o estranho mundo das memórias de lázaro

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Sergio Alves Peixoto O estranho mundo das Memórias de Lázaro In: Cahiers du monde hispanique et luso-brésilien, n°30, 1978. Numéro consacré au Brésil. pp. 39-52. Citer ce document / Cite this document : Alves Peixoto Sergio. O estranho mundo das Memórias de Lázaro. In: Cahiers du monde hispanique et luso-brésilien, n°30, 1978. Numéro consacré au Brésil. pp. 39-52. doi : 10.3406/carav.1978.2133 http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/carav_0008-0152_1978_num_30_1_2133

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Memórias de lázaroadonias filhoartigocritica literaria

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  • Sergio Alves Peixoto

    O estranho mundo das Memrias de LzaroIn: Cahiers du monde hispanique et luso-brsilien, n30, 1978. Numro consacr au Brsil. pp. 39-52.

    Citer ce document / Cite this document :

    Alves Peixoto Sergio. O estranho mundo das Memrias de Lzaro. In: Cahiers du monde hispanique et luso-brsilien, n30,1978. Numro consacr au Brsil. pp. 39-52.

    doi : 10.3406/carav.1978.2133

    http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/carav_0008-0152_1978_num_30_1_2133

  • O estranho mundo

    das Memorias de Lzaro

    PAR

    Sergio ALVES PEIXOTO Universidade Federal de Rio de Janeiro

    ... ne remplace point cependant le orai par l'impossible, et ce que tu inventes soit bien dit; on ne te pardonne de mettre ton imagination la place de la vrit, que sous la clause expresse d'orner et d'blouir. On n'a jamais le droit de mal dire, quand on peut dire tout ce qu'on veu...

    Sade. Ide sur les romans.

    Memrias de Lzaro um romance tecnicamente complexo, como o a grande maioria dos romances de nosso sculo. Os recursos narrativos de que dispe o escritor hoje em dia, recursos esses desenvolvidos a partir, principalmente, do surgimento do cinema (*) deram ao romance atual feies totalmente novas. Entretanto, todo o aparato tcnico de que se utiliza Adonias Filho para

    (1) No verdade que a literatura tenha-se apoderado de tcnicas narrativas pretensamente inventadas pela Stima Arte. Romance e cinema desenvolveram-se paralelamente, e muitas das tcnicas ditas cinematogrficas ja tinham sido utilizadas, embora no sistematicamente, pela novelstica tradicional. Pierre Daix, no seu livro Critica nova e arte moderna, Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1971, elucida bem o problema, quando diz pagina 7 :

    significativo que a exploso do romance tenha coincidido com a exploso de uma arte diversa e proteiforme, que tambm descobriu, de sbito, e especificidade da sua linguagem : o cinema. E devemos perguntar se no haver uma ligao entre os dois fenmenos. Se no ter havido no mesmo momento, nessas duas artes da narrao, rompimento com a imitao primria da realidade, descobrimento do papel da linguagem, da responsabilidade do criador quanto escolha de sua linguagem.

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    criar seu romance no faz com que o contedo narrativo fique em um segundo plano. Memrias de Lzaro no existe pura e simplesmente para atestar os virtuosismos artesanais de seu autor; no um jogo gratuito. Seria impossvel, porm, manter-se uma sequncia cronolgica nica, sem retornos e avanos no tempo, quando a memria o foco gerador do romance. Basicamente construdo atravs de monlogos interiores diretos de um narrador que, como o prprio ttulo evidencia, se utiliza da memria para reconstituir sua trgica existncia, a narrativa em Memorias de Lzaro no poderia ser linear e simples como a tradicional : surgindo da memria de quem a narra, desconhece a cronologia e vive da temporalidade. Adonias Filho sabe que a funo do escritor contar uma histria, e que essa histria necessita de especial ateno para que sua coerncia interna no seja destruda, frustrando, dessa maneira, a prpria obra. O aspecto artesanal do romance , realmente, muito importante. Entretanto, o que nos chama mais a ateno o mundo estranho em que se movem personagens no menos estranhos. Tudo se assemelha a um pesadelo terrvel de onde no conseguimos sair, pesadelo ao qual ficamos presos at a ltima linha. Somos nele introduzidos pouco a pouco, e nele nos enredamos, nos perdemos. Passamos a habitar esse estranho mundo que nos assusta por tudo de horrvel que nos revela e que nos prendre por seus mistrios. A narrativa tem incio sem que nenhum dado nos seja fornecido. No sabemos quem faz a descrio do local onde se desenrolaro, retrospectivamente, todos os fatos ocorridos. Somos introduzidos no Vale do Ouro como se caminhssemos pela estrada que o atravessa estrada magicamente personificada, sempre cortada por um vento maligno, ame- drontador, demoniacamente vivo.

