o estranho e a jornalista

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EDITORA TORRE

Rio de Janeiro, 2012

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O Estranho e a JornalistaDUTRA, Flora

1ª Edição

Fevereiro de 2012

ISBN: 978-85-7961-750-8

EDIÇÃO Marcelo Benvenutti

IMAGEM DA CAPA Quarto em Arles (1889), Vincent van Gogh

CAPA E DIAGRAMAÇÃO  Guilherme Peres

Todos os direitos reservados.

É proibida a reprodução deste livro com fins comerciais sem

prévia autorização do autor e da Editora Torre.

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a p r e s e n t a ç ã o

Algumas histórias de amor, e esta é uma delas, são cercadas de

mistérios e segredos. O Estranho e a Jornalista não é um livro de

suspense, ou é, mas também é um romance de amor insano. Se

fosse eu um poeta diria que todos amores são insanos, mas não. Euacredito no amor. Talvez seja eu o insano, mas o amor do Estranho,

que não tem nome, ou tem, mas só a Formiga sabe, é um destes.

Amor perdido em uma noite de verão. Amor ao acaso. Amor bêba-

do. Sem noção. O que é verdade e o que é mentira quando amamos

alguém? Quem nos garante que nossos sonhos não são reais e o

que parece não passa de um pesadelo? O Estranho escreve e sofre.Ou sofre e escreve. Não é preciso sofrer para escrever. Ele escolheu

assim. O Estranho ama sofrer. Sofrer por amar alguém. Um alguém

mítico, um amor romanceada de Goethe, uma doença neurótica e

urbana em uma Porto Alegre pavorosamente cinza. É a Porto Alegre

do Estranho. Não é a sua, pode ser se você quiser.

Pode ser a minha, mas eu sou só uma voz falando sobre um Estra-

nho que só conheci pelas palavras digitadas de Flora Dutra.

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Flora Dutra nos leva pelo caminho tortuoso da mente do Estranho e

nessa estrada percorremos as mais profundas contradições de uma

alma fervendo, etérea, parnasiana, quixotesca. Todos estes adjeti-

vos poderiam soar piegas se não fosse a autora saber trabalhar o

limite entre a semente que planta a ideia e o esterco que a alimenta.

Flora sabe explorar esta fronteira, como se o próprio nome da au-

tora fosse predestinado a semear dúvidas entre os leitores como a

deusa que alimentava os romanos em tempos inauditos.

Leia o Estranho e a Jornalista aos poucos. Dizem que livro bom selê de uma sentada. Não aqui. É um livro para ser deflorado lenta-

mente, como as preliminares de um fim que não se quer chegar. O

Estranho procura a Jornalista, talvez ainda a procure, não sei. Pro-

cure você, leitor, pois daqui para frente a história não é de ninguém.

O leitor é a pedra por onde ela caminha. Cabe ao leitor levá-la para

onde quiser.

 Marcelo Benvenutti é escritor e editor deste livro.

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 Para Antônio, por suas músicas que sempre ficaram em mim.

 Para Rubens, por sua poesia que me inspira.

 Para Jeronimo, por seus fragmentos em meus sonhos.

 Há um pouco de cada um aqui e em mim.

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“Há sempre alguma loucura no amor.

 Mas há sempre um pouco de razão na loucura.”

N I E T Z S C H E

(Assim falava Zaratustra)

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o estranho

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pr isc i la miraz de f re i tas grecco

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01 janeiro de um ano qualquer

Ele era alto. Magro. Pele clara sem tatuagens. Sempre de óculos.

Ninguém sabia seu nome. Era conhecido como ‘O Estranho’. Cami-

nhava pela praia de Torres. Estava sozinho acompanhado de uma

garrafa de vodca. Estava sempre sozinho. Ele parou e deitou na

areia, mas não conseguiu dormir. Bebeu a vodca. Morna. Pensavanos acontecimentos da noite anterior. O que mais impressionava

era o comportamento depressivo. Tinha presente a solidão. Decidiu

que a ao amanhecer seguiria quieto e empenhado em descobrir

quem era a figura feminina que lhe chamou a atenção em um ves-

tido de bolinhas preto e branco na virada daquele ano qualquer.

O Estranho adormeceu na areia e sonhou com a mulher. Era umajovem Jornalista frustrada. Ela não tinha conseguido concluir o

mestrado em sociologia política devido ao seu atraso de raciocí-

nio, provavelmente causado por ingestão de grandes quantidades

de maconha e anfetaminas. Mas no sonho Ela parecia sensível, uma

mulher em quem se podia confiar. Os melhores amigos da Jornalis-

ta eram roqueiros que despontavam nas rádios da capital gaúcha.Eles pareciam um tanto deprimentes, sempre com cigarros na boca,

bebidas e algumas drogas. O sonho parecia bem real.

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de uma máscara a outra

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02 de janeiro de um ano qualquer

O barulho das ondas acordou O Estranho na areia quente. Os pas-

sarinhos nos fios elétricos refletiam seus olhos tristes. Estava em

outro mundo e todas as suas paranoias estavam difíceis de alcançar.

Absorvido pela sua ilusão e imaginação sobre A Jornalista, O Estra-

nho vagava pela areia, pensava em qualquer redação de jornal ou

revista em que Ela poderia estar. Ela era sua história agora. Um dia

após o outro. Acreditou estar em união total com alguma coisa no

espaço que ainda iria descrever.

05 de janeiro de um ano qualquer

O Estranho volta para Porto Alegre. Um velho apartamento em Pe-

trópolis.

23 de fevereiro de um ano qualquer

Poucos dias foram suficientes para O Estranho descobrir que A Jor-

nalista era real e morava em Porto Alegre. Que seus pais eram apo-sentados. Que tinha sido alfabetizada pela avó alemã aos 4 anos.

Devido à alfabetização precoce, nas séries iniciais tinha como cas-

tigo ir à biblioteca do colégio ler sozinha. Aos 12 anos lia clássi-

cos. Na adolescência A Jornalista apaixonou-se por Gibran Khalil

Gibran, Nietzsche, Oscar Wilde e Dostoievski. Passada a fase da

descoberta do Estranho, Ele foi à busca de vestígios que o levassemà tal Jornalista. Antes de definir um plano de sequência, após beber

duas garrafas de vodka, apagou.

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24 de fevereiro de um ano qualquer

O Estranho acordou com a cabeça pesando mil toneladas. Passando

por uma ressaca sem precedentes, tentava entender como chegaria

até o banheiro. Precisava de um banho. Pensou no calor que fazia

em Porto Alegre, mas desistiu de levantar. O Estranho ficou ape-

nas com os pensamentos e sua descoberta do dia anterior. Tudo

confuso. Muita dor de cabeça. Tomou calmantes para adormecer

novamente. Sonhar. O Estranho queria sonhar com A Jornalista e

de tanto querer começou a ter uma sequência de sonhos.

25 de fevereiro de um ano qualquer

A rotina do Estranho era essa: acordar, sair da cama e ir para o sofá,

seu melhor amigo e companheiro de todas as horas. Ele também po-deria ser conhecido como ‘O Homem do Sofá’. O Estranho queria ver

A Jornalista e queria que Ela o visse também. Foi nesse dia que, em-

polgado com as anfetaminas, resolveu vestir sua melhor camisa xa-

drez e ir a um show de rock. Caminhando pela Osvaldo Aranha ele

comprou um baseado. Fumou ali na avenida mesmo, sozinho. Sentiu

seu coração disparar. Saiu correndo sem saber pra onde. Estava ansio-

so para encontrar A Jornalista. Parou na esquina do Ocidente. Tinha

festa. Show da Pública. Um cara baixinho e gordo avisava que a fes-

ta era fechada para a imprensa. O Estranho precisava de um convite

para entrar. Sentiu que Ela estaria na festa. Nesta hora um cara alto e

cabeludo saiu do Ocidente reclamando das músicas e atirou o convite

na calçada. Provavelmente queria um heavy metal. O Estranho pegou

o convite. Entrou. Comprou um uísque. Ela estava lá, linda, com omesmo vestido de bolinhas preto e branco. Ele ficou parado no balcão

enquanto Ela se aproximava e perguntava:

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de uma máscara a outra

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[A Jornalista] – Você não é o escritor de muitos livros de sucesso

aqui de Porto Alegre? Eu conheço você, esteve me observando na

virada do ano na praia de Torres. Aliás, eu estava com este mesmo

vestido, eu te vi na Redenção uma vez.

O Estranho ficou pasmo na hora, não conseguiu falar e seus pensa-

mentos ficaram fora de si. Ela era linda, era a guria mais linda que

Ele já tinha visto na vida. Com certeza já a amava. Não sabia expli-

car o que as pessoas interpretam quando dizem que se apaixonam

à primeira vista, mas com Ele aconteceu.

Ela falava em Radiohead, em Coldplay. Descrevia Pearl Jam com

tanta naturalidade. O coração do Estranho sentiu um aperto inexpli-

cável. Seus olhos congelaram nela. Mas tudo foi interrompido por

disparos de tiros na João Telles. Nesse momento todos caíram no

chão e Ela o abraçou tão forte que Ele quase desmaiou por falta de

ar. Passado o susto todos voltaram a dançar. A Jornalista rapida-mente pegou um cigarro da bolsa, acendeu e disse:

[A Jornalista] – Deve ter sido a máfia italiana! Fiquei tão assustada. Achei

que morreria e não veria mais a Valentine. Você não vai falar nada?

O Estranho levantou, espantado, o copo de uísque, tomou um gole

e perguntou:

[O Estranho] – Quem é Valentine?

A Jornalista sorriu e confessou que era sua cadelinha vira-lata que

havia adotado naquela semana. O Estranho esboçou um sorriso

sem graça. Ao longo da noite foram muitas doses de uísque, maco-nha e pouca conversa. Ela se despediu e deixou seu telefone com

Ele. Pediu para que ligasse.

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26 de fevereiro de um ano qualquer

Na manhã seguinte O Estranho não conseguiu sair da cama. A ca-

beça parecia que ia cair do corpo. Ele sentia a sensação de que seu

corpo afundava em um abismo sem volta. Na cama tentava escre-

ver uma poesia. Desistiu. Pensou que aquele era o dia de pagar o

aluguel. Desistiu. O Estranho abriu a gaveta ao lado da cama, en-

cheu a mão de calmantes e pensou. Pensou. Pensou. Questionou

as vidas vividas. A poesia esquecida nas gavetas. Sentiu que o amor

doía. As lembranças do Estranho pareciam doces, sua infância, oscastelos de areia, as buscas das conchas perfeitas. O Estranho era

pequeno e agora Ele era grande. Pensou sobre o futuro em cima da

cama e acendeu um cigarro para refletir melhor. Sentiu o mesmo

medo de quando era pequeno e a onda poderia dominá-lo e levá-

-lo para a imensidão do mar. Ele pensou o que poderia levá-lo ao

desconhecido naquele dia – Um francês barato? Um inglês torto?

Um espanhol enrolado? O Estranho entendeu o mundo real, masum choque abalou suas convicções. Ele tinha que saber viver, saber

lidar com pessoas, administrar seu dinheiro, fazer economia, conter

energia. Os calmantes fizeram efeito e Ele adormeceu.

27 de fevereiro de um ano qualquer

O Estranho sabia escrever, somar, gastar, amar, sofrer, viajar, des-

crever e cair. Levantar. Ele falava sozinho que um algodão-doce o

salvara e que o sol tornava-se um perigo. Ele dizia também que

ninguém sabia qual era o verdadeiro gosto do sabor natural. Ques-

tionava-se se havia democracia em fator solar e se havia socialismoem guarda-sóis. O Estranho lembrou que uma vez sua priminha

disse que as formigas africanas iriam dominar o mundo, que o uni-

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de uma máscara a outra

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verso era fashion e o diabo vestia Prada. O Estranho foi para o sofá

ver filmes. Pó de café em filme. No caminho entre o quarto escuro e

a sala suja pensou nas formigas africanas. Pegou um cigarro e pen-

sou em fazer um crédito para entrar no céu e financiar em 30 dias

sua permanência ao lado do Senhor. Ele estava apavorado com as

guerras por todos os lados, os assaltos na casa do vizinho, o cachor-

ro atrás do gato. Pensou na Jornalista, no que fazia e no que iria

comer. O interfone tocou. Era O Carteiro. O livro que havia enco-

mendado acabava de chegar: ‘Feriado de Mim Mesmo’, de Santiago

Nazarian. Na porta do prédio, O Carteiro sorriu e disse:

[O Carteiro] – Hoje vai chover!

O Estranho sem falar nada fechou a porta e pensou sobre o verda-

deiro gosto do sabor natural e no reino das formigas africanas. O

telefone da Jornalista estava colado na geladeira. Ele não queria

ligar. Ele queria ligar. Decidiu tomar calmante e voltou para a cama.O envelope com o livro de Nazarian permaneceu fechado.

03 de março de um ano qualquer

O Estranho queria ficar até de madrugada pensando na Jornalista.

Ele não saía mais da cama. Havia dias que O Estranho estava de-

primido e ingeria comprimidos. Calmantes. Antidepressivos. Estava

confuso. Todos os versos que escrevia eram para A Jornalista. Um

amor que não existia além da imaginação. Ele queria fugir da rea-

lidade. Não queria mais ver o telefone na geladeira e nunca mais

entrou na cozinha. Chovia forte. Ele levantou e saiu para a ruade pijama. Queria tomar banho de chuva embaixo de uma árvore

seca. A árvore se transformou numa prisão de pingos em câmera

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lenta. Ele não conseguia sair dessa cena. O Estranho queria rir.

Queria parecer normal. Queria saber se naquela noite Ele pareceu

normal para A Jornalista. Ele queria ligar pra Ela e falar o que

sentia, queria parar com a morte mental. Ele não queria assassinar

seus pensamentos, momentos ou ainda anestesiar olhares e beijos

futuros. Mas não queria ser rejeitado. Não suportaria. Voltou pro

apartamento na chuva pensando em cortar os pulsos ou tomar um

monte de remédios coloridos. Entrou no banheiro e viu sua barba

gigantesca. Ele foi pra cama e levou uma garrafa de uísque. Depois

de meia garrafa e 10 calmantes sentiu que estava normal – comoum tempo estável, sem quedas de temperatura, sem aquecimento

cerebral. Mas O Estranho sabia que estava longe de ficar com A Jor-

nalista. Mesmo não havendo perspectivas Ele sobrevivia às marés

de humor. Ele bebia para apagar, mas o cérebro voltava a funcionar,

bombeava seu sangue e dizia oi para a serotonina. Depois de uma

garrafa, O Estranho chorou, adormeceu pensando no que poderia

vir e cantou ‘Todo Carnaval tem seu Fim’, dos Los Hermanos.

04 de março de um ano qualquer

O Estranho queria que sua manhã ficasse transfigurada. Não queria

falar com ninguém nem queria saber o que poderia acontecer. Já

não lia jornais ou assistia a filmes. Seus sentimentos continuavam

solitários como sempre foram e Ele desejou o abismo e a escuridão

de volta. Estar dentro da pintura de Van Gogh, seu artista preferido.

Relutou em achar explicação para a vida ou a morte. O Estranho

não conhecia A Jornalista e nem merecia. Entregou-se aos antide-

pressivos. Dançou num dia cinzento com Funeral March de Cho-pin, brindou com os trovões e clamou perdão pela vida miserável.

Desejou nunca ter saído do apartamento. Passou por todas as suas

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emoções e sentiu-se viver e enxergar. Foi rápido demais. Girou rá-

pido demais. Estava dopado. Não sentia vontade de fazer o certo,

não sentia mais vontade de nada e caiu. Continuou deitado com

os fones de ouvido. Escutava nessa hora ‘Wild Horses’ dos Rolling

Stones e fotografou na memória as lembranças que vivera naquela

noite com A Jornalista. Desejou que A Jornalista não o tivesse co-

nhecido daquele jeito. Queria ter dito palavras amplas ou poesias,

mas atribuiu o desastre às anfetaminas combinadas com a maconha.

Ele queria pedir desculpas à Jornalista, implorar minutos do seu dia,

pedir um tempo que não voltava mais. Não queria ser inconstante.Não queria ser como todas as pessoas que falam do tempo. Não que-

ria ser O Carteiro entregando cartas do amor de outros.

05 de março de um ano qualquer

O Estranho recusava o amor que estava colado na geladeira. Seu

sono chegava com prenúncios como jamais imaginaria. As palavras

mentais e contextos formavam um finito de algo que poderia ser

mutável, e era. Então caiu o manto de profecias do eterno infinito

para Ele. Parou de fingir que andava solto como vento no mês de

março. O Estranho estava humilhado, fraco, mas não morto. Estava

em êxtase e imóvel deitado no meio da sala, do chão sujo. Na cena

Ele enxergou uma Formiga. Ela veio na direção do rosto dele. A

Formiga falou ao Estranho:

[A Formiga] – Largue essa dor inevitável à espera de um espinho

envenenado.

[O Estranho] – Minha mente desce às profundezas de um átomo

em decomposição.

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Ele respondeu, mas A Formiga insistiu:

[A Formiga] – Tem medo do quê? Da desgraça pequena de uma

interrogação?

O Estranho não respondeu. Penetrou nas imensidões íntimas para

enfim brindar a perspectiva. Ele deu adeus ao mundo velho e acre-

ditou num feliz mundo novo de poesia e caos. A Formiga estava à

procura de um jogo como provocações de um delírio incerto.

06 de março de um ano qualquer

O Estranho acordou atormentado com o diálogo que teve com A

Formiga e pensou que realmente a priminha estava certa. As formi-

gas iriam dominar o mundo. Mas Ele não sabia dizer se ela – A For-miga – era africana ou não. Ele levantou do chão sujo e foi para

o banheiro. Olhou a própria cara no espelho imundo. A barba

estava cada vez maior. Tomou um banho frio e foi para o quar-

to. Vestiu jeans, All Star e uma camiseta surrada do Nirvana.

Caminhou até a cozinha e pegou o papel que tinha o telefone da

 Jornalista. Realmente A Formiga o encorajou. Pegou o telefone e

discou os números.

[A Jornalista] – Alô!

[O Estranho] – Palavras o que são? Tradução de um nada que pode

ser revelado?

[A Jornalista] – Quem está falando?

[O Estranho] – Tudo o que tenho não me satisfaz sem teu amor,

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de uma máscara a outra

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sem tua verdade e vergonha. Tudo que sinto não passa de devaneio

incorreto de uma fuga sagaz.

[A Jornalista] – Por favor, quem está falando?

[O Estranho] – Quando posso partir e te deixar livre da minha pri-

são de sonhos? Quero te amar como nunca poderia imaginar. Quero

te ter perto de mim pra te fazer voar entre as minhas mãos trêmu-

las. E quando tudo não passar de um susto, quero te beijar e morrer

neste instante em que te descobri, minha querida amante!

[A Jornalista] – Quem é?

[O Estranho] – Às vezes faço da razão algo para segurar meus me-

dos. O que uma noite de amor representaria? Um futuro de sombras

inadequadas, gestos indefesos, entrega total? Não sei e nem você

sabe a não ser a minha alma.

[A Jornalista] – Se você não falar agora quem é eu vou desligar.

Estou avisando. Mas antes espere, eu não sei quem você é, mas

eu gostei.

O Estranho desligou o telefone. Correu para a cama e colocou

muitos cobertores sobre seu corpo. Se escondeu embaixo dascobertas e chorou. Abriu a gaveta e pegou mais remédios. Ele

não sabia o que tinha feito. A Jornalista nunca mais falaria com

Ele. Ele nunca mais iria sair daquela cama. Seu corpo doía, tinha

espasmos musculares. Chorava compulsivamente. O Estranho

estava sozinho. Sentia-se uma formiguinha. Uma formiguinha

sem mundo para dominar.

