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Murhabazi Namegabe 106 “Você vai morrer esta noite. Faça sua última refeição!” Murhabazi leu a curta mensagem em seu celular. Ele estava no meio de uma reunião importante da ONU sobre crianças forçadas a se tornarem soldados na República Democrática do Congo. Olhou cuidadosamente à sua volta. Teria alguém ali enviado aquela ameaça de morte? A luta de Murhabazi pelas dezenas de milhares de crianças exploradas e torturadas na guerra da República Democrática do Congo lhe rendeu muitos inimigos. “Aqui, a luta pelos direitos da criança é uma questão de vida ou morte. E eu estou preparado para morrer nesta luta, todos os dias”, diz Murhabazi Namegabe. M urhabazi nem era nas- cido quando enfren- tou sua primeira ame- aça de morte. Em 1964, a guerra sangrenta assolava Bukavu, na região oriental da República Democrática do Congo, e sua mãe, Julienne, grávida, fugiu correndo pelas ruas estreitas para escapar da guerra. Ela só notou o posto de controle dos soldados quando já era tarde demais. Um dos soldados apontou o cano do rifle contra sua barri- ga, mas justo quando ele ia atirar, um dos líderes gritou: “Não a mate!Deixe-a ir!” Duas semanas depois, Julienne deu à luz seu filho. Ela o chamou de Murhabazi, que no idioma Mashi signifi- ca tanto ‘aquele que nasceu na guerra’, como ‘aquele que aju- da os outros’. “Minha mãe sempre diz que nós sobrevivemos, por- que havia uma razão para eu nascer. E que eu estava pre- destinado a dedicar minha vida para proteger os mais vulneráveis”. Todos devem ter comida! Murhabazi cresceu em um dos bairros mais pobres de Bukavu. Porém, como seu pai tinha emprego, a família sem- pre teve o que comer e as crianças podiam ir à escola. Depois que faziam o dever de casa, eles podiam brincar com os amigos. Logo no primeiro ano da escola, Murhabazi percebeu que nem todos tinham a mesma sorte que a dele. “Muitos dos meus amigos estavam sempre com fome, e não tinham condições de ir à escola. Eu achava aquilo injusto. Todos os dias, crian- ças famintas se amontoavam em frente à nossa casa na hora das refeições. Minha mãe colocava pequenos punhados de comida diretamente em TEXTO: ANDREAS LÖNN FOTO: BO ÖHLÉN POR QUE MURHABAZI É NOMEADO? Murhabazi Namegabe é nomeado ao Prêmio das Crianças do Mundo 2011 por sua longa e perigosa luta de mais de 20 anos em prol das crianças da República Democrática do Congo, país devasta- do pela guerra. Desde 1989, Murhabazi, através de sua organiza- ção BVES, libertou mais de 4.000 soldados-crian- ça e mais de 4.500 meninas abusadas sexual- mente por grupos arma- dos, e cuidaram de 4.600 crianças refugiadas abandonadas. Seus 35 lares e escolas oferecem comida, roupas, um lar, cuidados médicos, terapia, oportunidade de ir à escola, segurança e amor a crianças que estão entre as mais vulneráveis do mundo. A maioria das crianças é reunida às suas famílias. Graças a Murha- bazi, 60.000 já passaram pelos diferentes centros do BVES e conquistaram uma vida melhor. Murhabazi e o BVES representam as crianças da República Democráti- ca do Congo ao exigirem constantemente que o governo, todos os grupos armados, organizações e todos os demais membros da sociedade cuidem das crianças do país. Muitos são contra a luta de Murhabazi. Ele já foi preso, espancado e recebe ameaças de morte constantes. Sete de seus companheiros de trabalho já foram mortos. NOMEADO Páginas 106–125

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Murhabazi Namegebe in Portuguese, from the Globe

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Page 1: Port Murhabazi

Murhabazi Namegabe

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“Você vai morrer esta noite. Faça sua última refeição!” Murhabazi leu a curta mensagem em seu celular. Ele estava no meio de

uma reunião importante da ONU sobre crianças forçadas a se tornarem soldados na República Democrática do Congo. Olhou cuidadosamente à sua volta. Teria alguém ali enviado aquela ameaça de morte? A luta de Murhabazi pelas dezenas de milhares de crianças exploradas e torturadas na guerra da República Democrática do Congo lhe rendeu muitos inimigos.