    Infinita a estrada com suas curvas, suas colinas e suas rvores. No uma estrada como outra qualquer, com pssaros e ladeada de grama, mas uma linha sinuosa no cho avermelhado e seco. Onde comea, ningum sabe. Onde termina, ningum sabe tambm. To ntima quanto os rudes objetos das habitaes primitivas, para ns que a conhecemos desde crianas, existe quase como uma coisa humana. (...) Falando a verdade, digo que o vale existe porque existe a estrada. Tudo, homens e choupanas, paixes e dios, se concentram em torno de seu leito como o corpo em torno da espinha. (.. ) Mas o que caracteriza o vale aps este cho, quase uma lava que no esfriou inteiramente, o que o caracteriza em todas as partes o vento perdido. Forte e constante, quase agreste, a ele costumo culpar por tudo o que acontece de violento e triste. (...) Torturando a plancie dia e noite, existindo quase como um demnio vivo, parece, dentre as zonas do mundo, ter escolhido exata- mente o vale para o seu rodeio. (...) Em criana, amei-o. Odiei-o,

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    em seguida. Hoje, j no poderia compreender o vale e juro que seria impossvel admitir a estrada sem as suas rajadas. Passando sempre sem nunca acabar de passar, deixa como um estigma a sua marca em tudo, na relva como nas pedras, nos pssaros como nas rvores, na terra como nos homens, (p. 3, 4, 5).

    neste estranho espao geogrfico que se passam todos os acontecimentos rememorados pelo narrador : o Vale do Ouro, de onde foge e para onde agora retorna. As razes, primeiro da fuga, e mais tarde de seu regresso, no nos so reveladas de imediato : sero a prpria narrativa que se desenrolar a nossos olhos medida que a memria as evocar. No ar, sempre a presena de um mistrio que envolve o vale e a vida de seus habitantes. O inicio do romance , pois, muito importante para a criao de uma atmosfera envolvente que, pouco a pouco, ir dominar o leitor, j que todos os acontecimentos que iro ser mais tarde desenvolvidos so a indiciados. Fatos e personagens aparecem dentro da memria que os chama, cercados por uma urea de mistrio que cria um certo suspense e desperta a curiosidade do leitor :

    Aquele molambo deformado, que antes se chamava Gemar Quinto e que agora apenas uma ossada, poder nos ouvir. Curioso, poder abrir a janela ou surgir dentro da noite, envolto no surdo alarido das asas, como uma apario pavorosa, (p. 12)

    Com o sangue circulando dentro da carne como um fogo lquido, os olhos midos, tento idealizar como foram lanadas as tochas.. Vieram, provavelmente, quando nos viram, a mim e a Jernimo, tomar a direo da montanha. Teriam trazido, sujo e ensanguentado, o corpo de Roberto ? Quando vieram, j o teriam sepultado ? Na casa no entraram, eu suponho. Reuniram os galhos secos, armaram as fogueiras, levantaram o incndio. Afastados contemplaram o fogo, em luta com o vento, a fumaa subindo, espalhando-se sobre o vale. (p. 12)

    O desvendar de qualquer fato passado j nos agua os sentidos. Que dizer, ento, de um passado onde todos os ndices nos transportam ao inslito, onde todos os seres so estranhos e cruis suas aes ? As prprias palavras que Jernimo figura que domina a histria por seu carter mtico diz a Alexandre quando este chega caverna daquele, contribuem para aumentar a nossa curiosidade :

    No sei por que voc voltou, Alexandre. Jurei mil vezes, diante de todo o vale, que voc no voltaria. Quando voc partiu, na tarde do dia sequinte, todos vieram aqui. Estavam exaltados, alguns traziam ferramentas, outros erguiam as mos, todos porm gritavam : Queremos Alexandre ! Abri os braos, impedindo a entrada com o corpo e, atento ao primeiro golpe, exclamei : Alexandre fugiu, deixou o vale para o resto da vida 1 > (p. 10).

