psicanÁlise e ciÊncias sociais tecendo novos caminhos de pesquisa

16
Jornal de Psicanálise, São Paulo, 39(71): 231-246, dez. 2006. 231 PSICANÁLISE E CIÊNCIAS SOCIAIS: TECENDO NOVOS CAMINHOS DE PESQUISA Amnéris Maroni* RESUMO Dou um testemunho sobre novos caminhos de pesquisa nas Ciências Sociais que levam em conta a subjetividade: meus primeiros contatos, a descoberta das potencialidades até o exercício desses caminhos com os meus alunos na pós- graduação. Valho-me de vários elementos inscritos no método psicanalítico: uma redefinição da noção de sujeito e objeto; a inscrição de um tempo-certo na pesquisa, o tempo kairótico; a presença do terceiro analítico ou terceiro parceiro na pesquisa qualitativa. Destaco as aprendizagens com esses novos caminhos de pesquisa: 1) a transformação do próprio aparelho de pensar do pesquisador: do pensamento penetran- te, legislativo, egóico para o pensamento-acolhimento, meditativo; 2) uma outra concepção de realidade, onde o subjetivo e o objetivo estão misturados, muito embora não se confundam, o chamado “espaço intermediário”. Palavras-chave: Terceiro analítico. Tempo kairótico. Pensamento legislativo. Pensa- mento meditativo. Espaço intermediário. A resposta é a desgraça da pergunta. Maurice Blanchot Descobri a importância da subjetividade na pesquisa numa sessão de psicanálise. Depois de relatar para o meu analista a minha pesquisa de mestrado, dei-me conta de que meus afetos, meus principais vínculos afetivos, estavam ali travestidos. Nas entrevistas feitas, as palavras eram dos outros, dos meus entrevistados, na época operários, mas as perguntas-guias, que traziam à tona as suas (deles) narrativas, foram tecidas a partir dos meus afetos primários, das minhas inquietações inconscientes, dos meus trau- mas não reconhecidos e não nomeados. Minha surpresa foi imensa quando me dei conta de que * Profa. Dra. no Departamento de Antro- pologia do Instituto de Filosofia e Ciên- cias Humanas da UNICAMP. Doutora em Antropologia – PUC/SP.

Upload: junior-viana

Post on 15-Sep-2015

214 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

PSICANÁLISE E CIÊNCIAS SOCIAIS Tecendo Novos Caminhos de Pesquisa

TRANSCRIPT

  • Jornal de Psicanlise, So Paulo, 39(71): 231-246, dez. 2006. 231

    PSICANLISE E CINCIAS SOCIAIS:TECENDO NOVOS CAMINHOS DE PESQUISA

    Amnris Maroni*

    RESUMO

    Dou um testemunho sobre novos caminhos de pesquisa nas Cincias Sociaisque levam em conta a subjetividade: meus primeiros contatos, a descoberta daspotencialidades at o exerccio desses caminhos com os meus alunos na ps-graduao. Valho-me de vrios elementos inscritos no mtodo psicanaltico: umaredefinio da noo de sujeito e objeto; a inscrio de um tempo-certo na pesquisa,o tempo kairtico; a presena do terceiro analtico ou terceiro parceiro na pesquisaqualitativa. Destaco as aprendizagens com esses novos caminhos de pesquisa: 1) atransformao do prprio aparelho de pensar do pesquisador: do pensamento penetran-te, legislativo, egico para o pensamento-acolhimento, meditativo; 2) uma outraconcepo de realidade, onde o subjetivo e o objetivo esto misturados, muito emborano se confundam, o chamado espao intermedirio.

    Palavras-chave: Terceiro analtico. Tempo kairtico. Pensamento legislativo. Pensa-mento meditativo. Espao intermedirio.

    A resposta a desgraa da pergunta.Maurice Blanchot

    Descobri a importncia da subjetividade napesquisa numa sesso de psicanlise. Depois derelatar para o meu analista a minha pesquisa demestrado, dei-me conta de que meus afetos, meusprincipais vnculos afetivos, estavam alitravestidos. Nas entrevistas feitas, as palavraseram dos outros, dos meus entrevistados, napoca operrios, mas as perguntas-guias, quetraziam tona as suas (deles) narrativas, foramtecidas a partir dos meus afetos primrios, dasminhas inquietaes inconscientes, dos meus trau-mas no reconhecidos e no nomeados. Minhasurpresa foi imensa quando me dei conta de que

    * Profa. Dra. no Departamento de Antro-

    pologia do Instituto de Filosofia e Cin-cias Humanas da UNICAMP. Doutoraem Antropologia PUC/SP.

  • Amnris Maroni

    Jornal de Psicanlise, So Paulo, 39(71): 231-246, dez. 2006.232

    as alianas polticas que via l fora eramna verdade parte da minha subjetividade;o que defendia que florescesse l fora noera seno o que estava esmagado e noencontrava caminhos na minha alma(Maroni, 1983). O mundo interno o dasubjetividade e o da realidade externa(social e poltica) cruzavam-se o tempotodo. Como isso era possvel no pas deDescartes? Na concepo cartesiana oenlace entre esses dois mundos no possvel. Essa foi a minha primeira lioantimoderna. Seguiram-se outras, muitasoutras, um nmero sem fim de descober-tas que me ensinaram certas falcias damodernidade e da objetividade cientfica.Fao a seguir um testemunho do meuespanto ao constatar como me narravaao fazer cincia e os vrios desdobra-mentos metodolgicos dessa descoberta.

    Nesse dia, como disse, um novomundo desvelou-se para mim. O mundoda neutralidade cientfica, da separaoentre sujeito e objeto na pesquisa cientfi-ca, do chamado rigor metodolgico, caiupor terra. Compreendi, ento, que nofazemos seno narrar nossos afetos, nos-sos traumas, nossos vnculos primrios muito embora no estejamos conscientesdisso! A objetividade possvel de ser con-quistada e ela deve ser conquistada aquela que reconhece a subjetividadecomo momento primeiro da pesquisa cien-tfica.