“Aqui, a luta pelos direitos da criança é uma questão de vida ou morte. E eu estou preparado para morrer nesta luta, todos os dias”, diz Murhabazi Namegabe.

Murhabazi nem era nas-cido quando enfren-tou sua primeira ame-

aça de morte. Em 1964, a guerra sangrenta assolava Bukavu, na região oriental da República Democrática do Congo, e sua mãe, Julienne, grávida, fugiu correndo pelas ruas estreitas para escapar da guerra. Ela só notou o posto de controle dos soldados quando já era tarde demais. Um dos soldados apontou o cano do rifle contra sua barri-ga, mas justo quando ele ia atirar, um dos líderes gritou: “Não a mate!Deixe-a ir!”

Duas semanas depois,

Julienne deu à luz seu filho. Ela o chamou de Murhabazi, que no idioma Mashi signifi-ca tanto ‘aquele que nasceu na guerra’, como ‘aquele que aju-da os outros’.

“Minha mãe sempre diz que nós sobrevivemos, por-que havia uma razão para eu nascer. E que eu estava pre-destinado a dedicar minha vida para proteger os mais vulneráveis”.

Todos devem ter comida!Murhabazi cresceu em um dos bairros mais pobres de Bukavu. Porém, como seu pai tinha emprego, a família sem-

pre teve o que comer e as crianças podiam ir à escola. Depois que faziam o dever de casa, eles podiam brincar com os amigos. Logo no primeiro ano da escola, Murhabazi percebeu que nem todos tinham a mesma sorte que a dele.

“Muitos dos meus amigos estavam sempre com fome, e não tinham condições de ir à escola. Eu achava aquilo injusto. Todos os dias, crian-ças famintas se amontoavam em frente à nossa casa na hora das refeições. Minha mãe colocava pequenos punhados de comida diretamente em

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Por que Murhabazi é NoMeado?Murhabazi Namegabe é nomeado ao Prêmio das Crianças do Mundo 2011 por sua longa e perigosa luta de mais de 20 anos em prol das crianças da República Democrática do Congo, país devasta-do pela guerra.

Desde 1989, Murhabazi, através de sua organiza-ção BVES, libertou mais de 4.000 soldados-crian-ça e mais de 4.500 meninas abusadas sexual-mente por grupos arma-dos, e cuidaram de 4.600 crianças refugiadas abandonadas.

Seus 35 lares e escolas oferecem comida, roupas, um lar, cuidados médicos, terapia, oportunidade de ir à escola, segurança e amor a crianças que estão entre as mais vulneráveis do mundo. A maioria das crianças é reunida às suas famílias. Graças a Murha-bazi, 60.000 já passaram pelos diferentes centros do BVES e conquistaram uma vida melhor.

Murhabazi e o BVES representam as crianças da República Democráti-ca do Congo ao exigirem constantemente que o governo, todos os grupos armados, organizações e todos os demais membros da sociedade cuidem das crianças do país.

Muitos são contra a luta de Murhabazi. Ele já foi preso, espancado e recebe ameaças de morte constantes. Sete de seus companheiros de trabalho já foram mortos.

NOMEADO • Páginas 106–125

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É difícil resgatar crianças“Toda vez que um soldado-criança é libertado, é uma grande vitória. Mas é difícil negociar com os grupos arma-dos. Eles ameaçam nos matar, quando lhes pedimos para libertar as crianças. Depois é difícil lidar com as crianças, pois elas já foram tão abusa-das, maltratadas por adultos. E, muitas vezes, é complicado conseguir que suas famílias, vizinhos, vilarejos e escolas as aceitem de volta”, diz Murhabazi.

