processos da ciência na formação do jornalista: o funcionamento de uma unidade de ensino

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O jornalismo científico, como praticado atualmente no Brasil, se ocupa quase que exclusivamente dos resultados da ciência. Os processos históricos, sociais, políticos e econômicos em que a ciência está envolvida quase sempre são esquecidos pela mídia. A metodologia empregada e os equívocos ao longo do processo também são deixados de lado quando os jornalistas se deparam com o que consideram um acontecimento merecedor de receber um tratamento jornalístico. O público que tem acesso aos produtos jornalísticos acaba por ter contato apenas com essa “ponta de iceberg” da prática científica. Com esse problema, elegi a etapa de formação de jornalistas, a graduação, como um local adequado para trabalhar com um possível encaminhamento para minimizar esse problema. Assim, tive por objetivos compreender o funcionamento de uma unidade de ensino sobre aspectos teóricos e práticos do jornalismo científico em que sejam abordados processos da ciência e construir um dispositivo de análise que contemple especificidades do campo jornalístico, mais especificamente do jornalismo científico, para que nos auxiliasse tanto na elaboração da unidade de ensino quanto na análise das interpretações dos discursos de estudantes de jornalismo. A unidade de ensino foi dividida em cinco eixos: aspectos introdutórios do jornalismo e do jornalismo científico; filosofia e epistemologia da ciência e suas relações com o jornalismo científico; pesquisas sobre jornalismo científico; narrativa jornalística e jornalismo científico e produção em jornalismo científico. Em todos esses eixos foi abordado como se trabalhar com os processos da ciência, em especial na abordagem do jornalismo enquanto expressão narrativa da contemporaneidade, noção que considerei propícia para a compreensão da relevância em trazer os processos da ciência para o jornalismo científico. A análise de discurso foi mobilizada para se compreender como os alunos produziram sentidos com relação à unidade de ensino. Os estudantes conseguiram fazer algumas relações satisfatórias entre a relevância em se abordar os processos da ciência, notar o problema em se deter só nos resultados e apontarem como o jornalismo narrativo poderia criar condições para a cobertura dos processos da ciência, enumerando diversas consequências que a narrativa poderia oferecer ao jornalismo, como chamar a atenção dos leitores, desmistificar a ciência e facilitar o entendimento da ciência para um público amplo. As reportagens produzidas pelos estudantes foram além de meramente expor os resultados da ciência e trouxeram aspectos históricos, sociais, econômicos e conceituais em que estão envolvidos esses resultados. A abordagem desses aspectos foi possível com o uso de elementos narrativos, como marcação temporal (uso de locuções que denotam temporalidade e ruptura), mudança de cenário e uso de personagens. Isso me permite reforçar a tese de que trabalhar com aspectos narrativos do jornalismo abre a possibilidade para a abordagem dos processos da ciência no jornalismo científico.

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  • RICARDO HENRIQUE ALMEIDA DIAS

    PROCESSOS DA CINCIA NA FORMAO DO

    JORNALISTAO FUNCIONAMENTO DE UMA UNIDADE DE ENSINO

    CAMPINAS 2015

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  • ii

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  • Resumo

    O jornalismo cientfico, como praticado atualmente no Brasil, se ocupa quase que exclusivamentedos resultados da cincia. Os processos histricos, sociais, polticos e econmicos em que acincia est envolvida quase sempre so esquecidos pela mdia. A metodologia empregada e osequvocos ao longo do processo tambm so deixados de lado quando os jornalistas se deparamcom o que consideram um acontecimento merecedor de receber um tratamento jornalstico. Opblico que tem acesso aos produtos jornalsticos acaba por ter contato apenas com essa pontade iceberg da prtica cientfica. Com esse problema, elegi a etapa de formao de jornalistas, agraduao, como um local adequado para trabalhar com um possvel encaminhamento paraminimizar esse problema. Assim, tive por objetivos compreender o funcionamento de umaunidade de ensino sobre aspectos tericos e prticos do jornalismo cientfico em que sejamabordados processos da cincia e construir um dispositivo de anlise que contempleespecificidades do campo jornalstico, mais especificamente do jornalismo cientfico, para quenos auxiliasse tanto na elaborao da unidade de ensino quanto na anlise das interpretaes dosdiscursos de estudantes de jornalismo. A unidade de ensino foi dividida em cinco eixos: aspectosintrodutrios do jornalismo e do jornalismo cientfico; filosofia e epistemologia da cincia e suasrelaes com o jornalismo cientfico; pesquisas sobre jornalismo cientfico; narrativa jornalsticae jornalismo cientfico e produo em jornalismo cientfico. Em todos esses eixos foi abordadocomo se trabalhar com os processos da cincia, em especial na abordagem do jornalismoenquanto expresso narrativa da contemporaneidade, noo que considerei propcia para acompreenso da relevncia em trazer os processos da cincia para o jornalismo cientfico. Aanlise de discurso foi mobilizada para se compreender como os alunos produziram sentidos comrelao unidade de ensino. Os estudantes conseguiram fazer algumas relaes satisfatrias entrea relevncia em se abordar os processos da cincia, notar o problema em se deter s nosresultados e apontarem como o jornalismo narrativo poderia criar condies para a cobertura dosprocessos da cincia, enumerando diversas consequncias que a narrativa poderia oferecer aojornalismo, como chamar a ateno dos leitores, desmistificar a cincia e facilitar o entendimentoda cincia para um pblico amplo. As reportagens produzidas pelos estudantes foram alm demeramente expor os resultados da cincia e trouxeram aspectos histricos, sociais, econmicos econceituais em que esto envolvidos esses resultados. A abordagem desses aspectos foi possvelcom o uso de elementos narrativos, como marcao temporal (uso de locues que denotamtemporalidade e ruptura), mudana de cenrio e uso de personagens. Isso me permite reforar atese de que trabalhar com aspectos narrativos do jornalismo abre a possibilidade para aabordagem dos processos da cincia no jornalismo cientfico.

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  • viii

  • Abstract

    Science journalism, as currently practiced in Brazil, is concerned almost exclusively with theresults of science. The historical, social, political and economic processes in which science isinvolved are often forgotten by the media. The methodology and errors in the process are also leftout when journalists encounter with what they consider an event worthy of receiving ajournalistic treatment. Public who has access to this kind of journalism can only see the tip ofthe iceberg of scientific practice. With this issue, I have chosen to work in a undergraduatejournalism course as a suitable place to work with a possible solution to minimize this problem.So I aimed to understand how a teaching unit composed with theoretical and practical aspects ofscience journalism with processes of science worked among journalism students. The teachingunit was divided into five areas: introductory aspects of journalism and science journalism;philosophy and epistemology of science and its relationship with science journalism; research onscience journalism; narrative journalism and science journalism; and production in sciencejournalism. In all of these areas I worked with the processes of science, especially in thejournalism approach as narrative expression of contemporaneity, a notion that I consideredpropitious for understanding the importance of bringing the processes of science to sciencejournalism. The discourse analysis was mobilized to understand how the students producedmeanings with regard to teaching unit. Students were able to make some satisfactoryrelationships between relevance in approaching the processes of science, noted the problem incovering only the results and suggest how the narrative journalism could create conditions forcoverage of the processes of science, listing several consequences that the narrative could offer tojournalism, such as calling the attention of readers, demystify science and facilitate theunderstanding of science to a wide audience. The reports produced by the students were beyondmerely set out the results of science and brought historical, social, economic and conceptualaspects that are involved in these results. This was possible with the use of narrative elementssuch as the use of phrases denoting temporality and rupture, change of scenery and use ofcharacters. This allows me to reinforce the thesis that work with narrative journalism opens thepossibility to approach the processes of science in science journalism.

    ix

  • x

  • SumrioResumo ................................................................................................................................................... xiiAbstract .................................................................................................................................................. xixIntroduo ..................................................................................................................................................... 1Problematizao ............................................................................................................................................ 5Objetivo e questes de estudo ................................................................................................................... 71. O jornalismo cientfico ....................................................................................................................... 91.1. A pesquisa em jornalismo cientfico ...................................................................................................... 91.2. Questes discursivas da cincia na mdia ............................................................................................ 121.3. Conflitos entre cientistas e jornalistas no jornalismo cientfico ..................................................... 142. Apoios terico-metodolgicos ........................................................................................................... 192.1. Sujeito e formaes discursivas ........................................................................................................... 192.2. Dispositivo terico, analtico da interpretao e metodologia da pesquisa ......................................... 232.3. Teorias do jornalismo ........................................................................................................................... 252.4. Objetividade no jornalismo .................................................................................................................. 312.5. A notcia como produto ........................................................................................................................ 362.6. Noticiabilidade ..................................................................................................................................... 382.7. Narrativa jornalstica ............................................................................................................................ 392.8. Sobre o jornalismo cientfico ............................................................................................................... 403. Unidade de ensino: formulao e aplicao ....................................................................................... 473.1. Jornalismo e jornalismo cientfico ....................................................................................................... 493.2. Filosofia e epistemologia da cincia e suas relaes com o jornalismo cientfico .............................. 513.3. Pesquisas sobre jornalismo cientfico .................................................................................................. 533.4. Narrativa jornalstica e jornalismo cientfico ....................................................................................... 553.5. Produo em jornalismo cientfico ...................................................................................................... 634. Alguns resultados .................................................................................................................................. 674.1. 1 Aula: Introduo ao jornalismo cientfico ....................................................................................... 674.2. 2 Aula: Concepes de cincia e seu relacionamento com o jornalismo cientfico ........................... 684.3. 3 Aula: Produo de sentidos referentes a pesquisa em jornalismo cientfico ................................... 814.4. 4 Aula: Jornalismo como expresso narrativa da contemporaneidade ............................................... 884.4.1. Atividade sobre narrativa .................................................................................................................. 904.5. Avaliao final ..................................................................................................................................... 944.5.1. Relacionamento entre o jornalismo cientfico e a perspectiva narrativa para o jornalismo ............. 954.5.2. Finalidades da utilizao de figuras de linguagem no jornalismo .................................................. 1004.5.3. Relacionamento entre jornalismo cientfico, narrativa e processos da cincia ............................... 1034.5.4. Atividade de leitura ......................................................................................................................... 1124.6. Reportagem ........................................................................................................................................ 1174.6.1. Conflitos e controvrsias ................................................................................................................. 1184.6.2. Impacto e sade ............................................................................................................................... 1204.7. Categorias para a anlise das reportagens .......................................................................................... 1214.7.1. Vida, sade e bem-estar .................................................................................................................. 1214.7.2. Sustentabilidade .............................................................................................................................. 1304.7.3. Economia local e produo rural .................................................................................................... 1334.7.4. Textos sobre assuntos diversos ....................................................................................................... 137Consideraes finais ............................................................................................................................... 143Referncias ................................................................................................................................................ 155Anexos ...................................................................................................................................................... 161

    xi

  • xii

  • Agradecimentos

    Nessa jornada da pesquisa de doutoramento, agradeo a minha orientadora, Maria Jos P. M. de

    Almeida pela pacincia e alegria em me orientar. Tambm agradeo ao meu orientador do estgio

    no exterior, Stuart Allan, pelas valiosas orientaes na rea de comunicao e jornalismo.