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    aps deixar a caverna de Jernimo em busca da casa onde vivera com Roslia que Alexandre passa a contar-nos sua histria. A partir desse momento, passado e futuro juntar-se-o ao presente na memria do narrador. Contar uma histria sua histria , pois, o principal objetivo do narrador que, dessa maneira, recupera em um breve espao de tempo toda uma existncia, destinada ao sofrimento e desgraa. Da a necessidade constante de prender a ateno do leitor, dirigindo-se insistentemente a ele ao correr da narrativa :

    Sigam-me, por favor. Sigam-me e no perguntem, (p. 12)

    Querendo, podero recuar, tomar direita, galgar a primeira encosta e olhar. No enxergaro a mim, que meu corpo se confunde com as trevas, mas percebero a lanterna correndo entre os arbustos. Presa nos meus dedos, como se a mo fosse uma garra, no vejo sequer a sua luz. Avano, tropeando e, quando me detenho, logo identifico as paredes. Venham, venham depressa, que lhes mostrarei, (p. 13)

    No me abandonem agora, quando em mim mesmo tudo domino para, com as mos, sentir a aspereza das paredes negras. (...) Venham mais perto, sempre mais perto, e no receiem participar do enorme silncio, do ar que lateja, da lgubre paisagem que em mim se projeta como nos olhos de um morto. (...) Venham mais perto, pois, e acompanhem com piedade este vulto que a neblina noturna absorve. Tem os braos descidos, a face muda erguida na cega contemplao de uma realidade que j no o dentro do tempo, mas vive guardada no fundo do corpo, ao lado do sangue e dos tecidos, como um cncer que no mata. (p. 52)

    No se vo ainda, eu peo. Vejam que estou procurando, sobre a toalha de carvo, localizar o quarto, (p. 92).

    Escutem, eu peo. 0 sol no nascer to cedo. Mesmo correndo, Jernimo no chegar a tempo de impedir que o passado se esgote, agora sem a guarida de qualquer censura. (...) Escutem, pois. E esqueam os destroos que me cercam, as paredes, a lanterna, o prprio vento que sopra. Mas escutem a mim, talvez novamente um ser humano, h pouco tempo algum que se reencontrava e, posto em face de si mesmo, a si prprio repelia como uma coisa ultrajante. Que sejam desviados todos os olhos. Abandonem o vale por um instante. E vejam. Antes que possam ver, respondam-me :

    Eu, aquele que ali est, deitado, com as mos na lama agonizante e ferido, to s no silncio do mundo ?

    Venham mais perto, sempre mais perto, e nada receiem. possvel que sintam o mau cheiro. provvel que no reconheam, na face desfigurada, o rosto do homem que aqui est, a luz da lanterna fixando as linhas duras. Venham, mais perto, eu insisto.

    No faam rudo, porm. Em silncio, com os passos leves, como se estivessem a velar o corpo morto de um irmo ou um amigo. No

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    interroguem. Toda a ao se concentre em minuto de expectativa, todos os pensamentos se integrem nesta pergunta : Que pode acontecer ? (p. 124-125).

    Fujam todos, neste instante. J no preciso de ouvidos humanos, dispenso a compaixo e a misericrdia, que todos se afastem, (p. 161)

    Convm ressaltar que isso ocorre em determinadas partes do romance, mais exatamente, onde o narrador interrompe momentaneamente suas recorda ;es e monologa sobre sua condio presente. Essas partes antecedem os captulos que compem as quatro grandes partes em que se divide o romance, distendendo e retardando o fluxo narrativo, contribuindo, assim, para aumentar o suspense j criado pela prpria natureza das situaes. A ltima parte monologada, entretanto, encerra a narrativa, remetendo ao tempo presente do narrador que, moribundo, espera que o ltimo momento chegue :

    Meus ps resvalam, o corpo tomba, a boca sem um grito. ptrido o ltimo ar. O lodo que me absorve e asfixia, no canal, viscoso. Ocultam-se, num corte fulminante, o vale e o vento. Tudo se vai fechando, aos poucos, com serenidade e imensa quietude, (p. 162)

    Alm de contribuirem para o suspense narrativo, essas partes monologadas estabelecem entre ns e o narrador uma relao importante, pois passamos quase a ser um personagem do romance o confessor de um narrador que necessita imperiosamente de um cmplice para sua tragdia interior.

    Como, entretanto, fazer com que toda uma existncia que surge da memria no se transforme em um amontoado de fatos desnecessrios e ilgicos? claro que a ilogicidade pode ser bastante lgica dentro de um romance, pode revelar o carter do narrador e, com isso, funcionar perfeitamente dentro da narrativa. Entretanto, o desejo de Alexandre contar sua histria, fazer- nos ver e sentir todo o seu sofrimento. E, para isso, a seleo dos dados e sua exposio com um mnimo de ordenao primordial. Alexandre no tem pressa; sabe que h tempo ainda para que o passado se aproxime (p. 14). E, pouco a pouco, atravs da memria voluntria, traz ao presente o passado que o oprime. Como num exorei sar de seus fantasmas interiores, o passado sur je, lgica e racionalmente, atravs de seces feitas no tempo, seces essas representadas por narrativas interpoladas aos diversos monlogos do narrador-personagem. Essas narrativas explicitam e resumem momentos especficos e decisivos do su passado, sendo apresentadas ou por Alexandre ou por outros personagens. Passados

