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_________________________________ IV SIMPÓSIO NACIONAL ESTADO E PODER: INTELECTUAIS ________________________ 1 8 a 11 de outubro de 2007 Universidade Estadual do Maranhão São Luís/MA PROTESTANTISMO, MIGRAÇÃO E TRABALHO EM FEIRA DE SANTANA, 1950-1970 Zózimo Antônio Passos Trabuco (mestrando em História Social pela UFBA) Introdução “Que rico campo Deus escolheu para nós” (Burley Cader, missionário Batista em Feira de Santana). “... e tu Sião, serás chamada Procurada, Cidade-Não-Deserta.” (Is: 62: 12). “Vai ter com a formiga, ó preguiçoso, considera os seus caminhos e sê sábio. Não tendo ela chefe, nem oficial, nem comandante, no estio, prepara o seu pão, na sega, ajunta o seu mantimento. Ó preguiçoso, até quando ficarás deitado? Quando te levantarás do teu sono? Um pouco para dormir, um pouco para tosquenejar, um pouco para encruzar os braços em repouso, assim sobrevirá a tua pobreza como um ladrão, e a tua necessidade como um homem armado. (Pr: 6: 6-11). Compreender como os fenômenos da migração, do trabalho, e da vivência do protestantismo, se articularam em Feira de Santana entre 1950 e 1970, é adentrar num entrelaçamento de mudanças que contribuíram para que a cidade desenvolvesse novas relações de trabalho, novas pertenças religiosas, e identidades sociais diferenciadas no cotidiano feirense, ainda não devidamente estudadas. O ponto mais desafiador da trindade – protestantismo, migração, e trabalho – é sem dúvida o fenômeno migratório, por ser especialmente

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1

8 a 11 de outubro de 2007 Universidade Estadual do Maranhão São Luís/MA

PROTESTANTISMO, MIGRAÇÃO E TRABALHO EM FEIRA DE SANTANA,

1950-1970

Zózimo Antônio Passos Trabuco

(mestrando em História Social pela UFBA)

Introdução

“Que rico campo Deus escolheu para nós” (Burley Cader, missionário Batista em Feira de Santana). “... e tu Sião, serás chamada Procurada, Cidade-Não-Deserta.” (Is: 62: 12). “Vai ter com a formiga, ó preguiçoso, considera os seus caminhos e sê sábio. Não tendo ela chefe, nem oficial, nem comandante, no estio, prepara o seu pão, na sega, ajunta o seu mantimento. Ó preguiçoso, até quando ficarás deitado? Quando te levantarás do teu sono? Um pouco para dormir, um pouco para tosquenejar, um pouco para encruzar os braços em repouso, assim sobrevirá a tua pobreza como um ladrão, e a tua necessidade como um homem armado. (Pr: 6: 6-11).

Compreender como os fenômenos da migração, do trabalho, e da

vivência do protestantismo, se articularam em Feira de Santana entre 1950 e

1970, é adentrar num entrelaçamento de mudanças que contribuíram para que

a cidade desenvolvesse novas relações de trabalho, novas pertenças religiosas,

e identidades sociais diferenciadas no cotidiano feirense, ainda não

devidamente estudadas.

O ponto mais desafiador da trindade – protestantismo, migração, e

trabalho – é sem dúvida o fenômeno migratório, por ser especialmente

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determinante (e determinado) na História de Feira de Santana na segunda

metade do século XX, por ser inconstante, ou não contar aqui com fontes

suficientes para mensurar seus aspectos regulares de maneira satisfatória, e

por não haver significativos trabalhos escritos sobre a relação das migrações

internas com o protestantismo no período abordado nesse artigo.

A relação do protestantismo com o trabalho, especialmente no

capitalismo, conta por sua vez, com uma bibliografia respeitável, que remonta a

Troeltsch, Webber, R. H. Tawney, dentre outros, que desafiou os marxistas

ingleses da História Social do Trabalho, e os historiadores do protestantismo no

Brasil. O período de transição para uma fase industrial das relações de trabalho

é especialmente valorizado, por ser um período em que as organizações de

classe com as suas diretrizes, ou não estão formadas, ou ainda não conseguem

disputar com as referências religiosas, predominantes no cotidiano dos

trabalhadores.

Essa predominância do religioso entre os trabalhadores, mobilizados

ou não por movimentos sociais de uma fase pré-industrial (os motins da fome,

ou de Igreja e Rei, ingleses), é explicado em Thompson como decorrência de

uma sociedade ainda não submetida a um “acelerado ritmo de mudança”,

sendo governada, portanto, “numa extensão muito maior, pelo costume”

(THOMPSON: 2001, p. 230), este último quase sempre fundamentado em

valores e práticas religiosas1.

Apesar dos estudos sobre migração e relações de trabalho serem

objetos abordados preferencialmente por pesquisadores da História Social do

Trabalho, e os estudos sobre grupos religiosos, especialmente o

protestantismo, servirem-se das referências da História Cultural “chartieriana”,

os pontos de interseção entre os dois campos historiográficos – e a História se

1 Larissa Penelu, mestranda em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana, tem se dedicado a pesquisar o cotidiano, os conflitos e as práticas dos trabalhadores da feira livre diante do processo de urbanização e industrialização da cidade no início da segunda metade do século XX.

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encarrega de criar interseções entre as historiografias – nos permitem fazer

uma escolha, que com os riscos de limitar a compreensão do problema, nos faz

evitar o perigo igualmente grave do ecletismo teórico impreciso. Optou-se por

trabalhar com a História Cultural, fazendo apropriações da História Social do

Trabalho em alguns pontos em que ela mais imprescindivelmente se mostrou

importante na análise.

A opção pela História Cultural foi determinada pelas fontes

levantadas, na sua maioria, em instituições e arquivos religiosos, ou por serem

fontes cujo conteúdo revelou a ligação das instituições seculares que as

vinculavam (periódicos locais) com grupos ou agentes religiosos. Pesou ainda o

fato de o pesquisador estar familiarizado com a História Cultural, devido à

pesquisa sobre as experiências e narrativas religiosas no Instituto Bíblico Batista

do Nordeste (IBBNE), a partir dos referenciais desse campo historiográfico.

Pesquisa que está em andamento no Mestrado – curiosamente – em História

Social pela Universidade Federal da Bahia.

Uma vez que me ocupo de outra pesquisa no Mestrado em História

Social, esse artigo sobre a relação entre protestantismo, migração e trabalho,

foi escrito no intuito de um auto-amadurecimento sobre os temas

correlacionados, sobre o período comum à minha pesquisa, e um pouco

timidamente, quase como um ensaio de incentivo, de contribuir para as

pesquisas sobre Feira de Santana e o protestantismo. Espero que todos, em

especial os pesquisadores da História Social do Trabalho e da História Cultural

da Religião, possam ter suas frustrações com o texto compensadas com o

esforço de levantar os problemas, tarefa principal à qual me propus. O texto

está dividido em cinco partes: I. Feira de Santana, II. Protestantismo e

Migração, III. Migração e Trabalho, IV. Trabalho e Protestantismo, V. (In)

conclusão.