    Agradeo aos professores Antonio Carlos Amorim e Carolina Mara Rodrguez Zuccolillo pelas

    essenciais sugestes realizadas no exame de qualificao.

    Agradeo tambm a Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo (Fapesp) pela bolsa

    de doutorado e pela bolsa estgio de pesquisa no exterior.

    xiii

  • xiv

  • Introduo

    Este estudo visa trabalhar com estudantes de jornalismo cursando uma disciplina de

    jornalismo cientfico alguns aspectos relacionados aos processos da cincia, diminuindo o foco

    quase exclusivo nos resultados e aplicaes prticas da cincia na mdia. Vrios caminhos podem

    ser tomados com esse objetivo, como o trabalho com abordagens da cincia que privilegiem a

    percepo da cincia enquanto processo, como a abordagem em histria, filosofia e sociologia da

    cincia ou o trabalho com tpicos de cincia, tecnologia, sociedade e ambiente como mostram

    diversos estudos na rea em educao em cincias. Entretanto, considerei que apesar dos estudantes

    de jornalismo poderem ter condies de contato com essas abordagens, quando eles se

    imaginassem produzindo produtos jornalsticos os aspectos inerentes prtica jornalstica

    tradicional se sobreporiam s ideias propostas por essas abordagens, o que possivelmente

    dificultaria a abertura para o trabalho com os processos da cincia na mdia. Assim, busquei dentro

    das teorias em jornalismo, algo que considerei prprio da discursividade jornalstica supondo que,

    dessa forma, pudesse propiciar condies para o trabalho com os processos da cincia.

    Com isso, busquei autores bastante conhecidos das teorias do jornalismo que trabalhassem

    com a perspectiva de aceitar o jornalismo enquanto narrativa. Com relao ao jornalismo

    cientfico, admiti que este tem sua especificidade, no sendo resultado da soma do cientfico com

    o jornalstico. O funcionamento de processos discursivos complexos e interessantes de serem

    observados na produo jornalstica inspirada na produo cientfica me fez refletir sobre como

    um referencial do jornalismo poderia contribuir para que no fossem apenas os resultados que a

    cincia produz que inspirassem o jornalismo. Esse referencial tambm poderia propiciar o

    dilogo com os estudantes de jornalismo para que eles pensassem na possibilidade de se abordar

    os processos da cincia.

    Nessa perspectiva, dois estudos tericos envolvendo o jornalismo e sua expresso

    narrativa foram escolhidos para o trabalho com os estudantes: o artigo O real e o potico na

    narrativa jornalstica de Jorge Kanehide Ijuim e o captulo Relatar o acontecimento da obra O

    discurso das mdias de Patrick Charaudeau. Apesar de referenciais distintos, esses autores

    trabalharam com aspectos da discursividade jornalstica que considero relevantes para a

    percepo do jornalismo enquanto narrativa, um caminho para proporcionar condies para o

    trabalho com os processos da cincia.

    1

  • O modo como aspectos relativos cincia so tratados pelos meios de comunicao j

    vem sendo pesquisado por diversos pesquisadores em vrias reas do conhecimento. Trabalhos

    como Bueno (1985) e Bertolli Filho (2006) objetivaram definir e delimitar uma rea especfica

    para o jornalismo cientfico. O primeiro autor citado refere-se a um caso particular de divulgao

    cientfica que relativo a processos, estratgias, tcnicas e mecanismos para a circulao de fatos

    que se situam no campo da cincia e da tecnologia pela mdia. J para o ltimo autor citado,

    entende-se por jornalismo cientfico:

    () um produto elaborado pela mdia a partir de certas regras rotineiras dojornalismo em geral, que trata de temas complexos de cincia e tecnologia e quese apresenta, no plano lingustico, por uma operao que torna fluda a leitura eo entendimento do texto noticioso por parte de um pblico no especializado (p.3).

    Diversos autores apontam alguns problemas na prtica do jornalismo cientfico. Para

    Thiollent (1983) a informao cientfica obedece lei dos acontecimentos, sendo que a seleo

    das notcias feita em funo dos aspectos espetaculares e no pelo contedo dos assuntos.

    Marques de Melo (1982) chama de atrofia a presena dos fatos cientficos no noticirio cotidiano

    atravs do signo do fantstico, sensacional, pitoresco e inusitado.

    Tambm debruando-se na divulgao cientfica atravs da mdia, para Pechula (2007),

    quando a cincia se insere no contexto miditico transformando-se em notcia, a pesquisa se

    transforma em fonte de divulgao cientfica para a massa e, apesar de estar ainda em processo de

    hiptese e elaborao, rapidamente divulgada.

    Contudo, geralmente, no aparece como processo e nem so apresentados osproblemas e conflitos inerentes sua produo. Ao contrrio, a pesquisa divulgada como a descoberta, a criao j acabada ou com o incio de umadescoberta que inexoravelmente alcanar o seu intento. O receptor(telespectador, leitor etc.) sem o saber, torna-se consumidor desse tipo deinformao (p. 194).

    Tais trabalhos abordam aspectos que consideram importantes na constituio da produo

    cientfica, mas que so omitidos pelos meios de comunicao quando cobrem assuntos

    cientficos. A natureza e consequncia dessa omisso foi objeto de estudo de alguns

    pesquisadores. Cascais (2003), em um estudo sobre as formas pelas quais a dinmica da cincia e

    da tecnologia mobilizada pelos meios de comunicao, reflete sobre o que chamou de

    2

  • mitologia dos resultados na divulgao cientfica. Para ele, em essncia, a mitologia dos

    resultados consiste em:

    representar a atividade cientfica pelos seus produtos; subsumir os processos cientficos consecuo finalista e cumulativa deresultados; isolar exclusivamente como resultados aqueles que so avaliados a posterioricomo xitos de aplicao (p. 67).

    A consequncia provinda dessa perspectiva passa implicitamente por:

    ignorar a atividade cientfica enquanto processo, que, ao mesmo que procedepelo cumprimento protocolar de critrios a priori de rigor metodolgico dainvestigao, progride de modo no linear e errtico que o mesmo dizer,branquear a revisibilidade intrnseca a todo o conhecimento cientfico e ahistoricidade inerente () variveis temporal e espacialmente, a ponto de setornarem incompatveis ou mutuamente exclusivos; anular o papel do erro produtivo na tomada de deciso e nas escolhascientficas, de tal modo que o sucesso da obteno de resultados atribuvel aorigor da concepo metodolgica o que implica a necessria eliminao doresto (o racionalmente inexplicvel, o estatisticamente excepcional) que excedeo domnio de rigor delimitado pelo mtodo, tido por subproduto esprio dele,em vez de marca dos seus limites de validade; assimilar fins a resultados, assim definidos aqueles em funo da eficcia aposteriori da empresa cientfica, com a excluso dos resultados fortuitos,inesperados ou adversos (p. 67).

    Almeida (1998, p. 57), em um artigo sobre divulgao cientfica e educao em fsica,

    julga o problema no que amplamente divulgado e no que omitido na divulgao cientfica.

    Parece haver a suposio tcita de que condies e mtodos interessam apenasaos cientistas, e, desse modo, o discurso cientfico, que chega maioria dapopulao, na escola, nos meios de comunicao de massa, constitudo apenasde resultados, um produto acabado e pronto para ser consumido.

    Como consequncia disso, a autora estabelece que [...] sem as condies em que foi

    produzido, o dizer da cincia perde a historicidade; sem processos de construo visveis, torna-

    se absoluto e difcil de ser internalizado. Dessa forma, destina-se a poucos (p. 57).

    Em Dias (2009) j notava o foco nos resultados em detrimento dos processos constituintes

    da cincia em textos sobre fsica nas revistas Cincia Hoje e Pesquisa Fapesp, o que pareceu

    reforar as consideraes de Cascais e Almeida. A pesquisa de mestrado citada teve por objetivo

    compreender interpretaes de um grupo de estudantes do curso de licenciatura em fsica ao

    3

  • lerem textos de jornalismo cientfico sobre fsica publicados nessas revistas. Um dos licenciandos

    justificou a falta de curiosidade em continuar buscando se informar sobre o assunto lido na

    revista Cincia Hoje com a assertiva:

    Aluno: (). O texto que eu li aqui, eu no teria curiosidade nenhuma de ler oque est por trs disso.Pesquisador: Que texto voc leu?Aluno: Radiao sobre medida. Um que ele muda de cor quando passa umaradiao. () Ele fala que o lquido polidoismetoxilcincoetil sei l, a ficacomplicado isso daqui, agora algum Meu pai () para ler isso daqui, estme xingando

    Abaixo segue um trecho do texto que esse estudante leu que pude considerar como uma

    condio de produo do seu discurso:

    A pesquisa comeou h trs anos como proposta de mestrado de Eric AlexandreBrito, aluno do DFM. () Um ano depois, os pesquisadores j haviamdesenvolvido um prottipo utilizando o polmero conjugado poli[2-metxi,5(2'etil-helixiloxi)-p-fenilenovinileno] (MEH-PPV). Essa substnciaaltera sua cor de acordo com a quantidade de radiao que absorve1.

    Dentre as possibilidades para a ocorrncia de situaes como essa, uma pode ser a falta de

    abordagem de processos de construo da cincia com o foco exclusivo nos resultados

    cientficos, alm de lxicos do discurso dos autores do estudo, causando como consequncia a

    destinao para poucos como foi mencionado por Almeida (idem). Como j disse, consideramos

    a relevncia da abordagem dos aspectos sociais e polticos na prxis do jornalismo cientfico,

    alm dos resultados de pesquisas e elaborao de novos produtos que j so fortemente

    divulgados na mdia, fugindo da retrica das concluses (DIAS, idem, p. 16).