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07 de março de um ano qualquer

O Estranho não sabia quantas horas havia dormido, mas despertou e

saiu correndo da cama, pegou o telefone, acendeu dois cigarros e dis-

cou os números da Jornalista. Ele estava sem noção de tempo e estava

dopado. O telefone da Jornalista tocava e Ela demorou a atender.

[A Jornalista] – Alô, mãe é você? Que horas são? O que houve?

[O Estranho] – Agora está feliz? Você não quer falar comigo nem mever? Você nunca vai me trazer filmes ou jornais! Não quero o que

há de vir. Não quero mais saber o que poderia acontecer.

[A Jornalista] – Quem está falando?

[O Estranho] – Você não merece o que eu sinto, eu sou ruim.

[A Jornalista] – Não é manhã, é madrugada. São 4 horas da madru-

gada! Você está bem? Parece um pouco confuso, e afinal quem é

você? Como tem meu telefone?

[O Estranho] – Não quero te atingir em palavras de entendimento.

Eu quero explicações pra minha vida e pra minha morte. Você não

me conhece e nem quero que me conheça.

[A Jornalista] – Por que está me ligando?

[O Estranho] – Vou me entregar aos antidepressivos. Eles me farão

fingir. Mas antes quero que meus pensamentos estejam livres para

voar num dia cinzento, longe de nós, vou brindar aos trovões de

uma alma que clama perdão por estar aqui. Você passou por todas

as minhas emoções e agora chegou ao fim.

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de uma máscara a outra

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[A Jornalista] – Fim?

[O Estranho] – É como tudo deve ser. Não quero sentir vontade de

fazer coisas, não quero sentir vontade de sentir vontade. Você vai

ficar na minha mente como uma fotografia.

[A Jornalista] – Você que eu não sei quem é vai continuar com

teus delírios. Quero que você esqueça que um dia me conheceu, se

é que conheceu. Eu vou continuar aqui, mas longe de angústias,

carnavais e funerais. Estou feliz que você vai partir. Quero que fi-que longe dos meus medos, dos entendimentos, quero que fique aí

onde está.

[O Estranho] – Um tempo que não volta mais. Nunca sei o que dizer

nessas horas, apenas sinto tempestades em mim que não estão na

previsão de um tempo bom. E antes que diga que vai desligar não

me escute mais, estou te salvando de dias piores e é o que basta.

O Estranho tentou o suicídio. SAMU. Transfusão. Pontos entre a

vida e a morte. A formiguinha carregando uma imensa folha. Vinte

vezes mais pesada que ela.

08 de março de um ano qualquer

A ilusão do Estranho transitava sorrateiramente onde jamais pode-

ria entrar. Ele foi infantil a ponto de se derramar de amor, de querer

um perdão, de chorar e tentar morrer. Ele sonhou com A Jornalista

mesmo a distância. Via sua recuperação plena. O Estranho estava

numa cama de hospital. Sua mente doente mentia e se enfraquecia,

não queria mais esse mundo. Mentes de ácidos. Aos 26 anos, 26

segundos, 26 dias. O Estranho estava no corredor correndo em en-

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laces imperfeitos, suas pernas pediam um tombo magistral. Queria

cair. Caiu.

Sua visão se apagou. A mente do Estranho mentia que estava vendo

A Jornalista num altar lhe estendendo a mão... O Estranho delirava

e falava:

[O Estranho] – Mentes de ácido jovem, velha, recém-nascida, re-

cém-postulada, ingrata, querida, minha amante! Mente – ácido. Se

fosse pelo bem te serviria uma xícara de chá.

O hospital estava gelado, silencioso. O Estranho estava preso em

fitas, seus braços estavam amarrados. Sentiu uma picada. Anfe-

tamina? Queriam que Ele dançasse, dançasse como louco para os

loucos que estavam ao lado. Queriam que ele falasse sem parar...

Sentiu outra picada. Morfina? Queriam que ele aposentasse sua menteque mentia aquela dor. Ele mentia enquanto existia para sentir-se vivo.

Mentes de ácido. A mente do Estranho andava flutuando pelo corredor

do hospital. Pegou o elevador. Enquanto era ofensivo, estava na defen-

siva. Talvez as mentes de ácido mostrassem que Ele podia diluir e nada

construir. Tinha medo de amar o oposto, o estranho, o fétido, o preto,

a merda, o mal. Mente que mentia. Uma anestesia agora.

Estava sozinho. Um teto branco o acompanhava enquanto desliza-

va pelas lâmpadas. Sua mente desmentia como um neurotransmis-

sor. Atravessou andares, mobílias, estava em transe. Queria sentir,

estava mentindo mais uma vez em dizer que ia, apenas ia...

Viu seu corpo sendo rasgado, cortado, despedaçado. Pensou emoferecer para A Jornalista uma parte dele. Mentes de ácido. Envia-

ria por Sedex 10 o seu coração com um CD do Johnny Cash.

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O sangue do Estranho pintava o branco do hospital e desenhava frio

um nome: A Jornalista. Mentes de ácido. Mente que mentia e de-

pois desmentia o que sentia e o que copiosamente e sinceramente

insistia: A Jornalista. Delirando gritava:

[O Estranho] – As visitas podem existir, mas tragam as xícaras. Mi-

nhas partes estão etiquetadas, estão na liquidação do laboratório.

Última chamada! Meu coração já está na caixinha amarela do cor-

reio, está sendo enviado com destinatário impróprio. A cirurgia foi

um sucesso! As partes foram bem cortadas e espalhadas. Chamema enfermeira! Rápido! Tem moscas aqui.

Ele ficou muitos dias no hospital.

01 de abril de um ano qualquer

O Estranho saiu do hospital e regressou ao seu apartamento escu-

tando Ray LaMontagne. Estava entregue à nova experiência de uma

velha nova vida. Ele pintou a parede com o sangue vivo dos pulsos

não cicatrizados ainda e escreveu sua poesia esquecida. Caminhou

entre a sala e o quarto. Procurava cigarros. Não achou. Após um

golpe do destino a mente estava vazia, não conseguia pensar, sentir.

Ele só queria cigarros e um sofá: o seu sofá.

8 de abril de um ano qualquer

Parecia que o Estranho estava satisfeito. Há dias não conseguia pensar

graças aos anestésicos. As mãos queriam escrever, mas Ele não conse-

guia devido aos ferimentos nos pulsos que doíam ainda. A vida dele

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estava em total poder de absorção do vazio. Ele agradeceu a velha

nova vida vazia e a Sartre, lia ‘Entre quatro Paredes’. Uma xícara vazia

de café enevoando o ar com seu cheiro de nada infernal.

09 de abril de um ano qualquer

O Estranho procurou um elo que o fizesse entender, revirava as

caixas velhas procurando os livros de Freud. Ele estava na tentativafrustrada, a quilômetros por hora. Estava em velocidade máxima

para viver, para acordar, para despertar. Estava fazendo errado. O

Estranho parecia estar na bateria com pratos quebrados, no solo

triste, na base desajustada, nos efeitos raros, na afinação grave, no

último show. Estava na decadência de dias melhores, na perspecti-

va de uma sonoridade nova das palavras da Jornalista, na esperan-

ça de ter esperança, no sonho de um despertador barato, no últimogolpe de um guerreiro. Ele procurava um elo, um elo de condição,

um dizer de dizeres, uma busca incessante de quereres. Assistiu

 Eternal Sunshine of The Spotless Mind. Depois do filme, O Estranho

ficou no quarto gravando sua desilusão, editando as piores partes,

cantando a vida em faixas repetidas. Ele seguia a trilha que tocava

a trilha que o levava a outras trilhas. O Estranho fez do mês de abril

o refrão de um dia, de uns dias, de quantos dias, de imensos dias,

de intensos e escuros dias.

10 de abril de um ano qualquer

O Estranho lembrou que havia gostado dos óculos da Jornalista

e do contorno dos olhos verdes dela. Gostava dos mistérios sobre

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Ela e levava tudo a sério. Gostava das meias verdades. No sofá, O

Estranho tentava decifrar a própria escrita, frases rascunhadas. Ela

não saía do pensamento dele e dos sonhos. Ele escutava a melodia

que havia criado. Queria gravar o tédio. A Jornalista entrava em

seus pensamentos como clandestina em terra virgem. Ele lutava

contra a razão do amor e se entregava ao destino traçado. Não ti-

nha mais esperanças. Ele não conseguia escrever o livro que havia

sido encomendado por uma grande editora. A vida de escritor dele

estava sucumbindo. Foda-se a literatura. Fodam-se os filósofos, os

psicólogos, os antropólogos, os sociólogos, fodam-se todos.

11 de abril de um ano qualquer

O Estranho estava em apuros: o aluguel estava vencido. Mas Ele

esqueceu novamente e nem queria saber de contas. Abriu a gavetae novamente pegou todos os remédios que ainda restavam e to-

mou. Para ajudar na digestão dos comprimidos, um gole de uísque

barato. O Estranho estava delirando. Ele via onças voando, cavalos

jogando xadrez, torres pulando. Ele via a Rainha Elizabeth na sala

fumando cigarro e o Rei tomando do uísque barato. Na janela Ele

via bispos indo pescar. E tudo girava e virava. Cosmo de gosma.

Um menino andava pelo quarto com uma vassoura. O delírio do

Estranho saiu pela janela e foi para o pasto do boi. O boi ia para a

mesa de um restaurante, mas o boi não estava no bife, e sim sendo

enforcado para servir uma velha morena. Sônia Braga de cuecas. E

tudo virava e girava. Só havia um homem que matava o boi com

talheres prateados. O menino no quarto estava confuso com os rifes

estridentes que a vassoura fazia. A velha morena convidava o boipara um chá. Eles faziam sexo na xícara. Tudo cheirava a incenso e

hippie da Redenção. Vomitou. Desmaiou na poça.

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13 de abril de um ano qualquer

Dois dias inconsciente. O Estranho acordou. Questionou-se para

descobrir por que o corpo estava tão cansado. A cabeça estava es-

capando. Quantas fantasias Ele presenciou. Estava espantado! His-

tórias loucas de gente torta e gente rouca. Ele procurava os pensa-

mentos que fugiram que foram para a rua, para o edifício. Alguns

dos pensamentos ficaram presos no asfalto à procura de uma flor:

A Jornalista. Ele foi para o quarto, para a cama, para o travesseiro

e reclamava que estava cansado de perder a cabeça e queria res-postas. Ele sentia que a magia ia acabar e achou uma leveza no ar.

Queria sair, mas não tinha aonde ir. Ele queria partir, mas não tinha

aonde chegar. Eram dúvidas e incertezas. Eram as cartas sobre a

mesa. Era a jogada final para O Estranho. Se fosse ganhar ou perder

era A Jornalista quem ia dizer. O Estranho resolveu abrir as jane-

las, despertar seus sentidos. Levantou, caminhou, abriu os olhos

adormecidos. Chegou a uma conclusão: nunca conseguiria escreverlivros se não desfrutasse dos dissabores da vida, de experiências

vividas e de amores sonhados. Ele pensou na Jornalista. Tentou se

masturbar. Não conseguiu.

15 de abril de um ano qualquer

O Estranho se encheu de coragem, entrou na cozinha e olhou os

números que estavam na geladeira. Discou.

[A Jornalista] – Alô?

[O Estranho] – O fim começa no começo ou o fim está no meio da

dúvida? O fim penetra nas condições ou dá um bote na rotina?

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de uma máscara a outra

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[A Jornalista] – Você de novo?

[O Estranho] – Quero meu mundo de volta, não te dou esse direi-

to de mexer na minha cabeça como quem mexe em suas gavetas.

Quero de volta meu ar, meu céu, meu sol. Quero minha harmonia

de viver, meu jeito louco ou certo de ser.

[A Jornalista] – Mas o que eu te fiz?

[O Estranho] – Vou te colocar em seu lugar. Vou te tirar do meualtar. Quero você fora de mim. No teu mundo nada sou. É tanta

ilusão sem solução. Meu medo sem razão. Estará longe de eternas

paixões.

O Estranho desligou o telefone. Tomou um ácido e sentou no sofá.

Formiguinhas.

16 de abril de um ano qualquer

Passado da meia noite, o Estranho começa a viajar  devido ao áci-

do escutando Mogwai. Viu que tinha poderes na astronomia. Eraum corpo celeste invisível. Ele explorou o sideral, satélite, algumas

fases com um óculo. Inventou um novo telescópio refrator e con-

seguiu observar passos no corredor, a Nebulosa de Órion e Andrô-

meda, e ainda outras variáveis e já conhecidas estrelas da ciência.

Ele tinha muitas horas de viagem ainda. Viu que tinha poderes na

astrofísica também – o princípio fundamental da análise espectral.

Ele dependia da equivalência e da absorção dos cigarros. O Estra-

nho criou um espectroscópio e constatou como as estrelas eram

feitas. Lembrou que numa aula de história a professora falou que os

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gregos queriam imitar o céu, por isso achavam que o movimento no

espaço girava em torno de uma Terra imóvel. O Estranho pensou na

morte dos segundos. Constatou que as antigas civilizações tinham

ideias interessantes sobre o universo. Queria introduzir um sistema

de constelações de origem não conhecida. Embora sozinho nas no-

ções desse tempo, conseguiu estabelecer as fundamentações duma

ciência em progressão. Ele foi surpreendentemente exato para o

propósito que se destinou: As Efemérides. O Estranho dedicou-se

naquela madrugada às estrelas, ao reino das gravitações das estre-

las binárias. Queria ser uma estrela e queria que A Jornalista fosseoutra. Mas lembrou que existem três ou quatro estrelas que giram

em torno de uma. Ele não queria girar para a estrela da Jornalista.

Havia incrementos progressivos em sua órbita complexa. Mas Ele

sabia que não possuía brilho próprio. O Estranho também sabia

que algumas estrelas eram aparições temporárias e explodiam em

luminosidade, apagando-se em extinção. Ele ainda tinha um plano

geométrico do sistema que acabava de criar. Não queria se afastar da Jornalista e não queria que Ela se extinguisse. Imaginou que os dois

poderiam ser partículas de matéria. Uma partícula atraía a outra com

uma força diretamente proporcional a sua massa e inversamente em

versos à distância. Com a ausência de provas suficientes, O Estranho

ficou num estado de equilíbrio dinâmico mapeando a existência de um

corpo massivo orbitando em seu universo: era A Jornalista. Algo tocou

a mão do Estranho nessa hora. Ele olhou e era A Formiga subindo

pelo seu dedo indicador. Ele falou para A Formiga:

[O Estranho] – A distância entre dois corpos celestes pode ser me-

dida pelas mudanças aparentes nas posições quando vistas de dife-

rentes pontos de observação. Então, a medida da distância entre Eu

e A Jornalista só pode ser subentendida pelo ângulo que queremosver. Mas este ângulo é infinitesimal. Por isso poucas estrelas teriam

boas dimensões.

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de uma máscara a outra

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[A Formiga] – Sinto o fogo de uma vela apagar. Vou enquanto há

tempo. Hoje tem rock e casamento. Olha minha pulseira de boli-

nhas retrô!

A Formiga desceu da mão do Estranho e foi para a festa.

Vestiu branco. Estava linda e bêbada.

21 de abril de um ano qualquer

O Estranho foi acordado pelo despertador barato que insistia em

tocar. Ele ficou cinco dias na cama e decidiu levantar. Verificou que

na porta havia correspondências. Contas de luz, água, telefone. No

jornal, leu a seguinte manchete: ‘MORTE DE UMA JORNALISTA’.

Ficou apavorado. Não sabia o que fazer. Correu e pegou um livro deDostoievski. O chão estava pronto para um xadrez. Não queria ler

o jornal. Queria voltar ao escritor russo. Fazia analogias de um jo-

gador derrotado posto a zelar por um amor impossível. Confundiu.

Era Goethe que Ele queria. Saiu correndo do apartamento gritando

por socorro. Na esquina Ele bateu em uma pessoa, O Estranho caiu

e ouviu uma voz que dizia:

[A Jornalista] – Bem, meu caro, por que fica plantado aí esbuga-

lhando os olhos? Não sabes cumprimentar e dizer bom dia? É de-

masiado orgulhoso para isso, talvez? Ou não me reconhece quando

passo na sua frente?

Era um diálogo de Dostoievski que Ela falava e tudo parecia ser surreal.

[O Estranho] – Não me adianta querer sofrer porque não existo

mais. Meu túmulo vai relutar em abrigar flores.

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A Jornalista ajudou O Estranho a se levantar. Ela o convidou para

um café. A Jornalista queria saber por que O Estranho nunca havia

telefonado. Sentaram no Café da Oca, na João Telles.

[A Jornalista] – Você perdeu o número do meu telefone? Nunca me ligou.

[O Estranho] – Estive este tempo atribulado em meio a tragédias

na família.

[A Jornalista] – Sinto muito, o que houve com sua família?

[O Estranho] – Esses tempos, minha irmãzinha saiu de casa di-

zendo que ia a um casamento e depois numa festa de rock. Ela

estava linda com uma pulseira de bolinhas, dessas retrô. Mas

ela nunca mais voltou. Ela era amante compulsiva. Abandonou

a literatura e adquiriu uma vida de boemia desregrada. Ainda

em vida, adquiriu fama de louca, de extremos, uma bipolarida-de desconhecida, uma depressão escancarada e nervosa. Ela era

simpática à ideia devoradora e combateu o egoísmo, a falsidade

e os vestidos de linhas retas.

[A Jornalista] – Que pena! Sua irmã deveria ser uma pessoa mara-

vilhosa.

[O Estranho] – Ela era maravilhosa. Espero que volte. Ninguém

sabe dela.

[A Jornalista] – Tenho um segredo pra te contar que descobri. A

alma não pesa 21 gramas e sim 23 gramas. 21 gramas no vento e

23 gramas em corpo fechado. E como a vida passa, não é mesmo?

Queria te fazer sentir vivo e amigo. Estou atrás de um copo para

mais um café. Mas eu queria dizer que nada faz sentido, muito

menos isso.

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[O Estranho] – Isso o quê?

A Jornalista foi direto ao ponto.

[A Jornalista] – Você não me seduziu na festa para eu não te rejeitar.

[O Estranho] – Como?

[A Jornalista] – Eu vejo como você me olha. Eu sou gremista, tenho

uma cadelinha, bicicleta e uma mente que sente também. Adoro o

mês de abril. Mas eu fico na minha casa e recolho a minha roupa.

Volto do trabalho e espero você me ligar. Chego a ficar com medo

de andar nas ruas que não me levam mais a nada. Mas hoje foi

inacreditável te encontrar. Fiquei feliz, embora uma colega minha

de profissão tenha morrido em um acidente de carro.

[O Estranho] – Sinto muito pela sua perda.

[A Jornalista] – Foi ótimo te reencontrar, mas agora tenho que ir.

Estou atrasada para ir à redação.

[O Estranho] – Espera. Redação?

[A Jornalista] – Sim, eu sou repórter de um jornal aqui de Porto Alegre.

A Jornalista partiu sem maiores explicações. O Estranho levou o

copo de café que Ela havia tomado.

