preparo pré-operatório do paciente...

7
Preparo Pré-operatório do Paciente Ictérico ORLANDO JORGE MARTINS TORRES Professor assistente de Clínica Cirúrgica da UFMA. Mestre em Cirurgia. Coordenador do Programa de Residência Médica em Cirurgia Geral do HUPD — UFMA. WASTON GONÇALVES RIBEIRO Residente de Cirurgia Geral da UFMA. JEAN CARLOS ANTUNES CINTRA TEREZA CRISTINA MONTEIRO DE MELO ELIANE LOPES MACEDO Estudantes de Medicina da UFMA. Resumo Os autores apresentam uma revisão sobre o preparo pré-operatório do paciente ictérico. Os fatores de risco associados, incluindo sepse, hemorragia, insuficiência renal aguda e desnutrição, representam grande importância na morbidade e mortalidade daqueles pacientes. Uma visão atual dos mecanismos responsáveis por estas complicações e o manuseio geral são discutidos. Unitermos: Icterícia; icterícia obstrutiva; preparo pré-operatório. trabalho realizado no Serviço de Clínica Cirúrgica do Hospital Universitário Presidente Dutra Universidade Federal do Maranhão UFMA. Introdução A obstrução da via biliar é um dos problemas mais freqüentes encontrados pelo cirurgião do aparelho digestivo. A principal forma de apresentação é a icterícia obstrutiva, e quanto maior o tempo e a intensidade da obstrução maiores serão as repercussões clínicas apresentadas. Uma classificação reconhece quatro formas de obstrução biliar (1, 11, 32, 35, 49): Tipo I (obstrução completa) — Leva à produção de icterícia: tumores (cabeça do pâncreas), ligadura do dueto biliar comum, colangiocarcinoma e tumores do parênquima hepático. Tipo II (obstrução intermitente)— Produz sintomas e alterações bioquímicas típicas, associadas a ataques de icterícia clínica: coledocolitíase, tumores periampulares, divertículos duodenais, cistos de colédoco, doença hepática policística, parasitas na via biliar e hemobilia. Tipo III (obstrução crônica incompleta) Apresenta-se com ou sem sintomas clássicos ou alterações bioquímicas que eventualmente produzem alterações patológicas nos duetos biliares ou no fígado: estenoses do dueto biliar comum (congênita, iatrogênica, colangite esclerosante, pós-radioterapia), estenose após anastomose biliodigestiva, pancreatite crônica, disfunção dó esfíncter de Oddi e fibrose cística. Tipo IV (obstrução segmentar)— Um ou mais segmentos anatômicos da árvore biliar intra-hepática estão obstruídos: traumática (iatrogênica, inclusive), hepatolitíase, colangite esclerosante, colangiocarcinoma. Os pacientes com obstrução do trato biliar apresentam diferentes efeitos clínicos, patológicos, 32 AGOSTO, 1998 VOL. 75 • Nº 2

Upload: donhu

Post on 01-Dec-2018

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Preparo Pré-operatório do Paciente Ictérico

ORLANDO JORGE MARTINS TORRES Professor assistente de Clínica Cirúrgica da UFMA. Mestre em Cirurgia. Coordenador do Programa de Residência Médica em Cirurgia Geral do HUPD — UFMA.

WASTON GONÇALVES RIBEIRO Residente de Cirurgia Geral da UFMA.

JEAN CARLOS ANTUNES CINTRA TEREZA CRISTINA MONTEIRO DE MELO ELIANE LOPES MACEDO Estudantes de Medicina da UFMA.

Resumo

Os autores apresentam uma revisão sobre o preparo pré-operatório do paciente ictérico. Os fatores de risco associados, incluindo sepse, hemorragia, insuficiência renal aguda e desnutrição, representam grande importância na morbidade e mortalidade daqueles pacientes. Uma visão atual dos mecanismos responsáveis por estas complicações e o manuseio geral são discutidos.

Unitermos: Icterícia; icterícia obstrutiva; preparo pré-operatório.

trabalho realizado no Serviço de Clínica Cirúrgica do Hospital Universitário Presidente Dutra — Universidade Federal do Maranhão — UFMA.

Introdução

A obstrução da via biliar é um dos problemas mais freqüentes encontrados pelo cirurgião do aparelho digestivo. A principal forma de apresentação é a icterícia obstrutiva, e quanto maior o tempo e a intensidade da obstrução maiores serão as repercussões clínicas apresentadas. Uma classificação reconhece quatro formas de obstrução biliar (1, 11, 32, 35, 49):

Tipo I (obstrução completa) — Leva à produção de icterícia: tumores (cabeça do pâncreas), ligadura do dueto biliar comum, colangiocarcinoma e tumores do parênquima hepático.

