possíveis.

A polí ca está pautada no mundo sensível, ou seja, está pautada naesté ca, pois “a esté ca e a polí ca são maneiras de organizar o sensível”

(Rancière, 2010, p. 3). Sendo assim, as prá cas polí cas só se con guramcomo tal quando recon guram a ordem do sensível, na produção de ou-tros olhares, ouvires e pensares (Rancière, 1996; Maheirie et al., 2012).

A a vidade polí ca “é a que desloca um corpo do lugar que lhe eradesignado ou muda a des nação de um lugar; ela faz ver o que não cabiaser visto ... faz ouvir como discurso o que só era ouvido como barulho”(Rancière, 1996, p. 42). Como a polí ca recon gura a ordem do sensível,ela é ato que desnaturaliza as lógicas de dominação, perturba a ordem,

deslocando os lugares da divisão da par lha. A par lha do sensível , conceito fundamental e tulo de uma obra de

Rancière (2009), deve ser compreendida em dois sen dos. Por um lado,signi ca que par lhamos de um mesmo sensível, aquele que determinaformas de ver, de ouvir, de sen r, pensar e agir que, em geral, naturaliza-mos. Por outro lado, também pode signi car a divisão: o grande sistema realiza a par lha de forma a pôr cada um no seu lugar, mostrando paracada qual a sua função e, assim, delimita um possível e um impossível dese ser no seio da comunidade. Conforme o autor, nesta divisão sempre ha-verá um dano e é a denúncia deste dano tendo a igualdade como princípioque caracteriza a polí ca como dissenso.

Desse modo, polí ca, na concepção de Rancière, nada tem a vercom formas de gestão, mas ao contrário, é exatamente a perturbaçãodesta forma estabelecida que, ao ser ques onada, gera ssuras e ruptu-ras, denunciando um dano na divisão da par lha. Como ato precário, apolí ca seria um ato raro, mas poderia acontecer em qualquer lugar, em

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Maheirie, K. (2015). O fotografar e as experiências cole vas em Centros de Referência em...

qualquer situação ou em relação a alguma questão que indicasse uma ve-ri cação da igualdade, a veri cação da igualdade de qualquer ser falantecom qualquer outro ser falante.

As conexões entre esté ca e polí ca são muitas e múl plas, todavia,segundo Rancière, é possível a rmar que, embora nem toda esté ca sejapolí ca, toda polí ca é esté ca. Para ele, isto não signi ca “este zar apolí ca”, mas dar visibilidade à “polí ca como uma forma de experiência”(2009, p. 16).

Como as prá cas ar s cas se cons tuem dizeres que podem vir acon gurar dissensos e alimentar a polissemia de sua condição? A arte épolí ca

pela maneira como con gura um sensorium espaço-temporal que determi-na maneiras do estar junto ou separado, fora ou dentro, face a ou no meiode ... enquanto os objetos com os quais ela povoa este espaço ou o ritmoque ela confere a esse tempo determinam uma forma de experiência espe-cí ca, em conformidade ou em ruptura com outras: uma forma especí cade visibilidade, uma modi cação das relações entre formas sensíveis e regi-mes de signi cação, velocidades especí cas, mas também, e antes de maisnada, formas de reunião ou de solidão. (Rancière, 2005, p. 2)

A fotogra a, obje vação ar s ca no campo visual, é trabalhada comdiferentes obje vos nas pesquisas e intervenções da Psicologia, comobem já apontaram Neiva-Silva e Kohler (2002). Sua potência reside, dentreoutras caracterís cas, na capacidade de visibilizar formas e modos de exis-tência (Ti oni, 2009), mostrando cenas da vida co diana que, fora dela,não teriam espaço de citação (Rancière, 2010). Sob esta ó ca, a exposiçãopública aumenta sua potência, já que os códigos de apresentação a porãoem contextos especí cos, visibilizando-a no campo da arte.

Mas, antes da obje vação imagé ca ganhar o palco da exposição aopúblico, a experiência do fotografar possibilita o exercício e o estranha-mento do olhar, por meio da apropriação técnica de seu fazer. Tal apro-priação de saberes implica que estes sejam decompostos e recombinadospela imaginação, para que possam se obje var (Vigotski, 1930/2009) noato de fotografar, produzindo uma nova imagem e trazendo nela a polisse-mia que lhe é própria. O fotografar é ato de criação. É criação do olhar, dosigni car, do visibilizar, do cristalizar, do recombinar, do destacar.

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Psicologia social e os atuais desafos é co-polí cos no Brasil

Ti oni (2009) destaca que a fotogra a recria espaços e exercita axação, jogando com “as impossibilidades do tempo” (p. 8) e assim é, ao

mesmo tempo, conservação e criação, mul plicidade e foco, “resistênciae criação” (p. 16).

Ancorada nesta potência do olhar e da produção de visibilidades,em 2013 convidei Caio Cezar Nascimento2, fotógrafo pro ssional, paraoferecermos uma o cina de fotogra a em um Centro de Referência emAssistência Social (CRAS) da região sul do município de Florianópolis. Otrabalho era uma a vidade de estágio 3 na ênfase curricular do curso dePsicologia, voltada a Processos Comunitários e Ações Cole vas, em parce-ria com o CRAS Saco dos Limões4. A o cina trabalhou com jovens em situ-ação de escolarização e se revelou como uma importante experiência na

construção de laços grupais e no aumento da potência de ação (Sawaia,2009; Spinoza, 2014) daqueles jovens, no que se refere à visibilidade deseus olhares e fazeres.

A par r daí, trabalhamos uma nova o cina em 20145 e resolvemosconstruir um projeto para a realização de três o cinas em 2015 6, uma noCRAS Saco dos Limões, e ampliando duas delas para o CRAS Rio Tavares7.Na equipe deste projeto, além de um fotógrafo pro ssional e estagiários docurso de Psicologia da UFSC, par cipam a doutoranda Ta ana Minchoni e

o doutorando Felipe Tonial, do Programa de Pós-Graduação em Psicologiadesta mesma universidade. Trata-se de um projeto de extensão, no qualrealizamos algumas intervenções na direção da problema zação de temasemergentes do contexto trabalhado, que emanam dos par cipantes dao cina ou mesmo da equipe do CRAS. Mas nosso fazer interven vo não o2 h p://www.caiocezar.com/contact.html3 As psicólogas Mariá Boeira Lode e Yasmin Sauer Machado eram as estagiárias que ministr-

aram as o cinas junto ao fotógrafo.4 O psicólogo da equipe do CRAS Saco dos Limões, Felipe Brognoli, acompanhou todos os en-

contros das o cinas, foi o supervisor local do estágio, apoiando e par cipando integralmentedo projeto.5 As estagiárias Alessandra Vieira Schetz e Caroline Zaneripe de Souza ministraram as o cinas

junto ao fotógrafo.6 Nas o cinas de 2015, par ciparam, ministrando as o cinas junto com o fotógrafo, as es-

tagiárias Angela Bene , Luísa Evangelista Vieira Prudêncio, Fernanda Lopes e o estagiário IanJacques no CRAS Rio Tavares. No CRAS Saco dos Limões, os estagiários Leandro Almir Aragon,Marcelo Brunière e a estagiária Maria Alice Echevarrieta.

7 O psicólogo da equipe do CRAS Rio Tavares, Manoel Mayerjr, acompanhou todos os encontrosdas o cinas, foi o supervisor local do estágio, apoiando e par cipando integralmente o projeto.

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Maheirie, K. (2015). O fotografar e as experiências cole vas em Centros de Referência em...

separa da pesquisa e, assim, no andamento desses trabalhos nos interessasaber de que forma a o cina de fotogra a, compreendida como lócus deexperiências esté cas, pode produzir dissensos e apontar para recon gu-rações da par lha.

No Brasil, os CRAS se cons tuem como a porta de entrada do Sis-tema Único de Assistência Social (SUAS), o qual é criado em 2004, noGoverno Lula, por meio da Polí ca Nacional de Assistência Social (PNAS),proposta pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome(MDS). Os CRAS são unidades de referência para os usuários, localizadosem seu território e se ancoram no fortalecimento de vínculos familiarese comunitários, na garan a de direitos, na promoção da autonomia e doprotagonismo de sujeitos e cole vos. Como parte da equipe de assistência

social, à psicologia cabe, em um trabalho interdisciplinar, a promoção doreferido trabalho, focando na criação de laços e vínculos cole vos no en-frentamento da pobreza e da violência e na conquista por direitos (Mahei-rie & Minchoni, 2015)8.

Justamente pelo per l do trabalho da psicologia na assistência socialé que vimos uma potência em o cinas esté cas, em especial, em o cinasde fotogra a, como disposi vos na construção de vínculos cole vos, paraa promoção de autonomia – compreendida como capacidade concreta depensar, sen r e agir - na ampliação do universo de possibilidades.

Ao se fazerem autores das imagens, os sujeitos se reconheciam noprotagonismo de sua obje vação, na medida em que sen am, pensavame agiam, mediante os encontros que estabeleciam entre eles (Maheirie &Minchoni, 2015). Por meio desses encontros, percebíamos que aumenta-vam a sua potência de ação (Bene , Lopes, & Prudêncio, 2015 9; Lode &Machado, 201310; Maheirie & Minchoni, 2015; Schetz & Souza, 201411) e ofortalecimento de si como sujeitos individuais e cole vos.8

Maheirie, K. & Minchoni, T. (2015).Desa os e Prá cas na assistência social . Trabalho nãopublicado. Mimeo. Florianópolis.9 Bene , A., Lopes, F., & Prudêncio, L. E. V. (2015) Olhares sobre um território: concepções e

experiências em discussão. Relatório de estágio em Psicologia - ênfase em Processos Comu-nitários e Ações Cole vas. Florianópolis: UFSC.

10 Lode , M & Machado, Y. S. (2013) O cinas de Fotogra a no CRAS.Relatório de Estágio emPsicologia - ênfase em Processos Comunitários e Ações Cole vas. Florianópolis: UFSC.

11 Schetz, A. & Souza, C. Z. (2014). O cinas de fotogra a com jovens no CRAS: novas atuaçõesem perspec va. Relatório de estágio em Psicologia - ênfase em Processos Comunitários e Ações Cole vas. Florianópolis: UFSC.

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Das obje vações imagé cas produzidas na experiência que aquitrazemos, destaco uma revista digital 12, editada por Caio Cézar e realiza-da de forma cole va pelos par cipantes da o cina recém-concluída noCRAS Rio Tavares, contendo fotos e textos produzidos no contexto dasmesmas. A revista ganhou o tulo de IRIVIR pelos sujeitos das o cinas, apar r da ideia de movimento pelo território.

Iniciada em março deste ano, a o cina acontece com um públicocomposto por, predominantemente, um grupo de artesãos que já se reu-nia no CRAS, focado na construção de uma coopera va. Seu interesse nao cina era aprender técnicas para fotografar seu trabalho e, simultanea-mente, problema zar a região do sul da Ilha de Santa Catarina, marcadapela ambiguidade de sua condição frente à beleza do lugar e à crescenteespeculação imobiliária.

Iniciamos as o cinas na apropriação de técnicas de captura e pro-dução de imagens, no trabalho de u lização de luz e sombra, enquadra-mento, autorretrato e no trabalho de macrofotogra a. Nos encontros,buscávamos os olhares, as visibilidades e invisibilidades, os focos, a for-ma e o fundo das imagens produzidas e os processos psicossociais queindicavam, sobretudo, as relações intragrupais, suas obje vações e a suarelação com o território.

Dentre as técnicas trabalhadas, enfa zamos o exercício do lightpain-ng13, no qual os par cipantes experimentavam jogos de luz e sombra,xando per s e criando visibilidades. Ti oni (2009) esclarece que a foto-

gra a amplia consideravelmente seu sen do, derivado do grego “gra ada luz”, frente aos recursos digitais que temos no contemporâneo. Osexercícios com lightpain ng ampliam olhares, uma vez que a “luminosi-dade cria contornos, produz eixos de visibilidade e recria, com o auxíliodos recursos da técnica e da arte, os mundos e as realidades co dianas”(p. 8). O olhar pode ver em per s, perspec vas, cores, expressões, criar

cções, sombras e formas, na produção cria va de imagens realizadascom diferentes recursos e equipamentos e, assim,

12 h p://issuu.com/caiocezar/docs/irivir_issuu_ nal13 “Técnica fotográ ca na qual se mantém o obturador aberto por tempo su ciente para regis-

trar o caminho que uma fonte de luz faz dentro do quadro fotografado, resultando em umafotogra a borrões ou desenhos de luz”. (Schetz & Souza, 2014, p. 13)

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Maheirie, K. (2015). O fotografar e as experiências cole vas em Centros de Referência em...

ao tratarmos do tema da fotogra a, estamos tratando de um tema que con-densa e expressa importantes aspectos do modo de vida contemporâneo:a imagem – e a ‘realidade’ – como produção, o registro como uma questãoem um mundo de solidez e os jogos do tempo que tensionam o instantâneo

da imagem com a possibilidade de sua duração. (Ti oni, 2009, p. 9)

No exercício dessa técnica, cabia a eles dirigir seu olhar para o outroe dar visibilidade a um aspecto de seu per l, criando cores e imagens,inventando formas e abrindo possíveis. Parte de tais aspectos também

nham seu olhar na técnica do autorretrato, visando ao foco na formacomo se mostravam e reconheciam o outro e a si mesmos. Criavam e re-criavam a si e aos outros neste fazer.

Outra técnica importante apropriada por eles foi a macrofotogra a,na qual destacavam um detalhe da imagem, focavam e ampliavam sua vi-sualização. Seu exercício possibilitava, mais que a apropriação da técnica,uma apropriação diferente do espaço do território e dos objetos que ohabitam, conhecendo detalhes e criando cções na invenção de imagens.Implicados no movimento de fotografar, os sujeitos produziam imagensque davam visibilidade ao invisível, jogando com a releitura do território(Bene , Lopes, & Prudêncio, 2015)14. Com isso, marcavam a invenção dosolhares, desnaturalizavam os modos de interpretação determinados pelapar lha do sensível e reinventavam novos possíveis no campo da apro-priação de seu território.

Um dos aspectos mais visíveis da macrofotogra a é sua capacida-de de enunciar cções, desconstruindo a de nição da fotogra a comoregistro do real. Toda imagem fotográ ca é um enunciado, no sen dobakh niano (Bakh n, 2010; Brait & Melo, 2005). Mas, na macrofotogra-

a, o exercício da interpretação marca de forma explícita as múl plasvozes que atravessam escolhas no movimento de focar os detalhes. Na

composição da foto, o invisível ganha destaque, permi ndo a quem fo-tografa “uma forma de recriação a respeito do tema” (Maurente, 2009,p. 49), bem como no que se refere à autonomia do espectador, múl -plos sen dos podem ser produzidos, criando novas cções no cenárioda imagem.14 Bene , A., Lopes, F., & Prudêncio, L. V. (2015). Relatório de estágio na Ênfase em Processos

Comunitários e Ações Cole vas. 25pgs. Relatório. Departamento de Psicologia. UFSC, Floria-nópolis, 2015.

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Ao contarem sobre o contexto de suas imagens, os sujeitos produ-ziam diferentes sen dos, uns mais singulares e outros que ali se produ-ziam cole vamente, apontando a polissemia da obje vação fotográ ca ea potência das respostas imagé cas para as questões que se levantavamnas o cinas anteriores ao ato de fotografar. As imagens eram produzidaspor seus próprios celulares e se colocavam como respostas às consignasindicadas nos encontros das o cinas. Ao expô-las naquele cole vo, elaspossibilitavam novas respostas, novos sen dos, pois “o relato verbal pos-terior sobre as fotos não seria um retorno à fala, mas uma fala tambémrecriada, numa passagem de uma experiência par cular a outra experiên-cia par cular” (Maurente, 2009, p. 49).

Quando falavam da imagem, mostravam o contexto do ato de foto-grafar, indicando uma dialogia (Bakh n, 2011) com o que era invisível so-bre ela mesma, mas que foi experenciado por quem a produziu. Ao mos-trar e contextualizar os invisíveis, eles ampliavam a experiência sensíveldos sujeitos que ali estavam, possibilitando uma visibilidade, audibilidadee pensabilidade para além da forma esterio pada que se costuma olhar,amparada na par lha imposta. O ato de fotografar, assim como o ato devisualizar as imagens, produz cções e, com estas, criações de sen dos eabertura de outros possíveis.

Ao fotografar cenas do território, e estas cenas comporem a revistadigital de acesso público, os sujeitos fotógrafos davam visibilidade a mun-dos e formas de vida, indicavam os possíveis dos lugares e suas ocupações,produziam imagens da comunidade e seu entorno, de niam e rede niamo território. De niam e rede niam indivíduos e contextos, produzindo la-ços recíprocos e rupturas nos lugares des nados a eles na par lha, mos-trando “que uma cena de rua ou a vida de qualquer pessoa tem direito deser citada na arte” (Rancière, 2010, p. 5).

Além das imagens, os sujeitos produziram textos cole vos, escritosno contexto das o cinas. Três textos compõem a revista, os quais falamdas imagens e dos encontros do território. A cidade, o urbano, o rural,a imagem litorânea e seus contrastes, a natureza, sua destruição, suascaracterís cas e ambiguidades, compunham os textos e as imagens. Taisobje vações ar s cas são aqui concebidas a par r da ideia de um regimeesté co, o qual compreende que estas obje vações trazem a e cácia dodissenso, justamente por nada impor do ponto de vista da signi cação

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Maheirie, K. (2015). O fotografar e as experiências cole vas em Centros de Referência em...

(Rancière, 2012). As imagens nos apontam para vários regimes de sen-sorialidade e com isso podem romper com a concepção de uma ordemnatural das coisas.

Sobre seu impacto no contexto dos par cipantes da o cina, arriscodizer que a a vidade fotográ ca foi um exercício do olhar que pode terpossibilitado uma experiência dissensual em relação aos lugares sociaisdes nados a eles. Usuários do Sistema Único de Assistência Social, estessujeitos, ao de nirem-se como artesãos, já não se encaixam no lugar detrabalhadores empregados e assalariados que a par lha lhes des nou.Sua meta é produzir seu próprio sustento e, com ele, sua própria formade viver, o que já é importante do ponto de vista da dinâmica da eman-cipação.

Além disso, é importante mencionar que fotografar possibilita aprodução de autorias (Dias, 2009; Maurente, 2009; Ti oni, 2009), e dacondição de sen r-se e fazer-se outro na obje vação de seu produto. Aomesmo tempo que produzem a obje vação imagé ca, eles também sãoespectadores do próprio trabalho, de forma a cole vamente o ressigni -carem, como o zeram, por exemplo, na escolha das imagens na compo-sição da revista.

Fotografar e ver-se autor das imagens na reciprocidade dos encon-

tros com os outros no andamento dessas o cinas rea rma seu lugar nouniverso das prá cas ar s cas e alimenta sua “arte de viver na precarie-dade de uma condição e, ao mesmo tempo, no luxo do pensamento” 15 (Rancière, 2014, p. 234, tradução minha). Fazer-se fotógrafo aponta regi-mes de sensorialidade que chocam com a ideia de uma a vidade laboralque não valoriza o olhar que se distrai para poder focar. É preciso olhar e,para olhar, é preciso parar.

Os referidos artesãos são também ar stas e sua produção fotográ -

ca rea rma este lugar na produção de suas imagens, na sua capacidade deolhar e visibilizar regimes de sensibilidade dissensuais no jogo dos deta-lhes e das amplitudes, nos objetos e trajetos co dianos, na materializaçãodiscursiva da imagem (Maurante, 2009) e na polissemia que daí decorre.

Os efeitos da visibilidade produzida pela circulação da revista IRIVIRainda não é possível avaliar, mas, certamente, o espectador é a vo neste

15 “artes de vivir em la precariedad de uma condición y a la vez em el lujo del pensamiento”.

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processo e sua signi cação pode ser tão ampla quanto o número de áto-mos que existem no universo. Seu impacto escapa de seus criadores e suaexistência ganha vida própria.

Neste aspecto, estamos sob o princípio da indeterminação, cons-truindo “um pouco de espaço livre no meio deste jogo regulado” 16 (Ran-cière, 2014, p. 241, tradução minha). Parafraseando Rancière (2014), taisfotógrafos nos contam, por meio das imagens e dos textos da RevistaIRIVIR, uma história possível e nós, na nossa leitura, a reinventaremos econstruiremos nossa própria história, fazendo a nossa parte na experiên-cia deste jogo.

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16 “um poço de espacio libre em esse juego regulado”.

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Afe vidade como potência de ação paraenfrentamento das vulnerabilidades

Zulmira Aurea Cruz Bom m

Considerar as questões ambientais hoje não signi ca somente olharo lado poé co e idílico da relação das pessoas com o verde. Lidamos, naatualidade, com questões socioambientais que são produto de um mo-delo econômico e social que vai impactar nas emergências e desastres, já que estes são acentuados em consequência de vulnerabilidades socio-ambientais que impactam na gestão urbana. Não estamos querendo dizercom isso que não existam riscos decorrentes de emergências e catástrofesresultantes de fenômenos naturais, como no caso do Brasil, as inundaçõesurbanas ou os deslizamentos, mas sim que tais fatores ambientais de ris-co afetam principalmente populações pobres em ambientes vulneráveis,ou seja, aquelas que estão subme das ao que chamamos de sofrimentoé co-poli co (Sawaia, 1999). Eventos naturais se convertem em desastresquando seres humanos vivem em áreas degradadas ou de risco, isto é,os fatores ambientais fazem parte da vida urbana, porém os danos am-bientais decorrem da ação humana. Por isso, os impactos dos fenômenosnaturais na sociedade são problemá cos pela forma como o solo urbanoé ocupado, pelo po de qualidade de sua construção ou pela presença ouausência de infraestrutura adequada.

Olhar as questões ambientais e os desastres tendo como foco osofrimento é co-poli co pelo qual populações vulneráveis passam nestassituações é mudar a estratégia de compreensão, de ação e de análise, nãosó pela dimensão da natureza, mas também pela psicossocial. Para tanto,propomos pensar as polí cas e questões ambientais trazendo a afe vi-dade como categoria teórica em sua dimensão psicossocial e histórico--cultural a m de compreender as relações pessoa-ambiente em situaçõesde vulnerabilidade social e risco.

A cidade pode ser o lugar do encontro, das trocas simbólicas domedo, da ameaça e do risco (Bom m, 2010). Pensar a sustentabilidade

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Bon m, Z. A. C. (2015). Afe vidade como potência de ação para enfrentamento das...

na cidade hoje é, antes de tudo, pensar o bem-estar das pessoas. Nos-sas pesquisas no Laboratório de Pesquisa em Psicologia Ambiental (Lócus)vão apontar para a importância dos sen mentos e das emoções e dosafetos como forma de avaliação das necessidades dos habitantes tendo olugar como mediação, quer seja a cidade, o bairro ou a comunidade (Alen-car, 2010; Ber ni, 2006; Bom m, 2010; Bom m & Pol, 2005; Bom m etal. , 2013; Bom m et al., 2014). Nossa proposta converge para uma visãode sustentabilidade na cidade que se pauta no espaço urbano como umaexpressão da subje vidade dos seus habitantes, e para isso, elegemos acategoria da afe vidade como uma forma de conhecimento, orientação eé ca na cidade. A cidade não é, portanto, somente um conjunto de pra-ças, ruas e prédios. Ela expressa a subje vidade dos indivíduos na forma

de iden cação (Proshansky, 1978) de processos de apropriação do es-paço (Pol, 1996), de formação de uma iden dade social urbana (Varela &Pol, 1994), e de uma memória do lugar (Jodelet, 2002). A afe vidade nacidade também como expressão da subje vidade pode ser o palco parauma nova racionalidade, a é co-afe va a par r da construção de lugarescom calor (Sawaia, 1995), que promovam o bem-estar das pessoas e aimplicação dos habitantes com esta.

Uma visão psicossocial, dialé ca da vulnerabilidade social e das ques -

tões ambientais na cidade

As cidades atuais são responsáveis pelo consumo de três quartosda energia mundial e provocam pelo menos três quartos de contamina-ção total. São lugares de produção e de consumo da maioria dos produ-tos industriais. As cidades se converteram em parasitas dentro da pai-sagem, grandes organismos que absorvem energia do planeta para suamanutenção. São consumidoras e agentes de contaminação incansáveis.Viver nas cidades hoje onde a metade da humanidade se concentra etrabalha, ou onde a maioria da população mundial vive, é, paradoxal-mente, uma luta constante entre teses e an tese, concre zadas nos con-trastes socioeconômicos. Quais são os desa os para a sustentabilidade econsequente diminuição das vulnerabilidades na cidade no século XXI?É possível uma cidade ser sustentável? Como integrar ambiente cons-truído e natureza? Como integrar cidade sustentável com jus ça social?

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Como a vulnerabilidade do ambiente urbano está associada à vulnerabi-lidade social?

A relação entre vulnerabilidade social, risco, perigo e questões

ambientais é fundamental para se compreender as grandes metrópolesda sociedade contemporânea (Maradola, 2009). Em pesquisa realizadana região metropolitana de Fortaleza, (Bernal et al., 2006) com base noCenso do IBGE de 2000, encontrou-se uma relação considerável entreviolência e adensamento das moradias. O adensamento também afetao aumento das áreas de risco ambientais quando as localidades estãosituadas próximas a rios poluídos com existência de moradia em suasmargens. Neste caso, tais indicadores mostraram também que há umgrande desnível de inves mento entre os bairros periféricos e aquelesque concentram mais renda. O apartheid urbano tem tanto dimensõesgeradoras da violência como de problemas associados aos riscos am-bientais e à sustentabilidade. Neste caso, as vulnerabilidades e os riscosambientais estão relacionados, sobretudo, à falta de polí cas públicasurbanas e ambientais.

O grande desa o para a sustentabilidade das cidades é como pre-pará-las para enfrentar o crescimento urbano, oferecendo oportunidadese caminhos que não hipotequem o seu futuro nem o das futuras gera-

ções. Uma cidade sustentável signi ca: transportes públicos (mobilidade),reciclagem de material (economia solidária e educação ambiental), meioambiente (respeito à biodiversidade e u lização de recursos renováveis),saúde, lazer, desporto, cultura e preservação do patrimônio histórico,bem-estar da população, relações afe vas de vizinhança, etc.

A ver calização das cidades modi ca a radiação solar e a circulaçãodo ar. O asfalto di culta a absorção da água diferentemente de um bos-que. A cidade aquece especialmente pelos gases emi dos pelos carros,

indústrias, aquecedores, incêndios orestais e outras catástrofes naturais.As soluções ecológicas e sociais se retroalimentam mutuamente

para construir sociedades mais saudáveis, vivas e abertas. A visão de sus-tentabilidade cunhada pela ONU em 1982 foi importante para repensar-mos o es lo de vida humano e constatação de que o ritmo de destruiçãolevado pelo homem estava e ainda está culminando com a destruiçãodo planeta. Vários planetas não dariam conta deste ritmo de destruição .

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Todavia, este conceito precisa ser revisitado para que a emergência denovos paradigmas fomente a cooperação, a afe vidade e a vida comocentro, não somente que o paradigma antropocêntrico seja o dominantepara a cons tuição de um mundo mais justo, e pulsante de vida. Um dosprincipais pontos nos debates da sustentabilidade é como conciliar o de-senvolvimento econômico e a preservação da natureza, os fatores sociaise ecológicos, os recursos vivos e não vivos; assim como as alterna vas alongo e curto prazo.

James Lovelock (2006), cien sta americano, trabalha com a noçãode que o conceito de sustentabilidade precisa sair de uma visão antro-pocêntrica para uma ecocêntrica. Para ele, o planeta não é inanimado. Éum organismo vivo. A terra, suas pedras, oceanos, atmosfera e tudo que évivo cons tuem um grande organismo. Um sistema global e coerente devida, autorregulado e que se transforma a cada momento.

Nesta mesma linha, Ferreira e Bom m (2010) ques onam a insus-tentabilidade do paradigma antropocêntrico para uma mudança efe vanas ações ambientais no planeta. Propõem o paradigma biocêntrico comouma forma de percepção da existência que supera a dicotomia homem enatureza, apontando a é ca biocêntrica como possibilidade de construçãode uma sustentabilidade centrada na vida.

Esta mudança de paradigma na cidade converge para um movimen-to circular que amplia o terreno de possibilidades que não considera su-premacias, e sim um movimento imanente que considera todas as formasde vida com a mesma importância, primando pela criação ou preservaçãode mais vida para todos, com igualdade e dignidade. A circularidade nãose inclui no esquema consumista que tem os meios jus cados pelos ns.

Neste sen do, Richard Rogers (2000) propõe o modelo da cidadecompacta como um caminho para a autossustentabilidade. Tal modelosigni ca recuperar a cidade como habitat ideal de uma sociedade baseadana comunidade. Ademais, trata-se de um po de estrutura urbana quepode responder a uma variedade cultural. A cidade deveria responder,antes de tudo, às pessoas que moram nela, a comunicação, condensar ofomento de a vidades humanas e gerar e expressar sua própria cultura.Quer seja em climas temperados ou extremos, em sociedades ricas oupobres, a meta do desenvolvimento sustentável consiste em idealizar uma

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estrutura exível que seja possível uma comunidade sólida em um entor-no saudável e sem contaminação.

A cidade compacta não vê somente o índice de prosperidade base-

ado em critérios econômicos, polí cos e sociais, como foi avaliada, recen-temente, Nova York, a cidade de melhor qualidade de vida. Neste critériosão levadas em conta caracterís cas como infraestrutura, relevância nocenário internacional, perspec vas de crescimento econômico e nível debem-estar social dos habitantes. Junto com Nova York estão, entre as 10primeiras, outras cidades cuja presença é obrigatória em índices comoeste: Londres, Paris, Tóquio e Berlim.

O conceito de cidade compacta não pode ser resumido por fórmulase índices, e sim pensado de acordo com a realidade de cada metrópole.Contudo, Richard Rogers (2000) indica caminhos para serem adotados nascidades rumo ao planejamento urbano que privilegie a sustentabilidadeem termos de e ciência energé ca, ao mesmo tempo que diminua as vul-nerabilidades sociais: (a) Espaços mul uso cria vos; (b) Tudo no mesmobairro; (c) Voltar a habitar o centro; (d) Emprego mais perto de casa; (e)Inves r em corredores verdes; (f) incen var o transporte que usa energialimpa e renovável; (g) Reforçar os laços comunitários.

O desa o é como grandes metrópoles podem tornar-se sustentáveiscom grandes áreas territoriais e um grande número populacional. Comoaplicar os conceitos de uma cidade compacta a São Paulo com uma popula-ção em torno de 11 milhões de habitantes na capital e 19 milhões na regiãometropolitana? É importante notar que São Paulo tem sido alvo de grandesvulnerabilidades ambientais na época das chuvas devido, principalmente,à forma como o os rios foram tratados, aterrados, aumentando a imperme-abilização do solo e o uxo de água quando no período das chuvas.

Viver nas grandes cidades hoje, onde 80% da população mundialvive, é um grande desa o para a sustentabilidade, a convivência e a jus-

ça social. Para isso, é necessário conviver com polaridades e contradi-ções, onde os riscos e desastres, infelizmente, fazem parte do co diano.Viver nas contradições é também viver o sonho de uma cidade ideal que,conforme a rma Calvino (2000), não poderemos deixar de buscar comoum parâmetro de re exão analí ca e sinté ca. A vida co diana na cidadebaseada na historicidade e na construção de uma é ca cole va pode ser

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feita no movimento da contradição, segundo Bom m (2010, p. 43), “pen-samos que a superação de teses e an teses na cidade faz-se através domovimento entre a cidade ideal e a cidade real, a cidade como processo(passado-presente-futuro), cidade como qualidade e quan dade, cidadecomo experiência e como conhecimento, cidade como ordem e caos; ecidade local e global.”

Pensamos que a promoção da sustentabilidade na cidade, além dasquestões técnicas e ambientais, não pode prescindir de uma avaliaçãodas reais necessidades de seus habitantes. Entendemos tais necessidadescomo afe vas. Como os afetos podem orientar a sustentabilidade na ci-dade? Como os sen mentos e as emoções podem avaliar e direcionar obem-estar das pessoas na cidade rumo à sustentabilidade?

Cidade, afe vidade e sustentabilidade

Os aspectos simbólicos são fundamentais para a construção da no-ção de sustentabilidade. E, dentre os aspectos simbólicos, destacamosos afetos como grandes reveladores das necessidades dos habitantes nacidade. Chamamos de afe vidade todos os sen mentos e as emoções,sabendo-se a que a base afe vo-voli va (Vygostsky, 1998) move o pen-sar e o agir em uma perspec va histórico-cultural. Em nossas pesquisasno Laboratório de pesquisa em Psicologia ambiental, temos estudado aafe vidade como uma categoria é co-polí ca orientadora do encontro doindivíduo com a cidade.

Para compreender a mediação dos afetos na relação pessoa-am-biente, é preciso pensar a cidade como um ambiente que é organizadocogni vamente e afe vamente em um conjunto de imagens mentais. Oambiente é um território emocional (Corraliza, 1998). Conhecer a cidade

pelos afetos não é negar a cognição nem a racionalidade, mas acessardimensões da realidade co diana que comporão uma nova racionalida-de, a é co-afe va (Sawaia, 1995), dis nta da ideia de que os afetos sãoo câncer da razão. Neste sen do, buscamos conhecer a afe vidade comoavaliação das necessidades de habitante na cidade.

Viver e deslocar-se na cidade pressupõe processos de percepção doentorno que possibilita o habitante transformar o desconhecido em co-

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nhecido, ao transformar espaços em lugares, (Tuan, 1983). A é ca aparecena cidade quando a convivência igualitária com o diferente torna a cidadeum lugar de encontro.

Consideramos a afe vidade de nida por Sawaia (1999, p. 98) como:“O tom e a cor emocional que impregna a existência humana e que seapresenta como: (a) Sensação: reações moderadas de prazer e desprazer,que não faz referência a objetos especí cos, (b) A emoção, fenômeno afe-

vo intenso, breve e centrado nos fenômenos que interrompem o uxonormal da conduta”.

A afe vidade na cidade pode ser compreendida pela implicação dohabitante com ela; a forma como o habitante se implica na cidade já é umindicador de sua ação. Por isto, a afe vidade é um indicador de é ca ecidadania na cidade. O sen do da ação e transformação na cidade, pelo ci-dadão, depende do desenvolvimento de ações potencializadoras, em quea afe vidade pode ser um grande eixo integrador (Bom m, 2010).

