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Posse e valor: uma prática educativa em arte a part ir da pinacoteca do CEP Lorene De George1 O presente artigo expõe um relato reflexivo da proposta pedagógica desenvolvida pela autora atuante no PDE (Programa de Desenvolvimento Educacional), nos anos de 2008 - 2009, implementada no Colégio Estadual do Paraná (CEP) na qual a pinacoteca do referido estabelecimento de ensino foi utilizada como recurso para o ensino da arte na instituição. Apresenta além da pesquisa de campo com amostragens percentuais acerca do conhecimento dos alunos sobre a coleção de pinturas do colégio, reflexões de autores como BOURDIEU (2003), FRANZ (2003) e SUANO (1986) sobre patrimônio, educação, sociologia da arte, direito à cultura e também sobre os resultados desta prática com opiniões dos estudantes deste colégio e demais dados. This actual article presents a pedagogic reflective by the author active in PDE (program of education ) development in the 2008 -2009, implemented at CEP (The State College of Paraná) in wich the library of that educational establishment was used as a resourse for teaching art in institucion. Has presents in addition, to field research with samples of the percentage students knowledge about the colletions of paitings, reflections of authors such as Bourdieu(2003), Franzs (2003) and Suano ( 1996) about heritage, education, sociology, art, right to culture, and also the results of this practice, with reviews students at this scholl and others data. Palavras-chave: Ensino da arte. Pinacoteca do CEP. Mediação.
A nova história do ensino da arte no país traz uma novidade já idosa, o
ensino a partir das idéias do patrimônio utilizando para tanto, monumentos,
praças, ruas, edificações e museus. Não se trata de uma novidade porque estas
referências da cultura já fazem parte dos ideais do ensino da arte a tempo, mas
apenas a partir das alterações legais, modificações dos posicionamentos dos
profissionais e até da atualização das licenciaturas, estas idéias começaram a se
tornar práticas. Hoje existe a Educação Patrimonial e publicações com
metodologias específicas. É uma mudança positiva apesar de ocorrer
principalmente nas cidades capitais uma vez que nelas se encontram os
instrumentos de cultura, museus e instituições, e junto a eles a crescente
demanda de sua utilização pela educação.
1 Professora de Arte, especialista, no Colégio Estadual do Paraná, participante do Programa de Desenvolvimento Educacional – PDE, orientação do professor Luciano Buchmann da Faculdade de Arte do Paraná – FAP.
Desde as primeiras discussões sobre o ensino da arte (década de 1970)
que resultaram na incorporação da disciplina Arte dentro da área de Linguagens,
Códigos e suas Tecnologias ao lado de Educação Física, Língua Portuguesa e
Língua Estrangeira Moderna, na LDB n° 9394 de 1996, vem ocorrendo uma
valorização da arte enquanto disciplina, não por sua obrigatoriedade nos
currículos nacionais de educação básica (níveis fundamental e médio), mas pela
nova abordagem da arte fundamentada numa proposta de Ana Mae Barbosa, a
princípio denominada Metodologia Triangular2 (inspirada na Disciplined-Based-Art
Education que teve suas bases teórico-metodológicas lançadas na década de
1960, nos Estados Unidos, com a ajuda de professores e artistas)
Esta proposta se apresentou inicialmente como forma de trabalho
educativo em museus. A autora, que foi diretora do Museu de Arte
Contemporânea de São Paulo, aplicou um programa de arte-educação em 1987
combinando trabalho prático com leituras de obras de arte e história da arte e
investigou “a reação de professores de arte para com a introdução de imagens no
ensino da arte e para com a produção infantil sob a influência destas imagens”
(BARBOSA,1996, p.20)
Nossa concepção de história da arte não é linear, mas pretende contextualizar a obra de arte no tempo e explorar suas circunstâncias. Em lugar de estarmos preocupados em mostrar a chamada “evolução” das formas artísticas através do tempo, pretendemos mostrar que a arte não está isolada de nosso cotidiano, de nossa história pessoal (BARBOSA, 1996, p.19).
Esta proposta vem se mantendo com uma constante presença no ensino
da arte no Brasil, mas hoje se tem buscado não só o uso de reproduções, mas
cada vez mais a aproximação dos estudantes com as obras no entendimento que
somente diante do objeto de arte é que se possa realizar a verdadeira fruição e
apropriação da arte, uma vez que o professor possibilite o acesso e a mediação
destas obras, entendendo por mediação não a mera intervenção do mediador
com a preocupação de troca de informações e experiências, mas principalmente
da promoção do encontro positivo entre obra e observador no sentido de instigar,
provocar, despertar, desenvolver o olhar e enriquecer os sentidos na construção
do pensamento em arte.
2 Mais tarde Ana Mae Barbosa passaria a chamá-la de Proposta Triangular.
Sem desmerecer o uso de reproduções fotográficas, sejam por reprografia,
transparências, slides ou apresentações virtuais que auxiliam e está presente na
maior parte das práticas educativas escolares, o impacto que uma obra de arte
possa causar, pela sua dimensão, texturas, volume e cores, por exemplo, são
infinitamente superiores a uma reprodução, por melhor que ela seja. As
reproduções nos auxiliam no campo do conhecimento e da informação, uma vez
que é impossível nos transportarmos para diante de uma obra cada vez que
formos estudá-la. Porém não tem sentido explicar sobre texturas e relevos de
uma pintura que aos olhos dos educandos são imperceptíveis, seja pela
qualidade ou tamanho da reprodução, ainda menos sentido falar de esculturas ou
objetos tridimensionais enquanto apresentamos apenas uma reprodução
fotográfica impressa, ou em mídia digital, com uma única visão bidimensional
desta peça.
Hoje em dia contamos com uma quantidade significativa de mídias que
propiciam a visão de uma obra de arte seja por imagem fixa ou móvel, “mas uma
experiência indireta com a obra não substitui a experiência direta” (LEITE, 2006,
p. 24), e é evidente que o conhecimento, diante do objeto observado, direta ou
indiretamente, só se efetivará a partir do momento em que se construa um novo
olhar do observador, ou seja, que ele traga um significado para quem assiste.