    Para o estudo dos processos da cincia na mdia alguns estudos se detiveram em aspectos

    que envolvem a cincia enquanto processo atravs de relaes histricas. Massarani (1998) e

    Esteves et. al (2006) pesquisaram aspectos histricos, sociais e polticos em que estavam

    envolvidos os meios miditicos e a prpria cincia circulada por tais meios. Vara e Mendoza (2004)

    privilegiaram uma abordagem em histria da cincia para analisar o estado atual da cincia na

    Argentina e como isso seria compartilhado pela comunidade de jornalistas cientficos desse pas,

    tendo por objetivo compreender caractersticas do jornalismo cientfico especiais para pases em

    1 Furtado (2005).

    4

  • desenvolvimento. Polino (2008), aps um estudo que buscou caracterizar e quantificar a cobertura

    jornalstica sobre pesquisa e desenvolvimento em sade num grupo de oito jornais provenientes da

    Argentina, Brasil, Colmbia e Costa Rica, apontou, dentre outras consideraes, como uma

    deficincia estrutural que pode funcionar como um fator restritivo prtica jornalstica:

    () a baixa capacidade para o contraste informativo, ou uma narrativa quepossa enfatizar o que a descrio contm, por conseguinte, pouca capacidadepara introduzir enfoques alternativos, conflitos de interesses, lutas porprioridades, controvrsias, implicaes ticas da investigao, etc. (p. 51)

    Com base nesses autores citados, ressalto a relevncia da abordagem dos processos que

    permeiam a produo da cincia nas notcias cientficas, tendo por objetivo dimensionar a cincia

    em um contexto mais amplo e relacion-la com outras instncias da sociedade que a constituem.

    Para o desenvolvimento dessa perspectiva, julgo adequado o trabalho em cursos de graduao em

    jornalismo, em que seja propiciado aos futuros jornalistas condies para a abordagem dos

    processos da cincia.

    Problematizao

    Os jornalistas que editam revistas de jornalismo cientfico j esto reconhecendo o

    problema em se deter s nos resultados da cincia. De acordo com Alicia Ivanissevich, editora da

    revista Cincia Hoje, em entrevista a Isadora Vilardo, necessrio no apenas mostrar os

    resultados de sucesso, mas tambm o processo de produo da cincia, com seus erros e acertos

    (VILARDO, 2013). Para Marcelo Leite, em entrevista a Fernando Cunha, o jornalismo de cincia

    instrui leitores sobre o processo de pesquisa cientfica, tentando desfazer a percepo equivocada

    de que os cientistas so detentores da verdade eterna (CUNHA, 2013).

    Em estudos como os de Belda (2006) e de Jorge (2007) podemos encontrar relatos de

    aspectos da formao do jornalista em nvel de graduao. Voltando especificamente para o

    jornalismo cientfico, estudos como Macedo (2003) e Caldas e colaboradores (2005) apresentam

    um panorama dos programas e teorias sobre ensino de jornalismo cientfico. Analisando ementas,

    Caldas et. al (idem) consideraram insatisfatria a conexo dos contedos com outros basilares, tais

    como a filosofia, a sociologia e a histria da cincia. Para eles o pragmatismo formador dos

    contedos limita o papel dos jornalistas a uma perspectiva reducionista e meramente funcionalista.

    5

  • Quanto mais positivista a formao pragmtica, objetivista, resultado em detrimento do processo

    mais positivista tende a ser a produo (p. 21). Assim, os autores ressaltam a necessidade da

    recuperao da dimenso tica e histrica da produo da cincia como processo e da divulgao

    em uma perspectiva crtica e analtica. Para os autores: a formao qualificada nesta perspectiva

    fundamental. Divulgar cincia , antes de tudo, entrar no mundo da cincia, de sua histria, do seu

    desenvolvimento, das suas contradies, de seus paradigmas (p. 21).

    Nesses trabalhos os autores se preocuparam com aspectos da formao do jornalista

    cientfico, mas no realizaram atividades prticas em que abordassem os tpicos, que

    consideraram basilares, que privilegiassem a filosofia, a sociologia e a histria da cincia com

    estudantes de jornalismo, tendo por objetivo criar condies para o trabalho nessa perspectiva

    crtica que levantaram. Duas investigaes que trabalharam atividades em situaes de ensino nas

    quais alguns desses tpicos foram abordados so Carvalho et. al (2008a) e Almeida e Gama

    (2005). As ltimas autoras citadas tiveram por objetivo analisar discursos de estudantes

    finalizando os cursos de jornalismo e de licenciatura em fsica sobre relaes possveis entre

    jornalismo cientfico e o sistema de produo cientfico-tecnolgico. Atentei para duas respostas

    dos estudantes desse estudo, a primeira de um estudante de jornalismo e a segunda de um

    licenciando em fsica, quando questionados sobre de que forma o jornalismo cientfico se

    relacionaria com o sistema de produo da cincia e da tecnologia:

    Ainda penso em cincia como algo distante, produzido por uma comunidadefechada e que dificilmente chega populao, a no ser quando h umaaplicao prtica para aquilo que foi descoberto e pesquisado.

    Atualmente so divulgadas apenas como curiosidades e no como algocientfico. Sabemos que a cincia interfere na sociedade a longo, mdio e curtoprazo. Mas a mdia muitas vezes divulga as pesquisas de maneira fantasiosa oucom incontveis erros.

    De acordo com as autoras do estudo:

    Na concepo da cincia como algo que dificilmente chega populao, que schega quando produz resultados prticos, algo produzido por uma comunidadefechada, ou na valorizao do cientfico da cincia e na considerao depossveis erros como o principal problema da divulgao, podemos notar o queno lembrado por esses estudantes, a cincia como uma instituio dasociedade, que certamente interfere na sua organizao, mas que tambm est

    6

  • sujeita aos determinantes dessa mesma sociedade. Ou seja, ao mesmo tempo queparecem questionar a divulgao apenas de resultados como aplicaes prticasou como curiosidades, esses estudantes no apresentam indcios de preocupaocom a ausncia na divulgao da cincia do seu reconhecimento como processosocial (p. 4).

    Com isso, ressalto a necessidade do trabalho com estudantes de jornalismo em uma

    perspectiva que leve em considerao os processos constitutivos da cincia e no apenas seus

    resultados e aplicaes imediatas.

    Nesta pesquisa me proponho a desenvolver e analisar o funcionamento de uma unidade de

    ensino que viabilize condies de produo favorveis ao reconhecimento da relevncia da

    incluso dos processos da cincia no jornalismo cientfico.

    Objetivos e questes de estudo

    Sintetizo a seguir os objetivos da pesquisa:

    1) Compreender o funcionamento de uma unidade de ensino sobreaspectos tericos e prticos do jornalismo cientfico em que sejamabordados processos da cincia. 2) Construir um dispositivo de anlise que contemple especificidades docampo jornalstico, tendo em vista a anlise de interpretaes de estudantesde jornalismo.

    Com tais objetivos, procurarei responder as seguintes questes de estudo:

    1) Como estudantes de jornalismo produzem sentidos quando leem textosem que algumas condies de produo da cincia so abordadas?2) De que maneira essa abordagem levada em conta quando essesestudantes so instados a tomarem posies sobre o jornalismo cientfico?

    Para o cumprimento desses objetivos, elaborei uma unidade de ensino para ser aplicada

    em 20 horas e apliquei-a como parte da disciplina Jornalismo Cientfico em uma das

    universidades federais localizada na regio centro-oeste. Escolhi essa instituio pelo fato da

    disciplina ser oferecida regularmente e constar no currculo como disciplina obrigatria. A

    docente responsvel pela disciplina me concedeu grande liberdade para aplicar a unidade de

    ensino pelo tempo que eu quisesse, o que foi outro fator incentivador para a escolha dessa

    instituio para a aplicao da unidade.

    7

  • 8

  • 1. O jornalismo cientfico

    1.1. A pesquisa em jornalismo cientfico

    Ao considerar a relevncia do que j foi historicamente construdo pela pesquisa em

    jornalismo cientfico para a elaborao de uma unidade de ensino sobre esse tema e tambm para

    a presente pesquisa, busquei, pela palavra-chave jornalismo cientfico, pesquisas produzidas no

    Brasil e no exterior sobre o tema.

    Pesquisas que se detiveram em aspectos do contedo dos meios de comunicao so

    majoritrias, o que aparentemente refora o problema levantado por esta pesquisa. Considerando

    que os jornalistas usualmente privilegiam os resultados e aplicaes imediatas do mundo da

    cincia, os pesquisadores da cincia na mdia vo consequentemente se preocupar com quais

    resultados os meios de comunicao esto publicando. Assim, pesquisas como Luz (2010),

    Jurberg e Macchiute (2006) e Oliveira et. al (2009) buscaram responder perguntas tais como os

    principais temas abordados, fontes consultadas, finalidades das matrias, frequncia, em matrias

    sobre sade e bem-estar. A primeira autora citada se deteve em uma publicao (Veja) e concluiu

    que esta assume um papel propagandstico do que h de novidade no mercado farmacutico e de

    equipamentos de sade.

    Jurberg e Macchiute (idem) procuraram observar de que forma a imprensa brasileira, mais

    especificamente trs revistas brasileiras (Sade!, Veja e Pesquisa Fapesp), abordaram o tema

    cncer. As autoras concluram que as matrias publicadas por essas revistas incorreram

    raramente em erros. H um aumento das reportagens que abordaram os experimentos e os

    detalharam, alm da importncia que as revistas deram ao peridico cientfico no qual saiu o

    resultado da pesquisa que esto divulgando.

    Oliveira et. al (idem) apresentaram as informaes sobre sade da mulher publicadas

    durante 12 meses consecutivos nas trs revistas semanais de circulao nacional com maior

    tiragem: Veja, poca e Isto. Os autores concluram que os temas mais recorrentes foram: sade

    reprodutiva; preveno, riscos e cuidados; beleza e esttica; sade em geral; sexualidade;

    polticas e direito sade; sade mental; situaes de violncia e menopausa.

    Alm da busca em conhecer quais resultados da cincia esto indo para a mdia, h

    tambm pesquisas comparativas entre sees dos jornais e entre os meios de comunicao, ainda

    9

  • na perspectiva de comparao de aspectos da mdia enquanto transmissora dos frutos da atividade

    cientfica.