23 de abril de um ano qualquer

O Estranho não conseguia pensar nem sentia nada depois daquele

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dia tumultuado com A Jornalista. Ele só queria descansar e tomar

um vinho do Porto no copo de café da Jornalista. Achava que esta-

va bem. Saiu em busca do vinho. O Estranho não sabia que antes

de voltar pro apartamento A Formiga tinha colocado batatas para

assar. Quando Ele regressou com três garrafas, verificou que a porta

havia sido arrombada. Ele penetrou no próprio apartamento como

um espião. Analisou tudo minuciosamente. Procurou alguma prova

que incriminasse alguém ou a mente que mentia. Ele bebeu todo

o vinho. O Estranho caminhou cambaleante até o quarto, tirou a

roupa e caminhou nu até o banheiro. A água estava gelada. O Es-tranho levou um choque. Morreu? Não. Ele estava tão bêbado que

não sentiu nada. Ele voltou para o quarto pingando pela casa intei-

ra e caiu no colchão furado. No seu delírio embriagado podia ver

flores, cores, fantasias chatas. O Estranho relutou em vestir uma

camiseta dos Stones. Ele sentiu algo na narina. Era o cheiro das

batatas. Elas tinham sido assadas e colocadas em uma panela

velha. O fogão estava sujo ainda. O Estranho olhou as batatassedutoramente e esmagou todas. Depois, misturou algo que ha-

via em outra panela. Longe de um raciocínio lógico, Ele amou

aquelas batatas. O Estranho estava entregue e apodrecido diante

da cena pobre à meia-luz. Ele foi deitar de cansaço, alimentar

horas tranquilas. Uma das antenas da Formiga espionou para

fora de sua narina esquerda. Limpou um resto de batata nos pêlos

internos do Nariz do Estranho. Ele espirrou.

24 de abril de um ano qualquer

O Estranho acordou e queria comer mais do resto das batatas queestavam na panela velha. Não queria mais ler jornais. Sentia que

as letras não lhe faziam bem. Depois que comeu as batatas, abriu

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de uma máscara a outra

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a geladeira atrás de uma cerveja. Não achou o abridor de garrafas.

Quando estava quase desistindo, avistou o abridor dentro do fogão.

Ele queria beber logo a cerveja. Abriu a garrafa e atirou-se no sofá.

Decidiu que aquele seria o último dia de cervejas. Elas anestesia-

vam seus ombros e músculos. A garrafa caiu no chão. O líquido

que ainda restava respingou entre seus dedos dos pés desnudos. Ele

queria arriscar tudo e queria comer mais uma batata. Saiu desorien-

tado pelas ruas, parou em frente a um portão e foi logo assustado

por um cão. Ficou ali olhando para a cara do animal feroz sem nada

entender.

[O Estranho] – Minha vida de cão, isso sim eu entendo.

Na volta pro apartamento pensou na Jornalista. Os pés sujos feden-

do. Morrinha de cerveja.

10 de maio de um ano qualquer

Filmes desapareceram da casa do Estranho. Ele queria ficar lon-

ge de tudo que pudesse se transformar na imagem da Jornalista.

Ele não merecia solidão e manhãs transfiguradas. Seus sentimentos

continuavam solitários. Pensou em querer o abismo de volta. Havia

festas em Porto Alegre. Muitas. Mas ele geralmente frequentava o

‘Entrebar’ da Cidade Baixa. Voltava sempre bêbado para o aparta-

mento. Com o olhar parado, a pupila dilatada, abriu uma caixa de

Prozac. Lágrimas caíam do rosto dele. Pegou um pedaço de espelho

quebrado e gritou diante de si mesmo:

[O Estranho] – Nunca mais quero enxergar. Viver? Sentir? Eu passei

por tudo e cadê o meu fim? É assim que tudo deve ser? Quero con-

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tinuar com meus fones de ouvido e música boa. Quero as minhas

viagens e os meus remédios sem culpa.

Havia uma fotografia velha sobre a mesa da sala, ao lado da car-

teira de Marlboro. Tocava ‘The Doors’ quando o Estranho pegou a

foto. People are strange, when you’re strange. Ele chorava e beijava

o papel sujo e amarelado. Faces look ugly when you’re alone. Era A

 Jornalista. Women seem wicked, when you’re unwanted. Ele pediu

desculpas pela fraqueza. Ele pedia desculpas pelo amor renuncia-

do. Streets are uneven, when you’re down. Era a morte selada. Pelajanela uma chuva fina começou a escorrer pelo vidro úmido. When

 you’re strange, faces come out of the rain. When you’re strange, no

one remembers your name. When you’re strange, when you’re stran-

 ge, when you’re strange ...

17 de maio de um ano qualquer

O cheiro do café animava o Estranho enquanto Ele fumava. Es-

cutava ‘Stereo Phonics’. Ele queria tentar mais uma vez fazer lite-

ratura surrealista, mas quem responderia pelos erros? Os editores

já haviam abandonado Ele pelas irresponsabilidades e prazos não

cumpridos. Ele queria um castelo. Quando estava na metade da

xícara de café, o som do telefone o assustou. Ficou olhando para

o aparelho enquanto tocava. De repente, a xícara caiu da mão. Ele

acendeu um cigarro e atendeu, mas ficou mudo: era Ela.

[A Jornalista] – Sem você não tem graça, sem tuas frases é uma

desgraça. Com a tua companhia é esperança, com teus olhares é fu-turo amor. Estarei aqui ou onde for. Se alguém algum dia entender

tuas angústias, você me avisa? Quando teu caminho estiver aberto,

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de uma máscara a outra

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eu quero chegar. Se as minhas palavras te incomodam, desligue. Se

eu quiser te conhecer, você deixa? Sou completamente paranoica

e estou com fome. Posso ir à tua casa comer um sanduíche? Acho

que estou parecendo uma completa idiota ou isto pode parecer um

ataque surpresa para você. Mas não é. E aí? Vai rolar o sanduíche?

[O Estranho] – Você pode vir.

[A Jornalista] – Em duas horas estarei aí. Até logo!

[O Estranho] – Espera. Como sabe o meu telefone e onde eu moro?

Você nem perguntou o endereço.

[A Jornalista] – Eu sou jornalista, esqueceu? Adoro investigação

também. Não foi difícil te achar, afinal, é um dos melhores escrito-

res gaúchos da nova geração. Tchau.

A Jornalista desligou. O Estranho estava em choque. O que Ele de-

veria fazer naquele momento? O apartamento estava horrível. Seu

estado, deplorável. Ele não queria visitas. Há anos ninguém entrava

lá. Apenas A Formiga foi sua companhia durante algum tempo. E

mesmo a Formiga tinha a cara amarrotada. Como se tivesse sido

pisada por um sapatênis de publicitário. Mas era Ela – A Jornalista.

Ela estava chegando. Em duas horas Ela estaria ali. Ela estaria ali.

O Estranho resolveu sentar no sofá e esperar. O interfone tocou: era

Ela. Ela estava ali. Ele abriu a porta e Ela entrou como um furacão

na casa. Virou-se para Ele, visivelmente nervosa, e disse:

[A Jornalista] – Eu não sou perfeita no português e não sei falar in-

glês. Mas tiro fotografias em preto e branco muito bem. Não tenhocarro e a minha bicicleta está estragada. Mogwai me faz chorar toda

vez que escuto (Ele também, mas preferia Radiohead. A Formiga,

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não. A Formiga só dança porque não sabe cantar). Sempre digo a

verdade. Eu gostei dos teus erros. Hoje acordei e pensei que queria

te ver. Meus olhos viram um caminho diferente. Pela manhã fiquei

absorvida pela imaginação catastrófica de Shakespeare, mas a cafe-

ína me salvou. Em uma hora consegui teu endereço e teu telefone

com uns amigos meus de uma editora. Não sei o que dizer mais.

Estou falando sem parar aqui.

[O Estranho] – Você ainda quer o sanduíche?

[A Jornalista] – Como? Sanduíche?

[O Estranho] – Sim, você me disse no telefone que estava com fome

e queria um sanduíche.

[A Jornalista] – Eu disse? Não lembro. Mas, obrigada, não quero.

[O Estranho] – Você quer alguma coisa?

[A Jornalista] – Sim, posso ficar na tua casa hoje?

[O Estranho] – Pode.

Um silêncio se construiu naquele instante. A Jornalista desabouno sofá. Ela estava lá. O Estranho sentou ao lado dela. Não sabia o

que fazer. Ela parecia intocável. Ele acendeu um cigarro e Ela fez o

mesmo. Os dois fumavam e se olhavam. Estavam se descobrindo.

Nem mais uma palavra saiu da boca deles naquela noite. O silêncio

já era melodia suficiente. Os dois foram para o quarto. Deitaram na

cama e ficaram um de frente para o outro. Seus olhos estavam um

no outro. Lágrimas escorriam dos olhos da Jornalista e O Estranho

tentava traduzir o que era o amor (nessa hora Mogwai –  I Know

 you are, but what am I?   toca no quarto). Eles ficaram exatamente

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3 horas um olhando para o outro sem dizer uma única palavra e

a música repetia, e cada segundo parecia novo. Nada mais preci-

sava ser dito. Eles enfim haviam se encontrado. Eles estavam se

amando naqueles olhares. Adormeceram abraçados e desejaram

nunca mais acordar.

Ela estava lá.

18 de maio de um ano qualquer

Nesse dia O Estranho e A Jornalista eram quem eles deixaram de

ser ontem.

[A Jornalista] – Como as correntes inesperadas desse chão sujo

te revelam! A dança dos trigais já acabou, como dizia Van Gogh.O vento da janela leva o sopro da nossa sorte. As cinzas voam e

chegam até as nuvens rosa desse amanhecer do velho levantar. Seja

bem-vindo. Bom dia!

O Estranho não falava. Apenas a olhava. A Jornalista não usava es-

pelho para se pentear e nem óculos para disfarçar. Era feminista no

palco da vida. Não era boazinha nem má. Era adjetivo veloz e puro.

[A Jornalista] – Somos o segundo da certeza.

A Jornalista foi para o banheiro cortar as unhas. O Estranho estava

mal sintonizado. Ele estava com interferências e não sabia o que

eram. Queria achar nexo naquilo que estava acontecendo, mas tudo

voltava ao círculo de personagens que Ele havia criado. Ele não

conseguia sair da cama. A Jornalista saiu do banheiro.

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[A Jornalista] – Meus cigarros estão sempre no fim. As minhas in-

terrogações serão eternas. Eu sou carente, falida e faminta.

Ela não se importava com o silêncio dele. Continuava:

[A Jornalista] – Uma vez me disseram que os escritores não exis-

tem. Que muitas histórias e poesias são frutos da própria dor.

Então a poesia nada mais seria do que um desabafo do próprio

poeta? Eles juntam um emaranhado de letras e rimas e despejam

no papel seus delírios? As minhas interrogações serão eternas.Eu avisei.

Ela deu um sorriso para o Estranho e sentou na cama ao lado dele.

Ele continuava mudo. Mas a cara da Jornalista era de confissão, e

mais uma vez Ela falou:

[A Jornalista] – Agora no banheiro eu contemplei o movimento daágua que descia da torneira. Senti a água tocar minhas mãos e meu

rosto. Senti saudade de um oxigênio puro e gelado da natureza.

 Jamais vou esquecer a noite de ontem.

O Estranho deu meio sorriso. Abriu a gaveta e tomou alguns remé-

dios. A Jornalista observou.

[A Jornalista] – Tenho que ir. Estou atrasada.

Ela beijou O Estranho na testa, olhou fixamente em seus olhos e

disparou:

[A Jornalista] – Você quer namorar comigo?

O Estranho balançou a cabeça fazendo um gesto positivo. Ela

foi embora. O dia estava começando. As pessoas corriam. Todo

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mundo estava atrasado. O Estranho queria dormir algumas ho-

ras a mais enquanto pensava que A Jornalista estava numa vida

burguesa, cercada de diamantes e amigos fúteis. Reconhecia que

Ela o deixava confuso e inseguro. Mas Ele a desejava. Queria

que Ela ficasse. Mas nada parecia com o que deveria ser. Um

desejo violento atropelou O Estranho. Ele queria antidepressivo.

Ele abria e fechava a porta do quarto sem parar. Olhava para

o corredor imundo. Saiu da cama e caiu no sofá. Refletia as

variações da própria história que não conseguia escrever sobre

eles. O Estranho estava louco e paranoico. Os tapetes eram comosentimentos. A estante era o desespero. A TV era a fuga. Tenta-

va pensar na Jornalista e começar um livro, mas os fantasmas

queriam festa. O Estranho não tinha mais forças. Admitia que a

filosofia segurava a cabeça. Lembrou que muitas vezes Rousseau

dizia que a natureza valia mais que seus semelhantes. O Estra-

nho queria confessar os seus pecados. Ele não conseguia falar.

Tomou mais remédios e dormiu.

19 de maio de um ano qualquer

O Estranho não atendia telefonemas e nem o interfone. Ele sabia

que era A Jornalista.

20 de maio de um ano qualquer

O Estranho não atendia telefonemas e nem o interfone. Ele sabiaque era a Jornalista. A Formiga também.

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21 de maio de um ano qualquer

O Estranho não atendia telefonemas e nem o interfone. Ele sabia

que era a Jornalista. A Formiga atendeu. Desligaram do outro lado.

22 de maio de um ano qualquer

O Estranho não atendia telefonemas e nem o interfone. Ele sabiaque era a Jornalista. A Formiga abriu a porta do prédio pelo interfo-

ne. Bateram na porta. A Formiga não abriu. Ela não tinha a chave.

25 de maio de um ano qualquer

O Estranho não atendia telefonemas e nem o interfone. Ele sabia

que era a Jornalista. A Formiga tinha saído para tomar cerveja. Era

um dia quente de maio.

27 de maio de um ano qualquer

O Estranho não atendia telefonemas e nem o interfone. Ele sabia

que era a Jornalista. A Formiga estava de ressaca.

30 de maio de um ano qualquer

O Estranho não atendia telefonemas e nem o interfone. Ele sabia que

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era a Jornalista. A Formiga também. Mas não se importava mais.

10 de junho de um ano qualquer

O telefone não tocava mais no apartamento do Estranho. Ele se

sentia inconveniente e mórbido. Às vezes, carente. As coisas nunca

mudavam e as pernas nunca andavam. Ele estava sem música. Es-

tava em choque por estar além deste mundo. Ele queria A Jornalistade volta. Ele queria estar ao lado dela. Ele queria chorar e não con-

seguia. Queria morrer e se enterrar. Queria tudo outra vez. Mas Ele

estava escondido dele mesmo e também da Jornalista.

15 de junho de um ano qualquer

Um envelope é atirado embaixo da porta do Estranho. Ele escutou

o barulho, mas não levantou. Abriu os olhos e a gaveta para pegar

mais remédios.

16 de junho de um ano qualquer

Na madrugada fria, Ele queria pegar o envelope. Sabia que era da

 Jornalista. Foi até ele e voltou para a cama. Abriu e leu em pensa-

mento. Estava escrito.

‘ Depois de toda essa esperança sem dança. Eu acredito nos sonhos.

 Eu te amo calada, surda, cega. Eu não te vejo mais, não te ouço

mais. Eu queria o infinito dos dias. Eu não quero ser errada, sem

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 graça. Eu quero ser sua amante. Eu não me importo com falhas.

Somos passageiros aqui. Volte pra mim. ’

O Estranho não sentiu nada. Estava anestesiado.

21 de junho de um ano qualquer

O Estranho não esperou nada mais do que a angústia de um fim

melancólico e solitário. Ele pensou em como acabou assim, como

um segundo tempo sem trégua nem intervalo. Foi o fim do jogo

para O Estranho e A Jornalista? Ela teve vitória sobre a paixão. Ela

ganhou dele. A Jornalista conquistou a liberdade: estava livre do

Estranho. Ela havia tirado do Estranho a esperança de amar outra

vez e levou todas as lágrimas. Havia acabado a história que O

Estranho tinha criado? Criado ou vivido? Nada mais fazia sentidonaquela mesa onde O Estranho tomava um café gelado. Ele pensava

em curvas de uma estrada, na dor que sentia, queria voltar a escre-

ver nas paredes velhas as lembranças toscas. Na frente do aparta-

mento, na Rua Felipe de Oliveira, uma música saía. Ele gostava de

ser doce, mas sentia-se velho. O Estranho era amante das letras e

também da Jornalista.

Ele respondeu aquele bilhete sem nunca sair das linhas de um ca-

derno riscado. Na última folha, O Estranho respondeu a si mesmo:

‘Tempo que não volta. Instante em que congela o lance. Loucura presen-

te e quente que ultrapassa minha dor, meu amor. Convertido em notas

de rock, solto pelo ar, eu não te vejo chegar, mas sigo em frente, tristezaausente, felizmente, eu sem você. Novo mundo, novos olhos. Atualize

agora. Siga em frente. O que eu quero te dizer é: siga em frente. ’

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O Estranho tinha sabotado os sentimentos dele. Entre lembranças,

recortes e música, entre poesias e festas esquecidas, era tudo Ele e

Ela. No coração do Estranho, era como se fosse o fim de tudo e o

começo do nada.

23 de junho de um ano qualquer

Após dias sem notícias da Jornalista, o Estranho foi até a porta e pe-gou o jornal. Lá na capa estava uma matéria da Jornalista. Ele leu:

‘ A sociedade vive hoje uma desagregação cultural. Indivíduos capa-

 zes e incapazes de se comunicar transformam crises políticas, roubos,

assassinatos e tráfico em mais um episódio do telejornalismo. O pe-

cado da falta de reflexão, da falta de comunicação e da mobilização

das massas ultrapassa barreiras históricas. A velocidade da informa-ção aliada à grande tecnologia da informática capacita o ser humano

a um individualismo total. Recebemos diariamente comunicados de

 guerras, destruição global, falta de água. E o que fazemos frente ao

desabamento de uma sociedade esquecida por todos? Muitos cruzam

os braços, outros viram a folha do jornal, enquanto a maioria vive em

um caos instalado e monitorado. Aqui, no Brasil, quem nos espiona,

nos rouba. Pecamos em não nos manifestar; nossa expressão cultural

 perdeu a vaga para a cultura imposta e importada de outros países.

 Antes, podíamos dizer que os sete pecados capitais eram: a

 gula, a soberba, a vaidade, a luxúria, a avareza, a pregui-

ça e a ira. Mas, no século XXI, podemos afirmar que estes pe-

cados têm nome e marca: fast food, Planalto Central, telenove-

las, consumismo, especulação financeira, indiferença e o poder. Até os pecados se modernizaram frente aos veículos de comunicação. ’

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O Estranho rasgou o jornal quando acabou de ler. Ele não suporta-

va a ideia de A Jornalista ter ideias e Ele não escrever nada. Ele a

queria só para Ele. Estava frustrado e se trancou no quarto mesmo

morando sozinho. Ele não queria a vista do corredor, da sala, do

banheiro. Ele buscava a escuridão mesmo sendo manhã.

26 de junho de um ano qualquer

As lágrimas caíam dos olhos do Estranho mesmo estando fecha-

dos. Ele teve sonhos mortos. Sua manhã estava torta. Ele estava

cambaleante. Ele viu no sonho um animal ferido e vermelho no

asfalto. O Estranho estava no sofá, trocava o canal da televisão, mas

continuava triste, escutava Damien Rice e Ray LaMontagne juntos

cantando To love Somebody e chorava. Nem o jogo do Inter o ani-

mava. Este era um domingo que passou como muitos. Agora erammuitos domingos até Ele chegar até A Jornalista. Ele pensou que,

em mais alguns anos, Ela ia desaparecer da sua mente. Ele amava

A Jornalista calado e repetia a música.

29 de junho de um ano qualquer

O Estranho andava pela casa como um zumbi. Perambulava atrás

de cigarros e calmantes. Eram horas, dias, noites e manhãs tristes.

Ele confessava na frente do espelho sua existência de derrotas. O

Estranho dizia que queria experimentar o sal do mar com A Jor-

nalista, cortar o cabelo dela, comprar um bombom, caminhar napraia, roubar um beijo, cantar uma música no chuveiro com Ela.