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    dentro de passados surgem a partir de um presente fonte de toda lembrana para que descubramos, junto com Alexandre, a sua histria. Entretanto, Adonias Filho estabelece uma organizao coerente para essas lembranas porque a memria voluntria do narrador assim o exige. Dessa maneira, o que nos deve ser dito no se perde dentro dos labirintos de uma memria vida por mostrar-se. O primeiro fato a ser rememorado pelo narrador o que diz respeito sua origem. A parte que trata especificamente de Paula, me de Alexandre, muito importante, pois ele, que tudo desconhecia sobre ela, retoma a narrativa momentaneamente interrompida por Jernimo, e a continua, criando, pela imaginao, fatos e acontecimentos. Ironicamente, esses fatos imaginados agiro sobre toda a vida de Alexandre, levando-o, pouco a pouco, destruio.

    ...j que sentia ser impossvel arrancar de Jernimo novas palavras, idealizava por minha prpria conta o absundo perodo da infncia que no tardaria a aceitar como certo. E possvel que falso tenha sido o meu sonho. E provvel que a imaginao me tenha iludido. No interroguem, porm. Ouam, eu peo. (p. 25)

    A terrvel morte da me, mulher repugnante, doente, nas palavras de Jernimo, uma idiota, as tentativas de Ablio para salv-la, sem resultado, a falta de pacincia do pai para com ele, Alexandre, e sua consequente ida para a caverna de Jernimo so, ento, narradas com detalhes. A partir desse momento, a memria de Alexandre retoma os fatos que envolvem Roslia e seus familiares. Temos, aqui, narradores diferentes que apresentam diferentes pontos de vista face aos mesmos acontecimentos. Essa variao do foco narrativo existe para aumentar o carcter ambguo e estranho no s desses fatos, mas de tudo que cerca a existncia dos habitantes do Vale do Ouro. Roslia descoberta pouco a pouco e nunca se revela. No sabemos jamais sua verdade. o personagem mais fascinante dentro do romance e existe como tal atravs de suas aes. Conhece-mola, quase menina, mas j dona de um temperamento, como o prprio narrador nos diz, agressivo e impetuoso :

    Temendo-o (a Felcio Santana, seu pai), e talvez porque fosse herdeira do seu temperamento agressivo e impetuoso, a filha procurara em mim mais um refgio contra o pai, que propriamente o futuro companheiro. Mas Roslia, ento, era pouco mais que uma menina, (p. 29).

    Com o passar do tempo, Alexandre descobre que Roslia tinha sido prometida a um outro Chico Viegas. Vai, ento, casa dela e l, aps discusso com o pai, trava com o mesmo violenta luta.

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    Durante a mesma, Roslia esfaqueia o pai e, Alexandre, tomando a culpa do ocorrido, leva a moa para a casa que, junto com Jernimo, haviam construdo. Roslia, ento, narra a razo de ter matado o pai, passagem importantssima dentro do romance :

    Quando voc entrou, Alexandre, eu acabara de entregar ao pai o prato com a comida. Cedo me recomendara que queria carne de vaca com verduras e feijo. Ele gostava muito de feijo, o pai. Sentava-se para comer quando, batendo na porta, voc chegou. (...) Filha de meu pai, conhecendo-o tanto quanto a mim mesma, pressenti imediatamente que voc no escaparia com vida. Batia-me o corao e as lgrimas j no me deixavam enxergar com nitidez...

    Veio o cachorro, que sempre estava na cozinha, e deitou-se aos meus ps. Voc no o viu uma s vez, mas era um animal imundo. Roberto, o mano, j meses que o vinha podendo como se no fosse uma criatura viva. Cortou primeiro a cauda e uma orelha depois. Furou tambm um dos seus olhos. Mas Roberto tem l as suas razes porque so assim os seus divertimentos. Sempre aprisionava pssaros, no para ceg-los, mas para quebrar-lhes as pernas. E as quebra com as prprias mos, Roberto. Deitando-se, senti imediatamente seu calor de febre e o ar se impregnou da sua podrido. Ouvia, porm que vocs, discutindo, levantaram as vozes.