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Feira de Santana sob o jugo da “Princesa”

Desde o século XIX, que o crescimento demográfico e o

desenvolvimento urbano em Feira de Santana estão vinculados ao comércio e à

sua posição geográfica intermediária; entre recôncavo e litoral, entre capital e

interior, favorecendo as atividades econômicas dependentes de trânsito e

mobilidade, e criando um fluxo de pessoas das localidades circunvizinhas para

servir de mão-de-obra e abastecer o mercado de trabalho.

Essa versão introdutória à História feirense tem raízes profundas, que

se relacionam com outras representações da cidade que iremos abordar mais

adiante e das quais os historiadores da cidade não tem conseguido se

desvencilhar o suficiente para criar outras introduções. Assim como Cristopher

Hill identificava um “jugo normando” na historiografia inglesa, o “jugo da

Princesa2” paira sobre os historiadores do “portal do sertão”, reproduzindo uma

história que tem como conseqüência, colocar a priori, o desenvolvimento, o

progresso, e a hegemonia da cidade na região como o sentido teleológico da

sua História. Os sujeitos e os processos sociais que não se encaixam nesse

sentido histórico, correm os riscos, mesmo quando estudados, de serem

identificados apenas como não súditos da Princesa.

Não que a introdução à História feirense esteja incorreta em si, mas

apenas um dos seus lados é valorizado, o fato da posição geográfica

intermediária, do fluxo migratório, e do comércio de gado e outras atividades

comerciais, serem os fundamentos do desenvolvimento que levou Feira de

Santana a ser a segunda cidade mais importante da Bahia, esquecendo que

esses mesmos fatores contribuíram para que Feira de Santana se deparasse

com os problemas sociais advindos desses mesmos fundamentos: a 2 Sobre o epíteto de Princesa do Sertão dado a Feira de Santana, há uma discussão sobre se a criação é de Ruy Barbosa na famosa conferência proferida na cidade em 1919, ou se esse famoso conferencista apenas se reportou a esse epíteto que teria sido criado por um jornalista local. (GAMA: 2002). O epíteto sugere uma cidade sertaneja destinada a assumir a primazia entre as demais cidades interioranas do Estado pela sua vocação ao progresso.

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mendicância, a violência, a prostituição, a impossibilidade dos poderes públicos

atenderem as demandas sociais e as carências da população etc.

... Feira de Santana é conhecida não só como a “Princesa do Sertão” como também a “cidade dos mendigos”. Durante o dia eles ocupam os “seus lugares” nas calçadas das principais ruas, nos pontos de ônibus, porta dos restaurantes, igrejas e outros. Desenvolveu-se a tal ponto a mendicância, que chega a haver concorrência nos pontos que rendem mais. (MENEZES: 1968 p. 19).

No entanto, apesar das determinações que a migração e o comércio

exerceram sobre a política, a religião, os costumes, as identidades etc., elas

não podem se tornar historiograficamente um outro jugo a substituir a

Princesa, pois elas mesmas foram determinadas pelo conjunto de processos

sociais historicamente construídos em Feira de Santana. Ainda na década de

1930 a cidade registrou os maiores negócios da feira do gado. Entre 1947 e

1951 ocorreu a abertura de estradas municipais e o início da construção da

nova rodovia Feira-Salvador (GENOT: 1985). Poppino se referiu a Feira de

Santana como o eixo rodoviário do estado baiano no contexto da publicação de

sua obra (POPPINO: 1968).

Gradativamente, Feira de Santana passou a ser na região e na Bahia,

não mais uma referência rural da feira do gado, mas uma referência urbana de

desenvolvimento local. Podia ser identificada como “Princesa”, mas para os

grupos sociais ligados ao “progresso” e ao “desenvolvimento”, não havia muita

possibilidade de Feira de Santana ser identificada como “do Sertão”. A cidade

que sempre foi marcada por sua posição geográfica entre o recôncavo e o

litoral, entre capital e interior, agora ficava entre dois discursos de identidade

cultural, que rompia com a pretensa unidade de Princesa do Sertão. A opção a

partir de então era ser “Princesa” ou “do sertão”, e a escolha dependeria do

grupo social do qual se fazia parte ou se almejava fazer parte. Mas quem se

identificaria com o sertão ou a “cidade dos mendigos”?

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Comentando a pavimentação da Rodovia Federal 28, entre Feira de

Santana e Salvador, a Bahia - Feira, Sisnando Lima apresenta a dupla faceta da

Princesa do Sertão. O asfalto era a conclusão “d’aquela velha aspiração – trazer

o asfalto ao sertão da Bahia”, e o cumprimento da promessa que o então

governador Juraci Magalhães fez ao povo: “dar a Feira uma estrada à altura de

sua capacidade de desenvolvimento”.

Custa crer que esteja realmente concluída, tão longa foi a espera. E as histórias que surgiram... um massapê invencível a resistir a todos os artifícios da técnica moderna; um vértice a sorver todas as verbas... No primeiro comício de sua campanha, nesta cidade, o então candidato Juraci Magalhães prometeu, se eleito, concluir a estrada dentro de um ano. Um popular não se conteve e gritou: “nem em dez”. Com efeito, a descrença foi a nota dominante até os últimos dias, mesmo entre seus amigos mais íntimos. A lenda do massapê invencível lançara raízes profundas.3 (Grifos nossos).

Os conceitos de moderno e modernidade que transparecem nos

comentários e notícias do jornal Folha do Norte a partir da década de 1960

definem-se como a superação das feições rurais, substituídas por um ideal de

desenvolvimento urbano, de acordo com o pensamento nacional-

desenvolvimentista herdado do período JK, dos teóricos cepalinos (Cepal), ou

da política sudenista (Sudene). Substituição das feições rurais por feições

urbanas que encontrava resistências estruturais e culturais, reveladas muito

claramente, no caso de Feira (acompanhem os grifos marcados no texto), pelas

raízes profundas, que a lenda do massapê invencível, lançara entre um popular

seguimento social, que não se conteve e gritou, resistindo a todos os artifícios

da técnica moderna.

Antes de passar para os temas desse artigo: o protestantismo, a

migração, e o trabalho, é preciso esclarecer que não há problema em Feira de

3 FOLHA DO NORTE 13/02/1960. Sisnando Lima. É a vez da Bahia p. 01, n. 2640.

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Santana continuar a ser chamada de Princesa do Sertão, desde que se

reconheça esse termo como uma síntese das contradições que marcam a

História da cidade: uma pedinte no massapê invencível do sertão sonhando

com o progresso.