Para acessar a afe vidade, desenvolvemos um método denominadode mapas afe vos, uma forma de ar culação de sen dos movidos pelosafetos: “Revela o conhecimento, orientação e é ca na cidade pelos sen -mentos dos habitantes e que facilita a superação das dualidades: subje-

vidade/obje vidade, individual/cole vo e cognição/afeto.” (Bom m, p.223). Desta forma, as imagens da cidade e ambientes são acessadas como obje vo de conhecer como os habitantes pensam e sentem as cidades.

O Instrumento que gera o mapa afe vo da cidade, denominado deIGMA, Instrumento Gerador do Mapa Afe vo (Bom m et al., 2013), foipensado para tornar tangível o intangível, visto que os afetos não são fa-cilmente denominados; Desenhos e metáforas como recursos imagé cos.O desenho como de agrador de emoções e sen mentos: as metáforascomo recurso de síntese; Escrita como expressão da dimensão afe va(subtexto).

Os resultados encontrados a par r do Instrumento Gerador dos Ma-pas Afe vos levaram a uma categoria psicossocial e dialé ca originada daperspec va da Psicologia Ambiental de base transacionalista e da Psico-logia Social histórico-cultural: a Es ma de Lugar. Assim como as pessoassão es madas, os lugares, no caso a cidade, pode ser es mada ou não porseus habitantes. Sen mentos agradáveis e de pertencimento geram uma

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es ma potencializadora, o que permite o desenvolvimento de relações co-munitárias e o sen mento de bem-estar. As imagens de contrastes e de in-segurança geram sen mentos despotencializadores que não promovem aimplicação do indivíduo no lugar. Para que as pessoas se impliquem e par -cipem, elas precisam sen r que o lugar é uma extensão de sua iden dade,ou seja, desenvolvam sen mentos de pertencimento e de iden cação.

A es ma de lugar é estudada no âmbito da Psicologia Ambiental porsua perspec va interdisciplinar, por estudar a interação das pessoas comseu entorno sócio- sico. A Psicologia Ambiental considera o meio urba-no, os recursos naturais e o comportamento. Na vertente transacionalda Psicologia Ambiental, o social e o ambiental não se limitam ao espaçoque circunda o indivíduo, mas a visão de um ambiente enquanto cons-trução simbólica, temporal e cultural. Na perspec va histórico-cultural daPsicologia Social, a es ma de lugar apreende a noção dialé ca e não di-cotômica do subje vo e do obje vo, do interno e do externo, do social eindividual além de uma visão de que o lugar pode ser visto também comouma forma de emancipação humana. Tornar-se sujeito de sua história, ocompromisso com homens concretos, sobretudo os dominados e explora-dos. O compromisso com seu lugar. Sua consciência como cidadão de umametrópole, uma cultura da responsabilidade humana pelo respeito à vida(Lane, 1984).

Propomos então a es ma de lugar como uma categoria social, queestá na imbricação dos estudos da Psicologia Social e da Psicologia Am-biental, que acessa as necessidades de seus habitantes e, por intermédiodo conhecimento dos afetos na cidade, avalia as potencialidades e vulne-rabilidades apresentadas na relação pessoa-ambiente. Este conhecimentodos afetos dos habitantes com a cidade ou bairro é uma forma tambémde buscar caminhos para a sustentabilidade pautada na humanização e navida no planeta.

As pesquisas realizadas desde 2003 com os mapas afe vos no Pro-grama de Pós- graduação da Universidade Federal do Ceará veram comoreferência diversos pos de ambiente como cidades, comunidades ruraise urbanas, bairros e espaços ins tucionais. A validação da categoria es -ma de lugar e seus indicadores mostrou a importância do afeto como umacategoria integradora da relação do indivíduo com o lugar, envolvendovários pos de ambiente em situações de vulnerabilidade social: escolas

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públicas em bairros periféricos, lhos de catadores, jovens do semiárido, jovens em ins tuições com medidas socioeducacionais. Além da pesquisa,encontramos também, por intermédio da construção dos mapas afe vosdo bairro, uma forma de intervenção para a formação de consciência crí-

ca e ambiental.Na pesquisa original sobre os indicadores afe vos de São Paulo e de

Barcelona (Bom m, 2003), em uma amostra de 200 alunos de graduação ede pós-graduação, de cursos de Psicologia, Arquitetura, Artes, Sociologia,Geogra a em sua maioria de mulheres, encontraram-se imagens afe vasmajoritariamente de contrastes. Esta imagem própria das grandes cidadesre ete o que foi estudado pela escola de Chicago (Park, 1967), a tendênciado citadino a desenvolver uma a tude Blasé, que apresenta uma relaçãointerpessoal mais u litarista e individualista. Os contrastes mostram sen -mentos antagônicos alegre/triste, amor/ódio, frieza/calor, individualista/proximidade, e/ou qualidades dos habitantes polarizadas poluída/limpa,pobre/rica, bonita/destruída. São sen mentos e qualidades próprias dascidades globais que re etem problemas sociais e ambientais. Tais sen -mentos podem ser potencializadores ou despotencializadores em relaçãoà ação do indivíduo na cidade.

Os respondentes também apontaram São Paulo e Barcelona como

polos de atração, o que faz destas cidades lugares de oportunidades. Aimagem de atração pode trazer qualidade de vida, mas não é tudo, pois senão es ver associada ao equilíbrio do uso de energias sustentáveis, podeexaurir os recursos naturais, como aconteceu em São Paulo, que vive atu-almente o problema da falta de água, decorrente tanto da es agem, bemcomo da má gestão e desperdício.

Por isso, a imagem de Destruição foi encontrada em grande parteem São Paulo onde a massi cação, pobreza, solidão, impotência, triste-

za e desânimo foram relatados. Muito cimento, poluição, falta de lugaresverdes e insegurança também. Convivência com o medo e violência são asrespostas recorrentes dos entrevistados. A imagem de destruição retrataa falta de ações de reponsabilidade ambiental tanto dos gestores como deseus habitantes.

Os desenhos, como parte do instrumento gerador dos mapas afe -vos, podem retratar a estrutura sica da cidade, assim como estados de

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ânimo, o que chamamos de cogni vos e metafóricos, respec vamente.No caso de São Paulo, a Avenida Paulista é o grande ícone (Fig. 1). Barce-lona, o centro an go retrata a preservação do patrimônio histórico (Fig.2). Duas estruturas de expansão urbana que veram formas dis ntas. SãoPaulo, a construção de uma cidade sobre a outra, e Barcelona, que seexpandiu pela regeneração urbana. Pelas respostas dos respondentes,pode-se inferir que as diferentes gestões urbanas da cidade impactaramdiretamente no que são as duas cidades hoje em termos dos desastres,riscos ambientais e/ou preservação.

Figura 1 São Paulo / Figura 2 Barcelona

A elaboração de metáforas a par r da fala dos respondentes tam-bém foi reveladora dos afetos na cidade pelo método que u lizamos.Considerando as metáforas como síntese, elas permitem o contato com ain midade dos sen mentos (Ricouer, 1992). Os sen mentos de contras-tes foram reveladores quando um habitante de São Paulo, de 26 anos,

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comparou-a com “um trem de metrô, por trazer contrastes próprios damodernidade, onde a velocidade e aglomeração são suas principais ca-racterís cas”. Ou mesmo sendo comparada com um “Epicentro”, fazendoalusão às possibilidades de atração que são apresentadas pela cidade oude destruição. Nota-se que, neste caso, a comparação de São Paulo comum Epicentro retrata uma catástrofe da natureza, que corresponde aocentro do abalo sísmico.

Com toda a agradabilidade sen da por seus habitantes e turistas,Barcelona, símbolo da cidade mundial de planejamento estratégico, é vis-ta também por uma mulher de 32 anos, que morava há dois anos e meiona cidade, com “uma maça vermelha com pontos de podridão, porque vêa contradição de viver o bem-estar e o mal-estar, ao ter que lidar com asdesigualdades sociais. Neste caso, o verde, as praças e o desenho da ci-dade moderna do planejamento urbano não são su cientes para torna-laagradável, é necessário permi r a apropriação deste direito a todos.

A contradição pode também gerar pertencimento para os habitan-tes de São Paulo quando a comparam com uma cidade abacaxi. Uma mu-lher de 50 anos que vivia em São Paulo há 30 anos disse que esta era “umacidade grande com muitos edi cios parecidos, poluída visualmente commuitos carros, ao mesmo tempo caó ca e funcional”. Contudo, ela fala

que o seu sen mento é de “pertencer apesar de tudo”! O sen mento depertencimento foi encontrado em pessoas que diziam: “Apesar de tudo,amo São Paulo”.

As respostas ao instrumento gerador dos mapas afe vos tanto naparte qualita va quanto na quan ta va, esta úl ma chamada de indica-dores afe vos, mostraram uma tendência de respostas a uma Es ma delugar mais despotencializadora em São Paulo e uma Es ma de lugar maispotencializadora em Barcelona. A predominância das respostas de inse-

gurança, destruição e contrastes em São Paulo, pouca ou quase inexistên-cia de agradabilidade levam o morador a sen r-se menos implicado, maisinsa sfeito e menos par cipante de a vidades associa vas e de grupos.Por outro lado, os habitantes de Barcelona mostraram mais respostas deagradabilidade e de pertencimento com maior possibilidade de envolvi-mento e par cipação cidadã. O que chama a atenção é que, apesar dasdiferentes respostas e tendências das duas cidades, ambas se destacampelo sen mento de pertencimento de seus cidadãos.

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Revertendo vulnerabilidades: a sustentabilidade nas polí cas deafe vidade

As pesquisas com a categoria afe vidade têm assinalado a impor-tância de conhecer os afetos em uma perspec va emancipadora e deconstrução da cidadania. Quando aplicada à cidade e aos lugares, os afe-tos tornam-se mediadores da construção de sujeitos que sentem, pensame agem par ndo de uma racionalidade é co-afe va. Falamos daquela ra-cionalidade que está enraizada nos afetos, nas necessidades individuaise cole vas e que propiciam o encontro do indivíduo com a cidade. Talracionalidade é co-afe va como ideal pode estar presente nas metas dagestão e de planejamento urbano quando há a par cipação dos citadinos,de maneira que estes são escutados diante de suas necessidades no co -diano da cidade.

Reverter processos de riscos na cidade, associados às catástrofesambientais, é considerar o vetor natureza não somente como o granderesponsável por estas, mas destacar que os afetados são sempre aquelessubme dos a situações de vulnerabilidades sociais e ambientais.

Os indicadores afe vos da afe vidade com a cidade, comunidade e

bairro têm apontado, por intermédio das pesquisas, que a relação entrevulnerabilidade e sustentabilidade envolve ações concretas provenientesda ordem pública, individual e societal. Os indicadores afe vos de Agrada-bilidade, Pertencimento, Insegurança, Destruição e Contrastes têm mos-trado possíveis caminhos para a reversão de vulnerabilidades e de poten-cialização da sustentabilidade.

As cidades são agradáveis quando criam contato com a natureza,nos parques, nas ruas e nos locais de moradia. Andar a pé e de bicicleta,além de facilitar o exercício corporal, propicia outras formas de apropria-ção do espaço dis nto do carro. O transporte público, como mobilidadeurbana, permite uma visão cole va e sensação de bem-estar quando di-minui os longos deslocamentos e o tempo perdido no trânsito. A ocupa-ção do espaço público a par r de intervenções urbanas sustentáveis pro-picia a criação de novas funções do mesmo, convivendo no mesmo lugaro an go e o novo, o lazer e o trabalho e a integração intergeracional. Estasintervenções são indicadas como as mais agradáveis pelos habitantes. Ci-

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dadãos iden cados com seu lugar (pertencimento) facilitam processosde apropriação do espaço, e consequente diminuição dos sen mentos demedo e insegurança na cidade, pois são estes úl mos que distanciam ocidadão do espaço público e do contato com o diferente. Sen mentos deinsegurança e de destruição são os mais facilmente encontrados em áreasdegradadas e susce veis aos desastres e riscos. Os contrastes nas grandescidades estressam seus habitantes, causando agonia, alienação e potênciade padecimento. A potência de ação pode exis r quando os contrastes seassociam ao vínculo e pertencimento ao lugar.

Encontramos na dialé ca da afe vidade uma forma de intervenção,ação e análise para o alcance da sustentabilidade ambiental ao superaras dicotomias tão próprias da racionalidade moderna: social e ambiental;racionalidade e afe vidade; subje vidade e obje vidade; individual e co-le vo; e ação e re exão.

Encontramos nas polí cas de afe vidade uma forma de integrar odesenvolvimento social e a sustentabilidade, para que possamos reverterprocessos de destruição dos úl mos 50 anos que têm ampliado as catás-trofes, os desastres naturais e a miséria. O modo de vida urbano chegoua um ponto máximo de destruição. Propomos o afeto como um caminhode humanização das polí cas públicas urbanas, para a diminuição das vul-

nerabilidades socioambientais, assim como dos impactos causados pelascatástrofes e pelos desastres naturais.

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Massola, G. M., Svartman, B. P., Santos, A. O., & Galeão-Silva, L. G. (2015). Quilombos e confitos...

Quilombos e con itos territoriais no Brasil: o caso doVale do Ribeira, SP

Gustavo Mar neli MassolaBernardo Parodi Svartman

Alessandro de Oliveira dos SantosLuís Guilherme Galeão-Silva

Introdução

A escravidão negra na América cons tuiu um dos mais violentosepisódios de deslocamento forçado já observados na História. No Brasil,comprova-se a existência de escravos a par r de 1531 (L. D. Silva, 2006).Privados da pátria, do território, da família, da língua, as mul dões queaqui aportaram dão exemplos eloquentes de profundo desenraizamentoe humilhação social (Gonçalves, 1998). Obanzo, a saudade da África, deu

cabo de muitos escravos. Outros se suicidavam comendo terra, enforcan-do-se ou envenenando-se (Freyre, 2002, p. 462). Seres realmente desen-raizados podem cair “numa inércia de alma quase equivalente à morte”(Weil, 1996, p. 415). É possível desenraizar-se em seu próprio país, mas odesenraizamento a nge o grau mais alto quando há deportações maciças(Weil, 1996, p. 412).

O mundo indiferente, ao qual não dedicamos afeto, é chamado porTuan (1983, p. 6) de espaço. À medida que o conhecemos melhor e o do-tamos de valor, o espaço indiferenciado transforma-se em lugar (Caval-cante & Nóbrega, 2011, pp. 184–188). De nimos quem somos, em gran-de medida, por nossa relação com certos lugares (Proshansky, Fabian,& Kamino , 1983) – iden camo-nos com os lugares e nos apegamosa eles de tal forma que nossa própria de nição iden tária pode depen-der grandemente dos lugares onde nos encontramos, onde crescemos,etc. Em sociedades modernas, é quase unânime que o lar é o protó pode lugar (Berger, 1976; Bosi, 1994; Lewicka, 2010) e, em que pese uma

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crescente sensação de perda da importância do lugar nas sociedades mo-dernas (Castells, 2007; Giddens, 1991; Ianni, 1997), a des tuição do larpode levar a uma profunda crise iden tária, especialmente para criançase idosos (Bosi, 1994). Em sociedades pré-modernas, porém, nas quais,segundo Giddens (1991), não há a vivência do espaço indiferenciado, aperda do lugar pode signi car a destruição das tradições e, portanto, detoda a cosmovisão do povo. Os missionários salesianos entenderam bemque a melhor forma de converter os índios Bororo era fazê-los abando-nar suas aldeias circulares por casas dispostas em linhas paralelas. Sem osubstrato sico da aldeia, desorientados com relação aos pontos carde-ais, privados do plano que fornece um argumento ao seu saber, os indí-genas perdem rapidamente o senso das tradições (Lévi-Strauss, 1957, p.

231). A perda do lugar familiar por violenta coação pode imprimir sobreo indivíduo, sobre sua iden dade, marcas indeléveis.

Sob um ponto de vista, a maneira como Tuan (1983) apresenta suadiscussão sobre o conceito de lugar aproxima-o da maneira como Deleu-ze e Guatari (2010) apresentam seu conceito de território, pois, em am-bos os casos, a de nição desses conceitos apoia-se na existência de umespecí co processo de apropriação (Cavalcante & Elias, 2011; Haesbaert,2004a). “O território pode ser rela vo tanto a um espaço vivido, quanto

a um sistema percebido no seio do qual um sujeito se sente ‘em casa’. Oterritório é sinônimo de apropriação” (Gua ari & Rolnik, 1996, p. 323).Sob a perspec va da Psicologia Ambiental, apropriação pode ser enten-dida como um processo psicossocial pelo qual o ser humano projeta-seno espaço e o transforma em um prolongamento de sua pessoa, criandoum lugar seu. Neste processo, também o introjeta. Lefebvre (1986, pp.411–412), ao discorrer acerca do espaço, ressalta que seu valor de usoentra em con ito com o seu valor de troca, uma vez que o primeiro im-plica apropriação e o úl mo, propriedade. A apropriação, mais subje va

ou cultural-simbólica, funda-se sobre o tempo vivido dos usuários, tem-po diverso e complexo, e dis ngue-se da dominação polí co-econômica,mais concreta e funcional (Haesbaert, 2004b, pp. 95–96).

O debate atual a respeito do caráter “desterritorializado” das socie-dades contemporâneas indica a existência de profundas alterações na for-ma como as populações interagem com o território. A iden cação quemarcava as sociedades tradicionais deixa de exis r, e mesmo o controle

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centralizado do território pelo Estado, como se viu durante toda a mo-dernidade, pode estar em franco declínio. A sociedade em que os uxoscomunicacionais e de deslocamento em rede impera (Castells, 2007) teriaconduzido a uma perda da importância do território, ou a uma perda daimportância do lugar. O indivíduo contemporâneo intercambia lugares demaneira quase indiferente – nem apego ao lugar, nem iden dade. Há umalonga literatura sobre o assunto, que se tornou central para a compreensãodo mundo contemporâneo (Haesbaert & Bruce, 2002; Haesbaert, 2004a).

Em uma sociedade desterritorializada, pode ser ú l inves gar aspossibilidades de recriação dos vínculos com o mundo. Por inspiração deDeleuze e Gua ari (2010), este processo pode ser chamado de reterrito -rialização. Os referidos autores defendem que não há desterritorializaçãoque não seja, ao mesmo tempo, uma reterritorialização. Seu conceito am-plo de território pode aplicar-se a contextos contraintui vos (a mão criaum território na ferramenta), mas permite imaginar que as interpretaçõesclássicas sobre o fenômeno do desenraizamento falham em perceber queas populações deslocadas estabelecem novos territórios (no sen do deespaço vivido), enraízam-se novamente, reterritorializam-se. As popula-ções negras trazidas ao Brasil durante o período escravista cons tuemum caso muito importante para o teste de algumas das hipóteses acercado fenômeno da territorialidade. Sob uma perspec va contemporânea,a territorialidade é um problema central das populações negras no Brasil(Giacomini, 2009). Estudar a forma como se deu esta relação ao longo dosmais de 450 anos de presença negra no país pode ajudar a elucidar algu-mas dessas questões. O presente trabalho pretende defender a ideia deque o estudo da dinâmica histórica das populações negras no Brasil podetrazer contribuições relevantes para a compreensão dos fenômenos doterritório nas sociedades contemporâneas. Mais do que isso, sob a pers-pec va de uma psicologia ambiental da etnicidade, este estudo poderia

auxiliar no entendimento de fenômenos que permanecem obscuros, emgrande medida, por não poderem ser rigorosamente conceituados emcaráter universal. Ao contrário, apenas o esclarecimento de suas espe-ci cidades sociais e culturais permi rá encontrar conceitos aplicáveis adiversas realidades. Se tomarmos, por exemplo, a longa e até agora infru-

fera discussão a respeito da relação entre apego ao lugar e par cipaçãopolí ca (Lewicka, 2010), veremos que, apenas com a compreensão rigo-rosamente contextualizada do que seja par cipação polí ca, poderemos

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chegar a avançar em sua elucidação. Por m, a eleição das populaçõesnegras no Brasil (e na América La na) como tema de estudo pode ser jus-

cada por duas razões: a escravidão negra sempre teve como elementoestratégico para seu sucesso a promoção nos escravos de uma percepçãode completa ausência de territórios. Ou seja, trata-se de uma populaçãoque permaneceu por 350 anos, em caráter o cial , “desterritorializada”.No Brasil, isso não se alterou profundamente exceto nos úl mos 30 anos.Em segundo lugar, as formas de resistência negra à escravidão veram nabusca por “territorializar-se” uma de suas caracterís cas mais marcantes.Ao lutarem pelo direito a um lugar, os negros no Brasil criaram uma ins -tuição que de niu grande parte da dinâmica social brasileira, pairou comouma perigosa ameaça sobre as cabeças dos senhores de escravos e, no

presente momento, ar cula a luta pelo direito ao território dessas popu-lações. Tal ins tuição, que exis u por toda a América La na com algumasdiferenças regionais, é chamada de quilombo.

A escravidão no Brasil

As análises sociológicas realizadas sobre o tema da escravidãono Brasil ao longo do século XX raramente enfa zaram o papel polí -

co dos homens e mulheres negros. Mera ferramenta de trabalho, ob- jetos despossuídos de direitos, incapazes de par cipação polí ca a va,propriedades de seus senhores, os negros sempre foram consideradosparte passiva dessa história. Seu processo de degradação teria sido tãobrutal, a violência come da contra eles teria sido tão avassaladora, quenão teriam sobrado condições para sua inserção como agentes polí cosno mundo social colonial brasileiro. Ví mas de um dos mais violentosprocessos de deslocamento forçado já observados em toda a história dahumanidade, os escravos negros teriam chegado ao Brasil incapazes de

relacionar o novo mundo com o qual travavam contato com a linguagem,os símbolos, criados para explicar o mundo que haviam perdido. Cardosochegou a a rmar (1975, p. 112): “Em todo este processo, de ‘passagem’,os escravos, os índios, os peões livres, os libertos, os ‘camponeses’, sãoos testemunhos mudos de uma história para a qual não existem senãocomo uma espécie de instrumento passivo sobre o qual operam as forçastransformadoras da história.”

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Foi somente a par r de meados do século XX que as pesquisas quevoltavam sua atenção para as formas de resistência dos escravos negros àdominação branca começaram a ganhar corpo. Trabalhos pioneiros (Car-neiro, 1958; Moura, 1959; Ramos, 1953), não apenas passaram a voltarsua atenção para ritos e comportamentos que anteriormente não eramconsiderados como formas de resistência, como o canto e a dança, mastambém a revalorizar e reinterpretar as formas de resistência já classi-camente estudadas, especialmente as revoltas e os quilombos. Sob estaperspec va, o escravo, por suas ações de resistência, operou, como com-ponente dinâmico, um con nuo desgaste no sistema escravista e contri-buiu a vamente para seu desmoronamento. “O escravo, no entanto, se,de um lado, era apenas coisa, do outro lado, era ser. Por mais desumana

que fosse a escravidão, ele não perdia, pelo menos totalmente, a sua inte-rioridade humana” (Moura, 1986, p. 8). A relação entre senhor e escravoera contraditória, compondo tais personagens polos dialé cos do regimeescravista. “Estas duas classes fundamentais comporão basicamente a es-trutura da sociedade escravista no Brasil… Mas esta estrutura não é está-

ca” (Moura, 1986, p. 11).Houve inúmeras formas de resistência negra durante o período colo-

nial. Os cantos, as danças e a religião, por exemplo, trazidos pelos escravoscomo herança cultural africana ou desenvolvidos na América, expressa-vam formas mais ou menos su s de resistência iden tária, e nham comoconsequência criar um contraponto ao tratamento legal e social comomercadoria, como coisa intercambiável, a que eram subme dos. Mas de-vemos destacar duas formas de resistência como as mais relevantes paraos obje vos de nossa discussão: as revoltas e os quilombos.

De acordo com Reis (1996), as revoltas negras assemelharam-se àsrealizadas por muitos outros grupos oprimidos, tanto no contexto da es-cravidão nas Américas quanto em outros contextos. O fato de que não

eram fenômeno pico do Brasil se evidencia observando os países ao re-dor. Revoltas negras aconteceram em toda a América. Seu principal exem-plo talvez tenha sido a independência de Saint Domingue (futuro Hai ), aúnica revolução escrava bem-sucedida no Novo Mundo, ocorrida no inícioda década de 1790. As revoltas no Brasil tornaram-se mais frequentes apar r do nal do século XVIII. Entre as causas para este fenômeno, pode-mos destacar algumas mudanças na estrutura demográ ca brasileira que,

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em decorrência do aumento do trá co negreiro, era formada por umaproporção cada vez maior de escravos e, sobretudo, de escravos africa-nos. Revoltas proliferaram durante as lutas pela independência e mes-mo durante a Guerra do Paraguai. Isso ao mesmo tempo mostra que odomínio sobre os escravos não era tão absoluto como alguns estudiososimaginaram e que os escravos con nuaram a desempenhar o papel deagentes polí cos, avaliando a força e a fraqueza dos senhores e planejan-do o momento mais adequado para agir. Apenas na Bahia do século XIX,25 conspirações foram planejadas e executadas com graus variados desucesso. Também ocorreram às dezenas em pra camente todas as outrasprovíncias.

A segunda forma de resistência são os quilombos. Se a revolta asse-melhou-se a ações cole vas comuns na história de outros grupos subal-ternos, “o quilombo foi um movimento pico dos escravos” (Reis, 1996).A imagem socialmente difundida dos quilombos no Brasil é bastante co-nhecida: um grupo de escravos fugidos do ca veiro que se congregamem região erma, pouco habitada, e vivem no isolamento, organizando-seem torno de costumes parcial ou totalmente herdados de suas tradiçõesafricanas. Foram violentamente comba dos pelos senhores de engenhoe, em alguns casos, foram capazes de resis r por dezenas de anos às inves-

das sistemá cas que visavam destrui-los. Os quilombos aparecem social-mente no Brasil como símbolo máximo da resistência negra.

A palavra “quilombo” tem origem na palavra kilombo, de línguambundu, que designava originalmente uma associação de guerreiros, mo-delo adotado pelos exércitos jaga que habitavam a região do Congo noinício do século XVII. Os jaga nham por costume apropriar-se dos jovense crianças dos povos derrotados, incorporando-os ao seu exército. O mo-delo se difunde quando príncipe Kinguli, que havia abandonado seu reinono Zaire em direção a Angola em virtude de disputas pelo trono, aliou-seaos jaga e adotou seu modelo de organização militar. Segundo Munan-ga (1996), a palavra quilombo “tem a conotação de uma associação dehomens, aberta a todos sem dis nção de liação a qualquer linhagem,na qual os membros eram subme dos a dramá cos rituais de iniciaçãoque os re ravam do âmbito protetor de suas linhagens e os integravamcomo co-guerreiros num regimento de super-homens invulneráveis às ar-mas de inimigos”. Como tal, é uma ins tuição transcultural que recebeu

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contribuições dos lunda, imbangala, mbundu, kongo, entre outros. Umacaracterís ca essencial dos membros do kilombo é, portanto, seu elevadograu de desenraizamento.

O rei de Portugal assim de niu o termo em 2 de dezembro de 1740,em resposta a uma consulta realizada pelo Conselho Ultramarino: “Todahabitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada,ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles”.Tal de nição traçada pela legislação permanece até hoje como uma ima-gem a con nar nossa interpretação sobre o fenômeno. Conforme Wagner(1999, p. 12), esta de nição cons tui-se basicamente de cinco elementos:(a) a fuga; (b) uma quan dade mínima de fugidos; (c) o isolamento geo-grá co, em locais de di cil acesso e mais próximos de uma “natureza sel-vagem” do que da chamada civilização; (d) moradia habitual, referida notermo “rancho”; (e) autoconsumo e capacidade de reprodução, simboliza-dos na imagem do pilão de arroz. De nidos assim, com a nalidade exclu-siva de combater as fugas e as revoltas, os quilombos pareciam pon lhartodo o território nacional. É possível mesmo a rmar que o Brasil se con-verteu em um conjunto de quilombos (Moura, 1986, p. 16; Price, 1996,p. 168), que variavam em tamanho, em organização, em estabilidade eem duração. Inúmeros exemplos poderiam ser levantados, porém, paracontrapor-se a esta de nição – alguns quilombos localizavam-se a poucosmetros da casa grande do senhor de escravos e houve casos de quilomboslocalizados dentro da própria senzala. De forma geral, portanto, os qui-lombos representavam fundamentalmente formas autônomas de produ-ção dos escravos, que poderiam ocorrer em momentos especí cos, sempassar pelo grande proprietário ou pelos senhores de escravos, e que nãonecessariamente implicavam uma oposição clara ao sistema escravista. Alegislação, ao de nir de maneira genérica e exterior o fenômeno, cumpriaessencialmente seu papel repressivo. Os quilombos, porém, eram muito

frequentes, a ponto de muitos escravos das senzalas terem em sua biogra-a uma ou mais passagens por quilombos (Reis, 1996).

Nem sempre se u lizou a palavra quilombo para designar este fenô-meno. Durante muito tempo, a palavra u lizada foi mocambo. Sua subs -tuição pode ter decorrido do fato de que o principal quilombo de todo operíodo colonial, Palmares, adotou o modelo quilombola para enfrentar oproblema do desenraizamento de seus membros, muitos deles fugidos ou

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recuperados das fazendas, e possuindo origens étnicas bastante variadas.Pode-se a rmar que o termo se consagrou para designar um reduto deescravos fugidos após sua adoção por Palmares (Reis, 1996).

Ao contrário da imagem propagada durante o período colonial, osquilombos não estavam isolados do restante da sociedade, mas cons tu-íram amplas redes de apoio nas regiões onde se localizavam (Giacomini,2009, p. 10). O po de rede dependia do tamanho e da estabilidade doquilombo, sendo mais intensa e organizada quando o quilombo possuíauma produção agrícola regular. O maior problema para o sistema escra-vista era justamente o fato de que os quilombos não eram comunidadesisoladas e, embora protegidos, situavam-se em geral próximos a fazendas,vilas e cidades, mantendo contato com escravos, negros libertos e ho-mens brancos, com os quais compar lhavam inúmeros interesses. Mes-mo havendo quilombos isolados, os quilombolas em geral estabeleciamrelações com variados grupos sociais, que não se restringiam àqueles ex-cluídos socialmente, apesar de Moura (Moura, 1986, p. 31) dar a tais gru-pos maior importância. Isto porque, considerando que o comércio com osquilombos era proibido e que algumas vezes eles dedicavam-se a assaltarviajantes nas estradas ou cometer outros pos de delitos, era comum queeles vendessem o produto de suas a vidades para contrabandistas, cons-

tuindo uma rede ilegal de comércio. Em troca, eram informados sobrea aproximação das tropas e outras ameaças a sua segurança. Além disso,recebiam em suas fronteiras vários pos de pessoas perseguidas e des-contentes, não apenas escravos, como já mencionamos. Mas Reis (1996)menciona quilombos ao redor de Vila Rica no século XVIII, e quilombosno século XIX próximos a Recife, Olinda, Salvador, Cuiabá, Rio de Janeiro,Porto Alegre e São Paulo, todos mantendo relações de trabalho, amizadee parentesco com escravos, negros livres, mes ços e brancos, especial-mente os comerciantes locais (Giacomini, 2009, p. 19). É a este fenômeno

que Gomes (Reis & Gomes, 1996, p. 283) chama de campo negro: “Paraalém da formação de um campesinato negro, a par r das comunidadesquilombolas e das comunidades das senzalas, podemos pensar a criaçãode um campo negro… Para a maioria dos senhores de escravos, a existên-cia dessas redes de solidariedade representava uma ameaça permanen-te”. A metáfora do campo negro permite compreender que os quilombosnão cons tuíam um elemento isolado na sociedade, fazendo parte de umconjunto de ins tuições, grupos e organizações cujas relações apresenta-

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vam enorme complexidade e expressavam as contradições picas de umasociedade escravista e colonial, como a brasileira.

Após a abolição, os escravos deixaram de ocupar o centro das preo-

cupações polí cas, tomado agora por discussões a respeito dos imigranteseuropeus e de como melhor planejar sua incorporação civilizatória à so-ciedade brasileira. Quanto aos quilombos, a sua con nuidade foi ignoradapela legislação (San lli, 2005, p. 197) e eles deixaram de cons tuir temade debate e re exão públicos (Valen m & Trindade, 2011).

Os quilombos após a abolição da escravatura – o Vale do Ribeira (SP)

Não que eles vessem deixado de exis r. Ao contrário, muitos qui-lombos permaneceram nas áreas onde se situavam e enfrentaram osgraves problemas fundiários que marcaram a realidade brasileira no sé-culo XX. Outros viram seus moradores mudarem-se em busca de terrasou simplesmente desapareceram por mo vos vários. Disputas pela terra,expropriações e graves violências marcaram essas comunidades, cuja lutadesenvolveu-se, porém, em uma espécie de profunda obscuridade. Háinúmeras semelhanças entre os quilombos brasileiros, como sua localiza-ção e as di culdades econômicas e fundiárias (Carril, 2002). As diferenças

regionais entre os quilombos, todavia, permaneceram ou aumentaram,o que torna muito di cil estudar tais grupos em conjunto, como coisashomogêneas. A m de tratar de maneira mais aprofundada e menos es-quemá ca o tema da territorialidade quilombola neste período, iremoscentrar nossa discussão em uma região conhecida como Vale do Ribeira eem uma comunidade localizada nesta região.

O Vale do Ribeira, localizado nos estados de São Paulo e Paraná, éuma região emblemá ca. Em contraposição ao seu rico patrimônio am-

biental e cultural, o Vale do Ribeira apresenta os mais baixos indicadoressocioeconômicos do estado de São Paulo, incluindo altos índices de mor-talidade infan l (Sistema Único de Saúde, 2010), analfabe smo acima damédia e sua mais baixa renda per capita (Romão, 2006, p. 11). A regiãotambém abriga uma das maiores concentrações de comunidades rema-nescentes de quilombos do Brasil, e as mais de cinquenta comunidadesali existentes vivem basicamente da produção de subsistência (Pedroso,2011, p. 2). Nesta região, localiza-se a comunidade de Ivaporunduva, à

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margem esquerda do Rio Ribeira de Iguape. Aproximadamente 80 famíliase 300 pessoas vivem na comunidade, cuja área é de cerca de 2800 hecta-res. O seu nome signi ca “rio de muita fruta” (vaporú) e ela é consideradaa comunidade quilombola mais an ga e mais importante do Vale, tendoservido como núcleo para a formação de outras comunidades da região. Étambém a comunidade mais bem documentada da região.