Esta construção não acontece de forma espontânea, daí a necessidade de
uma intervenção educativa que permita a superação do senso comum.
O desafio nos contextos de ensino da arte, tanto na escola como nos museus, é ajudar os estudantes a alcançar níveis mais complexos da compreensão e de reflexão crítica sobre a obra de arte e as imagens da cultura visual (FRANZ, 2003, p. 16).
Para que se realize uma experiência estética diante da obra é preciso mais
que o preparo do professor ou mediador, é necessário possibilitar a saída dos
estudantes em direção a determinada exposição ou instituição. As dificuldades
que os professores precisam superar são muitas: convencer dirigentes e colegas
da importância de tal ação educativa, conseguir transporte e autorizações dos
pais ou responsáveis e agendamento nas instituições a serem visitadas nas datas
e horários que causem o menor impacto possível na rotina escolar. Além destes
itens organizacionais, ainda é absolutamente necessário a preparação do grupo
com conhecimentos prévios para a visita que farão. Se não forem
complementares estes pólos, pedagógico e logístico, novos investimentos deste
gênero poderão ser impedidos no futuro.
Parecida a esta situação e ao mesmo tempo bastante diferente, é a
realidade do Colégio Estadual do Paraná (CEP). Como toda instituição de ensino
sofre de todas as dificuldades já elencadas nas tentativas de visitações a museus
e exposições. Embora sua localização na cidade de Curitiba seja privilegiada,
com suas instalações próximas a monumentos, museus, centros culturais e
edifícios históricos, retirar os estudantes de seu colégio não depende somente do
tempo de ausência ou meio de transporte, uma vez que em algum destes locais
poderiam se chegar caminhando. A realidade é bem distinta, raramente alguns
professores têm sucesso nas tentativas e conseguem propiciar esta experiência
aos seus educandos, considerando também as especificidades de horários das
instituições visitadas.
O Colégio Estadual do Paraná
O Colégio Estadual do Paraná foi fundado em 1846, como Liceu de
Coritiba, quando o Paraná ainda pertencia a Província de São Paulo, passa a
denominar-se Instituto Paranaense em 1876 e com a Reforma do Ensino
Gymnásio Paranaense. Em 1904 é inaugurada sua terceira sede própria que
funcionou onde hoje se encontra instalada a Secretaria de Cultura do Paraná
(SEEC), na rua ébano Pereira, entre as ruas Cruz Machado e Saldanha Marinho,
e ai permaneceu durante a primeira metade do século passado. Em 1942 passa a
denominar-se Colégio Paranaense até o ano seguinte quando, por Decreto
Federal recebe a atual denominação. No ano de 1950 é inaugurada sua última
sede, situada no início da Avenida João Gualberto.
Em junho de 1957 é criada a Escolinha de Arte CEP localizada no subsolo
da ala par do edifício. A Escolinha não foi projetada na construção do novo
estabelecimento, porém no espaço que antes abrigava a marcenaria do colégio,
professores de arte ganharam duas salas: a de cerâmica e a de desenho e
pintura, na implementação de uma proposta de atividades complementares. Sua
primeira diretora foi a professora Lenir Mehl 3.
3 A professora Lenir Mehl de Almeida (1924 - 2009), além de orientadora das oficinas foi também uma das idealizadoras deste projeto e também das maiores promotoras deste espaço.
Durante mais de duas décadas este espaço promoveu o acesso, aos
estudantes deste colégio, à prática de criação de trabalhos artísticos, que devido
à qualidade e seriedade com a qual eram orientados e elaborados foram
ampliados para outras linguagens como gravura e fotografia, além da sala de
som4. Nessa época os estudantes podiam frequentar a Escolinha no seu próprio
turno escolar, nos intervalos (recreio), no caso de aulas vagas, ou no contra turno,
sempre com a característica de atividade complementar.
A partir do final da década de 1960 ocorre a implementação do espaço
como aula de arte, que passariam a ser ministradas em salas ambiente com
professores especializados. Esta prática no ensino da arte, por se consagrar
eficiente, seria então incorporada a outras instituições de ensino tanto da rede
pública como particular. Entretanto ainda existe um outro diferencial do Colégio
Estadual do Paraná muito raro em uma escola, uma coleção de arte.
A Coleção de arte do CEP
Esta coleção se trata de um patrimônio cultural adquirido e acumulado ao
longo de toda a trajetória do colégio, destacando-se uma pinacoteca.
Grande parte do acervo já pertencia ao CEP mesmo antes da construção
de sua sede atual.
Estar diante de obras tão significativas é, não só construtivo, como
inspirador, quando se sabe que grande parte deste acervo é composta por
trabalhos de ex-professores, ex-alunos e até de artistas que viveram as duas
situações nesse colégio.
Pertencem à pinacoteca do CEP vinte e oito obras de dezoito artistas,
sendo muitos paranaenses. A obra de data mais antiga trata-se de uma pintura
“Nossa Senhora e o Menino Jesus”, óleo sobre tela de 1884 do artista Joseph
Weiss (1861-1952).
Esta coleção ainda carece de um estudo aprofundado para descobrir a
ordem de sua formação. Não se encontram registros da chegada de algumas
obras, das mais antigas principalmente. Sabe-se, entretanto da doação dos
órgãos governamentais como os óleo sobre tela “Terra Prometida” (1934) e “A
4 A sala de som é hoje sala de ensino da música. No passado, neste ambiente, os estudantes podiam estudar música e piano, ou simplesmente ouvir música, e por isso o nome, aqui respeitado pela sua historicidade.
Fundação de Curitiba” (1947/1948), ambas do premiado pintor paranaense
Theodoro De Bona (1904-1985), e outras pelos próprios autores como a tempera
“O Bar” (1970) de Luis Carlos Andrade Lima (1933-1998) elaborada quando este
atuava como professor na Escolinha de Arte CEP e as mais novas aquisições
que se trata de duas paisagens “Paisagem de Onfler- França” (2005) em óleo
sobre tela, da atual coordenadora das atividades complementares Professora
Dulcirene Montanha Moletta5 (1941) , doada em 2008.