Protestantismo e migração

A primeira iniciativa do protestantismo missionário que se tem notícia

em Feira de Santana ocorreu em 1889, com as atividades do missionário

presbiteriano Rev. Chamberlain, que distribuiu Bíblias e folhetos evangélicos, e

realizou cultos públicos. O jornal Folha do Norte descreveu o conflito ocorrido

em uma das atividades missionárias do reverendo presbiteriano, no seio de

uma população acostumada ao catolicismo como religião oficial, condição que

só mudaria com a primeira constituição republicana:

é vaiado o pastor protestante Chamberlain, cidadão norte-americano, ao iniciar na praça João Pedreira, uma conferência de propaganda religiosa. A polícia intervém no sentido de dispersar os agressores, que retornavam de uma procissão. Estabeleceram-se correrias e tumultos. Sahem feridos, a pedra, diversas pessoas.4 (grafia original).

Além das oposições da Igreja Católica e de seus fiéis mais devotos, o

missionário Chamberlain iria enfrentar a perda de seus filhos em decorrência da

febre amarela, o que motivou a sua transferência para Ponte Nova. Rollie

Poppino nos informa em seu livro que: “Só uma vez ou duas, nos trinta anos

que se seguiram, missionários protestantes visitaram o município” (POPPINO:

1968, p. 282).

Em 1935 chegaram a Feira de Santana missionários da Sociedade

Bíblica Britânica e Estrangeira, o casal neozelandês Isobel C. Gillanders e

4 Folha do Norte 24/03/1940.

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Roderick Gillanders. O casal organizou em 1937 a Igreja Evangélica Unida,

primeira igreja local do protestantismo em Feira de Santana, que congregava

pessoas de diferentes denominações residentes na cidade5. Ao que tudo indica

o curto período de Chamberlain na cidade deu resultados, pois quando as

famílias presbiterianas que migraram de Campo Formoso para Feira de Santana

chegaram à região, encontraram presbiterianos que se reuniam em casas de

particulares ou participavam da Igreja Evangélica Unida. A reunião das famílias

migrantes com os fiéis já existentes proporcionou a fundação da Primeira Igreja

Presbiteriana em 19506.

Vieram, depois, outras missões, e, em 1950, instalaram-se no município duas Igrejas Batistas, uma Presbiteriana, duas de Pentecostes e uma Congregação Adventista. Apesar do número de seitas representadas, em 1950, havia ainda menos de mil protestantes em Feira de Santana (POPPINO: 1968, p. 282). (grifos nossos)

Menos de mil protestantes ou quase mil, a depender de como se olha

para os números a partir de outros dados apresentados pelo próprio Poppino.

Pode ser considerada uma cifra pequena comparada à população da cidade que

já era a quarta do Estado baiano em número de habitantes, mas pode também

ser interpretada como uma primeira amostra da aceitação do protestantismo,

uma vez que as denominações pioneiras datam de 1937 e 1947, e até 1950,

Feira contava com mais dois templos Batistas, um Presbiteriano, um Adventista,

e dois Pentecostais não nomeados pelo brasilianista.

Quanto às duas igrejas “de Pentecostes” não nomeadas,

possivelmente ambas eram da Assembléia de Deus que se instalou em 1939,

confirmando a tendência pentecostal de inserir-se em cidades de crescente

urbanização e aumento populacional. Atualmente a Assembléia de Deus conta

5 GILLANDERS, Isobel. A História inacabada. Feira de Santana. Planzo. 1990. 6 CAVALCANTE, Edetina Lima. A semente que caiu na boa terra. (memórias da instalação da 1ª Igreja Presbiteriana de Feira de Santana, por uma de suas fundadoras).

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com 80 templos e 10.000 praticantes O neopentecostalismo esperaria o ano de

1985 para estabelecer-se em Feira de Santana com a Igreja Universal do Reino

de Deus, que mantendo sua característica de construir grandes templos e

catedrais, instala numa das principais ruas da cidade um templo capaz de

receber até 4.000 pessoas. Estima-se que cerca de 3.000 fiéis pertençam à

Igreja Universal do Reino de Deus em Feira.

A Primeira Igreja Batista de Feira de Santana, como em geral ocorreu

com os Batistas no Brasil, foi fundada por missionários norte-americanos da

Convenção Batista do Sul dos Estados Unidos, enviados pela Junta de Missões

Estrangeiras de Richmond. Chegaram à cidade no início da década de 40: “Em

outubro de 1941 o jornal Folha do Norte noticiou a presença de uma caravana

evangélica. No mesmo ano organizou-se a Congregação Batista. Em 1947

tornou-se a Primeira Igreja Batista de Feira de Santana” (SILVA: 2006 p. 5).

Os protestantes concorriam com a familiaridade da sociedade com o

catolicismo desde os tempos coloniais, e com os cultos afros, que além de

populares entre as camadas mais pobres do município (principalmente

descendentes de escravos), contavam com a participação de católicos nominais.

Mas os protestantes enfrentaram, principalmente, a oposição da Igreja Católica

e sua relação com os poderes públicos e órgãos formadores de opinião.

Segundo o artigo de Tarcísio Farias Guimarães:

Entre os anos de 1935 e 1955 encontramos poucas referências aos batistas e nenhuma referência à Igreja Evangélica Unida, em contraposição no que diz respeito à Maçonaria e Igreja Católica Romana, no jornal “Folha do Norte”, um dos mais tradicionais periódicos da região feirense no período. Freqüentemente as reuniões católicas e sermões do clero católico eram estampadas nas primeiras páginas, recebendo freqüentes manifestações de apoio por parte das lideranças políticas de Feira de Santana. Esse silêncio direcionado aos protestantes dá-se num período em que as duas igrejas já tinham edificado templos amplos e situados no centro da cidade, com a arquitetura própria de um templo religioso, tendo torres por exemplo, e recebendo vários dias durante a

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8 a 11 de outubro de 2007 Universidade Estadual do Maranhão São Luís/MA semana um número crescente de fiéis portadores de Bíblias. (GUIMARÃES, 2001).

No entanto, o cenário não parecia apenas desafiador aos

protestantes, mas também promissor. Em 1952, enquanto estudavam a Língua

Portuguesa numa escola de Campinas como parte da preparação missionária, o

casal Ulene Cader e Edward Burley Cader recebeu informações sobre o campo

baiano fornecidas por M. G. White. Foi o próprio Burley Cader quem descreveu

sua chegada, juntamente com sua esposa Ulene Cader em Feira de Santana:

No meio do ano (1952), o pastor M.G. White apareceu na Escola e nos falou sobre o campo Baiano, especialmente sobre Feira de Santana e Jaguaquara. Tínhamos o direito de visitar vários estados que precisavam de missionários antes de escolher nosso campo de trabalho. Pouco tempo depois da visita do Pr. White, num sábado de manhã, enquanto tomávamos café, eu olhei para o rosto da minha esposa e disse: “da minha parte não preciso visitar os campos. Deus já falou comigo”. Emocionada, com lágrimas nos olhos, minha esposa respondeu: “É Feira de Santana?” e eu respondi: “Sim” (...) No dia 5 de Janeiro de 1953, chegamos para trabalhar e morar (...) Como é do conhecimento de muitos, em menos de 10 anos, o trabalho de Deus aumentou de 7 pequenas igrejas na Associação Nordestina, para 110 igrejas e congregações com mais quatro Associações: Feirense, Leste, Noroeste e Paraguaçu. Que rico campo Deus escolheu para nós7.