Programa de rádio pelos direitos da criançaMurhabazi fala no rádio sobre os direitos da criança, uma vez por semana, há mais de 20 anos.

suas mãos, antes de mandá-las embora. Eu achava que aquelas crianças deveriam se sentar à mesa e comer conos-co até fi carem satisfeitas. Eu disse à minha mãe que me recusava a comer sua comida enquanto não fi zéssemos assim!”

Murhabazi conversou com alguns amigos da escola e jun-

tos começaram a promover uma campanha para que nenhuma criança do bairro passasse fome. Todas as tar-des eles saíam cantando can-ções sobre como os adultos deveriam cuidar de todas as crianças. As crianças explica-ram às suas mães que entra-riam em greve de fome, enquanto as crianças mais pobres não fossem bem-vin-das para partilhar as refeições.

“No início, éramos apenas eu e mais uns poucos, mas logo havia mais de setenta crianças se reunindo todos os dias após a escola!

“Afi nal, os adultos decidi-ram que as crianças famintas eram responsabilidade de todos, e que elas podiam jan-tar com as famílias que tinham comida sufi ciente!”

Convenção dos Direitos da CriançaMurhabazi e as outras crian-ças continuaram a protestar, desta vez para que pais e pro-fessores deixassem de bater nas crianças, e para que todas as crianças pudessem ir à escola. Conforme Murhabazi crescia, mais ele percebia os problemas das crianças na República Democrática do

Congo. Ele sentia que as crianças precisavam de que lutassem por elas e que ele precisaria de mais conheci-mento se realmente quisesse ajudá-las. Por isso, ele estu-dou Desenvolvimento e Saúde da Criança na universi-dade. Após se formar, ele con-tinuou como professor.

Em 20 de Novembro de 1989, ele escutou o noticiário pelo rádio, como costumava fazer depois do trabalho. Naquele dia em particular, o locutor anunciou que a ONU havia decidido adotar o que chamou de Convenção dos Direitos da Criança. A Convenção dizia que todas as crianças, no mundo todo, tinham direito a uma vida digna. O locutor também dis-se que todo país que ratifi cas-se aquela Convenção, deveria considerar o que era melhor para as crianças em todas as suas decisões.

“Fiquei radiante e organizei uma reunião na minha casa com um grupo de professores, alunos e juristas, e contei a eles aquela notícia fantástica. Decidimos fazer tudo que pudéssemos para conseguir que o governo da República Democrática do Congo ratifi -

casse a Convenção dos Direitos da Criança”.

BVES como organizaçãoO grupo de Murhabazi se autodenominou BVES (sigla em francês para – Instituto de Serviço Voluntário para a Criança e a Saúde). Eles começaram a examinar a real situação em que as crianças da República Democrática do Congo se encontravam. Os resultados seriam então apre-sentados ao governo, com foco naquilo que o país preci-sava fazer para cumprir a Convenção dos Direitos da Criança.

Protegido pela ONUMurhabazi conversa com um soldado-crian-ça em frente a um jipe da ONU. Apesar da batalha pelos direitos da criança na República Democrática do Congo ser difícil, algumas coisas torna-ram-se mais fáceis para ele.

“No início, tínhamos que ir a pé, e eu geral-mente fazia as missões de resgate dos solda-dos-criança sozinho. Hoje, conto com a pro-teção da ONU quando viajo até os acampa-mentos de grupos armados. Na realidade, eu nem tenho permis-são para viajar sozinho atualmente!”, ri Murhabazi.

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Celulares e videogames promovem a guerra Há muitas riquezas no Congo. Por exemplo, ouro, diamantes, tungstê-nio e coltan (columbita-tantalita). Esses minérios são usados para fabricar celulares, computadores, videogames e MP3 players em todo o mundo.

“Hoje a guerra é para saber quem controlará todas as minas e riquezas naturais da República Democrática do Congo. Eu fui obrigada pelo meu comandante a garimpar ouro e dia-mantes”, diz Isaya, 15 anos, uma ex-soldada-criança resgatada por Murhabazi.