    Medeiros (2007) analisou as diferenas entre a cobertura geral e a realizada nos espaos

    privilegiados para a informao cientfica em trs jornais brasileiros (O Globo, Jornal do Brasil e

    Folha de S. Paulo), durante os anos do primeiro grande pico de ateno da mdia em relao aos

    organismos transgnicos: 1999 e 2000. Aps fazer uma anlise de contedo e categorizar entre

    variveis como editoria, enquadramento, fontes, citao de peridicos cientficos, tipo de matria,

    presena de explicao cientfica, citao de agncias noticiosas e outros meios de comunicao,

    a autora concluiu que nos espaos reservados cincia, tendeu-se a: usar um maior nmero de

    fontes por matria; abordar os temas por um nmero mais restrito de ngulos; usar com maior

    frequncia enquadramentos mais diretamente ligados cincia; publicar mais reportagens que

    outros gneros; citar peridicos cientficos; explicar a cincia subjacente aos fatos e feitos em

    discusso; citar agncias noticiosas e outros meios de comunicao (jornais, revistas, rdios e

    emissoras de TV).

    J Massarani et. al (2005) se preocuparam em mostrar um panorama de como vem sendo

    realizada a cobertura de temas da cincia e da tecnologia na Amrica Latina, tendo como estudo

    de caso sete jornais de impacto significativo da regio: La Nacin, da Argentina; El Mercurio, do

    Chile; Mural, do Mxico; El Comercio, do Equador; O Globo, Folha de S. Paulo e Jornal do

    Commercio, do Brasil. Aps coletar 482 textos, os autores concluram que h certa nfase nos

    benefcios da cincia. Deu-se pouca nfase s controvrsias da cincia, aspecto considerado

    importante pelos autores devido a prpria dinmica do processo cientfico. Tambm as incertezas

    e os riscos tiveram pouco destaque nas reportagens analisadas.

    Ao que tudo indica, na Amrica Latina ainda se pratica um jornalismo poucocrtico diante da cincia e seu papel/impacto na sociedade. Tambm h umaatitude pouco crtica dos jornalistas perante as fontes de informaes que vm deagncias de notcias e jornais do Primeiro Mundo. As informaes so muitasvezes republicadas sem muita preocupao de adequao realidade local.Observa-se, tambm, preocupao reduzida com o contexto e as necessidadeslocais (p. 7).

    Nesse grupo de pesquisas comparativas e de contedo o que parece ser comum a todas

    elas um diagnstico do que a mdia vem publicando sobre a cincia. O que chama a ateno dos

    10

  • autores quais resultados da cincia esto sendo transmitidos e comparaes entre sees, jornais

    e revistas entre eles, buscando responder questes como: o que eles cobrem? Que espao

    concedem a essa cobertura? Qual ngulo adotado? Que fontes utilizam? Os conceitos

    cientficos esto certos ou h enganos? Considero tais pesquisas pertinentes por oferecerem um

    mapeamento do que est sendo divulgado pelo jornalismo cientfico e seus aspectos discursivos.

    As crticas dessas pesquisas reforam a delimitao do problema de pesquisa desta tese, j que os

    processos da cincia foram raramente levados em considerao pelas mdias pesquisadas.

    Em outra frente de pesquisa, j com o objetivo de apontar problemas ao jornalismo

    cientfico, Bertolli Filho (2010) notou o problema da cultura genetocntrica que predomina nas

    matrias de cincia publicadas na Folha de S.Paulo. Esse autor teve por objetivo focar algumas

    estratgias adotadas pelo jornalismo cientfico publicado em formato impresso e online pelo

    jornal Folha de S.Paulo. Optando por questes pertinentes gentica humana, mais precisamente

    biologia molecular, estando ou no as notcias alocadas no caderno dedicado divulgao das

    cincias. Aps realizar anlise de contedo, o autor constatou que a mdia buscou explicar e/ou

    justificar no s as dinmicas do corpo biolgico, mas tambm os fenmenos prprios do corpo

    social, como sendo determinados, ou pelo menos influenciados, em alto grau, pela dimenso

    gentica individual ou dos grandes grupos humanos.

    Na perspectiva de tentar resolver o problema da abordagem exclusiva dos resultados da

    cincia, Carvalho et. al (2008b) e Passos (2010) detectaram o baixo enfoque nos processos da

    cincia e propuseram o jornalismo literrio como uma possibilidade de representao mais

    complexa da cincia. Carvalho et. al (idem) discutiram o jornalismo literrio como meio para a

    comunicao pblica da cincia por meio da anlise da reportagem The Mountains of Pi, de

    Richard Preston, a partir da hiptese de que o uso de recursos narrativos para descrever processos

    de pesquisa constitui um modelo de comunicao dissonante do convencional, operando sob

    princpios distintos. Os autores identificaram e caracterizaram algumas expectativas com relao

    ao texto:

    () a presena da humanizao/ subjetivao de cientistas, o destaque deaspectos sociais da atividade cientfica, o uso de recursos visuais de descrio,indicadores de status de vida, a abertura de caixas-pretas (concorrncia,processos decisrios, falhas, fatores no ligados aos laboratrios) e a nfase noreprter como autor, verificando se h imposio de fatos e verdades (p. 6).

    11

  • Considerei esses dois artigos relevantes por partirem da assertiva que processos da

    pesquisa cientfica podem ser trabalhados a partir de uma perspectiva narrativa para o jornalismo,

    o que refora a possibilidade em criar condies para o trabalho dos processos da cincia junto a

    estudantes de jornalismo utilizando a noo do jornalismo enquanto expresso narrativa.

    1.2. Questes discursivas da cincia na mdia

    Muitos estudos investigaram as reformulaes discursivas referentes a quando a cincia

    tratada pelos meios de comunicao. Fahnestock buscou responder s questes: o que acontece

    informao cientfica durante a sua adaptao para diversas audincias de no-iniciados? Que

    mudanas ela sofre, se que sofre, enquanto vai de uma situao retrica para outra? E, por outro

    lado, como o discurso que contm essa informao est sendo transformado? (2005, p. 77).

    Pesquisando quando artigos da Science foram fontes para a elaborao de textos de divulgao

    cientfica, essa autora concluiu que a adaptao do texto acadmico para a revista no-acadmica

    no foi simplesmente uma questo de traduzir jarges tcnicos para expresses equivalentes no

    tcnicas, mas parte da informao foi alterada. Essa alterao, segundo a autora, ocorre porque os

    escritores de revistas de divulgao como National Geographic e Newsweek dispem s de dois

    recursos para chamar a ateno de um pblico mais amplo que os especialistas: admirao pela

    cincia e aplicao de seus resultados.

    Outra concluso da autora que os textos de divulgao apresentam um grau maior de

    lxicos que exprimem certeza do que os textos cientficos da Science. O motivo que leva a esse

    deslocamento o desejo de aumentar a relevncia do assunto. Assim, os textos de jornalismo

    cientfico pretendem ser mais exatos do que a prpria cincia.

    Flores e Silveira (2010) analisaram a formulao discursiva operada no discurso

    cientfico com vistas produo do discurso jornalstico. As autoras tiveram por objetivo

    discutir a produo do jornalismo com o uso de recursos analticos que ultrapassem a

    gramaticalizao e a ateno aos elementos tcnicos considerados na captao de dados,

    angulao e edio. Elas analisaram treze matrias da editoria de sade do ms de junho do

    jornal O Dia do Rio de Janeiro, criando as seguintes categorias de anlise: jarges cientficos;

    preciso/exatido; neutralidade/ afastamento e fontes e nas seguintes estratgias discursivas

    utilizadas pelo enunciador. As autoras tambm utilizaram as categorias de Charaudeau:

    12

  • efeitos de dramatizao (visada da captao) e de credibilidade (visada da informao). Elas

    concluram que:

    () como preciso captar a ateno de um pblico no acostumado leitura detextos cientficos, o jornal popular O Dia tensionado entre a produo deefeitos de credibilidade e de dramatizao e tende a utilizar-se de recursos dedramatizao da informao para captar seus leitores. Enquanto o jornalismopadro trabalha com uma discursividade calcificada, o jornalismo popularnecessita seduzir um pblico novo. (). Os efeitos de credibilidade soproduzidos pelas categorias de fontes, preciso/exatido eneutralidade/afastamento. Ao utilizar cientistas como fontes, o enunciadorlegitima a pesquisa e lhe confere credibilidade. Assim tambm acontece com osdados numricos utilizados ao longo do texto e com a aproximao dopesquisador do estudo relatado. Quando os dados numricos no aparecem apesquisa parece perder credibilidade (p. 159).

    Em outra pesquisa de reformulao discursiva, dessa vez a partir da entrevista entre

    cientista e jornalista e quando essa entrevista virou reportagem, Gomes (2002) teve por objetivo

    apontar os fenmenos lingusticos envolvidos na transposio de entrevistas realizadas com

    cientistas em textos jornalsticos publicados na imprensa diria. O corpus foi constitudo por

    textos (entrevistas e matrias jornalsticas) publicados no Jornal do Commercio. A autora

    detectou que a transformao de entrevistas em matrias jornalsticas tem por princpio a reduo

    informacional. Outro aspecto apontado pela autora que, nos textos jornalsticos, a ordem

    semntica no determinada pela sequncia dos fatos, mas pela coerncia funcional baseada na

    relevncia. A partir da idealizao de um esteretipo do pblico-alvo, o jornalista procura,

    intuitivamente, identificar o que relevante para o leitor e da inicia a produo de seu texto (p.

    103). Assim, aponta que o que tido como mais relevante ou interessante vem no incio, seguido

    pelas informaes secundrias e detalhes, tambm inseridos por ordem decrescente de

    importncia.

    Gomes concluiu que a anlise mostrou modificaes substanciais entre a entrevista e o

    texto jornalstico, mas normalmente a ideia bsica do texto original preservada. As imprecises

    atribudas pelos cientistas aos textos jornalsticos de divulgao cientfica so muito mais uma

    questo de mudana da perspectiva de interesse do que propriamente distoro de informaes.

    Nesse grupo de artigos podemos notar como o critrio de noticiabilidade relevncia ou

    impacto desempenha um papel crucial na elaborao de enunciados jornalsticos sobre a

    13

  • cincia. O resultado de Fahnestock, que o jornalista s dispe de dois recursos para atrair os

    leitores para os textos, a admirao pela cincia e aplicao de seus resultados, cria obstculos

    para esta pesquisa, j que esse provavelmente o principal motivo pelo qual a mdia s publica as

    aplicaes dos resultados. Os processos da cincia no seriam suficientes para atrair os leitores e

    s seriam abordados quando uma aplicao com impacto fosse criada ou quando uma pesquisa

    que gere admirao, por exemplo a descoberta de um planeta, fosse divulgada. Assim, esperado

    que os estudantes de jornalismo se atentem o mximo possvel para as aplicaes e resultados.