A cidade é representada nesse relato de Burley Cader como um “rico

campo que Deus escolheu para nós”. Essa é uma representação originada pelos

resultados da atividade missionária, de expansão protestante na cidade

feirense, e a partir dela, no interior do Nordeste, que parecem reforçar a

imagem de Feira de Santana como uma cidade que aceita ou recebe

favoravelmente quem vem de fora lhe apresentando perspectivas de

7 Relato Auto-biográfico de Edward Burley Cader. Homenagem da Convenção. Livro do Mensageiro, 63ª Assembléia Anual da Convenção Batista Baiana, 1986.

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prosperidade no trabalho. Mas o relato do missionário descreve também os

momentos de dificuldades:

Parece que satanás colocou todas as suas barreiras em nossa frente naqueles primeiros dias. Ficamos três semanas numa pensão sem água, sem luz e dormimos em cima de colchões cheios de buracos! A comida era completamente diferente: carne dura, muito tempero e sem verduras. Os costumes do povo e até o pouco de Português que tínhamos aprendido foi mudado; minha esposa estava recém-operada e passamos um ano sem ter um carro8.

O relato se torna representativo das visões dos missionários

americanos sobre Feira de Santana e sobre as condições que ela apresentava

para a inserção do protestantismo: “sem água, luz (...) colchões cheios de

buracos! (...) e um ano sem ter um carro.” A descrição das condições precárias

é mais do que uma estratégia para realçar os resultados alcançados. Nela

sobressaem as diferenças culturais, como o conhecimento insuficiente dos

costumes do povo e do Português, e a diferença na alimentação: “carne dura,

muito tempero e sem verduras”, que por terem sido ressaltadas, parecem

refletir diferenças percebidas no povo que não eram irrelevantes.

Como ficou claro nesse breve histórico sobre os Batistas em Feira de

Santana, a presença missionária americana sempre foi uma constante,

acompanhando a presença ianque em outros setores da sociedade feirense:

Viajando pela Bahia-Feira totalmente pavimentada, fica-se a conjecturar sobre o tremendo esforço para se conseguir estes cento e poucos quilômetros de pavimentação, tarefa de dias das grandes firmas pavimentadoras americanas9. (grifos nossos).

8 Idem. 9 FOLHA DO NORTE 13/02/1960. Sisnando Lima. É a vez da Bahia p. 01, n. 2640.

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A atividade evangelística era feita nos espaços públicos, num

verdadeiro corpo-a-corpo, como fica evidente no relato do missionário

americano Edward Burley Cader: “Colocamos nosso pequeno órgão num carro

de mão e junto com os irmãos, saímos para fazer ar-livre!”10, ou através de

meios estratégicos para atingir o maior número possível de pessoas, como

descreve Newell Mack Shults: “Lembrando e agradecendo a Deus pelas

ocasiões quando tive o privilégio de pregar o evangelho a milhares de pessoas

(o dia da Bíblia, Rádio, TV, e Campanhas Evangelísticas)”11.

As expectativas do primeiro diretor do Instituto Bíblico Batista do

Nordeste, Robert Elton Johnson, de que os obreiros preparados na instituição

falassem a língua do povo, sugerem uma preocupação muito maior do que a

simples insuficiência do conhecimento do Português. Indicam o objetivo de

alcance das “massas menos favorecidas” – palavras do diretor – através de

obreiros, que identificados com a própria cultura, se tornassem desbravadores.

O significado de “massas menos favorecidas” diz respeito à membrezia batista,

constituída predominantemente por pessoas dos seguimentos mais populares

da sociedade. Isso será visto no último tópico quando tratarmos dos cursos

profissionalizantes e das profissões majoritárias entre os batistas.

Migração e trabalho

No período do governo de Getúlio Vargas (1930-1945), junto com as

primeiras denominações protestantes, organizou-se o sistema de telefones

urbanos, uma nova rede elétrica, e houve a abertura de estradas para alguns

distritos. Esses dentre outros fatores iriam contribuir para que num curto

espaço de tempo, cada vez mais, novos habitantes fossem incorporados no

10 Relato Auto-biográfico de Edward Burley Cader. Homenagem da Convenção. Livro do Mensageiro, 63ª Assembléia Anual da Convenção Batista Baiana, 1986. 11 Newell Mack Shults. O fim é melhor do que o princípio. Sermão proferido na Formatura da Turma de 1998.

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cotidiano feirense, mudando as feições da cidade, as relações de trabalho, e

como não poderia deixar de ser, alterando os costumes.

O Jornal Folha do Norte publicou em 1952 um texto de Hugo Navarro

Silva que descreve as mudanças da cidade nos dez anos que se seguiram à

morte do poeta Aloísio Rezende12. O texto é uma carta dirigida ao “Querido

Aloísio” e mostra o progresso e a modernidade como que tomando a cidade de

assalto, e expressa um sentimento de estar-se submetido “a um acelerado

ritmo de mudança” (THOMPSON: 2001: p. 230). Eis o texto:

A tua cidade, bisonha e, certamente, com algo de pitoresco e de romântico à época em que viveste, derramou-se, esbateu-se por sobre o planalto com o afã de quem tem um encontro marcado com o progresso. Os palacetes alinham-se como nunca se alinharam. Rasgam-se avenidas, tentáculos gigantescos que parecem pretender abarcar a orbe. (...) Os subúrbios estão irreconhecíveis, transformados. As moças bebem whisk e fumam cigarro americano. Há dancing clubs e clubs dancing. (…) Um mocinho, na Feira, há alcançado a meta suprema de todos os seus sonhos no dia em que dá passos de cabaretier no Tênis Clube e no Cassino Irajá13. (grifos nossos)

Haveria muitas considerações a fazer sobre esse texto de Hugo

Navarro Silva, e faremos de outros extratos do texto completo, inclusive as

partes mais diretamente referentes à migração e ao protestantismo. Quanto ao

extrato acima citado, o grifo foi colocado para chamar a atenção ao “encontro

marcado” de Feira com o progresso, pois consideramos que essa idéia é a que

fundamenta os comentários bem humorados e satiricamente críticos do

articulista. O progresso atropela o pitoresco e o romântico, seus tentáculos (as

avenidas) que pretendem abarcar a orbe, abrem caminhos para a apropriação

12 Agradeço a Grazyelle Reis, mestranda em Literatura e Diversidade Cultural pela UEFS, por ter disponibilizado essa fonte, parte de sua pesquisa sobre a literatura nos jornais feirenses e as visões sobre a cidade presentes nessa literatura. Chamarei esse documento de Querido Aloísio. 13 Folha do Norte 13/01/1951

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de referências culturais estrangeiras (Whisk, dancing clubs, cigarro americano),

e seus lugares privilegiados se tornam espaços de conquista de status social

(Tênis Clube, Cassino Irajá).