Embora não se tenha o registro exato de quando, provavelmente, as
aquarelas de Emma (1904-1975) e Ricardo Koch (1900-1976), os óleos de Guido
Viaro (1897-1971) e Pedro Macedo (1880-1953) também tenham sido doados em
semelhantes circunstâncias. Outras obras como o nanquim e lápis sobre papel de
Jarbas Schünemann (1951-1992) e a gravura “Paisagem Curitibana” (1997) de
Poty Lazzarotto (1924-1998), foram doadas por familiares após seus
falecimentos, lembrando que ambos foram alunos dessa instituição. Uma obra,
em especial, foi executada por Ricardo Koch a partir de uma encomenda do
próprio colégio para homenagear o Barão de Suruí6, “Retrato do Barão de Suruí”
(1969). Enfim na maioria dos casos existe uma estreita relação entre os artistas e
o estabelecimento que hoje mantém suas obras.
Entre outras obras “Retrato”, “Paisagem” e “Fundo de Quintal” de Miguel
Bakun(1909-1963),”Paisagem Cristo” de Ado Malagoli (1906-1994), “Mar”(1927)
de Lange de Morretes (1892-1954), “O circo” e “Cabras” de Guido Viaro e a
aquarela “Antúrios” (1967) de Emma Koch reforçam o reconhecimento no cenário
artístico, dessa pinacoteca, como produções de alta qualidade estética.
Quanto aos gêneros, a pinacoteca apresenta os retratos “Nossa Senhora e
o menino Jesus”, ”Retrato do Barão de Suruí” e “Retrato”. De natureza morta
“Peixes” Gino Bruno e “Antúrios”. As paisagens predominam, são elas: “Mar”,
“Paisagem Curitibana”, “Barcos” (1928) Pedro Bruno, ”Barcos” Pelterier,
Paisagem de Cristo”, “Paris” (1958) Arruda, “Paisagem” Miguel Bakun, “Fundo de
quintal”, “Paisagem” Pedro Macedo, ”Casario” Ricardo Koch, “Paisagem” (1943)
De Bona, “Cabras” Guido Viaro, “Carroças e cavaleiros” Schiefelbein, “Outono” 5 Autora de diversos livros publicou em 2006 o primeiro volume da Coleção Escolinha de Arte “Arte Sensibilização Pintura Gestual”. 6Manoel Fonseca Lima e Silva, Barão de Suruí (1793-1869), além de militar e político foi Presidente da Província de São Paulo (1844-1847) e fundou o Liceu de Coritiba, neste período, com a Lei n° 33 de 13 de março de 1846.
Ricardo Koch, “Paisagem de Guaratuba” De Bona (1950) “O circo” Guido Viaro e
as duas paisagens de Dulcirene M. Moletta sob o mesmo título, “Paisagem de
Onfler – França”. As duas pinturas históricas são de autoria de Theodoro De
Bona, “A Fundação de Curitiba” e “Terra Prometida”(1934) . Apenas uma cena de
cotidiano de Luis Carlos Andrade Lima “O Bar”.
As obras apresentam um bom estado de conservação considerando que
não estão expostas em ambientes climatizados, sem iluminação e temperaturas
especiais, como as obras de acervo de alguns museus.
A distribuição das pinturas se concentra em três ambientes específicos do
Colégio Estadual do Paraná. No salão Nobre, onde se encontra a maior
quantidade, num total de dezoito obras. Na direção geral que tem expostas nas
paredes de três dos seus ambientes oito obras. E finalmente na Escolinha de
Arte, com duas obras, sendo uma delas um painel mural.
Para entendermos o valor desta coleção é preciso ir além da sua qualidade
estética, mas entender o valor e a função que uma coleção de arte tem em nossa
sociedade.
Cada objeto tem a sua história e o seu significado. Não apenas aquele gerado no ato de sua criação, mas também todos os significados que a ele foram atribuídos ao longo de sua trajetória, bem como aqueles advindos do diálogo entre os diversos objetos de uma coleção (COSTA, 2007, p. 15).
Os pesquisadores que estudam o museu preocupam-se com o estudo do
fenômeno do colecionismo “A formação de coleções de objetos é provavelmente
quase tão antiga quanto o homem e, contudo, sempre guardou significados
diversos, dependendo do contexto em que se inseria” (SUANO, 1986, p. 12). Ao
nos apresentar um levantamento histórico da criação e transformação de museus
através dos tempos, Suano aponta que os atos de colecionar e ter acesso às
coleções estavam ligados a marcas de poderio. Somente a partir da revolução
francesa, no final do século XVIII, é que as coleções dinásticas viriam a se tornar
públicas. “A revolução burguesa organizou o saber e o conhecimento de forma a
consolidar o poder recém adquirido” (SUANO, 1986, P.28), a partir de então uma
das funções do museu passaria a ser educar.
Os museus passam a representar um novo processo de conhecimento do mundo, baseado no conceito de que objetos organizados significam conhecimento e que o conhecimento se expressa em objetos organizados (COSTA, 2007, p.35).
Não se pode esquecer, entretanto que o público está sujeito a receber as
concepções apresentadas pelas suas instituições mantenedoras, sejam elas
públicas ou privadas, “os museus são, não só eles, mas a cultura toda é
argumentativa, por isso mesmo é ideológica... por isso mesmo jamais é neutra...
sempre defende um ponto de vista.” (PESSANHA, 1996, p.36-37). Porém nem a
oferta, aberta ao público, nem a manutenção, com a constante renovação de
acervos, garantem que esta função, a educativa, realmente aconteça a
comunidade, que geralmente busca o museu nas suas horas de lazer. Talvez
influenciados pelo peso histórico da exclusão a essas instituições, grande parte
da população se sente até intimidada na freqüência a exposições de coleções,
principalmente as de arte. Segundo Bourdieu os museus poderiam escrever no
seu frontão – “Que ninguém entre aqui se não for amador de arte” (BOURDIEU,
2003, p.286). O autor complementa seu raciocínio dizendo que este aviso no
frontão seria dispensável uma vez que, todos sabem que apenas aqueles que
conhecem o que o museu apresenta tem disposição adquirida culturalmente a
esta visitação, e que o museu age como um tabuleiro, no jogo social, em que
todos conhecem a regra e a respeitam pela manutenção do status quo. Assim, a
instituição dita educativa age de forma excludente daqueles que não possuem o
conhecimento erudito.