O confl ito atual começou após o genocídio no país vizinho, Ruanda, em 1994, onde quase um milhão de pessoas do grupo étnico Tutsi foram

assassinadas. Milhares de perpetra-dores fugiram para as fl orestas da República Democrática do Congo, onde permanecem até hoje. A des-confi ança e a disputa pelo poder se instalaram entre Ruanda e a República Democrática do Congo, e logo havia sete países envolvidos em uma das guerras mais brutais da história da humanidade.

Por volta de 2001, a ONU acusou Ruanda, Uganda e Zimbábue de encorajar a guerra apenas para con-seguir o maior número de riquezas possível. Em 2008, a ONU acusou novamente Ruanda de perpetuar a guerra. Em 2009, a organização Global Witness revelou que a guerra na RD Congo era agora liderada por

empresas europeias e asiáticas que fabricam celulares, computadores, videogames e MP3 players. Empresas da Bélgica, Reino Unido, Rússia, Malásia, China e Índia foram apontadas como compradoras de minérios de vários grupos que viola-vam brutalmente os direitos da criança. As empresas fi nanciavam a guerra através da compra de minério desses grupos. O fato de que políti-cos, empresários e soldados na África, Ásia e Ocidente ganham mui-to dinheiro com a guerra na República Democrática do Congo, difi culta o processo para acabar com a guerra.

Murhabazi e o BVES não desistiram, e reuniram dados sobre a situação das crianças nos vilarejos da República Democrática do Congo. Informações terríveis.

“Quando mostramos os resultados ao governo, eles não gostaram nada. Naquela época, a RD Congo era uma ditadura. Se alguém dissesse algo ruim sobre o país, como as crianças que estavam sofrendo, era interpretado

“Não tínhamos dinheiro nem meio de transporte, então muitas vezes caminhá-vamos pela fl oresta vários dias para chegar a vilarejos distantes. À noite, tínhamos que dormir em árvores para não sermos atacados por leo-pardos ou outros animais sel-vagens. Algumas vezes nos ofereciam comida nas vilas, outras comíamos frutas sil-vestres, mas geralmente fi cá-vamos com fome”.

como um ataque ao governo. Recebemos um alerta. Se não parássemos, iríamos para a prisão”.

Crianças de ruaMurhabazi e o BVES não pararam. Eles começaram a falar toda semana no rádio, para que todos conhecessem a Convenção dos Direitos da Criança e fossem informados sobre a situação em que as crianças da República

Democrática do Congo viviam. Toda vez, Murhabazi exigia que o governo ratifi -casse a Convenção. E, toda vez, o governo ameaçava prendê-lo por semear a dis-córdia pelo país com seu dis-curso. Apesar das ameaças contra Murhabazi, o país rati-fi cou a Convenção em 1990, mas sem nenhum esforço real do governo para cumpri-la.

“As ruas de Bukavu esta-vam lotadas de crianças que

Ensina aos solda-dos sobre os direi-tos da criançaQuando Murhabazi visita um grupo armado, ele ensina aos soldados sobre os direi-tos da criança e negocia com eles para libertarem as crianças.

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dizer exatamente para onde íamos. Se eu dissesse, nunca me levariam!”

Quando Murhabazi chegou ao acampamento do exército rebelde na floresta, ele foi cap-turado. Mais de cem soldados armados o rodearam. Os guardas levaram Murhabazi ao líder, que perguntou o que ele queria ali.

“Eu disse que, em nossa cultura, os adultos sempre cuidam das crianças, mas que eu tinha ouvido que esse gru-po havia raptado crianças e as forçava a lutar, em vez de irem para a escola. Falei que estava lá para levar as crianças de volta para seus pais. O líder ficou furioso! Ele pensou que eu era um inimigo que queria enfraquecer seu exército levando seus soldados-crian-ça. Ele ordenou que seus sol-dados rasgassem meus livros sobre os direitos da criança. E então começou o espanca-mento”.