Tipo II (obstrução intermitente)— Produz sintomas e alterações bioquímicas típicas, associadas a ataques de icterícia clínica: coledocolitíase, tumores periampulares, divertículos duodenais, cistos de colédoco, doença hepática policística, parasitas na via biliar e hemobilia.

Tipo III (obstrução crônica incompleta) — Apresenta-se com ou sem sintomas clássicos ou alterações bioquímicas que eventualmente produzem alterações patológicas nos duetos biliares ou no fígado: estenoses do dueto biliar comum (congênita, iatrogênica, colangite esclerosante, pós-radioterapia), estenose após anastomose biliodigestiva, pancreatite crônica, disfunção dó esfíncter de Oddi e fibrose cística.

Tipo IV (obstrução segmentar)— Um ou mais segmentos anatômicos da árvore biliar intra-hepática estão obstruídos: traumática (iatrogênica, inclusive), hepatolitíase, colangite esclerosante, colangiocarcinoma.

Os pacientes com obstrução do trato biliar apresentam diferentes efeitos clínicos, patológicos,

32 AGOSTO, 1998 VOL. 75 • Nº 2

Preparo Pré-operatório do Paciente Ictérico

bioquímicos e funcionais, entre eles o aumento da pressão ductal, alterações fibróticas, colangite, atrofia hepática e alterações no fluxo sangüíneo hepático (3, 8). Entre as complicações que devem ser observadas quando do preparo pré-operatório do paciente ictérico temos a insuficiência renal (2), distúrbios de coagulação (12), infecção (sepse) (25) e retardo na cicatrização das feridas (6). Portanto algumas condutas devem ser tomadas neste tipo particular de paciente cirúrgico, pela sua importância na redução da morbimortalidade.

Combater a infecção

A infecção, particularmente a infecção abdominal, constitui a principal ameaça ao sucesso da cirurgia abdominal. Bactibilia (presença de bactéria na árvore biliar) pode ser o mais importante fator de influência ao risco de complicações sépticas pós-operatórias e é importante identificar pacientes de alto risco para instituir a terapia, incluindo a administração de antibióticos profiláticos. Os fatores de risco para bactibilia são descritos no Quadro 1 (36, 39, 48).

Normalmente a bile humana é considerada estéril. Em paciente de baixo risco que será submetido à colecistectomia eletiva, convencional ou laparoscópica, a incidência de bactibilia é de 10%-15% (36,43,44).

A obstrução biliar é o principal fator de risco para complicações infecciosas em pacientes cirúrgicos. No paciente de risco elevado a bactibilia é certamente responsável por complicações sépticas pós-operatórias. Pacientes com icterícia obstrutiva apresentam incidência aumentada de complicações sépticas (39, 48). Na cultura de bile no paciente com icterícia obstrutiva observam-se tipicamente bactérias presentes nos segmentos mais distais do intestino. A Escherichia coli, Klebsiella, Proteus e Enterococcus são as mais observadas e a infecção

é em regra polimicrobiana (7, 27). O percentual de bactérias anaeróbias nas culturas de bile positivas tem aumentado, provavelmente devido à melhora nas técnicas de cultura. Entre os anaeróbios, que são encontrados em 20%-30% das culturas positivas, o Clostridium e Bacteroides specie são os mais observados (7, 36, 39). A bactéria alcança a via biliar de forma ascendente do duodeno ou por via hematogênica. O aumento da pressão biliar resulta em refluxo colangiovenoso e é provavelmente um importante mecanismo

no desenvolvimento da sepse, com mortalidade algumas vezes superior a 25% após cirurgia do trato biliar, com formação de abscesso abdominal, sepse e disfunção orgânica múltipla (48). Existe consenso para a antibioticoprofilaxia nos pacientes com fatores de risco. Como as bactérias da bile são também responsáveis pela infecção da ferida operatória e infecções abdominais, considerações específicas deveriam ser tomadas na escolha do antibiótico. A concentração ideal do antibiótico no sangue e tecidos tem importância superior a sua concentração biliar (17, 27). Entre os fatores considerados para o uso de antibioticoprofilaxia temos: — Paciente de alto risco. — Adequada concentração tecidual e sangüínea. — Atividade bacteriana do antibiótico na bile. — Provável bacteriologia. — Presença de bacteremia. — Presença de obstrução biliar. — Presença de lesão hepatocelular. — Sensibilidade, toxicidade e custos.

AGOSTO, 1998 VOL. 75 • Nº 2 35

Preparo Pré-operatório do Paciente Ictérico

Apesar das recomendações do uso profilático de antibióticos (17, 27), a sepse é ainda responsável pela maior morbidade e mortalidade operatórias, que incluem o comprometimento da célula de Kupffer pela endotoxemia (6, 34), depressão da imunidade celular específica e inespecífica (41) e desnutrição associada. Embora a bile possa ser considerada estéril, a sepse pode ser introduzida por procedimentos como colangiografia endoscópica ou transparietal, a menos que a descompressão seja instituída (22, 26).