    Abaixei-me para enxotar o cachorro. Empurrava-o, o focinho sujo e mutilado voltado para mim, quando, pelos rudos, percebi que voces lutavam, no cho. Saltei sobre o cachorro, atravessei a porta e, aproximando-me, compreendi que pai estrangularia voc em poucos segundos. Vi a faca, um pouco distante. Sem saber ao certo o que fazia, agora a imagem do cachorro superando a presena dos corpos atracados, ouvindo a voz de Roberto ao invs dos seus gemidos, apanhei a faca e a empurrei com toda minha fora nas costas de um homem. Tinha esquecido, Alexandre, que o homem era meu pai. (p. 42-43)

    Prosseguindo em sua narrativa, Roslia fala do que lhe aconteceu quando seus irmos chegaram :

    Para dizer a verdade, Alexandre, apesar de todos os esforos, no posso recordar exatamente o que aconteceu. Sei que a correia que Roberto brandia, ao invs de atingir o cachorro, alcanou-me nos seios. Eu a senti novamente no ventre e nas coxas. Antes, porm, de cair desacordada, antes que tudo rodasse a pele de carneiro, o corpo de pai, o cachorro senti nos meus braos as mos dos irmos. Deitada no cho, como morta, flutuavam as mos na obscuridade como se fossem asas. Sobre mim, alguma coisa pesava. E quando a carne se dilacerou, to forte a dor que, recuperando os sentidos, vi a cara de Roberto unida minha, suas coxas comprimindo as minhas. Gritei apavorada, empurrando-o. Suas mos, porm, dominaram-me e ele permaneceu ofegante, o queixo na minha testa. O que houve depois, Alexandre, eu no posso dizer. Eu no sei dizer, Alexandre, porque desmaiei novamente, (p. 44)

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    A partir desse momento, o fantasma de um filho incestuoso perseguir Alexandre at que, na procura de sua vingana, encontra Roberto e dele ouve nova verso que vir criar a ambiguidade que cerca a figura de Roslia :

    Ningum sabe por que nasceu assim disse Roberto, como se no estivesse comeando, mas prosseguindo na confisso e ningum saber de onde veio o seu corao perverso. Um corao perverso, eu juro. Pode falar aos irmos, pode voltar l em casa, mostrarei tudo o que ela fez. No a conheceu minha me. Foi criada por assim dizer por meu pai e, bem mais moa do que ns, chorava e esperneava quando tentvamos apanh-la no colo. Seu maior divertimento, at uma certa idade, sempre foram os prprios cabelos. Arrancava-os para queim-los no fogo. (...)

    O canal no fica longe de casa, uma verdade. Ali, tambm uma verdade, ningum passa. (...) Mas h os ratos, eu juro. Roslia os apanhava nas ratoeiras que trazia de casa e quando no os matava com suas prprias mos, atirava-os dentro do lodo. Alegrava-se vendo os ratos morrerem lentamente, em luta com o visgo, tragados pela lama escura. Tivesse um filho, eu juro, e seria capaz de lan-lo naquele lodo.

    Foi depois, porm, que comeou a pensar nos pssaros. Pai, em casa, tinha as suas gaiolas. Ela tirou os pssaros um a um, e, com a faca, cortou as pernas. Furou os olhos, com a ponta da faca, de dois ou trs, j no me lembro bem. Pai zangou-se, era natural. Chegou a espanc-la, pai, a ponto de Roslia vomitar sangue. Ps a mo no sangue e o cheirou. No deixou que eu o lavasse e o sangue secou nos dedos, eu juro. Na noite seguinte, eu dormia, e acordei ouvindo os gritos do pai. Quando corria, ela passou por mim com um facho nas mos. Pai tinha o rosto em carne viva. E gemia. Entrara no quarto, com o facho aceso, e o calcara com toda fora na cara de pai. (...)

    Perdeu a fala, ento. Se perguntvamos, no respondia. Fechava-se no quarto, a principio sozinha, e depois com o cachorro. Ela comeou cortando a cauda. Cortou as orelhas, depois. E pai a espancou novamente, alucinado, com o cinturo. Chorar, no chorou. No perdeu tambm os sentidos, eu juro. Mas comeou a se enfeitar, Roslia. Agora limpava as unhas, lavava os vestidos, penteava os cabelos. Fazia questo de ir conosco para as colheitas. (...)

    Voc apareceu, ento. Ela naturalmente contou muitas coisas. Roslia, fique voc sabendo, inventava muito. Mentia porque sentia prazer em mentir. (...) Queria algum, Roslia. Um homem que arrancasse da mo de pai, talvez. Para mim, porm, ela queria algum que a ajudasse a vingar-se. Pai no escaparia vivo, ela jurara a si mesma. Chico Viegas no prestava. Voc, em compensao, surgiu no momento exato. (...)

    E naquela noite, quando voc o desafiou, quando se atirou contra voc, Roslia espreitava. Eu no vi, mas juro que espreitava. Ela espreitava sempre, espreitava tudo, Roslia. A cobra pisada, no teria olhos mais abertos. (...)