    Entretanto, ao considerar o jornalismo como narrativa dando carter temporal aos resultados,

    acredito que os processos da cincia possam vir tona e merecer um tratamento jornalstico em

    conjunto com as aplicaes da cincia.

    1.3. Conflitos entre cientistas e jornalistas no jornalismo cientfico

    H muitas pesquisas que se preocuparam em compreender o relacionamento entre

    cientistas e jornalistas na produo de matrias para o jornalismo cientfico. A principal fonte

    para a elaborao de matrias de jornalismo cientfico so os cientistas e, quando os jornalistas se

    deparam com pautas sobre cincia, usualmente recorrem a eles. Cada profisso possui princpios

    deontolgicos prprios, ou seja, procedimentos e normas caractersticas de uma profisso, o que

    ocasiona ora uma convergncia de propsitos ora tenses e desconfianas de ambas as partes,

    como podemos verificar em Monteiro (2003). Duas pesquisas representativas dessas relaes so

    Peters (2005) e Reed (2001). O primeiro autor citado aponta para o problema de restries da

    comunidade cientfica para a divulgao da cincia alm dos limites dos peridicos acadmicos.

    Os cientistas, como pesquisadores, fazem parte de comunidades cientficas queno encorajam a comunicao para alm dos limites da cincia e, em algunscasos, at mesmo desaprovam colegas que fazem isso. Isso ocorre no tanto pelofato de os cientistas se envolverem na comunicao pblica que controversa,mas, sim, na forma como essa comunicao feita: em muitos casos, ela noest de acordo com as normas das publicaes cientficas, tais como, porexemplo, ter um estilo impessoal, um alto nvel de preciso ou ser revisada pelospares antes da publicao (p. 142).

    O autor apontou como raiz dos problemas na interao entre cientistas e jornalistas as

    diferenas culturais entre as duas profisses. Ele elencou como distines culturais os diversos

    cdigos lingusticos, ausncia de semntica e de bases pragmticas compartilhadas. Alm de

    14

  • esteretipos, preconceitos, distintas convenes, normas, definies de papis e de situaes que

    fazem parte das respectivas culturas. Todas essas divergncias so confrontadas durante a

    comunicao intercultural e podem causar um desencontro de expectativas com relao ao

    parceiro de interao.

    Peters tambm se ocupou em estabelecer diferenas entre as culturas cientficas, cotidiana

    e jornalstica ao considerar o estudo de tais diferenas relevantes para compreender o

    relacionamento entre jornalistas e cientistas. Para o autor, as diferenas entre as culturas cientfica

    e cotidiana levam a:

    - dificuldades para explicar os problemas cientficos, os mtodos e asdescobertas para o pblico leigo;- desencontro entre o que os prprios cientistas consideram tpicos decomunicao importantes dentro de sua comunidade e aquilo em que o pblicoleigo est interessado;- uso de diferentes critrios de avaliao da relao custo-benefcio da pesquisacientfica (p. 146).

    No que diz respeito s pesquisas com repercusso direta na populao, h entre as duas

    culturas nveis diferentes de confiana na cincia e tecnologia, assim como modos diferentes

    pelos quais as opinies so geradas e as decises tomadas. Para Peters, as diferenas mais

    importantes entre os que ele chama de especialistas e os jornalistas so:

    - os jornalistas atribuem maior peso a uma funo crtica dos meios decomunicao de massa do que os especialistas;- os jornalistas aceitam uma funo de entretenimento da mdia com maiorfacilidade do que os especialistas;- os especialistas tm um posicionamento mais paternalista em relao audinciada mdia do que os jornalistas;- os especialistas e os jornalistas diferem em seu estilo preferido de reportagens(os especialistas tm menor compreenso das necessidades jornalsticas de atrair efascinar os leitores, usando certos elementos estilsticos);- os especialistas esperam que a mdia defenda seus objetivos, enquanto osjornalistas tm uma atitude indiferente em relao a eles;- se estiverem defendendo seus objetivos, os especialistas querem que a mdiainfluencie o pblico mais do que os jornalistas esto preparados para faz-lo;- os especialistas e os jornalistas discordam sobre seus respectivos papis e aextenso do controle que os dois lados exercem sobre o processo de comunicao;- os jornalistas so mais tolerantes (ou at mesmo esperam), em comparao aoscientistas, em relao possibilidade de fontes de informaes especializadasviolarem normas cientficas estritas quando interagem com os meios decomunicao de massa (p. 158).

    15

  • Alm disso, segundo o autor, quanto mais poltico e controverso o contexto, menos

    provvel a possibilidade dos jornalistas aceitarem que os cientistas tenham um papel muito

    ativo.

    Outra pesquisa sobre interao entre jornalistas e cientistas foi a de Reed (2001) que

    tentou encontrar uma variedade de maneiras de reduzir a lacuna entre cientistas e jornalistas para

    produzir mudanas na comunicao dos resultados da cincia que sero satisfatrios para ambos

    os grupos, por acreditar que compreender a base do conflito um pr-requisito para trabalhar no

    sentido de estratgias para sua melhoria. Ela analisou as convergncias e divergncias na

    interpretao, as prticas materiais e sociais e processos organizacionais decorrentes dessas

    identidades profissionais concorrentes que moldam a tenso, frustrao e conflitos que

    caracterizam as interaes e relaes permanentes entre os jornalistas e a profisso de jornalismo

    e, por um lado, os cientistas e a cincia do outro.

    A autora realizou nove entrevistas estruturadas e abertas, com trs cientistas, trs

    jornalistas/escritores de cincia e trs jornalistas de notcia, definidos amplamente como

    jornalistas cientficos no-especialista, trabalhando em mdia impressa e eletrnica. Os

    entrevistados foram solicitados a identificar os trs aspectos mais importantes da comunicao da

    cincia e como alcan-los; mudanas para fazer a ponte entre o jornalismo e a cincia; e suas

    compreenses do poder, controle, organizao e imperativos tecnolgicos. Para a autora, a principal

    rea de interesse gira em torno das estratgias de proteo da identidade de cada grupo profissional.

    A primeira anlise da autora trouxe como resultado o consenso de que a comunicao da

    cincia poderia ser beneficiada se tivesse mais nfase na acessibilidade, preciso e ateno ao

    pblico. Porm, ela faz a ressalva que essas concordncias aparentes, no entanto, so nuances que

    contm algumas grandes tenses e frequentes contradies, j que preciso, acessibilidade e

    apelo pblico no so facilmente alcanados.

    Jornalistas e cientistas trabalham com diferentes e por vezes opostas concepesde conhecimento, imaginam audincias e formas de sentido enquanto usam asmesmas palavras e expresses, na medida em que ambos os grupos participamde prticas e estratgias que os levam a partir de suas reas profissionais eexacerbam mais que reduzem a ponte entre o jornalismo e a cincia () 2 (p.284).

    2 Traduo livre do ingls realizado pelo pesquisador, assim como em todos os outros textos em ingls.

    16

  • O primeiro fator notado pela autora que jornalistas e cientistas operam com concepes

    muito diferentes do tempo. Na sua forma mais superficial, isto se refere ao imediatismo e prazos

    curtos da mdia de notcias dirias em comparao com o ritmo mais lento e acumulativo do

    conhecimento cientfico (p. 285).

    Outro resultado da anlise das entrevistas foi que os jornalistas no se contentam em

    apenas querer uma chance de representar ideias, mas competem com outros jornalistas e meios de

    comunicao para a publicao. Eles tambm competem com cientistas pelo controle sobre o

    contedo de suas histrias. Para a autora, alguns jornalistas possuem vises deles prprios como

    marginais e conscientes de suas limitaes e menor status social em relao aos cientistas.

    Alm disso, ela tambm comenta que, cientistas e jornalistas, cada um a sua maneira,

    continuam a ser pessoalmente comprometidos com as normas culturais e ticas de suas

    profisses. A autora identificou trs facetas ligadas s identidades profissionais de cada grupo,

    que permanecem controversas e agem como barreiras interao e comunicao da cincia:

    autoria, controle e status. De muitas maneiras, o que profissional para um grupo no

    profissional para o outro. Consequentemente, ambos os grupos se engajam em estratgias de

    proteo da identidade profissional em interaes que levam suspeita e falta de confiana na

    integridade do outro (p. 288).

    Sobre a autoria, a autora concluiu que os cientistas tendem a acreditar que os trabalhos

    devem ser apresentados como eles teriam escrito. Eles esperam o reconhecimento pleno de todos

    os membros da equipe de pesquisa, instituio e fonte de financiamento. Tambm questionam o

    direito dos jornalistas a fazer perguntas e, em seguida, escrever o que quiserem. Por outro lado,

    os jornalistas acreditam que eles so os autores nos meios de comunicao de textos sobre

    cincia.

    Com relao propriedade ou controle, os cientistas sentem um forte senso de

    propriedade de seus trabalhos, inclusive quando eles esto na rea de comunicao pblica,

    enquanto os jornalistas veem-no como no pertencente ao cientista.

    Para a autora, sobre o status, devido identificao dos jornalistas como membros do, e

    intrpretes para, mundo real uma resposta ao baixo status social ligado ao jornalismo comparado

    com a maior estima que a cincia tem tido na sociedade moderna os jornalistas tentam, muitas

    vezes sem sucesso, encontrar formas de chamar os cientistas para um espao mais igualitrio.

    17

  • Uma das mudanas sugeridas por Reed (2001) para melhorar a ponte entre o jornalismo e a

    cincia foi a educao para a mdia destinada a cientistas. Essa sugesto foi vista, segundo a autora,

    como mais relevante do que educao cientfica destinada a jornalistas. Outra proposta, que

    considera concreta para o avano da comunicao da cincia foi a criao de um banco de dados no

    qual os cientistas poderiam registrar seus nomes e especializao.