Ele queria A Jornalista numa dança na chuva. Queria brincar de es-

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de uma máscara a outra

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conder segredos. Ele queria comer azeitonas com Ela, tomar vinho

com Ela, jogar pôquer com Ela. Ele queria Ela.

07 de agosto de um ano qualquer

O Estranho tinha esquecido de viver no dia de hoje. A Jornalista

fazia Ele reviver um círculo de estrelas. Havia um quadro na sala.

Nesse quadro, Ele imaginava uma Lua e A Jornalista nua. Ele já ti-nha se esquecido das poesias que o faziam chorar. Por Ela, Ele que-

ria morrer. Morrer nesse dia, diante do quadro. Ele não conseguia

traduzir e nem respirar. Ele queria oxigênio, emoções, confusões,

sensações. Ele ainda imaginava A Jornalista, mesmo de longe. Ele

observava Ela no quadro pintado à mão. Era tinta preta e vermelha.

O Estranho ficava todos os dias na janela atualizando as lembran-

ças. Não havia nada de fotos, escritos ou roupas dela pelo chão. Eleeditava na mente as recordações, legendava a sua dor, publicava

o seu perdão e carregava o rosto da Jornalista. Ele imprimia os

seus sonhos. Ele andava dopado há dias pelos remédios que sempre

permaneciam na gaveta. As estrelas não giravam mais. Não havia

ninguém na rua. As folhas amarelas já não existiam nas calçadas.

A saudade era insuportável. Desesperadora. Ele queria uma noite

com A Jornalista. Ele não queria mais viver sozinho. Estava tão

fácil chorar com as estrelas que não giravam. Ele conseguia sentir

o medo. Medo de não viver e amar. Amar até o fim dos dias. O

Estranho queria caminhar de mãos dadas com A Jornalista na pra-

ça, brincar com um cachorro, dar risadas, voltar para casa e fazer

amor. Ele queria ver as estrelas renascerem. Era tão fácil e doloroso

lembrar da Jornalista.

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09 de agosto de um ano qualquer

O Estranho acordou de um pesadelo. Tinha dormido por dois dias.

Ele estava assustado e gritava:

[O Estranho] – Pra que um mundo infeliz de nós? Pra onde vai me

levar essa dor sem nó? Só aterrizo no pó de um velho amor e, no

rádio, a canção de nós. O som leva para onde esse ardor, esse fugor

de um lindo amor? Nossa história sem final feliz. Nossa história

sem ser cantada por ninguém... a não ser por mim.

Ele estava exausto, suando muito. Se arrastou até a cozinha e pe-

gou uma vodca. Voltou à cama para beber. Aquele dia o Estranho

passou bebendo.

11 de agosto de um ano qualquer

Enquanto as nuvens se dissipavam na manhã fria, o Estranho lia

filósofos freneticamente à procura da cura do seu desespero. O mal

chegou sem bater e invadiu o coração dele. Era apenas solidão e

dor. Tudo se movia lentamente dentro do apartamento do Estranho.

Tudo havia sido destruído. Já não era mais natural, artificial, cere-

bral. Tudo para Ele era consumo, persuasivo, intuitivo, ansiolítico.

Ele nunca mais seria o mesmo. Ele nunca mais seria como antes.

Maio, junho, julho, agosto. Morbidez sem vida. Dias gelados e mor-

tos. Ele foi até a janela e pensou que havia coisas boas e ruins.

Fechou a janela. O Estranho não queria nada. Ele foi para o quarto

e lembrou do mar com ondas curtas. Despejou no pensamento todoseu pesar. Ele renegava as palavras da Jornalista. Ela era apenas a

morada para Ele. Tudo se juntava no fundo do mar e tudo se anun-

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ciava como sonho polar. Era uma união falsa. O coração do Estra-

nho ardia como o coração dos aflitos. Era tudo sufocado como as

mentiras dos deuses. Era revolta sem religião. Ele plagiava os olhos

dos desertores e via apenas o horizonte em chamas. Acima e abai-

xo, as estrelas eram o caminho para o segredo. Acima e abaixo, as

pedras se deslocavam e feriam os homens no mar. O Estranho não

falava o nome da tragédia. Muitos caminhos se formavam diante de

seus olhos que miravam o teto. Agora, Ele só via uma união falsa

entre A Jornalista, Ele e o mar. Ele mentia para Ele mesmo.

12 de agosto de um ano qualquer

Era noite. O Estranho pegou o violão que estava empoeirado e fez

uma música. Ela falava de sonhos e sombras. Era assim:

‘Sua vez de mostrar quem você realmente é 

 Através da escuridão

 Através da meia-luz

 Mostre quem você realmente é 

 Esses monstros sombrios, esse teu desvio

 Mostre quem realmente é 

 Através da meia-luz

 Do meio-fio

 Do meio-dia

 Através do meio

 Mostre

Quem é você realmente? ’

Ele queria compor e recompor a conferência de experiência. Era a

voz de um na vez de dois. Era a vez dele voltar a amar. Era medo

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de ir para outra vez. Era partícula do espaço e vazio do cansaço. O

Estranho desfez essa vez. Fez uma canção sem vírgulas e pontos.

Cada linha sem entrelaços e apenas passos. Era som na mesa, lem-

brança, e assim se desfez. Ele queria compor e recompor o amor

pela Jornalista. A Formiga, cansada, sorriu.

O Estranho não tinha mais bebida nem cigarros. Ele caminhava até

o supermercado da esquinha quando um cigano o parou, colocou

sua mão na testa do Estranho e disse:

[O Cigano] – Você renegou o coração a uma pessoa que o ama. Vo-

cês terão caminhos diferentes se você não mudar o final.

O Cigano apontou uma carta que representava uma menina atiran-

do flores em um caminho solitário. Então, O Estranho, desconfor-

tável, retrucou:

[O Estranho] – Eu escrevo o reverso do ontem, a minha vez do

passado. Eu te conheço nessas coisas, nesses casos e acasos e reco-

nheço, melhor ou pior, consciente ou não, a minha solidão. Nada

me satisfaz. É a minha solidão. Deixa-me em paz.

Empurrou a mão do Cigano com força e o deixou falando sozinho.

Saiu correndo para o supermercado. Na volta para o apartamento,

entrou no quarto chorando. Ele não queria conversar com ninguém

nem queria escutar nada. Ele sentia muita dor no peito e, não tendo

perspectivas, Ele morria com as horas. Ele navegava o desconheci-

do dos delírios, ásperos, concretos.

[O Estranho] – Quando tudo isso acaba? Círculo de estrelas som-brias que dissipam este mar. Essas tempestades que me fazem ba-

lançar. Todos me dizem: ‘adicione um título a sua vida’; ‘escreva

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capítulos da sua felicidade’; ‘chegue feliz aos 80 anos’; ‘saiba escre-

ver a sua história’. Mas eu pergunto a todas as pessoas: o final deve

ser como? Eu faço do fogo algo que me inspira. Faço das chamas

algo que me consome.

O Estranho acendeu a lareira do apartamento e pegou um livro.

Este livro dizia para Ele acender o que pudesse além das chamas

que hipnotizavam seus olhos. Dizia que era para Ele prometer o

que quisesse além dessa dor e desse amor. Era para Ele surpreender

quem pudesse com a dor de um amor. Era para O Estranho criarcanções para alma cansada. Era para Ele se tornar um aprendiz

mudado. Era para mentalizar, apenas mentalizar. Era para esquecer

as dívidas com seus semelhantes, fazer do mundo dele o mundo

de alguém. Começar pelo começo e não pelo meio, atropelando

os sentimentos alheios. Era para fazer o outro sorrir. O livro trazia

mais alguns tópicos que diziam que a tecnologia e os computadores

não iriam trazer a felicidade. O Estranho achou tudo aquilo umababoseira e atirou o livro no fogo da lareira. Ele viu as chamas

aumentarem. Atirou tudo que podia para queimar: revistas velhas,

livros idiotas, propagandas dos mercados, catálogos de roupas, ca-

lendários velhos, caixas de incenso vazias, caixas de leite, embala-

gens e mais embalagens. Ele queria queimar A Jornalista da mente.

Estava neurótico nessa noite.

16 de agosto de um ano qualquer

O Estranho permanecia no quarto. Misantropo ansiolítico, a única

companhia eram os calmantes e as lágrimas. Sentiu uma mão friaem sua têmpora. Ele só queria dormir.

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17 de agosto de um ano qualquer

Depois de um dia na cama, O Estranho decidiu seguir a vida. Queria

sair do apartamento. Mas a humilhação da imagem refletida numa

poça na esquina da Felipe de Oliveira com a Vicente da Fontoura

o assustou mais ainda. Pensou que era a menor pessoa do mundo,

que ninguém o amou de verdade a não ser Ela. Ele tinha tanto

amor e Ela também. A Jornalista tinha sumido. Já não trabalhava

no jornal. Ele achava que Ela havia abandonado o amor. Sentia-se

um merda, um ser escroto. Sentou-se na esquina, entre o Felipe eo Vicente, e acendeu um cigarro. Estava acordado e acabado. Tudo

havia acabado. O Estranho repetia sem pensar:

[O Estranho] – Quero que esta dor saia de dentro de mim. Quero

que Ela volte. Aonde Ela foi? Onde está A Jornalista? Eu quero

morrer. Eu quero acordar para a morte. Eu não quero mais viver

sem Ela.

O Estranho adormeceu na esquina ao lado da poça. Ele estava de-

primente. Chorava enquanto dormia. Quando acordou com o sino

da Igreja, mexeu em seus bolsos e engoliu todas as cápsulas de

anfetamina que havia em um vidro. Ele levantou e sentia-se péssi-

mo. Queria mais drogas. Voltou correndo para o apartamento. Sem

conseguir dormir, trocou de roupa e foi também correndo até a

Redenção. Para azar do Estranho, o parque estava cheio este dia.

Era domingo. Atirou-se na grama e olhou para a árvore sobre seus

olhos. Achou a árvore imponente. Parecia estar de braços abertos

esperando Ele chegar. Ele via também o azul do céu através de

uma aura de maconha. A Formiga queimava um ao lado de alguns

hippies fedorentos.

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21 de agosto de um ano qualquer

O barulho de alguém batendo na porta despertou O Estranho. Era

O Síndico do prédio que trazia um envelope bordô. No remetente,

estava escrito: ‘A Jornalista’. O Síndico falava sem parar enquanto

Ele estava paralisado na porta.

[O Síndico] – Não tenho nada com a sua vida, mas você parece aca-

bado. Há muitas mulheres na rua. E o tempo está mudando. Está

um clima agradável. Você deveria sair mais de casa.

Sem dizer uma palavra, O Estranho bateu a porta e deixou O Sín-

dico falando sozinho. Sentou-se no sofá. Fechou a janela. Pegou

a vodca e acendeu um cigarro. Estava pronto para ler a carta da

 Jornalista. Começava assim:

A Carta

“Talvez eu mesma tenha sentido alguma vez o desejo de ser amada

enquanto eu o amei tanto em um dia, intensamente. Assim perma-

neço, com o olhar fixo no teto, durmo e desperto e torno a adorme-

cer. Às vezes, cruzo com lembranças de você. Sinto-me pequena atrás

da janela sem que ninguém me descubra. Eu estou fria, intransitá-

vel. Tudo imperceptível, a incerteza da minha vida. Estremeço na

dor que sinto, em tudo que me tornei perante ti. Quem eu era? Uma

criança? Uma suicida? Uma destruidora? Precipitei-me em ir ao teu

apartamento. Eu estava com medo. Medo que ainda sinto. Às vezes,

enterro minha cabeça no peito para refletir, fundir-me por completa

na noite. É um auto-engano inocente, dormir em casa, sobre col-

chões, entre lençóis, sob cobertas, pois estou sempre sozinha.”

O cigarro do Estranho havia acabado. Ele acendeu outro e tomou

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mais vodca. A mão tremia e o coração estava apertado. Ele chorava.

Estava descontrolado, mas continuou a ler a carta.

“ Não estou diante de você, e o meu rosto não sente mais a sua respi-

ração. Ninguém mais senão você podia ter entrado no meu coração.

 Eu fui uma tola em acreditar que poderias me amar. Penso nas últi-

mas cenas que vivemos. Penetra na minha carne a angústia, minha

 perda. Eu tentei lutar em vão em te fazer acreditar que eu poderia

te fazer feliz. Eu me humilhei batendo a porta, ligando incessante-

mente. Eu implorei. Eu me despedacei. Torturo-me dessa maneiraaté hoje. Antes de morrer, acumulam-se na minha memória as lem-

branças com você. Estou sem defesa. Esgotou as minhas forças. Não

tem sentido lutar contra o impossível, o inatingível. Apenas convivo.

Os meus pensamentos e sentimentos me paralisam. Eu saí do jornal.

 Mas sei que você está esperando o fim desta carta. Não sei se chegou

até aqui. Eu não tenho perspectivas. Estou me acostumando a nunca

mais ver o teu rosto, tuas poucas falas, teu cheiro, teu abraço, teucarinho. Eu fui insignificante, provocando coisas graves e ruins. Por

isso, nunca mais quis me ver nem falar comigo. Eu passo dias intei-

ros pensando em você. Um espetáculo completo da solidão. Eu estou

triste agora. As horas em que estive com você fui a mulher mais feliz

do mundo. Eu sei que não foi muito tempo. Só guardo os momentos

que passamos juntos. Não quero que me odeie. Só lembre de mim

sem ódio. Eu não tenho esperança de dias melhores. Estou sabendo

de volta o que é a mediocridade da vida. Eu estou acumulando in-

satisfação de uma vida pequena. O errar pela ignorância é uma das

 principais características da tragédia, levando à morte pelo erro, e

eu errei com você, o meu grande amor. O amor da minha vida. Se

o futuro de uma ilusão me permite ser iludida, eu quero somente

sobreviver para um dia te encontrar .”

O Estranho terminou o cigarro. Sentia aversão a si mesmo. Estava

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afastando A Jornalista. Ela o amava, mas Ele não conseguia acredi-

tar. Somente Ele queria amar. Ele estava tão confuso nessa hora que

esmagou a carta. Depois abriu a carta esmagada e a rasgou. Engoliu

a carta enquanto tomava a vodca. Foi se apoiando pelo corredor

até a cama e deitou. Abriu a gaveta e tomou mais calmante. Queria

dormir para sempre.

22 agosto de um ano qualquer

O Estranho não queria se render às incertezas que levaram ao fim

desse amor. Ele escolheu o que poderia não ser. Foi isso que o cor-

rompeu nesse tempo que passou sem Ela. Talvez tenha se perdido

nesse tempo. No fundo do amor. Será que tudo foi uma mentira?

Tudo que cercava O Estranho era mentira? Ele preferia ser indiferen-

te a Ela. Para Ele, apenas calmantes e mais calmantes. Paralisantese muito Freud. Pensava em sempre desistir. Ele não podia prosse-

guir com aquilo. Pensou que fez a escolha errada em deixar A Jor-

nalista partir para outra estrada, outro lugar. Mas Ele não desistia

de tentar melhorar. Queria o destino de cuidar dela. Mas o destino

do Estranho era sofrer e nunca mudar. O melhor era acabar assim.

O tempo deles havia acabado. Ele pensava que a história deles não

era engraçada. Ele não sorria mais. Só fingia escutar as músicas que

Ele cantava. O Estranho estava perdido. Perdido. Muito perdido. Ele

queria emoções em cápsulas. Emoções em cartelas azuis e amare-

las. Queria idiotizar, interromper as lágrimas, desviar a atenção.

A missão estava incompleta, Ele sabia. Ele permanecia fora de si.

Queria que a mentira fosse verdade e a verdade fosse mentira.

[O Estranho] – Sou mentiroso e falso. Meus olhos já não são

mais os mesmos nesse meu mundo. Eu criei muros e esperan-

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ças falsas para Ela. Não queria me render ao amor verdadeiro e

agora eu sofro.

O Estranho queria voltar ao hospital para a morte gelada. Nessa

noite, Ele bebeu tudo que tinha na solidão de seu apartamento.

Uísque. Vodca. Cerveja. Vinho. Ingeriu todos os remédios da gaveta

do quarto. Calmantes. Anestésicos. Anfetaminas. Fumou maconha.

Tomou um ácido. Ele queria morrer em vez de pensar na Jornalista.

29 de agosto de um ano qualquer

O Estranho acordou após vários dias, as lágrimas escorriam pelo

rosto. Ele nada fez. Apenas pensou em como foi a vida. Na adoles-

cência, tinha identificação com a cultura grega. Gostava muito de

Platão. A partir destes estudos, interessou-se pela música e pela po-esia. O Estranho redescobria a vida com uma natureza assustadora.

Mas muita coisa havia sido dita e feita após anos de criação e re-

clusão social. Ele não entendia por que Ela o havia deixado. Estava

inerte na cama. Estava em choque. Os pensamentos estavam con-

fusos. Ele sabia que tinha feito algo errado e naquela manhã queria

coisas que não podia tocar. Estava sozinho e embriagado ainda com

lágrimas que insistiam em derramar. Queria encontrar A Jornalista.

Queria pedir para Ela ficar sem pensar. Naquela manhã, Ele sabia o

tempo que havia perdido. Talvez se Ele tivesse se importado mais

com Ela e esquecido as loucuras tudo pudesse ser diferente. O que

restou foi a vontade de estar com Ela. Ele não queria ficar deitado

esperando o que poderia ser. O Estranho se arrastou até o telefone

e discou os números dela.

[A Jornalista] – Alô?

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[O Estranho] – Eu sei que o que foi e o que Eu deixei de fazer não

volta mais. Mas eu quero consertar os meus erros. Eu não me es-

queci do tempo que passou.

[A Jornalista] – Mudam os tempos e você parece nem ligar. O mun-

do gira e não saímos do lugar. Você sugere as coisas do seu jeito e

não entende que tudo tem seu preço.

[O Estranho] – Quanto tempo faz? Eu não me lembro mais e não

espero que você se lembre.

[A Jornalista] – Os teus livros não te trazem nada de melhor. Não

sou eu e nem é você quem vai mudar. Deixa pra lá. Acho que logo

esse dia vai passar. Tudo o que foi não existe mais.

[O Estranho] – Pode pensar que por eu não te olhar talvez não sinta

nada mais. Quero encontrar uma razão mais forte que a solidão.Não sei se o que tomei vai acalmar essa dor. Se for forte o suficiente

para me entorpecer, talvez eu morra nesta noite.

[A Jornalista] – Por que voltou? Para me atormentar? Trazer à tona

o que eu esqueci? Quando passou a me ignorar, eu entendi que era

o fim para nós dois.

Nessa hora, O Estranho já chorava e repetia para A Jornalista.

[O Estranho] – Mas eu quero encontrar uma razão mais forte que

a solidão.

[A Jornalista] – Não quero mais encontrar respostas. Essas verda-

des te fazem mentir.

[O Estranho] – Não pense que o tempo foi jogado fora. Ficou difícil

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quando você foi embora.

[A Jornalista] – Não sei se é verdade o que você vai me dizer, por-

que as lágrimas não me dizem nada.

[O Estranho] – Desculpe se não foi como esperava. Eu nunca quis

te magoar. Segui tanto tempo a mesma estrada e achei que nada

fosse nos separar.

[A Jornalista] – Hoje essa verdade está fora de moda. Melhor acre-ditar naquilo que parece bom para mim.

[O Estranho] – Eu morreria por você, mesmo que isso te deixasse

mais feliz. Não quero nem mais um dia alguém para me lembrar.