Quanto aos subúrbios, o autor refere-se apenas à sua irreconhecível

transformação. E aqui está outro caminho de leitura do texto e do seu contexto.

Os conflitos sociais gerados pelo conjunto de mudanças que Hugo Navarro Silva

chama de progresso vinculam-se muito claramente ao fenômeno migratório,

como pode ser percebido em outra parte do Querido Aloísio:

A população sofreu uma extraordinária mudança. Há nortistas, com todos os sotaques e de todas as peixarias. O destacamento policial também cresceu muito, e trabalha febrilmente em dar facada em paraibano e receber facada de paraibano. Ontem deu dois macacos no bicho, que anda muito animado por cá. Asseguro-te, nunca houve tanta barriga a mais e tanta cabeça a menos como agora14.

A diversidade cultural adquirida com os nortistas de todos os

sotaques, o aumento da pobreza ou das classes populares ocasionada pelos

nortistas de todas as peixarias, a violência manifesta na “troca de facadas”

entre a polícia e os “paraibanos”, e as barrigas a mais da mendicância, com

cabeças a menos para pensar em soluções, representavam de fato uma

mudança extraordinária na população de Feira de Santana, que empurrava as

imagens idealizadas de uma cidade bisonha, pitoresca e romântica para um

passado cada vez mais remoto. E esse é um texto que antecede em duas

décadas à chegada da Universidade e do Centro Industrial Subaé.

Se a migração criou tais efeitos sobre a cidade, o que terá levado

tanta gente a Feira de Santana? A posição geográfica intermediária entre

14 Idem.

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capital e interior, recôncavo e litoral, norte e sul, era apenas um facilitador do

trânsito e do fluxo entre esses pólos, mas não explica nem as motivações dos

que chegavam, nem as razões daqueles que ficavam mesmo sob condições

que muitas vezes contradiziam as promessas que os levaram a migrar.

Sobre as motivações que levavam as pessoas a saírem de suas

cidades, as fontes e a bibliografia não podem nos informar muito, se é que

havia especificamente motivações para sair. Quanto às motivações para

escolher Feira de Santana como lugar para ir e/ou para ficar, tanto as fontes

quanto a bibliografia nos indicam algumas imagens construídas sobre o

destino, que seriam capazes de, se não criar sonhos e mover emoções, no

mínimo despertar interesse. Se ainda não havia um complexo industrial e uma

universidade, havia o afã de um “encontro marcado” com o progresso, que foi

criado numa geração imediatamente anterior ao período desse artigo, com um

conjunto de outras imagens que ofereciam aos feirenses uma identidade

social, e aos não feirenses uma série de visões do paraíso. Aldo descreve o

período de 1832-1937 como:

... a fase do desenvolvimento de discursos específicos sobre a propicialidade do ambiente de Feira de Santana para a saúde, bem como sobre a civilidade e progressismo que posteriormente o tornam apto a realizar plenamente a sua vocação comercial, elementos que... viriam a integrar o processo de construção de uma identidade social local (SILVA: 2000, p. 8).

Uma natureza sã, uma cidade progressista e civilizada, vocação para o

comércio, “encontro marcado” com o progresso, realmente uma princesa no

meio do sertão, nada a ver com a cidade dos mendigos. Completando o

marketing feirense, a cidade se apresentava promissora e bastante hospitaleira:

Estendem-se suas avenidas

Com um braço estendido

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De mãos abertas

A receber o bem vindo15.

Braço estendido podia ser, mas as mãos não estavam abertas o

suficiente para evitar as tantas barrigas a mais das quais nos informa o Querido

Aloísio. Não bastava aumentar o destacamento policial para dar facada em

“paraibano”, e nem era possível controlar as ruas cheias de nortistas de todas

as peixarias e com tantos pedintes disputando as “melhores calçadas”, sem

criar uma extensa rede de precauções16.

Na bibliografia da História Social do Trabalho essa rede de

precauções passa necessariamente pela religião, e por uma valorização do

trabalho que nos estudos sobre o protestantismo missionário está sempre

presente. Uma rede de precauções era necessária aos poderes públicos e aos

grupos sociais que não predominavam nas ruas, mas sim nos espaços privados

da sociedade. Como a valorização do trabalho, e essa rede de precauções se

relacionaram com o protestantismo em Feira de Santana? O próximo tópico foi

uma tentativa de tornar mais compreensível essa interação.

Trabalho e Protestantismo

As primeiras Denominações protestantes organizaram suas igrejas

locais em Feira de Santana na década de 1937 a 1947. Nesse mesmo período

começaria uma tradição da cidade com a qual o protestantismo iria se

confrontar: a Micareta de Feira. Essa festividade foi aos poucos superando em

15 Folha do Norte. Feira (poema de Carla Sampaio). 27/01/1952. Essa é mais uma fonte disponibilizada por Grazyelle Reis da sua pesquisa sobre literatura de jornais, e será chamada de Feira. 16 A “extensa rede de precauções” é como o Sérgio Buarque de Holanda se refere ao paternalismo, relação muito estudada atualmente como meio de dominação pelos dominantes, e de barganha pelos dominados.

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importância a Festa de Santana, principal festa religiosa da cidade. Não

obstante Rollie Poppino ter descrito a população feirense como não possuindo

um espírito religioso, privilegiando as atividades seculares, a exemplo da

principal atividade econômica - o comércio - o mesmo autor ressalta a

importância da Igreja Católica na vida social da cidade, influenciando a cultura

e a política. Essa abordagem se deve ao fato de Poppino utilizar como fonte

principal o jornal Folha do Norte, representativo das elites locais que o

mantinham e com a Igreja Católica como instituição tradicional de Feira de

Santana.

Os jornais locais, sobretudo o mais tradicional, Folha do Norte, não

davam notícias sobre as atividades protestantes, ou não as davam de maneira

favorável devido à mencionada ligação do jornal com a Igreja Católica. Como

perceber então o posicionamento dos protestantes diante da festa popular?

Tomamos dois caminhos para esclarecer essa questão. O primeiro deles foi

discutir os elementos da ética protestante que o tornaram avesso ao tipo de

festividade que era a Micareta. O segundo deles foi através do que o Jornal

Batista da época escrevia sobre as festas da Bahia.