Na tentativa de identificar melhor qual é o público, e qual a sua relação
com as obras nos museus de arte na Europa, é que Pierre Bourdieu realiza uma
pesquisa na porta dos museus europeus, na década de 60 do século passado.
A estatística revela que o acesso às obras culturais é privilégio da classe culta, no entanto, tal privilégio exibe a aparência da legitimidade. Com efeito, neste aspecto, são excluídos apenas aqueles que se excluem. Considerando que nada é mais acessível do que os museus e que os obstáculos econômicos – cuja ação é evidente em outras áreas – têm, aqui, pouca importância, parece que há motivos para invocar a desigualdade natural das “necessidades culturais”. Contudo, o caráter autodestrutivo desta ideologia salta aos olhos: se é incontestável que nossa sociedade oferece a todos possibilidade pura de tirar proveito das obras expostas nos museus, ocorre que somente alguns têm a possibilidade real de concretizá-la. (BOURDIEU, 2007, p.69)
A pesquisa de Bourdieu desestabilizou diversas questões. Veio a contribuir
para a nova forma de educação proposta pelos museus, como instrumento de
extensão cultural, aliado ou não ao trabalho das instituições escolares,
desfazendo-se o mito do “gosto” ou “dom natural” que tanto distanciam as classes
menos favorecidas dessas instituições. Esse autor ainda nos aponta que a escola
“poderia compensar (pelo menos, parcialmente) a desvantagem inicial daqueles
que, em seu meio familiar, não encontram a incitação à prática cultural, nem a
familiaridade com as obras”, porém “ao proceder como se as desigualdades em
matéria de cultura não pudessem se referir senão a desigualdades de natureza[...]
o sistema escolar perpetua e sanciona as desigualdades iniciais” (BOURDIEU,
2003, p.108).
A pinacoteca e a proposta educativa no PDE
Ao escolher o objeto da pesquisa para o PDE, como tantos colegas,
procurei algo bem próximo a minha realidade escolar. O fato de trabalhar num
estabelecimento de grande porte, com capacidade física e independência
financeira, uma certa elite ao tratar-se de uma escola pública, pode num primeiro
momento, impressionar e até camuflar as necessidades pedagógicas que o
ensino da arte na instituição possa apresentar. Mesmo antes da minha aprovação
para este programa já tinha uma idéia sobre o que gostaria de desenvolver com
meus educandos. A ausência da inclusão desta coleção como conteúdo, dessas
pinturas, tão próximas de educandos e educadores desse colégio era algo que
me incomodava. Pois nem sempre, diante dos conteúdos a serem trabalhados as
obras que compõe esse acervo eram contempladas por meio de reproduções ou
mediação direta, dispensando a característica excepcional do ensino das artes
visuais no CEP, uma escola que dispõe desta possibilidade.
O acervo da pinacoteca do Colégio Estadual do Paraná é um patrimônio de
todos, mas ao se encerrar na própria instituição, nem a própria comunidade,
estudantes, funcionários e visitantes deste estabelecimento podem apreciá-lo e
construir conhecimento.
Os homens constroem edificações suntuosas em situações como as de auto-atribuição de valor, autopreservação pela religião e para guardar e revelar seus tesouros artísticos. A arte é, pois, a única situação em que a suntuosidade não é auto-referenciada, a não ser que consideremos que todo homem sinta-se, de fato, co-partícipe deste tesouro comum. Se a arte é, de fato, este tesouro compartilhado através do exercício da cidadania, como se explica que esta mesma sociedade que se estrutura para guardá-la não se estrutura para, justamente, repartir entre si a possibilidade igualitária de fruí-lo? Como entender que grandes somas sejam gastas na constituição de museus de arte por sociedades que não investem em educar para a fruição da arte? (BERG,1996, p.XII) .
Marilena Chauí, ao conceber cultura como um direito do cidadão, nos
lembra o papel do Estado ao garantir este direito por meio de acesso. “Se,
portanto nem todos são pintores, mas praticamente todos amam as obras de
pintura, não seria melhor que estas pessoas tivessem o direito de ver as obras
dos artistas, fruírem-nas, ser levadas a elas?” (CHAUI, 2006, p. 137)
Suano, Buchmann, Martins, Leite e Santos ao relatarem suas experiências
no campo do ensino da arte apresentam propostas de aproximação e contato
direto com as obras de arte presentes nos museus, galerias, praças, órgãos
públicos, fundações, etc., porém Leite afirma que:
Existe uma semiologia do olhar que não é sempre a mesma: dependendo do lugar (ou contexto) em que se encontra a obra de arte, o olhar que ela vai exigir (ou não) do contemplador será diferente. São inúmeras as formas de ver as obras, dependendo de onde elas se encontram e de por que lá se encontram (LEITE, 2006, p.26).
Ao pensar numa prática educativa que utilizaria como recurso o seu próprio
patrimônio cultural é que se decidiu pela proposta pedagógica “A Pinacoteca do
Colégio Estadual do Paraná – Posse e Valor dos Estudantes”, parte integrante do
PDE. Trata-se de algo inédito como proposta de ensino das artes visto os motivos
já elencados.
Compreendendo que conhecer este acervo significa desvelar as relações
entre as obras e seus autores com o próprio espaço escolar, buscou-se a
aproximação dos estudantes com a sua pinacoteca pelo conhecimento e
apropriação, neste sentido concordamos com Ana Mae “A escola seria a
instituição pública que pode tornar o acesso à arte possível para a vasta maioria
dos estudantes em nossa nação” (1996, p.33). No caso do CEP, com uma
coleção, esta frase, nesta proposta de ensino, poderia se tornar prática e não
teoria.