Os antibióticos utilizados são as cefalosporinas de primeira e segunda geração, associações de cefalosporina e metronidazol. Doses de cefotaxima e cefamandol são efetivas para evitar infecções pós-operatórias em pacientes de alto risco. Dose única de cefotetan é tão efetiva quanto a cefoxitina para reduzir os índices de infecção pós-operatória em pacientes de alto risco. Em pacientes com obstrução biliar os aminoglicosídeos devem ser evitados se os níveis de bilirrubina sérica excederem 5mg%, pelo risco de nefrotoxicidade. Os rins são sensíveis aos aminoglicosídeos pelos efeitos combinados de diminuir a perfusão renal e promover endotoxemia por Gram-negativo. As penicilinas também podem ser utilizadas nestas situações (29, 35).

Combater a hemorragia

O fígado apresenta papel central no controle da coagulação, ê o comprometimento da hemostasia é comum em doenças hepáticas. Com exceção dos fatores de von Wíllebrand, que depende da célula endotelial vascular, todos os fatores de coagulação conhecidos são sintetizados no fígado, apesar de alguns serem também sintetizados em outros órgãos (9). As proteínas de coagulação dependentes de vitamina K são sintetizadas no fígado na forma de precursores. Estas proteínas não-funcionais são chamadas de proteínas induzidas na ausência de vitamina K. A incapacidade de secreção de sais biliares resulta na absorção prejudicada de vitamina K (9, 12).

A avaliação do risco de sangramento é importante no manuseio de pacientes com icterícia obstrutiva. Este risco é facilmente avaliado pelos testes hemostáticos de rotina. A biópsia hepática com agulha não deve ser realizada se o tempo de protrombina é maior que três segundos do controle do plasma ou se a contagem de plaquetas é inferior a 80.000/ml (12, 19). O tempo de sangramento é o único teste que representa hemostasia primária e é dependente do número, tamanho e função das plaquetas. Os testes de coagulação são indicadores sensíveis da função de síntese hepática e alguns são usados como indicadores prognósticos (9). A

terapia ideal para complicações de sangramento em doença hepática deveria ser guiada pelos testes específicos de coagulação normal. O achado de coagulação intravascular disseminada (CID) conduz a mau prognóstico e está geralmente associado a bacteremia e endotoxemia. Na icterícia obstrutiva há uma redução na eficácia da barreira gastrointestinal e biliar, pois os sais biliares perdem sua ação de surfactante, resultando em absorção excessiva de endotoxinas no sistema sangüíneo portal (12, 19). Aproximadamente 50% dos pacientes com icterícia obstrutiva apresentam atividade reticuloendotelial prejudicada. O hematócrito 30% é fator de risco no paciente • ictérico que será submetido a cirurgia (20).

A injeção diária de vitamina K (10mg/dia) deve ser aplicada diante de evidência de deficiência de vitamina K, porém descontinuando se não for obtida resposta adicional após o tratamento por 2-3 dias. Sangue deve ser administrado em casos de perdas sangüíneas severas, e concentrado de plaquetas em situações de trombocitopenia severa ou disfunção plaquetária. Em geral, uma ou duas doses de vitamina K (10mg) corrige os fatores de coagulação deficientes relacionados a absorção reduzida. O plasma fresco congelado supre todos os fatores de coagulação ausentes, porém leva ao risco de transmissão viral, pois é produto sangüíneo não aquecido (9, 20).

Corrigir desnutrição

O metabolismo dos carboidratos, proteínas e gorduras é dependente do fígado. A produção de bile pelo fígado é essencial para a digestão normal e absorção de gorduras. A obstrução do fluxo de bile para o intestino, portanto, levará à malabsorção e desnutrição com conseqüente esteatorréia por

36 AGOSTO, 1998 VOL. 75 • Nº 2

^

Preparo Pré-operatório do Paciente Ictérico

deficiência da absorção de gorduras. Quando a icterícia está presente por algum tempo, a desnutrição inevitável resulta e leva à hipoalbuminemia subseqüente, seguida por edema e ascite. Em geral não há distúrbios do metabolismo do carboidrato ou tolerância protéica em icterícia obstrutiva (21, 24). Usualmente a maioria dos pacientes comicterícia obstrutiva de longa duração apresentam tumores na região pancreatobiliar e a incidência de anorexia, perda de peso significativa e hipoalbuminemia está elevada neste grupo de pacientes (21, 24, 45). Diferentes estudos que defendem a drenagem biliar pré-operatória para reduzir a morbidade e mortalidade peroperatória não demonstraram qualquer efeito nos parâmetros nutricionais. O tempo de drenagem de duas a três semanas é, provavelmente, muito curto para ter qualquer impacto no estado nutricional dos pacientes (22). Apenas um estudo (37) mostra algum efeito benéfico da drenagem pré-operatória nas complicações peroperatórias. Entretanto foi utilizado a drenagem interna. Isto pode melhorar a malabsorção de gorduras, mas seu efeito na inibição da absorção de endotoxinas pode ser mais importante.