A ética protestante, segundo Weber, ensina o trabalho como

vocação, e os rendimentos do trabalho como sinal da aprovação divina. O

homem é o mordomo de Deus no mundo, portanto, o trabalho e os seus

rendimentos devem ser para a glória de Deus e a propagação do Evangelho,

não é para ser gasto nos prazeres que o mundo oferece, mas investido para

ajuntar tesouros no céu onde a traça não come e nem a ferrugem consome.

Comentando esse aspecto ascético da ética protestante, Prócoro Velasques

Filho escreve:

Ela realça o homo faber, isto é, a pessoa voltada para a produção, para o trabalho; o homo circunspectus, sério, que não se interessa por futilidades humanas; o homo sapiens, devotado à vida intelectual, e cujo prazer estava na leitura “sadia” e no aprendizado constante de coisas novas; e, por

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8 a 11 de outubro de 2007 Universidade Estadual do Maranhão São Luís/MA fim, o homo economicus, que acumulava o máximo possível de riquezas e bens a fim de viver confortavelmente e legar tranqüilidade econômica à sua posteridade. Como se vê, o homo ludens – do jogo, da festa, do prazer – está completamente ausente. Não é protestante. Representa, para a ética protestante, sua própria antítese. (VELASQUES FILHO: 1990).

Tomaremos por base os comentários feitos às festas de Salvador,

pelos missionários americanos que atuavam na capital, os mesmos que

missionavam em Feira, e os comentários escritos no Jornal Batista ao caráter

festeiro da cultura e da religiosidade baiana, católica ou afro-brasileira. O

protestante era o não católico, e quanto mais o católico estivesse identificado

com as atividades culturais da cidade, dentre elas as festas, tais atividades

passavam para a dimensão do pecado no discurso protestante, porque proibido

e “errado”, como no comentário do Jornal Batista sobre o carnaval citado

abaixo:

As músicas incitantes, o ar saturado com o conteúdo de lança perfumes, a excitação nervosa, a exposição de corpos seminús, o roçar de corpos de pessoas de ambos os sexos, são fatores que provocam e excitam a sensualidade. Daí ser notório que é após o carnaval que as casas de meretrício recebem o maior contingente de novas habitantes, desgraçadas durante os dias de carnaval (...) O que diz a Bíblia: "não sabeis porventura que os injustos não herdarão o reino de Deus? Não vos enganeis: nem os fornicários, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados, nem os sodomitas (pederastas), nem os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os maldizentes, nem os roubadores herdarão o reino de Deus" (I Co 6: 9,10) e no carnaval não os há a todos eles?.17

Em Feira de Santana, os protestantes se defrontavam com a popular

Micareta, e com a festa mais tradicional do calendário católico da cidade, a

festa de Santana. E se o próprio tempo era marcado pela festividade católica,

17 O Jornal Batista. O carnaval. Nº 06, p. 1. Fevereiro de 1961.

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os protestantes precisavam habitar outro tempo, o da produtividade e do

trabalho. Os protestantes feirenses não se afastaram da vida na cidade, mas

viveram as relações de enfrentamento cultural com ela através da ascese

intramundana do trabalho.

O conceito de mordomia cristã é a síntese da ética protestante sobre

o trabalho e a consagração de todas as dimensões da vida para a

produtividade. Primeiro aluno formado no Instituto Bíblico Batista do Nordeste a

se tornar professor da instituição, o Pr. José Belarmino do Monte lançou em

1983 na Biblioteca Municipal de Feira de Santana o seu livro A benção da

mordomia, publicado pela JUERP, editora da Denominação. No capítulo O

tempo é do Senhor, o autor ensina lições à luz de textos bíblicos, de como

melhor aproveitar o tempo para a glória de Deus, a santificação e o progresso

próprios. O tempo não é interpretado pelo pastor batista nos mesmos termos

do Time is Money de Benjamim Franklin, e sim, como mais prioritário do que o

dinheiro, pois ao contrário deste, o tempo é um capital não acumulável, que

não se pode guardar. Segundo o pastor, o tempo muitas vezes é esbanjado:

Em conversas inúteis, que não edificam. As conversas frívolas degeneram em mexericos destruidores. Em leituras impróprias. Em atividades não necessárias, como: tempo demasiado em passeios, brinquedos, jogos e outras atividades. Em ociosidade, passando a maior parte do tempo sem realizar nada de útil e produtivo.18 (grifos nossos).

Nas díades: “bom uso do tempo X mau uso do tempo”, “útil X inútil”,

“produtivo X desnecessário”, percebe-se que o lúdico – passeios, brinquedos,

jogos – é identificado com a ociosidade em contraposição ao trabalho na

prática do princípio da mordomia cristã. O próprio lazer só é valorizado em sua

função de recuperar as energias gastas no trabalho para que ele possa ser

recomeçado com uma melhor produtividade:

18 MONTE, José Belarmino do. A benção da Mordomia. Rio de Janeiro, Junta de Educação Religiosa e Publicações (JUERP), 1983.

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8 a 11 de outubro de 2007 Universidade Estadual do Maranhão São Luís/MA Quando dignamente gastamos as horas de trabalho, o lazer, sem dúvida, transforma-se num tempo de auto-renovação, de recuperar novamente as forças perdidas, de empregar nossos talentos para a maravilhosa busca daquilo de que somos incumbidos a realizar, seja numa atividade secular ou cristã19.

A razão para este pensamento sobre o lazer é a mudança de

perspectiva sobre o trabalho, construída pelo protestantismo desde a Reforma

Protestante do século XVI. Para os reformadores o trabalho não era a maldição

adâmica, mas a atividade que dignificava o homem como o mordomo de Deus

no mundo criado. O Senhor colocou o homem no Jardim do Éden para que ele

o cultivasse, o guardasse, para dar nome às coisas, para povoar a terra e a

sujeitar (Gêneses 1-2). O próprio Deus trabalhou seis dias na criação de todas

as coisas, descansando no sétimo dia. Por isso o trabalho dignifica o homem, e

a finalidade de sua realização deve contribuir para que ele não seja feito “com

pressa que termine, mas como momentos agradáveis (o lúdico está no

trabalho), por estar contribuindo para o progresso do país”20. (grifos nossos).

Compartilhando da tese do livro O futuro dos povos católicos do

economista belga Emile Laveleye, publicado em 1875, do progresso como algo

atávico ao protestantismo e à sua ética do trabalho, em contraposição ao

atraso associado ao catolicismo (SILVA: 2002), os Batistas feirenses irão

ensinar no Instituto Bíblico Batista do Nordeste o trabalho como indissociável da

preparação teológica, como uma arte útil ao ministério.