    Naquela sesso de anlise dei-meconta de que existia uma realidade queat ento jamais nomeara: a realidadepsquica, que, para meu espanto, era

    dinmica e atuava. Minha ingenuidade,meu desconhecimento dessa realidadepsquica, lhe permitiu uma atuao ilimita-da, inconsciente e intensa! Essa realidadepsquica recm-descoberta e a realidadeexterior estavam tambm para o meuespanto! de alguma maneira relacio-nadas. Percebi um vnculo entre essasduas realidades; sujeito e objeto de umaestranha maneira se pertenciam, haviaentre eles uma morada conjunta.

    Pergunta-sem-respostae lugar vazio

    Junto a essa constatao refiro-me morada conjunta , formulei umapergunta que, devo reconhecer, enraiza-va-se numa crise existencial quevivenciava, muito mais ampla do que acrise cientfica. No vale a pena para osque agora me lem narrar a crise existen-cial que ento atravessava; antes, maisinteressante voltarmos pergunta for-mulada.

    A pergunta era muito simples; aresposta, porm, no era fcil. A pergun-ta que fiz foi desde sempre cantada portodos os poetas. Os poetas fazem pergun-tas enigmticas ao contrrio dos cientis-tas, que s formulam perguntas passveisde respostas. Eis uma diferena impor-tante. A pergunta que fiz tinha a peculia-ridade de no ter respostas. exatamen-te uma pergunta no passvel de respostaque precisamos formular um dia na vidapara torn-la inquietante. Pois foi assimque se deu: depois da pergunta minha vida

  • Psicanlise e cincias sociais: tecendo novos caminhos de pesquisa

    Jornal de Psicanlise, So Paulo, 39(71): 231-246, dez. 2006. 233

    transfigurou-se. Perguntei ento: Existi-mos. A que ser que se destina?.

    No h respostas para essa per-gunta. Melhor: h infinitas respostas paraessa pergunta-sem-resposta. exatamen-te por isso que uma pergunta-originriae no ntica para me valer da compre-enso heideggeriana.

    Essa pergunta originria, quero di-zer, sem resposta, tem o mesmo estatutoterico da experincia benjaminiana(Benjamin, 1994)1. Ocorreu-me essa as-sociao porque W. Benjamin afirma queo desejo da ordem da experincia. Eo que o desejo? O desejo, sabemosdesde Plato, o que nos falta (Plato,1983). No desejamos o que temos; dese-jamos o que nos falta. O desejo tem a vercom a perda a perda do objeto prim-rio. S desejamos porque um dia perde-mos (Kehl, 1990). O desejo tem ento aver com a memria inconsciente, com amemria involuntria, para ser fiel a Ben-jamin e a Proust. Podemos perguntar pelodesejo, nosso desejo, e, todavia, ele sem-pre nos escapa, pois de alguma maneirarelaciona-se com o fundo do fim: umaespcie de inconsciente coletivo ou almado mundo. Nesse escape, constante es-cape, acumulamos aprendizagens e faze-mos travessias. O desejo tanto em Platoquanto em Freud ascensional, implicasublimao e aponta para a simbolizao.Em termos psicanalticos diramos que odesejo pode ser elaborado. Assim tam-bm a experincia. Tudo que dissemos do

    desejo tambm da experincia, e porisso W. Benjamin os equipara.

    E ns equiparamos a pergunta ori-ginria com a experincia benjaminiana.A pergunta originria, ela tambm, impli-ca falta, memria involuntria, constantetravestimento, o acmulo-aprendizagem,a ligao com a alma do mundo, a elabo-rao-simbolizao, grandes travessias.

    A pergunta-originria experi-ncia: experincia de vida, experincia navida. Exatamente por ser pergunta-sem-resposta, a pergunta-originria lugarvazio. Eis o lugar-na-alma, na psique, namente como preferirem , que nospermite movimento: fazer experincias,fazer pesquisas.

    O lugar-juiz e o lugar vazio

    E. Kant levou, como se sabe, arazo para um tribunal: o tribunal da ra-zo, a Crtica da razo pura (Kant,1997). Nesse tribunal, criou uma metfo-ra, a metfora da modernidade refiro-me ao juiz e s testemunhas. O juiz (osujeito do conhecimento) indaga as teste-munhas (o objeto do conhecimento). Comoem um tribunal, as testemunhas s podemresponder ao que o juiz perguntar. Vamosento reter que o sujeito do conhecimento o juiz que formula perguntas absoluta-mente respondveis, e que as testemu-nhas (os objetos do conhecimento) de-vem a elas se ater e s a elas! O lugar-juiz na alma, psique, mente do

    1 No livro referido, o autor enfatiza a diferena entre experincia e vivncia.

  • Amnris Maroni

    Jornal de Psicanlise, So Paulo, 39(71): 231-246, dez. 2006.234

    sujeito moderno muito diferente do lu-gar vazio da pergunta originria, da per-gunta sem resposta.

    Voltando ento ao meu testemu-nho, fiz, sem querer, sem imaginar quaisseriam as conseqncias, uma pergunta popular, potica, mas sem resposta. curioso pensar que, uma vez feita a per-gunta, a pergunta nos tem. Ou seja, nopodemos mais nos livrar dela; sofremos, apartir da, uma espcie de seqestro pelapergunta-sem-resposta, pelo lugar vazioda alma.

    Com a pergunta-sem-resposta queme ocorreu e que transformei em pesqui-sa cientfica fiz a minha tese de doutora-do, escrevi trs livros (Maroni, 1998, 2002,2005) e dezenas de artigos. Minha per-gunta-sem-resposta (Existimos. A queser que se destina?) interroga a origeme o fim da existncia; interroga quem soueu em mim e quem o outro fora demim. Minha pergunta-sem-resposta quersaber dos mistrios, e ento pude inquiri-los em toda parte. Primeiro pergunteipara Carl Gustav Jung sobre os mistriosda existncia e, particularmente, sobre osmistrios que me interessavam: o da ori-gem e do fim, o eu e o outro. Ele, Jung,tambm parecia interessado, ao longo desua vida e obra, em dar-lhes um lugar, emsimboliz-los, em fazer o movimento decircumambulation em torno do que nose mostra, quero dizer, do que no semostra totalmente, mas d indcios de si.O mistrio no seria mistrio se se mos-trasse todo; tambm no seria se se es-condesse todo. O mistrio mistrio por-

    que se encobre, mas tambm se mostraquando quer, e por isso a posio dopesquisador cuja pergunta-sem-res-posta indaga o mistrio tem que serpassiva, mas concentrada e atenta naqui-lo que se esconde. A seguir e sempreinsatisfeita com as respostas que encon-trava, fiz as mesmas perguntas para W.R. Bion e, depois, para D. Winnicott. Esigo perguntando e obtendo respostas. Eassim, ao que parece, continuarei. Fazerperguntas-sem-respostas o meu destino.