Queiroz (2006) ressalta que, em 1908, o geólogo Cornélio Schimi-dt visitou a região e apontou em relatório a existência no local de umacomunidade negra. Segundo o geólogo, a tradição dizia que os escravosafricanos mineravam o ribeirão da região há mais de 240 anos “a servi-ço de sua proprietária, sesmeira na localidade”, de nome Joanna Maria(Queiroz, 2006, pp. 41–43). Isso indica que os primeiros grupos de escra-vos chegaram à região no século XVII ou ainda no XVI, passando a sermais povoada a par r de 1720. Estes escravos teriam construído por contaprópria a capela do bairro (ainda existente), dedicada à Nossa Senhora doRosário dos Homens Pretos e inaugurada em 1791, e recebido de Joannauma gleba de terras e sua liberdade. Após o esgotamento das lavras, oupor conta do envelhecimento de Joanna Maria, a proprietária parte paraPortugal, vindo a falecer em 1802, tendo antes doado suas terras para aIgreja, integradas ao patrimônio da capela - ambos os atos, a doação aosescravos e à Igreja, eram prá cas comuns no sistema escravista brasileiro(Pedroso, 2011, p. 6). Entregues à própria sorte, os escravos permanece-ram na região pra cando a agricultura de subsistência e a vidades extra-

vistas. Apossaram-se de terras livres e isolaram-se em núcleos familiaresque compunham um grupo mais extenso e igualitário, graças aos vínculosde solidariedade e sociabilidade inerentes às relações de parentesco, vi-zinhança e compadrio existentes entre os membros do povoado (Pedro-so, 2011, p. 6). Construíram, assim, uma iden dade própria calcada naexistência de laços de solidariedade, na cor da pele e na história comum

(Ins tuto de Terras do Estado de São Paulo, 1998; Queiroz, 2006).Pode-se a rmar que a questão quilombola permaneceu grande-

mente ignorada na região, ao menos nos documentos escritos, durantea maior parte do século XX. Mesmo os autores que se dedicaram a estetema até a década de 1970 o zeram tratando os quilombos como umains tuição do passado (Ins tuto de Terras do Estado de São Paulo, 2002,p. 6). O já mencionado relatório de Cornélio Schimidt, citado por Queiroz

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(2006), fala em comunidade negra, não em quilombo. Giacomini (2009,pp. 21–22) enfa za que, até a promulgação da Cons tuição de 1988, aquestão quilombola permanece invisível, e que no Brasil, até os anos1970, “falar de remanescentes de quilombos era mo vo de espanto”. Oprimeiro trabalho antropológico sistemá co feito em Ivaporunduva, já nadécada de 1970 (Queiroz, 2006), não usa sequer uma vez a palavra “qui-lombo”, chamando os moradores da localidade de caipiras e a própria re -gião de “bairro negro”. Aliás, na obra mencionada, a importância rela vada cor da pele na condição de vida dos moradores é tema de discussão, eo autor esforça-se por mostrar que a cor da pele pode ser uma explicaçãoplausível para seu rela vo isolamento social (Queiroz, 2006, pp. 23–27).Mas as principais causas de sua situação são creditadas a sua condição

de camponeses, ou melhor, si antes (Queiroz, 2006, pp. 48–49). O autortambém conta que as primeiras pessoas a quem indagou sobre a localiza-ção exata de Ivaporunduva reagiram com espanto, não conseguindo en-tender por que ele havia se interessado por um povoado de pretos, “gentesimples, alguns até com seis dedos em cada mão” (Queiroz, 2006, p. 22).

Após a abolição da escravatura, os quilombolas do Ivaporunduvapassam a ocupar-se do trabalho agrícola e organizam sua vida socioeco-nômica nos moldes do si ante tradicional brasileiro. As terras por elesocupadas eram devolutas (a serem incorporadas ao patrimônio do Esta-do), privadas ou pertencentes à Igreja. De maneira geral, boa parte doterritório por eles ocupado podia ser considerado fruto de apossamento .Sendo, assim, fruto de apossamento, os moradores de Ivaporunduva nãopossuíam tulo de propriedade sobre a terra. Esta situação é bastantecomum nos quilombos brasileiros. Durante um longo período, a comuni-dade organizava-se em moldes não capitalistas, adotando formas produ-

vas e prá cas rituais de distribuição de alimentos que podiam mesmolembrar aquelas observadas em sociedades “primi vas” (Queiroz, 2006,

p. 108). Ocupava uma região distante e isolada, sem canais de transportee comunicação adequados, dependendo apenas do traiçoeiro rio Ribeirade Iguape para seus deslocamentos, o que a manteve rela vamente isola-da de outras comunidades.

Mas tal situação começa a ser modi cada em meados do séculoXX, inaugurando-se assim nova fase da vida do bairro. Desde a décadade 1930, o governo do estado de São Paulo procurou criar programas de

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incen vo à produção econômica na região, menos desenvolvida economi-camente que o restante do estado, por meio de projetos de colonizaçãoda região, que ofereciam subsídios àqueles que se dedicassem à lavouraextensiva. A cultura escolhida pelo governo do estado foi a bananicultura,e hoje a região ainda é uma das maiores produtoras brasileiras desta fru-ta. A região torna-se alvo do interesse de proprietários que passam a verali um lugar atra vo para inves mentos. Esta polí ca elevou o preço dasterras e foi acompanhada por grande expansão da pecuária bovina e pelocrescimento da propriedade privada sobre a mata na va.

Tais projetos apresentam grande crescimento a par r da décadade 1950, apoiados em bene cios scais e pesados inves mentos. A pro-priedade privada sobre a terra cresce de forma ver ginosa, diminuindoabruptamente a extensão das terras públicas u lizadas cole vamente eessenciais para a manutenção do modo de vida da comunidade (Giacomi-ni, 2009, p. 7). Os moradores começam a ser assediados por fazendeirose empresários à procura das terras que se valorizam. Passa a ocorrer umprogressivo “cercamento” das áreas de matas naturais, transformadas empropriedade privada por meios variados, como a compra, as fraudes do-cumentais e a expulsão pura e simples dos posseiros.

As áreas ocupadas pelos “grandes posseiros” crescem rapidamente

entre os anos 1960 e 1970. Ao lado desta forma fácil e rápida de tornar-sedono de extensas propriedades, a região do Vale do Ribeira ainda ofereciauma mão-de-obra disponível e barata, privada dos meios de produção tra-dicionais. Muitos moradores de Ivaporunduva alienaram neste período odireito de posse da terra. Houve até tenta vas malsucedidas por parte deempresários locais de adquirir as “terras da Santa” (pertencentes à Igreja).Aliás, em muitos casos os moradores venderam suas terras e passaram acul var a terra da Igreja como forma de subsistência.

Entre as décadas de 1960 e 70, desenvolve-se também uma intensaa vidade de extração de palmito. São construídas fábricas para o proces-samento do produto na região e muitos moradores passam a se dedicara esta a vidade. Por suas caracterís cas, que exigem a permanência porvárias horas na mata, ela ocasionou dispersão demográ ca e abandonodas roças e das criações, além de enfraquecer os padrões tradicionais deajuda e solidariedade grupal. Além disso, subordinou toda a comunidadeao comprador do palmito e obrigou os moradores a comprarem os demais

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produtos - aos poucos, o trabalho passa a ser assalariado, processo que seacelera a par r de 1975. Ao lado disso, passou-se a produzir em larga esca-la lenha e carvão. A derrubada da mata ocasionava o crescimento naturalde pastagens, que eram ocupadas por rebanho bovino. As prá cas moder-nas de produção deveriam condenar os pequenos posseiros à ex nção, oque só pôde ocorrer, de fato, pelo uso da violência sica (cercamento eexpulsão dos posseiros) aliada a um processo de especulação do mercadofundiário que se iniciou ainda na década de 1930. As prá cas tradicionaisde produção cole va (mu rão) lentamente desaparecem. Os moradorescomeçam a necessitar de outros bens para sua existência, que só podemser comprados por meio do salário. As prá cas capitalistas inserem-se notecido social da comunidade e subs tuem as formas tradicionais de socia-

bilidade. O problema fundiário torna-se crônico. O assédio de fazendeirosestranhos à comunidade cons tui um dos pos mais graves de con itosentre os anos 1960 e 1970 na região. Torna-se frequente a existência deli gios e atritos pela compra das terras (Giacomini, 2009, p. 3 e p. 7; Ins -tuto de Terras do Estado de São Paulo, 2002).

Na década de 1970, a região foi u lizada como esconderijo pelaguerrilha que comba a o regime militar no Brasil. Em seguida, o governopassa a inves r pesadamente na infraestrutura de transporte e comuni-

cação da região e constrói uma estrada que faz a ligação com Ivaporun-duva, rompendo o secular isolamento sico da comunidade. Mas nestemomento, a comunidade já se encontra profundamente inserida no ciclode produção capitalista que se impôs. A economia da região começa aapresentar sinais de crescimento. Se considerarmos o período que vinhado m da mineração e se estendeu até os anos 1950, Ivaporunduva per-maneceu rela vamente isolado, fazendo uso de técnicas tradicionais deprodução e organizando-se com base em formas não capitalistas de pro-dução por aproximadamente 200 anos.

A par r de 1965, com a ins tuição do Código Florestal brasileiro, aextração do palmito torna-se uma a vidade ilegal (Lei 4.471 / 1965). Ospalmiteiros passam a sofrer vigilância estrita da polícia orestal. Tam-bém, a criação de áreas de proteção ambiental na região no ano de 1969,as quais se sobrepunham aos territórios ocupados pelas populações tra-dicionais, restringe severamente as prá cas agrícolas desenvolvidas pe-las comunidades residentes. Impedidos de exercer outras a vidades pro-

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du vas, os habitantes se voltam para a extração ilegal de palmito, o queleva muitos à prisão. Este processo de privação do território, que em seumomento inicial se origina de propostas desenvolvimen stas do governomilitar, passa a re e r agora o surgimento de novas preocupações polí -cas. Os atores polí cos que surgem neste momento, entre as décadas de1960 e 1970, são tanto fruto das condições sociais, polí cas e econômi-cas vividas durante a ditadura militar no Brasil quanto catalisadores queirão, em pouco tempo, promover a dissolução do regime ditatorial. Demaneira geral, surge um novo tema, que irá em breve de nir a agendapolí ca mundial - a crise ambiental (Gohn, 2007). Ademais, profundasmudanças polí cas e culturais aos poucos deslocaram o tema do traba-lho do centro das reivindicações polí cas e aí posicionaram uma nova

gama de exigências. O direito à iden dade e ao reconhecimento, as lutaspelos direitos de gênero e de etnia, estas novas preocupações passam ase re e r nas obras de intelectuais como Foucault, Gorz e Habermas ereorganizam as lutas polí cas tanto nos países centrais quanto nos pe-riféricos (O e, 1989). Este processo trará uma importante e inesperadareviravolta na região.

A par r da década de 1970, surgem em todo o mundo movimen-tos sociais que apresentam pautas reivindicatórias originais, baseadas nabusca por reconhecimento (Honneth, 2003) de suas especi cidades ét-nicas ou iden tárias e não mais centradas no trabalho como elementosar culador do discurso polí co (Arru , 1997; O e, 1989). As mobilizaçõesétnicas na América La na e par cularmente no Brasil ressoam e alimen-tam este processo, tornando-se fundamentais para de nições polí cas eteóricas ligadas às reivindicações formuladas pelos movimentos sociaisque contestavam a ordem vigente, fundada, de maneira geral, no esta-belecimento de governos militares por toda a região (Giacomini, 2009,p. 22). “Em síntese, os novos atores sociais que emergiram na sociedadecivil brasileira, após 1970, à revelia do Estado, e contra ele num primei-ro momento, con guraram novos espaços e formatos de par cipação ede relações sociais. Estes novos espaços foram construídos basicamen-te pelos movimentos sociais, populares ou não, nos anos 70-80” (Gohn,2007, p. 303). Sob tal perspec va, durante a década de 1980, mesmo osautores que haviam trazido o tema dos quilombos para o debate públiconas décadas de 1950 e 1960 pareciam conservadores - sua forma de en-tender os quilombos como fenômenos do período escravista, conquanto

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Massola, G. M., Svartman, B. P., Santos, A. O., & Galeão-Silva, L. G. (2015). Quilombos e confitos...

importantes para a compreensão da sociedade atual e para a história dopaís, terminavam “cristalizando sua existência no período em que vigoroua escravidão no Brasil, além de caracterizarem-nos exclusivamente comoexpressão da negação do sistema escravista, aparecendo como espaçosde resistência e de isolamento da população negra” (Ins tuto de Terrasdo Estado de São Paulo, 2002, p. 6), e falhavam em reconhecer o maisimportante: a iden dade negra, tanto quanto a condição de si ante, oucamponês, de nia o campo de luta que inúmeros grupos espalhados peloBrasil deveriam enfrentar agora . Conquanto falhassem neste ponto, eraimperioso reconhecer que “a produção cien ca ainda atada a exege-ses restri vas e pouco plás cas … subsidiou a luta polí ca em torno dasreivindicações da população rural negra que, sofrendo expropriações in-

cessantes, se colocava como um segmento especí co no palco dos movi-mentos sociais” (Ins tuto de Terras do Estado de São Paulo, 2002, p. 7). Ainvisibilidade das populações negras, na condição de populações negras ,passou a ser vista como resultado do escamoteamento das relações de-siguais que imperavam no país (Giacomini, 2009, p. 22). As especi cida-des das populações negras começaram a parecer um tema premente depesquisa, cujo valor não precisava ser demonstrado – as “comunidadesnegras rurais” começaram a parecer cada vez menos rurais e cada vezmais negras (Giacomini, 2009, p. 9 e p. 22). Em meados dos anos 1980,

já era possível reconhecer claramente uma “eferverscência intelectualligada à construção de toda uma ideologia de autoa rmação racial nu-cleada na ideia de quilombo” (Pereira, 2006, p. 15). Da mesma forma,pareceu natural dizer que os “quilombos” do Vale do Ribeira tornavamclara a “iden cação étnica de grande parte dos camponeses que, frenteàs pressões socioeconômicas, culturais e territoriais, remete-os à escravi-dão e à busca da história de ocupação de suas terras” (Giacomini, 2009,p. 3). Vale destacar que os con itos con nuavam na região. A tulação daterra parecia longe de ser ob da e a pressão de grupos nacionais e inter-nacionais ligados ao agronegócio não dava sinais de arrefecimento. Alémdas pressões advindas da modernização econômica e da criação das áre-as de proteção, projetos de infraestrutura que ameaçavam alterar com-pletamente a geogra a da região apavoravam os moradores. Entre eles,causava (e ainda causa) temor o projeto de construção de uma barragemno rio Ribeira cuja consecução levaria ao m quase todos os quilombosda região (Carril, 2002; Giacomini, 2009; Ins tuto de Terras do Estadode

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São Paulo, 2002; Nascimento, 2005). Em todo o Brasil, a forma básica pelaqual o processo de expropriação se dá é parecido com esse: os quilombosocupam áreas afastadas e sem interesse comercial. Quando há interesseeconômico direto, grandes proprietários u lizam meios legais ou ilegaispara expulsá-los. Se o interesse diminui, os camponeses podem voltar aocupar a região com alguma segurança (R. M. C. Silva, 2006).

Os quilombos após a Cons tuição de 1988

Concomitantemente, os membros das comunidades que há séculoshabitam a região passaram a organizar-se na década de 1980 com baseem um discurso cada vez mais calcado em seus aspectos étnicos (Giaco-mini, 2009, p. 3). Durante este período, vivia-se também no Brasil a efer-vescência causada pelo processo de democra zação formal que colocava

m à ditadura militar, e uma nova Cons tuição estava em franco debate.Movimentos sociais de diversos pos organizavam-se para pressionar aAssembleia Cons tuinte, em um processo que resultaria na criação deuma carta legal fortemente marcada pela preocupação social (Gohn,2007). Novas pesquisas eram produzidas nas universidades, pesquisado-res acumulavam conhecimento sobre as origens históricas e as dinâmicassociais dos diversos grupos étnicos e essas inves gações reforçavam aadoção de um discurso fortemente marcado por referências à históriacolonial e a suas repercussões contemporâneas. Ao mesmo tempo, taispesquisas levavam para a esfera da administração federal as conclusõesa que chegavam, in uenciando os debates na esfera pública governa-mental (Giacomini, 2009, p. 12). A caracterização dessas comunidadescomo “tradicionais” (Leite, 2000), operada nas décadas de 1930 e 1940,foi retomada e reelaborada. As referidas comunidades são consideradastradicionais porque abrigam “um conjunto de valores, de visões de mun-

do e simbologias, de tecnologias patrimoniais, de relações sociais mar-cadas pela reciprocidade, de saberes associados ao tempo da natureza,músicas e danças associadas à periodicidade das a vidades de terra e demar, de ligações afe vas fortes com o sí o e a praia” (Diegues, 2004, p.23). O texto nal da Cons tuição Federal traz, em seu ar go 68, en m, agaran a tão desejada: “Aos remanescentes das comunidades de quilom-bos, que estejam ocupando as suas terras, é reconhecida a propriedade

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de ni va, devendo o Estado emi r-lhes tulos respec vos”. A alteraçãosemân ca é percep vel. Essas comunidades passam a ser chamadas de“remanescentes”.

Isso gerou intensos debates acadêmicos, polí cos e legais. Os bair-ros negros há muito tempo não u lizavam o termo “quilombo” paradesignarem-se. Giacomini (2009, p. 8) a rma que “estes grupos étnicostêm sido obrigados a ajustar-se a um conceito até então desconhecidopara eles, o de quilombo, como estratégia polí ca para garan r o direitode permanência em seus territórios”. Ao mesmo tempo, tal ajuste podeaparecer como um “úl mo recurso na longa batalha para manterem-seem suas terras” (Ins tuto de Terras do Estado de São Paulo, 2002, p. 11).O sen do de “quilombo” também se alterou, perdendo sua conotação deisolamento geográ co e de fuga e ganhando um sen do que privilegiaa existência de uma memória comum e da consciência de uma históriacompar lhada, “uma herança cultural e material que lhe confere umareferência presencial no sen mento de ser e pertencer a um lugar espe-cí co” (Giacomini, 2009, p. 13). Ser remanescente implica a conjugaçãode três elementos, terra, etnia e território, este úl mo entendido como aapropriação simbólica da terra, considerada substrato para a sobrevivên-cia cole va. Ao surgirem como remanescentes, esses grupos tornaram-sevisíveis perante a polí ca nacional. O Decreto 42.839, de 1998, tornouexplícito que a caracterização de tais grupos seria feita por autoiden -cação (o próprio grupo reconhece-se como remanescente) e por dadoshistórico-sociais a serem sistema zados em um relatório técnico-cien -

co elaborado por órgão competente (a m de dirimir as eventuais dis-putas judiciais por terra). Além disso, seu caráter “tradicional” permiteargumentar que a expulsão dessas comunidades pela criação das áreasde proteção ambiental é uma injus ça histórica; que seu modo de vidatradicional apresentava baixo impacto sobre o ecossistema; que, ao con-

trário, foi a dissolução do modo de vida tradicional pelas forças do capitalque pôs em risco o equilíbrio ecológico; e que, a nal, só há algo parapreservar porque eles ali permaneceram por mais de dois séculos (Pe-droso, 2011). Começaram a ser vistos como sobreviventes dos con itosagrários, povos cuja existência con nua ameaçada pelo fato de que suasterras ainda estão, em grande medida, alienadas por grandes proprietá-rios ou pelo próprio Estado.

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Conclusão: a situação quilombola contemporaneamente

O quilombo de Ivaporunduva obteve o reconhecimento de suas

terras pelo Ins tuto de Terras do Estado de São Paulo (ITESP) em 1997,por meio de relatório técnico-cien co que atesta seu caráter de re-manescente. Em 2000, suas terras foram reconhecidas pela FundaçãoPalmares. Em 2003, a comunidade recebeu do ITESP o tulo de partede suas terras. Em 2009, é nalizado o processo de reconhecimentodas terras e, em 01 de julho de 2010, a Associação Quilombo de Ivapo-runduva obtém o registro da propriedade cole va da terra em cartório(Americo & Padilha, 2011) – a primeira comunidade no estado de SãoPaulo a obtê-lo. Cada uma das comunidades da região encontra-se emum estágio diferente deste processo. A tomada das terras da região porgrandes proprietários ainda ocorre e a legislação restri va advinda daexistência de amplas parcelas de terra sob o regime de proteção am-biental con nua a ameaçar a existência das comunidades. Ainda trami-ta, além disso, o projeto de construção de barragens na região. Mas ascomunidades organizam-se de forma cada vez mais ar culada para lutarpor seus interesses. Em 2011, após muitos anos de pressão polí ca, asáreas de proteção do Vale do Ribeira foram transformadas em um mo-saico ambiental, permi ndo maior exibilidade nas a vidades econômi-cas dos moradores. No ano seguinte, o Ministério Público Estadual revo-gou a alteração devido a um problema formal e, em 2013, por pressãodos moradores, a área foi novamente conver da em um mosaico, comlegislação especí ca para cada sub-região e maior liberdade para a vi-dades econômicas. Apesar de haver diferenças importantes na históriade cada núcleo comunitário, parece haver se tornada clara a existênciade profundos vínculos sociais, polí cos e culturais entre eles (algo que,em 1983, Queiroz, 2007, já havia defendido). Das quase 50 comunida-

des solicitantes do estado de São Paulo, 22 foram reconhecidas comoremanescentes pelo ITESP e 6 receberam o tulo de domínio em caráterde ni vo de suas terras.

As populações remanescentes no Vale do Ribeira passaram a exigircondições para o crescimento econômico e para o aumento de seu poderde consumo e de sua qualidade de vida. Em pesquisas iniciais realizadasna comunidade (Massola et al., 2012), alguns jovens de Ivaporunduva

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Massola, G. M., Svartman, B. P., Santos, A. O., & Galeão-Silva, L. G. (2015). Quilombos e confitos...

relataram o desejo de deixar a comunidade em busca de integração aosmodelos iden tários que oferecem inserção nos padrões de consumohegemônicos. As lideranças comunitárias mostram-se preocupadas comisso e buscam alterna vas para dinamizar a economia local e ofereceratra vos para que os jovens permaneçam. Uma das possibilidades re-centemente aventadas foi o desenvolvimento de projetos de turismo debase comunitária que abrangem vários quilombos e apresentam poten-cial para aumentar os rendimentos da comunidade, sem causar danos aoequilíbrio ecológico. Algumas comunidades construíram unidades para aindustrialização de frutas. Todas, de alguma forma, buscam integrar comalgum grau de autonomia a estrutura produ va da região.

Para essas comunidades, território não signi ca apenas terra. Sig-ni ca a possibilidade de integrar com autonomia o mundo social. Nãosigni ca separação, mas implica a possibilidade de manter suas carac-terís cas culturais e eventualmente transformá-las, sem que tal trans-formação signi que uma forma de subordinação às forças hegemônicas.Mas a luta pela terra foi assumida por essas comunidades, que exerce-ram verdadeiro protagonismo polí co nas três úl mas décadas. Apesarde a terra não ser o elemento essencial de sua luta, sem a terra, enten-dem que não é possível obter o respeito aos seus direitos básicos. Ou

seja, sem terra, parece não ser possível obterem território. Isso podeparecer contraditório com a literatura que argumenta pela perda da im-portância do território, contemporaneamente. A história dos quilombospode talvez ajudar a compreender esta contradição. Toda a subjugaçãodas referidas populações foi sustentada por certa relação com a terra: aausência de terra foi uma das formas pelas quais se lhes negou território – era, en m, uma das formas pelas quais se man nha sua condição desubmissão e sua exclusão da condição de cidadãos. Há 450 anos, as po-pulações negras no Brasil vêm sendo subme das a um brutal processo

de desenraizamento. O combate a este processo sbe iniciou pelo direitoà terra, que representou o direito a um lugar, um território. Não fossemtambém ví mas do preconceito de cor; não fossem também ví mas pre-ferenciais da enorme desigualdade social no Brasil; não vessem suacultura, suas tradições, seu modo de vida vilipendiados – a terra talvezpudesse ser vista como aquilo que ela já é: símbolo da iden dade, dacultura e do orgulho dessas populações.

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Inves gación y polí ca ambiental: el papel de lapsicología ambiental

Ricardo García-Mira

Conectando la inves gación y la polí ca

Cuando uno piensa en la función que debe cumplir un psicólogo so-

cial, inmediatamente piensa en el trabajo con grupos sociales, con comu-nidades, con la sociedad, que es un trabajo polí co, donde hay muchosactores, y en donde surgen muchas dinámicas sociales y humanas que esnecesario tomar en consideración. Nuestra responsabilidad como inves-

gadores es transmi r a los profesionales de la psicología, pero tambiénde la ciencia polí ca, aquellas claves que han de contribuir a la acción,basada en los resultados de la inves gación psicosocial. Pero cuando unointenta conectar inves gación y polí ca, la primera cosa que uno adviertees que no es una tarea fácil. Pensar en términos de qué aplicación prác-

ca puede tener un descubrimiento cien co, no es di cil inicialmentepara el inves gador que diseña su experimento o ejecuta sus análisis yexploración de la realidad social. Lo que es di cil es comenzar el procesode implementación, a través del que los resultados de inves gación lle-gan a ser una contraparte de la inversión en inves gación que hacen losciudadanos a través de sus impuestos. Ellos esperan el retorno de esainversión en forma de acciones concretas, en forma de aprendizaje, o enforma de guías y recomendaciones para la acción polí ca.

Los polí cos y administradores públicos necesitan de la existenciade un fuerte vínculo entre inves gación y polí ca. De otro modo, la ac-ción polí ca es más compleja y llega a hacer di cil alcanzar las metasde responsabilidad social que dan lugar a la mejora del bienestar de losciudadanos. No nos referimos a un vinculo retórico, sino a un vinculoreal en forma de implicación prác ca, considerando que la acción polí cadebería estar enraizada en el conocimiento basado en la ciencia social,y reconocer, por un lado, la necesidad de basar las decisiones en la in-

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García-Mira, R. (2015). Inves gación y polí ca ambiental: El papel de la psicología ambiental

ves gación de cómo funciona la comunidad, y por otro, la necesidad deconsiderar la contribución que la propia sociedad civil –en sus muchasformas de organizarse y manifestarse-, hacen para generar una base deconocimiento.

Existen varios argumentos para explicar los problemas que las uni-versidades y centros de inves gación sufren y que cons tuyen verdade-ras barreras a la implementación de resultados de inves gación. Por unlado, problemas socioambientales, que para ser abordados en toda suamplitud, deben ir más allá del análisis disciplinar especializado, que vaen detrimento de un análisis inter o transdisciplinar. Por otro, si los pro-blemas son mul dimensionales, las soluciones también lo deben ser. Así,para transferir resultados de inves gación e implementarlos en la prác-

ca social, urbana, y en la polí ca ambiental, así como la explotación delos recursos públicos requiere una estrategia integral y no sólo centradaen una única fuente de obtención de conocimiento.

La conversión de resultados de inves gación en resultados prác -cos y ú les en los dis ntos contextos de la vida co diana, plantean uncues onamiento del sistema educa vo en el ámbito de las universidadesy centros de inves gación de do maneras: (a) En primer lugar, el pro-blema subraya la necesidad de un programa transversal para aprender a

trabajar bajo un modelo inter y/o transdisciplinar; (b) Además, se nece-sita un nuevo paradigma de desarrollo de conocimiento, que comienza apar r de metodologías que integran al ciudadano, al usuario, al poli coy a las personas de interés dentro de un sistema integral de cogenera-ción de conocimiento. En relación con el primer punto, esto se re erea reconectar la ciencia con su obje vo primario, que es la generaciónsistemá ca de conocimiento bien estructurado, a través de la observa-ción, el razonamiento y la experimentación a par r de disciplinas quetrabajan en cooperación e intentando explicar el funcionamiento de losfenómenos via hipótesis, leyes, teorías y sistemas. Se enfa za aquí que elelemento transdisciplinaridad se re ere al trabajo conjunto que generaconocimiento nuevo y que va más allá de una disciplina especí ca. Enrelación con el segundo punto, el énfasis es puesto sobre la cogeneraciónde conocimiento; sin embargo, no a par r de disciplinas, sino a par r deen dades y personas implicadas e interesadas en aplicar y obtener bene-

cios sociales a par r de los resultados de una inves gación.

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Aprender a inves gar juntos: de la mul disciplinaridad a latransdisciplinaridad

En general, como señaló Räthzel (2008), el mundo académico haadoptado enfoques disciplinares (por ej., disciplinas académicas especia-lizadas), mul disciplinares (por ej., disciplinas especializadas que trabajanen equipo pero man enen independencia en su contribución a la soluciónde un problema real a través de input de sus propios conceptos y métodosdisciplinares), o enfoques interdisciplinares (por ej., mezclas de discipli-nas). Esto quiere decir que normalmente cada disciplina trabaja de unamanera auto-contenida y aunque hay un intento de compar r e integrar,sólo a través de la transdisciplinaridad el foco se mueve hacia la integraci-ón en un nivel disciplinar que crea conocimiento nuevo (integrando pro-bablemente perspec vas legas), perspec vas y re exiones.

Aunque no hay consenso sobre el signi cado de transdisciplinari-dad, podemos iden car, sin embargo, algunas caracterís cas en la in-ves gación transdisciplinar que nos permiten caracterizar este enfoque.Como señalan Lawrence y Després (2004) y Després (2005), latransdisci - plinaridad, como modo de producción de conocimiento:

• Reta la fragmentación del conocimiento . Afronta problemas deinves gación y sistemas de organización que se de nen a par r dedominios complejos y heterogéneos.• Se caracteriza por su naturaleza híbrida, no-lineal, por su re exivi -dad, trascendiendo cualquier estructura disciplinar académica.• Acepta contextos de inves gación locales e incer dumbre; es unanegociación de conocimiento especí ca de contexto.• Es el resultado de un proceso de inves gación que incluye el ra-

zonamiento prác co de los individuos con la restricción y oferta de lanaturaleza de los contextos comunitarios, organiza vos y materiales.• Está orientada a la acción. Con frecuencia afronta problemas delmundo real y genera conocimiento que no sólo aborda el problemasino que también contribuye a su solución. Uno de sus obje vos eshacer un puente entre el conocimiento derivado de la inves gación ylos procesos de adopción de decisiones en la comunidad.

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Veamos cómo afrontar di cultades que otros autores han encon-trado al abordar, por ejemplo, el estudio de la sostenibilidad en el am-biente urbano o el ambiente organizacional de un modo transdisciplinar.

Aprendiendo a generar conocimiento juntos

La coproducción de conocimiento incorporando el conocimientode ciudadanos, polí cos y personas y organizaciones de interés implicaun cambio en la con guración de la polí ca hacia un enfoque diferen-te conceptualmente, orientado a la adopción de decisiones, e incorporala innovación social como elemento clave. Entre las caracterís cas másimportantes, podemos mencionar que: (a) Implica un trabajo conjuntocon actores que enen diferentes opiniones, agendas, lenguajes y expec-ta vas; (b) Demanda la creación de un espacio adecuado de innovacióny par cipación social, donde la innovación social transformadora puedaemerger, como resultado de procesos crea vos que surgen del encuentrode dis ntos actores; (c) Demanda un consenso en los modelos de gober-nanza, descartando aquellos que son guiados por criterios de experien-cia, en favor de modelos que están comprome dos con la implementa-ción de mecanismos par cipa vos para construir polí cas comunitarias.

En estos, la integración de miembros de la comunidad y de la sociedadcivil, representantes, académicos, organizaciones no gubernamentales yciudadanos, es el patrón común , y el trabajo conjunto para establecernuevos modos de gobernanza que aumenten la responsabilidad polí ca,la meta .

Crear nuevos espacios en los que inves gadores, poli cos, orga-nizaciones no gubernamentales y ciudadanos establezcan términos dereferencia comunes y un lenguaje compar do llega a ser absolutamentenecesario. Pero quizás de mayor importancia, además del lenguaje com-par do, es también compar r la idea de que la polí ca social y ambien-tal, basada en el conocimiento de las ciencias sociales, puede contribuira mejorar la comunidad. Este aspecto no siempre dio lugar a su cienteacuerdo entre cien cos y poli cos. Pero es, sin embargo, un tema queafecta al pres gio de las ciencias sociales en general, y de la psicologíasocial y ambiental en par cular, para llegar a ser considerado como labasae de la toma de decisiones.

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Hay una di cultad clave que surge de lo anterior, como una barre-ra a la integración del conocimiento cien co en las polí cas concretasque dan lugar a la acción social: (a) La ausencia de interés de los poli cosen la inves gación en general. Parecen más interesados en conocimientobasado en la experiencia que en conocimiento apoyado cien camente;(b) La ausencia de interés entre muchos inves gadores en el possible im-pacto que su inves gación pueda tener en la arena polí ca (normalmentepre eren limitarse a publicar su trabajo en la revista respec va, y nadamás); y (c) La ausencia de una comunicación efec va (y bidireccional) paraconstruir puentes entre lenguajes, agendas e intereses.

Las organizaciones de la sociedad civil están actualmente creandoconocimiento. Su contacto con la realidad de los temas sociales y ambien-tales está guiado por valores y principios que son su razón de existencia,y agrupados bajo una única iden dad para sus miembros. Están por tantomenos conectadas con intereses especula vos que pueden estar lejos delinterés social y ambiental. Su papel, por tanto, no debería infraes marse.Los procesos poli cos deberían enriquecerse incorporando el conocimien-to que estas organizaciones son capaces de aportar como contribución.