A partir de 1960, antecipando-se em uma década à chegada do CIS e

da Universidade Estadual de Feira de Santana, as pessoas de outras localidades

que se dirigiram ao Instituto Bíblico Batista do Nordeste (IBBNE) não estavam

interessados apenas em serem formados para servir à denominação, mas

chegaram a Feira para engrossar o mercado de trabalho, assim como os

Batistas da cidade iriam buscar as atividades profissionais que

19 Idem. 20 Idem.

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complementariam a santificação do estudo teológico mantendo-os ocupados. O

IBBNE foi um pólo migratório em que o ensino e o trabalho se encontraram

pelo menos para os protestantes, antes da chegada do CIS e da UEFS.

No Livro do Mensageiro das Assembléias Anuais da Convenção

Batista Baiana (1984-1988) identificamos a instalação de cursos

profissionalizantes no Instituto Bíblico Batista do Nordeste:

A Escola de Profissionalizantes com cursos de eletrônica, marcenaria, carpintaria, solda elétrica, corte e costura, datilografia e secretariado visa os alunos que necessitam um meio de ganhar o sustento de seu curso e ao mesmo tempo aprender uma arte que poderia ser útil no seu ministério. A Escola é um ação social do Instituto oferecendo um meio de sobrevivência para as famílias das nossas igrejas e a comunidade. A escola já está produzindo grades e portas de ferro e móveis de alta qualidade para as igrejas.21

Os cursos profissionalizantes citados são um indicativo das classes

sociais que pertenciam à denominação e ingressavam no Instituto, bem como

do mercado de trabalho para essas classes em Feira de Santana no período,

mas são igualmente, um indicativo da preocupação com o trabalho como

complementar ao estudo e meio de superar a ociosidade.

Mesmo as fontes sendo da década de 80, citamos aqui porque são

representativas da relação do protestantismo feirense com o trabalho,

sobretudo no plano institucional, de um centro de formação de pastores e

demais agentes do campo missionário em atividade desde 1960. A opinião

expressa nas fontes da década de 1980 foi formada em meio às condições de

trabalho em Feira de Santana, preparadas a partir da década de 1960 para as

mudanças que viriam na década seguinte com o CIS e com a UEFS.

A Escola de Profissionalizantes do Instituto Bíblico Batista do

Nordeste, a partir do que encontramos no Livro do Mensageiro das Assembléias

21 Relatório do Instituto Bíblico Batista do Nordeste. Livro do Mensageiro, 61ª Assembléia Anual da Convenção Batista Baiana, 1984.

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Anuais da Convenção Batista Baiana, conseguiu inserir seus alunos no mercado

de trabalho. Em 1985, a distribuição de alunos por curso profissionalizante era:

Datilografia e Secretariado (44), Técnica Eletrônica (30), Solda Elétrica e

Serralheria (28), Corte e Costura (10), Marcenaria e Carpintaria (04). Em 1984,

o Livro do Mensageiro relata que:

A turma de técnica de eletrônica da Escola de Profissionalizantes fez uma demonstração dos objetos que confeccionaram: carros elétricos, rádios, antenas e brinquedos elétricos. Alguns dos alunos já tem encontrado emprego e um aluno já estabeleceu duas casas para reparos de aparelhos elétricos.22

Dando crédito à opinião de Poppino sobre os sentimentos religiosos

dos feirenses, que valorizavam a religião como força social mais do que

espiritual, e que no confronto de interesses particularmente religiosos com os

interesses materiais optavam pela matéria em detrimento do espírito, podemos

inferir que o protestantismo, apregoando uma ética de valorização do trabalho

como parte significativa de sua prática religiosa, teria grandes oportunidades de

aceitação.

Um documento tão crítico quanto às mudanças que ocorreriam em

Feira a partir da década de 1950, como o Querido Aloísio, não podia

desconsiderar a presença protestante. E Hugo Navarro Silva insere o

protestantismo no conjunto de transformações carregadas da negatividade do

novo que se instaura. Nem as mudanças nem o protestantismo são vistos de

maneira positiva, mas ambos são vistos juntos, como fatores desintegrantes e

dispersores:

Em cada esquina, berra um pastor protestante com sua proverbial burrice, atirando o evangelho às golfadas, aos troncos, aos pedaços, por sobre os fiéis e por sobre quem passa.

22 Relatório do Instituto Bíblico Batista do Nordeste. Livro do Mensageiro, 62ª Assembléia Anual da Convenção Batista Baiana, 1985.

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8 a 11 de outubro de 2007 Universidade Estadual do Maranhão São Luís/MA Mas, ainda há bons católicos, os que vão à missa, aos domingos, por que assim manda o catecismo, e de doutrina cristã sabem ficar o Vaticano em Roma e que Satanás é um mau sujeito23.

Analisamos esse trecho em duas partes. Em primeiro lugar buscamos

compreender a identidade dos munícipes feirenses com o catolicismo, sugerida

pelo documento, para em seguida discutirmos a possibilidade de penetração

protestante e a visão que o escritor, e as elites locais que o Folha do Norte

representava, tinha do protestantismo. A caracterização da religiosidade

católica corresponde à descrição de Poppino sobre a não profundidade dos

sentimentos religiosos dos feirenses, pois os bons católicos eram aqueles que

iam à missa aos domingos “porque assim manda o catecismo”, e cujo

conhecimento da religião não era determinante para sentir-se um bom católico.

O que sabiam da doutrina cristã era: “ficar o Vaticano em Roma e que Satanás

é um mal sujeito”.

A despeito do comentário depreciativo, o texto de Hugo Navarro Silva

aponta duas características que sugerem possibilidades de conquista de fiéis

pelos protestantes nesse período: o conhecimento insuficiente da doutrina, e a

não condicionalidade entre participar e ser da religião vivenciada pelos

católicos. O Evangelho atirado às golfadas, aos troncos, aos pedaços, talvez

fosse a mais constante oferta religiosa que passava “por sobre os fiéis”.

Os protestantes não são caracterizados pelo autor por um

desconhecimento da doutrina cristã, mas por sua “proverbial burrice”, que, no

entanto, não impedia que seus pastores estivessem “em cada esquina” e

fossem ativos na sua atividade evangelística, “atirando” o Evangelho às

golfadas, aos troncos, por sobre os fiéis (católicos?), e por sobre “quem passa”.

A atribuição de uma “proverbial burrice” aos protestantes pode ser decorrente:

23 Folha do Norte 13/01/1951

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1. Do preconceito do escritor, que seria partilhado pelas elites locais

e pela Igreja Católica, de históricas relações com o jornal Folha do Norte;

2. Da linguagem coloquial própria à atividade evangelística

protestante feita “em cada esquina” e entre “quem passa”;

3. Do preconceito às classes sociais em que os protestantes

majoritariamente se inseriam, e a formação intelectual/teológica de seus

líderes, pois o texto é anterior à instalação do IBBNE.