[A Jornalista] – Eu só queria um pouco mais da sua atenção. Já não

te vejo mais faz tanto tempo. E nem mesmo se eu pudesse ler teuspensamentos, eu deixaria o tempo apagar meus sentimentos.

[O Estranho] – Se Deus me desse o dom de voltar no tempo, eu fa-

ria mais poesia e uma canção. Eu mudaria a trajetória dos aconteci-

mentos. No próprio erro, vivo tentando me esconder. Foram tantas

noites mal dormidas que me fizeram entender. Estas noites estão

me matando.

[A Jornalista] – Apesar de tudo, não vai me ver mais. Como as coi-

sas são? Você vai me explicar? As pessoas mudam e eu não vou ser

sempre igual. O que gosto hoje, amanhã poderei odiar.

[O Estranho] – Eu estou aqui nesse lugar escuro. Não tenho aonde

ir. Eu tentei dar o melhor de mim em tudo que fiz e em tudo que

quis fazer.

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[A Jornalista] – Não tenho por que lutar. Não sei por que estou no

telefone ainda. Mas eu tento me convencer de que vai ser melhor

assim e que é melhor morrer do que viver e acreditar.

Houve um silêncio entre A Jornalista e O Estranho.

[O Estranho] – Eu quero voltar para as coisas que eu deixei. Vai

valer a pena. Eu achei alguém em quem eu posso acreditar. Quero

te conhecer para pelo menos te mostrar o que eu fiz para você antes

de deixar meu corpo só, quando você partiu naquela manhã.

[A Jornalista] – Eu não sei o que fazer nem o que dizer.

[O Estranho] – Às vezes, penso em coisas das quais me arrependo.

Às vezes, te odeio sem querer e apago sinais sem desejar ter escrito

e sentido. Você foi uma fantasia louca que eu inventei. Isso não

pode ser real. E você não acreditou.

[A Jornalista] – Eu não acreditei?

[O Estranho] – Eu estou perdido dentro de mim. Eu não saio do

apartamento mais. Quando penso em você, vira nó na garganta. Eu

tenho vontade de te tirar de mim, de te esmagar, de te ferir e dizer

Olá. Tenho vontade de te matar e te amar.

[A Jornalista] – Talvez um dia você chegue à porta do meu coração

de novo. Você saiu e me deixou uma chave. Você vive trancado e eu

não posso destruir a fechadura. Esse teu sofrimento e tormento in-

visível, incansável e imutável – sólida paranoia de amar. Parece um

estranho no ninho. Eu não consigo te matar. Não consigo te fazer

sumir na imensidão do céu. Não sei se sou feliz por nunca desistir,

mas um dia poderei estar no mesmo palco que você: da dor.

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[O Estranho] – É uma insanidade aguda, leveza desnuda e calor

profundo. Chega de tentar achar o entendimento. Vivo no caos de

sempre pensar em você. Seja no dia, na noite, na tarde, na entor-

pecida vida minha. Apenas venha e abra a porta. Serei apenas eu e

você. Você tem a chave do meu quarto.

O Estranho não queria saber a resposta da Jornalista. Ele desligou

o telefone e se arrastou até a cama novamente. Ele ia esperar por

Ela a vida inteira. O Estranho resolveu tomar banho. Há muitos dias

não tomava banho. O cabelo estava grande e sua barba também,como nunca esteve antes. Enquanto ensaboava sua barba, O Es-

tranho se olhou no espelho e parecia que o rosto era neve de tanta

espuma branca. Por um instante, Ele sorriu. Havia muito tempo que

O Estranho não sorria. Era neve que Ele via.

30 de agosto de um ano qualquer

O Estranho acordou disposto a escrever uma carta para A Jorna-

lista. Esta carta Ele queria que Ela lesse. Esta não era uma carta

como as outras, que nunca foram enviadas ou entregues. Ela

começava assim:

“ Eu escrevo o que está dentro do coração, dentro da minha alma,

dentro do emocional e racional. E quando vou escrevendo, novas

coisas vão surgindo, novas verdades e mentiras vão aparecendo so-

bre eu mesmo. E depois de um fim de linhas, eu vejo o que passou

em instantes pequenos, mas que em mim foram momentos eternos,

que estão ali, em apenas alguns versos. Depois eu leio e tenho outravisão. Outra forma de enxergar. Mesmo sendo o sofrimento nato,

nada muda e tudo muda. Acontece. Eu sinto que estou novo, velho,

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cansado, falido comigo mesmo. Mas também penso que estou vivo e

muitas vezes essa é a parte que me segura. Eu posso não conseguir,

não querer ler, trabalhar, andar, acordar, mas tudo isso acaba acon-

tecendo como agora, que estou escrevendo isso. (A Formiga lia de

lado) Depois vou pensar e quero pensar que tudo que estou falando

não é em vão e, mesmo eu estando com isso dentro de mim, agora,

eu vou pensar que não adianta e que nada vai mudar, que nada

vai me fazer mudar, ninguém, nada, coisas. Eu vou estar apenas len-

do palavras em vão. Frases sem sentido. Mas, como tudo tem começo,

meio e fim, vai achar que acabou, mas não. Eu estou apenas em algummeio. Eu me meti em alguma coisa no meio de mim mesmo que teve

um começo e não vejo o fim em mim e, a partir de agora, eu desanimo.

 Não quero fazer nada nem alimentar algo que não me sustenta. Então,

quando escrevo coisas pequenas, linhas, palavras, e acho que não está

bom e que não era aquilo que eu queria escrever, mando tudo se foder.

 Jogo coisas sem sentido entre todos os mortos e feridos nessa terra. Acho

que não tem mais vaga no céu para o descanso e assino a minha con-fissão de não acreditar na palavra do anjo da luz, que está aí, aqui e lá.

 Eu sei que está. É o meu reflexo. Mesmo escondido nessas muralhas que

alguém criou, eu não posso criar isso. As pessoas podem não criar e tudo

 pode acontecer sem que eu ao menos espere, mas luto pra saber o porquê

de tudo. Muitas vezes, não temos resposta. Muitas vezes, temos resposta.

 Muitas vezes, não achamos. Mas acredite, tudo faz sentido. Tudo. Eu posso

não achar sentido no que estou sentindo agora, mas isso faz parte de al-

 guma coisa maior e depois eu penso: ‘Puta merda! Tenho que sofrer assim

 para saber que alguma coisa faz sentido?’ Às vezes, tem. Não sei por que

também. Talvez eu tenha sido sorteado para ser assim, para sentir mais. É

isso! Fui sorteado para ser assim. Para sentir mais.”

Quando terminou a carta, O Estranho dobrou as folhas e colocou nomesmo envelope no qual A Jornalista havia escrito a carta para Ele. Era

o envelope bordô. Ele passou o dia ansioso, esperando a vinda da Jorna-

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lista. Ele pensava na chave do quarto, na chegada dela. Estava ansioso

e as horas não passavam. Neste dia, não tomou calmantes nem bebeu.

Apenas fumava cigarros para acalmar a ansiedade. Mas Ela não apare-

ceu. Já era madrugada e O Estranho estava paranoico. Decidiu beber e

tomar só alguns comprimidos. Não foi muito – uns oito. Seria o suficien-

te para Ele adormecer e esperar por Ela no dia seguinte.

31 de agosto de um ano qualquer

A Jornalista não apareceu e O Estranho pensou que Ela tivesse per-

dido a chave do apartamento.

01 de setembro de um ano qualquer

A Jornalista não apareceu e O Estranho pensou se Ela ainda queria

a outra chave.

02 de setembro de um ano qualquer

A Jornalista não apareceu e O Estranho não sabia o que pensar.

03 de setembro de um ano qualquer

A Jornalista não apareceu e O Estranho se entregou à escuridão nova-

mente. Eram sentimentos aterrorizantes que Ele sentia sem a vinda dela.

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de uma máscara a outra

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04 de setembro de um ano qualquer

O Estranho sabia que A Jornalista não viria mais. Mas e a chave

do apartamento? Por que Ela estaria com a chave ainda? Eram per-

guntas sem respostas que vinham na mente dele. Ele estava tranca-

do no quarto. Permanecia assim. Chorava. Tentava entender tudo.

Sentia saudade. Ele queria a chave e A Jornalista na cama ao lado.

06 de setembro de um ano qualquer

Sentado no sofá, O Estranho fumava um baseado e tomava um chá

de boldo. Nessa tarde, O Estranho aprendeu que a verdade muitas

vezes não existe. A verdade não atingiu nem mudou nada. Mas a

verdade permaneceu implícita, na escuridão da sala. Ele foi infan-

til. Ingenuidade pensar que a verdade era total. Além das contasna porta, O Síndico não trazia mais nada para Ele. E se houvesse

uma entrega, seria a da pizza que Ele sempre pedia, sempre com os

mesmos sabores: margarita, pepperoni, calabresa e, às vezes, alho

e óleo. A Formiga gostava de alho e óleo. Ele sempre soube que Ela

nunca mais voltaria. Dele, Ela só tinha a chave e nada mais. Ele

não sabia do futuro. Cartas. Tudo parecia jogo literário agora. Mas

esse jogo mostrou em curto prazo o resultado final para O Estranho:

poesia + solidão + realidade = sofrimento contínuo parcelado em

drogas, comprimidos e bebidas baratas. Ele não passou da folha

do caderno vagabundo escrevendo aquela carta que permanecia

em cima da mesa. A escrita tinha sido torta. Ele riscou toda aquela

carta. Rasgou e colocou no lixo. Na frente do lixo Ele disse:

[O Estranho] – Agora pode rir. Pague o preço da tua liberdade e do

teu alívio e faça o que quiser. Finja que nada aconteceu. De tanto

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fingir, você se acostuma e nem percebe. (A Formiga riu. Mas sem

estardalhaço.)

Ele saiu correndo depois de jogar a carta no lixo e se trancou no

quarto. Queria a escuridão. Ele queria tirar Ela de dentro do cora-

ção. Não sabia mais o que sentir, mas sabia o que fazer. Tomou

anestésicos que o fizeram esquecer tudo por um longo período. Ele

queria ficar preso no quarto e nada mais se questionar. As histórias

agora pareciam não se completarem, não se unirem. Elas se confun-

diam e não se transmitiam.

07 de setembro de um ano qualquer

As lembranças da Avenida movimentada de uma capital eram lon-

gínquas na mente do Estranho. Há muito tempo ele não saía doquarto. Ele não queria sentir o cheiro da fumaça, da desgraça. Que-

ria estar isolado nos pensamentos. Ele ainda esperava Ela chegar

com a chave. Quando abriu a gaveta para pegar mais comprimidos,

Ele viu um pacotinho pequeno que não havia percebido antes. Era

uma Lua. Era uma lembrança que A Jornalista havia deixado para

Ele se lembrar dela. A Lua ficou na gaveta. O Estranho imaginou A

 Jornalista correndo com um vestido rosa pedindo para deixá-lo. Ele

se imaginava com um terno azul. Eles estavam em um salão e os

olhares deles se encontravam. Aquele momento parecia eterno, lon-

ge de todos os sonhos. Era incompreensível para O Estranho essa

imaginação. Era indivisível. Ele queria trancar A Jornalista dentro

do coração. Estava tocando Mozart. Tudo pertencia a Ela naquele

instante. Eram lembranças não lembradas. Ele sentia muito. Ela es-tava adorável. Ele queria encontrá-la naquele salão de festas e dizer

que precisava dela, que tinha deixado tudo de lado. Queria contar

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os segredos, perguntar suas dúvidas. O Estranho queria voltar ao

começo de tudo. Ninguém tinha falado que seria tão difícil. Era essa

separação que o incomodava. Era um quebra-cabeça. Era ciência,

progresso. Era assombração, separação. O Estranho não sabia dizer

se a vida era curta ou longa demais. Tudo parecia sem sentido. As

lágrimas escorriam. O amor era dolorido. Parecia coisa de outro

mundo. Era uma explosão. O Estranho fazia retrospectiva pós-vida.

Ele pensou na Lua que A Jornalista havia deixado na gaveta. Ele

queria morar na Lua porque a filosofia não apresentava respostas

mais. O Estranho tentava entender as perguntas. Ele pensou quenão deveria esperar nada dela. Sem saber o que sentia, Ele deu um

adeus e viu na imaginação Ela partir. Ela queria férias dele. Férias

que não conheciam saudade de alguém que teve por uma noite. O

que significava aquilo? Era uma sublime tristeza do desconhecido.

Era uma ordem natural, fatores que não se alteravam, ritmos que

não mudavam e não se envolviam. Eram batidos desconexos. Ele

queria escrever mais para Ela, mas a precipitação era maldição. Eraausência de inspiração, o livro não saía da primeira linha. Era tudo

sem explicação. Era uma história sem começo. Sem meio. Sem fim.

Sem amor. Era uma mentira? Chuva congelada na paisagem.

08 de setembro de um ano qualquer

O Estranho estava na janela vendo dois arco-íris e um fenômeno

que parecia nuvens rosa e verde. Ele sabia que seria mais que Ela

e Ele. As pernas estavam tranquilas. Tudo continuava lindo com a

diversidade. Ele descansou os olhos e percebeu a infinidade dos

sentimentos que nascem, crescem e morrem. Ele se lembrou de umpasseio de barco na Costa de Lagoa, que havia feito em Florianó-

polis. Já não pensava mais em relacionamentos passados que ainda

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não tinham sido curados. Sentiu que a felicidade não precisava ser

plena para valer a pena. Havia tempos que O Estranho não pensava

sobre o verão e os artesanatos coloridos que deixavam seus olhos

alegres. Pensava na vida, nos erros e acertos.

Quase não sentia vontade de beber. Talvez, um café.

10 de setembro de um ano qualquer

O Estranho, no sonho, caía no mar, afundava sem cessar, levantava

sem chorar. O Estranho corria na areia, fingia que via uma sereia,

corrigia as besteiras. Ele usava camiseta amarela e estava sempre na

tela. Tudo era uma aquarela e a sereia era bela. O Estranho brincava

de rimar, esperava o ano passar, contava os dias terminarem. Ele

acordou e estava pra baixo. Perguntava-se o porquê dessas nuvensnegras continuarem sobre a vida dele. Pensou em levantar e ir ca-

minhar em busca de um sorriso de felicidade. O Estranho estava no

melhor jeito possível de se estar mal. Ele queria uma brisa, uma

mente aberta. Ele queria ter dito mais do que disse. Ele deu bom dia

à solidão, levantou e caminhou sem direção no apartamento. Eram

sonhos em vão? Para A Jornalista, eram sonhos e seus pesares, con-

solos e afinidades, fantasias e poesias. Tudo escorregava como um

oceano de sentir. Tudo à volta era A Jornalista. Tudo explodia no

olhar do Estranho. Para A Jornalista, era um viver latente do Estra-

nho. Eram os cabelos dela que Ele sentia falta de deitar e sonhar ao

lado dela. Ele queria a Lua e um amanhecer. Um dia de amor. Era

uma vida de contratos sem promessas. Era incrível como O Estra-

nho chorava diante das lembranças da Jornalista.

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11 de setembro de um ano qualquer

O Estranho já se sentia velho. Não queria mais ficar daquele jeito.

Ele queria bater em alguma coisa. Ele queria beijar A Jornalista na

esquina. O Estranho era o pior que havia nas casas vizinhas. Ele

era um lixo sujo. Tinha febre. Parecia indecente delirante. O Estra-

nho tinha uma complacência disfarçada de incógnitas. Vivia num

subterfúgio de arrependimentos mesquinhos e sigilosos. O coração

sangrava e Ele parecia estar no final da vida. O apartamento do

Estranho era um universo de fotografias e detalhes. Era incoerenteem sentir algo bom. Ele era imperfeito e indefeso. O Estranho era

um emaranhado de versos sem um único instante de glória. Ele

tinha podridão na vida miserável. Não tinha cara lavada. Ele tinha

dúvidas. Resolveu colocar em xeque as dúvidas. O Estranho ligou

pra Jornalista nesse dia.

[O Estranho] – Por que você partiu? Por que você me deixou aqui?Poderíamos limpar tudo isso? Poderíamos varrer estes versos inú-

teis? Por que tudo acaba assim?

[A Jornalista] - Aonde você vai? Qual caminho? Qual ilusão quer

seguir?

[O Estranho] – Você não vem comigo de novo? Vai ficar aí?

[A Jornalista] – Fica bem, meu bem. Vai ser assim. Não fica de

costas. Não quero quebrar os vidros e brincar de sangrar, destruir

janelas, derrubar árvores.

[O Estranho] – Você ainda tem a chave do meu quarto?

A Jornalista desligou o telefone. O Estranho estava desesperado.

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Ele caiu no chão e esmagou o rosto. Era o descontrole de um caos

pré-ordenado. Era o descontrole das suas funções. Estava sem filtro.

O Estranho não tinha um programa para viver. Ele estava em pane.

Estava precisando de água. Água não! Ele abriu um vinho barato.

O Estranho queria mudar seu endereço, seu disfarce. A falta dela

lhe dava calafrios. Não tinha armas para lutar. Tudo era idolatria.

Perversão. Invasão de pesares.

13 de setembro de um ano qualquer

Os antidepressivos tinham tornado O Estranho quase um ser imagi-

nário. Ele não aguentava quando tudo parecia não importar mais.

O Estranho e A Jornalista não estavam mais juntos. Mesmo com o

mundo partido em dois, O Estranho foi acordado pelo som. Ele as-

sistia ao destino como uma maré. Ele não tinha escolhas a fazer. OEstranho queria matar o que chamava de solidão. Queria que todos

os fantasmas fossem embora. Ele estava perdido e não conseguiria

mais encontrar A Jornalista. O mundo estava acabando para O Es-

tranho. Ele não aguentava ficar firme. O Estranho queria ser Rei e

queria que A Jornalista fosse Rainha. Nada mais significava.

14 de setembro de um ano qualquer

O Estranho estava anestesiado e não sentia nada além do vazio,

da madrugada fria, da solidão das lágrimas, da imensidão da dor,

da escuridão de amar. Ele via no nascimento a aproximação coma morte. Estava se sentindo velho e sozinho. Queria o fechar de

olhos... Eterno.

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de uma máscara a outra

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15 de setembro de um ano qualquer

O que de menos O Estranho sentia era o alívio da Jornalista. As

nuvens cobriam o céu inteiro.

17 de setembro de um ano qualquer

O Estranho acordou tarde neste dia. Demorou até abrir os olhos. Cami-nhou até a sala. Abriu as janelas e viu a claridade invadir os olhos. Vol-

tou para o quarto e, no pedaço de espelho quebrado, viu um rosto pá-

lido, quase morto. Sua barba havia crescido e Ele não havia percebido.

Nada fez. Apenas ficou encarando a si próprio. Era um daqueles dias

que pediam anestésicos para acalmar a dor. Ele pensou na Formiga.

Deitou na cama e olhou para o teto mofado. Pensou nas expectativas

frustradas. O Estranho queria um coração novo, uma direção contrá-ria. Sentou-se na cama e acendeu um cigarro. Puxou e sentiu a fuma-

ça entrando de forma profunda em seus pulmões, infeccionando suas

células, que, imediatamente, começavam a expelir um líquido viscoso,

de tom amarelado. Pensou nas variáveis infinidades da vida. Para onde

o beijo não dado, a palavra não dita, as frases ríspidas o teriam levado.

O Estranho acendeu uma vela e voltou a dormir. Após algumas horas,

acordou encharcado de suor. Transpirara excessivamente durante o

sono conduzido pelos anestésicos. Seu fígado, na noite anterior, absor-

veu mais comprimido do que havia experimentado até então.

18 de setembro de um ano qualquer

O Estranho acordou delirando no seu quarto empoeirado. Ele mal

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conseguia segurar a caneta entre seus dedos, mas escreveu para A

 Jornalista todo o mal que um dia havia penetrado em sua alma.