Se o paciente consegue se alimentar, devem ser prescritas dieta normal e observação direta para a ocorrência de esteatorréia. Quando o paciente está impossibilitado de ingerir alimento, o suporte nutricional parenteral normal deve ser usado, uma vez que há pouca evidência de que pacientes ictéricos tenham tolerância limitada a soluções gordurosas intravenosas (14, 21).

Em pacientes que serão submetidos à cirurgia hepatobiliar, a albumina sérica < 3,0g/dl, hematócrito < 30% e perda de peso > 10% do peso original têm sido úteis para identificar pacientes de risco (32). O suporte nutricional parenteral pré-operatório somente será utilizado para pacientes selecionados que serão submetidos a grandes cirurgias por câncer e que permanecerão por período prolongado sem ingestão oral enquanto aguardam procedimento diagnóstico ou cirurgia. Os outros pacientes deveriam ser preparados preferencialmente por via enteral (21).

No caso de ressecções hepáticas o paciente deve receber 1 .000 ml de glicose a 10% na noite anterior à cirurgia, para evitar hipoglicemia no pós-operatório imediato e aumentar a resistência do fígado à anoxia e suas complicações. Isto reduz a necessidade de administração de glicose no pós-operatório imediato e evita a supressão dos níveis de ácidos livres (30).

A albumina sérica baixa ( 3g/dl) representa importante fator de risco em paciente que vai

ser submetido à cirurgia biliar. A pré-albumina sérica também é um importante fator prognóstico na icterícia obstrutiva, devendo ser sempre solicitada (28).

Profilaxia da insuficiência renal

A queda da filtração glomerular ocorre apesar de precauções pré-operatórias e 10% dos pacientes desenvolvem insuficiência renal franca (4, 10). Estes riscos estão relacionados com a intensidade da icterícia e são a principal causa relacionada com a mortalidade pós-operatória (4, 10). A patogênese da insuficiência renal em pacientes com icterícia é complexa. Diversos mecanismos têm sido implicados, tais como hipovolemia (18), hiperbilirrubinemia, com aumento da suscetibilidade à lesão renal anóxica (18, 40), e toxicidade dos sais biliares. Estudos mais recentes têm mostrado elevada incidência de endotoxemia quando a icterícia obstrutiva é complicada por insuficiência renal (40, 46). A visão atual do mecanismo de insuficiência renal é que a ausência de sais biliares no intestino leva ao aumento da absorção de endotoxinas intestinais, com conseqüente endotoxemia portal. A depressão funcional da célula de Kupffer no paciente ictérico permite à endotoxina entrar na circulação sistêmica, causando vasoconstrição renal, redistribuição do fluxo sangüíneo fora do córtex, coagulação intravascular com deposição de fibrina e necrose cortical. A presença da icterícia obstrutiva torna o rim mais sensível à diminuição do fluxo sangüíneo, isto é, anoxia. O termo "síndrome hepatorrenal" tem sido freqüentemente usado para descrever qualquer paciente que, não necessariamente ictérico, evoluísse para óbito por uremia, após cirurgia no

AGOSTO, 1998 VOL. 75 • Nº 2 37

>

Preparo Pré-operatório do Paciente Ictérico

trato biliar ou lesão hepática. Atualmente deveria ser utilizado para pacientes com cirrose, retenção de sal e água e insuficiência renal terminal em que não há evidência de oligúria pré-renal ou necrose tubular aguda estabelecida (3, 6, 49).

Apesar dos melhores cuidados ane$tésicos e peroperatórios, a insuficiência renal aguda após cirurgia do trato biliar continua a ser significativa. Varia de 6% a 10% dos pacientes e está associada a elevada mortalidade. A combinação de doença hepática, cirurgia do trato biliar e insuficiência renal é catastrófica (29, 47).

Insuficiência renal aguda (IRA) potencial é freqüente em pacientes críticos, em associação com hipertensão, hipovolemia e infecção (47). Esses pacientes desenvolvem oligúria pré-renal, que é uma resposta fisiológica à hemorragia aguda, queda do débito cardíaco, anestesia ou cirurgia. Há uma queda no índice de filtração glomerular, aumento da secreção de hormônio antidiurético e aldosterona, resultando da reabsorção tubular de sal e água. O paciente com falência circulatória aguda e oligúria pré-renal produz pequeno volume de urina concentrada. A IRA potencial é freqüentemente reversível, entretanto pode evoluir para IRA estabelecida. Há um aumento da creatinina sérica endógena em paciente com função renal prévia normal e que persiste apesar da ausência ou correção dos efeitos hemodinâmicos adversos ou fatores obstrutivos. Os pacientes oligúricos são de prognóstico reservado (18, 30, 31,40).