Como Franz entendemos que para que o nosso educando possa atuar
como cidadão livre e consciente se faz imprescindível o posicionamento escolar
frente aos processos de mudança, preparando-os para uma compreensão mais
crítica do mundo e de si mesmos.
A Escola não pode seguir ignorando como está sendo elaborado (pelos que por ela passam) este processo de globalização, de homogeneização, de perdas de referências da identidade, de perpétua agitação causada pelas mudanças bruscas, às vezes violentas, em todos os âmbitos da vida. (FRANZ, 2003, p.42).
No intuito de averiguar a relação entre a comunidade de estudantes do
CEP e a sua pinacoteca, propôs-se uma pesquisa7 aos estudantes de 1ª e 2ª
série do ensino médio, escolha esta pelo fato de até 2007 não ser ofertado o
ensino fundamental neste estabelecimento. Participaram da pesquisa cinquenta e
duas turmas nos três turnos. Foi solicitado, de forma voluntária, o envolvimento de
quatro estudantes por turma, o que foi atendido sem problemas segundo
depoimento de professores, que colaboraram na aplicação do questionário
incentivando e permitindo que seus educandos o respondessem durante o horário
de suas aulas. Infelizmente alguns questionários foram devolvidos sem o devido
preenchimento o que resultou num total de cento e sessenta e um estudantes
respondentes. Para a realização da pesquisa contou-se com a autorização da
direção geral do CEP, o apoio de coordenadores da Escolinha de Arte e seus
professores (aproximadamente vinte professores).
Os professores colaboradores da pesquisa foram orientados quanto ao
encaminhamento da mesma. Antes de responder o questionário os educandos
foram convidados a observar atentamente uma reprodução fotográfica da pintura
que se considera a mais conhecida de todo o acervo, tanto pela sua história, valor
estético e conteúdo, como pela sua localização8 estratégica no Salão Nobre.
Trata-se da pintura histórica a óleo, de Theodoro De Bona, nas dimensões de
460x260 cm, elaborado entre os anos de 1947 e 1948 sob o tema e título de “A
Fundação de Curitiba”.
A análise qualitativa e documental apresenta dados que nos mostram a
necessidade deste projeto. Dos cento e sessenta e um respondentes, quarenta e
nove respondeu que já tinham visto aquela pintura antes, o que equivale a trinta
por cento do total das respostas. Com certeza um percentual muito baixo
considerando que, na sua maioria, os estudantes já estavam a mais de um ano no
CEP. Com o intuito de facilitar as respostas no prolongamento da questão,
apresentaram-se algumas alternativas quanto ao local da obra, então o
desconhecimento ficou ainda mais evidente. Surpreendentemente apenas treze
7 Esta pesquisa foi apresentada no 2° Simpósio de Ensino da Arte da FAP em 8 de novembro de 2008 como forma de relato sob o título “A pinacoteca do Colégio Estadual do Paraná – Posse e valor dos estudantes”. 8 Esta pintura encontra-se em destaque, instalada no piso superior deste salão (mezanino), na parede central, com grande visibilidade para quem entra no recinto.
educandos apontaram a localização da obra, outros sabiam apenas que ela
estava no seu colégio.
Perguntado se conheciam a pinacoteca do CEP, uma coleção de pinturas,
talvez a palavra ”pinacoteca” possa tê-los impedido de considerar e incluir as
obras as quais tem acesso semanalmente na Escolinha de Arte CEP, ou ainda
entenderam que só seria apropriada a afirmativa daqueles que conheciam toda a
coleção. De qualquer forma, se revela a carência da apresentação dessa coleção
por meio de uma professora, ou professor, pois das oitenta e uma respostas
afirmativas, menos de um terço, ou seja, apenas vinte e dois afirmaram conhecer
a pinacoteca e tomaram ciência da sue existência pela a ação docente.
Na sequência as respostas denunciam que se por um lado a professora ou
professor de arte é o maior agente a estabelecer contato com a pinacoteca, de
outro o saber dos alunos sobre a existência da pinacoteca não veio da aula de
arte. Nenhum estudante afirmou tê-la visitado formalmente. Isto pode justificar
também a estatística das respostas seguintes: cento e vinte e cinco estudantes
responderam não ter contato com esta coleção. As respostas positivas se devem
a obra “O Bar”, com as observações que o maior contato se propicia pelo fato
desta estar localizada na entrada da Escolinha e “A Fundação de Curitiba” pela
participação deles em eventos no Salão Nobre.
Para verificar o conhecimento acerca das obras citadas pelos estudantes.
“O Bar” e “Fundação de Curitiba”, solicitamos que se fizesse uma descrição e em
seguida uma argumentação sobre a representação da mesma. Tanto numa como
em outra questão, os estudantes se esforçam. Porém nas suas descrições e
comentários denunciam uma leitura ingênua, até bastante superficial, daquela que
seria a obra com a qual tiveram mais contato, optando pelo óbvio, se atendo a
personagens e títulos.
Quanto a obra mais representativa da pinacoteca, “Fundação de Curitiba”
de Theodoro De Bona, destacam-se dois focos mais abordados: a descrição
simples do que se vê, com comentários sobre os índios e sua nudez, os
colonizadores brancos que em contraste com os índios estão todos vestidos, a
paisagem local, onde alguns estudantes fazem referência aos pinheiros araucária
e assim reconhecem que se trata de uma cena paranaense, e a temática onde se
arriscam palpites como colonização, discussão entre índios e colonizadores, e
outros até falam da chegada de portugueses em praias brasileiras, numa total
inobservância da cena, possivelmente influenciados por outra pintura histórica
como a “Primeira Missa no Brasil” (1860) de Victor Meirelles de Lima (1832-
1903), amplamente divulgada pelos livros didáticos da disciplina de história.
Ao opinarem sobre a existência e função de uma pinacoteca no colégio,
muitos estudantes fizeram a ligação da pinacoteca com a disciplina de Arte.
Felizmente a maioria reconhece o seu valor e entende que conhecê-la poderia
levá-los a um crescimento não só de domínio estético, mas também de atitudes
de criticidade. Muito embora suas opiniões sejam coerentes deve-se lembrar que
esta pinacoteca se formou através dos tempos, possivelmente, nunca
compreendida que poderia tornar-se um recurso didático na referida disciplina ou
de qualquer outra.