    Quero, porm, contar para o leitorque c e l, durante esse anos, fui desco-brindo companheiros de viagem, querodizer, fui fazendo pontes com autores,filsofos e psicanalistas que me autoriza-ram a continuar pensando que obra epersonalidade, seja a do filsofo seja ado psicanalista, no se separam. Essa,como se sabe, a lio que F. Nietzschee C.G. Jung nos legaram, pois ambos serecusaram a fazer essa separao. Nietzs-che leu os filsofos gregos buscando ex-trair de cada sistema filosfico o frag-mento de personalidade: a nica realida-de eternamente irrefutvel (Nietzsche,1987). Ao l-los assim, concluiu que amaior parte do pensamento consciente, eat mesmo o pensamento filosfico, deveser includa entre as atividades instintivas.O prprio Nietzsche e sua filosofia noescapam disso, pois toda grande filoso-fia a confisso pessoal de seu autor,e Nietzsche no se v como exceo;antes considera que pela primeira vez,atravs da sua obra filosfica, aautoconfisso explicita-se sem que isto se

  • Psicanlise e cincias sociais: tecendo novos caminhos de pesquisa

    Jornal de Psicanlise, So Paulo, 39(71): 231-246, dez. 2006. 235

    d de forma involuntria e despercebida,mas consciente e voluntria (Turcke,1992). Tambm Jung no separa a obra ea pessoa do psiclogo. Para ele, toda apsicologia tem o carter de uma confissosubjetiva2. Para Jung, no possvel en-contrar a verdade sobre a psique; o quemelhor se consegue nessa rea so ex-presses verdadeiras: confisses e apre-sentaes detalhadas do que se observasubjetivamente. Mltiplas so as expres-ses verdadeiras nas searas da psicolo-gia porque mltiplas so as subjetivida-des. a partir desse pressuposto daconfisso subjetiva que tanto paraNietzsche quanto para Jung possvel aobjetividade. A objetividade no senouma extenso da subjetividade (Thiele,1990). Ignorar esse pressuposto, paraJung, significa ingenuidade terica, pois asubjetividade no deixa de atuar porque,em parte, inconsciente e, o que pior,atua buscando universalizar-se. Da mes-ma forma que para Nietzsche, tambmpara Jung no h que se confundir essaproposio com o relativismo que faz domeramente subjetivo uma sabedoria,desqualificando-se a si mesmo.

    A pergunta-sem-resposta veioacompanhada de exigncias metodolgi-cas inusitadas. Explico-me: uma vez cons-telado o lugar vazio na alma, o mtodoexigido lembremo-nos que dos emgrego caminho peculiar; essa

    peculiaridade s pode ser redescobertase tivermos presente que o caminho (omtodo) no pode ser aquele de Descar-tes, pois este a prpria expresso dosujeito do conhecimento moderno, que, aodebruar-se sobre o objeto do conheci-mento, controla, atravs do mtodo, seus(do pesquisador) processos volitivos ecognitivos. Prefiro pensar o mtodo deum ponto de vista mais original e arcaico.Uma das brilhantes exposies do cami-nho o Fedro de Plato (Plato, 1973).L o caminho implica dilogo, o exercciomesmo da dialtica; o caminho envolve oselo do divino, e, no por outra razo,Scrates, antes de iniciar o dilogo3, fazuma reverncia ao deus interno, ao seudaimon, e compromete-se com a verda-de, falando ento verdadeiramente. Semeste selo divino a fala4 pode s parecerverdadeira, pura retrica. tambm no-tvel que o caminho no Fedro no linear, mas tortuoso, pois os participantesdo dilogo param, contornam, descan-sam, retomam. So trs os elementos (odilogo, a reverncia ao divino, a no-linearidade) que compunham o mtodoarcaico, o caminho, e que nos distanciammuito da concepo moderna de mtodo. o caminho arcaico que privilegiare-mos. Tambm, para ns, o dilogo importante: com o outro-entrevistado, ooutro-livro, o outro-idias, o outro-teoria,o outro-pesquisador, o outro-orientando,

    2 Para saber mais sobre a relao entre psicologia e confisso subjetiva, ver especialmente o artigo A

    divergncia entre Freud e Jung (Jung, 1966).3 Refiro-me ao segundo discurso de Scrates.

    4 Refiro-me ao primeiro discurso de Scrates.

  • Amnris Maroni

    Jornal de Psicanlise, So Paulo, 39(71): 231-246, dez. 2006.236

    todos os outros; tambm, para ns, o selodo divino fundamental, quero dizer, ocompromisso com a subjetividade, com apsique-do-pesquisador; s com esse com-promisso vivo a verdade torna-se exign-cia imperiosa; tambm, para ns, o linearno valorizado antes, valorizamos oscontornos, os imprevistos do caminho, osimprovisos, os insights, valorizamos operder-se, nica maneira de encontrar-seem um outro patamar. Mas h mais. Nocaminho inscrito na pergunta-sem-res-posta a falta que lhe constitutiva mobi-liza a ao, mobiliza a escuta. Caador espreita da caa e ento muita, mas muitaao, s que ao parada, pois, comoficar claro no prximo item, o mundo-que-chega e no o pesquisador-que-vai.