A suscetibilidade à IRA, no paciente com icterícia obstrutiva, se deve à colemia e lesão hepática, que estão associadas a alterações na função e estrutura renal, homeostase circulatória e na integridade da barreira gastrointestinal. A queda da pressão arterial sangüínea pode ser precipitada por perda de apenas 10% do volume sangüíneo. A colemia possui efeito vasodepressor com queda na resistência periférica (15, 47).

Entre os pacientes de risco temos a idade avançada, hipoalbuminemia, função renal comprometida, infecção e perda de peso (11). Pitt et al. (32) e Blamey et al. (5) observaram oito fatores de risco clínicos e laboratoriais pré-operatórios que estão relacionados com mortalidade pós-operatória. Sete destes fatores eram comuns a ambos os estudos: doença maligna, idade 60 anos, hematócrito 30%, albumina 3g%, leucócitos 10.000/mm3, hiperbilirrubinemia e elevação da fosfatase alcalina sérica.

Nos pacientes ictéricos deve ser evitado retardo na investigação, o que aumenta a

profundidade e duração da icterícia, comprometendo o prognóstico. A avaliação da função renal deve ser feita pela concentração de creatinina sérica por dois ou três dias consecutivos. A uréia sangüínea não reflete a função renal de forma acurada, pois sua produção está alterada pela doença hepática e infecção. A conduta para prevenção da IRA no pós-operatório está demonstrada no Quadro 2 (3, 4, 8, 10, 13, 18, 30, 31, 40).

Os antiinflamatórios não-hormonais (AINHs) devem ser suspensos, pois apresentam efeito inibidor da síntese renal de prostaglandina com diminuição do fluxo sangüíneo renal e filtração glomerular (49). Os AINHs podem precipitar a ÍRA no paciente anóxico, hipovolêmico e idoso ou produzir nefrite intersticial e IRA subseqüente (29, 40, 46, 49).

O balanço de líquidos deve ser avaliado cuidadosamente pela medida da pressão venosa • central antes e três dias após a cirurgia. Verificar edema e concentração de albumina sérica. Albumina 3g% em associação com do turgor da pele geralmente denota significativa depleção de volume. A albumina concentrada é disponível para aumentar a concentração de albumina plasmática maior que 3g%, onde há o perigo de sobrecarga de líquido. Manter a hemoglobina acima de 10g/dl (29).

O manitol é um açúcar simples, com peso molecular de 182. Exerce efeito diurético osmótico

38 AGOSTO, 1998 VOL. 75 • Nº 2

l̂l̂

l̂ l̂

Preparo Pré-operatório do Paciente Ictérico

por penetrar mal na membrana celular e ser livremente filtrado nos túbulos. Infusão venosa de manitol em pacientes,sadios resulta em profunda diurese e natriurese. Atualmente permanece como substância disponível para profilaxia da IRA isquêmica. Em pacientes com icterícia obstrutiva deve ser administrado manitol a 10%, em infusão contínua, equivalente a 50g, por duas horas, antes da cirurgia. Após a cirurgia, manitol a 10% deve ser continuado para manter um débito urinário superior a 60ml/h. Isto é suficiente para impedir a queda do índice de filtração glomerular no pós-operatório e para aumentar o índice tubular clareando debris. Apresenta a capacidade de aumentar o fluxo sangüíneo renal mesmo durante a hipotensão e impedir o edema da célula endotelial que ocorre durante a isquemia (15, 29). O manitol parece ser efetivo contra radicais hidroxila e seu efeito lesivo na função celular (30).

O manitol pode ser utilizado em infusão em bolo de 20g (100 ml de manitol a 20%) duas horas antes da cirurgia e novamente durante a anestesia. Todos os pacientes são cateterizados, pois o volume urinário horário deve ser monitorizado. Após a cirurgia, 20g de manitol é repetido se o débito urinário é inferior a 50ml/h em duas ocasiões sucessivas. A eficácia do manitol tem sido estabelecida na prevenção da insuficiência renal e deve ser administrado quando a hidratação convencional fracassa em estabelecer a diurese. A infusão de solução fisiológica adequada deve ser instituída, pois há uma marcada natriurese durante o segundo e terceiro dias do período pós-operatório, quando o manitol está sendo usado (15). O manitol 20g pode ser repetido até cinco vezes em 24 horas em pacientes com alguma função renal e, por ser inócuo, deve ser usado como primeira escolha (15, 29).