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    No havia mais o que fazer, eu digo. Uma coisa, porm, talvez a lembrana de pai, me levava a saber o que se passava entre Roslia e voc. Comecei a abordar esta casa e no tardei a descobrir que Roslia estava doente. Como adoecera, no sei. Mas fiz nova descoberta, juro. Gemar Quinto, o leproso, tambm abordava a casa. (...) Ela chamava o leproso, os braos abertos. No me contendo a mim mesmo, entrei no quarto, gritando.

    Possa a terra, que tragou o seu corao perverso, sentir piedade de sua carne. Seus olhos queimavam como o sol do vale. Os seios nus danavam. A cadela danada, eu juro, seria mais humana. (...) Ficamos ss, eu e Roslia. No me esperava, era certo, mas no se surpreendeu. Contraiu os lbios, Roslia, e eu soube que toda sua raiva estava concentrada. Encostou-se na parede, sentando-se na cama. Ele te sangrar como um porco > disse, exaltando-se. Aproximei-me, eu, o irmo, e indaguei : Mas por que voc atraiu Gemar Quinto ? Puxou a saia, mostrando as coxas, antes de res ponder. Naquele instante, apesar de no duvidar ser ela minha irm, eu soube qutr Roslia no era uma mulher. Pudesse morder, morderia. E suas palavras vieram firmes. Uma exploso, eu digo. (...) Ele pensa que estou grvida, ele, Alexandre. Pensa que o filho seu, Roberto. Eu mesma me violentei, rasguei a minha prpria carne com as unhas. Doem as feridas, queimam as pestes ! Mas ele, Alexandre, sangrar a vocs todos. (...) Quer saber ento por que chamei Gemar Quinto ! Quer saber ? Pois saiba ! Queria a sua doena, queria a sua lepra para transmitir a Alexandre, a Jernimo, queria ver o vale terminar assim, inchado, podre, aos pedaos. Queria, Roberto, e quero ! (p. 97-11).

    Aps mostrar uma nova e inesperada face de Roslia, Roberto confessa t-la matado. No se enforcara, Roslia, como pensvamos. Alexandre recusa a verso de Roberto e o mata, cumprindo, assim, sua vingana. Quanto a ns, leitores, permanecemos na dvida. E, na realidade, esta dvida um dos elementos mais importantes dentro da construo do romance, tornando-o ainda mais inslito.

    De grande importncia , tambm, a atribuio de tudo o que acontece no Vale do Ouro ao Destino. Todos os fatos so interpretados pelo narrador-personagem como provenientes de uma fora que desconhece mas a qual tudo e todos se encontram submetidos. Mas como no interpret-los assim? Que tipo de narrador o que nos conta as suas memrias? Atravs da leitura do romance, descobrimos, por suas reaes, que se trata de um ser guiado pelo instinto, pelos sentidos, um ser animalizado, como na realidade o so todos os personagens que habitam o Vale do Ouro. No podemos nos esquecer da caracterizao instintiva e irracional dada ao narrador, pois o que iremos saber ser atravs dele, assim como atravs dos outros narradores tambm dessa maneira caracterizados. Em Memrias de Lzaro, o narrador, por ser um personagem, primitivo, no capaz de julgar os fatos. No existe, como se era

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    de esperar em um tipo de narrativa em primeira pessoa, uma identificao de nossa parte com Alexandre. Suas reaes so por demais irracionais, diferindo das dos seres civilizados , como nos julgamos. Seu mundo no , tambm, o nosso. Adonias Filho cria um personagem vazio dentro de um mundo absurdo, personagem esse totalmente determinado pelos elementos que o cercam. Dele, Sartre diria o que disse dos personagens de John dos Passos :

    Ces hommes de Dos Passos... comme je les hais ! On me montre... leur conscience, juste pour me faire voir que ce sont des btes vivantes... (2)

    Guiado em tudo por Jernimo e dominado pelo meio ambiente, Alexandre incapaz de atuar sobre os acontecimentos e s tem para eles uma nica explicao : o Destino. Tudo em Memorias de Lzaro afigura-se ao narrador como obra de um Destino contra o qual no se pode lutar. Sua volta ao Vale do Ouro, de onde tinha fugido, assim explicada :

    Eu tambm no sei por que voltei, Jernimo. Em casa de Natanael, quando Natanael morreu, senti que voltava.