Libertou as criançasMurhabazi foi coberto de coronhadas. Quando ele esta-va gravemente ferido, o pren-deram. Eles explicaram que ele tinha que escolher: tor-nar-se soldado de seu exército ou ser executado. Na manhã seguinte, um dos líderes

para crianças refugiadas. Por sorte, consegui esconder as crianças a tempo, então todas sobreviveram. Porém, meu amigo e primeiro colega de trabalho foi morto”.

Todos os grupos que luta-vam, inclusive o exército da República Democrática do Congo, sequestravam meni-nos e os obrigavam a se torna-rem soldados e capturavam meninas para usar como escravas sexuais. Crianças eram forçadas a abandonar a escola e fugir e geralmente acabavam sozinhas nas ruas de Bukavu ou outras cidades.

“É claro que eu tinha expe-riência com garotos ‘durões’, que tinham vivido nas ruas, mas os soldados-criança eram

não tinham quem cuidasse delas. Seus pais eram muito pobres ou tinham morrido de AIDS. Todas aquelas crianças famintas e sujas tentavam sobreviver sozinhas. Muitas pessoas se referiam a elas como “cães”, mas nós dizía-mos que elas precisavam de proteção e amor como qual-quer outra criança”.

Em 1994, o BVES abriu seu primeiro lar para crianças de rua e 260 crianças foram morar lá. Após alguns meses, muitas delas haviam voltado para suas casas. Mas sempre apareciam novos moradores.

Soldados-criança“Acreditávamos ter visto o pior durante nosso trabalho com crianças abandonadas, mas então veio a guerra e a vida de todas as crianças se tornou um verdadeiro infer-no aqui”, conta Murhabazi.

Em 1996, Bukavu foi inva-dida por diversos exércitos rebeldes congoleses com apoio de Ruanda. Na guerra que se seguiu, as crianças foram diretamente atingidas.

“Nós cuidávamos de crian-ças refugiadas, que perten-ciam a grupos étnicos consi-derados pelos guerrilheiros como inimigos. Por isso, eles destruíram nossos três lares

diferentes. Meninos muito jovens, com cerca de dez anos de idade, eram drogados, usa-vam uniformes e carregavam armamentos pesados. Eles haviam sido completamente destruídos pelos adultos. Eu queria fazer o máximo possí-vel para salvar quantos eu pudesse”, conta Murhabazi.

Primeira missão de resgate“Um dia, encontrei um grupo de mães em total desespero. Elas me contaram que 67 crianças tinham sido raptadas em seu vilarejo”.

Murhabazi embrulhou um cacho de bananas e livros sobre os direitos da criança e saiu. Sozinho.

“Tomei um mototáxi sem

Queimaremos os uniformesMurhabazi com meninos que foram soldados resgatados por ele. Na foto,eles podem estar com uniformes trocados, para evitar que se identifique a qual grupo armado cada um perten-cia. Agora eles queimarão os uniformes juntos.

Crianças na guerra têm os mesmos direitos“Nossas crianças, que vivem em

meio à guerra, também têm o direi-to à vida, a uma família, a cuidados médicos, à educação e de brincar. Elas também têm o direito de se

desenvolver e de serem ouvidas e respeitadas”, diz Murhabazi.

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há 209 pessoas trabalhando no BVES, que administra 35 casas e escolas e oferece às crianças um lar, cuidados médicos, terapia, oportunida-de de ir à escola, segurança e amor. A maioria das crianças volta para suas famílias.

Murhabazi conquistou muitos inimigos. Ele recebe ameaças por telefone e men-sagem, e raramente dorme no mesmo lugar por duas noites seguidas. Sete de seus compa-nheiros de trabalho foram mortos por lutar pelos direi-tos da criança, e ele já foi espancado e preso.