Mas até aqui falamos apenas das iniciativas Batistas sobre o trabalho,

faltando outras iniciativas às quais as fontes pesquisadas nos permitem discutir.

Dentre elas destacam-se a criação da Associação Feirense de Assistência Social

(AFAS) e o Sistema de Integração do Migrante (SIM), ambos de iniciativa de

um pastor presbiteriano, Josué Mello, que depois adquiririam um caráter

ecumênico, a primeira na década de 60 e o segundo na década de 70.

Preocupados com o problema da mendicância em Feira de Santana,

membros da 1ª Igreja Presbiteriana organizaram a Sociedade Evangélica de

Assistência aos Mendigos (SEFAM) em 03 de Março de 1963, com o objetivo de

promover a recuperação dos mendigos num centro que seria fundado numa

chácara de propriedade dos membros organizadores da entidade. Embora

tenha sido registrada, não chegou a funcionar de fato, transformando-se em 10

de Julho de 1967, sob iniciativa do Pr. Josué Mello em AFAS, fundada como

entidade ecumênica com a finalidade de erradicar a mendicância com o auxílio

da comunidade feirense.

A AFAS congregava entidade religiosas (católicos, evangélicos, e

espíritas), leigas (Maçonaria, Rotary Clube, e Lions), públicas (Prefeitura

Municipal e Câmara dos Vereadores), e entidades profissionais (Centro de

Indústrias e Associação Comercial). Era formada por sócios provenientes dessas

entidades sociais e prometia isentá-los, e à toda comunidade feirense, do

encargo de dar esmolas caso sustentassem seu trabalho.

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8 a 11 de outubro de 2007 Universidade Estadual do Maranhão São Luís/MA Inicialmente houve reação por parte da comunidade: prometia colaborar, mas à medida que se retirassem os mendigos da rua o que lhe provaria a capacidade de funcionamento da AFAS. Esta que não contava com recursos para iniciar o trabalho, submetendo-se com dificuldades às exigências impostas, procedendo o recolhimento dos mendigos e os seus devidos encaminhamentos. A partir daí o número de sócios tem aumentado, o que faz crer na confiança da comunidade em relação ao trabalho que a entidade vem realizando. (MENEZES: 1968, p. 57)

Em outras palavras, a extensa rede de precauções dos poderes

públicos e das entidades de classe exigia resultados para financiar a retirada dos

mendigos das ruas, e assim, “solucionar” os problemas associados à

mendicância. Como a AFAS pretendia educar profissionalmente os mendigos

aptos ao trabalho produtivo, os cursos profissionalizantes atendiam

principalmente às necessidades do setor terciário, sobretudo no oferecimento de

pequenos serviços (os bicos), e quando conseguia inserir o mendigo nas

relações de trabalho formal, o fazia no setor primário que absorvia o maior

percentual de mão-de-obra ocupada do município (MENEZES: 1968).

No jornal local Feira Hoje cujos editores estavam ligados à Associação

Comercial, havia uma campanha de propaganda dos serviços da AFAS como

úteis à vida do município, em que se conclamava aos munícipes não darem

esmolas, mas serem sócios mantenedores da AFAS, e deixar a seu encargo

resolver a mendicância e inserir os sujeitos marginalizados no mercado de

trabalho, mercado esse que a Associação Comercial representava. Mas a

atividade comercial sempre foi vista com suspeitas numa sociedade “pré-

industrial”, ou no caso de Feira, de um período anterior à chegada do CIS. Por

isso se esperava que os comerciantes participassem de obras de benemerência:

Os culpados da avareza devem penitenciar-se dando grandes esmolas, sob o

princípio de que “contrários devem ser curados por meio de contrários”

(TAWNEY: 1971, p. 63).

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Uma das provas do quanto a atividade comercial estava sob

julgamento moral é um relato de conversão de um aluno do IBBNE em que ele

afirma ter trocado a santidade do sacerdócio pastoral pelo “vil comércio”. E

trata-se de um batista que está escrevendo tal relato tempos depois da

conversão. A justificativa do lucro para a glória de Deus parecia fazer menos

sentido para os protestantes feirenses da segunda metade do século XX, do que

para o protestante ideal de Weber no século XIX.

Os limites do trabalho da AFAS logo ficariam patentes com o aumento

do fluxo migratório, que exigiria o estudo da migração como responsável pelo

inchaço populacional de Feira e a conseqüente incapacidade de atendimento das

demandas sociais. Por iniciativa do pastor da 1ª Igreja Presbiteriana de Feira de

Santana, Josué Mello, é fundado então o Sistema de Integração do Migrante

(SIM), entidade ecumênica mantida pelas mesmas entidades da AFAS, e

contando como a primeira com o auxílio de órgãos financiadores internacionais e

ecumênicos como o Conselho Mundial de Igrejas (CMI) e a Coordenadoria

Ecumênica de Serviços (CESE).

Além de estudos sobre a migração, o SIM realizava cursos

profissionalizantes, basicamente os mesmos oferecidos pelo IBBNE, pela AFAS e

outras entidades de educação profissionalizante de Feira na época aqui

pesquisada. No período de 1950-1970 se intensificam em Feira a formação de

cursos de educação profissionalizante, preparando a cidade para a instalação do

Centro Industrial Subaé, e da Universidade Estadual de Feira de Santana, que,

criada segundo os parâmetros da Reforma Universitária da Ditadura Militar,

adotará uma concepção tecnicista de ensino, e estará voltada principalmente

para atender às exigências de um novo mercado de trabalho.

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(In)conclusão

Apesar da escassez de dados sobre o mercado de trabalho, sobre a

migração, e as iniciativas protestantes em relação a ambos no período aqui

abordado, esperamos ter acrescentado a possibilidade de relacionar os temas

aqui escolhidos num estudo histórico mais denso. Do que foi possível fazer com

a escassez de informações, percebe-se que a relação do protestantismo com o

trabalho, embora corresponda à perspectiva weberiana da acese intramundana

– como fica claro na noção de “uma arte útil ao ministério” e nas iniciativas

individuais ou institucionais protestantes de cursos profissionalizantes num

contexto que exigia isso – expressa igualmente uma ambigüidade moral em

relação a certos tipos de atividade econômica como o “vil comércio” que levou

um pretendente ao pastorado a um período de afastamento da sua “verdadeira”

vocação.

Mas a conclusão principal a que chegamos é que saindo na frente com

cursos profissionalizantes e entidades de serviço social, o protestantismo se

impôs como força religiosa exatamente nos seguimentos sociais que começavam

a mudar o perfil populacional de Feira de Santana entre as décadas de 50 e 70.

Talvez isso explique a grande quantidade de lojas e departamentos comerciais

que hoje é possível encontrar na cidade com nomes bíblicos e donos

evangélicos.

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