    Afinidades eletivas, o momentocerto e o terceiro parceiro

    Talvez o primeiro item dessa meto-dologia seja o das afinidades eletivasgoethianas, pois vamos, no transcorrer dapesquisa, percebendo um sem-nmero deafinidades eletivas absolutamente noprevistas, vale dizer, as analogias inespe-radas comeam a ser tecidas: um livroaparece, um professor d uma aula, assis-te-se a uma palestra. O mundo parececantar uma nica cano: a nossa can-o, a cano referente nossa pergunta. assim que funciona quando constelamosuma pergunta originria; o lugar vazio daalma mobiliza e agua uma escuta pecu-liar, e o que mais incrvel: o mundo todoresponde!

    O segundo elemento do mtodo aaprendizagem do momento certo, domomento oportuno do kairs. Denovo, essa aprendizagem nos ajuda muitoa compreender o valor da busca para-da, de uma ao que no procura, sacha. Quando experienciamos, no trans-correr da pesquisa, o momento certo,reconhecemos nele uma tal generosida-de, uma tal abundncia, tamanha doaode sentido que, a partir de ento, noseducamos nessa direo, na direo daaprendizagem do tempo, do tempo certo,do kairs: um tempo humano, inscrito naesfera humana.

    Ora, exatamente porque essetempo (o tempo kairtico) nos pertence pertence esfera humana que suapercepo, sua aprendizagem, nos reme-te a um outro tempo, um tempo originrio:o Ain. Diferentemente de khrnos, otempo quantitativo, de controle, devora-dor, sempre igual, a servio da morte,Ain o tempo qualitativo, tempo revela-o, tempo prprio, tempo da entrada donovo no mundo, um tempo a servio davida. O Ain, o tempo-certo, qualitativo,est, estranhamente, ligado pergunta-sem-resposta, pergunta originria. Notempo-certo a pergunta emergiu comopergunta, e as respostas possveis e ml-tiplas tambm acontecero no momentocerto. A sagacidade humana dar-seconta disso: kairs na busca parada.

    Outro elemento do mtodo quegostaria de comentar o terceiro anal-tico. O terceiro parceiro, como Junggostava de nome-lo (Jung, 1954, p. 188),

  • Psicanlise e cincias sociais: tecendo novos caminhos de pesquisa

    Jornal de Psicanlise, So Paulo, 39(71): 231-246, dez. 2006. 237

    descoberta da psicologia profunda e dapsicanlise (Ogden, 1996). Montamos umterceiro parceiro no dilogo com osnossos entrevistados em uma pesquisa,no dilogo com um autor e com o livrodurante uma leitura. O terceiro analtico um campo comum entre duas (ou mais)subjetividades; pode ser destrutivo, maspode ser tambm infinitamente criativo.Com esse campo comum constelado que no se confunde com os conceitos detransferncia, contratransferncia, iden-tificao projetiva, projeo podemose fazemos ilaes no previstas, lembra-mos o esquecido, elementos inconscien-tes fazem-se conscientes, temos uma in-finidade de insights. Isso se d todas asvezes que montamos um campo criativo.Quero ilustrar a criatividade do terceiroparceiro contando como este artigo nas-ceu. Tenho um grupo-oficina de produ-o de textos; dele participam a professo-ra Ecleide Furlanetto, a psicloga EdaCanepa e eu. Somos trs professoras-orientadoras-na-rea-psi e temos j bas-tante tempo-pesquisa. Semanalmente, hanos, trocamos experincias, espantos econhecimentos; no raro fazemos per-guntas e, nesse grupo, perigoso, masmuito perigoso mesmo, fazer perguntas,pois uma vez feita uma pergunta, umapergunta-que-amamos, invariavelmenteseremos atropeladas por imensa criativi-dade, que nos obrigar a produzir algoescrito em torno da questo. Uma dasperguntas que surgiram no grupo per-gunta proposta por Ecleide Furlanetto foi a respeito do mtodo autobiogrfico, e,

    ento, imediatamente os fios se teceramem torno do problema, nascendo esteartigo. Seria, desta forma, imperdovelque no nomeasse e narrasse o berodeste escrito, pois ele nasceu e fertilizou-se no grupo. exatamente assim quefunciona o terceiro parceiro quando ocampo criativo e por essa razo queagora no grupo temos uma nova pergunta:o que significa hoje a autoria? Qual o valorda autoria num mundo em que pensa-mentos esto em busca de pensadores como diz W. R. Bion e as pergun-tas-respostas emergem, indiscutivelmen-te, dos campos criativos, dos terceirosparceiros?

    Quanto mais somos conscientesdesses campos interativos, mais doado-res se tornam e, com isso, a pesquisapassa a ser um campo aberto de aventu-ra. Alis, esse ltimo aspecto beminteressante e merece um rpido comen-trio. Quem faz pesquisa contando comesses campos vive o espanto e podeconstruir exatamente como estou fa-zendo neste momento uma etnografiada alma, pois esse dilogo do indivduocom o mundo-invisvel encanta e no raroouvimos depoimentos de espanto e xta-se: Como encontrei esta pessoa para medar esse depoimento?; Este livro pare-ce ter vindo de encomenda; Aquelaconferncia foi um divisor de guas, poiso professor respondeu a uma questo queme angustiava h anos. assim quecaminhamos: de surpresa em surpresa!

    Mobilizados pela nossa pergunta-sem-resposta, pela nossa pergunta-origi-

  • Amnris Maroni

    Jornal de Psicanlise, So Paulo, 39(71): 231-246, dez. 2006.238

    nria, conquistamos uma escrita potica,pois nos arriscamos cada vez mais nometafrico e cultivamos cada vez mais abeleza. A escrita deixa de ser dura, cien-tfica, conceitual; essa escrita cultivadano meio cientfico torna a feira sinnimode cientificidade! incrvel como cinciae beleza se dissociaram na cincia mo-derna. Mobilizados pelo afeto, vincula-mo-nos e isso inevitvel. Vnculo, bomlembrar, Eros, amor. Ao estabelecer-mos vnculos afetivos com a prpria pes-quisa, com o orientador, com os colegas,com os entrevistados, com os livros queamamos, s podemos produzir, como bemdisse Gauthier (2004), confetos (concei-tos-com-afeto) e uma escrita potica li-vre, espontnea e brincalhona. Brincaraqui no seno metaforizar, simbolizar,poetar. Escrita inspirada, porque inspira-dos estamos pelo kairs, pelo tempocerto, recebendo infinitas doaes desentido.