Finalmente, ao serem questionados sobre a possibilidade de acesso das
pessoas a esta coleção a negativa foi esmagadora, com muitas observações de
que até mesmo eles, os estudantes do CEP, a desconhecem.
Como desenvolver uma prática educativa a partir da coleção?
Em toda a investigação nenhuma referência ao estilo, técnicas e materiais,
enfim as características e identidades peculiares a cada obra, foram
mencionadas. Constata-se então que o simples acesso as obras não concretiza a
apropriação da mesma.
Entrar num museu ou instituto cultural sabendo o que expõe não garante que possamos aproveitar a visita para ampliar os nossos conhecimentos. As informações são importantes, quer sejam por leitura, pesquisa ou pelo monitor ou mediador, mas o importante é também o nosso olhar/corpo singular, o encontro entre nossas referências pessoais e sociais com o que os nossos olhos vêem, como que os nossos ouvidos ouvem, com o que o nosso corpo sente. (MARTINS, 2005, p.14)
Portanto, a escolha de como e o que ensinar diante de uma obra, depende
do planejamento do educador, cuja formação segundo Freire “não pode fazer-se
alheada, de um lado, do exercício da criticidade que implica a promoção da
curiosidade ingênua à curiosidade epistemológica, e de outro, sem o
reconhecimento do valor das emoções, da sensibilidade, da afetividade, da
intuição ou adivinhação” (FREIRE, 2006, p.45)
Fortalecida pelos pensamentos e relatos de experiências dos autores já
referenciados neste artigo é que fui aos poucos construindo um plano de ação
no objetivo de modificar não só a minha prática pedagógica, mas também de
propiciar novas possibilidades de produção de conhecimento a partir das imagens
das obras da pinacoteca CEP, fotografadas para a elaboração de um material
didático de apoio.
As imagens disponíveis são mediano-ruins, somente impressas e de difícil
acesso, o que as retiram da prática de qualquer educador. Assim fotos digitais de
boa resolução e que permitam a leitura dos seus detalhes foram produzidas e
resultaram na elaboração de um material didático, em forma de unidade temática,
apresentado como parte integrante do PDE. Chamado de Produção Didático-
Pedagógica pelo programa, o material se compõe de um CD com trinta imagens
gravadas em JPG, que por sua alta definição permitem a impressão no tamanho
A3 e um texto apresentando a pinacoteca com os principais dados de
identificação de cada obra.
Ao propiciar o acesso, através deste material, a todos os professores, uma
vez que futuramente, de acordo com a promessa do programa, este se
disponibilizará digitalmente a todos, cumprir-se-á um dos objetivos do projeto: a
democratização do acervo da pinacoteca CEP.
No início de 2009 fez-se a escolha da 5ª série9 para a aplicação do projeto,
na intenção de garantir que todo estudante, desde o princípio de sua história no
colégio, tenha acesso e conhecimento de sua pinacoteca no sentido de construir
o sentimento de pertença deste patrimônio.
Na elaboração do plano de trabalho docente para o ano de 2009, o projeto
de estudo da pinacoteca se encontra inserido e totalmente relacionado ao
currículo básico do Estado do Paraná que propõe a organização curricular a partir
dos conteúdos estruturantes de arte: elementos formais (recursos empregados
numa obra, elementos da natureza e da cultura), composição (processo de
organização dos elementos formais) e movimentos e períodos (revela aspectos
sociais, culturais e econômicos presentes numa composição artística).
9 Há muitos anos o CEP só oferecia o ensino médio. A partir de 2008 abriu sua oferta também para o ensino fundamental, séries finais.
Antes de iniciar o estudo da pinacoteca trabalhou-se com a história de
coleções e museus através de livros e textos, para assim compreender a
importância da conservação e manutenção das peças de uma coleção. Como
forma de apresentar e valorizar o patrimônio do colégio visitou-se vários espaços
onde se encontram coleções, como a biblioteca, o museu Guido Straube10 e o
saguão superior (1° andar) que abriga a coleção de troféus e medalhas, deixando
por último a passagem pelo Salão Nobre, apresentando-se assim a existência de
uma pinacoteca no colégio.
Considerando-se as especificidades do ensino da arte no CEP, onde se
trabalha semestralmente (subdivisão da turma em dois grupos), e respeitando o
calendário, teve que se fazer escolha de quais obras seriam apresentadas e
estudadas, considerando também o tempo e espaço apropriado para a realização
das aulas.
A fim de organizar uma forma de apresentação se optou pelas categorias
de gêneros acadêmicos de arte presentes na pinacoteca CEP como retrato,
natureza morta, cenas históricas e paisagens, propiciando ligações entre autores
de estilos e épocas diferentes.
Os dois grupos conheceram, visitaram e estudaram a pinacoteca, porém
cada um realizou um estudo mais aprofundado de diferentes obras com exceção
da pintura histórica “A Fundação de Curitiba”.
Esta obra foi estrategicamente escolhida para iniciar o ensino da
pinacoteca nos dois semestres. O artista ao elaborar esta pintura baseou-se em
duas lendas que explicam a fundação da cidade de Curitiba11. Coincidentemente
no início de cada semestre temos datas referentes a esta cidade, são elas: 29 de
10 Guido Straube (1890-1937) foi professor de história natural no antigo Ginásio Paranaense (atual CEP) Iniciou uma coleção com material de apoio as suas aulas, como espécimes de botânica, geologia e zoologia. O acervo foi transportado para a atual sede do colégio e esta coleção se ampliou. Hoje transformada em museu, além de objetos, reúne mobiliários, fotografias e documentos históricos do próprio colégio. 11Uma lenda diz que um grupo de bandeirantes teria convidado o cacique Tindiguera para lhes dar a indicação do melhor local para a fundação de uma povoação. Este o fez com uma vara na mão, fincando-a no chão e dizendo: “aqui”. Posteriormente neste lugar seria erguida uma capela a Nossa Senhora da Luz. A outra lenda conta que em uma capela erigida a Nossa Senhora da Luz, no vilarinho dos Cortes (hoje Atuba), a esfinge de Nossa Senhora teria todas as manhãs seus olhos luminosos voltados para o poente (Curitiba) indicando onde seria a sua igreja definitiva. Os moradores decidiram então atender ao pedido da santa e destemidamente se dirigiram ao local, preparados para o enfrentamento com os índios. Ao contrário do esperado foram cordial e generosamente acolhidos pelos índios que lançaram seus arcos ao chão em sinal de paz.
março, fundação de Curitiba e 8 de setembro, homenagens a padroeira Nossa
Senhora da Luz dos Pinhais.