El impacto de la psicología en la adopción de decisiones ambientales

En las recientes décadas, en Europa y América, ha habido un im-pacto más bien modesto de la psicología sobre la toma de decisiones am-bientales. Algunas razones para ésto ya han sido discu das por Stern andOskamp (1987) y por Vlek (2000). Entre ellas, podemos mencionar quemuchos poli cos son más op mistas a favor de lo tecnológico y pre erendatos “duros”, mientras que las conclusiones de la inves gación psicoló-gica son a menudo demasiado “blandas” y parecen menos ables que los

informes técnicos o de ingeniería. Por ejemplo, en el ámbito de la psi-cología ambiental, entre las contribuciones que hemos desarrollado enel ámbito de la inves gación básica, podríamos mencionar las siguientes:

El estudio de la percepción espacial y ambiental

Un aspecto aplicado de esta inves gación ene que ver con cómo elpúblico en general percibe los problemas socioambientales y sus posibles

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soluciones. Se llama percepción pública. Este po de inves gaciones, enlos contextos urbanos, han recibido especial atención. Nuestra propia in-ves gación (García Mira & Dumitru, 2014; García Mira & Golubo , 2005)parte del problema que genera el hábito creciente respecto a la u lizacióndel coche en las ciudades, fortalecido por la dimensión de estatus que pro-porciona y por la mayor seguridad asociada al traslado de niños y mayores(Björklid, 2002; Francis y Lorenzo, 2002; Harden, 2000). Otro factor eneque ver con la “adul zación” de la infancia debida a la necesidad de llenarel empo de los niños con ac vidades programadas por los adultos como,por ejemplo, música o deportes ((Francis y Lorenzo, 2002; Risso o, 2002),o la creencia de los padres de que no hay otra alterna va, de que vivenlejos del entorno escolar o la comodidad de llevarlos en coche al empo

que uno se desplaza a trabajar (Gatersleben, 2002). Como consecuencia,estos aspectos han contribuido a un mayor uso del automóvil, que a suvez a traido consigo una desconexión de los niños de su experiencia con elentorno urbano, con la consiguiente privación de la capacidad de explorarlibre y autónomamente el ambiente (Risso o y Tonucci, 2002), en detri-mento del desplazamiento a pie, y produciendo un impacto medible sobrela adquisición del conocimiento ambiental, así como sobre la oportunidadde vivenciar el ambiente e integrarlo cogni vamente.

El comportamiento humano en el ambiente sico es un comporta-miento esencialmente espacial Stea, Elguea, y Blaut, (1997). Se trata deun comportamiento que consiste en la elaboración de mapas cogni vos,importante para incrementar nuestro conocimiento del entorno, así comopara orientar nuestra acción. Esta capacidad de elaboración de mapas enlos niños se desarrolla en estadios tempranos (véase Blades et al., 1998;Stea et al., 2002). En nuestra inves gación, intentamos averiguar cómola gente percibía el ambiente espacial y ver cómo los niños estructura-ban este po de información espacial, diferenciando entre aquellos que

caminan y aquellos que se desplazan en coche por la ciudad para ir a laescuela. El enfoque consis ó en comparar los mapas cogni vos de cadaniño, prestando atención al análisis de las coordenadas y a cómo correla-cionan con las coordenadas de un mapa real. Comprobamos que los niñosque caminan a la escuela llegan a tener una conciencia más detallada delespacio urbano. Cuando dibujaban sus mapas, re ejaban la presencia de

endas, árboles, casas de sus amigos, y en general, una representaciónmás rica y elaborada llena de elementos caracterizando el paisaje urbano.

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Los que se desplazaban en automóvil, sin embargo, mostraban las callescomo en un con nuum, con elementos ocasionales del paisaje urbano,rara vez e quetados. La comparación de las distancias es madas y las dis-tancias reales mostró algunas caracterís cas diferenciales también. A par-

r de la comparación de los mapas cogni vos, se constató que los niñosque caminaban se aproximaban más en sus dibujos a los mapas reales quelos niños que se desplazaron en automóvil, cuyos mapas mostraron dife-rentes con guraciones de lugares cuando se comparaban con los mapasde distancias reales.

Los resultados de este experimento nos proporcionaron informaci-ón sobre dos pos de experiencias dis ntas, una conciencia espacial queparte de una experiencia percibida desde el interior de un vehículo pri-vado, y otra conciencia espacial que es f ruto de la experiencia percibidade alguien que camina a la escuela. La representación mental del espacioy la forma en que los chicos y chicas en enden su exprincia personal di-

ere de acuerdo al modo de viajar que u licen. En el estudio llevado acabo por García Mira y Golubo (2005) y García Mira y Dumitru (2014)se constató también que el uso de técnicas de escalamiento mul dimen-sional para generar estas representaciones mentales en forma de mapascogni vos muestra que hay diferentes formas de conceptualizar el mismoespacio dependiendo del modo de transporte que se u lice. Así, los niñosque caminaron a la escuela conceptualizaron el espacio urbano diferen-te que aquellos que se desplazaron en coche, percibiendo los diferenteslugares incluidos en el estudio como formando parte de un con nuum,recordando más elementos del paisaje urbano recorrido, y demostrandomayor habilidad para estructurar el espacio. Por otro lado, los niños quese desplazaron en coche tuvieron una percepción más pobre del espa-cio, mostraron una tendencia a agrupar lugares diferentes, y mostraronun grado menor de estructuración y ausencia de cualquier impresión de

con nuidad. Los hallazgos sugieren que la ciudad ene que ser experien-ciada si deseamos promover una mayor conciencia del entorno; esto seráel primer pas hacia el desarrollo d una ac tud faorable hacia el medio am-biente Si consideramos que esto es importante, y que viajar por la ciudada pie es también importante, dadas las consecuencias para la interacción yla cognición espacial que se derivan de ello, la forma en que la ciudad estéorganizada debería tener esto en cuenta, en términos tanto de distan-cia como de accesibilidad. Estos hallazgos sugieren también la necesidad

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de instrumentar programas par cipa vos para niños en los que puedanaprender a explorar sus alrededores, como resultado de un prceso de in-teracción, por ejemplo entre profesores y urbanists, animándoles a tenerinterés ac vo en su ambiente local y tomando nota de sus inicia vas enun contexto par cipa vo que implique a la comunidad, niños incluidos.

La importancia de la comunicación y la par cipación en los asuntosambientales

Las polí cas ambientales desarrolladas a nivel global por parte delas agencias nacionales o internacionales y no explicadas de una manerae ciente, son a menudo malentendidas o ignoradas por la pobación local.En los niveles locales y regionales, un malentendido puede dar lugar inclu-so a una ac dud de oposición, manifestada en conducta an ambiental, sila gente sólo ve las desventajas de la conducta proambiental que afecta asu vida co diana. La importancia de la par cipación pública en las decisio-nes ambientales ha sido reconocida en muchos ámbitos (World Commis-sion on Environment and Development, Agenda 21). A nivel europeo, ladirec va 85/337/EEC, enmendada por la 97/11/EC, del Consejo Europeoreglamenta la implicación pública con carácter previo a la implementaci-ón de cualquier proyecto (Johnson & Dagg, 2003).

Existe un acuerdo tácito sobre la necesidad de mejorar la par cipa-ción pública, incluso entre los que toman decisiones, pero existe menosacuerdo acerca de los principios que deberían servir como guía de esapar cipación. Por ejemplo, la representación de todas las comunidadesy grupos de interés, para que puedan contribuir y hacer preguntas, adop-tando decisiones, bajo una lógica de hones dad, basadas tanto en cono-cimiento cien co como en conocimiento social (Johnson & Dagg, 2003;McCool & Guthrie, 2001). Sin embargo, se reconocen también las di cul-

tades prác cas que pueden surgir para conseguir el obje vo de una par -cipación efec va. En primer lugar, hay con ictos de interés entre dis ntosactores (administradores, cien cos, industria y ciudadanos) que puedenser evitados. Por otro lado tanto los fenómenos ambientales como las co-munidades normalmente mani estan cuatro caracterís cas principales:complejidad, incer dumbre, grandes escalas temporales y espaciales, y(en el caso del medio ambiente) irreversibilidad (Van den Hove, 2000).Hay, por tanto, un fuerte componente de resolución de con icto en los en-

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foques de par cipación en la toma de decisiones polí ca sobre el medioambiente a nivel de las comunidades y en dades grandes.

La creciente conciencia ambiental de los ciudadanos en todas partes

ha promovido considerable demanda de par cipación en la adopción dedecisiones en el ámbito polí co, y no siempre en la dirección señaladapor el gobierno. Nuestra tesis básicaes que la par cipación y la colabo-ración son imposibles sin una comunicación bidireccional. Con respectoa asuntos ameintales, la par cipación siempre implica comunicación y lacomunicación siempre imlica par cipación (Wisner, Stea, & Kruks, 1991).

El caso del desastre del Pres ge

El caso del desastre del petrolero “Pres ge” a 200 millas de la cos-ta de Galicia (Noroeste de España) en 2002 (García-Mira, 2013; García--Mira et al., 2005, García-Mira et al., 2006) cons tuye un claro ejemplode cómo decisiones polí cas poco informadas pueden tener importantesimplicaciones sociales y ambientales, y por supuesto polí cas, y cómo laescala del problema puede variar considerablemente dependiendo de laefec vidad con la que se ges one la información y la comunicación. Obtu-vimos interesantes hallazgos en un amplio estudio de campo que implicóel apoyo público en la adopción de decisiones y en las polí cas resultan-

tes a la crisis desde el hundimiento del petrolero. El desastre fue seguidopor una intensa fractura social, además de los impactos evidentes sobrelos ecosistemas costeros y marinos. Hubo varias cues ones claves en esteestudio, que estuvieron relacionadas con (a) La iden cación del nivel deescala de adopción de decisiones (local versus regional versus nacional), y(b) las diferentes conceptualizaciones del problema por parte de ciudada-nos por un lado y polí cos y administradores públicos por otro.

Con respecto al nivel de escala de adopción de decisiones, el pro-blema pudo haberse resuelto a un nivel más bajo (local). Sin embargo, ladecisión de enviar el petrolero lejos de la costa, combinado con la nece-sidad resultante de afrontar peores condiciones temporales, dio lugar alhundimiento del barco y a una marea negra, aumentando así el nivel deescala de la crisis. Esto requirió la par cipación ciudadana a gran escala,que incluyó un ujo de voluntarios que acudieron desde dis ntos pun-tos de Europa, sí como la implicación de organizaciones sociales de nivelmayor (por ejemplo, la Unión Europea, organizaciones mul nacionales,

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García-Mira, R. (2015). Inves gación y polí ca ambiental: El papel de la psicología ambiental

compañías del sector privado). Nuestros resultados mostraron tambiénque los ciudadanos evaluaron el problema como un problema de gran es-cala, tanto temporal como espacialmente, coincidiendo en que el proble-ma tardaría varios años en resolverse.

Con respecto a las diferentes conceptualizaciones del problema,mientras los ciudadanos iden caron rápidamente el alcance del desas-tre, el gobierno estatal, preocupado por otras cues ones de interés local(como las elecciones a pocos meses del desastre), decidió minimizar elriesgo y negar la evidencia del peligro. Así, el gobierno ordenó al petro-lero dañado alejarse de la costa, sin considerar que esta decisión podríaresultar en una ampliación del riesgo de mareas negras, potencialmenteafectando a otros países (como de hecho ocurrió con la costa oeste deFrancia). Denegar el riesgo tuvo otro impacto: no se adoptó por parte delgobierno medida efec va alguna para mi gar las consecuencias del ac-cidente hasta que surgió la protesta social. Nuestros propios resultadosapoyaron esta visión, indicando la evaluación de los entrevistados de lasrespuestas a la ges ón de crisis por parte del gobierno como pobre. Lasconsecuencias del desastre fueron tanto polí cas como económicas.

En primer lugar, el daño a las areas costeras, seguido por la presiónsocial y la protesta, dio lugar a la aprobación de inversiones en las zonas

afectadas de apoyo a la población, principalmente pescadores. En segun-do lugar, dio lugar a cambios a nivel europeo afectando a las reglamenta-ciones sobre Sistemas de Transporte Internacional para cargas peligrosas.Las consecuencias sociales de estas inicia vas fueron igualmente clarasen nuestros resultados cuan ta vos, con evaluaciones menos nega vasun año después de la crisis que inmediatamente después. Al u lizar dosmomentos para evaluar el impacto socal, se constató que en la primeraola de entrevistas la población realizó evaluaciones similares a las de losvoluntarios que par ciparon en las tareas de apoyo y limpieza. Tanto losvoluntarios como la población local compar eron visiones pesimistas delproblema. Sin embargo, en la segunda ola de encuestas las respuestas dela población cambiaron claramente, volviéndose su evaluación más op -mista respecto a la situación un año después. Estos resultados mostraronun movimiento signi ca vo en la evaluación hecha entre 2002 y 2003.Dado que en 2003, el ver do apenas se había limpiado y las consecuen-cias ecológicas eran todavía evidentes, tal cambio en las evaluaciones de

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los entrevistados pudo ser debido no sólo a la eliminación o reducción delas consecuencias del accidente un año después, sino además, a la polí cade compensaciones y subsidios llevada a cabo por el gobierno sobre lapoblación afectada.

El impacto de la psicología: la conducta y el acto de par cipar en la tomade decisiones

La aplicación del conocimiento ambiental a la polí ca ambientalene que ver con la efec vidad de la par cipación pública. Generar co-

nocimiento ambiental entre ciudadanos y organizaciones o personas deinterés, así como con polí cos no es nada fácil a menos que se promuevaun proceso de par cipación pública. La par cipación juega un papel enla ges ón de los recursos naturales (e.g. Johnson & Dagg, 2003; McCo-ol & Guthrie, 2001; Stern & Oskamp, 1987; Van den Hove, 2000), y enla de nición de las polí cas ambientales. En el caso de desastres, cuyaaparición es casi siempre impredecible, el “antes” implica preparación ymi gación del impacto; el “después” consiste en esfuerzos para repararel daño ambiental y humano producido. Un ejemplo de esto es el enfo-que de las en dades gubernamentales locales y nacionales, ciudadanos yprofesionales que reducen el daño resultante del desastre (García-Mira,2013; García-Mira et al., 2005; García-Mira et al., 2006; García-Mira etal., 2007).

La par cipación es efec va cuando la comunicación que implica lle-ga a ser ac va, dentro de un proceso recíproco, en el que la informaciónproporcionada por par cipantes y la respuesta de los profesionales es cla-ra e inequívoca. Desafortunadamente, no siempre puede garan zarse unaacción y consideración desde la parte de las ins tuciones. La par cipaciónse dice que es efec va cuando da como resultado acción a nivel polí co.

Algunas lecciones aprendidas del desastre del Pres ge incluyen:1. Los enfoques de Arriba-Abajo hacia la solución de problemasambientales a menudo son contraproducentes. Como estrategiasaisladas, tales enfoques pueden incluso elicitar resistencia entremiembros de la población. En el caso del desastre del Pres ge, la co-municación pobre y poco coordinada entre gobierno y ciudadanosdio lugar a descon anza. La con anza en las organizaciones públicas

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y las fuentes de información disminuye el riesgo percibido y aumentalos bene cios percibidos (Frewer, 2004).2. La comunicación entre polí cos y el público no es normalmenteun proceso bidireccional, sino más bien (y bastante a menudo) uni-direccional y de Arriba-Abajo. Las consecuencias de una estregia así,durante el desastre del Pres ge, debido a su gravedad e impacto in-ternacional, tuvo especial relevancia para los administradores públi-cos. La psicología ambiental puede jugar un papel clave en el área dela par cipación pública, y más especí camente, en la introducciónde estrategias par cipa vas. A nivel global, las polí cas ambientalesde agencias nacionales e internacionales son frecuentemente desco-nocidas (o malentendidas) por la mayor parte del público si no se

explican con claridad. A niveles más locales o regionales, tales malen-tendidos pueden resultar incluso en oposición pública. A nivel localla promoción de competencia ambiental entre ciudadanos es crí capara el desarrollo de patrones de conducta responsable (véase Losa-da & García-Mira, 2003).3. La minimización del riesgo afecta a la forma en que los ciudada-nos afrontan las amenazas. La respuesta del gobierno en el caso delPres ge incluyó medidas diseñadas para reducir la intensidad de laprotesta social, para debilitar las redes de apoyo social emergentesy para fragmentar la unanimidad de la respuesta comunitaria, paraminimizar el impacto polí co del desastre. Tal acción es exactamen-te lo opuesto de lo que debería haberse hecho. Las redes de apoyosocial son de los componentes más importantes en el proceso decomunicación y recuperación de un desastre. Si están debilitadas ofragmentadas reducen también su capacidad para afrontar amenazasactuales o futuras.4. La percepción del riesgo por parte de la población es un indica-

dor clave para la dirección y ges ón de la crisis. El enfoque basadoen la teoría de la “ampli cación social del riesgo” (Renn et al., 1992)ajusta bien el caso del Pres ge. En este enfoque los impactos socialesy económicos de un desastre vienen determinados no solo por lasconsecuencias directas del evento, sino también por la interacción deprocesos psicológicos, culturales, sociales e ins tucionales, que au-mentan o disminuyen, intensi can o atenúan, la experiencia públicadel riesgo y, consecuentemente, la repuesta pública y los impactos

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socioeconómicos nales. La percepción de riesgo depende tanto dela exposición como de la ges ón del riesgo y la respuesta pública de-pende tanto de la exposición como de la percepción. El desastre delPres ge subrayó la necesidad de una “comunicación de riesgo” apro-piada que aumente la con anza percibida en el gobierno y reduzca eldesacuerdo entre polí cos, expertos y el público.5. Las indemnizaciones son importantes catalizadores de la percep-ción pública de los problemas. Esto es especialmente así cuando losfactores socioeconómicos (por ej. desempleo, pobreza y delincuen-cia) juegan un papel en la crisis. Las indemnizaciones pueden afectara la percepción del riesgo (Mo a et al., 2003) y a la con anza públi-ca. En el caso delPres ge, la pobreza y el desempleo fueron aliviados

por las compensaciones económicas –aparentemente un resultadoposi vo- y las preocupaciones ambientales fueron así reducidas. Conel paso de un año, el público fue menos crí co, explicado en partepor la dispensación de indemnizaciones. Muchos de los pescadoresfueron compensados recibiendo incluso más dinero que sus ingresoshabituales. Cuando los signos visibles de la contaminación desapa-recen y las rocas y playas vuelven a parecer limpias y con vida denuevo, es fácil minimizar o incluso olvidar lo ocurrido (García-Miraet al., 2006). La percepción posi va de indemnizaciones da lugar a

que parezca una recuperación psicosocial sa sfactoria (Bolin, 1988),manifestada en aumento de complacencia por parte del público enrelación con la situación. Aunque la ayuda ins tucional fuera perci-bida como nega va o inadecuada, el impacto psicosocial puede serdiferente. La ges ón de las consecuencias de un desastre debería in-cluir servicios de apoyo que integren estrategias tanto económicascomo psicológicas o sociales.6. Los hallazgos de la evaluación del impacto social y ambiental deldesastre del Pres ge apuntan hacia la necesidad de establecer cana-les de comunicación entre ciudadanos y el gobierno, y hacia el forta-lecimiento de la colaboración entre cien cos y polí cos. La colabo-ración de cien cos, polí cos, medios de comunicación, asociacionesloales, grupos ecologistas y otras organizaciones de la sociedad civil,pueden producir material ú l para inves gación sobre la percepciónpública del riesgo ambiental, y al mismo empo, prevenir la divulga-ción de análisis y conclusiones pobremente apoyados.

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En conclusion, la complejidad de trabajar con polí cos implica la di-cultad de equilibrar simultáneamente puntos de vista y preferencias de

ciudadanos y de aquellos que diseñan las decisiones en el ámbito polí co.Sin embargo, un funcionamiento apropiado de las sociedades democrá -cas modernas requeriría la creación de espacios para la par cipación so-cial efec va, la búsqueda del conocimiento a par r de una inves gación--acción par cipa va informada y del establecimiento de un proceso deimplementación para responsables polí cos y ciudadanos que promue-ven el interés público.

Entendiendo la sostenibilidad: el análisis de la vida co diana

El problema de la sostenibilidad, entendida como un conjunto deacciones que contribuyen al desarrollo de un sistema social y económico,equilibrado con la naturaleza, requiere hacer algunas asunciones básicas.Por una parte, es preciso un análisis desde una perspec va transdiscipli-nar, basado en la generación de conocimiento nuevo, propuestas y enfo-ques que informen dis ntos campos cien cos, así como varios gruposdesde el Gobierno, Organizaciones de la Sociedad Civil, y ciudadanos engeneral. Por otra, se requiere una iden cación y análisis del con icto de

intereses en el uso de los recursos naturales existentes, tanto entre di-ferentes grupos como entre los individuos y el marco social (Brei ng &Mogensen, 1999). Este análisis nos permite ver cómo la sostenibilidad res-ponde a la construcción de la realidad social y espacial, que comienza des-de un conjunto de marcos interpreta vos, construidos en respuesta a laacción de diversos agentes que in uyen en el mantenimiento de ese esta-do de representaciones que favorecen sus propios intereses, relacionadoscon el territorio el uso del suelo y la explotación de los recursos naturales.No es correcto hablar sobre el problema de la sostenibilidad como un pro-

blema ambiental; debería hablarse más precisamente sobre un problemasocial. Es un problema humano por naturaleza y existe en la sociedad.Además ene que conceptualizarse como social, con muchas implicacio-nes disciplinares. No es signi ca vamente diferente de otros problemas,ya que su origen se basa en la conducta y en las prác cas humanas. Poresta razón, enfoques teóricos, analí cos y metodológicos a la cues ón soncompar dos por otros campos del conocimiento cuyo foco de interés es

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la conducta umana en su más amplio contexto social y espacial. Lawrencey Després (2004) y Uzzell (2008) indicaron, no obstante, algunas razonespara explicar las di cultades que emergen en el estudio de la sostenibili-dad: (a) su complejidad; (b) la compar mentalización del conocimientocien co y profesional; (c) la división sectorial de responsabilidades en lasociedad contemporánea; (d) la creciente naturaleza diversa de los con-textos sociales en los que vive la gente; y (e) la ausencia de colaboraciónefec va entre cien cos, profesionales y polí cos que ha dado lugar aun vacio en lo que respecta a su aplicabilidad en los sectores que afron-tan tanto el ambiente natural como el ambiente fabricado por el hombre.Dentro de este contexto, podemos preguntarnos de qué modo puedencontribuir los psicólogos en este proceso transdisciplinar de integración

del conocimiento y aplicación a los problemas reales de la vida co diana.El análisis de las prác cas y la conducta humana en la vida co dia-

na, por ejemplo, ha sido un tema que ha atraido creciente interés y queha ocupado la agenda de inves gación de un buen número de cien cossociales. Las ru nas y las prác cas automá cas que son repe das con -nuamente en nuestra conducta son y han sido tópicos que han atraídointerés. En el estudio de estas prác cas se ha enfa zado la conducta enel hogar (reciclaje, uso de energía…), con poca atención a otros contextosimportantes en la vida de una persona. En el proyecto LOCAW, nanciadopor el programa FP7 de la Comisión Europea, se abordó el estudio dellugar de trabajo como área relevante de la vida co diana y se analizaronaquellos factores que caracterizaron la transición hacia patrones de pro-ducción y consumo sostenible en organizaciones a gran escala.

El proyecto LOCAW

El proyecto LOCAW tuvo por objeto la iden cación de los deter-minantes complejos de las prác cas habituales en el lugar de trabajo, asícomo las formas en que las prác cas de un dominio vital in uyen en otro,para ser capaces de proporcionar una explicación de las barreras y moto-res de transición hacia prác cas sostenibles en organizaciones. El énfasisse puso en tres categorías de prác cas, escogidas por su relevancia paraalcanzar reducciones de emisiones de gases de efecto invernadero: (a)consumo de materiales y energía; (b) generación y ges ón de residuos; y(c) movilidad relacionada con el trabajo. El proyecto se centró en el estu-

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dio de los determinantes estructurales, organizacionales e individuales delas prác cas y cómo interactuaban para crear contextos especí cos queapoyan prác cas sostenibles o crean situaciones especí cas de bloqueoque reducen las posibilidades de llevar a cabo de manera efec va prác -cas sostenibles. Si realizó el análisis en diferentes pos de organizacionesa gran escala: 2 organizaciones de la industria pesada, 2 organizacionesdel sector público, y 2 proveedores de servicios del sector privado. Ade-más, las conclusiones de la inves gación empírica fueron luego u lizadaspara desarrollar simulaciones de las organizaciones de los estudios decaso en las que los efectos de los escenarios diseñados para las transicio-nes hacia prác cas sostenibles fueron probados para el año 2050. Estosescenarios se construyern u lizaron enfoques de desarrollo de escenarios

de back-cas ng par cipa vo, con trabajadores de las organizaciones ob- jeto de estudio, y formalizando teórica y empíricamente las conclusionessobre los factores que in uyeron las transiciones hacia prác cas co dia-nas en las organizaciones. Los escenarios incluyeron trayectorias polí casque fueron probadas con un enfoque de modelado basado en agentes. Elmodelado basado en agentes se u lizó tanto para probar las asuncionesderivadas de la inves gación empírica como también para probar diná-micamente las polí cas que podrían contribuir al cambio efec vo en lasprác cas habituales. Se probaron polí cas dis ntas, poniendo a prueba

su efec vidad. Las polí cas se probaron separadamente, en combinación,aisladas en el empo y mantenidas durante el empo.Algunos de los principales resultados de LOCAW nos permi eron

también observar, mediante escalamiento mul dimensional, las dife-rencias entre la conducta ambiental observada en las organizaciones,con respecto a la importancia que le otorgan tanto los polí cos como lostrabajadores. Los resultados subrayan la in uencia también de dinámicasorganizacionales implícitas y explícitas hacia las prác cas sostenibles. Losfactores externos, como la legislación y la reglamentación, así como su ni-vel de estandarización de procedimientos y reglas para la toma de decisio-nes juegan un papel clave en la promoción o bloqueo de un compromisoserio con la sostenibilidad en las organizaciones. La reputación organiza-cional y la existencia de un contexto interno que apoye la visibilidad delas inicia vas sostenibles y la conducta, la adecuación de un sistema derecompensas que vaya más allá de las dis nciones vacías, la priorizaciónverdadera de obje vos ambientales a través de su inclusión en las descrip-

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ciones del puesto de trabajo, las decisiones económicas y la organizacióneconómica del trabajo, son todos ellos elementos potenciadores clave delas prác cas sostenibles en las organizaciones. Además, ir más allá de losenfoques de Arriba-Abajo y de las polí cas que restringen la autonomíade los trabajadores es también de importancia clave en la integración deobjeivos sostenibles en las ac vidades co dianas de las organizaciones.Los trabajadores no son par cipantes pasivos de la vida organizacional,y si se mo van adecuadamente, pueden iniciar y llevar a cabo accionesde cambio hacia la sostenibilidad. Un ambiente organizacional adecuadomo varía a los trabajadores a iniciar prác cas sostenibles y a dar suge-rencias valorables para transformar el proceso de producción, al mismo

empo que se asegura que las sugerencias lleguen al nivel de ges ón de

manera efec va. La sa sfacción laboral y el empoderamiento son elemen-tos clave para la mo vación que deben mantenerse. Nuestra inves gaciónmuestra que si los trabajadores están mo vados para hacer sugerenciase implementar cambios, así como para iniciar conductas sostenibles en ellugar de trabajo, esas conductas pueden luego trasladarse a otros domi-nios de la vida, tales como el hogar. La ejecución consciente de conductasproambientales fortalece la autoiden dad ambiental y la autoiden dady e cacia de resultados, que son también potenciadores de conductassostenibles. Nuestros análisis de las polí cas potenciales para alcanzar latransición hacia la sostenibilidad demostraron que para ser exitosos, lapolí ca organizacional debe fortalecer la par cipación y la autonomía deltrabajador a todos los niveles de toma de decisiones, debe ser sostenidaa lo largo del mpo y debe combinar diferentes medidas de intensidadmedia para el cambio de conducta, en lugar de polí cas aisladas de altaintensidad. Finalmente, nuestros resultados mostraron que las polí casdeberían tener en cuenta que la alta in uencia de redes sociales y normassociales en el lugar de trabajo y deben aprovechar los procesos de par ci-pación de abajo hacia arriba que incluyen a los trabajadores, los sindica-tos y los administradores para conver rse en conductores posi vos de lasprác cas co dianas sostenibles a través de medidas que se basan en unbuen conocimiento del funcionamiento de estas redes. La realización deejercicios conjuntos de visionado es una buena manera de asegurar la par-

cipación y las aportaciones del trabajador crea vo, el compromiso conlas metas y los menores costos para el cumplimiento de comportamientocon las polí cas de sostenibilidad de la organización.

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Transición hacia la coproducción de conocimiento

Todos estos resultados nos invitan a re exionar sobre cómo la psi-

cología ambiental ha cumplido sus obje vos cien cos. En su larga car-rera en busca de un conjunto especí co de teorías que proporcionen labase sólida que necesita, la psicología ambiental ha abordado una seriede cues ones en los úl mos 40 años, muchos de ellos originalmente for-mulados desde los enfoques de la psicología social aplicada, mientras queotros han sido formulado a par r de un trabajo conjunto con otras disci-plinas, como la arquitectura, la sostenibilidad, la plani cación social, lageogra a y la inteligencia ar cial, lo que permite la combinación tantode teorías como de metodologías, de tal manera que la distancia mul dis-ciplinar inicial se está convir endo en un viaje hacia un enfoque común decambio de paradigma en la producción de conocimiento.

Otro desa o para hacer las transiciones asequibles y posibles, a par-r del trabajo conjunto con economistas, ecólogos industriales y cien -

cos polí cos, es el desarrollo de modelos que hacen la generación y aplica-ción de la teoría a las nuevas economías y los sistemas de producción másfácil, hacia una evolución social hacia es los de vida sostenibles, en dondelas prác cas y comportamientos más sostenibles sean la norma social.

El Proyecto GLAMURS

Con este obje vo en mente, se está desarrollando el proyecto GLA-MURS (también nanciado por el Sép mo Programa Marco de la UniónEuropea, dentro de su estrategia de promoción de es los de vida sosteni-bles y economía verde en Europa. El obje vo general de GLAMURS (GreenLifestyles, Alterna ve Models and Up-scaling Regional Sustainability ) esdesarrollar una comprensión, fundamentada teórica y empíricamente, delos principales obstáculos y perspec vas de las transiciones hacia es losde vida sostenibles y una economía verde en Europa, así como el mediomás e caz de acelerarla e implementarla. El obje vo es explorar las com-plejas interacciones entre los factores económicos, sociales, culturales,polí cos y tecnológicos que in uyen en los es los de vida y transforma-ciones sostenibles hacia una economía verde. El proyecto intenta desar-rollar modelos integrales de los cambios de es lo de vida en ámbitos clave

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de sostenibilidad, así como evaluarlos en términos de sus efectos econó-micos y ambientales, con el obje vo de ofrecer recomendaciones sobrelos mejores diseños y las combinaciones de polí cas más apropiadas parauna transición su cientemente trepidante con la sostenibilidad.

La CE dice explícitamente que para que las transiciones sean posibleses necesario afrontar la demanda, reevaluar los modelos de crecimientoy encontrar formas apropiadas para producir cambios de es lo de vida ycambios de paradigma económico. El resultado será el desarrollo, pruebasy evaluación de varias vías integradas para la transición a una sociedadbaja en carbono. En otras palabras, el desarrollo y las fases de transiciónde pruebas para varios dominios y actores sociales, con puntos de in exi-ón y bucles de retroalimentación que conduzcan a polí cas e cientes decoste y empoderantes socialmente. El enfoque de GLAMURS respecto alos es los de vida es conceptualizar cómo los patrones de uso del empo,que tendrá lugar en determinados lugares que han sido asociados a prác-

cas de consumo. Se considera que la comprensión de los patrones dedistribución del empo y su relación con el consumo es clave para: (a) laiden cación de patrones de es lo de vida alterna vos, y (b) la de niciónde combinaciones de polí cas para las transiciones hacia una economíaverde. GLAMURS intenta desarrollar teoría, modelos y pruebas sobre los

obstáculos y las perspec vas para la transformación hacia economías es-los de vida verde en Europa. Lo hace a través de inves gación mul --escala, mul -región de inves gación integrado que incluya psicólogos,economistas, ecólogos industriales y expertos en polí cas que estudiannivel individual y social, junto con el modelado de impacto ambiental delos efectos de escenarios y polí cas de intervención sobre el es lo de viday las transiciones económicas. La inves gación involucra a responsablespolí cos y a otras personas y organizaciones de interés a escala europeay regional, estudiando la vida co diana de los ciudadanos en el presente,

así como a inicia vas emergentes: early adopters de prác cas de es lode vida y comportamientos más sostenibles. El proyecto proporcionarárecomendaciones sobre los mejores diseños y combinaciones de polí caspara lograr una transición lo su cientemente rápida en Europa en líneacon los obje vos establecidos en la Estrategia Europa 2020 y la Inicia vaEmblemá ca de la E ciencia de Recursos. Estas recomendaciones de polí-

cas serán ú les para la de nición de una tercera vía para las sociedades

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europeas que va más allá de las dicotomías tradicionales entre público yprivado, el interés personal y obje vos de la sociedad y el egoísmo y elaltruismo como orientaciones fundamentales de los valores humanos.

Los métodos de modelización incluyen el desarrollo de modelos (a)micro-económicos de la conducta individual que rige la elección de es lode vida; (b) el estudio de las interacciones y la dinámica a través de lamodelización macroeconómica; y (c) las simulaciones de procesos microy macro u lizando el modelado basado en agentes. GLAMURS está invo-lucrando a administradores, polí cos y organizaciones a nivel europeo yregional, con una mentalidad coproducción de conocimiento. Se estánpromoviendo reuniones con grupos de interés locales, legisladores y ac-

vistas de las 7 regiones de estudios de caso, donde GLAMURS evalúa elcontexto que el proyecto crea para entender cómo los ciudadanos, losinves gadores, las organizaciones interesadas y los responsables polí cosllegan a saber qué es lo que enen que hacer para llevar a cabo de formaindividual, social, ambiental y económica una vida sostenible. Coproducci-ón de conocimiento es también una condición básica para el surgimientode la innovación social transformadora, que requiere asociaciones crea-

vas entre los diferentes actores sociales, incluidos también los actoressociales no convencionales -los que provienen de fuera del estado y lasins tuciones de mercado, y a veces incluso de fuera del tercer secor orga-nizado. Todavía estamos lejos de comprender plenamente el papel de lainnovación social y el emprendimiento social en la solución de problemasacuciantes como el cambio climá co, el urbanismo insostenible o el au-mento de la desigualdad. Tenemos que seguir desarrollando teoría sobrecambios y transformaciones de los roles tradicionales, así como de quédetermina el éxito de la innovación social.