    Pensamento-acolhimentoe espao intermedirio

    O que resulta dessa aprendiza-gem?

    Quero destacar trs grandes apren-dizagens, elas mesmas transformaesdo mental, transformaes do aparelhode pensar como diria W. R. Bion(1994).

    A mobilizao e o aguamento daescuta nos levam para o pensamento-acolhimento, para o acolhimento dos pen-samentos que esto em busca de pen-

    sadores (Bion, 1994, p. 185). Esse aco-lhimento implica uma certa passividade, owu wei: a ao sem ao, como diria Jung(2001). Esse acolhimento pode intensifi-car-se muito, e a pesquisa, ao mobilizar aescuta, abre-nos para esse pensamentoque tem muito de meditativo. Essa trans-formao do aparelho de pensar faz dacolheita uma aventura do pensamento.

    O pensamento-penetrante, egico,moderno, legislativo, ativo, que equacionao mundo como causa e efeito de maneiramecnica e que se debrua sobre o objetopara inquirilo, qual um juiz frente a teste-munhas, perde completamente a relevn-cia se tivermos presentes as proposiesacima. O pensamento-penetrante elegislativo est montado a partir de duasrealidades (interna e externa) estanquese separadas para Descartes, trata-sede duas substncias. Arrogante, o pensa-mento penetrante exige das testemunhasrespostas s suas perguntas, e, como sotestemunhas em um tribunal, no lhes dada a possibilidade da fala espontnea; aelas no cabe queixar-se, reivindicar, acu-sar. Esmagados pela autoridade do juiz notribunal, os objetos silenciaram, e ns,sujeitos do conhecimento, ficamos surdosa qualquer pergunta que fuja da legislaoinstituda e aceita, ficamos surdos a qual-quer resposta espontnea. Obviamente,vrias escolas de pensamento se revolta-ram contra o tribunal da razo e o sujeitolegislativo: a fenomenologia, a psicanli-se, o existencialismo, etc. A pesquisa nauniversidade, todavia, continua sendo fei-ta de forma tradicional; o fazer cincia

  • Psicanlise e cincias sociais: tecendo novos caminhos de pesquisa

    Jornal de Psicanlise, So Paulo, 39(71): 231-246, dez. 2006. 239

    dessa maneira inquestionvel, uma es-pcie de natureza, segunda natureza.

    Poder-se-ia perguntar: e o pensa-mento-acolhimento conhece? Faz cin-cia? Parece-me que sim; , porm, umoutro conhecer, uma outra cincia queest em gestao. Esse conhecer no sepresta como o conhecimento moderno ao controle e ao poder; antes, preci-so, exatamente, abrir mo do controleegico e do poder da ordem para colher.Colheita entrega. Escuta respeito.

    Resulta dessa aprendizagem outraconcepo de realidade. Essa , talvez, aquesto de maior relevncia, pois a reali-dade no pode ser vista ingenuamentecomo o exterior, ou o que est dado. Arealidade, ns sabemos e definitiva-mente a modernidade nos provou isso , produzida. O sujeito legislador e arazo legislativa produziram a realida-de moderna. Ou seja, vemo-nos e agi-mos a partir de um determinado quadromental. Acostumamo-nos ns moder-nos a arrogantemente ver a realidadecomo externa, pronta para se deixar mol-dar, silenciada e no reivindicante, l fora,separada de ns. E a realidade interiorcomo pensamento. Ora, os novos cami-nhos propostos redefinem essas concep-es de realidade: o sujeito deixa de sersujeito consciente, egico, unitrio. Mui-tas so as teorias hoje que desconstroemdefinitivamente essa proposio. Fique-mos com a psicanlise. A conscinciaest longe de ser o fundamento do sujeito,j que ela juntamente com o eu derivada do inconsciente. Vale dizer, o

    mundo das pulses psquicas, do desejo,dos afetos o que explica a nossa ao e,como insisti ao longo desse artigo, osnossos pensamentos. Juntamente com osujeito-consciente moderno cai por terrao sujeito-representao. A idia de repre-sentao constitutiva da modernidade,pois podemos representar aquilo arealidade que est fora e radicalmen-te diferente de ns. Colher o que brota daescuta e transformar talvez apaream,hoje, como proposies mais pertinentespara esse sujeito-desejante, sujeito-afeto.

    Uma vez que a pergunta-originriaemerge, deixam de ter sentido essas duasrealidades separadas, pois o subjetivo e oobjetivo esto, desde o primeiro momen-to, ligados. A pergunta-sem-resposta e ametodologia que lhe afim faro umcasamento entre o subjetivo e o objetivo,porque o objetivo o real, a natureza , nesse mtodo, fala, emite sinais, dialogacom o sujeito-pergunta. As afinidadeseletivas que se estabelecem entre o ex-terno e o interno, as sincronicidades vistas como a prpria fala da potnciadivina Ain vo, de novo, animando eencantando a natureza e o real. Ao final no h final! , subjetivo e objetivoesto misturados, embora no se confun-dam. Sabemos, doravante, que o mundo,o real e a natureza so, eles mesmos,tingidos pela nossa subjetividade. Nessaetnografia da alma, vemo-la constitudade objetos internos, e, ento, subjetivo eobjetivo, de novo, misturados. Ao final no h final! , subjetivo e objetivo trans-formam-se no espao intermedirio, no

  • Amnris Maroni

    Jornal de Psicanlise, So Paulo, 39(71): 231-246, dez. 2006.240

    terceiro reino tanto em Jung quantoem Winnicott. Para Jung, o espaointermedirio a me de todas as possibi-lidades culturais, o espao da criativida-de; do espao intermedirio, reino dafantasia criativa, que nasce o smbolo(Jung, 1964, p. 18). Esse espao interme-dirio , para Winnicott, o brincar (Winni-cott, 1975). exatamente porque subjeti-vo e objetivo, doravante, no se separamque o brincar a brincadeira cons-titutivo.