“Há muitos militares, polí-ticos e empresários, tanto na República Democrática do Congo como em outros paí-ses, que ganham muito dinheiro com a guerra. Quanto mais conflitos houver no país, mais barato eles con-seguem nossas riquezas natu-rais, como ouro e diamantes. Na busca pelas riquezas, todos os grupos armados, até mesmo os exércitos de outros países, usam soldados-criança e todos estupram meninas. Ao lutar contra isso, eu con-quisto muitos inimigos pode-rosos, pois atrapalho seus negócios. Eles também têm

impediu que o matassem. No dia anterior, o líder estava muito bêbado para reconhecer Murhabazi. Então ele disse:

“Ele não é soldado inimigo. Eu sei que esse homem ajuda crianças de rua em Bukavu”.

Quando as crianças seques-tradas ouviram aquilo, o caos se instalou.

“As crianças choravam e gritavam que eu também deveria salvá-las, assim como fazia com as crianças de rua. Elas queriam ir para casa! Eu disse aos soldados que eles tinham que soltar as crianças. Falei que era uma péssima idéia usar crianças como sol-dados se eles realmente dese-javam derrubar o governo para criar um país melhor. As crianças deveriam voltar para a escola! Quem construiria esse país novo e melhor que eles queriam, se todos os jovens fossem soldados dro-gados ao invés de receberem uma boa educação?”

Houve uma discussão calo-rosa entre os líderes. Alguns concordavam com Murhabazi, outros não. Porém, Murhabazi afinal conseguiu persuadi-los. Os soldados permitiram que as crianças deixassem a flores-ta. Os primeiros 67 soldados-criança correram para a liber-dade!

Preparado para morrerIsso foi há treze anos. Murhabazi já libertou 4.000 soldados-criança. Sessenta mil crianças vítimas da guer-ra – meninas abusadas sexual-mente, crianças órfãs refugia-das, soldados-criança e crian-ças de rua – receberam uma vida melhor graças aMurha-bazi e ao BVES. Atualmente,

medo de ser denunciados ao Tribunal Criminal Inter nacio-nal (ICC) da ONU em Haia”.

Apesar de um acordo de paz ter sido firmado em 2003, as batalhas e a violência contra as crianças na República Democrática do Congo conti-nuam. Murhabazi não vai parar de lutar pelos direitos das crianças.

“Precisamos continuar. Enquanto eu souber que exis-tem crianças fazendo parte de grupos armados, nada irá me impedir. Nem ameaças de morte, nem acidentes.

Quando souberam que foram soldados que enviaram a mensagem durante a reunião na ONU, todos queriam que eu parasse e deixasse o país. A ONU e a Anistia Interna cional concordaram que estava mui-to perigoso eu ficar aqui. Eles estão certos. Mas como eu poderia partir? Eu tenho uma responsabilidade com todas as crianças vulneráveis de quem eu e o BVES cuidamos. As crianças confiam em mim. Não posso desapontá-las. Todos os dias eu estou prepa-rado para morrer por elas”.

Murhabazi ajuda os meninos a tirarem os uniformes vestidos para uma cerimônia onde estes serão queimados. Eles podem estar usando uniformes diferentes, para que ninguém identifi-que a qual grupo pertenciam.

Combatentes pelos direitos da criança“Estou convencido de que tere-mos sucesso no final. Um dia, todos os soldados-criança do Congo serão libertados. Todo dia minhas energias se reno-vam quando vejo ex-soldados-criança lutando pelos direitos da criança dentro de suas casas, escolas e vilarejos!”

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Uma das piores guerras da história• A guerra na República Democrática do Congo é uma das maiores e mais brutais da história da humanidade. Ela perdura desde 1998. Um acor-do de paz foi fi rmado em 2003, mas a luta ainda continua na região oriental do país, onde vivem as crianças sobre as quais você lê na revista The Globe (O Globo).• Aproximadamente 5,4 milhões de pessoas morreram, tanto nas batalhas como devido à fome e às doenças que são resultado direto da guerra.• Na pior das hipóteses, estima-se que houve 30.000 solda-dos-criança servindo no país. Milhares deles ainda precisam retornar para suas famílias. A ONU informou que 848 crian-ças foram forçadas a se torna-rem soldados em 2009.Cerca de 200.000 estupros de meninas e mulheres foram denunciados desde que a guerra começou, mas acredita-se que um número muito maior tenha ocorrido. Em 2009, metade das vítimas foram crianças.• Mais de 1,5 milhão de pesso-as na República Democrática do Congo são refugiadas.• Mais de 5 milhões de crianças na República Democrática do Congo não vão à escola.