A hidratação é fundamental no paciente com icterícia obstrutiva. Mesmo grandes quantidades de soluções cristalóides podem ser oferecidas sem aumentar o edema intersticial pulmonar quando a pressão pulmonar é monitorizada. Atenção especial deve ser dada a pacientes com diurese inferior a 50ml/h. Este paciente não deve ser enviado ao centro cirúrgico. Volume adequado de hidratação pode significar infusão de até 15 litros em 24 horas. Este volume deve ser oferecido em combinação de colóide e cristalóide (47).

Dopamina em baixas doses (1-2µg/kg/min ) pode ser utilizada no estágio precoce da IRA incipiente (23). Nesta dose a dopamina produz um aumento do fluxo sangüíneo renal e deve ser usada quando o volume urinário horário está menor que 50ml/h em duas ocasiões sucessivas. A administração pré-operatória de sais biliares via oral (deoxicolato de sódio, 500mg a cada oito horas por dois dias no pré-

operatório) parece impedir a endotoxemia sistêmica e protege contra insuficiência renal (8, 13).

Drenagem biliar pré-operatória

O papel da drenagem biliar pré-operatória em reduzir a morbimortalidade relacionada à cirurgia em icterícia obstrutiva tem sido objeto de constante discussão. Mesmo em meios experientes, complicações graves relacionadas ao método, tais como hemorragia, fístula biliar, colangite e desequilíbrio hidroeletrolítico com insuficiência renal, são comuns e, na maioria das vezes, inevitável. Diferentes análises multivariadas têm mostrado que a hiperbilirrubinemia não é um fator de risco independente quando limitado a obstrução biliar maligna e é aceitável que o número de pacientes de alto risco que se beneficiaram da drenagem biliar pré-operatória era muito pequeno para mostrar diferença (22, 26, 33, 38).

O elevado índice de complicações e o retardo no tratamento definitivo têm sido responsáveis pelo abandono da drenagem pré-operatória. É também improvável que a drenagem interna reduzirá substancialmente a morbidade e mortalidade em pacientes de baixo risco. Nestas situações, a maioria dos cirurgiões preferem não retardar a operação definitiva. A drenagem biliar externa não tem reduzido a mortalidade por insuficiência renal aguda após a cirurgia para icterícia obstrutiva, e isto se deve parcialmente ao fracasso em corrigir a ausência de sais biliares no intestino delgado (8, 13). Para que ocorra o retorno da função linfocítica ao normal são necessários 14 dias de drenagem interna. Em relação à drenagem externa, em algumas situações são necessárias seis semanas para que ocorra o retorno da função normal do hepatócito e conseqüente redução da mortalidade. A descompressão biliar pré-operatória melhora o pós-operatório, especialmente em pacientes de alto risco, enquanto outros estudos não conseguem demonstrar esta vantagem. A sepse tem sido a principal complicação da drenagem externa, que tem como único objetivo reduzir os níveis de bilirrubina (22, 26, 33, 38).

Anestesia

O controle anestésico do paciente com icterícia obstrutiva exige observação cuidadosa e monitorização dos sinais vitais durante a anestesia e cirurgia. Em pacientes com doença avançada e procedimentos extensos esta monitorização deve ser vascular invasiva (arterial, PVC, pressão arterial pulmonar, rendimento cardíaco e resistência cardíaca), com débito urinário e monitorização da coagulação (12, 16).

39 AGOSTO, 1998 VOL. 75 • Nº 2

Preparo Pré-operatório do Paciente Ictérico

Em relação aos anestésicos e técnicas anestésicas, o relacionamento cirurgião-anestesista deve ser bem estabelecido, evitando-se o halotano pela sua reconhecida ação sobre o fígado, levando à redução da perfusão hepática portal, diminuição do rendimento cardíaco, queda do suprimento de oxigênio e comprometimento da auto-regulação arterial hepática (16, 42).

Os princípios são idênticos àqueles para outras formas de cirurgia abdominal. Um cateter venoso central permite a monitorização da pressão de enchimento em relação à função ventricular direita. Intubação endotraqueal e ventilação mecânica controlada são usadas em todos os casos. Tigersted demonstrou que a homeostase pós-operatória e a dor podem ser melhor controladas pela combinação de anestesias geral e epidural. Apesar de ser o método de escolha, a experiência do cirurgião e anestesista são fundamentais para o sucesso da operação (16, 42).

Summary

The authors present a review of preoperative preparation of the jaundiced patient. The risk factors associated including sepsis, haemorrhage, renal failure, and malnutrition playan important role in the morbidity and mortality of these patients. The current view on the mechanisms of the complications and the general management are discussed.