    E ento ainda uma questo nestetestemunho: as respostas parciais, mlti-plas, que chegaram para a pergunta-origi-nria, a pergunta-sem-resposta, ajuda-ram-me a reorganizar o meu mundo afe-tivo-anmico-mental. Fiz muitas, muitastravessias internas, muitas passagensbuscando parada pelas respostas ques obliquamente me foram oferecidascomo ddivas. E acredito que essa umadas possibilidades desses novos cami-nhos, pois, para a pergunta emergir, omundo interno (psquico) foi desesta-bilizado, desorganizado; e as travessiasfeitas, as passagens em busca de respos-tas oblquas que se oferecem, tendem areorganizar o mundo psquico, mobilizan-do novas perguntas.

    A minha pergunta-sem-respostalevou-me para a psicologia analtica epara a psicanlise, desalojando-me com-pletamente, j que antes da pergunta tinhaoutra profisso: professora de cinciapoltica e sociloga. Devo pergunta-originria a minha produo cientfica; elano s me fez produzir muito como me

    transformou inteiramente, transformou omeu pensamento, transformou o meuaparelho de pensar: de preenchido epreenchedor para acolhedor. No lugar dofalo, o tero: colo receptivo, transforman-do o desconhecido no conhecido.

    Como orientadora na ps-gradua-o passei a usar esse novo mtodo. Comele, o aluno, a interioridade do aluno, vemem primeiro lugar e no a minha linhade pesquisa, catalogada e classificadapor cdigos nas Instituies Financiadoras.Quem vem em primeiro lugar so astramas afetivas, as redes de sentido ou de no-sentido das vidas mal oubem vividas dos meus orientandos. Vourapidamente narrar algumas das pesqui-sas, entre muitas outras, j realizadas ecom muito sucesso.

    Uma aluna da ps-graduao, filhade japoneses, procurou-me querendo es-tudar o movimento Shindo Renmei ouLiga do Caminho dos Sditos umaorganizao nipnica que surgiu duranteo perodo da Segunda Guerra Mundial, nacolnia japonesa no Brasil. Com o fim daguerra, acirrou-se, na colnia, a oposioentre os que defendiam a vitria japonesa(vitoristas) e aqueles que reconheciamo triunfo norte-americano (derrotistas).Os membros da Shindo Renmei eramvitoristas e ameaavam e assassina-vam os derrotistas. Pedi a MarcelaMiwa que desse para este artigo umpequeno depoimento sobre a pesquisa:

    Quando li, pela primeira vez, um livrosobre o movimento Shindo Renmei fui

  • Psicanlise e cincias sociais: tecendo novos caminhos de pesquisa

    Jornal de Psicanlise, So Paulo, 39(71): 231-246, dez. 2006. 241

    invadida por um desconforto que me as-sustou a princpio. Meu espanto no foiacompanhado de argumentaes ou refu-taes tericas consistentes; meu inc-modo estava para alm das abordagenstericas! O que isto significava? Passei aruminar e percebi que algo ali, no movi-mento Shindo Renmei, tinha a ver comigo,algo que no identificava; no identifica-va, mas fui atrs! Num primeiro momentoa angstia e o incmodo foram meus guiase agiram como ces farejadores. Aos pou-cos fui percebendo que essa angstia eindignao, esse desconforto, antecedi-am a pesquisa; estavam ali dormindo eeclodiram com as obras que lia sobre omovimento, culminando com a minha de-ciso de pesquis-lo. Constatei, com aajuda da minha orientadora, o sentido daminha pesquisa: estava dando passagema um eu que desconhecia, isto , estavatrazendo tona, conscincia, uma parteda minha personalidade at ento disso-ciada e abafada: o meu eu nipnico. Oque significa ser japons? Compreendiento as dificuldades que permearam mi-nha vida at ento em relao minhaidentidade: o que significava ser brasilei-ra? O que significava ser japonesa? Essetrauma vivido, mas at ento no reconhe-cido, veio finalmente tona e tornou-seguia para que eu pudesse compreender ador das geraes que me antecederam: osimigrantes japoneses no Brasil nos anos40. Minha pesquisa foi avanando e, aomesmo tempo, as feridas da minha almaforam sendo reconhecidas e cicatrizadas.Hoje, sinto leveza e alegria no somentepor ter terminado uma tarefa, um trabalhoacadmico, mas por me sentir forte e livrepara trilhar outros caminhos em mundos(eus) desconhecidos.

    O que significa ser japons? Japo-ns migrante derrotado em terras estran-geiras? Essa questo, que de algumaforma tambm era a sua pergunta, teve afora de uma pergunta-originria, e aguiou na sua busca parada, mas muitoativa (Miwa, 2006).

    Uma outra pesquisadora, colombi-ana, voluntariamente desterrada junta-mente com a sua famlia, tambm minhaorientanda. Seus pais e irmos forampara os Estados Unidos e ela, em umprimeiro momento, permaneceu na Co-lmbia e, de um dia para outro, j no tinhafamlia, sendo responsvel por si mesma.Veio depois para o Brasil e inscreveu-seno mestrado em Cincia Poltica da UNI-CAMP, em Campinas. Suas perguntasgiravam em torno de um problema queno chegava a se constituir como tal :o da cidadania do sentimento. Expli-cou-me logo de incio a diferena entre osdesterrados ela e sua famlia , osrefugiados que pedem asilo em ou-tros pases e os desplazados termo que ganhou na Colmbia um valorsimblico: so os camponeses que a partirdas zonas rurais se vem afetados peloconflito armado entre os cartis donarcotrfico, os paramilitares e o exrci-to. Obrigados a deslocarem-se, osdesplazados vivem em situao precriae errante. Joana Corrales fazia ques-to de frisar no era uma desplazada,tampouco era refugiada; era desterradae, todavia, queria narrar a situao dosdesplazados e dos refugiados. Afirmavatambm que, em funo de suas perdas (a