Crianças devem brincar!“Meus pais sempre me deixaram brincar bastante quando eu era criança. Contanto que eu tivesse feito meu dever de casa, eu podia sair para jogar futebol e brincar com meus amigos. Isso exerceu uma grande infl uência sobre a forma como eu vejo a infância. Crianças devem brincar! É de extrema importância que todas as meninas e meninos que estão aqui conosco no BVES possam brincar o máximo possível”, diz Murhabazi.

Aqui, os amigos Kasereka e Mupenzi Dame brincam no lar de Murhabazi para ex-soldados-criança.

• Visita grupos armados para informá-los sobre os direitos da criança, para que todos os envolvidos na guerra saibam como as crianças devem ser tratadas, de acordo com a Convenção dos Direitos da Criança da ONU e com as leis congolesas. Por exemplo, é proibido recrutar crianças como soldados.• Durante as visitas, liberta soldados-criança e meninas exploradas como escravas sexuais pelos grupos armados. • Visita campos de refugiados e cuida das crianças refugiadas abandonadas e das crianças de rua.• Oferece aos soldados-criança e às meninas abusadas que são libertados, assim como às crianças refugiadas e de rua: proteção, um lar, comida, roupas, cuidados médicos, ajuda psicológica e a oportunidade de voltarem à escola, além de ofi cinas de costura e carpintaria.• Localiza as famílias das crianças e as ajuda a retornarem para casa. Eles sempre preparam as famílias das

crianças, assim como os vizinhos, políticos, líderes religiosos e professo-res dos vilarejos antes do retorno, para que as crianças sejam acolhidas e aceitas de forma adequada. Caso não seja possível voltar para a família, o BVES tenta encontrar uma família adotiva. A criança nunca deixa o lar de Murhabazi até que se tenha certeza de que ela estará em um ambiente seguro.• Geralmente oferece suporte fi nanceiro às famílias, para que tenham condições de permitir que as crianças voltem à escola e tenham boa alimentação. Eles podem ajudar um dos pais ou um irmão mais velho a conseguir emprego para ajudar a sustentar a família. • Geralmente ajuda as crianças liberta-das com as taxas escolares e uniformes mesmo por um bom tempo após terem saído do lar Murhabazi, algumas vezes esse apoio continua até a universidade.• Informa toda a sociedade sobre os direitos da criança. Uma das formas que Murhabazi usa para fazê-lo é através de um programa de rádio regular.

A organização de Murhabazi funciona assim:

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Faida

Faida, 15

Quando Faida tinha onze anos de idade, ela foi sequestrada por um dos muitos grupos armados que atuam na República Demo-crática do Congo. Foi o início de um pesadelo que durou quatro anos, durante os quais ela foi forçada a ser escrava sexual e sol-dada. “Não acho que teria sobrevivido se Murhabazi não tivesse me resgatado. Ele arriscou sua própria vida por mim. Ele é como um pai para mim”, diz Faida.

A coronha do rifl e atingiu o rosto de Faida com violência. Ela tentou

escapar, mas caiu de costas no mato alto e fi cou presa. Um soldado segurou seus braços e outro suas pernas. Então seis soldados se revezaram para estuprá-la. Faida podia ouvir os gritos de suas amigas

próximo dali. Elas estavam tendo o mesmo destino. Os gritos de suas amigas pare-ciam vir de muito longe, como num sonho. Mas não era um sonho. Faida e suas amigas haviam trabalhado nas plantações de mandioca de suas famílias, como sem-