    Considerei tais estudos sobre a interao entre jornalistas e cientistas relevantes para o

    trabalho com estudantes de jornalismo, pois uma das mais complexas etapas na discursividade

    jornalstica a relao entre jornalistas e fontes. O texto de Peters entrou como leitura obrigatria

    da unidade de ensino, tendo por objetivo compreender o relacionamento entre jornalistas e

    cientistas e proporcionar meios para a superao dos conflitos. Assim, a reviso bibliogrfica foi

    relevante tambm para a montagem da unidade de ensino, j que alguns textos da reviso, como

    Peters (2005) e Medeiros (2007), foram lidos pelos alunos da disciplina Jornalismo Cientfico e

    outros foram lembrados por mim durante as aulas.

    18

  • 2. Apoios terico-metodolgicos

    Leituras da vertente da anlise de discurso originada na dcada de 60 na Frana por

    Michel Pcheux, principalmente em textos produzidos no Brasil por Eni Orlandi contriburam

    para as reflexes que possibilitaram a realizao deste trabalho. Mobilizar a anlise de discurso

    me pareceu adequada j que considera que a linguagem no transparente, bem como admite que

    a relao entre homem, pensamento e mundo no acontece de forma direta e sim mediada pelo

    simblico. J a noo de discurso, enquanto efeito de sentidos entre interlocutores, favorece

    condies para compreenso dessas relaes mediadas. Nessa vertente da anlise de discurso,

    procura-se compreender a lngua fazendo sentido, enquanto trabalho simblico e parte do

    trabalho social geral, constitutivo do homem e da sua histria, concebendo a linguagem como

    mediao necessria entre o homem, o social e o mundo natural. Essa mediao, que o discurso,

    torna possvel tanto a permanncia e a continuidade quanto o deslocamento e a transformao do

    homem e da realidade em que ele vive.

    A anlise de discurso busca compreender os mecanismos que funcionam na construo

    dos discursos, sendo que alguns desses mecanismos so as condies em que eles so produzidos.

    Para Orlandi (2005), a anlise de discurso possibilita a reflexo sobre o trabalho dos processos de

    produo da linguagem e no apenas seus produtos. Podemos considerar as condies de

    produo em sentido estrito e temos as circunstncias da enunciao: o contexto imediato. E se

    as considerarmos em sentido amplo, as condies de produo incluem o contexto scio-

    histrico, ideolgico (p. 30). Isso no significa que as condies imediatas no sejam scio-

    histricas.

    2.1. Sujeito e formaes discursivas

    A noo de sujeito considerada um dos pilares da anlise de discurso, j que atravs dela

    se estabelecem concepes de discurso, de linguagem e dos seus funcionamentos. Desde as suas

    filiaes tericas primordiais baseadas nas releituras de Marx e Freud respectivamente por

    Althusser e Lacan, a anlise de discurso j estabelecia as suas concepes de sujeito.

    Mazire (2007) lembra que um dos aspectos que constituram a originalidade da anlise

    de discurso francesa est na ideia do sujeito assujeitado, falado por seu discurso, provindo de

    19

  • Foucault, Althusser e Lacan. Essas consideraes sobre o sujeito, que no escapa ordem do

    discurso, relacionada com a historicidade de toda enunciao e a materialidade das formas da

    lngua que vai constituir a especificidade da anlise de discurso na definio da noo de

    sujeito. De acordo com Orlandi (1994) a anlise de discurso tem seu ponto de apoio na reflexo

    que produz sobre o sujeito e o sentido, j que considera que, ao significar, o sujeito se significa,

    propondo uma maneira de pensar sujeito e sentido que se afasta tanto do idealismo subjetivista

    (sujeito individual) como do objetivismo abstrato (sujeito universal). A anlise de discurso

    considera que o sentido no est j fixado a priori, como essncia das palavras, nem tampouco

    pode ser qualquer um: h determinao histrica do sentido (p. 56). Assim, ao introduzir a noo

    de sujeito e de exterioridade, a anlise de discurso se inscreve numa posio epistemolgica que

    pressupe o descentramento do sujeito.

    Essa relao com a exterioridade, a historicidade, tem um lugar importante, eudiria mesmo definidor, na Anlise de Discurso. De tal modo que, ao pensar arelao entre linguagem e sociedade, ela no sugere meramente uma correlaoentre elas. Mais do que isso, o discurso definido como processo social cujaespecificidade est em que sua materialidade lingustica. H, pois, construoconjunta entre o social e o lingustico (p. 56).

    Orlandi ainda prope que a anlise de discurso produz suas crticas a duas tendncias que

    se ligam: que prope o sentido literal (o sentido um, do qual derivam os outros) e que, no

    lado oposto, diz que o sentido pode ser qualquer um. Ambas posies so a negao da histria

    (p. 56).

    De acordo com Pcheux (2009), o carter material do sentido mascarado por sua

    evidncia transparente para o sujeito consiste na sua dependncia constitutiva daquilo que

    chama o todo complexo das formaes ideolgicas. Ele especifica essa dependncia por meio

    de duas teses:

    1) A primeira consiste em colocar que o sentido de uma palavra, de umaexpresso, de uma proposio etc., no existe em si mesmo (isto , em suarelao transparente com a literalidade do significante), mas, ao contrrio, determinado pelas posies ideolgicas que esto em jogo no processo scio-histrico no qual as palavras, expresses e proposies so produzidas (isto ,reproduzidas). Poderamos resumir essa tese dizendo: as palavras, expresses,proposies etc., mudam de sentido segundo as posies sustentadas poraqueles que as empregam, o que quer dizer que elas adquirem seu sentido em

    20

  • referncia a essas posies, isto , em referncia s formaes ideolgicas nasquais essas posies se inscrevem (p. 146).2) Toda formao discursiva dissimula, pela transparncia do sentido que nela seconstitui, sua dependncia com respeito ao todo complexo com dominante dasformaes discursivas (p. 148).

    Pcheux considera uma formao discursiva como aquilo que, numa formao ideolgica

    dada, isto , a partir de uma posio dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado de luta

    de classes, determina o que pode e deve ser dito. As palavras, expresses, proposies recebem

    seu sentido a partir da formao discursiva na qual so produzidas. O que implica um modo de

    ver os indivduos como interpelados em sujeitos-falantes pelas formaes discursivas que

    representam na linguagem. O autor tambm explicita o que seria o todo complexo com

    dominante da segunda tese a partir da noo de interdiscursividade. A formao discursiva seria

    operada pela objetividade material que residiria no fato que algo fala sempre antes, em outro

    lugar e independentemente. O efeito de encadeamento do pr-construdo e o efeito que

    chamamos articulao () so, na realidade, determinados materialmente na prpria estrutura do

    interdiscurso (p. 149).

    Para Pcheux, como retoma Orlandi (2005), o interdiscurso definido como aquilo que

    fala antes e em outro lugar.() o que chamamos memria discursiva: o saber discursivo que tornapossvel todo dizer e que retorna sob a forma do pr-construdo, o j-dito queest na base do dizvel, sustentando cada tomada da palavra. O interdiscursodisponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em umasituao discursiva dada (p. 31).

    Pcheux (1999) ressalta que:

    () a memria discursiva seria aquilo que, face a um texto que surge comoacontecimento a ler, vem restabelecer os implcitos (quer dizer, maistecnicamente, os pr-construdos, elementos citados e relatados, discursos-transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condio do legvel em relaoao prprio legvel. () A questo saber onde residem esses famososimplcitos, que esto ausentes por sua presena na leitura da sequncia () (p.52).

    A anlise de discurso, como lembra Orlandi (ibidem, p. 58), considera que tanto os

    sujeitos como os sentidos se constituem historicamente, num processo que funciona pela dupla

    iluso de que o sujeito origem de si e a linguagem transparente, reflete sentidos j-l, dados.

    21

  • A anlise de discurso, desse modo, repe como trabalho a prpria interpretao, o que resulta em

    compreender tambm de outra maneira a histria, no como sucesso de fatos com sentidos j

    dados, dispostos em sequncia cronolgica, mas como fatos que reclamam sentidos, cuja

    materialidade no possvel de ser apreendida em si, mas no discurso.

    Outra noo da anlise de discurso que considerei relevante, e que tem a ver com a

    perspectiva do sujeito para a anlise de discurso, a de imaginrio. Em anlise de discurso, no

    bastaria ao analista simplesmente descrever com mincias os traos sociolgicos empricos

    classe social, idade, sexo, profisso pois so as formaes imaginrias, constitudas a partir das

    relaes sociais que funcionam no discurso, como, por exemplo, a imagem que se faz de um pai,

    de um operrio, de um presidente etc. H em toda lngua mecanismos de projeo que permitem

    passar da situao sociologicamente descritvel para a posio dos sujeitos discursivamente

    significativa (ORLANDI, 1994, p. 56).

    De acordo com Orlandi (2005), segundo o mecanismo da antecipao, todo sujeito tem a

    capacidade de colocar-se no lugar em que o seu interlocutor ouve suas palavras:

    Ele antecipa-se assim a seu interlocutor quanto ao sentido que suas palavrasproduzem. Esse mecanismo regula a argumentao, de tal forma que o sujeitodir de um modo, ou de outro, segundo o efeito que pensa produzir em seuouvinte. () Dessa maneira, esse mecanismo dirige o processo de argumentaovisando seus efeitos sobre o interlocutor (p. 39).

    Brando (1991) cita como exemplo o interior de uma instituio escolar, onde h o lugar

    do diretor, do professor ou do aluno, marcados por propriedades diferenciais. No discurso, as

    relaes entre esses lugares se acham representadas por vrias formaes imaginrias que

    designam o lugar que destinador e destinatrio atribuem a si e ao outro. Dessa forma, em todo

    processo discursivo, o emissor pode antecipar as representaes do receptor e, de acordo com

    essa anteviso do imaginrio do outro, fundar estratgias de discurso (p. 36).

    Nesta pesquisa, procurei indcios de imaginrios visando compreender como os

    estudantes produziram sentidos para a unidade de ensino sobre jornalismo cientfico. Digo

    indcios porque concordo com Mazire (2007) quando ela refora a ideia que o sujeito da anlise

    de discurso (um lugar de sujeito) no pode ser apreendido. Entretanto ela coloca como

    condio para a apreenso do sujeito o interior de cada uma das buscas do analista, em funo de

    seu desgnio interpretativo e de sua posio quanto lngua.

    22

  • 2.2. Dispositivo terico, analtico da interpretao e metodologia da pesquisa

    Para Almeida (2004), em qualquer estudo, a explicitao do dispositivo terico colocado a

    funcionar fundamental e quase sempre seu papel vai alm daquilo que frequentemente

    suposto pelos autores do estudo. Para a autora:

    () o suporte terico no entra em cena apenas na anlise de informaesobtidas com a inteno de se solucionar um problema; as convices que essereferencial possibilita, direta ou indiretamente, j se fazem presentes nadefinio desse problema. Por outro lado, a construo de um dispositivoanaltico vai alm do simples uso do referencial terico, e est associada natureza do problema a ser analisado (p. 44).