  • Amnris Maroni

    Jornal de Psicanlise, So Paulo, 39(71): 231-246, dez. 2006.242

    famlia, o namorado, os amigos, a cachor-ra, a gata), concebia a cidadania comouma construo ntima, porque era a par-tir de si, do que sentia, que se construanela o ser cidado. Dizia-me tambmque seus interesses pblicos e polticosderivavam principalmente de suas for-mas subjetivas, de seus estados de nimo,de sua dor frente guerra e violncia, deseus amores, de suas perdas! Comea-mos o trabalho de pesquisa sem nenhumaclareza de sua busca, de seu problema depesquisa. Trabalhamos no absoluto aves-so do que recomendam os bons modosacadmicos e as instituies financia-doras de pesquisa. Contamos com umaespcie de cronograma subjetivo de sur-presas o tempo kairtico e a incrvelcapacidade que esse tempo certo temde nos conectar com o mundo dos acon-tecimentos externos. Convidava-a a fa-lar, a chorar quando preciso, a sentir raivase necessrio. Traumatizada pela suasituao e pela situao da sua famlia,Joana queria, sem saber, falar dos afetos traumticos que nela no paravamde gritar e pedir passagem. Quando medei conta disso, a cidadania pelo senti-mento foi ganhando contornos e o esta-do dos refugiados colombianos no Brasiltornou-se foco de suas preocupaes:como vivem ou sobrevivem eles? Quemso? Onde esto? Como vivem com suastraumticas lembranas, seus afetos, suasmortes, seus lutos? Como vivemos todosns o passado de misria e de sangue que nossa herana? Sua pergunta-sem-res-posta veio tona e a pesquisa ento pde

    desenvolver-se (Corrales, 2006). Tam-bm Joana Corrales escreveu, para opresente artigo, um pequeno depoimento:

    Foi assim que as fronteiras entre osubjetivo e o objetivo tornaram-se cadavez menos difusas, as distncias cada vezse tornaram menores dentro de mim, e adistncia com os meus colegas do mestra-do que vem o mundo de maneira objetivacada vez maior; porm, apesar disso, oumelhor, graas a isso, minha investigaotoma cada vez mais uma forma prpria a minha , pois a minha marca, a minhavoz, que est impressa no meu fazer acad-mico. Entendo agora que sou refugiada,que minha famlia refugiada; entendoagora que no a condio legal que nostorna refugiados ou desplazados, mas algo que vai alm, algo interno. essacondio interna, afetiva, que me solidari-za com os refugiados, com os desplazados. o que h em mim de refugiada, dedesplazada, que busco neles e me permiteo contato com eles. So eles, os refugiadose desplazados, e suas histrias um pedaoda minha prpria vida, da minha vida comocolombiana, como cientista poltica, comomulher, como tudo o que sou.

    A validao desse caminho napesquisa de Cincias Sociais se deu, ain-da, quando acompanhei uma dissertaode mestrado em que a orientanda MariaPaula Bueno Perrone, da Faculdade dePsicologia da USP, exercia-se tambmcomo analista junguiana. A pesquisa ini-ciou-se com o mtodo da histria devida proveniente da sociologia e, todavia,a fala dos entrevistados (dois velhos

  • Psicanlise e cincias sociais: tecendo novos caminhos de pesquisa

    Jornal de Psicanlise, So Paulo, 39(71): 231-246, dez. 2006. 243

    paulistanos) sofreu uma escuta que s aspsicologias profundas permitem, uma es-cuta em dois nveis: consciente e incons-ciente. como se o pesquisador-analistaouvisse uma coisa e escutasse outra, poisest treinado para isso e j no pode estarno mundo seno desta maneira. Na rela-o entre narrador e ouvinte mastambm entre professor e aluno, entreorientador e orientando forma-se umcampo interativo, produto da relaodas duas subjetividades presentes: o ter-ceiro analtico, como chamado na psica-nlise, ou terceiro parceiro, pela psicolo-gia analtica. Esse novo lugar, a partir doqual a palavra emerge do entrevistadore dos entrevistados , pressupe a emer-gncia de conhecimentos especficos, toespecficos que perguntvamos ento:ser que um outro campo interativo nosuscitaria contornos diferentes, coloridosoutros nas histrias de vida narradas?Possivelmente sim, pois cada campo inte-rativo capaz de fazer emergir falasparticulares, lembranas esquecidas ejamais ditas, novos insights, atribuiode sentido ao sem-sentido. Emerge da,como se estivssemos fazendo arte eno cincia, uma obra nica e, ento,somos capazes de multiplicar sentidos,produzir sentidos e mais sentidos. essa, alis, a riqueza que a metodologiaancorada na(s) psicanlise(s) ofereces cincias sociais.

    As entrevistas foram feitas aber-tas a partir de uma nica pergunta: Con-te-me a sua histria, pelos caminhos queos entrevistados escolheram, narrando o

    que lhes viesse cabea, selecionandofatos a partir da sua (deles) memriainvoluntria, que, tambm, foram inter-pretados a partir da ateno flutuante.O quadro mental de Paula Perrone lhepermitiu tambm acolher seletivamente afala de seus entrevistados. Ela escutou-os junguianamente e, assim, os comple-xos se fizeram ouvir, os tipos psicolgicosse insinuaram; no lugar do um (do eu dosentrevistados), brotaram muitos: muitoscomplexos, sentimentos, afetos, imagens.Encarnada a dissertao, agora livro(Existncias fascinadas), transformoue transforma a todos: os entrevistadosque escutados narraram para o outrosuas vidas, a pesquisadora que os inter-pretou, o leitor que tocado tambm sepergunta sobre sua existncia fasci-nada (Maroni, 2003).

    O envolvimento dos meus alunoscom as suas pesquisas de fato, comsuas perguntas sem respostas in-comparavelmente maior do que quandono uso o mtodo. Esse envolvimentotransforma-se no prazer de escrever be-lamente, no prazer da autoria, na imensaalegria de ter uma pergunta prpria e naconfiana dos caminhos (mtodo) queento se abrem; esses caminhos seladospela emoo tm a marca da verdade.

    REFERNCIAS

    Benjamin, W. (1994). Charles Baude-laire: Um lrico no auge do capi-talismo. (3 ed.). So Paulo: Brasi-liense.

  • Amnris Maroni

    Jornal de Psicanlise, So Paulo, 39(71): 231-246, dez. 2006.244

    Bion, W.R. (1994). Uma teoria sobre opensar. In W. R. Bion, Estudos psi-canalticos revisados. Rio de Ja-neiro: Imago. (Trabalho original pu-blicado em 1967. Ttulo original:Second thoughts.)