Conclusión

Para empezar a formular una conclusión, podría decirse que el pa-pel de la Psicología Ambiental en dar respuestas a los retos sociales cla-ve es cada vez más ampliamente reconocido en el ámbito más ampliode Ciencias Ambientales. Sin embargo, todavía debe hacerse más paramejorar la coproducción de conocimiento y la colaboración a través deenfoques transdisciplinares. Hemos aprendido que varias áreas de in-

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ves gación han demostrado ser muy ú les tanto en la prestación demarcos conceptuales para la comprensión de los aspectos clave de losproblemas globales, como de metodologías para la exploración de las in-teracciones hombre-ambiente: (a) La inves gación sobre la experiencia,el sen do y la ges ón del espacio urbano y organizacional, con sus im-plicaciones polí cas; (b) El desarrollo de modelos de par cipación públi-ca para la toma de decisiones en la plani cación y ges ón de la soste-nibilidad, los nuevos modelos de organización de la toma de decisionesy el comportamiento ecológicamente responsable también ha recibidoconsideración; (c) El análisis de los factores humanos involucrados en lastransiciones hacia sociedades sostenibles, el análisis de riesgo ambien-tal y el estudio de los procesos psicológicos implicados en el comporta-

miento humano situado espacial y temporalmente, ha sido una cues -ón importante en la psicología ambiental europea en la úl ma década. Mediante el análisis de estas diferentes tendencias de la inves gación enun contexto europeo, donde hemos tenido una par cipación ac va, se haproporcionado una visión general de algunos de los proyectos que estáncontribuyendo a la construcción de marcos teóricos que permitan el avan-ce del conocimiento sobre la sostenibilidad. Este avance debe reforzar laconexión entre cien cos y responsables polí cos a nivel local, regionaly europeo. Esto requiere el apoyo y la colaboración de las ins tuciones y

organizaciones europeas, un vínculo de gran alcance para proporcionar elimpacto internacional necesario. Todo este trabajo es una parte del desar-rollo de la inves gación sobre sostenibilidad en Europa, destacando algu-nas de las contribuciones que nuestros consorcios, que integraron a variosgrupos de inves gación de psicología ambiental europeos, están haciendopara el abordaje de aspectos teóricos y metodológicos del cambio haciala sostenibilidad. Se ha pretendido mostrar tanto la creciente necesidadcomo también algunas de las ventajas de la colaboración inter y transdis-ciplinar en la solución de los múl ples problemas del cambio climá co. Seintentan también mostrar, por un lado, algunas inicia vas de psicologíaambiental que se desarrollan en un fresco y es mulante diálogo no sólocon otras ciencias sociales (economía, sociología, etc.), sino también conotras ciencias más duras (por ej. las ingenierías), abordando cues onesde la sostenibilidad desde diferentes perspec vas. Por otro, se trata demantenerse como parte de las ciencias que par cipan con otros actoressociales relevantes en la producción de soluciones per nentes, abiertas y

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democrá cas a estos problemas. Estos diálogos inter y trans-disciplinariarequieren re exión sobre cues ones de poder en la producción de co-nocimiento, con implicaciones norma vas de cómo debe estructurarse labúsqueda de soluciones. Quizá los ejemplos proporcionados aquí ilustrenbien cómo estos temas se están llevando a cabo dentro de la agenda deinves gación europea, con sus implicaciones sociales y polí cas.

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Rural-urbano, estudos rurais e ruralidades: saberesnecessários à Psicologia Social

Marcelo Gustavo Aguilar Calegare

Porque só pode haver qualidade de vida para diferentes populações separa elas houver, também, lugar para o sonho e a esperança

(Mar ns, 2001).

No início do século XXI, Albuquerque (2001) destacava que a Ame-rican Psychological Associa on (APA) já havia editado várias revistas dePsicologia dedicadas a estudos no “ambiente rural”, mas que, em suamaioria, apresentava uma visão urbana que não levava em conta ondenasceram as pessoas, como estabeleceram as regras sociais, crenças, a -tudes e valores em função desse ambiente.

No Brasil, Leite e Dimenstein (2013) revelam que a Psicologia (e Psi-cologia Social) ainda não efe vou a entrada no debate sobre processos

sociais e culturais no “meio rural”. Leite, Macedo, Dimenstein e Dantas,(2013) lembram que as produções mais expressivas de nossa área no Bra-sil es veram ligadas aos contextos urbanos, com uma mida contribuiçãode trabalhos relacionados à “questão da terra” – que preferimos nomearcomo debate a respeito da “questão rural” 1 – cujos aportes teóricos emetodológicos vieram de três campos: (a) Psicologia Social e PsicologiaComunitária (iden dade, a vidade, consciência, processos comunitáriosde organização, par cipação e emancipação); (b) Educação Popular (al-fabe zação de jovens e adultos, tomada de consciência dos mecanismos

de exploração dos agricultores familiares); (c) Direitos Humanos (direitosde acesso à terra, violação de direitos, permanência e reconhecimentodo território).

1 Adotamos aqui a de nição dada por Wanderley (2010), para quem a questão rural na atu-alidade pode ser entendida como a tensão e os con itos cons tuídos em torno do projetode integração plena, seja espacial quanto social, do mundo rural à modernidade, isto é, queforças sociais aderem ou atuam no sen do inverso a esse projeto e que recursos (naturais,econômicos, culturais, jurídicos, polí cos) são acionados em uma ou outra direção.

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De modo bem esquemá co, podemos descrever o seguinte ce-nário para a Psicologia e Psicologia Social: são poucos estudos realiza-dos no “campo” – entendido como espaço empiricamente observado(Biazzo, 2008) – e pouca contribuição teórico-metodológica acerca daquestão rural e do “mundo rural” – entendido como um lugar de vida(Wanderley, 2010).

Entretanto, com a expansão das vagas em ins tuições de nível su-perior e, consequentemente, dos cursos de Psicologia em todo o país,muitas universidades sofreram um processo de interiorização, ou seja,não estão apenas centradas em grandes centros urbanos, mas passarama exis r em municípios de médio porte (50 a 100 mil hab.), pequeno por-te 1 (menos de 20 mil hab.) e pequeno porte 2 (entre 20-50 mil hab.) 2.Com isso, estudantes, professores e pro ssionais estão tendo que lidarcom situações que trazem à tona a ligação entre rural/ urbano, visto queos limites concretos e visíveis da cidade são menores, e que não che-gavam aos centros formadores tradicionais de psicólogos (Leite et al.,2013). Descobre-se, portanto, que a formação não tem trazido elemen-tos su cientes para pensar e agir em tais contextos, uma vez que tradicio-nalmente a Psicologia tem cons tuído uma ciência e pro ssão baseadase pensadas para a população urbana (Albuquerque, 2002).

Em razão desse processo de interiorização do ensino e da pro-ssão, os psicólogos têm do que lidar com as questões rurais, sejam

elas vivenciadas no campo, sejam na cidade. Assim, apesar da produçãoainda ser pouco expressiva, já há alguns marcos recentes importantesem nossa área a respeito do mundo rural. Entre esses, destacamos: aspropostas metodológicas de pesquisas, a par r da Psicologia Social, na“zona rural” (Albuquerque, 2001) e nas “comunidades ribeirinhas” (Ca-legare, Higuchi & Forsberg, 2013); a coletânea de Leite e Dimenstein(2013), cujos trabalhos foram realizados com populações nos “contextosrurais”, sob diferentes perspec vas teórico-metodológicas; as referên-cias técnicas para atuação dos psicólogos em “questões rela vas à ter-ra” do Conselho Federal de Psicologia (CFP, 2013). Na América La na,

2 Segundo o Censo do Ins tuto Brasileiro de Geogra a e Esta s ca (IBGE, 2010), do total demunicípios brasileiros, 70% são de pequeno porte 1 e, incluindo os de pequeno porte 2, essenúmero sobe para 89%, correspondendo a 6148 municípios, onde vivem 43% do total dapopulação brasileira.

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se está caminhando no mesmo sen do da produção brasileira e, nessalinha, ressaltamos: a coletânea de Quintanar (2009), que também tratade contribuições da Psicologia e Psicologia Social no “ambiente rural”; ea coletânea de Landini (2015), com trabalhos desenvolvidos em toda aAmérica La na, que, mais do que se referir apenas ao espaço onde estesforam realizados, traz a proposta de con guração de uma nova área, asaber, a “Psicologia Rural”.

Como se pode notar, ainda há falta de clareza quanto ao novo localde atuação do psicólogo: ambiente rural, meio rural, contexto rural, zonarural, área rural, etc. Mais além: o que é o rural? Por que alguns acadê-micos têm falado em ruralidades? Seria mero capricho semân co de nirtais termos, ou devemos ter cuidado com as palavras, por carregaremconcepções e visões de mundo que são proferidas nos discursos e, dessaforma, (re)produzem uma realidade muitas vezes cri cada? Com o obje -vo de quali car a discussão e ampliar os horizontes de estudos e atuaçãodos psicólogos, neste texto nos propomos trazer uma sucinta e esquemá-

ca revisão a respeito do: (a) crescente interesse pelo rural e urbano; (b)entendimento clássico de rural/ urbano; (c) discussão dos estudos ruraisno Brasil; (d) novas leituras acerca da ruralidade. Pretendemos, com isso,ter melhores subsídios para trabalhar com atores sociais que fazem domundo rural seu lugar de vida, de trabalho e de cidadania, que estabele-cem com seu território a construção de sua história, das iden dades, dasproduções de subje vidade e dos engajamentos em lutas polí cas (Leite& Dimenstein, 2013).

Por que falar do rural e urbano?

O interesse pelo rural e urbano tem ganhado destaque cada vezmaior por uma série de mo vos. Um destes é o êxodo rural que temmarcado o mundo desde o advento da revolução industrial e vem ga-nhando mais força no século XX e início do XXI: em 1950, 30% da popu-lação mundial residia em áreas urbanas; em 2007, foi o marco divisórioultrapassando os 50%; em 2014, tal número passou para 54%; a es ma-

va para 2050 é de 66%. Em toda a América La na, esse limiar dos 50%foi superado ainda nos anos 1960. Em 2014, o Brasil já possuía 85% desua população residindo em áreas urbanas (UN, 2014).

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Apesar dessa migração crescente às áreas urbanas, em muitospaíses, nas úl mas duas décadas, têm havido retração do êxodo rural,acompanhado de movimento de revitalização do mundo rural. Em ter-mos numéricos, no Brasil a taxa de crescimento da população rural temsido similar àquela da população total (Carneiro, 2012). Além disso, atual-mente o campo tem abrigado famílias pluria vas e a vidades não agríco-las, tais como comércio, indústria e prestação de serviços pessoais, lazer,preservação do ambiente ou auxiliares das a vidades econômicas, todasresultantes de uma nova dinâmica populacional nesse âmbito e que im-plicam em novas relações entre rural e urbano (Silva, 1997). Alguns têmchamado essa transformação de “novo rural”, que não signi ca apenas arecon guração das a vidades agrárias – aspecto central caracterizando

o mundo rural, segundo interpretações clássicas (Mar ns, 2001) – mas arecon guração de relações sociais inerentes à vida na cidade e no campo.Mais adiante aprofundaremos esse ponto.

Logo, falar em rural e urbano remete a uma gama ampla de signi ca-dos. De acordo com suas interpretações, tais signi cados se traduzem emações para o planejamento territorial e para o desenvolvimento de açõespolí cas, sociais, econômicas, ambientais, culturais, etc. De um lado, hátrabalhos técnicos, pragmá cos e também acadêmicos que tratam os re-feridos termos como categorias operatórias, isto é, servem como imagensda realidade que dão base empírica de referência à ação: o rural é igualadoao campo e à agricultura, enquanto o urbano é igualado à cidade, indús-tria, comércio e serviços. Por meio de tal perspec va, polí cas, projetos,programas e ações são delineados, por tomar rural e urbano como formasconcretas compondo os espaços produzidos pela sociedade 3. Essa compre-ensão se aproxima daquela popular, em que uma pessoa dis ngue rural deurbano tomando como critério esses elementos associados, observados3 Por exemplo, o IBGE faz levantamento dos domicílios conforme sua localização pela lógica

setorial, ou seja, se situados no perímetro urbano (área urbanizada de vila ou cidade; áreanão urbanizada de vila ou cidade; área urbana isolada) ou fora dele, isto é, na área rural (deextensão urbana; povoado; núcleo; outros aglomerados; exclusive aglomerados). Segundoessa localização, o poder público cobra tributos, como, por exemplo, o IPTU (Imposto Prediale Territorial Urbano) ou o ITR (Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural) (Garcia, 2010).Em 2000, esse ins tuto reviu as unidades territoriais onde os domicílios estão localizados,trazendo novas classi cações setoriais: áreas especiais (unidades de conservação e terras in-dígenas); aglomerados subnormais (favelas e similares); aglomerados rurais (extensão urba-na, isolados); aldeias indígenas; bairros e similares; áreas urbanizadas; áreas não urbanizadas(IBGE, 2000).

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empiricamente na paisagem 4. De outro lado, há a tenta va de outras cor-rentes acadêmicas que buscam tratar rural e urbano enquanto categoriasanalí cas, de modo que elas sirvam para construções teóricas e análisesgeneralistas de conteúdos e signi cados de prá cas sociais (Biazzo, 2008).Adiante nos aprofundaremos nesses aspectos recém-levantados.

Interpretação clássica de rural/ urbano

Por que temos a tendência de pensar rural e urbano como elemen-tos separados? O entendimento dicotômico entre ambos deve ser visto,inicialmente, como mais uma das fragmentações produzidas pelo pensa-mento da modernidade e que con nua a dicotomizar elementos, comose es vessem radicalmente separados: sujeito/ objeto, homem/ natureza,teoria/ prá ca, ciência/ senso comum, religioso/ profano, corpo/ alma,civilizado/ selvagem, entre muitos outros exemplos (Calegare, 2010).

Retomando mais especi camente a dimensão histórica do enten-dimento de rural e urbano, Froehlich e Monteiro (2002) enfa zam quea ideia de modernidade esteve acompanhada da ideia de urbanizaçãoimpulsionada pela revolução industrial. Pela perspec va de e cácia eoperacionalidade inerente à racionalidade tecnocien ca ligada à indus-trialização, tal ideia de urbanização se caracterizava pela concentraçãoem determinados espaços (as cidades) dos recursos técnicos e tecnológi-cos (equipamentos urbanos) gerados e geridos nesse processo. Dai queo “urbano aparece, na modernidade, como o espaço por excelência, des-

no de todas as construções humanas a acompanhar a marcha das con-quistas civilizatórias” (p. 02). Pela lógica da sociedade burguesa industrialeuropeia, o campo era o locus de produção de alimentos e matéria-primanecessários à cidade, local de residência e trabalho, onde se encontra-

vam conforto e lazer necessários e esse processo modernizantes (Carnei-ro, 2012). Mais do que um mero corte geográ co, urbano passou a seriden cado com novo e progresso industrial, enquanto rural com velhoe atrasado, por representarem con itos entre classes sociais diferentes,

4 “É, em uma determinada porção do espaço, o resultado da combinação dinâmica, portantoinstável, de elementos sicos, biológicos e antrópicos que, reagindo diale camente uns so-bre os outros, fazem da paisagem um conjunto único e indissociável, em perpétua evolução”(Bertrand, 2004, p. 141).

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a primeira em ascensão e a segunda em declínio, que contribuíam ou seopunham para o fortalecimento do capitalismo europeu do século XVII(Silva, 1997).

Segundo Calegare e Silva (2011), essa perspec va de o espaço cita-dino e a vida urbana serem sinônimos de avanço civilizatório está ligada àideia de progresso, que compreende haver um estágio inferior (atrasado,primi vo, selvagem e incivilizado) que dará lugar a um estágio superior(evoluído, sublime e civilizado), após um processo de melhorias graduaisque caminha passo a passo. Com o advento da revolução industrial e ex-pansão do capitalismo à sociedade global, passou-se a igualar progressocom desenvolvimento e com crescimento econômico, representados con-cretamente pelo avanço das cidades. Nesse aspecto, Wanderley (2012)

aponta que o atraso atribuído ao mundo rural deveria ser superado pelasua transformação no sen do das “expressões mais evidentes do progres-so: a industrialização – isto é, o domínio da técnica – e a urbanização – istoé, o predomínio das relações salariais. Através da modernização, preten-dia-se que a agricultura encontrasse, en m, sua vocação moderna” (p.15). A agricultura, da como um dos elementos centrais à caracterizaçãodo mundo rural, deveria ser subme da à racionalidade industrial, pela in-trodução de sua lógica produ va, trabalho assalariado e das máquinas einsumos industriais.

Desse modo, a par r da metade do século XIX, a sociedade indus-trial es mulou a migração cada vez mais intensa de pessoas que viviamno campo para as cidades, reforçada pelo imaginário de deixar miséria epobreza, para encontrar as promessas de bem-estar e segurança da mo-dernidade. E para reforçar concretamente essa construção do imaginário,havia distribuição desigual do acesso a serviços, bens e direitos sociaisem tais espaços. Isso tudo promoveu o desinteresse e ocultamento dasreferências camponesas, situando à margem da sociedade a diversidade

cultural, os valores e modos de vida entre citadinos e camponeses, as ex-pressões dis ntas de compreensão de mundo, de modo de (re)produçãosocioeconômica e de relação com o entorno sico-social.

Nas primeiras décadas do século XX, a discussão do que é rural eurbano passou a ser do interesse acadêmico quando a Sociologia Ruralinaugurou re exões sobre o conceito e sen do das relações rurais-urba-nas. Para Silva e Rocha (2011), houve duas tendências diferentes dentro

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desse campo sociológico: a norte-americana e a francesa. Na primeira,essa disciplina acadêmica emergiu num momento de crise, decorrente daurbanização do campo e pelo seu despovoamento em função da migra-ção à cidade. Com isso, desprendeu-se da Sociologia Geral para estudarobjetos e fenômenos próprios às par cularidades do mundo rural, comexplicações especí cas da organização social inerentes às sociedades ecomunidades rurais: po de povoamento, demarcação de terras, siste-mas agrícolas e traços culturais, condições ocupacionais caracterís casda vida rural (prioritariamente a agricultura), modo de socialização pecu-liar, etc. Por buscar diferenciar-se da disciplina geral, inicialmente a So-ciologia Rural trouxe à tona a dicotomia rural-urbano, de nindo o mundorural como seu campo de estudos, em contraposição aos fenômenos do

mundo urbanos. Essa visão que colocava em contraposição os mundosrural e urbano – especialmente pelas a vidades agrícolas e industriais – foi defendida, por exemplo, por Sorikin, Zimmerman e Galpin (1981citado por Biazzo, 2008), em trabalho publicado em 1930. Em seguida,em trabalhos como os de Red eld (1956 citado por Silva & Rocha, 2011),tratou-se de romper com tal contraposição, focando-se na noção de umcon nuum espacial e social entre os polos rural e urbano, em que have-ria gradientes e interferência recíproca entre as lógicas inerentes a essaspolaridades.

De qualquer modo, tais compreensões inspiraram polí cas norte--americanas de modernização e inovação por novas tecnologias volta-das ao campo, difundidas pelos serviços de extensão rural. Entre os anos1940 e 1960, os norte-americanos elaboraram estudos para aperfeiço-ar os métodos de intervenção junto à população rural, buscando sabercomo os agricultores respondiam às novas técnicas de produção agrícola,u lizando-se da “social psychological-behaviorist approach” (Silva & Ro-cha, 2011, p. 14). E as prá cas de extensão rural com esse mesmo caráter

con nuam exis ndo até o presente nas polí cas públicas não só norte--americanas, como nas brasileiras.

Já a tendência europeia vinculou o estudo de um conjunto de as-pectos da vida rural relacionados à visão global da sociedade, dando maisênfase ao campo de ação/aplicação do que a proposições teóricas origi-nais. Para tanto, abriu espaço para a pesquisa interdisciplinar, em que aPsicologia também teve sua parcela de contribuição. Nesta perspec va,

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há também entendimento do con nuum, em que há transitoriedade en-tre rural e urbano. Um representante desse pensamento europeu é Solari(1971 citado por Silva & Rocha, 2011), o qual postula que, em função dograu de descon nuidade e ruptura da paisagem campestre decorrente dograu de urbanização e industrialização, há uma estrutura sociocultural lo-cal par cular. Para o referido autor, há uma escala mul dimensional entreo con nuum e a dicotomia rural/ urbano, isto é: nos países com elevadograu de urbanização, o con nuum é mais evidente por serem mais clarosos gradientes da mescla entre os polos rural e urbano, como, por exemplo,pela fuga da população dos centros das cidades para as franjas citadinas,ou pelo uso do campo para lazer; enquanto que, em países com mais pes-soas no campo, a dicotomia rural/ urbano é mais clara e parece evidenciar

a existência de dois mundos dis ntos.Em suma, o mito fundador da Sociologia Rural instaurou uma opo-

sição entre campo e cidade, considerando-os como realidades espaciaisdescon nuas. Entre as muitas abordagens e estudos a respeito do rural,colocou-se a agricultura como aspecto central à organização da vida socialno campo. Com o processo de urbanização, do como natural e inevitávelda modernização da sociedade, o mundo rural tenderia a desaparecer,por estar em relação de subordinação ao mundo urbano. Ou seja, o de-senvolvimento do campo ocorreria segundo os parâmetros daquele inci-dente na cidade, resultando na expansão e generalização do padrão devida urbano. No momento em que esse processo vesse se consumadopor completo, tal área do conhecimento não teria mais razão de exis r(Carneiro, 2012).

De um ponto de vista crí co, Mar ns (2001) aponta que a SociologiaRural esteve comprome da com o projeto de modernização econômicasinônima de modernização social e bem-estar das populações rurais. Eisso resultou num contra-desenvolvimento expresso por formas perver-sas de miséria, desmantelamento de estruturas sociais, desorganizaçãode comunidades e degradação da população. Nesse sen do, uma reorga-nização necessária à disciplina seria para resgatar o compromisso com adignidade humana, qualidade de vida e libertação das carências e misériado Homem. Isso se daria por meio da compreensão dos processos sociaisque geram degradação e marginalização, do protagonismo e da cria vida-de, do modo de ser e de fazer das populações rurais.

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Estudos rurais no Brasil

No Brasil, a onda de modernização do campo iniciou-se com a in-

trodução do transporte ferroviário (metade do século XIX), chegando nosanos 1970, com maior intensidade, pela introdução da mecanização e qui-mi cação da produção agrícola (Froehlich & Monteiro, 2002) – movimen-to que con nuou até o presente pelas frentes do agronegócio.

A respeito dos estudos rurais, Carneiro (2012) salienta que houveoutros elementos no Brasil e na América La na para além da interpreta-ção clássica de rural e urbano decorrente do contexto europeu dos paísescapitalistas avançados que realizaram a revolução burguesa. Retomando

a obra de Sérgio Buarque de Holanda, a autora argumenta que o Brasil secaracterizou por ser uma civilização de raízes rurais, cuja organização so-cial baseada no poder do proprietário fundiário (chefe da empresa agrí-cola e patriarca da família) ultrapassou as fronteiras do campo e ruralizouas cidades brasileiras com a “mentalidade da casa grande”. De tal feita,a cidade não era oposta ao campo, mas sua extensão, estabelecendo-seuma relação de dependência tanto material (alimentos) quanto ideoló-gica (relações sociais). Nas fazendas e engenhos, as condições sociais sepautavam na escravidão, o que implicava em não atribuir valor ao traba-lho, estabelecendo-se uma lógica do favor e de relações de dependênciapessoal que nha sua expressão máxima na gura do patriarca-proprie-tário. E esse patriarcalismo se estendia à vida polí ca de governantes egovernados. Como resume Freyre (1982), tratava-se de uma civilizaçãoregional predominantemente rural dominada pela monocultura, pelo la-

fúndio e pelo trabalho escravo, mas com toques de urbanidade que seestendiam aos “víveres ecologicamente rurais” (p. 12).

O resultado desse Brasil escravocrata foi produzir um agricultor

des tuído da propriedade da terra, que se tornou um lavrador semterra, sem casa e sem cidadania – havendo até o presente indícios derelações sociais no campo permeadas pela mentalidade do favor e dadependência pessoal (Carneiro, 2012). Na primeira metade do séculoXX, a situação dos trabalhadores rurais brasileiros veio se agravandopaula namente, sobretudo porque a par r dos anos 1930, como lem-bra Wanderley (2011), a sociedade brasileira assume uma nova fase

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do processo de desenvolvimento, marcada pela hegemonia do caráterurbano-industrial. A bandeira era superar o dualismo entre o Brasil rural(atrasado e não capitalista) e o urbano (moderno e capitalista), procu-rando-se integrar as questões agrárias nos planos de desenvolvimentoda economia e sociedade brasileira. E isso veio acontecendo por meioda modernização da agricultura, es mulada por polí cas elaboradaspara tal nalidade.

No período do desenvolvimen smo brasileiro protagonizado nosanos 1950 e 1960, Wanderley (2011) menciona que as formas adotadasde modernização da agricultura reforçaram a concentração fundiária e aconsolidação dos complexos agroindustriais, o que levou à expropriaçãoe marginalização dos trabalhadores rurais das fazendas e dos engenhos.No bojo desse processo de modernização é que muitos estudos ruraisforam produzidos até meados dos anos 1970. Alguns enfa zando a con-dição da população do campo, que possuía cultura, modo de vida, formapar cular de tratamento do solo, de produção de alimentos e de (re)pro-dução familiar (Welch et al., 2009). Outros trazendo à tona a emergênciado trabalhador assalariado (o trabalhador rural, o camponês) nesse pro-cesso de modernização e proletarização, isto é, a implicação da vendada força de trabalho sob as novas dinâmicas estabelecidas no campo. Eoutros ainda apontando para a compreensão do campesinato e das lutassociais das classes subalternas diante das condições adversas que vinhamenfrentando (Wanderley, 2011).

Como exemplo, podemos citar Queiroz (1963/2009), que argumen-tou a respeito da coexistência no Brasil de uma economia de mercado ede uma economia fechada, esta úl ma pica da realidade rural brasileirae marcada por um “gênero de vida” caracterizado pela ajuda mútua notrabalho, pela solidariedade vicinal, pela a vidade agrícola de subsistên-cia, pela ocupação do solo peculiar (si antes). Outro exemplo é a dis-cussão de Velho (1969/2009) acerca de uma teoria geral da estrutura declasse rural brasileira, que versa sobre a noção de camponês (pequenosagricultores autônomos) em contraposição à de proletário rural (burguêsrural que manifesta a expansão agrícola modernizante da sociedade bra-sileira) – e desse con nuum se manifestam os casos par culares do cam-pesinato. Vale assinalar que os muitos estudos a respeito do campesinatose u lizavam de tal categoria para designar não apenas o modo de vida e

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formas de (re)produção econômica, mas davam ênfase às estratégias deluta polí ca de resistência e adaptação frente às tenta vas de subordina-ção do capital (Wanderley, 2011).

Outros exemplos são trazidos por Julião (1962/2009) e Andrade(1963/2009), que trataram de explicar o surgimento das Ligas Campone-sas, o cialmente em 1955, movimento organizado pelos trabalhadoresrurais do Nordeste que reivindicavam não apenas direitos legais, mas areforma agrária. Cabe destacar que, tendo em vista a modi cação dosprocessos de produção tradicionais e a adoção de estratégias de refrea-mento do movimento campesino de reivindicação à propriedade da ter-ra, o Estado criou o Estatuto do Trabalhador Rural (Lei nº 4.214, de 02 demarço de 1963) e o Estatuto da Terra (lei nº 4.504, de 30 de novembro de1964), como forma de garan r os direitos do trabalhador rural (agora umassalariado e que pode se organizar em sindicatos) e orientar as polí casagrícolas (Wanderley, 2011).

E destacamos também as crí cas de Freyre (1982) ao desenvolvi-men smo brasileiro – cujos exemplos máximos são a construção de Bra-sília e da transamazônica –, que seguia um modelo de modernização dopaís no sen do de sua industrialização e urbanização, pois considerava ocampo e os valores rurais como arcaicos. Dessa forma, foram propostas

soluções complexas socioeconômicas, psicossocioculturais e de ocupa-ção de espaços, mas que não veram sucesso porque abordaram os pro-blemas apenas do ponto de vista da “engenharia sica”, sem a ajuda da“engenharia humana” e “engenharia social”, isto é, dos cien stas sociais,ecologistas, geógrafos, historiadores, etc. Nesse sen do, sua defesa foida rurbanização , que signi ca “um processo de desenvolvimento socio-econômico que combina, como formas e conteúdos de uma só vivenciaregional – a do Nordeste, por exemplo, ou nacional – a do Brasil como umtodo – valores e es los de vida rurais e valores e es los de vida urbanos”(p. 57). Para o autor, essa proposta rejeita tanto a absoluta urbanização,marcadamente de origem exógena, quanto a conservação de formas ar-caicas rurais de vida, dando lugar a construções que integrem o ritmomoderno de convivência, o espaço teluricamente brasileiro e o ambientepsicossociocultural também brasileiro. Em suma, “a solução rurbana dizbasta às urbanizações absolutas para juntar ao que é urbano a sobrevi-vência do teluricamente rural” (p. 16).

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De acordo com Wanderley (2012), paradoxalmente os estudos ruraisno Brasil, que buscavam compreender o signi cado do mundo rural no in-terior da sociedade nacional e suas relações com o mundo urbano, deixa-ram de ser foco de atenção dos estudiosos entre os anos 1970 e 1990. Issoocorreu devido à interpretação clássica que se dava ao mundo rural, cujaagricultura estava passando pelo processo de modernização mais intensanesse período. Assim, os estudos nesse momento de esfriamento acadê-mico se focavam na rapidez ou len dão da disseminação desse processode urbanização do rural, negando-se a diversidade das realidades locaise da per nência teórica da categoria “rural” – o que não ins gava novasfrentes de inves gação.

Por outro lado, Wanderley (2011) argumenta que, do nal dos anos

1980 em diante, o tema da agricultura familiar passou a ganhar destaquenos debates sobre agricultura. Apontou-se que tais unidades de produçãofamiliar eram capazes de alcançar novos patamares tecnológicos, tradu-zidos em maior oferta de produtos, rentabilidade dos recursos u lizadose valorização do trabalho. Essa a vidade ganhou reforço pelo ProgramaNacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), em 1995,que facilitou o acesso ao crédito aos produtores e agricultores rurais. Oscensos agropecuários de 1996 e 2006 revelaram que a maioria dos esta-belecimentos agropecuários era composta pelos referidos estabelecimen-tos familiares. Em 2006, foi promulgada a Polí ca Nacional da AgriculturaFamiliar e Empreendimentos Familiares Rurais (Lei nº 11.326/06), trazen-do de nições dessas categorias. Com isso, diluiu-se o conteúdo histórico--polí co da palavra “camponês”5, para consolidar a “agricultura familiar”,propondo-se a estabelecer o novo paradigma de desenvolvimento ruralsustentável – seja este entendido segundo as potencialidade agrícolas,seja pela rea rmação do campo como espaço com relações econômicas,sociais, polí cas e culturais par culares.

A par r dessas novas con ngências e dinâmicas no campo, os estu-dos rurais no Brasil deram um salto, impulsionado por alguns fatores: pelacrí ca ao modelo produ vista da modernização da agricultura, com seus5 Conforme Wanderley (2015), os camponeses são “produtores agrícolas, vinculados a famílias

e grupos sociais que se relacionam em função da referência ao patrimônio familiar e constro-em um modo de vida e uma forma de trabalhar, cujos eixos são cons tuídos pelos laços fa-miliares e de vizinhança” (p. S031). Desse modo, para a autora, os conceitos de campesinatoe agricultura familiar podem ser entendidos, atualmente, como equivalentes.

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efeitos no ambiente (uso predatório de recursos), na sociedade (explora-ção do trabalho e marginalização de produtores) e na economia (concen-tração de propriedade); pela consolidação dos movimentos sociais, queexpressavam suas demandas e formulavam seus projetos; pela crise nosparadigmas das ciências sociais. Com isso, o salto qualita vo apontou paraa revalorização da dimensão espacial, isto é, a compreensão do mundorural na relação com a cidade e da vida local com a globalização, bemcomo para a centralidade do conhecimento dos sujeitos rurais, em suadiversidade e complexidade (Wanderley, 2011).

Mas a retomada dos estudos rurais aconteceu de fato no nal do sé-culo XX por dois mo vos principais (Wanderley, 2012). O primeiro concer-ne ao desencanto ou esgotamento das promessas do progresso e modelomodernizador: a indústria e a agricultura moderna são poluidoras e explo-radoras dos trabalhadores; ainda há escravidão de trabalhadores agríco-las; o esvaziamento do campo é uma tragédia pessoal e familiar; as cida-des têm trazido di culdades e afetam a qualidade de vida dos moradores.O segundo tange à democra zação crescente do país, cujos movimentossociais do campo e da cidade têm reivindicado novas visões de desenvol-vimento, apoiados em visões teóricas e polí cas que exigem respeito aoambiente. Rompeu-se com a iden cação de rural com agrícola, para darlugar à iden cação de rural com a ressigni cação de natureza e de cultu-ra na sociedade contemporânea, em que não há diluição simbólica e espa-cial da aproximação do campo pela cidade e vice-versa (Carneiro, 2012).

Além desses dois, mais outro mo vo deve ser considerado: ao con-trário da tendência que se imaginava, o mundo rural não só con nuouexis ndo, como tem se transformado, sido revalorizado e repensado – re-cebendo a rotulação de “novo rural” (Alentejano, 2000). Segundo Silva(1997), o “an go” rural estava baseado nas a vidades agropecuárias, en-quanto que o “novo” foi originado não apenas pela industrialização daagricultura, mas pelo transbordamento do mundo urbano no espaço tra-dicionalmente de nido como rural, o que resultou em uma nova gama dea vidades. Dessa maneira, esse “novo rural” caracteriza-se pela mul fun-cionalidade e pelas pluria vidades exercidas pela população do campo epor aquela da cidade no campo, que congregam tanto a vidades agrícolastradicionais (de subsistência e da agricultura familiar) quanto as não agrí-colas, relacionadas à prestação de serviços, comércio e indústria: a agroin-

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dústria no campo (agronegócio), as a vidades relacionadas à urbanizaçãodo campo (moradias, turismo, lazer, preservação do ambiente e outrosserviços) e a proliferação de sí os de recreio e chácaras.

Diante dessas questões desa adoras oriundas da transformaçãodo cenário, Carneiro (2012) aponta duas direções dos estudos brasilei-ros mais atuais a respeito da relação rural-urbano. A primeira trata deesclarecer o sen do do rural no contexto atual por meio de leituras quereforçam a dualidade espacial cidade/ campo, cujo foco é veri car as ca-racterís cas imutáveis e persistentes que caracterizam o rural. Isso servepara dar especi cidade ao rural, do enquanto categoria genérica e uni-versal de classi cação, mas que não leva em conta seu conteúdo relacio-nal. Por tal perspec va, entender o “novo” no rural signi ca entender asnovas a vidades no campo – aquelas não agrícolas – até então picas dacidade. Essa primeira direção se baseia na compreensão de dois aspectoscentrais: (a) o con nuum rural-urbano, pelo qual se podem entender situ-ações empiricamente observáveis que escapam à especi cidade estrita decompreensão do que é rural ou urbano – ou seja, a realidade é ambígua,contendo elementos de um ou outro polo; (b) a pluria vidade das famíliasrurais, que não mais pra cam unicamente a agricultura, mas uma série deoutras a vidades – o que tem como aspecto central a esfera econômica enão as relações sociais entre os atores envolvidos.