    O dispositivo analtico deve explicitar os gestos de interpretao que se ligam aos

    processos de identificao dos sujeitos e suas filiaes de sentidos, descrevendo a relao do

    sujeito com sua memria. Nessa empreitada, descrio e interpretao se inter-relacionam. E

    tambm tarefa do analista distingui-las em seu propsito de compreenso (ORLANDI, 2005, p.

    60). No se espera do analista o trabalho numa posio neutra, mas que essa posio seja

    relativizada em face da interpretao, atravessando o efeito de transparncia da linguagem, da

    literalidade do sentido e da onipotncia do sujeito.

    De acordo com Orlandi (idem), o analista particulariza seu dispositivo analtico a partir da

    questo colocada face aos materiais de anlise que constituem seu corpus e que ele visa

    compreender, em funo do domnio cientfico vinculado em seu trabalho. Com esse

    dispositivo, ele est em medida de praticar sua anlise, e a partir desse dispositivo que ele

    interpretar os resultados a que ele chegar pela anlise do discurso que empreendeu (p. 62).

    Nessa perspectiva, vinculando ao domnio cientfico da educao em cincias, Almeida (2009)

    ressalta que um dispositivo analtico de leituras, a partir das noes da anlise de discurso,

    implica interpelar diferentes tipos de discurso com essas noes na anlise de interpretaes no

    funcionamento de leituras escolares e no escolares.

    Na pesquisa de mestrado (DIAS, 2009) j levantava algumas caractersticas do jornalismo

    para a construo de um dispositivo de anlise que buscou compreender interpretaes de

    licenciandos em fsica quando instados a assumirem posicionamentos quando estes leram textos

    de fsica em revistas de jornalismo cientfico. Nesta pesquisa, tendo em vista os objetivos e

    questes de estudo, ressalto a necessidade de ampliao desse dispositivo analtico com a

    23

  • finalidade de compreender a produo de significados por estudantes de jornalismo sobre os

    processos de construo da cincia e suas possveis abordagens atravs do jornalismo cientfico.

    Assim, desenvolvi um dispositivo que contemplou algumas especificidades do discurso

    jornalstico e, em particular, do jornalismo cientfico, aprofundando na compreenso de

    especificidades do jornalismo, como a noo de notcia, os critrios de noticiabilidade e os seus

    aspectos lingustico/discursivos. Nesse sentido, julguei a pertinncia de focalizar estudos que

    consideram o jornalismo como narrativa, tendo em vista a ampliao do dispositivo analtico

    desenvolvido no mestrado. Coerentemente com essa perspectiva, busquei autores que

    privilegiassem a perspectiva histrica. Considerei que esse seria um caminho possvel para

    abordar aspectos dos processos da cincia no jornalismo cientfico e no apenas os produtos da

    cincia.

    Noes da anlise de discurso contriburam para compreender como os estudantes

    produziram significados com relao a textos de tericos do jornalismo em que eles propunham a

    fuga do estritamente factual em direo ao encadeamento histrico e social daquilo que

    chamado de fato. Com isso, busquei proporcionar meios para que os estudantes pudessem ver

    alm dos resultados da cincia, que se relaciona ao dito fato e vissem tambm os processos de

    constituio da cincia.

    Alm das concepes at aqui explicitadas sobre a construo de um dispositivo analtico,

    tambm levei em considerao na sua construo as noes de leitura advindas da anlise de

    discurso. Para Orlandi (1988) a leitura, se assumido um ponto de vista discursivo, possui alguns

    fatores que tm que ser levados em considerao, como a produo da leitura e, com isso, a

    possibilidade de ser trabalhada. A leitura, tanto quanto a escrita, faz parte do processo de

    instaurao de sentidos e o sujeito-leitor tem suas especificidades, sua histria e tanto o sujeito

    quanto os sentidos so determinados histrica e ideologicamente. Um aspecto importante na

    produo da leitura seria a incompletude, noo que definida pelo implcito e pela

    intertextualidade que seria a relao de um texto com outros.

    Com essa concepo de leitura, assumi a mesma posio de Almeida et. al (2009) que

    fizeram funcionar uma atividade de leitura com licenciandos em fsica e no intencionaram

    apenas obter deles uma possvel resposta considerada como certa, mas sim criar condies de

    produo adequadas manifestao das posies/opinies dos estudantes visando seu debate e

    24

  • oportunizando a reflexo sobre essas posies/opinies (p. 99). Assim, do mesmo modo que

    esse trabalho citado, busquei nas leituras propostas aos estudantes de jornalismo como elas

    poderiam criar condies de produo para a tomada de posies e para a elaborao de textos

    por esses estudantes.

    2.3. Teorias do jornalismo

    Tentativas em definir o jornalismo vem sendo buscadas por diversos pesquisadores. Zelizer

    (2004) afirma que no h consenso na definio do que jornalismo, sendo que o termo se refere

    formao e experincia de quem o tenta definir. Jornalistas possuem a tendncia de pensar o

    jornalismo em modos padres e a partir de um conhecimento tcito que baseado no hbito e no

    costume. A autora indica cinco representaes de como os jornalistas vm o seu trabalho:

    1) Jornalismo como sexto sentido ou sentido das notcias: Aqui as discusses deter um faro para notcias ou jornalistas farejadores de notcias aparecemproeminentemente nas discusses do que eles fazem e como eles o fazem. Taissugestes, do senso comum e dada como naturais, sublinham a habilidade dereconhecer notcias, e frequentemente jornalistas sustentam que algum ou nascecom o senso de notcias ou no.2) Jornalismo como um recipiente: Essa metfora sugere que notcia um fenmenocom volume, materialidade, dimenso, profundidade e possivelmente complexidade.Jornalismo visto como um recipiente das notcias do dia, apresentandoinformaes para o pblico at que ele possa avaliar o que aconteceu.3) Jornalismo como espelho: Nessa viso, a prtica jornalstica reduzida ao olharsobre a realidade ou acontecimentos objetivos do mundo real. Notcia vista comotudo o que acontece, sem qualquer atividade de filtragem da parte dos jornalistas.Central para noes profissionais de objectividade, frases aqui incluem notciascomo uma lente no mundo e cmera como reprter.4) Jornalismo como uma criana: Essa posio identifica os jornalistas comocuidadores das notcias e identifica o jornalismo como um fenmeno carente denutrientes, assistncia, superviso e cuidado. Implicando na fragilidade do jornalismoe vulnerabilidade bem como sua associao com uma exigncia frvola, no razovele imprevisvel, essa metfora assume que jornalistas adotam uma certa contnuaposio paternal, pela qual eles necessariamente atendem as notcias a qualquer hora.5) Jornalismo como servio: Referenciar ao jornalismo como um servio oidentifica no interesse pblico e em conjuno com as necessidades de cidadania. Anoo de servio permeia a linguagem que jornalistas usam em referenciar ojornalismo e conota o servio para ambos o profissional e a comunidade: notcias deservio, agncias de notcias, notcias como sendo de interesse geral e orepresentante jornalstico do pblico servindo em Londres, Washington ouBeijing.

    25

  • Tais imaginrios levantados por Zelizer so relevantes para se compreender, entre outros,

    os discursos dos estudantes de jornalismo, j que, dada a sua formao parece plausvel se supor

    que eles mantm diversos desses imaginrios ao assumir posicionamentos sobre o jornalismo, o

    jornalismo cientfico e a possibilidade de se abordar os processos da cincia.

    A autora tambm se preocupou em como os pesquisadores em jornalismo veem o

    jornalismo. Segundo ela, para a comunidade cientfica o jornalismo se refere, primeiramente, a

    um conjunto de atividades pelas quais algum se qualifica como um jornalista, tais como

    normas e valores compartilhados.

    Ainda segundo a mesma autora, uma segunda perspectiva para o jornalismo a existncia

    de um quadro institucional caracterizado por privilgios sociais, polticos, econmicos e/ou

    culturais.

    Largamente adotada por pesquisadores envolvidos nos estudos crticos eculturais, poltica econmica, estudos sobre ideologia e alguns socilogos ehistoriadores, essa perspectiva v o jornalismo como um fenmeno em largaescala cujo efeito principal exercer poder, primariamente em moldar a opiniopblica e controlar a distribuio de informao ou meios simblicos nasociedade (p. 36).

    Um terceiro conjunto de definies para o jornalismo, a partir de pesquisadores da rea,

    v a notcia com um texto, na qual os textos jornalsticos apresentam caractersticas pactuadas,

    tais como preocupao com certos eventos (a autora d o exemplo de um incndio, uma

    conferncia ou um assassinato), recenticidade e factualidade. A nfase no jornalismo como texto

    considera o uso pblico de palavras, imagens e sons em modos padres (p. 38).

    Ainda para a mesma autora, uma outra definio sobre o jornalismo afirma que ele pode

    ser visto como um conjunto de prticas. Como reunir, apresentar e disseminar as notcias tm

    sido uma tarefa chave nessa tica (p. 42). Zelizer cita o exemplo da necessidade de letramento

    digital exigido ao jornalismo e o carter coletivo da atividade quando aumentou o nmero de

    fontes que podem ser reunidas em uma histria.

    Apesar da dificuldade em definir o que jornalismo, esses imaginrios, tanto as vises

    dos jornalistas e dos pesquisadores em jornalismo, so relevantes para se compreender a

    atividade, bem como o ensino de jornalismo.

    Outro pesquisador em jornalismo que se preocupou em caracterizar a atividade foi Alsina

    26

  • (2009). Esse autor rejeita a ideia de atualidade, uma das definies do jornalismo. A

    atualidade so os acontecimentos aos quais tm acesso mdia e no o que acontece no mundo e

    que poderia ser transformado em notcias. Por notcia, o autor a concebe como construo social

    da realidade, algo especial pertencente realidade, sendo a realidade simblica, pblica e

    cotidiana. Os jornalistas so, como todo o mundo, construtores da realidade ao seu redor (p.

    11). Ao afirmar que duas das problemticas mais polmicas sobre a produo da notcia so a do

    profissionalismo jornalstico e o da objetividade, o autor define o jornalista como um produtor da

    realidade social e alerta: essa concepo bate de frente com o conceito tradicional da

    objetividade jornalstica. No mundo da mdia, a objetividade continua sendo um dos mitos mais

    complexos de serem banidos (p. 14).