Foram estas as palavras:

“Quero te colocar num caldeirão e te ferver. Quero te furar até teu

sangue escorrer pelas minhas mãos. Quero te deixar em cinzas.

Tudo que há de ruim quero para você como está em mim. Não dese-

jo o inferno para você. Desejo o inferno de corpos que perambulam

a sua volta como urubus. Você faz parte disso tudo, desses jogos

sem regras, desse contexto inédito. Eu quero te atirar em um preci-pício. Eu quero te ferir de alguma forma para você sentir o que fez

comigo. Nunca sentiu a rejeição como ela é. Nunca sentiu o amor

como é. Nunca sentiu o ódio como é. Quem te deu o direito de ter

direitos? Quem te fez Senhora de minhas palavras? Você descarta

uma conversa como quem não quer a casca de um pão. Você é tão

insensível como meus monstros. Você se transformou em uma figu-

ra grande, de olhos vermelhos. Sua pele tem escamas. Você tem chi-fres, rabo, patas de espinhos. Suas mãos têm dez dedos de orgulho.

Tudo faz de você algo que rasteja e que mata qualquer coisa boa

em mim. E por que ainda quero te salvar? Por que gosto de pessoas

como você? Por que te ofereço ajuda, amor, compreensão? Por que

continuo insistindo? Eu quero te matar com golpes para que morra

lentamente e veja tudo que não fez nessa vida vazia. Você é como

um réptil que rasteja nessa neblina de hoje. É como peixe morto por

falta de oxigênio, como ave sem asas, como poetisa falsa, juíza sem

réu. Você nem sabe onde está. Onde está seu eu? É uma batalha

ganha sem troféu. Eu sou chato, sensível, um merda. Você pode

achar que não sirvo para nada, que não sou como você. Tem razão

e sabe que não adianta truque de sons. Você é uma idiota de nariz

vermelho, minha assombração diária, meu sofrimento querido. Eusentei para te ajudar. Eu escutei trovões para te ajudar. Eu entrei na

escuridão para te ajudar. E hoje? Uma ausente presente. Você acaba

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de uma máscara a outra

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de criar em mim jogos mortais, poesia transversal, adivinhações

futuras. Quero que caia de uma bicicleta, de uma escada, de um

amor. Quero que você caia. Derrame suor. Você consegue matar

essa flor. Encena como se tudo fosse de verdade. Até sua vontade

de entrar na morte é mentira. Tenho compaixão por ti. Tenho pre-

monições para ti. Você vai vagar eternamente no Inferno de Dante,

onde eu fui passear num sonho. Vai estar entre almas se afogando

em sangue bandido, entre corpos banidos. Você é um cadáver que

perambula. Você que nem é você. Você é apenas uma ausente pre-

sente sem respostas. Eu sou errado e louco.”

A essa altura dos escritos, O Estranho gritava de horror, de felici-

dade, de pavor, de medo, de alegria. Ele gritava para os extremos e

continuava a escrever...

“Eu te mandei para o céu e para o inferno. Você é uma bonequinha

de luxo. As aparências te completam, a falsidade te engana e a ri-queza te comove. Nunca imaginou que eu pudesse chegar a tanto.

Eu quero te mostrar que você vive num lixo hipócrita, rodeada de

mais lixo hipócrita. Eu não quero fazer parte disso. Momentos de

lucidez não passaram de instantes comigo.”

O Estranho largou a caneta e desmaiou. A Formiga, que andava

por ali atrás de glicose, correu para o lado. Não de bom tom morrer

esmagada na sala.

20 de setembro de um ano qualquer

A chuva batia na janela do quarto do Estranho. A força do vento

fazia sua janela balançar. Ele despertou. Olhou para o caderno e o

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empurrou para debaixo da cama. Não lembrava o que tinha escrito.

Nem fazia ideia. Sentia-se cansado e exausto. Parecia que havia

sido atropelado. Sentia dor no corpo e na alma. Pensou que eram

os anestésicos. Tentou fechar os olhos para dormir, mas não con-

seguiu. Sentou na cama e fumou um cigarro. Dois. Três. Quatro.

Deitou e adormeceu.

23 de setembro de um ano qualquer

O Estranho vestiu a melhor roupa, atou os cadarços do All Star e

pensou que estava com pressa, mas para chegar onde? Não sabia

para onde deveria ir. Atrás da Jornalista? Admirou o chão sujo,

as infiltrações na parede que a chuva havia causado. Havia restos

de restos no chão. Nada fazia sentido. Por um instante, Ele não

lembrava seu nome. Tudo era invenção. Não precisava de nome.O Estranho descobriu o desconforto jorrando pelos poros e ume-

decendo sua melhor roupa. Pensou que o amor fosse feito para ser

esquecido. A única coisa que podia mudar era seu nome, mas Ele

não sabia mais. Tudo no apartamento do Estranho era lixo, tóxico.

Ele feriu o coração da Jornalista. Agora se sentia velho. O coração

estava gelado. Não podia ver luz. Era um ser perdido em busca da

terra do nunca. Passava o dia repetindo as mesmas coisas. Acorda-

va, bebia, fumava e ingeria calmantes, anestésicos, anfetaminas. O

desconhecido já era conhecido e foi por isso que ele tomou mais

uma dose das drogas da gaveta. Elas se chamavam solidão. Ele se

tornou uma sequência de palavras repetidas. Estava dependente.

Carente. O Estranho estava jogado no chão, bebendo o último gole

da vodca, no bico.

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25 de setembro de um dia qualquer

Os comprimidos faziam O Estranho adormecer durante dois

dias quando ingeria grandes quantidades. O coração do Estra-

nho doía. Era uma dor involuntária, como se o coração fosse de

plástico. O cigarro era companheiro nessa hora. Os sonhos dele

estavam conturbados. Foi nu até o banheiro. Insistia em ter um

coração novo. Assim, talvez A Jornalista pudesse desaparecer.

Os pensamentos eram despejados. As sensações e lembranças

da Jornalista eram despejadas na mente. Como voltaria a dei-tar sentindo o que sentia? Como poderia continuar vivendo e

sabendo tudo o que sabia? Queria a ignorância de volta. Queria

voltar aos quinze anos. Não conseguia suportar nem descansar

mais. Ele pedia misericórdia. Queria ser o apanhador no campo

de centeio. A Formiga, que não entendia nada do que ele falava,

mas lia seus pensamentos, fez cara de nojo: Apanhador ... Sabia

que O Estranho estava precisando de ajuda.

O Estranho não queria estar abandonado. Por mais que quisesse

a pureza do sentimento, não era passível de transmissão para A

 Jornalista. A dor foi dele e a cicatriz também. O Estranho não tinha

sido criado em laboratório, mas a prisão do apartamento do 4º an-

dar parecia ter grades e correntes. Ele colecionava mortes vividas. O

nada e o além pareciam distantes demais. O descontentamento do

Estranho no apartamento era genético. Tudo ardia em combustão,

perdia a graça, mesmo deixando o All Star pisar firme no chão. Ele

não queria mais dormir e tomou anfetaminas demais. Enxergava

claro, mas distorcido. Ele podia olhar o que queria e nada o como-

via, nem o número do telefone da Jornalista. Tudo estava preto e

branco. Queria esquecer que havia desistido da Jornalista. Seria umsonho a menos.

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26 de setembro de um ano qualquer

O Estranho estava doente. Eram mentiras dele mesmo. Mal-estar.

All Star. Ainda era com A Jornalista que gostaria de estar. Jun-

to. Ele queria desmistificar a ideia de saber lidar diariamente com

seus sentimentos. Eram fatalidades as tentativas de suicídio. Mas

O Estranho nunca se arrependia nem sentia remorsos dos próprios

erros. Para Ele, A Jornalista era a culpada de tudo, mas Ele queria

a punição de ter certeza que fez tudo para tê-la. Ele tinha perdido

a noção do bem comum. Ele não reconhecia o sofrimento dela. Elenão continha impulsos. Gostava de viver só. O Estranho manipula-

va o seu mundo. Em seu mundo a culpa habitava sempre as mentes

alheias. Ele não tinha mente. Era um Artista, com maiúscula. Não

tinha mente. Tinha alma.

Ele tomou muitas garrafas de vinho nesse dia e odiou ser quem era.

Odiou o próprio corpo e a própria mente. Que Ele não tinha. Pen-samentos. Doença cotidiana que atormentava os mortais. Estava

paranoico e discava números no telefone sem parar. Seus ombros

doíam. A boca estava seca. Ele chorou. Largou o telefone e pôs as

mãos na cabeça. Uma voz do outro lado falava: Que foi, meu filho?

A Formiga ouviu. Mas não era a mãe Dele. Parecia que seus ombros

pesavam muito, carregando toda a dor. A Formiga também sentiu.

Deitou de bruços.

27 de setembro de um ano qualquer

O Estranho queria tocar o irreal, dar poder aos fracos, esmola aos ri-cos. Ele queria dar coração aos dementes. Ele resumia a falência em

escritos amarelados. O glamour era a sarjeta da sala mais os livros

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que permaneciam cheios de pó. Os sinos da Igreja badalavam uma

procissão. Muitas anfetaminas. O mundo era uma mentira para Ele.

A realidade era uma merda. Ao acordar de manhã, O Estranho se

encerrava, sentia o gosto do tédio na garganta. Tentava quebrar

algumas regras, mas era A Jornalista quem quebrava. Ele queria

injetar mais dor, injeções de terror. Queria uma vacina contra o

amor. O vazio comandava o apartamento dele. O Estranho acendeu

um cigarro e tentou manter-se com os olhos fechados. Todo dia, Ele

tentava se livrar das mordaças, mas o medo o calou. Ele sentia medo

de alguma coisa dentro do peito. O vento soprava forte a chuva. Eleestava num mar de dor. Fazia tempo que O Estranho não via o sol nas-

cer. Era mais um dia cinza para se lembrar da Jornalista. Era mais um

dia pra se embriagar. Ser feliz era uma sátira dos deuses e sorrir soava

como pecado. A tristeza parecia mais sensata perante as lembranças

dela. Mais um cigarro. O Estranho abriu uma garrafa de vodca. Já na

metade da garrafa, Ele queria subir na mais alta montanha e gritar o

nome da Jornalista para as estrelas. Ele queria que os pássaros caíssemdo céu. Lembrou que era manhã ainda. As estrelas não estavam lá. Só

havia chuva e cinza. Mais vodca e cigarros. Ele não via a hora de ver

A Jornalista novamente. Ele havia apagado o tempo. Na embriaguez,

queria eternizar o amor, o calor que havia no corpo dela quando dor-

miram abraçados. Ele quis ser um homem bom, mas não mais via cla-

reza em seus atos. Via a fé morrer. Era a lágrima que caía no copo de

vodca. Eram canções, orações para que tudo ficasse bem. O Estranho

não seguia mais os passos da Jornalista. Estava juntando os pedaços

de um ser atirado num sofá. Quase sem conseguir mexer os braços, Ele

alcançou o telefone. Discou. O telefone da Jornalista estava chamando:

[O Estranho] – Não me deixe mais cego do que já estou. Eu só

quero te mostrar quem sou eu. Estes estão sendo meus dias de dor.Não me deixe mais surtado do que já estou. Não me mate. Você

leva esse mundo a sério?

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[A Jornalista] – Eu levo meus sonhos à risca. Agora eu vejo que

estou caindo em um abismo dentro de mim. Sempre soube que

correria este risco. Mas tudo valeu a pena. Eu eternizei teu rosto

quando fez bater meu coração ao teu lado. Mas agora...

[O Estranho] – Eu estou bebendo. Bebo todos os dias. Minha alma

está evaporando. Estou quase rastejando. Eu quero me ajoelhar aos

teus pés.

[A Jornalista] – Não gosto de te ver chorar e te maltratar.

[O Estranho] – Eu só vejo flores mortas. Vivo perturbado com para-

noias. Estou vazio. Sinto frio mesmo nos dias quentes. Eu vivo tran-

cado neste apartamento e dentro de mim mesmo. Eu me lembro do

teu beijo e da tua Lua. Eu a tenho ainda na gaveta do meu quarto.

[A Jornalista] – Tão longe do teu corpo, tão perto da tua alma. Euvou te guardar para sempre dentro de mim. A pior morte é a morte

da alma. Não mate.

A Jornalista desligou o telefone. O Estranho bebeu mais até cair no

chão. A alma, junto.

28 de setembro de um ano qualquer

O Estranho estava no banheiro, sentado embaixo do chuveiro. Es-

tava com seus ouvidos submersos enquanto a água fria caía. Seus

olhos apontavam para a pequena janela. Ele via a Lua. Queria cha-

mar por um Deus adormecido. A respiração estava ofegante como

que em resposta aos sofrimentos. A realidade era um pesadelo para

Ele. Saiu do chuveiro e mirou seu rosto no espelho. Nessa hora,

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imaginou que o mundo inteiro estivesse dormindo e em vão so-

nhasse. Secou o rosto e foi para o quarto. Queria se lembrar da

conversa com A Jornalista, mas não conseguia. Deitou na cama e

fechou os olhos. O Estranho era um universo sem fronteiras. Des-

pertou repentinamente. Era o telefone que tocava. Era A Jornalista:

[A Jornalista] – Não sou um anjo e nem pretendo ser, mas quero

salvar sua alma. Sinto seu coração aflito. Um dia vamos alcan-

çar a força estranha que nos guia. Oh! Pobre poeta. A poesia se

voltou contra você. Seu céu azul agora é tempestade e sua terraprometida, cinzas. Até que ponto a realidade te machuca? Por

que você fica recluso?

[O Estranho] – Você seria capaz de tocar a solidão da Lua?

[A Jornalista] – Sinto o pesar da tua voz, quase um sussurro. A Lua

é um reflexo solitário no vento ou no silêncio do abismo de estrelas.

[O Estranho] – Eu irei brindar contigo a minha morte. A música

e a poesia estão morrendo. Nesses últimos tempos sufocantes,

o que me resta é um último suspiro ao teu lado. Um eterno eco

do passado.

[A Jornalista] – Os fracos temem por morrerem... Sós.

[O Estranho] – É a eterna batalha entre o dia e a noite. E a noite

sempre prevalece. Ela é mais pálida e mais sincera. Como a Lua.

O Estranho tremia. Ele sentia raiva de si. Desligou o telefone sem

dizer mais nada. Correu para o quarto, abriu a gaveta e pegou mais

calmante. Talvez os comprimidos o fizessem esquecer quem era.

Sentia-se um fraco.

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29 de setembro de um ano qualquer

O Estranho não conseguia mais escutar música. Ele estava com

vontade de comer um churrasco, mas o estômago estava reduzido

por causa das anfetaminas. Na loucura total, após ingerir 20 cáp-

sulas, Ele arrumou a mochila velha da UFRGS (depois de Letras,

O Estranho tentou fazer Física e Ciência da Computação, mas sem

sucesso) e saiu para a rua. Viu que havia uma Kombi na oficina,

no quarteirão ao lado do prédio em que morava. A Kombi estava

com a porta aberta. Na escuridão, O Estranho viu brilhar a chavena ignição. Por um momento, seus olhos paralisaram na Lua cheia

que brilhava no céu. Decidiu roubar a Kombi. Entrou na oficina, pé

por pé, soltou a embreagem e levou a Kombi até a Protásio Alves.

Ligou. Entrou. Partiu em direção à fronteira do Rio Grande do Sul.

Queria fugir de tudo, da Jornalista. Queria fugir de si mesmo. Ele

estava indo em direção a Santana do Livramento. Dirigia bem deva-

gar para ver o amanhecer nos pampas gaúchos. Parou para admirara bela paisagem. Queria A Jornalista, mas não podia. Enquanto o

sol subia, Ele refletia. Sentia o cérebro como gelatina. Desceu da

Kombi e caminhou nos campos. Sentiu o cheiro de terra e tirou

o All Star. Pisou firme no chão. Passou as mãos nas plantas, nas

flores, na grama. O sol já estava alto e O Estranho deitou ao lado

de uma árvore e viu o céu azul. Ele adormeceu por longas horasenquanto sentia um oxigênio puro e gelado. Ele estava absorvido

em sonhos quando sentiu alguma coisa mexendo na ponta do seu

nariz. Quando abriu os olhos, lá estava ela. Era A Formiga:

[A Formiga] – Oi! Como vai você? Pelo que vejo as interrogações

fazem parte da sua vida ainda. Onde está sua amante?

[O Estranho] – Por que você me abandonou? Era minha única ami-

ga. Alguém a quem eu podia contar meus segredos.

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[A Formiga] – Você estava ficando muito chato e repetitivo. Eu es-

tava cheia de você. Imagina A Jornalista! Ela deve sofrer muito. E

você, mesmo amando Ela, a renega. Um dia, as pessoas cansam e

fogem de você, como eu fiz. Mas no fundo, bem lá no fundo, você

é legal. Posso te mostrar as cidades aqui perto? Você quer?

[O Estranho] – Está bem, vamos indo então.

O Estranho levantou, colocou seu All Star, pegou A Formiga e a

colocou dentro do plástico da carteira de cigarros. Eles entraramna Kombi e seguiram em direção a Santana do Livramento. Faltan-

do alguns quilômetros, a Kombi soltou o cabo do acelerador e o

Estranho teve que parar no acostamento. Desesperado e ansioso,

precisava fumar. Não tinha mais cigarros e provavelmente Ele esta-

va muito longe de onde tivesse. Sem ter o que pensar, abandonou a

Kombi e correu sem parar. No horizonte, avistou um posto de gaso-

lina. Chegou. A Formiga chacoalhava sem entender nada no bolsoda camisa xadrez. Chegou ao posto atormentado pela abstinência

de nicotina. Comprou 10 carteiras e mais duas garrafas de vodca.

Garrafa de plástico. Era o desespero. Não pensava onde estava. O

efeito das anfetaminas começou a passar e Ele sabia que viriam a

depressão e o choro descontrolado. Ele queria mais drogas. Nesse

momento, A Formiga disse:

[A Formiga] – Vamos! Não aguento mais essa fumaça que sai da tua

boca. Esse lugar é horrível. Quero ver a fronteira!

O Estranho, que parecia estar em choque, gritou:

[O Estranho] – Não! Não quero nada. Como vim parar aqui? Queromeu quarto, meu apartamento. Eu quero de volta a minha escuri-

dão e minha vida. Eu quero voltar.

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As pessoas no posto de gasolina o olhavam falando sozinho e fica-

ram assustadas.

O Estranho estava muito longe de Porto Alegre. Imediatamente,

teve um momento de lucidez, pediu informações ao balconista do

posto e se dirigiu à rodoviária mais próxima. Foi caminhando. Não

aguentava mais, mas chegou. Ele não queria saber onde estava.

Só queria a passagem para a capital. No ônibus, abriu a mochila e

começou a beber para apagar a insanidade que havia cometido. A

estrada era longa. A Formiga dormia.

30 de setembro de um ano qualquer

O apartamento estava quente e abafado quando O Estranho che-

gou. Deitou na cama com o colchão furado após relaxar e fumarum baseado. Observava as nuvens enquanto a chuva não caía. Es-

crevendo em folhas de ofício percebeu que as letras redondinhas

eram perda de tempo e que a análise geométrica não passava de

um livro sobre uma mesa de marfim. Ele descreveu a visão das

nuvens assim:

O Estranho – As nuvens eram cinza. Eu imaginei que alguém pode-

ria ver a mesma coisa que eu. A Jornalista!...

(Trovões caíam em Porto Alegre depois de uma tarde de sol. Ele

parecia assustado com as coisas que havia visto nas nuvens.)