    Corrales, J. (2006). Refugiados colom-bianos no Brasil: Uma interpreta-o de suas travessias internas.Dissertao de mestrado, Institutode Filosofia e Cincias Humanas,Unicamp, Campinas, SP.

    Gauthier, J. Z. (2004) A questo da me-tfora, da referncia e do sentido empesquisas qualitativas: o aporte dasociopotica. Revista Brasileira deEducao, 25, 127-142.

    Jung, C. G. (1954). The practice ofpsychotherapy. In G. Adler et al.(Eds.), The collected works (R. F.C. Hull, trad., Vol. 16). Princenton,New Jersey: Princenton University.

    Jung, C. G. (1964). Civilization in transition.In G. Adler et al. (Eds.), The collectedworks (R. F. C. Hull, trad., Vol. 10).Princenton, New Jersey: PrincentonUniversity.

    Jung, C. G. (1966). Freud and psycho-analysis. In G. Adler et al. (Eds.),The collected works (R. F. C. Hull,trad., Vol. 4). Princenton, New Jer-sey: Princenton University.

    Jung, C.G. (2001). O segredo da flor deouro: Um livro de vida chins.Petrpolis, RJ: Vozes.

    Kant, E. (1997). Prefcio da primeiraedio (1781); Prefcio da segundaedio (1787). In E. Kant, A crticada razo pura. (4 ed.) Lisboa: Fun-dao Calouste Gulbenkian.

    Kehl, M. R. (1990). O desejo da realida-de. In M. R. Kehl, O desejo. SoPaulo: Companhia das Letras.

    Maroni, A. (1983) A estratgia da recu-sa: Anlise das greves de maio de78. So Paulo: Brasiliense.

    Maroni, A. (1998). Individuao e cole-tividade. So Paulo: Moderna.

    Maroni, A. (2002). Figuras da imagina-o: Buscando compreender apsique. So Paulo: Summus.

    Maroni, A. (2003). Buscando novos ca-minhos. In M. P. Perrone, Existn-cias fascinadas: Histria de vidae individuao. So Paulo: Anna-blume; Fapesp.

    Maroni, A. (2005). Jung: O poeta daalma. (2. ed.). So Paulo: Summus.

    Miwa, M. (2006). Narciso no impriodos crisntemos: Interpretando omovimento Shindo Renmei. Dis-

  • Psicanlise e cincias sociais: tecendo novos caminhos de pesquisa

    Jornal de Psicanlise, So Paulo, 39(71): 231-246, dez. 2006. 245

    sertao de mestrado, Instituto deFilosofia e Cincias Humanas,Unicamp, Campinas, SP.

    Nietzsche, F. (1987). Prefcio. In F.Nietzsche, A filosofia na idade tr-gica dos gregos. Lisboa: Ed. 70.

    Ogden, T. (1996). Os sujeitos da psi-canlise. So Paulo: Casa do Psi-clogo.

    Plato (1973). Grgias, O Banquete,Fedro. Lisboa; So Paulo: Ed. Ver-bo.

    Plato (1983) Banquete. In Plato, Di-logos (pp. 1-53). So Paulo: AbrilCultural (Os Pensadores).

    Thiele, L. P. (1990) Friedrich Nietzsche andthe politics of the soul: A study ofheroic individualism. Princeton; NewJersey: Princeton University Press.

    Turcke, C. (1992). Prlogo. In C. Turcke,Nietzsche e a mania de razo.Petrpolis, RJ: Vozes.

    Winnicott, D. (1975). O brincar e arealidade. Rio de Janeiro: Imago.

    SUMMARY

    Psychoanalysis and social sciences: interlacing new paths in research

    This is a testimony about new paths of research in Social Sciences which takeinto account human subjectivity: my first contacts, the discovery of its richness and theactual instrumentation and practice of such paths with my post-graduation students inSocial Sciences. My approach takes into account various elements present in thepsychoanalythical method: a redefinition of the subject and object notion, the inscriptionof the concept of the right-time in research, the kairotic time; the presence of theanalytical third, or the third partner in qualitative research. I give special importance tothe learning elements that such paths of research open up: 1) the transformation of thevery thinking frame of the researcher: from penetrating, legislative, egoic thought towelcoming, meditative thought; 2) a different way of conceiving reality whereby thesubjective and the objective intermingle whithout entagling one another, that is the so-called intermediate space.

    Key words: Analytical third, or third partner. Kairotic time. Legislative thought.Meditative thought. Intermediate space.

  • Amnris Maroni

    Jornal de Psicanlise, So Paulo, 39(71): 231-246, dez. 2006.246

    RESUMEN

    Psicoanlisis y ciencias sociales: abriendo nuevos caminos de investigacin

    Presento un testimonio sobre nuevos caminos de investigacin en las cienciassociales que toman en cuenta la subjetividad: mis primeros contactos y el descubrimientode las potencialidades hasta el exercicio de esos caminos con mis alumnos en la post-graduacin. Vlgome de varios elementos inscritos en el mtodo psicoanaltico: unaredefinicin de la nocin de sujeto y objeto; la inscripcin de una duracin apropiada enla investigacin, el tiempo kairtico; la presencia del tercer analtico o tercer par en lainvestigacin cualitativa. Destaco los aprendizajes con esos nuevos caminos deinvestigacin: 1) la transformacin del proprio aparato de pensar del investigador: delpensamiento penetrante, legislativo, egoico para el pensamiento-recogimiento, medi-tativo; 2) una otra concepcin de realidad, donde lo subjetivo y lo objetivo estnmezclados, pero no se confunden, el llamado espacio intermedio.

    Palabras-clave: Tercer analtico. Tiempo kairtico. Pensamiento legislativo. Pensamientomeditativo. Espacio intermedio.

    Amnris MaroniR. Benjamim Egas, 66/6 Pinheiros

    05418-040 So Paulo, SPFone: 3088-6511

    E-mail: [email protected]

    Recebido em: 15/08/06Aceito em: 29/11/06