    E explicando : Eu no voltei, Jernimo. Trouxeram-me, (p. 10)

    Aps imaginar os fatos que teriam acontecido a sua me, Alexandre diz :

    Eu seria a consequncia daqueles destinos e nada seria mais humano que a vibrao dos meus nervos, a angstia do meu sangue, a impulsividade do corao, (p. 24)

    Aps chegar regio dos cacaueiros, o verdadeiro mundo , assim se expressa :

    Estou indo de encontro ao mundo de Ablio. (...) Venho talvez para continuar o seu destino, (p. 129)

    A prpria estrada, imensa em sua fora, no pode deixar de ser como por estar presa a algo que a comanda :

    Fora alguma, dentro ou fora do vale, conseguir desfazer o seu mau destino e sortilgio algum conseguir obscurecer a sua presena, o trajeto que se impe, a linha sem origem que se alarga precisamente no instante em que a gua se torna salobra, (p. 4)

    Alexandre cr no Destino porque no h mais nada em que acreditar. Esse Destino nunca questionado, s sentido. Jean Pouillon, em anlise sobre o que chamou de Romances do Destino,

    (2) Sarte, Jean-Paul. Situations I. Paris, Gallimard, 1947, p. 22.

  • MEMRIAS DE LZARO 49

    mais especificamente, sobre os romances de Faulkner, nos diz que, na afirmao faulkneriana do destino, o que se questiona no a estrutura mesmo do tempo e sim a psicologia dos personagens (3). O mesmo faz Adonias Filho no seu romance. Sua preocupao no filosofar sobre o tempo, no outorgar-lhe o papel de personagem principal, como fazem muitos romancistas atuais. E ns poderia dexiar de ser assim. Nada mais falso e ridculo do que questionamentos filosficos sobre a estrutura do tempo feitos por um narrador como Alexandre. Ele cr no Destino como uma fora invencvel, como um poder que no compreende e que lhe imposto. Seu destino a soma de vrios destinos. Dentro do romance, essa interpretao perfeitamente admissvel e lgica. Em um mundo estranho, habitado por seres primitivos, a nica opo permitida face vida, lig-la a esse elemento que ns, leitores, sabemos ser ilusrio.

    Em Memrias de Lzaro, o destino , entretanto, altamente irnico. Uma passagem, a que trata da chegada de Alexandre casa de Natanael aps a fuga do Vale do Ouro, bem representativa dessa ironia do destino. Muitas das situaes so, a, como que rplicas das situes passadas, mais especificamente das que se referem Roslia e ao filho que Alexandre pensa estar ela esperando. Alexandre chega casa de Natanael e, pouco a pouco, se integra famlia. Como o irmo de Roslia, Mano o futuro pai de uma criana que vir a ser neto de Natanael. Como Alexandre, Mano no sabe nada de seu passado e seu nome traz em si o prenncio do incesto. Alexandre espera que a criana que ir nascer o faa esquecer o Vale do Ouro e, em determinado momento de sua narrativa, compara o significando que uma criana tem, dentro e fora do vale :

    No vale, o filho de um homem e de uma mulher no desperta alegria. Abandonada a criana no cho, ao lado dos ces. Cresce como cresceu Roslia, correndo contra o vento, a fisionomia j agressiva, o olhar atormentado refletindo o cu sombrio. A me, despreza. O pai, espanca. 0 irmo um amigo to spero quanto a terra. O filho ! eu escutei, pasmo e sem horror, na casa silenciosa de Natanael, o grito espantoso de Roslia. Seu filho no chegou vida e vida chegasse, teria um destino diferente do meu ?

    Fora do vale, porm, esperava-se o filho como se aguardava o dia da colheita. H ternura para ampar-lo, carinho para proteg- lo, e velada a submisso que se exige das crianas. Enfermo, conforta-o o clima de bondade. Torna-se muitas vezes, a razo de

    (3) Pouillon, Jean. O tempo no romance. So Paulo, Cultrix, 1974, p. 185.

  • 50 C. de CARAVELLE

    ser da prpria vida. Como uma compensao, sobretudo como uma recompensa prtica da bondade, o velho Natanael e sua mulher a gorda e risonha Joana suavizariam a velhice rindo com o riso do neto. No demoraria a chegar, estava certo. chegaria sadio, corado, belo. (p. 154)

    Entretanto, o que nasce um ser monstruoso. E Alexandre que pensava ter encontrado a paz e a felicidade, desperta para o grande pesadelo, o pesadelo que o perseguiu sempre : o filho incestuoso de Roslia. Tudo arrumado como em um jogo no qual todos soubessem o final. Tudo guiado por um destino irnico e, por isso mesmo, trgico e cruel.

    Penetrei no quarto de um pulo, mas, quando fitei o velho Natanael, e vi seu rosto to branco quanto os cabelos, a boca repuxada como tentando articular uma palavra, o olhar parado no leito, imediatamente compreendi que ele era um homem perdido. Mano, dominado pela fantstica apario, tinha lgrimas nos olhos. Joana, com as mos sujas de sangue, encostara-se na parede para no cair. Aproximei-me em silncio, buscando a causa. Distingui a mulher, na cama, fora da realidade, os cabelos ruivos emoldurando a face sem sofrimento. A seu lado, nua e respirando, estava o que pudesse ser uma criatura humana mas realmente uma masssa horripilante, a boca um talho enorme, sem dedos os ps, os olhos cegos. Vivia, porm. Ainda escutei, como uma ordem, a voz terrvel de Jernimo. Estrangule este monstro, Alexandre. Atire este monstro aos porcos ! (...)