...  As nuvens formam uma cadeia de ondas que derrubam várias

ilhas e os infinitos vales da minha visão. As construções destruídas.

Só havia uma águia e um falcão no céu. Monstros com caracterís-

ticas humanas fazem das nuvens um inferno na Terra. A coruja é

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média. O tigre tem olhos vermelhos. As aves são os superiores. Nada

existe além de corpos perambulantes sobre pouca terra. Nada mais é

como antes. Eu estou sobre as nuvens. Meu corpo está além, nunca

chego a ver mais que o céu azul e a escuridão. As cenas de felicidade

são muito distantes...

O Estranho não conseguia escrever mais sobre o que havia visto.

Apenas lembrou que a vida girava em círculos de nuvens e que a

cada volta havia um recomeço. A Jornalista para O Estranho per-

manecia solta entre os raios de sol escondidos. Tudo era mórbidoe sagaz através dos olhos dele. No chão um jornal molhado com a

seguinte manchete: “130 mil inscritos para o concurso federal...”,

ele não terminou de ler a frase, pisoteou a folha e despedaçou todo

jornal. Nada poderia ser maior do que as visões dele.

03 de outubro de um ano qualquer

 Já havia tempo que O Estranho não escrevia com outras mãos. Mas

agora Ele queria fazer diferente. Muitas coisas poderiam ter aconte-

cido com A Jornalista. Ele não tinha notícias dela há muito tempo.

Tentar o que poderia existir apenas na linha da imaginação. Ele es-

crevia em folhas de papel ainda. Tentava escrever códigos secretos

sem sucesso. Decidiu que queria ir a uma loja de roupas e comprar

uma calça bonita. Talvez um All Star novo.

06 de outubro de um ano qualquer

O Estranho pensava no valor de uma moeda de cinco centavos. Po-

deria comprar um beija-flor ou uma barra de chocolates? Há muito

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tempo o Estranho não comia um chocolate. Nada sobrava além das

coisas casuais. Nessa linha do tempo, do sofrimento pela Jornalista

Ele pensava sem rodeios. Ele pensava com disciplina na rejeição

completa. De tanto pensar O Estranho perdeu a criatividade. A ins-

piração não fluía mais. Há dias não escrevia algo que prestasse

ou algo que pudesse se orgulhar dele mesmo. O vicio da bebida o

fazia riscar papéis. Pensava na Jornalista e o que havia descoberto

sobre Ela. Mas o negativismo imperava na alma dele. Sua energia

apenas focalizava coisas ruins. Ele encontrava muitas coisas ne-

gativas alternando sentimentos. O Estranho trocava a estação dorádio compulsivamente enquanto colocava o All Star e acendia um

cigarro. Sentiu a garganta arder. Gripe. Pensou logo que era culpa

da Jornalista. Ele falava sozinho enquanto amarrava os cadarços.

[O Estranho] - Uma gota pinga sob o papel branco e a tinta azul es-

corre. Assisto atônito. Paro, respiro e então derramo minha vaidade

em palavras. Esparramo as letras sem ordem, não há sentido emnada. Que assim seja. Amar é mesmo difícil. Tudo vira gás carbônico.

O Estranho gostava de banho quente, mas não usava papel higi-

ênico. Nada importava naquele banho. Enquanto a água quente

escorria pelo seu nariz Ele sentia ânsia de vômito. Só tinha uma

mulher que fazia O Estranho perder a cabeça. Ela. Saiu do banho e

repentinamente agarrou o telefone. Ligou.

[A Jornalista] – Alô?

[O Estranho] – Vem e afasta a minha dor. Faz sangrar a minha alma,

expele esse sacrifício de não amar e ser amado. Configura meus an-

ticorpos. Toma uma dose de precaução e mistura com anfetamina.

Eu vou te fazer sofrer, está na minha essência, natureza efêmera.[A Jornalista] – Chora e queima teus desejos, costura a tua alma

porque eu não ordeno os meus alentos.

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[O Estranho] – Ah, meus sentimentos, quero ser negado à dor do

vazio. Rio sem rumo e sem outono.

[A Jornalista] – Vai e te ajoelha, desculpa-te pelo que não há perdão.

Toma a tua estrada, vire a primeira esquina. Toma fluoxetina. Inunda

tua roupa suja com porra nessa cadeira e acende outro cigarro.

A Formiga puxa a tomada do telefone.

07 de outubro de um ano qualquer

Ao voltar do mercadinho com maços de cigarro, O Estranho atirou-

-se na cama. Bebeu cerveja morna durante algum tempo. Não con-

seguia obrigar-se a nada. Mas O Estranho não suportava a ideia de

se ver diante do espelho. Estava francamente horrorizado com avida. Preferia deitar na companhia de uma cerveja.

10 de outubro de um ano qualquer

O interfone tocou. O Estranho relutou em sair da cama, pois achavaque seria o síndico com alguma correspondência. Estava enganado.

Era A Jornalista que tinha ido fazer uma breve visita depois de mui-

to tempo. Sem nada dizer Ela cumprimentou Ele rapidamente com

um breve beijo, virou as costas e caminhou em direção ao quarto.

A Jornalista não transpareceu em nenhum momento sequer que

estaria contrariada pelo fato de que não iria vê-lo novamente. Os

passos curtos em direção ao quarto se fizeram aumentar, e em se-

gundos e sem olhar para trás deitou na cama. Ele, trêmulo diante da

situação, caminhou até Ela. Sem dizer uma só palavra eles tiraram

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as roupas. Sem dizer uma palavra se tocaram, pedaço por pedaço

de pele exposta. Sem dizer uma palavra beijaram cada poro da pele

do outro. Cada gota de suor foi bebida. Cada curva do corpo Dela

foi percorrida. Sem dizer uma palavra. Até o amanhecer do outro

dia. Ela foi embora sem nada dizer. Em estado de transe. Ele ador-

meceu. Sem anfetaminas. Sem pílulas. Sem álcool. Somente Ele em

seus sonhos. Vivo.

11 de outubro de um ano qualquer

Acordou e correu em direção à sala para ver se Ela ainda estava lá.

Ele estava num mundo novo. O cachorro vira-lata que passava na

rua parecia aos olhos dele bem tratado. Mal conseguia acreditar

nos fantasmas que o assombravam. Ele estava assustado entre a

realidade e a loucura. Naquela tarde chuvosa tomou um banho dechuva na própria esquina do apartamento. Segurava uma garrafa

de vodca já pela metade. Os desejos mais secretos de morte não o

alcançavam mais. Queria de novo um atestado de afastamento da

alma. Com a parada da chuva retornou ao apartamento. Subiu as

escadas correndo a passos largos pra não ter que ouvir alucinações.

Quando chegou à porta disse:

[O Estranho] – O mundo sempre foi mundo. Que lugar é este que

habitamos? Quem são essas pessoas?

Ele olhou as nuvens ainda carregadas lá em cima, ouviu Bach e

mergulhou um biscoito caseiro em uma xícara de café preto sem

açúcar. Apagou a luz para não enxergar os móveis. Deu um sorri-so. Sentia satisfação por sentir algo novo. A falta de dias e noites

chuvosas afetava seu humor e o comportamento. Não gostava de

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dias repletos de sol e alegria. O Estranho permanecia fiel a vertigens

intensas e a buracos sombrios na alma. Era morador da escuridão

por excelência.

19 de outubro de um ano qualquer

O espelho estava sujo, o banheiro cheio de roupas pelo chão. O

Estranho viu a imagem refletida e começou a murmurar:

[O Estranho] – Ontem mesmo, enquanto embriões desciam ralo

abaixo e a água lentamente caía sob minha nuca, pensei: eu es-

tou feliz. Sim, estou feliz. Oba, um raro momento de satisfação.

Mas foi breve, tão breve que apostaria o pouco que tenho em afir-

mar que aqueles pequenos seres vivos não chegaram a percorrer

a primeira curva do encanamento, sem que essa sensação desa-parecesse por completo. Mas hoje chove. Chove enquanto o alívio

rompe a barreira da alegria e transborda sensações gratificantes que

poderiam aniquilar até mesmo o leopardo que ronda meu quarto.

Se eu fosse um Borges, seria um tigre. Seria um tigre na bibliote-

ca. Mas não. Um leopardo cinza como o dia de hoje. Cinza eu

também. Cinzas carregadas do meu cigarro espalham-se pelo ar.

O Estranho tinha um olhar vago através da janela do banheiro.

Ele não percebia a vida lá fora mais. Ele olhava para os lados e só

percebia as grades altas que cercavam outros lares. De repente o

olhar dele para em cacos de vidros espalhados pela rua, em frente

à janela, próximo ao meio-fio. Estilhaços de vidro, um acidente.

Nem a própria rua pertencia a Ele mais. Ele não pertencia a nada e

nada pertencia a ele. Sentiu o olhar afundar numa placa que dizia:FOME SE ACABA COM AGRICULTURA FORTE! Fechou a janela e

voltou para a sala ler Sartre. A Formiga saltou de dentro da primeira

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página. As capas dos livros de Sartre eram boas para se tirar uma

soneca. Ela preferia James Joyce, mas O Estranho não lera Joyce.

Ele gostava de Oscar Wilde.

22 de outubro de um ano qualquer

O apartamento era próprio, cheio de poeira, sujo, muito sujo, como

uma fotografia em decomposição. Por muitas vezes quis viajar, masdesistia toda vez que pensava na loucura que cometera roubando

uma Kombi e indo até a fronteira fora de si. Berlim, Budapeste,

Paris, Roma, Viena (sim, a Viena romântica dos suicidas) eram as

cidades que O Estranho gostaria de conhecer.

25 de outubro de um ano qualquer

O fracasso da vida dele até agora era tanto na poesia como na vida.

Enquanto ele falhava na poesia errava na vida. Estava levando mui-

to tempo para Ele resolver a situação com A Jornalista, se é que

havia. Ela desaparecia deixando marcas que com o tempo se trans-

formavam em algo totalmente diferente. Amanhecia rápido, assimcomo rápido foram os 26 anos de sua vida. 26 anos de vida normal.

26 anos lendo jornal. 26 anos esperando você. A Formiga cantarola-

va uma música antiga do Erasmo Carlos.

Excluindo as tristezas, O Estranho preferia as coisas mais lentas,

arrastadas. Ele gostava das coisas que deixavam marcas, embora

soubesse que pra fazer a cicatriz não era necessário tempo, mas sim

intensidade. O corte que A Jornalista havia feito no Estranho era

profundo, rasgou a pele dele, esquartejou a alma. Parou de refletir e

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acendeu um cigarro, destampou a cerveja, sentou sozinho na sala,

ligou o rádio e concluiu que a sua vida andava meio parada nas

últimas semanas. Sorveu um grande gole, seguido de uma tragada

profunda, levantou do sofá e caminhou até a cozinha, pensava nela

enquanto via as janelas acesas no prédio do outro lado da rua. De

repente sentiu muita saudade da presença da Jornalista. Ele queria

transar com Ela, sentia desejo enquanto se masturbava em pé em

frente à pia. Um jorro longo e quente sobre os pratos sujos de pizza.

Seus olhos fartaram-se de lágrimas. Ele era uma mentira.

26 de outubro de um ano qualquer

A Formiga acorda O Estranho sussurrando ao seu ouvido que o

jantar já estava pronto.

[O Estranho] – Minha cabeça lateja de dor, você? Aqui? Por que

tenho que levantar e jantar?

[A Formiga] – Tenho saudade da tua companhia, sempre tão dis-

tante e chapado. Vamos para a mesa. Leve seu inseparável copo de

plástico azul. Tem sopa de feijão, acertei no sal, ficou muito boa.

O Estranho levanta e senta para comer de mau humor.

[A Formiga] – Ficou boa, né?

[O Estranho] – Aham.

Rapidamente o silêncio se instalou na cozinha. Depois de comer

bastante, O Estranho questiona.

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[O Estranho] – Gostaria de saber como é na casa dela?

[A Formiga] – Na casa de quem?

[O Estranho] – Como de quem? Da Jornalista, porra! Onde você

andava que me deixou sozinho de novo? Achou que ia voltar e con-

tinuar tudo bem entre nós? Está muito enganada.

O Estranho empurrou o prato, e saiu sem nada dizer. Trancou-se no

quarto, enquanto A Formiga, perplexa, dizia sozinha.

[A Formiga] – Oh! Coitadinho dele. Acho que nunca vai superar

esse amor pela Jornalista. Aposto que é uma vagabunda e nem se

preocupa com Ele. Quando quer transar e não tem ninguém, Ela

deve bater na porta dele. E Ele sem nada dizer a recebe. Que bocó.

O telefone começa a tocar. Correndo e tropeçando na sujeira docorredor, Ele atende.

[O Estranho] – Alô! Sim, quem é?

Uma ligação automática deseja um bom dia, e agradece por Ele ser

assinante do jornal.

[Vendedor] – Bom dia! Com quem eu falo?

[O Estranho] – Vai se catar, sabe que horas são?

[Vendedor] – Sim, Senhor! São 11h30min. Posso realizar uma pes-

quisa com o Senhor, se não se importar?

[O Estranho] – Isso são horas de me acordar, já não basta A Formiga me

chamando pra almoçar, agora vem você pra me acordar de novo. Vai se f...

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[Vendedor] – O Senhor disse que uma formiga falou com o Senhor?

O Senhor está passando bem? Posso ajudá-lo?

O Estranho enfurecido desliga o telefone. As ideologias, espaços,

necessidades do mundo moderno não eram compatíveis com o

modo de vida do Estranho. Sem conseguir dormir novamente, abre

a gaveta e toma mais alguns comprimidos calmantes. Pega o livro

de Sartre para ler e pegar no sono mais rápido. Nesse momento

notou que alguém o observava. Era A Formiga que vigiava as ações

do Estranho.

[A Formiga] – Meu Deus, o que é isso? Uma revista pornô dentro do

livro de filosofia? Você está se escondendo de quem, de você mesmo?

[O Estranho] – Eu sinto como se fosse o Cara Estranho da música

do Los Hermanos. Pareço não achar lugar pra mim neste corpo e

nem neste mundo. Tropeço a cada quarteirão e exibo apenas meucoração. Não divido nada com ninguém. Fico pedindo aprovação e

nem sei aonde ir. Acho que o Marcelo Camelo fez essa música pra

mim. Eu não percebo, deixo o ódio me esconder. E parece simples

quando nos escondemos, quando apagamos os sentimentos, fingi-

mos não acreditar. Eu me fecho para o que há de vir. Eu perco A

 Jornalista a cada fechar de olhos.

O Estranho adormeceu escutando a música no replay.

27 de outubro de um ano qualquer

A idade do Estranho não representava. Às vezes parecia uma crian-

ça quando ficava olhando, atônito, o vai e vem do limpador do

pára-brisa dos carros que passavam quando chovia. Agora podia se-

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gurar um copo de vinho e segurar uma cigarrilha na outra. Mas Ele

não pensava que era homem e o amanhã não existia. Na realidade

Ele não sabia em que parte da vida se encontrava. De repente um

barulho na rua o abstrai dos pensamentos. Alguém havia engatado

a marcha ré e atropelado um idoso na esquina. Ele não sentia nada

mais. Estava absorto diante da situação e paralisado na janela.

[A Formiga] – O que aconteceu?

[O Estranho] – Alguém deu uma ré desgovernada e atropelou umvelhinho.

[A Formiga] – Credo! O que fazemos agora?

[O Estranho] – Porra nenhuma. Quem quer salvar o mundo agora?

Não posso voltar no tempo.

27 de outubro de um ano qualquer

Ainda atormentado pelo fato do dia anterior, O Estranho fechou a

janela para não ver nada além da escuridão. Pensou em um carro

desgovernado, imaginou outra cena. O que faria se fosse Ele atra-vessando a rua. Bateu todas as portas do apartamento. Deu meia

volta no corredor, colocou a mão na maçaneta e abriu a porta. En-

quanto os olhos percorriam as escadas o cérebro dele estava repleto

de fotos preto e branco. Esse dia tornou-se íntimo e foi um segredo.

O Estranhou fechou a porta e tentou subir no telhado.

Ele via uma parte da lua muito fina. Nessa hora queria uma

champanha e uma taça. Queria brindar sozinho a vitória de estar

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só. Por um instante decidiu que queria morar no telhado, afinal

de contas a vista era privilegiada. Estava formando o rosto de

anjo, que enfeitiçado pela lua hesitava em sair. Olhou para a lua

e disse:

[O Estranho] – Sabe, Deus, que sempre acreditei na teoria de

que todo o mal realizado nos volta de alguma maneira. Estaria

Deus me castigando por roubar frutas durante parte de minha

infância? Ou seria por todas as vezes que menti a minha mãe

que já havia tomado banho? Nessa época ela começou a “com-prar” meus banhos com chocolate. Oh, glorioso Senhor, estás

a me punir por ter vendido injustamente meus banhos? Sendo

então merecedor de tal punição, decidido, resolvi pagar minha

penitência de uma vez.

Passavam-se os anos e Ele estava a desfrutar da solidão. Comia

sempre sozinho. Fumava sozinho. Escutava música sozinho. Eletinha um coração elástico.

01 de novembro de um ano qualquer

Acontecia com frequência. Ele acordava de manhã, às vezes toma-

va banho, vestia uma roupa e acendia um cigarro na janela para

questionar as pessoas que sempre passavam apressadas. Colocava

o Ok Computer do Radiohead e seguia olhando. Tinha uma vontade

de voltar no tempo, mas não sabia em qual época poderia se encai-

xar. Sabia que apesar dos pesares era um cara de sorte. Não queria

mais morrer. Mesmo reclamando muitas vezes da vida, sabia queera especial. A Jornalista deveria saber.

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02 de novembro de um ano qualquer

Mais um domingo acabava, morria alguém dentro dele. Cada persona-

gem, fantasia, sonho. Sempre nascia um novo ser. Assim Ele também

ia vivendo, incubando células, neurônios, ideias, desejos, pensamen-

tos. A cada semana tentava buscar uma forma de sentir segurança, e

ao mesmo tempo, de se atirar de paraquedas. Era a eterna luta de esta-

belecer um mundo sem fronteiras. Lembrou de quando viajava muito.

Em um único dia podia estar almoçando em São Paulo, comprando

óculos escuros em Florianópolis e jantando em Porto Alegre. A decisãode estar seguro no apartamento foi há muitos anos. Precisou viver as

duas alternativas para escolher ficar recluso.

04 de novembro de um ano qualquer

Às 4 da manhã acordou e foi para a mesa. O Estranho explana

um insano efeito do silêncio numa relação interpessoal. Tinham

constantes espasmos cerebrais e não percebia a mistura de álcool

e medicamentos controlados. Várias pessoas do mundinho artístico

de Porto Alegre faziam esse tipo de mistura. As consequências eram

avassaladoras. Sempre após o consumo vinha à depressão. Para se

sentir melhor, mais drogas. Muitas. Porto Alegre é a última lápide

freudiana no cemitério dos insensatos.

[O Estranho] – Sabe Deus que tentei da melhor maneira possível

aprender os modos desse mundo, até mesmo tive uma vaga ideia de

que podíamos ser maravilhosos; mas, depois de tudo o que aconte-

ceu, deixou de ser fácil ter ideias. O que quero dizer é... Que porrade mundo é este?