A segunda direção remete a uma requali cação do olhar acerca dasnovas dinâmicas da ruralidade, em que não se busca mais de nir as fron-teiras empíricas entre rural e urbano, mas compreender os signi cadosde prá cas sociais que se proliferam tanto no campo (pluria vidade, a -vidades não agrícolas) como na cidade (cultura country ), a par r do olhardos atores sociais. Isto é, o foco não é no espaço empiricamente obser-vável, mas nas experiências e relações sociais que se estabelecem emum território, com seus aspectos geo sicos, econômicos e culturais queestabelecem referências para a construção de iden dades e para repre-sentações sociais do que é rural e urbano. Assim, pode-se compreendermelhor como e por que relações sociais rurais se manifestam em espaçoscitadinos, ou aquelas urbanas nos espaços campestres.

Mediante essas compreensões atuais, estratégias de desenvolvi-mento que buscam resolver a questão rural brasileira são pensadas e colo-cadas em prá ca, grosso modo: a da urbanização plena do campo, que sig-

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ni ca a concre zação do projeto de modernidade; a do desenvolvimentorural sustentável, que implica na valorização e fortalecimento do mundorural na dinâmica global, salvaguardando suas especi cidades. Como essedebate é amplo e escapa ao escopo do presente texto, deixamo-lo paraoutro momento.

Ruralidades

A de nição do que é rural e urbano está calcada em uma tradiçãonorma va hegemônica, que reproduz visões an quadas sobre a realida-de e que se traduz em polí cas públicas, bem como em formas de clas-si cação e ordenação do espaço u lizado pelas agências de esta s casbrasileiras: urbano igualado com presença de indústria, comércio, infra-estrutura e serviços básicos (saneamento básico, asfalto, energia elétrica,etc.), enquanto rural igualado com agricultura e localizado fora dos limitesurbanos. Todavia, os estudos rurais têm apontado cada vez mais para umanova leitura: compreender a ruralidade pelo seu caráter territorial e nãosetorial (Anjos & Caldas, 2008).

Entende-se que ruralidade é “um conceito territorial que pressupõehomogeneidade dos territórios agregados sob essa categoria analí ca, e

isto naturalmente vale também para o conceito de urbano” (Saraceno,1996 citado por Vale, 2005, p. 16016). Por essa leitura, haveria diferentesdinâmicas para cada espaço e em diferentes escalas cons tuindo as dis-

ntas territorialidades, que englobam caracterís cas comuns, mas di ceisde serem de nidas. Assim, “tem-se sustentado que a diferença é de natu-reza social e rela va ao modo como estão distribuídas as populações e ascidades no território, ou francamente cultural” (Saraceno, 1996 citado porVale, 2005, p. 16017). Ou seja, a ruralidade deve ser compreendida pelanoção de territorialidade e pensada na relação com a cidade, e não pelasua oposição.

Nesse sen do, Biazzo (2008) faz uma crí ca ao uso indiscriminadode rural e urbano, em geral u lizado como categoria operatória para de-signar os espaços do campo e da cidade, com diferenças de a vidadeseconômicas e modos de vida ligados a estes. Já tendo superado o pare-amento entre rural/ agricultura e urbano/ indústria, o autor sugere quese deva fazer também a separação entre rural/ campo e urbano/ cidade.

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Seu argumento é que cidade e campo são sistemas de objetos, materiali-dades, formas, xos, espaços empiricamente observados, que se concre-

zam em paisagens e infraestruturas contrastantes. Já rural e urbano sãosistemas de ações, uxos, representações sociais, relações sociais, prá -cas sociais, que modelam universos simbólicos e o convívio social. Dessaforma, rural e ruralidade, como também urbano e urbanidade, se igualamenquanto categorias analí cas que se prestam para examinar prá cas so-ciais na sociedade. Então, as expressões das ruralidades não se restringemao campo, podendo manifestar-se também na cidade – e vice-versa comas urbanidades.

Moreira (2005) lembra que as ruralidades se referem a uma especi-cidade das relações humanas posta para as análises cien cas. Portanto,

compreender as ruralidades implica em novas leituras do modo par cu-lar de u lização do espaço e da vida social de atores sociais construindonovas iden dades, resultantes de novas relações campo/ cidade – vistoque as diferenças espaciais e sociais na sociedade atual não apontam parao m do mundo rural. Essas novas iden dades podem remeter tanto àimagem do rural mais tradicional quanto a novas formas de compreenderos contornos (espaço ecossistêmico), especi cidades (lugar onde se vive)e representações (lugar onde se vê e se vive o mundo) dessa imagem.Além disso, é preciso também entender as relações entre local e globalda pós-modernidade e da globalização, que recon guram o mundo rurale, consequentemente, as ruralidades. Em síntese, as novas ruralidades re-metem às dis ntas signi cações do mundo rural, a novos atores e novasdisputas discursivas em jogo.

E temos as re exões de Carneiro (2012), para quem as ruralidadesnas sociedades contemporâneas expressam as novas con gurações socio-espaciais (novos atores sociais no campo, novas a vidades econômicas) eas novas iden dades que emergem dos con itos da disputa por imagens einteresses dis ntos sobre esse espaço. A autora entende que a ruralidadeé “um processo dinâmico em constante reestruturação dos elementos dacultura local mediante a incorporação de novos valores, hábitos e técni-cas” (p. 50). Tal processo implica movimento em duas direções: reaproxi-mação de elementos da cultura local segundo releitura possibilitada pelaemergência de novos códigos; reaproximação de bens culturais e naturaisdo mundo rural pela cultura urbana, que possibilita alimentar a sociabili-

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dade e reforçar os laços com a localidade. Disso resultam também expres-sões culturais singulares que representam a síntese ou a combinação dosuniversos culturais dis ntos, sustentadas em noções de espaço e temposociais diferentes entre si.

Conforme a aurora, essa compreensão da ruralidade baseia-se nasuperação da dicotomia espacial entre campo e cidade, por meio do res-gate da noção de território, entendido segundo uma não correspondênciaa espaços limitados sicamente, mas a imagens e representações sociaisque alimentam e são alimentadas por uma rede de relações sociais, frutodo cruzamento de aspectos geo sicos, econômicos e culturais. Tambémse resgata a noção de localidade, por não designar especi camente cam-po ou cidade, mas que implica na pluralidade de fronteiras que se entre-cortam e formam núcleos de sociabilidade dis ntos, às vezes sem comu-nicações entre si, apesar de os atores sociais compar lharem do mesmoespaço sico. Desse modo, deve-se levar em conta a exibilidade de taisfronteiras e a mobilidade sica, pois, em função do pertencimento a de-terminado território – e os deslocamentos entre territórios – forjam-serepresentações sociais sobre a localidade, interferências nas relações eprá cas sociais, dinâmicas de ocupação da área e construções de iden -dades. Essas noções serviriam para compreender melhor por que pessoasexpressam vínculos com um determinado território, mesmo estando foradele. Resumindo, o espaço não designa propriedades empiricamente ob-servadas (campo ou cidade), mas representações sociais da localidade e/ou território.

Por m, em revisão dos textos brasileiros a respeito das ruralidades,Moraes e Vilela (2013) sinalizam que os estudos apontam para dois cam-pos discursivos complementares: (a) um espaço não mais exclusivamentemarcado pelas a vidades agrícolas, mas pela inclusão da pluria vidade,da mul funcionalidade, das novas formas de organização e desenvolvi-mento agrícola no campo, do lazer, da preservação ambiental, da aproxi-mação com diferentes sistemas culturais; (b) re exões sobre populaçõesrurais com aproximações teóricas entre campesinato e agricultura familiar,povos tradicionais, capitalismo e emergência de um novo nominalismo.Esses estudos têm indicado para manifestações de ruralidades expres-sas por novas iden dades socioculturais, seja no campo, seja na cidade,presentes nas dimensões: econômicas (prá cas agropecuárias, turismo,

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commodi es, economia camponesa), polí cas (mercado internacional esubsídios agrícolas, polí cas públicas, movimentos sociais camponeses,mul funcionalidade dos agricultores familiares) e culturais (reaproxima-ção da natureza, cultura country , revitalização de fes vidades, religiosi-dade, gastronomia, polí cas culturais) – e idem para as manifestações deurbanidades nessas mesmas dimensões.

Em suma, ruralidades e urbanidades são vistas como “conteúdos so-ciais de prá cas socioculturais e polí cas, incorporadas no curso da vidados atores sociais, nas ins tuições, nos agentes cole vos. Ambas ... sãotomadas como representações de diferentes universos simbólicos de in-divíduos e grupos” (Moraes & Vilela, 2013, p. 67), que se combinam emdis ntos recortes espaciais e territoriais.

Finalmente, pretendeu-se neste texto trazer esclarecimentos do quese compreende por rural e urbano no debate clássico, bem como apontarcomo os estudos rurais brasileiros têm caminhado para o entendimentodas ruralidades. Por meio de tais discussões, espera-se colaborar para oaprofundamento das pesquisas em Psicologia Social (e Psicologia), paraque estas não sejam apenas realizadas no campo, mas que busquem com-preender as ruralidades.

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Landini, F. P. (2015). Psicología Social y desarrollo rural: actualidad y desafos en América La na

Psicología Social y desarrollo rural: actualidad ydesa os en América La na

Fernando Pablo Landini

Introducción

Por múl ples razones, la psicología tradicionalmente ha prestado

escasa atención a las problemá cas de las poblaciones rurales (Quintanar,2009). Más aún, ha supuesto que éstas no tenían diferencias signi ca vascon las de aquellas que viven en las ciudades, asumiendo, posiblementea causa de prejuicios posi vistas, que la subje vidad humana es indepen-diente del contexto en el que se desarrolla la vida (Landini, 2015a). Así, lascaracterís cas propias de las poblaciones rurales, así como las especi ci-dades de sus dinámicas de vida, han tendido a quedar ocultas a los ojosde la psicología. Claramente, esto no ha sucedido en el contexto de otrasciencias sociales, en las cuales es frecuente abordar las especi cidades ru-

rales, con en la antropología, la sociología o la economía, en las cuales áre-as como la antropología rural, la sociología rural o la economía agraria seencuentran fuertemente consolidadas. En contraste, en psicología resultaextraño, incluso carente de sen do, hablar de una psicología rural comoárea de interés especí co. No obstante, en los úl mos años se observa uncreciente interés en América La na por abordar los procesos psicosocialesque acontecen en contextos rurales (véase por ejemplo Landini, 2015b;Leite & Dimenstein, 2013; Quintanar, 2009). De hecho, es recién en el año2015 que aparece en la literatura académica internacional una de niciónde psicología rural, entendida no como una subdisciplina psicológica sinocomo:

Un ‘campo de problemas’ en los que se ar cula psicología y ruralidad. Esdecir, como un conjunto de temas, problemas o hechos para los cuales re-sulta relevante considerar tanto su dimensión rural como su dimensión psi-cológica o psicosocial, ya que sin la consideración de una de ellas nuestraposibilidad de comprensión y/o intervención se vería limitada en aspectosrelevantes. (Landini, 2015a, p. 28)

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En par cular, un elemento propio de los ámbitos rurales que ha des-pertado gran interés en el contexto de las ciencias sociales han sido lasintervenciones orientadas a generar procesos de desarrollo rural, par -éndose del supuesto de que una mejor comprensión de estos procesosayudaría a fortalecer sus impactos en términos de reducción de la pobrezay desarrollo. Landini, Benítez, y Murtagh (2010) han señalado que, pese aque los trabajos académicos en psicología rural son escasos a nivel global,los estudios orientados a profundizar en el desarrollo y las prác cas pro-duc vas agropecuarias cons tuyen el área más frecuente. Siguiendo coneste interés Rober y Mussi (2014) han sistema zado los contenidos dediferentes publicaciones aparecidas entre 1985 y 2012 buscando echar luzsobre la ar culación entre psicología y desarrollo rural territorial. Final-

mente, nuestro equipo recientemente ha argumentado la necesidad degenerar un abordaje especí co de los procesos de desarrollo rural desdela psicología (Landini, Leeuwis, Long, & Murtagh, 2014) y ha propuesto unmarco conceptual para ello (Landini, Long, Leeuwis, & Murtagh, 2014).

No obstante, la posibilidad de intervenir en el contexto de procesosde desarrollo rural resulta hoy algo impensado para la amplia mayoría delos psicólogos y psicólogas. A la vez, también resta dar forma al rol quenuestra disciplina podrían jugar en estos procesos. Así, en este trabajo,a par r de una revisión bibliográ ca y de la presentación de resultadosclave de diferentes inves gaciones e intervenciones llevadas adelante enAmérica La na, se buscará visibilizar y discu r los ámbitos de intervenciónde la psicología en el contexto de la extensión rural.

La complejidad de los procesos de desarrollo rural y el abordaje orien -tado al actor

Antes de profundizar en la extensión rural y el rol de la psicología sebuscará aportar a la comprensión de la complejidad del desarrollo ruraly la extensión rural (García, 1993; Leeuwis & Aarts, 2011; Van Woerkum,Aarts, & Van Herzele, 2011), con el n de evitar explicaciones lineales opsicologicistas (Freitas, 1994; Landini et al., 2010; Mar n Baró, 1986),como sucede cuando se usan modelos de psicología social psicológica (esdecir, con énfasis en lo individual) para comprender fenómenos mul de-terminados (véase por ejemplo el trabajo del Banco Mundial 2015).

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Landini, F. P. (2015). Psicología Social y desarrollo rural: actualidad y desafos en América La na

Adoptando un enfoque orientado al actor (Long, 2007), es decir, unoque destaca el rol de los actores en el contexto de la constricciones estruc-turales, en un trabajo reciente propuse un esquema grá co para visualizarla ar culación de los procesos psicosociales con otros de naturaleza socio-polí ca, bio sica y económica (ver Figura 1). En ese esquema se parte deasumir lo que en realidad es obvio: que no sólo los seres humanos enenpoder para in uir sobre las dinámicas que in uyen en su propia vida, sinoque también lo hacen factores ubicados a dis ntos niveles, tanto huma-nos como no humanos, lo que en el contexto de la sociología de Bruno La-tour ha sido conceptualizado como ontología simétrica (Ocampo, 2015).En concreto, se parte de asumir cuatro niveles de determinación: psico-social, sociopolí co, bio sico y económico. A nivel psicosocial se parte de

que las personas son portadoras de agencia, es decir, de capacidad paracomprender y dar sen do a la realidad en la que viven a par r de proce-sos de construcción social, y capacidad para actuar buscando alcanzar suspropias metas, elaborando estrategias para alcanzarlas en contextos so-ciales, polí cos, ins tucionales, económicos y materiales especí cos. Encontrapar da, se asume que los procesos sociopolí cos, la realidad bio-

sica y las dinámicas económicas enen poder para in uir en la vida y lasubje vidad de las personas, en decir, en el nivel psicosocial.

Figura 1. Agencia humana y mul -determinación

Fuente: Landini, Long et al. (2014)

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Focalizando en los procesos de desarrollo rural, se observa que lassubje vidades y las acciones humanas pueden transformar (a) el ambien-te material, por ejemplo generando procesos de deser cación por prác-

cas produc vas no sustentables, (b) la realidad económica, a par r delos productos que cul va la familia y se venden en el mercado y (c) en elmarco sociopolí co, in uyendo sobre el diseño o la dinámica de imple-mentación de polí cas públicas. A la inversa, (a) la realidad bio sica puedein uir en las subje vidades y los procesos psicosociales, por ejemplo losimpactos de sequías o las consecuencias de la ap tud produc va de la

erra, (b) la económica a par r de los precios de los productos que ven-den los agricultores, y (c) la sociopolí ca, a par r de diferentes interven-ciones orientadas al desarrollo.

Así, se observa la necesidad de tomar conciencia de la complejidadde los procesos de desarrollo rural, de incorporar el nivel de determina-ción psicosocial (Long, 2015) y de evitar explicaciones simplistas que nie-guen el rol de los sujetos o, al contrario, que pretendan explicar el de-sarrollo únicamente en términos de subje vidades individuales, haciendoresponsables a los sujetos de su situación de pobreza y desamparo (Lan-dini et al., 2014).

Evolución histórica y actualidad de la extensión y la asesoría rural

No cons tuye el obje vo de este trabajo hacer una revisión históricadetallada del concepto de extensión rural (‘rural advisory services’ en in-glés y ‘assistência técnica e extensão rural’ [ATER] en portugués). No obs-tante, una reconstrucción acotada resultará de u lidad para orientar a loslectores no familiarizados con el término y para delimitar las dimensionesde la extensión rural que con enen un fuerte componente psicosocial.

La extensión rural ha sido de nida de múl ples manera a lo largo delempo (Leeuwis, 2004). No obstante, a nivel general hoy ende a descri-bírsela como “la acción por medio de la cuál actores sociales, en generalprovenientes de las ciencias agrarias, brindan apoyo técnico-produc vo,socio-organiza vo o comercial a pequeños productores agropecuarios”(Bianqui, Mathot, Vázquez, & Landini, 2015, p. 251). En América La na, laextensión rural cobra fuerza hacia mediados del siglo pasado con el apoyode los Estados Unidos en tanto prác ca orientada a la transferencia de las

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Landini, F. P. (2015). Psicología Social y desarrollo rural: actualidad y desafos en América La na

tecnologías generadas por los inves gadores a los productores del cam-po (Schaller, 2006). Este enfoque fue denominado ‘difusionista’ (Rogers,1962), ya que ponía el foco en la difusión de tecnologías de expertos aproductores, y si bien se trata de una perspec va hoy conceptualmentesuperada, evidencia reciente sugiere que se trata del abordaje más fre-cuente a nivel la noamericano (véase por ejemplo Landini, 2012, 2015c,2015d1; Landini y Bianqui, 2014a). En este contexto, la psicología aparecíacomo una disciplina que podía explicar las razones de la limitada adopciónde tecnologías por parte de los productores (Landini et al., 2010).

Discu endo con este enfoque pero sin cambiar el nivel de análisis,a nes de los 60’ Paulo Freire (1973) cri có este abordaje por estableceruna relación jerárquica de poder-saber en el vínculo técnico-productor,abogando por el establecimiento de vínculos horizontales centrados enel diálogo y la co-construcción. Un poco más tarde, los trabajos de RobertChambers (1983) llevaron a visibilizar la necesidad de generar procesosde extensión par cipa vos. Pensada así, la extensión rural requiere deun per l totalmente diferente de psicólogos, ahora con un enfoque máscrí co, orientado a la facilitación de vínculos horizontales, la construcciónconjunta, y la ges ón de procesos endógenos de carácter par cipa vo.

Hacia nes del siglo pasado y principios de este, se consolida una

visión que amplía el conjunto de actores considerados en el contexto delos procesos de extensión rural. Por un lado, el enfoque territorial de laextensión y el desarrollo rural (INTA, 2004) destaca el rol de la ar culaciónde actores locales (productores, ins tuciones, consumidores, extensionis-tas, etc) como elemento catalizador de procesos de innovación (Acunzo,Pafumi, Torres, & Tirol, 2014; Or z, Rivera, Cifuentes, & Morrás, 2011) yde la creación de plataformas interins tucionales como vía para hacerlo(Christoplos, 2010). En paralelo, el abordaje de sistemas de innovaciónexplica la innovación a par r de los procesos colabora vos de ar culacióny aprendizaje social que se dan en el vínculo entre actores, organizacio-nes e ins tuciones con experiencias y conocimientos diferentes (Klerkx,Van Mierlo, & Leeuwis 2012; Leeuwis & Aarts, 2011). Así, en este nuevocontexto, que no niega la importancia del vínculo entre técnicos y produc-tores sino que amplía el campo de análisis de la extensión rural, el marco

1 Landini, F. (2015d).Análisis de la extensión rural salvadoreña a par r de la mirada de susextensionistas. Interações, 16(2) [páginas pendientes de asignación].

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de acción de nuestra disciplina se incrementa, destacándose la posibilidadde facilitar espacios de ar culación interins tucional, de acompañar y po-tenciar procesos de aprendizaje social, y de aportar al desarrollo crea vode innovaciones.

Así, se observa que la psicología adquiere diferentes roles posiblesen el contexto de los múl ples enfoques de extensión rural.

Tomando el punto de vista de los extensionistas rurales la noamericanos

En una inves gación realizada recientemente por nuestro equipose indagó, en muestras de extensionistas provenientes de 10 países la -

noamericanos, los problemas que éstos enfrentaban en su prác ca, susconcepciones de extensión rural y sus expecta vas sobre la psicología.Recuperar estos resultados permi rá aportar a la re exión respecto delrol que nuestra disciplina puede adoptar en estos procesos. Los paísesincorporados al estudio fueron Argen na, Brasil, Bolivia, Chile, Ecuador,El Salvador, México, Paraguay, Perú y Uruguay. En total se realizaron 589encuestas, las cuales incluyeron tanto preguntas cerradas como abiertas.Los dis ntos temas abordados en las respuestas fueron categorizados y lacan dad de entrevistas en las que aparecían cuan cada.

Problemas enfrentados en el trabajo de extensión rural por losextensionistas

La amplia mayoría de los extensionistas que trabajan en América La-na son profesionales de las ciencias agrarias (Landini y Bianqui, 2014b),

lo que enmarca su perspec va. Sólo en Argen na y Uruguay respondierona la encuesta psicólogos con tulo universitario, y en una muy baja pro-porción. Tomando como base el promedio de las veces en que cada pro-blema fue mencionado en los dis ntos países, se iden caron los cincomás frecuentes (véase Landini, en prensa). Entre paréntesis se indica elpromedio que surge de considerar todas las muestras nacionales:

1. Individualismo, descon anza y falta de asociaciones de produc-tores (45,3%)2. Tecnologías o manejos produc vos inapropiados (34,6%)

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Landini, F. P. (2015). Psicología Social y desarrollo rural: actualidad y desafos en América La na

3. Problemas para comercializar (28,9%)4. Ac tud asistencialista, oportunista o pasiva (28,7%)5. Resistencia al cambio y a la adopción de tecnologías (27%)

Resulta interesante observar que varios de estos problemas enenun nivel de ar culación psicosocial claro. Más todavía, un análisis detalla-do también muestra que todos ellos pueden bene ciarse de las contribu-ciones de la psicología, especialmente en su ver ente socio-comunitaria.El primer problema focaliza en las di cultades para generar inicia vas de

po asocia vo o coopera vo entre pequeños productores, dada la u li-dad que éstas enen para mejorar su capacidad de negociación con otrosactores del mercado. Aquí los psicólogos pueden contribuir a facilitar yconsolidar el trabajo asocia vo y el coopera vismo (véase Landini, 2007).El segundo problema focaliza en la existencia de prác cas produc vas queno se adecuan a las recomendaciones técnicas, mientras que el quintointerpreta esta situación en términos de una suerte de ‘resistencia’ delos productores al cambio. Más allá de los supuestos difusionistas quesubyacen a este enfoque (tema que será abordado más adelante), resultaevidente que la psicología puede trabajar con la cues ón del cambio ac -tudinal y la transformación de las prác cas, tanto en estos términos comoen su ar culación con procesos de aprendizaje.

El tercer problema re ere a los problemas para comercializar. A pri-mera vista esto parecería ser ajeno a los alcances de nuestra disciplina.No obstante, hay que tener en cuenta que el fortalecimiento de las orga-nizaciones de agricultores y el desarrollo de las capacidades de los pro-ductores para interactuar con compradores y consumidores cons tuyenestrategias destacadas de intervención. Así, nuevamente, la dimensiónpsicosocial de estos problemas queda al descubierto. Por úl mo, ante laproblemá ca de la ac tud pasiva u oportunista de los productores frente

a diferentes inicia vas de extensión y desarrollo rural también vuelve aquedar a la luz el nivel de determinación psicosocial y el interés de generarcontribuciones desde la psicología.

Enfoques de extensión rural de los técnicos encuestados

En la inves gación también se abordaron los elementos que dan for-ma a las concepciones de extensión rural con las que los técnicos exten-

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sionistas guían sus prác cas (Landini, 2015e2). A con nuación se enume-ran y comentan los cinco más mencionados:

1. Ges ón de grupos, con ictos y fortalecimiento de vínculos

(49,2%)2. Cambio de mentalidad o transferencia/adopción de tecnologías.(46,7%)3. Capacitar, enseñar y formar al productor. (37,9%)4. Valorar la par cipación y tener en cuenta las necesidades, inte-reses, cultura y racionalidad campesina en el trabajo de extensión(37,7%)5. Expecta va de visión y prác ca empresarial (22,2%)

Tomando el primer componente, en paralelo con el análisis de pro-blemas se observa la importancia que ene para los extensionistas la ges-

ón de procesos grupales y el fortalecimiento de vínculos entre produc-tores, lo que evidencia no sólo la per nencia sino también la necesidadde un mayor compromiso de la psicología con estos procesos. El segundoelemento muestra la persistencia de un enfoque tradicional de la extensi-ón rural que la iden ca con el cambio de mentalidad de los productoresy con la difusión de tecnologías. En este caso, desde un enfoque tecno-

crá co podría pensarse en una psicología que se comprometa con estosprocesos. No obstante, retomando la perspec va é co-polí ca crí ca dela psicología social la noamericana (Montero, 2004), puede señalarse elinterés de que los psicólogos contribuyan no a alcanzar los nes que seproponen los extensionistas, sino a aportar a la re exión y discusión refe-rida a los supuestos que subyacen a este enfoque, con el n de permi runa de nición ac va conciente respecto de los valores que se usan paraguiar la prác ca.

Respecto de la importancia de la formación y capacitación de losproductores, queda claro que los profesionales de las ciencias agrarias ne-cesitan incorporar herramientas psicosociales relacionadas con el apren-dizaje para llevar adelante estos procesos. Por su parte, con respecto ala importancia dada a la implementación de dinámicas par cipa vas, denuevo queda clara la limitación de los extensionistas provenientes de las2 Landini, F. (2015e). Concepción de extensión rural en 10 países la noamericanos. Manuscrito

enviado para publicación.

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Landini, F. P. (2015). Psicología Social y desarrollo rural: actualidad y desafos en América La na

áreas técnicas para ges onar estos procesos (Landini, 2013; Landini, Mur-tagh, & Lacanna, 2009) y la per nencia de una psicología con orientaciónsocio-comunitaria para apoyarlos.

Por úl mo, respecto de la expecta va de que los productores desar-rollen un enfoque y una prác ca empresarial, debería realizarse un aná-lisis más minucioso desde una perspec va crí ca para evaluar hasta quépunto resultaría valioso aportar a que los agricultores readecuen su lógicaal funcionamiento del mercado (Landini, 2011) o si lo mejor sería contri-buir al desarrollo de capacidades para una economía alterna va.

Expecta vas de los extensionistas sobre la psicología

También se preguntó a las 589 extensionistas encuestados cuáleseran las contribuciones que la psicología podría hacer a su trabajo (véaseLandini, 2015f). A con nuación se presentan las cinco más mencionadas:

1. Capacitar a productores, y manejar grupos y procesos par cipa-vos (54,1%).

2. Apoyar el proceso de cambio mentalidad y de adopción de tecno-logías de de los productores (32,4%).3. Capacitar, asesorar y dar herramientas sociales a los extensionis-tas (32,2%).4. Generar compromiso, apropiación y mo vación de los producto-res con respecto a los proyectos de desarrollo (29,7%).5. Incrementar la autoes ma de los productores (27,1%).

Analizando las expecta vas de los extensionistas no se observangrandes sorpresas, salvo en el caso de la úl ma. Las posibilidades de ge-nerar aportes en torno al manejo de grupos y la ges ón de procesos par -

cipa vos ya había sido apuntada. No obstante, en este caso también apa-rece la posibilidad de ‘capacitar’ a los productores, estableciéndose aquíun paralelo con lo que sería su propia prác ca como extensionistas y loque esperarían que hagan los psicólogos. Respecto del apoyo a procesosde adopción de tecnologías y de cambio de mentalidad de los producto-res, vuelve a aparecer la necesidad de aportar a la elaboración crí ca deesta expecta va para no adoptar un enfoque tecnocrác co que tome a losproductores como objeto y no como sujeto de cambio y transformación.

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En tercer lugar aparece la expecta va de que los psicólogos y psi-cólogas formen, asesoren y den herramientas a los extensionistas paraabordar su trabajo, en el contexto de la conciencia de que sus capacidadestécnico-produc vas no son su cientes para llevar adelante la complejidadde su trabajo (Landini et al., 2009). Indudablemente, esta es una expec-ta va de gran interés, ya que abre la posibilidad de generar espacios detrabajo entre extensionistas y psicólogos en los que puedan darse dinámi-cas re exivas y de análisis crí co sobre la prác ca, con el n de generarnuevas comprensiones sobre su trabajo y sobre los problemas que enenque enfrentar.

En relación a la generación de compromiso, apropiación y mo va-ción por parte de los productores, sin duda la formación y el apoyo enla ges ón de procesos par cipa vos puede ser una herramienta de graninterés, junto con un cambio de visión de la extensión para orientarla mása procesos de construcción conjunta que a la transferencia de tecnologías.

Por úl mo, lo que sí llama la atención es el pedido de ayuda paraaumentar la autoes ma de los productores, lo que se relaciona con la per-cepción que los técnicos enen de la falta de con anza de los productoresen torno a su capacidad para salir adelante y cambiar sus condiciones devida. Aquí, la psicología comunitaria la noamericana puede jugar un im-

portante papel.

Experiencias y prác cas de intervención con extensionistas

Con el n de ampliar pero a la vez concre zar las contribuciones dela psicología al trabajo de extensión rural, en este apartado se presentandos experiencias llevadas adelante en Paraguay, la primera con nanciaci-ón de la Fundación española Acción Contra el Hambre (ACH) y la segunda

de la Agencia Alemana de Cooperación Internacional (GIZ).Formación re exiva y crí ca para extensionistas en el Departamento deCaazapá

Con el n de iden car los problemas a los que se enfrenta la ex-tensión rural implementada por la Dirección de Extensión Agraria (DEAg)del Ministerio de Agricultura y Ganadería de Paraguay se llevó adelante

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Landini, F. P. (2015). Psicología Social y desarrollo rural: actualidad y desafos en América La na

un trabajo de consultoría que involucró la realización de entrevistas conproductores, extensionistas y autoridades ins tucionales, y la realizaciónde talleres con productores. A par r de este análisis pudieron iden carsecomo problemas clave la formación insu ciente de los extensionistas yla implementación de un modelo de extensión rural tradicional de podifusionista, que indirectamente estaba fomentando que los productoresadoptaran un posicionamiento pasivo frente al apoyo recibido (Landini,2012). Luego de esto se realizó una encuesta a nivel nacional para iden-

car necesidades forma vas especí cas, complementándose esto conun análisis de los conocimientos que los extensionistas necesitarían paraenfrentar los problemas de su prác ca y con las competencias necesariaspara llevar adelante sus funciones (Landini, 2013), lo que llevó a conside-

rar numerosas áreas de formación del ámbito de las ciencias sociales.Respecto de la necesidad de aportar a un cambio en las concepcio-

nes de extensión de los técnicos de la ins tución, se tomó conciencia deque un enfoque de extensión centrado en el diálogo y la construcción ho-rizontal no podía ser generado a par r de la ‘transferencia’ de un modelode extensión alterna vo, ya que esto implicaría reproducir aquello quese necesitaba transformar. Así, se generó una propuesta de formación re-

exiva en la que el proceso de análisis crí co grupal tendría un lugar fun-damental (Landini, Bianqui, y Russo, 2013), siguiendo el enfoque de con-cien zación propuesto por Freire (Cerullo & Wiesenfeld, 2001). En estecontexto, de ideó un proceso de formación taller compuesto por ochomódulos, cada uno con una duración de dos días, en los que se aborda-rían diferentes temas, tanto del ámbito social como produc vo. A la vez,se diferenció entre el rol de capacitador, de nido como responsable depresentar los contenidos de formación en las diferentes áreas, y el de faci-litador, encargado de dinamizar y acompañar el proceso re exivo grupal.

El esquema de trabajo se dividió en ocho momentos:1. Iden cación de problemas prác cos relacionados con el temade capacitación del módulo y de las áreas especí cas en las que se es-peraba recibir capacitación (para que los expositores pudieran llevarsu presentación a lo que realmente interesaba a los par cipantes).Esto se hacía antes de la implementación del módulo.2. Análisis de problemas relacionados con el tema de formación delmódulo

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3. Presentación de contenidos de la capacitación en el área temá caseleccionada buscando responder a los problemas de la prác ca y alos contenidos de interés iden cados por los par cipantes4. Iden cación y consolidación de los conocimientos de mayor in-terés (una suerte de síntesis generada por los par cipantes)5. Construcción de propuestas basadas en los contenidos de la ca-pacitación y la experiencia de los par cipantes para enfrentar los pro-blemas iden cados y mejorar el trabajo de extensión6. Opera vización de las propuestas7. Evaluación par cipa va del módulo8. Seguimiento de la implementación de propuestas y análisis de

problemas surgidos en el proceso de puesta en prác ca (durante elmódulo siguiente)

Luego de terminado el úl mo módulo y de varios meses de naliza-do el curso se realizaron diferentes ac vidades de evaluación del impactode la propuesta, destacándose un cambio en la forma de pensar los proce-sos de extensión rural: cuando antes se consideraba que ser extensionistasigni caba dar indicaciones técnicas correctas a los productores, ahora selo pensaba como un proceso par cipa vo de construcción conjunta, loque implicaba un cambio subje vo muy fuerte (para ampliar sobre el casover Landini et al., 2013).

Diseño de un esquema de ges ón de la calidad de la extensión rural

En el año 2014, con nanciación de la GIZ y en acuerdo con la Di-rección de Extensión Agraria se implementó un proceso par cipa vopara construir estándares de calidad para guiar el trabajo de extensiónde la ins tución. En este contexto, se analizaron las expecta vas de losproductores, las recomendaciones sobre buenas prác cas indicadas en laliteratura académica y el punto de vista de extensionistas y autoridadesins tucionales. A par r de esto se iden caron 12 estándares que fueronajustados y validados en un taller nacional que involucró a las autoridadesnacionales de la DEAg y a los responsables de los Centros de DesarrolloAgropecuario que ésta ene en todo el país.