Key words: Jaundice; obstructive jaundice; preoperative preparation.

Referências

1. AARSETH, S.; BERGER, A. & AARSETH, P. — Circulatory homeostasis in rats after bile duct ligation. Scand. J. Clin. Lab. Invest, 39:93-7, 1979.

2. AOYAGI, T. & LOWENSTEIN, L.M. — The effect of bile acids and renal ischemia on renal function. J. Lab. Clin. Med., 77:689-92, 1968.

3. ARMSTRONG, C.P.; DIXON, J.M. et ai. — Surgical experience of deeply jaundiced patients with bile duct obstruction. Br. J. Surg., 77:234-8, 1984.

4. BISMUH, H.; KUNTZIGER, H & CORLETTE, M.B. — Cholangitis with acute renal failure. Ann.Surg., 787:881-7,1975.

5. BLAMEY, S.L.; FEARSON, K.C.H. et ai. — Prediction of risk in biliary surgery. Br. J. Surg., 70:535-8, 1983.

6. BLADFIELD, J.W.B. — Control of spillover: the importance of Kupffer cell function in clinicai medicine. Lancet, 2:883-6, 1974.

7. BROOK, I. —Aerobic and anaerobic microbiology in the biliartract disease. J. Clin. Microbiol., 27:2373-5, 1989.

8. CAHILL, P.L. — Prevention of postoperative renal failure in obstructive jaundice: the role of bile salts. Br. J. Surg., 70:590-5, 1983.

9. CORDOVA, C; VIOLI, F. et ai. — Pre-kallikrein factor VII as prognostic index of liver failure. Am. J. Clin. Pathol., 85:579-82, 1986.

10. DAWSON, J.L. —Acute postoperative renal failure in obstructive jaundice. Ann. R. Coll. Surg. Engi, 747:61-5, 1968.

11. DIXON, J.M.; ARMSTRONG, CP. & DUFFY, S.W. — Factors affecting morbidity and mortality after surgery for obstructive jaundice: a review of 373 patients. Gut, 28:845-52,1982.

12. DYMOCK, I.W.; TUCHER, J.S. ef ai. — Coagulation studies as a prognostic index in acute liver failure. Br. J. Haematoi, 25:385-95, 1975

13. EVANS, H.J.R.; TORREALBA, V ei aí. —The effect of preoperative bile salt administration on portoperative renal function in patients with obstructive jaundice. Br. J. Surg., 69:706-8,1982.

14. FLANNIGAN, G.M.; PETERSON, J.C. et ai. — Glucose and alanine metabolism in obstructive jaundice. Clin. Nutr, 4:26-7, 1985.

15. FLORES, J.; DIBONA, D.R. et ai. —The role of cell swelling in ischemic renal damage and the protective effect of hypertonic solute. J. Clin. Invest., 51:118-26, 1972.

16. GELMAN, S. & FRANETTE, L. — Effects of anaesthetics on liver blood flow. Clin. Anestesio!., 6:729-50, 1992.

17. GRANT, M.D.; JONES, R.C. et ai. — Single-dose cephalosporine prophilaxys in high-risk patients undergoing surgical treatment of the biliary tract. Surg. Gynecol. Obstet, 774:347-54,1992.

18. GREEN, J.; BEYER, R. ef ai. —Jaundice, the circulation and the kidney. Nephron., 37: 145-52,1984.

19. GREEN, G.; POLLER, L. ei ai. — Factor VII as a marker of hepatocellular biological data in liver disease. J. Clin. Pathol., 29:971-5,1976.

20. GREENBURG, A.G. — Benefits and risks of blood transfusion in surgical patients. World J. Surg., 20:1189-93, 1996.

21. HALLIDAY, A.W.; BENJAMIN, I.S. & BLUMGART, LH. — Nutritional risks factors in major hepatobiliary singery. JPEN, 72:43-8, 1988.

22. HATFIELD, AR.; TERBLANCHE, J. & SATAAR, S. — Preoperative externai biliary drainage in obstructive jaundice. Lancet, ii: 896-9, 1982.

23. HENDERSEN, I.S.; BEATTIE, T.l. & KENNEDY, A.C. — Dopamine hydrochloride in oliguric states. Lancet, ii: 827-8, 1980.

24. KEIHLEY, N.R.; RAZAY, G. & FITZGERALD, M.G. — Influence of diabetes on mortality and morbidity foilowing operations for obstructive jaundice. Ann. fí. Coll. Surg. Engl., 66:49-51,1984.

25. MARNE, C.; PALARES, R. et ai. — Gangrenous cholecystits and acute cholangitis associated with anaerobic bactéria in bile. Eur. J. Clin. Microbiol., 5:35-9, 1986.