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05 de novembro de um ano qualquer

A ferida ardia no peito do Estranho, o ar dele parecia pó, rastros

de uma Via-Láctea, era uma poeira branca esfarelada na penumbra

do apartamento. Queria voar mais alto que as asas de uma águia,

mas Ele tinha medo do tombo e das cicatrizes. O Estranho por um

instante queria sentir o gosto de Deus, queria sentir-se bem. Nesta

noite sonhou com estradas sinuosas, verdades latentes. Acordou de

sobressalto com a televisão enferrujada que ligara sozinha. Tocava

uma música melancólica de um filme antigo. Foi tomar um banho,não sabia que horas eram. Pensou que A Jornalista deveria ser proi-

bida de se manifestar em qualquer tipo de mídia. Ele estava com

raiva dela e não sabia o porquê. A Jornalista vivia rodeada de gente

hipócrita e estúpida. Enrolado numa toalha suja e pingando pelo

apartamento, Ele falava às paredes.

[O Estranho] – Um bando de prostitutas sociais. Mulheres e ho-mens vazios, sem conteúdo, sem história. Rotulados pela sociedade

medíocre que os define como normais, felizes, modelos a serem

seguidos. Mas são tão estúpidos que sequer têm consciência de

que já foram engolidos até o cadarço de seus Nikes ou o último

fio de seus cabelos lavados pelo OX. Tamanha é sua ignorância

que me obrigo a concordar com Very Good Little ao imaginar que

talvez apenas os imbecis estejam seguros neste mundo, andando

a esmo com a manada sem pensar em coisa alguma. Portanto, a

única solução é torcer pra que a máquina do Brilho Eterno de Uma

Mente Sem Lembranças possa existir. Assim eu poderia apagar não

somente esta ou aquela pessoa, mas sim minha vida inteira, o que

certamente me tornaria um adulto retardado e feliz. Mas enquanto

isso não acontece, deixa que arda!

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06 de novembro de um ano qualquer

O seis digital do relógio perdeu quatro barras, ganhou uma e rapi-

damente se transformou num sete. Sete de 6:57 da manhã. Sete de

caminhar. Sete de matar sentimentos. Sete de fazer nascerem novos

conceitos. Sete de descobertas. Sete de decepção. Sete de choro.

Sete deitado, oito virado, nove fudido. O Estranho estava com sono.

Ele levantou, vestiu-se e saiu a caminhar pela Avenida Protásio Al-

ves. Era apenas a reta na frente. Era Ele, Ele mesmo e a estrada.

Deu os primeiros passos, conversou rapidamente com Deus, olhoupara trás e viu um carro desaparecendo no despertar daquela ma-

nhã. Ele e a estrada novamente. No horizonte, ônibus amontoados,

carros engarrafados, era um transito caótico àquela hora. Queria

pensar numa brincadeira para alegrar a manhã. Não conseguiu.

Pelo contrário, se aborrecia cada vez mais quando tentava ficar

alegre. Quantos humanos desgraçados estariam dentro daqueles

ônibus mais desgraçados ainda, com motoristas mais estressadosainda? O Estranho havia planejado, antes mesmo que percorresse

os primeiros quilômetros, que o tumor sentimental chamado A Jorna-

lista ganharia peso a cada passo, a cada compasso do coração. A alma

dele corroía a tolerância da absolvição do sofrimento. Lembrou de Tor-

res, de quando acordou aquela manhã e suas lembranças remetiam a

Ela. Ele lembrou também do mar que ia moldando as pedras no vai evem incessante de suas águas. Enquanto caminhava pela Protásio em

direção à Osvaldo Aranha, destino Lancheria do Parque, imaginou o

cérebro desfigurado pela úlcera amorosa. Dizia sozinho:

[O Estranho] – E quanto mais caminho, mais caminho surge. Mais

doem meus tendões. Mais apertados parecem ficar meus tênis e

também meu coração.

A testa do Estranho franzia quando os raios de sol acertavam mili-

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metricamente os olhos castanho-claros, fazendo com que gotas de

suor escorressem face abaixo, um gosto amargo na boca. O Estra-

nho gostava de sátira, de gozação, de sacanagem divina. Poderia

naquela manhã caminhar 48 km antes mesmo de alcançar qualquer

graça. Sim, porque não se pode enganar Jesus, uma vez que nada

foge do conhecimento do cara lá de cima. Caminhava visando res-

gatar o diálogo com Ele mesmo. Realizava uma autopunição antes

mesmo de tocar num só fio de cabelo suado.

[O Estranho] – E o que o Senhor me devolve? Qual a sua retribui-ção? Um tiro de 12 no peito, que estraçalha qualquer pretensão de

viver uma manhã de domingo a dois. Um tiro de 12 que derruba e

faz com que o mundo inteiro fique de cabeça pra baixo.

Rapidamente todos os pecados cometidos jorravam para fora de

seu corpo e, na velocidade de um raio, acabou virando uma sombra

dele mesmo. Não havia mais sangue na sombra, dor nos joelhos,21 gramas de alma

[O Estranho] – Meu esqueleto cefálico está esfarelado. Arrasto-me

por dezenas de mil metros em busca de meu eu perdido. Em busca

de um gosto diferente daquele que por insistência instalou-se em

meu hálito, em minha boca. Jornalista, puta desgraçada que eu

amo! Ela engoliu com os dentes afiados meu órgão sagrado. Engo-

liu-me com sua voz rouca, mastigou meu núcleo, rasgou minha car-

ne com seus caninos, moeu o pouco que restou de mim com seus

molares e cuspiu fora como se bagaço fosse. E o que eu posso dizer

sobre isso: thank you for making me see there is life in me! Desde

então luto a cada despertar com todas as forças que tenho. Luto por

afago, aconchego e por gostar de quem gosta de mim e olha, tenhoempilhado derrotas, perdido batalhas em cima de batalhas. Andei

perdendo tanto que até pedir aos santos resolvi.

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E O Estranho falava alto pelas ruas, as pessoas que passavam por

Ele ficavam assustadas, não era nada agradável ver uma figura que

recém tinha caído da cama, roupas amassadas, gritando pela rua

frases desconexas. Delírios enfurecidos.

09 de novembro de um ano qualquer

Ele disca os números dela.

[A Jornalista] – Alô?

[O Estranho] – Eu sei o que você está pensando, não importa o que

você diga. Só mais alguns minutos, eu já senti tudo mesmo, não

vou me convencer a te esquecer.

[A Jornalista] – Seu egoísmo é maior, não precisa justificar. Só que-

ro um pouco menos de você.

[O Estranho] – Acha que os médicos sabem alguma coisa? Já estive

neles. Fizeram exames de sangue, urina e raio X. Não conseguem

achar a loucura. Não aparece nas radiografias.

[A Jornalista] – E a psiquiatria? Eles entendem disso.

[O Estranho] – São fáceis de enganar. Já cansei de tapeá-los.

[A Jornalista] – Como?

[O Estranho] – Ajo normalmente. Eles me mostram borrões de tin-

ta. Aí perguntam se tenho namorada. Eu digo sim.

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A Jornalista desligou o telefone.

10 de novembro de um ano qualquer

[O Estranho] – Meu corpo queima. Não sei se são sentimentos

ou se coloquei pouco gelo no uísque. E hoje até que a vida se

parece como um copo de uísque. Mais um gelinho pra salvar o

uisquinho. Mais um uisquinho pra salvar o gelinho... E de geli-nho e uisquinho eu vou indo. Para onde? Nem sei. E também acho

que para onde nem é tão fundamental. O importante é estar indo.

11 de novembro de um ano qualquer

[O Estranho] – Fuck, eu nunca me senti culpado pelo que passou.Será autodefesa? Ou autoestima superelevada? Ou autossuficiência?

Bem, que seja qualquer um. Que se foda tudo. Que tudo se foda.

Porque eu não vou me foder pelo outros. Essa parada de ser herói

definitivamente não é pra mim. E agora me ocorre que A Formiga

diz que eu faço um mix porrada de tudo. Eu faço. Eu digo. Eu a en-

sinei a gostar de Nietzsche. Não é demais? Ensinar alguém a gostar

de Nietzsche (alguém não, uma Formiga) e ao que tudo indica ela

vai me ensinar a gostar de Jesus. Amén com ene. Amém com eme.

Eme de merda. Ene de nada. Vou pensar em nada.

13 de novembro de um ano qualquer

Tarde de calor, típica de verão em Porto Alegre. 34o. As ruas se

exibem molhadas pra solidão das calçadas. Solidão que O Estranho

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quebra a passos lentos e pensamentos intensos. Alcança a Osvaldo

e contempla os coqueiros que se perdem nas nuvens carregadas do

céu. Seus pensamentos atravessavam a freeway e param em Tor-

res, muitas lembranças. Era um Estranho no mundo. À medida que

encurtam os passos, O Estranho começa a conversar em voz alta

consigo mesmo:

[O Estranho] – Ando falando pouco com Deus por andar falando

muito comigo mesmo? Não que eu fosse Deus ou algo qualquer

que pareça, mas se Deus está em toda parte, ele também está comi-go agora, ao falar comigo mesmo. Acho que falo, sim, com Deus.

Então eu acho que o sentimento que eu tenho em dialogar comigo

mesmo é exatamente o mesmo que tenho ao explanar para Deus.

Tudo se encaixa de forma curiosa.

O Estranho alongava os passos para atravessar a rua e pedir um

cigarro de canela a uma mulher ruiva sentada num banco da Re-denção. Acendeu, puxou, não prendeu e soltou. Ele quer atravessar

a avenida. Sinal vermelho. Para um ônibus. Ele caminha. Um cego

esquizofrênico, sem mover os pés, balança seu corpo para a frente e

para trás num vai e vem incessante. O cego vocifera palavras cruas

no calor, fala com alguém que nem mesmo ele pode ver:

[O Cego] – Sexta-feira é atropelamento.

O Estranho desiste de atravessar a rua e entra no Parque. Passeia

solitário entre os malabaristas, palhaços e mímicos que ganham a

vida de trocado em trocado. Ele puxa o bloquinho de anotações,

senta num banco em frente ao chafariz, dá mais uma tragada e

começa a rascunhar os últimos minutos vividos.

[O Mendigo] – É o senhor que está fumando um cigarro de canela?

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[O Estranho] – Sim, eu mesmo.

[O Mendigo] – Tem um sobrando?

[O Estranho] – Pô, não tenho.

[O Mendigo] – Eu te compro, tenho aqui um real.

[O Estranho] – Não tenho mesmo, ganhei de uma mulher ruiva de

outro banco.

O Mendigo se vira e parte. O Estranho volta a escrever, risca duas

palavras e acaba olhando pro Mendigo indo embora. O Estranho dá

um grito para que volte. O Mendigo obedece.

[O Estranho] – Eu divido o cigarro contigo, pode ficar com o que restou.

[O Mendigo] – Dizem que é bom pra gripe, né?

[O Estranho] – Cara, eu acho que isso só pode piorar a sua gripe.

Mas com certeza pode te trazer um bem danado pra alma.

O Estranho volta pro apartamento caminhando, eram dias leves.

14 de novembro de um ano qualquer

Era quase uma volta à escrita, O Estranho rascunhou isso no cader-

no velho que sempre ficava embaixo da cama...

“ Porque a vida você não pode me tirar, nisso quem manda sou eu.

 Ninguém tem esse direito, exceto eu mesmo. O direito de decidir

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quando morrer. Estou velho pra me entregar e novo demais pra mor-

rer. Então leve minha alma e o que mais julgares correto. Deixe-me

como um zumbi. Leve meu lóbulo central. Quem sabe assim serei

feliz. Serei visto como uma anomalia humana digna de piedade. E

recolham as armas.”

[O Estranho] – Será que falhei na poesia? Será que errei na vida?

Deus me cobre que eu pago! Essa Jornalista me fez esquecer dos

meus sonhos. Nem escrever eu consigo mais. Fico atônito, olhando

para esse caderno velho com a Bic na mão. Não consigo escreveruma folha. A sombra da minha mão na sombra da vida.

20 de novembro de um ano qualquer

Ele já não sabia mais onde estava A Jornalista.

[O Estranho] – Sabe, vejo o mundo com olhos crus, e isso é

cruel. Já me disseram que é um dom. Trocaria pela ignorância

e falta de bom senso. Deve ser com duas pitadas de sabedoria

e oito colheres cheias de discernimento. Tô começando a odiar

essa palavra. DISCERNIMENTO. Estou começando a odiar esta

palavra. Nasci no século errado. Viena. Ou será que todas as

gerações futuras também serão pioneiras no que diz respeito à

mudança cultural?

A Formiga, entretida com restos de açúcar em uma xícara de café,

ouvia solidariamente seus devaneios. Seria bem mais simples se Ele

tivesse ensinado Wittgenstein.

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21 de novembro de um ano qualquer

Alguns dias e o ano qualquer estavam no fim. No final das contas

O Estranho estava quase se esquecendo da Jornalista. Ele andava

cínico nesses dias.

[O Estranho] – O que eu poderia contar hoje? Muito quente em

Forno Alegre, apelido nada carinhoso dado à cidade nos dias quen-

tes de verão. Não tenho mais certeza se amo aquela louca que não

aparece mais. Perdi tudo, até meu cansaço. Maldito dia. Malditasemana. Levaram-me tudo. Nem sonhar eu consigo mais. Acho

mesmo que Ela roubou meus sonhos. Acho que Ela quer que eu me

foda. Acho que estou aceitando essa ideia. Nunca pensei que ser

feliz fosse tão simples assim. Mas acho que A fiz um personagem e

confundi com a vida real. Onde anda minha fluoxetina?

Nessa hora, A Formiga sai de dentro do armário da cozinha e grita:

[A Formiga] – Ultimamente você anda tão fodido que só escreve

merdas. Coisas que não interessam a ninguém. O ponto positivo é

que eu tentei de todas as formas ser tua amiga. Mas parece que não

reconheceu meu apelo. Nem escutou a minha voz.

[O Estranho] – Sou mudo pra Ela. Chega de falar de mim, vamos

falar da vida.

[A Formiga] – Oh my God. Pirou de vez.

[O Estranho] – É da desgraça que nascem os verdadeiros homens.

[A Formiga] – Há quem diga que a paz está diretamente relacionada

ao tamanho de nossa ambição. Em outras palavras, seja um medío-

cre e a vida sorrirá pra você. Acontece que estou cansada de agrade-

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cer pela tua saúde, alimentação, moradia, escolaridade e um pouco

de diversão. Não ando encontrando mais aquele bem-estar pleno ao

realizar as coisas boas e simples da vida nesse apartamento fecha-

do. Suco gelado. Sol no domingo. Abraço afetuoso. Como ontem,

quando levei uma folha nas costas. Aconteceu isso. Mas para isso

acontecer é preciso senti-la. Tocá-la. Estar descalça na vida torna-se

então essencial. E ontem, em vez de sentir essa troca de energia, eu

pisei numa porção de espinhos. É de mágica que dobro a vida em flor.

[O Estranho] – Esta puta que insiste em me derrubar. Mas aí

vai um recado: pra que eu não levante mais, só cortando mi-nhas duas pernas. Porque com uma só eu atravesso o norte da

Espanha se preciso for. E Deus sabe bem o que estou falando. A

gente vai andando e perdendo coisas ao longo da vida. Pesso-

as, lugares, momentos. Tudo vai ficando para trás. E isso tudo

vai te deixando mais sozinho. Quem sabe numericamente não.

Mas o sentimento de perda é inevitável. E junto com o senti-

mento de perda vem esse vazio que, em vão, tento descrever.[A Formiga] – Você sempre quer mais angústia. Vou apagar a luz.

25 de dezembro de um ano qualquer

O Estranho está ausente de si mesmo. Ele ficou o mês todo olhando

pela janela e não via nada. Nem rua. Nem paisagem. Nem pessoas.

Não sentia mais ar. Não sentia chuva ou frio, muito menos calor.

O apartamento Ele havia arrumado, talvez arrumado esperando a

morte chegar. Era isso que Ele estava fazendo. O olhar estava para-

do, mas Ele passou o mês de dezembro sem substâncias químicas.

Sem álcool. Só fumava o Marlboro Vermelho. O Estranho decidiulevemente e bem devagar arrumar a mochila para ir a Torres na

virada do ano. Ia regressar, ia voltar, reviver, compartilhar o início

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de uma máscara a outra

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daquele ano em que havia descoberto o amor. A Jornalista era o

amor da vida dele. Ele passou o mês refletindo sobre a vida, sobre

o que Ele queria da vida. Mas o que Ele descobriu foi o que não

queria da vida. Não queria mais viver sem a A Jornalista.

28 de dezembro de um ano qualquer

Lá foi O Estranho. Pegou uma mochila e mais algum dinheiro e cami-nhou mudo até a Protásio Alves para pegar o ônibus até a rodoviária

e de lá partir para Torres. Ele caminhava mudo nos pensamentos tam-

bém. Ele achava que tinha um plano para a vida que começava nessa

virada. Se Ela não estivesse lá Ele tinha um plano. Esse plano já havia

sido pensando durante todo o mês de dezembro.

31 de dezembro de um ano qualquer (23:45)

Ele caminhava muito rápido em todas as direções, estava visivelmente

transtornado sem a presença dela. Ele estava bêbado, começou a ter

alucinações. Batia nas pessoas e começava a perguntar dela.

[O Estranho] – Cadê Ela, vocês viram Ela? Vocês estão escondendo

Ela aqui na praia? Onde Ela está? Digam-me, seus canalhas, vamos!

As pessoas viravam as costas pro Estranho. Ele ia diretamente a

outro bolinho de gente e fazia a mesma coisa.

[O Estranho] – Me digam onde Ela está?

Uma pessoa perguntou.

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pr isc i la miraz de f re i tas grecco

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[Uma Pessoa] – Ela quem? Quem você está procurando?

[O Estranho] – Ela é Ela, A Jornalista, eu não vivo sem Ela. É Ela.

Ele foi baixando a voz e virou as costas. Saiu caminhando sozinho

com a quinta garrafa de champanha na mão. Bebia no bico mesmo.

Sentou na areia de frente pro mar. A noite estava linda. A lua refle-

tia no mar a prata da escuridão. O Estranho abriu a mochila, pegou

um saco preto que estava bem amarrado e desfez o nó. Puxou um

revólver que era do pai dele. Desejou nessa hora que todas as pes-soas fossem felizes no mundo, inclusive Ela. Bebeu mais um gole.

Fez mais um desejo:

[O Estranho] – Espero te encontrar no outro mundo. Nesse mundo

não aguento mais viver.

Ele ergueu a arma até a cabeça. Nessa hora uma onda estouroubem próxima da areia, e junto com a onda o som da bala disparada

por Ele se misturou ao barulho do mar.

O estranho atirou na alma. No físico. No metafísico. Enquanto o

corpo semimorto caía e se acomodava na areia, um monte de gen-

te gritava “feliz ano novo”. A virada daquele ano qualquer estava

acontecendo. Fogos de artifício, foguetes. A última cena do Estra-

nho em vida foi com muitas luzes caindo sobre seus olhos. Eram

luzes douradas. Ele estava entre a vida e a morte ainda. Quando as

luzes dos fogos de artifício cessaram fechou os olhos para dentro

de si mesmo e para o mundo infeliz em que vivia. Mais adiante

um grupo de gurias gritava “Feliz Ano Novo, Adeus ano velho”,

frases prontas de viradas de ano, e lá estava Ela. A Jornalista. Seuscabelos presos desciam por suas costas nuas. Ela vestia um lindo

vestido branco sobre os pés descalços. Virou-se repentinamente e

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de uma máscara a outra

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pensou ter visto alguém. Passou a mão sobre a barriga repentina-

mente saliente e suspirou. Talvez fosse. Quem sabe?

Uma onda mais forte cobriu O Estranho. A maré estava subindo.

As correntes levariam seu corpo para Laguna. A Formiga, antenas

baixas, acompanharia Ele em sua última viagem pela vida. Quem

era ela para desafiar aquele oceano de contradições?

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