Luego de esto, en mayo de 2015 la GIZ encomienda la construcciónde una propuesta al autor de este texto para generar un sistema de ges -

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Landini, F. P. (2015). Psicología Social y desarrollo rural: actualidad y desafos en América La na

ón de la calidad en la DEAg a par r de los estándares. A la vez, solicita a lains tución la conformación de un Grupo de Trabajo para evaluar y ajustarla propuesta. La construcción de la propuesta estuvo guiada por múl plesprincipios dentro de los cuales se destacan:

- Carácter par cipa vo

- Per nencia contextual

- Aprendizaje horizontal

- Innovación ins tucional

En este contexto, en diálogo con el Grupo de Trabajo designado porla ins tución se ajustaron los estándares y se iden caron cinco niveles decumplimiento para cada uno de ellos. A nivel opera vo, se sostuvo que laimplementación del sistema de ges ón de calidad requería del armado deun Grupo Facilitador (provisoriamente podría ser el Grupo de Trabajo) quese encargara de impulsar la inicia va, la cual tendría como base la autoe-valuación del grado de cumplimiento de los estándares en las diferentesrepar ciones de la ins tución encargadas de ges onar tareas vinculadascon ellos. Se propuso un esquema de autoevaluación para cada estándaren el contexto del cual las diferentes repar ciones de la ins tución debe-

rían reunirse para analizar las di cultades que limitaban el cumplimientode los estándares, iden car su grado de cumplimiento actual y generarpropuestas para implementar a dis ntos niveles para poder avanzar consu cumplimiento. Así, la propuesta incluye un intercambio de visiones yexperiencias en las dis ntas agencias y departamentos en los que organizala ins tución para generar aprendizajes horizontales y construir accionessuperadoras.

A la vez, también se propuso que el Grupo Facilitador sistema zara

las planillas de análisis que generaran las dis ntas unidades de autoeva-luación con el n de plantear requerimientos a las dis ntas instancias quepudieran dar respuesta a los problemas iden cados, a la vez que cons-truir un plan de mejora, con el n de generar procesos de cambio, es decir,de innovación ins tucional, pero no desde de arriba hacia abajo sino a par-

r de procesos re exivos desde la bases. A agosto de 2015 la propuesta hasido validada en una reunión con autoridades nacionales y está pendientede aprobación formal y de implementación a nivel de prueba piloto.

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Aquí, se observa que el rol del psicólogo, recuperando su conoci-miento de extensión rural, implicó la ges ón de un proceso social comple- jo orientado a la plani cación y facilitación de procesos endógenos.

Áreas de intervención y desa os futuros

Atendiendo a lo desarrollado, queda claro que el trabajo de extensi-ón rural, sea cual sea el enfoque que se adopte, puede enriquecerse conlas contribuciones de la psicología, especialmente de un enfoque socio--comunitario. No obstante, es evidente que las contribuciones especí casesperadas, e incluso las más per nentes en los diferentes contextos, de-penderán de los enfoques de extensión que adopten los extensionistas ysus ins tuciones.

Dentro de las áreas destacadas de interés que surgen del análisis delpunto de vista y de las expecta vas de los extensionistas cabe mencio-nar el apoyo a la ges ón de procesos grupales y asocia vos, la facilitaci-ón de vínculos tanto entre productores como en espacios de ar culacióninterins tucional, y la dinamización de procesos par cipa vos a dis ntosniveles. Ahora bien, queda claro que la psicología y los psicólogos debenre exionar crí camente respecto de los pedidos que reciben de los exten-

sionistas para no caer en abordajes tecnocrác cos que posicionen a losproductores en el lugar de objetos de intervención. En esta línea, y comomuestran las experiencias de intervención descriptas, resulta sumamenteimportante que los propios psicólogos y psicólogas puedan generar pro-puestas desde su conocimiento de la disciplina que vayan más allá de lo es-perado y pensado por los propios extensionistas, lo que requiere un mayorconocimiento del campo en el que se debe intervenir, algo totalmente des-conocido para la mayoría de los profesionales de nuestra ciencia.

En este sen do, el conjunto de aspectos analizados en este trabajosugieren el interés de que los psicólogos y psicólogas contribuyan facili-tando procesos de re exión crí ca sobre la prác ca de extensión y apor-tando al cambio y a la innovación en los procedimientos ins tucionales.A la vez, si bien no han sido mencionados, también existen otras áreas deacción que podrían tener una interesante potencialidad como la construc-ción y aplicación de un instrumento para la evaluación de concepcionesde extensión rural (véase Landini, Bianqui y Crespi, 2013), y el estudio y

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Landini, F. P. (2015). Psicología Social y desarrollo rural: actualidad y desafos en América La na

el diseño de entornos ins tucionales que faciliten procesos de aprendi-zaje horizontal entre extensionistas. Visto de esta manera, el trabajo delos extensionistas estaría más orientado a pensar el nivel ins tucional ya trabajar con los extensionistas que a hacerlo con los productores. Noobstante, la principal limitación que se observa pareciera estar relacio-nada con el desconocimiento de los profesionales de la psicología de lapotencialidad de su disciplina para aportar a los procesos de extensióny desarrollo rural. Así, la sensibilización y formación de los psicólogos ypsicólogas en relación al área también aparece como una línea de trabajode gran importancia.

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Grubits, S. (2015). Comunidades indígenas nas áreas rurais de Mato Grosso do Sul

Comunidades indígenas nas áreas rurais de MatoGrosso do Sul

Sonia Grubits

Estudos com crianças, mulheres e famílias indígenas na região Cen-tro Oeste do Brasil, desde 1993, evidenciam e demonstram, nas diferen-tes pesquisas e intervenções, a diversidade social e cultural destes povos.Analisamos desenhos de crianças Guarani/Kaiowá, Kadiwéu e Terena. Nasduas úl mas pesquisas, abordamos questões de gênero e a par cipaçãodas mulheres nas áreas de saúde, educação e polí cas públicas. Ul ma-mente nossas atenções estão voltadas para a questão ambiental, enten-dendo a urgência e a necessidade da par cipação de referidas populaçõesnas ações de preservação da ora, fauna, rios e nascentes. Assim, estamosdando seguimento a comparações e re exões importantes sobre a situa-ção das diferentes populações em cada área.

O Estado de Mato Grosso do Sul, no centro oeste brasileiro, ondeencontramos as três etnias, possui um grande número de comunidades

indígenas na área rural e uma grande quan dade de pessoas denomi-nadas “sem-terra”, grupos organizados que lutam pela reforma agrária,enfrentando sérios problemas de disputa de terras, saúde e educação.Nas reivindicações, discussões com órgãos governamentais, as ações nãoocorrem em conjunto, tendo em vista a natureza das demandas. Os sem--terra querem a reforma nas áreas rurais. Os índios querem voltar ou per-manecer nas terras onde viveram originalmente e onde estão os cemité-rios de seus ancestrais.

Nossa intenção neste capítulo é reunir uma série de informações,fruto das referidas pesquisas, tentando re e r acerca das grandes dife-renças que efe vamente existem entre grupos indígenas brasileiros e quemuitas vezes são desconsideradas pela população de um modo geral.

Nossos trabalhos situam-se na Etnopsicologia, área do conhecimen-to que vem integrando teorias e estudos referentes às questões étnicas,assim como na Psicologia Social, numa forma mais ampla e geral, quando

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tratamos da busca e con guração da iden dade dos componentes de seusdiferentes grupos indígenas, re exões sobre gênero, oferecendo subsídiospara outras áreas como Ambientalismo, Direito e Educação.

Adotamos também a Psicossemió ca, ou seja, Semió ca aplicadaà Psicologia, disciplina que explica os fenômenos resultantes do mundonatural: hipote camente, ação e signi cado, atos somá cos, e atos dis-cursivos. A mencionada disciplina tem sido nosso referencial teórico paraa análise da produção ar s ca (Grubits & Darrault-Harris, 2009).

Cultura e ambiente

Para os semio cistas, a iden dade não tem de nição e opõe-se aoconceito de alteridade, sendo que a iden cação permite decidir sobretraços ou conjuntos de traços comuns, entre dois ou mais objetos, en-quanto que a dis nção é a operação pela qual se reconhece a sua alterida-de. O par, porém, é interde nível, pela relação de pressuposição recíproca,e é indispensável para fundamentar a estrutura elementar da signi cação(Grubits & Darrault-Harris, 2009).

Segundo a Agier (2001), de acordo com a abordagem contextual,

não existe de nição de iden dade em si. Os processos iden tários nãoexistem fora de contexto, são sempre rela vos a algo especí co que estáem jogo. Dito de outra forma, o processo iden tá o, enquanto depen-dente da relação com os outros, é o que torna problemá ca a cultura eacaba transformando-a. O mesmo ocorre com relação à mudança em ummesmo contexto local.

O estudo da relação iden dade/cultura, quando dis ngue na análise,sem separar os determinantes sociológicos da iden cação e o trabalhoda criação cultural, permite recolocar em questão a ilusão de uma trans-parência, isto é, o a priori de um con nuum natural entre uma cultura,uma sociedade, um espaço e um indivíduo, tal como foi desenvolvido porcerto modelo holista da iden dade na etnologia tradicional (Agier, 2001).

A compreensão da iden dade é enriquecida quando se analisam asnarra vas a par r de traços culturais. O que deve ser preservado é suadiferenciação em relação às outras culturas, ou seja, as fronteiras, e essas

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Grubits, S. (2015). Comunidades indígenas nas áreas rurais de Mato Grosso do Sul

são traçadas por elementos que têm origem cultural. O processo de trans-missão de uma tradição diz respeito a uma reprodução social que convivecom a mudança, a variação inerente ao ato de repe ção (Cohn, 2001).

Campos-de-Carvalho (2008) fala sobre iden dade de lugar conside-rando o ambiente sico como um contexto dinâmico para a vida humana,porque modi ca o comportamento, afeta pensamentos, sen mentos, in-terações sociais e bem-estar sico. Para a psicologia ambiental, estudossobre a iden dade de lugar, apego a lugar e temas relacionados, como,por exemplo, efeitos restauradores do ambiente, são necessários tantopara o bem-estar psicológico dos indivíduos quanto para a preservação deambientes e comunidades saudáveis.

Os Guarani/Kaiowá, Kadiwéu e Terena

Torna-se importante esclarecer as especi cidades culturais e am-bientais dos referidos grupos as quais, independentemente dos movimen-tos indígenas atuais, apontam para situações an gas envolvendo poder etradição.

Desenvolvemos atualmente nossos trabalhos de campo nas aldeias

da região de Dourados (RID – Reserva Indígena de Dourados). A popula-ção é de aproximadamente doze mil pessoas, em 3.475 hectares. A RIDfoi criada pelo Serviço de Proteção ao Índio – SPI, em 1917, pelo DecretoEstadual 401 de 1917, com 3.600 ha. O tulo de ni vo da área, legalizadacomo patrimônio da União, foi emi do em 1965 (Pereira, 2014). Esta áreafoi, inicialmente, reservada aos índios da etnia Kaiowá, que já ocupavamo local e suas imediações.

Antes da ocupação das frentes agropastoris na região, toda a região,hoje compreendida pelos atuais municípios de Dourados, Rio Brilhante,Maracaju, Douradina e Fá ma do Sul, compunha um único território am-pliado. Ka’aguy Rusuera o nome desse território, ou tekoha guasu ou te’yi jusu, como é designado na língua Guarani (Vie a, 2007).

Na RID, a desnutrição infan l é muito divulgada na mídia por indi-car graves problemas sociais, aparecem também a falta de espaço sicorelacionada à superpopulação, índices elevados de violência, falhas no

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programa das escolas que não contempla dados da cultura do grupo eque deveriam determinar aspectos importantes na sua organização, águapotável, saneamento, entre outros.

As lideranças demonstram preocupação com a violência, drogadi-ção, alcoolismo, mas as soluções sempre esbarram em di culdades emcontar com o necessário apoio das ins tuições estatais, questões polí case burocrá cas.

Tudo isso aponta para a falta de uma polí ca que proponha açõesefe vas e adequadas junto aos povos indígenas. Quanto aos jovens, tor-nam-se necessárias ações relacionadas com a formação, ocupação e gera-ção de renda. Os índices do suicídio de jovens e adultos jovens permane-cem muito altos. Todos estes fatores não impedem o crescimento elevadoda população.

Cabe ressaltar as questões familiares e de gênero, em relação à sa-ída do homem da aldeia, retomamos as informações de Schaden (1974)quanto a um fenômeno an go, desde a época em que a economia, dei-xando de ser autossu ciente, obrigava o homem a sair da aldeia ou re-serva e trabalhar nos ervais (cultura de erva-mate), hoje subs tuídos pe-las usinas de álcool e novas culturas como milho, arroz, etc. das fazendasda região.

A situação dos Kadiwéu, por outro lado, é muito diferente no quetange ao ambiente espaço. O grupo está numa reserva, na Bodoquena,com uma área de cerca de 538.000 ha., sendo que 158.000 estão atu-almente em li gio com fazendeiros da região. A área é de muito di cilacesso e dista 48 km da cidade mais próxima, também denominada Bodo-quena. Sua população é de aproximadamente 2010 habitantes. A notávelexuberância da ora e fauna e sua preservação têm sido observadas porecologistas e ambientalistas.

A economia Kadiwéu se organiza, hoje em dia, principalmente emtorno da obtenção dos recursos provenientes do arrendamento dos pas-tos1, atualmente proibido, a vidades agrícolas, de criação de gado bovinoe equino e, em menor escala, de caça, pesca e coleta, além da realização

1 As terras indígenas, segundo dispõe o inciso XI do ar go 20 da Cons tuição Federal, perten-cem à União, cabendo aos índios o seu usufruto exclusivo. A prá ca de arrendamento deterras indígenas é proibida e con gura crime, conforme o ar go 2º da Lei nº 8.176/91.

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de empreitadas e a venda de força de trabalho nas fazendas vizinhas àreserva e junto aos próprios arrendatários. Todas essas tarefas são basica-mente masculinas, excetuando-se a coleta. As mulheres são as principaisprodutoras de artesanato para a venda, gerando recursos razoáveis paraa economia familiar.

Podemos, portanto, entender a cultura e a iden dade Kadiwéu in -mamente ligadas à grande área preservada onde habitam e as possibilida-des de deslocamento, movimentação por toda região, sendo que a caça, apesca e a pecuária ainda são as a vidades predominantes. Acrescentamosa tudo isto o di cil acesso aos meios de comunicação e cidades mais pró-ximas. (Grubits & Darrault-Harris, 2009).

Apesar da pequena população, os Kadiwéu têm muito pres gio en-tre os diferentes grupos indígenas. O enfermeiro Kadiwéu Hilário da Sil-va foi indicado para a coordenação do distrito sanitário especial indígena(DSEI), unidade gestora descentralizada do Subsistema de Atenção à Saú-de Indígena (SasiSUS), com o apoio de todas as lideranças dos diferentesgrupos indígenas de Mato Grosso do Sul.

Os Terena, juntamente com o grupo Guarani/Kaiowá, cons tuem amaior nação indígena em Mato Grosso do Sul, por volta de vinte e cincomil pessoas, de um total ao redor de cinquenta mil que habitam o estado.Os Terena pertencem ao povo Aruak e vieram pelo alto Rio Negro, sendoque as hipóteses levantadas sobre sua origem são de que par ram dasplanícies colombianas e venezuelanas. Recentemente, surgiu a hipóteseda origem no Equador. Da mesma forma que outros grupos, os Terenaentraram no território sul-matogrossense a par r do século XVIII.

Estão atualmente assentados em doze reservas num total de cercade dezenove mil e dezessete hectares de terra, localizados sobretudo naBacia do Rio Miranda. Existe também um con ngente vivendo em fazen-das e na cidade, denominados desaldeados numa aldeia urbana, em Cam-po Grande, chamada Conjunto Marçal de Souza (Cabrera, 2006).

Todas as comunidades Terena são semelhantes nos aspectos econô-mico, polí co e cultural, sendo que cada aldeia possui uma organizaçãocom uma polí ca própria, ou seja, possui um Cacique (chamado de ca-pitão pelos índios), que, através de votação, é eleito, tendo como funçãodefender os direitos da comunidade, como, por exemplo, reunir homens

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de cada família para discu r assuntos e problemas do grupo numa espéciede conselho.

A comunidade da aldeia Bananal, onde realizamos atualmente nos-

sas pesquisas, ca a 75 km do Município de Aquidauana, na região Oestede Mato Grosso do Sul. Na aldeia, o ponto de referência é a Escola Ge-neral Rondon, de ensino fundamental, localizada no centro ao lado doposto indígena PIKIHI(um dos fundadores da aldeia Bananal). Foi criadatambém outra escola de segundo grau, que serve aos Terena e moradoresnão índios da região. Os Terena consideram muito importante preparar os jovens para serem independentes, mas valorizando a sua iden dade, suacultura e língua materna. Algumas comunidades Terena estão perdendorapidamente ou já perderam o uso da sua língua.

Um elemento relevante para desenvolvermos uma proposta de pes-quisa na área de psicologia social e iden cação do Terena como um povoligado à agricultura, de índole pací ca, muitas vezes subme dos por ou-tras nações e aceitando com facilidade as regras do dominador. Tal fatoé apontado como causa da eventual transformação do grupo, apesar deindicações de que os Terena ainda são capazes de manter elementos cul-turais profundos que lhes dão coesão (Mangolim, 1999).

No nal da década de 90, este quadro começou a se transformarcom os movimentos polí cos envolvendo a retomada de terras que per-tenciam no passado aos Terena, além de outras reivindicações na área deeducação e saúde.

Sempre demonstraram disposição para contatos pací cos com a po-pulação da região, par cipando da comercialização de produtos agrícolas,principalmente milho, mandioca, batata-doce, abóbora, etc. Também noartesanato trabalham com a cerâmica, basicamente a vidade feminina,

cando para os homens a cestaria, caça e pesca. Atualmente, observou-seque sua aproximação com os moradores das regiões onde estão assenta-dos é cada vez maior buscando trabalho na comunidade e cidades.

Embora haja uma tenta va de resgate cultural através do ensino dalíngua Terena nas escolas das aldeias (bem como em muitas outras aldeiasdo país), este resgate, na maioria das vezes, não se torna e caz à medidaque seu foco se restringe às crianças e aos adolescentes estudantes.

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Grubits, S. (2015). Comunidades indígenas nas áreas rurais de Mato Grosso do Sul

Diferente do que percebemos em outros grupos, veri camos aquique a escola tem assumido o papel de socializador e transmissor cultu-ral na comunidade estudada, papel que a família deveria desempenhar,mas que se perdeu de forma mais evidente na transição da geração dosatuais avós para a geração dos atuais pais. As crianças conhecem de suacultura pouco mais do que aprendem na escola, o que nos faz pensar nanecessidade de um resgate em conjunto, para que em futuras geraçõescertos hábitos e costumes Terena sejam algo corriqueiro, mas consciente(Cabrera, 2006).

Contribuição dos estudos com desenhos

Não poderíamos deixa de enfa zar a grande contribuição dos estu-dos de desenhos de crianças e jovens das três etnias para o conhecimen-to e análise da situação social, psicológica, cultural e ambiental dos trêsgrupos.

Iden camos muitas semelhanças entre as crianças das três etniasestudadas, no que concerne a desenvolvimento mental e aspectos emo-cionais, na análise semió ca de trabalhos de expressão ar s ca, porém,notamos que o fenômeno construção iden dade se dá de forma diferenteentre os Guarani/Kaiowá, Kadiwéu e Terena.

As crianças Guarani/Kaiowá revelaram, na sua produção, um pontoem comum entre si. Uma trajetória na busca da iden dade semelhante,começando num con ito entre as duas culturas, isto é, Guarani/Kaiowá esociedade não índia, passando por momentos de representação muito in-dividualizada de suas casas, família ou pessoas signi ca vas, mas tambémcom indicadores altamente importantes para nossas conclusões e discus-sões, a busca por alguns da iden dade de indivíduos da cidade.

As crianças Kadiwéu, do grupo estudado, por outro lado, represen-tam, desde seus primeiros trabalhos, sua própria cultura, ambiente, rela-ção com a ora, a fauna, sendo que seus signos e signi cados têm umagrande homogeneidade.

Quanto aos Terena, sempre indicaram nos seus trabalhos a proxi-midade da sociedade nacional, o que corresponde ao que já vem sendo

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observado com a frequência dos Terena nas universidades, trabalho nosórgãos públicos, principalmente FUNAI, entre outros.

Procuramos então analisar alguns dados culturais, ambientais ou

mesmo populacionais ou de localização, que, juntamente com a produ-ção das crianças estudadas, podem indicar os fatores importantes paraa diferença na trajetória das populações infan s na con guração de suasrespec vas iden dades. Os detalhes dos referidos estudos com criançasGuarani/Kaiowá e Kadiwéu estão na obra de Grubits e Darrault-Harris(2009). Iden té et representa on; Céa ons plas que des Guarani et desKadiwéu du Br ésil . Quanto aos desenhos Terena, estão no ar go a expres-são da cultura nos desenhos de crianças Kadiwéu e Terena, de Grubits eSordi, aguardando avaliação.

Considerações nais

Os Kadiwéu são muito diferentes dos Guarani/Kaiowá no tocante àhistória, hábitos, uso do espaço e relação com a natureza. Cabe uma com-paração e uma re exão sobre a produção ar s ca das crianças das duasreservas, para entender a construção e busca da iden dade dessas naçõesnos seus respec vos contextos ambientais, socioeconômicos e culturais.

Enquanto os Guarani/Kaiowá, na sua produção ar s ca, revela gran-de in uência da sociedade nacional, além da sua própria cultura, o grupoKadiwéu, diferentemente, evidenciou uma trajetória homogênea, apenascom representações da natureza e cultura Kadiwéu, desde o início dasa vidades de expressão ar s ca.

Os Guarani/Kaiowá representam principalmente o céu, as águase a ora. Quanto aos Kadiwéu, toda a produção infan l, desenhos, pintu-ras, modelagens, até agora analisados, simbolizam o ambiente natural,

ora e fauna, com intensidade de cores diversi cadas e a cerâmica, co-nhecida e divulgada nos meios acadêmicos e mesmo na mídia nacional einternacional.

Ressaltamos aqui a hipótese de que a cor, os desenhos e os objetosda cerâmica, trabalhos em couro e desenhos corporais cons tuem umaverdadeira marca, ou signo Kadiwéu, acompanhando a construção da

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Grubits, S. (2015). Comunidades indígenas nas áreas rurais de Mato Grosso do Sul

iden dade deste povo, presente em diferentes formas, não só nos traba-lhos infan s, como na decoração da fachada da escola, camiseta dos alu-nos e mesmo já difundidos por todo o Estado de Mato Grosso do Sul, nãosó os desenhos e pinturas, como também os nomes Kadiwéu e Guaicuru,denominação dada ao grupo na guerra.

Tais fatos apontam para a exuberância e o potencial da referida cul-tura e, portanto, sua in uência determinante na autoes ma deste povo ede sua população infan l.

A mulher Guarani/Kaiowá revela uma tendência para assumir o pa-pel de guardiã da cultura, permanecendo na reserva, representando acosmologia Guarani, buscando a iden cação com sua etnia, enquanto oshomens, saindo da reserva para procurar trabalho e meio de sobrevivên-cia, vão construindo uma iden dade de homem da cidade, conforme ostrabalhos de expressão ar s ca das crianças.

Nas representações das crianças Kadiwéu, percebemos que todosvão con gurando a iden dade de acordo com a etnia, todavia re etem adivisão do masculino e feminino segundo a cultura, os homens caçadores,cuidando do gado, as mulheres como ceramistas, conforme seus dese-nhos e demais a vidades ar s cas.

Os dois quadros abaixo indicam pontos importantes de cada etnia,mostrando especi cidades tanto no ambiente como no desenvolvimen-to de cada grupo de um modo geral. No primeiro quadro, apresentamosdados sobre ambiente, aspecto socioeconômico e cultural. No segundo,aparece o que foi revelado nos três estudos anteriores com desenhos.

Quadro 1

Etnias Guarani/Kaiowá Kadiwéu Terena

Área Ocupada 3.594 ha. 380.000.000 ha. 6334 ha.

PopulaçãoAproximada 12000 habitantes 2008 habitantes 4600 habitantes

Distância dacidade mais

próxima

Periferia da cidadede Dourados 48 km 75 km

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Psicologia social e os atuais desafos é co-polí cos no Brasil

Acesso à cidademais próxima

Está na periferia dacidade Di cil Fácil

A vidadestradicionais Agricultura Pecuária, caça,

pesca e cerâmica Agricultura

Meio ambiente

Vegetação decerrado, com

poucos recursosambientais

Mata atlân ca,com fauna ora eáguas abundantes

e preservadas

Vegetação decerrado, comcaracterís cas

dascomunidades

rurais do estado

Fatos maisdivulgados na

mídia

Suicídios de jovens

e violência

Cerâmicaconhecida

mundialmente,preservaçãoambiental

Atuação poli cae inserção na

sociedade nãoíndia

Cabe ressaltar também que, nas pesquisas, a Semió ca vem nos pro-piciando um recurso de análise da trajetória das referidas crianças, quenos conduziu a importantes conclusões sobre todo o processo proposto enossas técnicas. Avaliamos produções ar s cas, empregamos técnicas ex-pressivas, observamos comportamentos, gestos, mímicas, verbalizações,

ou seja, a Semió ca na Psicologia ou Psicossemió ca.Quadro 2

Etnias Guarani/Kaiowá Kadiwéu Terena

Contato com acidade

Frequente Escasso Frequente

Meios decomunicação Presentes

Razoáveis, apesar deeventuais di culdades

pela localização

Presentes

Representaçõesmais frequentes

nos desenhosinfan s

Ora daimportânciada cultura ecosmologia

guarani, ora doambiente da

cidade

Flora, fauna, ambienteda aldeia e cerâmica

Cidade easpectos

semelhantesaos desenhos

de crianças dascomunidades

rurais.

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Grubits, S. (2015). Comunidades indígenas nas áreas rurais de Mato Grosso do Sul

Cores Variadas

Muito intensas, comin uência dos traçadose cores das cerâmicasprincipalmente nos

desenhos das meninas

Variadas

A vidadestradicionais Agricultura Pecuária, caça, pesca e

cerâmica Agricultura

Tendências

Ora iden dadeindígena, ora

iden dade nãoíndia

Iden dade KadiwéuIden dade

indígena emtransformação

Nas conclusões referentes às inves gações com as crianças Guarani/Kaiowá, um fato relevante, percebido no nal de nossas análises semió -cas, a questão de iden dades opostas, isto é, ora de um indivíduo da cida-de, ora de um indivíduo Guarani/Kaiowá, na linguagem semió ca, algunsquerem, podem e sabem ser Guarani/Kaiowá, outros querem, podem esabem ser indivíduos da cidade.

Em relação aos Kadiwéu, sem con itos ou divergências, individual-mente ou em grupo, con guram a iden dade de sua própria etnia. Os

Terena passam por transformações, buscando contato cada vez mais fre-quente com os não índios.

Referências

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Psicologia social e os atuais desafos é co-polí cos no Brasil

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Reestruturação produ va à brasileira: as condiçõesconcretas de vida dos trabalhadores

Odair Furtado

Já se passaram 40 anos do início do que se convencionou chamarde 3ª Revolução Industrial. Sabemos todos que não há uma data inaugu-ral e que os 40 anos mencionados representam apenas uma maneira dedimensionarmos o tempo percorrido até os dias de hoje pela prá ca dareestruturação produ va. Sabemos também que o santo desse milagrefoi a automação e que, até que a humanidade invente uma nova formade processar informações, esta será a dinâmica do processo produ vo porum bom tempo.

O impacto da automação na linha de produção tornou o chão defábrica uma estrutura maleável, exibilizando o processo produ vo e exi-gindo uma administração mais dinâmica desse processo. Máquinas maisinteligentes e menores subs tuem o trabalhador nas operações da manu-fatura em todos os setores e passam a exigir dele uma nova quali cação.

Tal processo ocorre inicialmente nos países mais ricos, mas paula namen-te a nge todos os países industrializados do planeta. Cria novos nichosprodu vos em países com pouca tradição industrial, desestabiliza outros,fortalece outros mais que já apresentavam infraestrutura desejável. Doponto de vista geopolí co, vimos o grupo dos oito países mais ricos setransformar em sete, com a saída da Rússia, e o crescimento da Chinatransformando-se na segunda economia do mundo. Vimos também ade nição de um clube mais amplo, que inclui países que ingressaram nocircuito produ vo mundial: o clube dos vinte 1. O acrônimo BRIC (Brasil,Rússia, Índia e China) representa a composição de países que ganharamexpressão econômica no circuito produ vo como grandes produtores eexportadores/importadores.1 O circuito produ vo mundial, na verdade, a nge pra camente a totalidade dos países do

planeta. Se não produzem artefatos industrializados, consomem esses artefatos e fornecemmatéria-prima. Estamos nos referindo, neste caso, aos 20 países mais industrializados e como maior PIB que foram incluídos na agenda das decisões da economia mundial, mas, mesmoassim, marginalmente ao grupo dos sete.

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Retratando dessa forma a reestruturação produ va, temos a im-pressão de que se trata de um processo elaborado e organizado pelomundo capitalista de maneira planejada e e ciente, mas a famosa frasede Marx & Engels no Manifesto Comunista “tudo o que é sólido desman-cha no ar” nunca esteve tão atual. No nal da década de 1970, temos oinício de um período de crises econômicas que perduram até o presentemomento e se tornam mais agudas, complexas e fortes. A mais recentetem início em 2008, a nge o coração do capital e o mundo não conseguiusuperá-la até o presente momento. Vive-se no ano de 2015 um estadorecessivo mundial com um crescimento vegeta vo na Europa ocidental eEUA e somente a China escapa de tal condição, mesmo assim, diminuin-do seu ritmo de crescimento.

A própria China representa um paradoxo nessa história. Um paíscomunista, considerado por muitos analistas marxistas como um país decapitalismo de estado ou, como aponta Mészáros, como economia pós--capitalista, que se abre para o mercado, se industrializa de forma impres-sionante e atrai a produção dos países ricos com a oferta do baixo custoda mão-de-obra. Nesse sistema híbrido que associa o controle centrali-zado da economia com a livre inicia va, produz milionários chineses danoite para o dia (no período de de nição do modelo) e vai cons tuindouma classe média consumidora. Para alguns, um modelo de transição docapitalismo para o socialismo e, para outros, a derrocada de um projetoque sucumbiu ao mercado.

Essa breve introdução serve para dizer que o desenvolvimento docapitalismo não é promissor, como imaginavam os promotores do Con-senso de Washington, em 1989, época em que o neoliberalismo ganhaforça e se torna hegemônico entre os economistas burgueses. Passa a sera tábua de salvação da economia mundial e é adotado pelas maiores eco-nomias como alterna va de crescimento. A pedra de toque é a diminuiçãode estado e essa polí ca joga uma pá de cal no welfare state. Somam-seao que era preconizado pela nova organização das relações de trabalhoe suas reengenharias exibilização de contratos, desregulamentação dedireitos trabalhistas, como se fossem irmãos siameses. Evidentemente,são fatores históricos que produzem essa combinação, na medida em quea reestruturação produ va era exigência tecnológica e o neoliberalismo,a reorganização do capitalismo para enfrentar suas crises. Mas como se

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deram bem essas estratégias, como fossem feitas uma para a outra. O mo-delo toyo sta de administração da produção e das relações de trabalhonavegou com tranquilidade na desregulamentação dos direitos trabalhis-tas como maneira de impor a exibilização do trabalho dos operários nalinha de produção.

Um dos elementos intrínsecos do toyo smo é a rapidez do sistemaprodu vo e a diminuição da planta industrial. Fazer mais em menos tem-po em espaços reduzidos. Essa nova estratégia permite a recon guraçãodo chão de fábrica para se adaptar à demanda do mercado. O resultadodisso é ter uma planta que possa se ampliar ou diminuir conforme o quese está produzindo num determinado momento. Por exemplo, a GM deSão José dos Campos trabalhava, no nal da década de 1990, com a pro-

dução do modelo Corsa, mas se fosse necessário, passava a produzir caixade câmbio para exportar para o mercado alemão (para a fábrica alemã daGM). Os operários deveriam ter a quali cação necessária para passar deuma linha de produção para a outra e a planta da fábrica ter as condiçõesde adaptação rápida de um produto para o outro. A decisão estratégicaobedecia à mundialização da produção dessa montadora e ao mercado.Se es vesse sobrando Corsa, entrava a produção de caixa de câmbio, e seo mercado estabilizava, voltava-se à produção do automóvel. Para tanto,operários metalúrgicos, antes superespecializados, agora devem ter habi-lidades exíveis que permitam o remanejamento sem demissões e novascontratações. Mesmo assim, alguns não seriam aproveitados na produçãode caixa de câmbio e, neste caso, o ideal para a montadora seria a suadispensa temporária, com suspensão dos salários, para que retornassemmais adiante. A tecnologia possibilita a mudança da planta com e ciênciae rapidez e a polí ca neoliberal desregulamenta os contratos de trabalho.

Esta pauta permanece viva até o presente momento e está sendodiscu da no Congresso Brasileiro enquanto este texto está sendo escrito.