Os encaminhamentos privilegiam três momentos da prática pedagógica em
arte que segundo os parâmetros curriculares do Estado do Paraná são: teorizar,
que consiste na abordagem do conhecimento historicamente construído; sentir e
perceber, que propicia a apreciação da obra em uma dimensão estética e
finalmente o trabalho artístico, ou seja, o trabalho criador, com experiências
artísticas empregando materiais específicos de arte, ou não.
No caso de “A Fundação de Curitiba”, iniciou-se com o contato direto com
a obra. Os estudantes foram ao Salão Nobre e num primeiro momento, sentados
diante desta pintura exercitaram uma observação minuciosa. Em seguida
começaram os questionamentos por parte de estudantes e professora, na
tentativa de se obter informações e pensamentos sobre a mesma. As perguntas
mais comuns surgiram nos dois grupos, sobre a nudez dos índios e se de fato o
artista viu a cena representada, o que abriu um caminho para se falar de pintura
histórica. Os educandos compreenderam e eles mesmos fizeram comparações
com outras obras, como “O grito do Ipiranga” (1888) de Pedro Américo (1843 -
1905). Contei rapidamente as lendas que inspiraram o artista, e aos poucos
alguns elementos que num primeiro olhar não traziam significados, foram sendo
revelados, como as palavras em destaque no alto da moldura “Taki Kéva”, que
significa ”é aqui”, anúncio feito pelo cacique no momento em que fincou a lança
para apontar o local da nova vila.
Os olhares continuaram passeando atentamente pela pintura, fizeram
observações sobre as pessoas, animais, paisagem de fundo, cores e texturas,
observando que em alguns fragmentos da tela não existem pinceladas de tinta,
deixando transparecer o suporte. Aproveitei então para falar um pouco das
referências do artista, suas características, seu domínio na representação da
figura humana e apresentei outras pinturas de De Bona que também estão no
mesmo ambiente. As semelhanças de figuras, como as mães amamentando, as
cores das roupas, os verdes da vegetação, e os azuis do céu, foram rapidamente
identificados e apontados pelos estudantes.
Como proposta de trabalho criador, em um outro momento, já em sala de
aula, foi solicitado que desenhassem um fragmento da obra visitada e
justificassem a sua escolha. O resultado foi muito interessante. Ficou clara a
preferência entre os meninos da representação do índio com a lança, muitos até
escreveram, em forma de balão (quadrinhos) a frase do cacique: - Taki-kéva.
Entre as meninas ocorreu a predominância da temática religiosa, interessante que
mesmo entre as que diziam não ser católicas. Figuras femininas, como a mãe
colona amamentando e a mãe indígena com seu filho, representadas no canto
inferior, à direita e ao centro do lado esquerdo de quem observa a pintura,
respectivamente, também apareceram de forma significativa tanto para os
meninos como para as meninas, lembrando que estes estudantes estão na faixa
etária de dez ou onze anos.
Na continuidade do projeto os dois grupos trabalharam na seqüência dos
gêneros natureza morta, retrato e paisagem.
No primeiro semestre a obra “Peixe” Gino Bruno (1899-1977) foi estudada
a partir de um exercício de composição. Como passo inicial os estudantes
elaboraram peixes de dobradura. Após desenhar uma oval na parte de baixo do
espaço da folha de papel, estes peixes (de dobradura) deveriam ser colados
dentro da oval. Na sequência completaram, por meio de desenho e pintura com
giz de cera, a composição. O único ponto em comum seria que todos os trabalhos
se titulassem “Peixes”. A variedade foi surpreendente, as ovais se transformaram
em aquários, em conchas, em pedras, em panelas, em estômagos de outros
bichos, enfim, os peixes apareceram vivos e mortos. Com os trabalhos
concluídos, cada educando expôs seu pensamento para a composição, foi então
que lhes apresentei a obra de Gino Bruno e diante desta fizemos a mediação.
Todos queriam ver de perto, mas muito perto. As cores, o tratamento das tintas e
suas texturas foi o que mais chamou atenção de imediato, só então começaram a
fazer relações com suas pinturas, observando os demais elementos e
constatando que assim como no exercício que eles executaram, os peixes de
Gino Bruno também estavam dentro de uma oval, o prato, ou bandeja. Brincaram
dizendo que quem havia representado o peixe morto teria acertado, pois estava
mais próximo da composição do artista e “mais adequado” ao gênero natureza
morta. Brincadeiras à parte, os estudantes saíram impressionados com a
qualidade da pintura, com muitos comentários de que se tratava da “pintura mais
bonita” da pinacoteca.
O segundo grupo trabalhou como natureza morta, a aquarela de Emma
Koch (1904-1975), “Antúrios”. Assim como os colegas, os exercícios de
composição vieram primeiro. Iniciou-se com um desenho de observação de
plantas naturais, colocadas sobre as mesas, que evoluiu para a pintura a
aquarela. Interessante que na representação a lápis os estudantes foram bem
observadores e muito fiéis a imagem representada, porém no momento de
colocar cor algo inusitado começou a aparecer. A folhagem que era predominante
verde ganhou novos tons. Os trabalhos ficaram muito coloridos, e tive a sensação
de que todos queriam aproveitar ao máximo daquela técnica que lhes estava
sendo oferecida. A pintura de Emma Koch foi apresentada num primeiro momento
por imagem digital seguida de informações sobre a artista, suas obras e técnica
desenvolvida. Mais tarde em visita a sala da direção, local onde se encontra a
obra, os educandos puderam observar e fruir da mesma. De imediato surgiram
comentários expressando a qualidade da pintura, uma vez que já tinham
experimentado a técnica e considerado difícil.