26. MC PHERSON, G.A.D.; BENJAMIN, I.S. et ai. — Preoperative percutaneous transhepatic biliary drainage: the results of a controlled trial. Br. J. Surg., 77:371-5, 1984.

27. MEIYER, W.S.; SCHMITZ, P.M. & JECKEL, J. — Meta-analysis of randomised, controlled trials of antibiotic prophylaxis in biliary tract surgery. Br. J. Surg., 77:283-90, 1990.

28. PAIN, J.A. & BAILEY, M.E. — Measurement of operative plasma endotoxin leveis in jaundiced and non-jaundiced patients. Eur. Surg. Res., 79:207-16,1987.

29. PAIN, J.A.; CAHILL, C.J. & BAILEY, M.E. — Preoperative complications in obstructive jaundice: terapeutic considerations. Br. J. Surg., 72:942-5,1985.

30. PALLER, M.S.; HOIDAL, J.R. & FERRIS, TF. — Oxygen free radicais in ischemic acute renal failure in the rat. Br. J. Surg., 75:352-6, 1987.

31. PAPPERO, S. — Hepatorrenal syndrome. In: Epstein, M. — The kidney in liver disease. New York, Elsevier Science Publishers, 1983. p. 87-106.

32. PITT, H.A.; CAMERON, J.L. et ai. — Factors affecting mortality in biliary tract surgery. Am. J. Surg., 747:66-72, 1981.

33. PITT, H.A.; GOMES, A.S. et ai. — Does preoperative biliary drainage reduce operative risk or increase hospital cost? Ann. Surg., 201:545-53, 1985.

34. ROUGHNEEN, P.T.; DRATH, B.D. et ai. — Impaired non-especific cellular immunity in experimental colestasis. Ann. Surg., 206:578-82,1987.

35. SHERLOCK, S. & DOOLEY, J. — Disease ofthe liver and biliary system. 9. ed., Oxford, Blackwell, 1993.

36. SIEGMAN-IGRA, Y.; SCHWARTZ, D. ef ai. — Predict factors for bactibilia in acute cholecystitis. Arch. Surg., 725:261-4, 1990.

37. SMITH, R.C; POOLEY, M. et ai. — Preoperative percutaneous transhepatic internai drainage in obstructive jaundice: a randomised, controlled trial examining renal function. Surgery, 97:641, 1985.

38. STAMBUK, E.C.; PITT, H.A. et ai. — Percutaneous transhepatic drainage: risks and benefits. Arch. Surg., 118:1388-94,1983.

39. THOMPSON, J.E.; BENNION, R.S. et ai. — Predictive factors for bactibilia in acute cholecystitis. Arch. Surg., 725:261^, 1990.

40. THOMPSON, J.E.; EDWARDS, W.H. ef ai. — Renal impairment foilowing biliary tract surgery. Br. J. Surg., 74:843-7,1987.

41. THOMPSON, R.I.E.; HOPER, M. et ai. — Development of reversibility of T lymphocyte dysfunction in experimental obstructive jaundice. Br. J. Surg., 77:1229-32,1990.

42. TIGERSTED, I. — Postoperative pain. Curr. Op. Anestesio!., 3:771-6, 1990. 43. TORRES, O.J.M.; SILVA, A.J.R. ef ai. — Colecistectomia por minilaparotomia. Rev.

Brás. Med., 57:645-50,1994. 44. TORRES, O.J.M.; COSTA, D.S. et a! — Colecistectomia videolaparoscópia: análise

dos 65 casos iniciais. Rev. Col. Brás. Gr., 22:45-7, 1995. 45. TORRES, O.J.M.; SERRA NETO, A. et a! — Duodenopancreatectomia por adenocarcinoma

de duodeno em paciente acima de 80 anos. Rev. Brás. Med., 53:836-7,1996. 46. WAIT, R.B. & KAHNG, K.V. — Renal failure complicating obstructive jaundice. Am.

J.Surg., 757:256-63,1989. 47. WILLIAMS, R.D.; ELLIOT, D.W. &ZOLLINGEN, R.M.—The effect of hypotension in

obstructive jaundice. Arch. Surg., 81:182-8, 1960. 48. WILLIS, R.G.; LAWSON, W.C. et ai. —Are bile bactéria relevant to septic complication

after biliary surgery? Br. J. Surg., 77:845-9, 1984. 49. ZAMBRASKI, E.J. & DVNN, M.J. — Importance of renal prostaglandins in control of

renal function after chronic ligation of cammon bile duct in dogs. J. Lab. Clin. Med., 703:549-59,1984.

Endereço para correspondência PROF. ORLANDO TORRES Rua Ipanema, 1, BI. I/204— Ed. Luggano — São Francisco 65076-060 — São Luís-MA

40 AGOSTO, 1998 VOL 75 • Nº 2