Quando recortamos planos e estratégias de sobrevivência do capi-tal, corremos o risco de perder o que de ne sua essência e que é a basede sua estrutura. Desde a análise que Marx faz nos Manuscritos econômi -cos e losó cos (1844/2008), passando pelo Para a crí ca da economia polí ca (1858/1982) e chegando ao O Capital (1867/2013), sabemos queo capitalismo promove uma inversão na relação de produção-consumo,rompendo com o processo dialé co e centrando sua lógica no consumo

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e descolando a noção de produção de riqueza da relação trabalho-produ-ção. Mészáros (2002) assim se refere a tal relação, quando aponta que ahumanidade passou a ver na riqueza a nalidade da produção:

Para tornar a produção da riqueza a nalidade da humanidade, foi neces-sário separar o valor de uso do valor de troca, sob a supremacia do úl mo.Esta caracterís ca, na verdade, foi um dos grandes segredos do sucessoda dinâmica do capital, já que as limitações das necessidades dadas nãotolhiam seu desenvolvimento. O capital estava orientado para a produção ea reprodução ampliada do valor de troca e, portanto, poderia se adiantar àdemanda existente por uma extensão signi ca va e agir como um es mulopoderoso para ela. (p. 606)

E conclui, mais adiante:

Esta é a verdade ni damente óbvia que, contudo, é completamente (e con-venientemente) ignorada pelos apologistas do sistema do capital. Pois estesistema não pode controlar como sucesso o sociometabolismo a menosque torne permanentes todas aquelas separações ar ciais que cons tuemos pressupostos necessários do seu próprio modus operandi , postulando--os como determinações que emanam da própria e inalterável “ naturezahumana ”. (p. 608)

Ora, não poderíamos esperar nada mais da reestruturação produ vae de sua associação ao neoliberalismo do que mais do mesmo e, no caso,muito mais do mesmo. A lógica permanece intacta e permanecerá até asua exaustão. E essa é a questão! Não se produz hoje com o obje vo deatender à demanda da humanidade, às suas necessidades, mas à deman-da do próprio capital de garan r a sua mul plicação. Tudo é transformadoem mercadoria e tem seu preço. Desde a força de trabalho que desuma-niza trabalhadores aos produtos de arte, que geralmente são produzidosartesanalmente, nada escapa da lógica impera va da mercadoria. As ne-cessidades são produzidas ar cialmente e naturalizadas, como apontouMészáros acima, e nada ou ninguém escapa do circuito da produção deriqueza.

Alguns analistas estão demonstrando que a distribuição de riquezano mundo, a jus ca va dos economistas burgueses para esse sistemade exploração, vem, na realidade, acentuando a diferença entre pobres ericos. Assim, o suposto pilar da produção de mais igualdade, na lógica da

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produção de riqueza, não é mais que a possibilidade de maior acúmulode capital na mão dos ricos. É o que defende Thomas Pike y (2014a;2014b) e François Bourguignon (2015) que destacam com muita clarezae informações precisas os fatores de crescimento da renda do segmentomais rico nos países da Europa ocidental e EUA.

Bourguignon (2015) fala do processo de globalização que inter-nacionaliza de ni vamente o capital, inclusive chegando agora à Áfri-ca, como é o caso da exploração do petróleo em Angola, do processodesigual e assimétrico da expressão do desenvolvimento capitalista deregião a região, discu ndo a crise dos países da América La na na cha-mada década perdida de 1980 e do crescimento, com as mesmas carac-terís cas, depois de 1990 e como essa assimetria a nge diferentes paísesno mundo. Desse modo, apesar da pobreza ter diminuído mundialmentea par r de 1990, a desigualdade aumentou. Pobres menos pobres, masainda pobres.

Ao mesmo tempo, o processo desigual de desenvolvimento e o es-garçamento das fronteiras promovem mobilidade que levam legiões detrabalhadores a buscar alterna vas de trabalho nos países vizinhos. Algu-mas vezes mo vados pelas oportunidades de trabalho e outras pela fugados con itos locais, como está ocorrendo na Síria e zonas de con itos

étnicos na África subsaariana.Na América do Sul e par cularmente no Brasil, o foco é o cresci-

mento e o grande problema é a pobreza de nossa população. O Brasil éum caso crônico com um con ngente insuportável de pessoas pobres. 2 O esforço realizado nos úl mos anos é louvável e rou o Brasil doMapada Fome elaborado pela ONU. Tarefa fundamental e importante que, narealidade, aponta para sua próxima etapa, que é a busca da equidade derenda. Entretanto, o Brasil não está fora do circuito mundial e vive sob a

2 De acordo com no cia publicada pelo jornal Folha de São Paulo de 24/09/2015, o BancoMundial altera o padrão de renda mínima conhecido como paridade do poder de comprade US$ 1,25 para US$ 1,90. Quando foi lançado em 1990, esse valor era de UD$ 1 ao dia.Considerando o câmbio atual, esse valor no Brasil passa a aproximadamente R$ 8,00. Umapessoa será considerada abaixo da linha da pobreza se ver rendimento mensal menor queR$ 240,00. Acrescenta que o obje vo do Banco Mundial é a erradicação da extrema pobrezaem todo o mundo até 2030. Ainda segundo o Banco Mundial, divulgado pelo jornal El Pais em 23/04/2015, o Brasil pra camente erradicou a extrema pobreza entre 2001 a 2013, pas-sando de 10% a 4% da população nesta condição.

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mesma lógica do que Mészáros (par ndo de Marx) chama de produção deriqueza. Assim, neste período de diminuição importante do con ngentede pessoas abaixo da linha da pobreza e com possibilidade de erradicaçãototal da miséria, a concentração de renda cresceu no Brasil. ConformeMedeiros, Souza e Castro (2014), a concentração de renda entre os maisricos passou de 40% a 44% de 2006 a 2012. Exatamente o período emque aumentou o rendimento dos mais pobres. Por esse estudo, 5% dosmais ricos detêm 44% da renda, 1% mais rico ca com 25% e o 0,1% cacom 11% da renda. A renda anual desses segmentos é a par r de R$ 57,6mil para a faixa dos 5% mais ricos, R$ 203,1 mil para 1% e R$ 871,7 milpara o 0,1%. Notem que são consideradas ricas as pessoas que têm rendamensal acima de 5 mil reais, equivalente, na época, a 8 salários-mínimos.

Completando tais informações, o Datafolha, do Jornal Folha de São Paulo,em novembro de 2013 publica uma pesquisa na qual revela que 66% dasfamílias brasileiras têm renda mensal abaixo de R$ 2.034,00, sendo que46% recebem até R$ 1.356,00.

Não é necessário fazer a decupagem dos 46% mais pobres. A pirâ-mide cresce em direção à base. Estamos falando de um pouco mais de 26milhões de famílias, segundo o Censo de 2010, e de uma renda familiarque equivale a um salário mínimo e meio. Considerando três pessoas porfamília, teremos uma renda per capita de R$ 452,00 reais no limite supe-rior do segmento mais pobre. Dessas famílias, 13 milhões são atendidaspelo Programa Bolsa Família e dependem do referido rendimento paraescapar da faixa da miséria absoluta.

O quadro é desolador e ao mesmo tempo é possível vislumbrar queo Brasil encontrou um caminho para a sua superação, ainda que de for-ma lenta e gradual. No momento em que este texto está sendo escrito,vivemos uma crise que irá derrubar em parte os índices de diminuiçãoda desigualdade social, mas acreditando que o processo desencadeado éirreversível e a crise passageira.

O quadro aponta para a inadequação de chamarmos o con ngen-te de pessoas que submergem da linha da pobreza de classe média ounova classe média brasileira. Márcio Pochmann (2012; 2014) e Jessé deSouza (2010) demonstraram e analisaram o fenômeno, evidenciando queestamos falando de classe trabalhadora e que a segmentação dos traba-lhadores por extrato de renda, considerando o rendimento médio como

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rendimento de classe média, é uma abstração. A classe média, do pontode vista de uma divisão de classes, 3 encontra-se no segmento superior dapirâmide entre os 5% mais ricos ou, por outro critério, entre os 13% dasfamílias com rendimento entre R$ 3.390,00 e R$ 13.560,00. Um corte queconta com certa aleatoriedade frente a uma realidade cruel da distribui-ção do rendimento.

Nas palavras de Pochmann (2014), a questão acima é assim apre-sentada:

Tal como observado nos países de capitalismo avançado no segundo pós--guerra, parcela importante da classe trabalhadora foi incorporada noconsumo de bens duráveis, como televisão, fogão, geladeira, aparelho desom, computador, entre outros. Esse importante movimento social não seconverteu, contudo, na cons tuição de uma nova classe social, tampoucopermite que se enquadrem os novos consumidores no segmento de classemédia.

Trata-se, fundamentalmente, da recomposição da classe trabalhadora emnovas bases de consumo. (p. 71)

Qual a possível conclusão a par r das condições exibidas? Somosum país com população pobre que é a sé ma economia do planeta 4. Aperspec va de mudança com o incremento da renda dos trabalhadoresbrasileiros esbarra no nosso mercado de trabalho que é altamente pre-cário, com uma produção de baixa qualidade. Estudos como o organizadopor Ricardo Antunes e Maria A. Silva (2004), Antunes (2006) e a análisede Ruy Braga (2012) sobre a polí ca do precariado (termo que une prole-tariado à precarização) buscam demonstrar essa condição. O economistaGustavo Gonzaga (1998) assim de niu o trabalho precário:

Em geral, caracteriza-se um emprego como de má qualidade quando ele

tem baixa produ vidade e, portanto, oferece baixa remuneração. Além dis-so, em geral, maus empregos também tendem a oferecer péssimas condi-ções de trabalho a seus ocupantes. (p. 121)

3 Evidentemente sabemos que não é adequado estabelecer esse padrão para uma análise quetenha como critério as classes sociais, mas cedemos a um po de estra cação comum emuito difundida para tentar superar o equívoco das análises que se u lizam desse úl mocritério.

4 Talvez oitava ou nona com a atual desvalorização do dólar, mesmo assim, ainda é muita coisa.

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Bem, não precisamos ir muito adiante para relacionar a precarie-dade do mercado de trabalho brasileiro com o baixo nível de rendimentodos nossos trabalhadores e a uma industrialização que está hoje por voltade 13% do PIB e já foi 25% na década de 1980. Dessa forma, vivemos umprocesso de desindustrialização, que pode representar ajustamento como ingresso de novas tecnologias (como vem ocorrendo no mundo indus-trializado) e o crescimento do setor agrário e do setor de serviço.

Aprofundando tais dados, o portal Plataforma Polí ca Social divulgaar go de Clemente Ganz Lúcio (2014), diretor técnico do DIEESE, ressal-tando que a divisão por setor de a vidade no Brasil estava, em 2013, divi-dida percentualmente da seguinte maneira:

Agropecuária 14,2%Indústria 13,5%Construção Civil 9,2%Comércio e reparação de veículos 17,8%Serviços 45,3%

São 96 milhões de trabalhadores ocupados e, desses, 83 milhões ema vidades urbanas, sendo 44 milhões no setor de serviços. Nas a vidadesurbanas e não agrícolas, o setor de serviços representa 53% dos postosde trabalho.

Ademais, quando veri camos a divisão por seguimento dos traba-lhadores ocupados, temos o seguinte quadro:

Trabalhadores assalariados com carteira assinada 40,2%

Servidores públicos e militares 7,4%Assalariados sem registro em carteira 14,7%Empregados domés cos 6,7%Autônomos e trabalhadores por conta própria 20,7%Autoconsumo ou não remunerados 6,5%Empregadores 3,8%

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Os trabalhadores formais (empregados com carteira assinada, tra-balhadores por conta própria e pequenos empregadores) signi cavam60,3% da força de trabalho ocupada.

O quadro mostra que o Brasil melhora quando se trata da formali-zação do mercado de trabalho, mas ainda enfrentamos enormes di cul-dades e fragilidades. Representamos um elo da cadeia produ va mundiale estamos num segmento intermediário da reprodução das relações deprodução. Com algumas exceções, não somos polo de desenvolvimentotecnológico e nossa cadeia produ va agrega pouco valor.

Não obstante, pesquisadores, como é o caso de Márcia de PaulaLeite (2003), já demonstraram com muita precisão que a reestruturação

produ va não veio para melhorar a vida dos trabalhadores. A rma a au-tora que, nas empresas líderes do processo, as condições tecnológicas,de fato, apresentam condições mais favoráveis de trabalho (para os que

caram), mas a terceirização e o redimensionamento da cadeia produ vaaumentam a pressão, o ritmo e degradam as condições de trabalho, quesão acompanhadas da desregulamentação dos direitos trabalhistas coma desculpa da adequação a novas demandas do processo produ vo. Diza autora comentando a ocorrência do fenômeno na sua escala mundial:

Neste sen do, essas tendências vêm impondo uma dinâmica ao mercadode trabalho em seu conjunto em que o trabalho tem se tornado cada vezmais escasso na ponta virtuosa, de onde vem sendo expulso, para se ex - pandir para a ponta precária . Elas são, portanto, responsáveis por váriosaspectos da precarização do trabalho que impera nos elos mais frágeis dascadeias produ vas: aumento do trabalho informal, a expansão do trabalhopor tempo determinado e em tempo parcial, a difusão dos baixos salários.(p. 57)

O setor de serviços, que em países avançados cresce em função dodeslocamento da produção industrial para países com força de trabalhomais barata (China, Taiwan, Índia, Singapura, México, Brasil, entre outros),aqui se apresenta com um misto de atendimento às exigências do seg-mento mais privilegiado da população, que demanda serviços que anteseram realizados no lar (comida pronta, lavanderias, pequenos reparos) eque agora contam com serviços especializados do sistema bancário mo-derno e informa zado à terceirização de serviços nas empresas. Parte do

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setor abriga trabalhadores não especializados, embora alguns segmentosdeste setor sejam muito so s cados tecnologicamente.

O setor abriga desde as telecomunicações, serviços de informá ca,

agências de no cias e serviços audiovisuais, que incluem as redes de TV.Também inclui toda a hotelaria, a alimentação e a vidades recrea vas eculturais, todo o setor de transporte (de carga, metroviário, ferroviário,rodoviário de passageiros e de carga, o aquá co e o aéreo). Além disso,nele está o maior empregador do país: os Correios. Aí se encontram osserviços de vigilância, segurança, transporte de valores, limpeza em pré-dios e domicílios, agenciamento e locação de mão-de-obra temporária, asincorporadoras de imóveis e imobiliárias, aluguel de veículos, manuten-ção de veículos, manutenção em geral, limpeza urbana, serviços gerais demanutenção e corretagem de seguros e previdência privada.

O setor se especializou em oferecer serviços para a terceirização dasa vidades dos outros setores e os serviços de limpeza são os mais deman-dados.

Nosso maior empregador privado no momento é o Grupo Pão deAçúcar, que reúne o supermercado e a rede de varejo de móveis e eletro-domés cos, com cerca de 160 mil trabalhadores. A rede Walmart tem porvolta de 75 mil e o Carrefour, 70 mil. Há pouco tempo estava nesta listaa rede de fast food MacDonald’s. Entre público e privado, o maior em-pregador é a Empresa de Correios e Telégrafos. Faz parte da lista o grupofrigorí co JBS.5

Então, temos uma massa de trabalhadores com baixa remuneração,uma oferta de postos de trabalho que não são so s cados o su cientepara demandar trabalhadores quali cados, uma economia atraente parao capital internacional que se sa sfaz com os aproximadamente 30 mi-lhões de consumidores com maior potencial de consumo (a parte de cimada pirâmide) e explora a parte de baixo dessa pirâmide com trabalho de-gradante.

5 Se compararmos a olho nu os maiores empregadores dos EUA e os brasileiros, aparentemen-te há uma tendência semelhante. Os maiores lá estão representados pelas Forças Armadas,pelo Walmart etc. Ocorre que nos EUA a produção industrial está em parte realocada emoutros países, mas os royal es são carreados para lá sustentando um setor de serviços quechega a 80% do PIB. Vive-se bem às custas da exploração dos proletários de todo o planeta.Os países ricos e produtores de tecnologia seguem em menor escala essa lógica.

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Por m, para encerrar esse momento da análise, uma pequena di-gressão sobre a educação no Brasil. Há um mantra entoado pelos liberaisem todo o mundo e, evidentemente, também aqui entre nós: o da neces-sidade de garan r formação aos nossos trabalhadores. Evidentemente,a defesa de uma educação pública de qualidade, universal e equita va,que contribua na construção da cidadania, é reivindicação dos trabalha-dores e de todo o setor progressista da sociedade. Entretanto, não é essaa base da crí ca liberal, iniciando com o seu interesse pela priva zaçãodo ensino.

O que almejam os liberais? Uma mão-de-obra quali cada para ocu-par os postos de trabalho mais especializados. Frequentemente vemosa imprensa especializada repercu r a falta dessa mão-de-obra e a even-tual importação de técnicos para supri-la (desde que não sejam médicoscubanos).

Ocorre que tal expecta va não coincide com a demanda. Hoje te-mos o Ensino Fundamental universalizado, 98% das nossas crianças estãomatriculadas no primeiro ciclo do EF. Porém, temos uma perda importan-te e somente 54% concluíram o Ensino Médio até 2013, de acordo com oPlano Nacional de Educação (MEC). Na universidade, essa quebra é maiorainda e nossa taxa líquida de matrículas no ensino superior não chega

a 17%.6

O que ocorre com esse enorme con ngente de estudantes queabandonam a possibilidade de maior quali cação e melhores empregos?Agregue nessa análise o fato de que o ensino fundamental e médio épredominantemente público e o superior é predominantemente privado.

Acontece que o segmento pobre, os 26 milhões de famílias quemencionamos acima, não pode esperar o tempo exigido para a sua qua-li cação. Abandona a escola para trabalhar e isso se dá desde o térmi-no do primeiro ciclo do EF, quando tais crianças estão com 10 anos e

se acentua até o nono ano quando ela, caso não tenha sido re da emnenhuma série, deverá estar com 15. Evidentemente, essa quebra não éigual em todos os estados do país. Os 46% da média nacional se expres-sam no Estado de São Paulo através de uma taxa próxima dos 70%.

6 Taxa bruta considera todos os matriculados, independente da idade, e a líquida, somente osque estão entre 18 e 24 anos, a idade considerada padrão internacionalmente para o estudouniversitário.

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Provavelmente, do ponto de vista dos nossos liberais, os pobresabandonam a escola por não gostarem de estudar, mas a realidade éoutra. Em primeiro lugar, a exigência impera va da sobrevivência e asfamílias suportam seus lhos na escola (inclusive com a boa exigênciado bene cio da bolsa família nesse sen do) até o momento em que elesganham autonomia. A par r desse momento, a busca por rendimento ocoloca no mercado de trabalho. Que mercado é esse? O mais desquali-

cado possível, geralmente informal, que não acrescenta nenhuma es-perança futura. Daí em diante, a escola passa a ser um fardo! É precisoreconhecer que o esforço pela universalização do ensino fundamental,e mais recentemente do ensino médio (há expecta va de universalizá--lo nos próximos anos e a obrigatoriedade pode ser uma estratégia para

isso), somados à diminuição da pobreza, traz novas perspec vas para aatual geração de alunos destas séries. No entanto, os trabalhadores que já se encontram no mercado de trabalho viveram uma outra realidade.

Para estes, o abandono dos bancos escolares e o ingresso no mer-cado de trabalho eram uma condição naturalizada, havia expecta va comrelação a tal momento, tanto do estudante quanto da família. O momen-to em que a menina de 16 anos abandonava uma região na qual o maiorsalário, no único empregador da região – o mercadinho – não passava de

200 reais e ia para um centro urbano trabalhar como empregada domés-ca, dormindo no emprego. Seu salário, provavelmente de um e meiosalário mínimo, garan a seus interesses de consumo e a ajuda à família.O garoto de 12, 13 anos de idade passava a ajudar os pais na lida da agri-cultura familiar ou o pai pedreiro nas empreitadas nos bairros populares.Adultos compõem o con ngente mencionado por Chico Buarque em suamúsica e que são garçons, bilheteiros, babás, porteiros e que se viram tãobem que já nem se lembram do Brejo da Cruz.

Comparem essa condição com o fato de o setor de serviços repre-sentar os maiores empregadores e, nesse setor, o trabalho de faxina serum dos mais requisitados. Para um con ngente enorme de trabalhadores,basta a condição de ser alfabe zado. E mesmo assim, a leitura não é umacondição exigida no co diano do seu trabalho. Qual o retorno que a so-ciedade brasileira oferece a tais trabalhadores? Somente a desesperançade uma vida dura e sofrida em que se ganha o su ciente para se mantervivo e gerar lhos que serão outros trabalhadores em condição semelhan-

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te. Forma-se um círculo vicioso cruel que desanima professores, muitossem a formação necessária, e consolida a desesperança como dimensãosubje va para as nossas crianças e de suas famílias. Parte da jus ca vapara o analfabe smo funcional – o dos alfabe zados que perderam essahabilidade – vem dessa condição cruel. A falta de uma condição concretado uso da leitura no co diano, desde a condição precária de vida em suascasas e de postos de trabalho que não exigem essa habilidade, embrute-cem nossos trabalhadores. Ao contrário do que pensam os liberais, nãosão eles que não se preparam, é a condição de vida que lhes é impostaque rouba sua cidadania, sua esperança, sua vida.

Estamos estudando, no presente momento, com a contribuição deorientandos do mestrado e doutorado na PUC-SP, esse quadro de uma for-ma mais detalhada. Em um dos casos, estudantes de cursos de curta dura-ção, chamados de tecnológicos, com até dois anos de duração e, par cu-larmente, os direcionados à formação de técnicos para o setor de recursoshumanos das empresas. Bem, os jovens matriculados nos mencionadoscursos não se sentem em condição nanceira e intelectual (preparaçãopara enfrentar a grade curricular, dado o preparo ob do no ensino médio)para frequentar cursos pro ssionalizantes (com duração de quatro anos)e ao mesmo tempo querem chegar rapidamente ao mercado de trabalho.Além disso, conta o inves mento que precisam fazer para pagar o cursoque invariavelmente é oferecido pelo ensino privado. Sem escolha, aca-bam ingressando nesses cursos que não têm pres gio junto aos emprega-dores, que não oferecem chancela de curso universitário (eles não obtêmdiploma universitário), e assim trabalhando em postos menos exigentes.Na verdade, são ví mas de um mercado de vagas universitárias que buscapotencializar a ocupação de cadeira nas suas salas de aulas ociosas. É omercado aproveitando-se do jovem que escapou da pobreza, mas aindanão chegou lá.

Falando de forma mais especí ca do mercado de trabalho e da pre-cariedade das suas condições, vamos focar dois casos exemplares de al-terna vas oferecidas tanto aos jovens supracitados, quanto ao segmentomais pobre e que não conseguiu ir além do ensino fundamental.

Aqui podemos assinalar que tanto Antunes quanto Braga, nas obrascitadas, apontam o telemarke ng como trabalho de baixíssima qualidadee acrescento, a par r da pesquisa de mestrado de Rodrigues (2015), os

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trabalhadores no corte de cana. Tanto um caso como o outro são exem-plares quando falamos de baixos salários e de péssima qualidade do tra-balho executado.

A u lização dessas duas condições de trabalho, uma que se u -liza de tecnologia atual e outra que nos remete aos tempos coloniais,ao banguê descrito por José Lins do Rego, não se trata de coincidênciaou citação aleatória. Estamos falando de uma prá ca laboral, o corte decana, que pouco evoluiu desde os primeiros engenhos construídos noBrasil, e outra a vidade que cresceu enormemente depois da automaçãoda telefonia e o ingresso dos computadores nas mesas de trabalho dosoperadores desse sistema. Ambas exigem pouca quali cação dos seustrabalhadores. Os cortadores de cana precisam apenas dos seus corpose aprendem a a vidade na lida diária com os colegas mais experientese a evitar o acidente de trabalho conforme vão sofrendo os cortes e aslacerações em seus corpos.

São trabalhadores pobres e, no caso estudado por Rodrigues, vivemno norte do Paraná em cujo terreno acidentado e montanhoso não épossível a mecanização. Várias das pequenas cidades vivem da mono-cultura da cana-de-açúcar e outras, próximas, da plantação de moran-gos. Os trabalhadores se revezam, conforme a época da safra, entre uma

colheita e outra. Algumas vezes vêm para o Estado de São Paulo para acolheita de laranjas. São trabalhadores rudes, que trabalham duramentee enfrentam os riscos de uma a vidade brutal. São ví mas ora de cobrase outros animais peçonhentos que se abrigam nos canaviais, são ví masdos cortes produzidos pelas folhas duras e a adas depois da queimada,são contaminados pela fuligem dessas queimadas e são, por m, ví masde amputações graves quando escapa a ferramenta de corte. Trabalhamcom metas brutais e com quan dades de peso es madas pelas usinas.São descartáveis e, se não a ngem as metas, são demi dos ou traba-lham por tarefa e não são mais contratados. O transporte é precaríssimoe saem de casa em plena madrugada, percorrendo longas distâncias atéo local do corte.

Trabalho desumano! Um dos piores que se tem no cia e sobreviveatravés de uma lógica muito conhecida em nosso país. Por época da lutapela libertação dos escravos, os proprietários de terra (e de pessoas!)argumentavam que libertar os escravos signi caria colocá-los em con-

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dição de vida precária para viver por sua própria conta. A manutençãodo regime escravocrata era visto como benesse para homens e mulhe-res sequestrados e tra cados para cá para trabalhar ca vo. Agora, o ar-gumento para não mecanizar é o que acontecerá com pessoas que nãosabem fazer outra coisa se não cortar a cana. E numa região que não háoutra oportunidade de emprego, o que farão? O mesmo argumento e omesmo cinismo!

Os operadores de telemarke ng são jovens sem experiência nomundo do trabalho, que são treinados na situação de trabalho (passampor um “curso” de uma semana no qual são selecionados e aprendemo uso do gerundismo) e fazem uma ligação atrás da outra controladospelo cronômetro dos supervisores. Um trabalho extenuante, que exigehabilidade de quem frequentou bancos escolares ao menos até o EnsinoMédio. Eles fazem, como todos sabemos, vendas pelo telefone ou orien-tação aos consumidores. Geralmente ligam para um número de telefonecujo usuário foi localizado através de um cadastro bem orientado. Tem de12 a 30 segundos para descobrir se há possibilidade concreta de venda eganham comissão por venda efetuada. Assim, precisam de habilidade co-munica va, de convencimento para vender um serviço ou produto (comocartão de crédito) que o desavisado consumidor não está interessado.Ficam sentados por seis horas em frente a uma tela de computador comfone nos ouvidos. O controle é tanto que as visitas ao banheiro são limi-tadas na frequência e no tempo de permanência. Não é preciso ir longepara saber que infecções urinárias estão entre as intercorrências na saú-de desses trabalhadores.

Ricardo Antunes chama esse po de serviço de um produ vismo decunho fordista. Signi ca que se trata de uma a vidade na qual o corpo dotrabalhador, principalmente sua voz, e sua capacidade intelectual preci-sam operar a venda ou contornar a reclamação de um consumidor. O queproduz tensão é que o trabalhador tem sua a vidade laboral controladasegundo a segundo.

Finalizando, nosso obje vo foi o de discu r a reestruturação produ-va nas condições ocorridas no Brasil e que, evidentemente, está ainda

em processo. A tese defendida é que não podemos discu r a reestrutu-ração produ va sem considerar a realidade concreta das condições geraisde trabalho em nosso país e das condições sociais, das condições de clas-

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se e da exploração dos trabalhadores pela forma como se desenvolveu ocapitalismo aqui. Que historicamente nosso país faz parte de um circuitomundial de produção e de consumo, levando em conta seu tamanho e seudesenvolvimento, que o coloca em situação privilegiada do ponto de vistado capital, mas em condição precária quando se trata da condição de vidade nossos trabalhadores. Que não é possível falar de avanço tecnológicosem falar da condição de vida da população pobre e de sua condição detrabalho e sobrevivência. Os fenômenos – desenvolvimento tecnológicoe pobreza – estão entrelaçados e são dependentes. Do ponto de vista davida concreta, considerando a di culdade enfrentada pelos trabalhadoresno caminho de sua emancipação de classe, a alterna va imediata é alçara população pobre a uma condição melhor de trabalho e, quando anali-

samos tais condições, vemos que elas não contemplam uma vida dignacomo gostaríamos. Saímos da precariedade absoluta, da miséria, para aexploração de nossos corpos e de nossa subje vidade, mas com a com-placência do ingresso na possibilidade do consumo. Aqui Mészáros nosajuda a compreender o fenômeno que transforma a força de trabalho emmercadoria e conduz o trabalhador ao estranhamento do que ele pro-duz. Elabora-se o hiato necessário para a consumação da captura de nossasubje vidade e o resultado é o amortecimento da capacidade de crí caque nos submete, com laivos de felicidade, a uma exploração que nos en-

torpece, nos adoece, nos consome, mas garante os gadgets do momento.

Referências

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Sobre os autores

Aluisio Ferreira de Lima é doutor em Psicologia pela PontifíciaUniversidade Católica de São Paulo, com estágio pós-doutoral na mesmainstituição. É professor Adjunto IV do Departamento de Psicologia dodo Programa de pós-graduação em Psicologia da Universidade Federaldo Ceará.

E-mail:[email protected]

Alessandro de Oliveira dos Santos é doutor em Psicologia Escolar e doDesenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo. É professordo Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Ins tuto de Psi-cologia da Universidade de São Paulo.

E-mail:[email protected]árbara Eleonora Bezerra Cabral é doutora em Psicologia pela Universi-dade Federal do Espírito Santo e docente do Colegiado de Psicologia edos Programas de Residência Mul pro ssional da Universidade Federal

do Vale do São Francisco.E-mail:[email protected] Benedito Medrado é doutor em Psicologia Social pela PUC/SP. RealizouPós-doutorado em Antropologia pela Universidade Federal do Pará e emPsicologia social pela Universidad Autónoma de Barcelona - Espanha.Professor Associado do Departamento de Psicologia e do Programa dePós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco.

E-mail:[email protected] Bernardo Parodi Svartman é doutor em Psicologia Social e do Trabalhopela Universidade de São Paulo. Tem experiência docente na área dePsicologia com ênfase em Psicologia Social Comunitária e Psicologia doTrabalho.

E-mail:[email protected]

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Candida de Souza é doutoranda do Programa de Pós-Graduação emDesenvolvimento Humano e Saúde, Ins tuto de Psicologia – Universi-dade de Brasília.

E-mail:[email protected] Daniele Nunes Henrique Silva é doutora em Educação pela Universida-de Estadual de Campinas. Docente do Programa de Pós-Graduação emProcessos de Desenvolvimento Humano e Saúde e Departamento dePsicologia Escolar e Desenvolvimento da Universidade de Brasília.

E-mail:[email protected] Deborah Chris na Antunes é doutora em Filoso a pela Universidade Fe-deral de São Carlos. Atualmente é professora Adjunta de Psicologia So-cial da Universidade Federal do Ceará e professora permanente do Pro-grama de Pós-Graduação em Saúde da Família da mesma universidade.

E-mail:[email protected] Domenico Uhng Hur é doutor em Psicologia Social pelo Institutode Psicologia da Universidade de São Paulo e professor Adjunto doDepartamento e do Programa de Pós-graduação em Psicologia daUniversidade Federal de Goiás.

E-mail:[email protected] Esther Maria Magalhães Arantes é doutora em Educação pela BostonUniversity, com estágio pós-toutoral pela Universidade Federal do Riode Janeiro. É professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro ePon cia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

E-mail: [email protected] Lacerda Júnior é doutor em Psicologia pela Pon cia Univer-sidade Católica de Campinas e professor Adjunto da Faculdade de Edu-cação e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UniversidadeFederal de Goiás.

E-mail:[email protected]

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Fernando Pablo Landini é doutor em psicologia pela Faculdade de Psico-logia da Universidade de Buenos Aires. Inves gador do Consejo Nacio-nal de Inves gaciones Cien cas y Técnicas - CONICET e daUniversidad

de la Cuenca del Plata.E-mail:[email protected] Flavia Cris na Silveira Lemos é doutora em História Cultural pela Univer-sidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. É professora adjuntaIV na graduação e no Programa de pós-graduação em Psicologia na Uni-versidade Federal do Pará.

E-mail: [email protected] Gustavo Mar neli Massola é doutora em Psicologia Social pela Universi-dade de São Paulo. Atualmente é professor do Ins tuto de Psicologia daUniversidade de São Paulo.

E-mail:[email protected] Hugo Vezze é professor Titular da Universidade de Buenos Aires e in-ves gador do Consejo Nacional de Inves gaciones Cien cas y Técnicas - CONICET, Argen na.

E-mail:hugo.vezze @gmail.com

Isabella Fernanda Ferreira é doutora em Educação Escolar pela Univer-sidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Professora Adjunta daUniversidade Federal do Mato Grosso do Sul.E-mail:[email protected] r Jaqueline Gomes de Jesus é doutora em Psicologia Social e do Traba-lho pela Universidade de Brasília e Pós-Doutora pela Escola Superior deCiências Sociais da Fundação Getúlio Vargas.

E-mail: [email protected] Je erson de Souza Bernardes é doutor em Psicologia Social pela Pon -cia Universidade Católica de São Paulo e professor Adjunto do Ins tutoe do Mestrado em Psicologia Universidade Federal de Alagoas.

E-mail: [email protected]

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Ka a Maheirie é doutora em Psicologia Social pela Pon cia Universi-dade Católica de São Paulo com estágio pós doutoral na UniversidadeCampinas. É professora Associada do Departamento e Programa de Pós-

Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina.E-mail:[email protected] Luciana Lobo Miranda é doutora em Psicologia pela Pon cia Universi-dade Católica do Rio de Janeiro e professora do Programa de pós-gradu-ação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará.

E-mail:[email protected] Luís Guilherme Galeão-Silva é doutor em Psicologia pela Pon cia Uni-versidade Católica de São Paulo e professor de Psicologia social do Ins -tuto de Psicologia da Universidade de São Paulo.

E-mail:[email protected] Gustavo Aguilar Calegare é doutor em Psicologia Social pelaUniversidade de São Paulo. É professor visitante do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Amazonas.

E-mail:[email protected] Ribeiro Mesquita é doutor em Psicologia (Psicologia Social) pelaPon cia Universidade Católica de São Paulo. É professor da Universi-dade Federal de Alagoas.

E-mail:[email protected] Maria Juracy Filgueiras Toneli é doutora em Psicologia Escolar e do De-senvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo. Atualmente éprofessora tular do Departamento de Psicologia e do Programa de pós--graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina.

E-mail: [email protected] Lamenza Sholl da Silva é doutora em Estudos La no Americanospela Universidade Nacional Autônoma do México. É professora Adjuntada Universidade Federal Fluminense.

E-mail:[email protected]

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Psicologia social e os atuais desafos é co-polí cos no Brasil

Odair Furtado é doutor em Psicologia pela Pon cia Universidade Cató-lica de São Paulo. Atualmente é professor associado da Pon cia Uni-versidade Católica de São Paulo.

E-mail:[email protected] Alejandro Bravo é doutor em Psicologia pela Universidade de Bra-sília. Atualmente é professor visitante - pesquisador da UniversidadeFederal do Rio Grande do Sul e professor do Departamento EstudiosPsicológicos, Facultad de Derecho y Ciencias Sociales, Universidad Icesi,Cali, Colombia.

E-mail:[email protected] Pedrinho Arcides Guareschi é pós-doutor em Ciências Sociais pela Uni-versidade de Wisconsin e pela Universidade de Cambridge. Atualmenteé professor convidado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e