A abordagem do trabalho com retratos, consistiu em uma breve
explanação sobre a presença dos mesmos ao longo da história da arte, sem a
preocupação de uma linha evolutiva, mas mais com a intenção de se mostrar,
como este gênero pode ser diversificado em técnicas, estilos e formas retratar e
de se auto-retratar. Inevitáveis as perguntas de curiosidades sobre a “Mona Lisa”
(1503- 1506) de Leonardo Da Vinci, o que eu considero muito importante para se
quebrar alguns mitos, e revelar o verdadeiro valor estético desta obra. Em
exposição digital das várias obras da pinacoteca os estudantes identificaram e
apontaram as que se tratavam deste gênero, e estas foram estudadas com mais
informações. Na Escolinha de Arte, diante da obra “O Bar” os educandos
puderam perceber que mesmo uma cena simples, de cotidiano, pode camuflar um
auto-retrato. Poucos estudantes confessaram já ter percebido antes da mediação,
a presença do pintor, que ao mesmo tempo desenha e se insere na cena e nos
observa como espectador.
Os grupos tiveram a oportunidade de exercitar a representação do retrato
do colega, através de desenho de observação. Frente a frente, cada um na sua
vez, fazia o retrato do colega, em tamanho A4, como se fosse uma fotografia 3x4
ampliada. A proposta agradou e todos conseguiram, do seu jeito, transmitir
características do colega representado. Alguns gostaram tanto que trocaram
trabalhos com dedicatórias, levando a sua representação para casa.
O último gênero estudado foi paisagem. Ao grupo do primeiro semestre foi
apresentada com destaque a aquarela “Casario” de Ricardo Koch, em nova visita
ao Salão Nobre, dentre a tantas paisagem ali representadas. Explanou-se sobre
os diversos elementos que podem aparecer em uma composição de paisagem
classificando-as como humanísticas, ou marinhas, por exemplo, e ali mesmo, os
estudantes arriscaram a classificação de algumas com êxito. Como proposta de
trabalho criador cada um criou a sua paisagem e o elemento comum, que deveria
estar presente em todos os trabalhos, eram casas. Interessante como nenhum
tentou reproduzir exatamente a obra de Ricardo Koch, isto nem foi sugerido, mas
a influência das cores (dos telhados coloridos da pintura “Casario”) ficaram
evidentes, deixando a certeza que esta foi bem observada.
No segundo semestre o grupo se ateve ao estudo das marinhas, com
destaque para a pintura de Lange de Morretes “Mar”. Pintura quase
monocromática em tons de azul e verde, quebrados por manchas amarelas. O
elemento cor foi estudado com exercícios de pintura de cores primárias, e suas
misturas recebendo como motivação a representação de algum objeto pessoal.
Após este exercício partiu-se para uma composição de paisagem marinha, com
um leve esboço e pintura a guache, respeitando os princípios já estudados de
cores quentes, frias e complementares, e seus efeitos no conjunto da
composição. Surgiram trabalhos de boa qualidade e o interessante foram os
comentários durante a elaboração dos mesmos, com sugestões e trocas de
informações sobre cores entre os colegas.
Além destes trabalhos por gêneros ambos os grupos fizeram um exercício
de desenho de observação e pintura do pinheiro araucária. O exercício foi feito ao
ar livre, nos jardins do CEP, onde se tem a visão de várias araucárias. Muitos
manifestaram a dificuldade de representação da mesma, mas cada um resolveu
do seu jeito, o que foi muito importante para o próximo passo, pois esta árvore se
encontra na maioria das obras dos artistas paranaenses, constatação feita pelos
educandos diante de diversas pinturas de paisagens em visita ao Salão Nobre. As
araucárias foram identificadas e comparadas na sua forma de representação,
revelando, de certa forma, o estilo de cada artista.
Durante todo o desenvolvimento do projeto aconteceu, aos poucos, o
esperado, quanto à identificação, relação de historicidade e sentimento de
pertença da pinacoteca. Alguns estudantes, antes mesmo de se começar a
explanação sobre alguma obra, já se adiantavam dizendo que o artista foi aluno
ou professor do CEP, demonstrando a percepção quanto a constante existência
desse fato.
Alguns comentários denunciaram a extensão que esta prática alcançou
além da sala de aula. Como a narrativa de uma educanda que ficou sabendo,
após comentários em casa sobre o que estava estudando no colégio, que sua
mãe trabalha para uma sobrinha de Theodoro De Bona. E outra que ao comentar
sobre as atividades nas aulas de arte com o seu dentista, este lhe revelou que
teria sido aluno de Ricardo Koch, ali mesmo no CEP. Senti nestas declarações
um grande entusiasmo por parte das estudantes e a certeza de que a prática, não
se limitava ao conhecer, fruir e criar, mas também de compartilhar com familiares,
amigos e conhecidos das novas experiências e descobertas, enfim o
prolongamento da prática seria tema de outra pesquisa.
Buscando apreender e avaliar todo este processo com os educandos do
CEP, foi proposto um texto em que deveriam contar sobre o trabalho semestral da
disciplina de arte. Os estudantes, na sua maioria, descreveram toda seqüência,
com detalhes sobre as obras, os artistas e as técnicas utilizadas na elaboração de
seus trabalhos. Muitos agradeceram a possibilidade de conhecer presencialmente
as obras, sendo que nunca tinham vivenciado algo semelhante, outros
enfatizaram o prazer da realização de trabalhos com qualidade utilizando
materiais inéditos para eles como a aquarela.
Entre os colegas da Escolinha a aceitação da proposta foi unânime,
entendendo a sua importância, por sugestão das coordenações da Escolinha esta
prática pedagógica será incluída como obrigatória no ensino das artes no CEP
para as séries iniciais. O que é uma grande conquista para o ensino da arte no
colégio, para a comunidade e para mim enquanto docente comprometida com a
democratização do patrimônio e do conhecimento, em arte.
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