    Considero que a noo de acontecimento de Alsina (ibidem) coerente com a anlise de

    discurso, j que esse autor o concebe como uma construo social da realidade por parte do

    sujeito. Ele d o exemplo da exploso de uma estrela supernova no sculo XIII. Tal fenmeno foi

    registrado por astrnomos chineses, persas e astecas, porm foi ignorado pelos astrnomos

    europeus. A falta de registro do fenmeno se deu pela concepo aristotlica dos cientistas que

    acreditavam na imutabilidade das estrelas. Para os astrnomos da Europa do sculo XIII,

    tratava-se de um acontecimento impossvel, portanto no foi um acontecimento (p. 114). O autor

    prope as seguintes premissas:

    1) Os acontecimentos so gerados atravs de fenmenos que so externos para osujeito.2) Mas os acontecimentos no fazem sentido longe dos sujeitos, pois so eles osque lhes conferem sentido.3) Os fenmenos externos que o sujeito percebe tornam-se acontecimento porcausa da ao deste sobre aqueles. Os acontecimentos se compem dascaractersticas dos elementos externos nos quais o sujeito aplica seuconhecimento (p. 114).

    O acontecimento jornalstico toda variao comunicada do ecossistema, atravs do qual

    seus sujeitos podem se sentir implicados. Assim, os seguintes elementos so essenciais para o

    acontecimento:

    a) A variao do ecossistema.b) A comunicabilidade do fato.c) A implicao dos sujeitos.

    27

  • Sobre a variao do ecossistema, Alsina (ibidem) afirma que o ecossistema serve de ponto

    de referncia a partir do qual podemos estabelecer a existncia dos acontecimentos. O autor

    exemplifica:

    () entre um grupo tnico da selva amaznica, o aparecimento de um aviopode ser um acontecimento importante. Em um aeroporto, o aparecimento de umavio a norma, e portanto, no constitui um acontecimento. Por outra parte, oaparecimento de uma jiboia constitui um acontecimento em uma cidade doOcidente, mas no em uma selva em que as jiboias se reproduzem normalmente(p. 140).

    Sobre a comunicabilidade do fato, Alsina lembra de pases que sofrem censura. Assim,

    alguns acontecimentos so a priori incomunicveis. Por implicao aos sujeitos, o autor divide

    em duas perspectivas diferentes. Uma com relao a implicao do destinatrio da notcia e o

    envolvimento que o produtor da notcia (a mdia) pressupe no acontecimento.

    A implicao do destinatrio da notcia se constitui em um dos pontos mais importantes

    quando consideramos a cincia na mdia. Para Alsina, existem trs graus de maior ou menor

    implicao. Implicao direta e pessoal: notcias que atingem a vida cotidiana de algum.

    Implicao direta e no pessoal: notcias que atingem o lado emotivo de algum, mas sem

    relevncia na vida cotidiana da pessoa, como a vitria do time de futebol que algum tora.

    Implicao indireta: notcias que no atinjam o sujeito (aqui o autor cita uma notcia que

    aconteceu em outro pas e que o jornalista procura informaes que faa com que o sujeito se

    sinta implicado). Ausncia de implicao, na qual o sujeito se sente indiferente notcia (o autor

    cita o exemplo da queda da cotao de determinada empresa na Bolsa de Frankfurt).

    O fator de implicao do destinatrio da notcia relevante para compreendermos o

    jornalismo cientfico porque, tendo em conta o mecanismo de antecipao do pblico-alvo, o

    jornalista tenta evitar que os leitores e telespectadores tenham contato com certa notcia e

    pensem: E eu com isso?. No caso da pesquisa cientfica para um pblico-alvo amplo, a cincia

    raramente ter alguma implicao direta na vida das pessoas, como verificado por Vogt et. al

    (2001) que apontou que s 1% das matrias de cincia e tecnologia tiveram chamadas na capa em

    2000 e 2001. Por isso, sempre que o jornalista se depara com pautas de cincia ele se pergunta

    em como isso ir impactar na populao, se isso de interesse pblico ou no. Para Alicia

    Ivanissevich, editora da revista Cincia Hoje, preciso evitar notas superficiais sobre estudos

    28

  • pouco significativos (VILARDO, 2013). Por pouco significativos a jornalista se refere a estudos

    que no causem impacto na populao, que fazem com que as pessoas no se sintam implicadas,

    como teorizou Alsina (ibidem).

    Outro exemplo foi a recente discusso sobre o programa espacial da ndia. No dia 5 de

    novembro de 2013, um foguete indiano lanou um satlite para pesquisas no planeta Marte.

    Muitos apontaram para a contradio de um pas com 300 milhes de pessoas vivendo com

    menos que um dlar por dia e o oramento da agncia espacial indiana de um bilho de dlares

    por ano e o gasto especfico de 74 milhes de dlares com o projeto do satlite. Em meio a essa

    contradio, os jornalistas se viram no dilema de como fazer com que o lanamento do satlite

    pudesse causar impacto na vida dos indianos. Pallava Bagla, jornalista especializado em cincia,

    quando entrevistado pela BBC3 afirmou:

    A ndia tem que caminhar sobre dois ps. Um que deve retirar pessoas dapobreza e outro que busca por alta tecnologia. Buscar por mapear os recursosaquticos, mapear os recursos terrestres, auxiliar os pescadores para que elespossam conseguir melhores pescarias nos oceanos. Isso inclui ver quandociclones acontecem. Em 1999, a ndia no tinha satlites suficientes, no tinharadares Doppler suficientes 10 mil pessoas perderam a vida. Recentementequando o ciclone aconteceu em Odisha. Perda de vidas foi em dois dgitos.Existe um preo para isso?

    Assim, os jornalistas envolvidos na notcia do lanamento do satlite indiano tiveram

    contato com as crticas ao projeto e, atravs da busca em fazer com que a populao se sinta

    impactada, visaram fazer com que a pesquisa espacial indiana tivesse impacto em salvar vidas, o

    que traz implicaes para um universo abrangente de pessoas e justifica os altos gastos com o

    programa espacial.

    A situao do jornalismo cientfico como um todo privilegia a abordagem de notcias em

    pesquisas mdicas porque so de impacto no cotidiano das pessoas. De acordo com Hansen

    (1994) o interesse humano ajuda a explicar o domnio significativo da cobertura em medicina e

    cincias relacionadas sade, que tem invariavelmente sido encontrado em anlises de contedo

    da cobertura de cincia pela mdia (p. 115). Tambm Fahnestock acredita que os temas de sade

    so mais fceis de serem transformados em notcias do que matemtica, fsica e qumica, uma vez

    que, segundo o autor, eles apresentam aplicaes da cincia.

    3 Limaye (2013).

    29

  • Como um escritor de cincia do Instituto Nacional de Pesquisa Dental colocou:A menos que ele vai custar menos ou doer menos, o pblico no quer ouvirsobre isso. Assuntos em biologia e medicina so naturais para esses apelos epor isso so desproporcionalmente representados em jornalismo cientfico.Assuntos em matemtica, qumica e fsica so muito mais difceis de acomodar(1986, p. 279).

    A busca por fazer com que o leitor se sinta implicado pela notcia, que no caso da cincia

    procura por resultados que causem impacto decisivo na populao, provoca certas tenses em

    algumas situaes. Quando o fsico Roy J. Glauber foi laureado com o prmio Nobel de fsica de

    2005, por sua contribuio para a teoria quntica da coerncia tica, Salvador Nogueira (2005),

    ento reprter de cincia da Folha de S.Paulo, o entrevistou. Em praticamente todas as perguntas

    podemos notar a tentativa de relacionamento a alguma aplicao para a pesquisa desenvolvida pelo

    fsico. O prprio ttulo rea levar a revoluo tecnolgica, diz vencedor j foca fortemente na

    implicao tecnolgica e, com isso, de vasto impacto na populao. Segue abaixo alguns trechos:

    Folha: Sobre a sua pesquisa, o sr. por algum momento na poca imaginou quepudesse estar fazendo algo que levasse ao Prmio Nobel?Glauber: No. Com toda honestidade, achei que no. Eu sabia que estavarealizando alguns feitos importantes, no 100% novos, mas eram importantes, ea verdade que a forma como eu fiz, as ferramentas matemticas que eudesenvolvi, aps um certo nmero de anos, acabaram abrindo um campocompletamente novo que extremamente promissor.Folha: Imagino que essas aplicaes tenham a ver com o que os outros doisganhadores fizeramGlauber: Sim, eles so grandes amigos meus, e so experimentalistasfantasticamente brilhantes. John Hall fez experimentos muito inteligentes commedies precisas. Theodor Hnsch, que eu conheo bem, tambm.Folha: E o sr. v ainda um grande potencial futuro para a fsica que o sr. ajudoua desbravar?Glauber: Bem, ns ainda estamos no comeo dela. (Risos) No final das contas,a nanotecnologia vai depender dela. Na verdade, as ferramentas matemticas emque eu trabalhei vo alm da escala da nanotecnologia, falam de coisas aindamenores que isso.Folha: O sr. poderia falar mais de como seus desenvolvimentos tericos seaplicariam nanotecnologia? Como vai funcionar?Glauber: No tenho como dizer como vai funcionar. Pouca coisa foi realmenteobtida at agora, estamos realmente no comeo disso tudo. A ideia que nofuturo tomos individuais possam substituir partes de componentes eletrnicos,como transistores.Folha: Mas tem muita gente que diz que, apesar de todo esse entusiasmo recentecom nanotecnologia, essas aplicaes mais sofisticadas, se que so possveis,esto num futuro bem distante. O que o sr. acha disso?Glauber: Olha, eu sou um terico. Eu fao coisas matemticas. Eu no estoupreocupado com o lado experimental.

    30

  • Podemos notar o relativo desconforto do fsico em ter que, todo momento, imaginar

    aplicaes prticas para sua pesquisa. O desconforto fica evidente quando diz no estar

    preocupado com o lado experimental, ainda que o lado experimental no se refira

    necessariamente a aplicaes.

    As cincias humanas tambm sofrem do mesmo problema, j que se considera que no h

    aplicao imediata das pesquisas. Investigaes em humanas s vo para a mdia quando valores-

    notcia, que irei discutir com mais profundidade adiante, se renem em uma mesma pesquisa,

    como, por exemplo, quando alguma celebridade e/ou person