    No vi mais coisa alguma, no ouvi mais nada, se a terra subira ou descera o cu, se houve lgrimas ou gritos, palavras de maldio ou silncio mudo, surdo e cego* novamente desgarrado de tudo e de todos, o que me reapareceu como um facho sinistro, violento e estranho foi o Vale do Ouro. Seu vento aoitava, crescia em um ronco profundo. Trotavam em disparada, as crinas flutuando, os seus cavalos selvagens. Revolvia-se, como uma lava incandescente, o lodo do seu canal. (...)

    Voltei as costas para o quarto, atravessei a porta, sem outro qualquer agasalho que a roupa do corpo, j deslumbrado pela viso do vale, indomvel e spero, que me esperava, (p. 156-157)

    O renascimento para a vida, que Alexandre esperava encontrar junto famlia de Natanael, no passou de uma breve e falsa esperana. Como Gemar Qunito o leproso , Alexandre deve viver sempre s e escoraado. Como o Lzaro bblico, que morre para renascer, Alexandre morre mais de uma vez durante sua vida. Morre 0 perder Roslia e morre, principalmente, ao constatar que a felicidade pressentida com o nascimento do neto de Natanael se desfaz para sempre. Seu renascer se resume em procurar encontrar o caminho maravilhoso de que falava seu pai : o caminho que leva morte, ao descanso, anulao de todo o sofrimento. Para Alexandre, renascer morrer :

  • MEMRIAS DE LZARO 51

    Agora, unicamente o maravilhoso caminho, aquele caminho que se no pode comparar estrada do vale, mas o caminho que se abre aos meus olhos, pela mo de Ablio, meu pai. Vejo-o, na frente, a guiar-me. Em volta, o que resta negro. O meu pobre corao j no enxerga, inteis as minhas mos no mais doem, no meu corpo as feridas...

    possvel que os vivos j no me possam aalcanar. Era silncio, malditos espectros sem morada nos mundos, possvel que me espreitem os mortos. Roslia, a quem no vejo. Natanael, a quem no escuto. Paula, a quem no conheci. Espreitem, esperando, mas sem nsia. Chegarei a eles, em breves minutos, porque o caminho que me leva no longo e infinito como a estrada do vale. (p. 161- 162)

    Quem l Memrias de Lzaro no pode deixar de ficar perplexo frente ao estranho e perturbador mundo que esse romance nos apresenta. Trgica viso com que nos deparamos, gostaramos que no existisse. Personagens sofridos, derrotados, totalmente dominados por uma terra cruel, onde tudo amargo, onde a prpria Natureza se apresenta como algo maligno, os seres que habitam o Vale do Ouro incomodam-nos, agridem-nos com suas desgraas. Nada existe de positivo, nada permanece aps a leitura do romance, tudo destrudo. E o que mais nos revolta a aceitao de tudo. A conscincia de que alguma coisa possa ser mudada inexiste. Alexandre, realmente, no passa, como todos os outros personagens, de um grotesco fantoche, guiado por linhas invisveis que esto sempre presentes e atuantes. Muitas vezes, durante a leitura, sur- preendemo-nos nos perguntando se existe algo parecido com o Vale do Ouro. Incesto, doenas mentais, taras, homens que matam por simples prazer, tudo nos deixa como que aturdidos. Aceitar ou negar esse tipo de viso de mundo no nosso papel. Sartre mostra bem a posio do crtico frente a uma obra, quando, a respeito de Faulkner, nos diz : J'aime son art, je ne crois pas sa mtaphysique (4).

    Adonias Filho cria um mundo para ns inadmissvel, com personagens que tiram do ser humano suas caractersticas essenciais. Os seres do Vale do Ouro no escolhem nunca, no usam da liberdade inerente a todo homen de fazer sua prpria vida. Entretanto, ser difcil encontrar um outro escritor brasileiro contemporneo que conhea to bem quanto ele a difcil arte de narrar.

    (4) Sartre, Jean-Paul. Op. cit., p. 74.

  • BIBLIOGRAFIA

    1. Filho, Adonias. Memrias de Lzaro. Rio de Janeiro, Civilizao sileira, 1967.

    2. Pouillon, Jean. O tempo no romance. So Paulo, Cultrix, 1974.

    3. Sartre, Jean-Paul. Situations I. Paris, Gallimard, 1947.

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