ADORA: Paz. Este é o primeiro ano em muito tempo que eu não estou envolvida em guerras.DETESTA: Guerra e morte.PIOR COISA QUE LHE ACONTECEU: Ter sido sequestrada e usada como escrava sexual e soldada. MELHOR COISA QUE LHE ACONTECEU: Quando Murhabazi me resgatou e eu voltei para a escola. ADMIRA: Murhabazi, claro! Ele salvou minha vida. QUER SER: Alguém que luta para assegurar que as crianças tenham uma boa vida. SONHO: Que todas as crian-ças do mundo vivam em paz e sejam amadas.

pre faziam nos feriados esco-lares. Ninguém notou os sol-dados até que fosse tarde demais. Agora duas das ami-gas de Faida estavam mortas. Quando um dos soldados ergueu o facão para matar Faida, o comandante gritou:

foi soldada e escrava

Meus direitos “No Congo, as crianças sempre têm que obedecer aos adultos. Quando os adultos nos tratam de certa manei-ra, você pensa que é assim que as coisas realmente devem ser, mesmo que não pareça certo. É muito fácil ser explorado quando você não conhece seus direitos. Antes de conhecer Murhabazi, eu sequer sabia que as crianças tinham direitos. Agora sei que tudo o que pas-sei na guerra estava errado e que meus direitos foram violados”, explica Faida.

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“Não a mate! Ela será minha esposa!”

Soldados armados vigiaram enquanto Faida e sua amiga Aciza caminhavam completa-mente nuas pelo campo.

“Tínhamos difi culdade para andar porque estávamos feri-das, mas eles nos obrigaram”.

Finalmente, chegaram à estrada onde o caminhão dos soldados estava estacionado. As meninas foram colocadas na caçamba, onde havia mais ses-senta soldados sentados espe-rando.

“Eu estava aterrorizada, seria estuprada novamente”, diz Faida.

foi soldada e escrava Minha Família!“O dia em que me chamaram no BVES para ver se uma menina que estava lá era a minha Faida, foi o dia mais feliz da minha vida! Hoje ela é minha fi lha e per-tence à minha família”, conta a irmã mais velha de Faida, Donia.

Vizinhos com medo são desagradáveisA foto grande mostra onde Faida vive com sua irmã, Donia.

“Nem sempre é fácil para mim aqui. Muitos vizinhos fi cam com medo e gritam coisas para mim: ‘Você é soldada! Volte para a fl oresta, que lá é o seu lugar! ‘Não queremos você aqui! Prostituta!’ e coisas do tipo. Isso machuca. Mas nem todo mundo faz isso. Minha melhor amiga se chama Neema, e ela me aceita do jeito que eu sou”, diz Faida.

Murhabazi nos ajuda“Murhabazi me ajudou a abrir uma tenda no mercado. Às vezes, ele nos ajuda com dinheiro para comprarmos roupas e comida. Se alguém na família adoece, ele se cer-tifi ca que tenhamos ajuda médica. Não sei como lidaría-mos com tudo isso sem a aju-da dele, pois meu pai morreu na guerra e minha mãe se recusa a se envolver com qualquer coisa relacionada a Faida”, lamenta Donia, enquanto as irmãs lavam rou-pas juntas.

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Escrava de todosAs meninas foram deixadas em paz no longo trajeto até o acampamento dos soldados. Mas então tudo começou novamente.

“O comandante me arras-tou para dentro de sua casa. Ele abusou de mim a noite inteira, embora eu estivesse gravemente ferida”.

No dia seguinte, o coman-dante saiu com alguns solda-dos para saquear. “Assim que ele saiu, os soldados que fi ca-ram começaram a abusar de mim. Havia mais de vinte meninas e mulheres no cam-po, mas ninguém podia me ajudar, pois estavam na mes-ma situação que eu, e havia guardas armados nos vigian-do o tempo todo”.

Quando o comandante retornava, Faida era somente dele. Porém, assim que ele saia para lutar ou saquear, ela era abusada por todos. Dia após dia. Dia e noite. Na vila, a família de Faida fi cava cada

vez mais preocupada. Por que ela não voltava pra casa? Eles foram de vila em vila pergun-tando se alguém a havia visto. Todavia, como ninguém na vila nunca havia sido seques-trado por soldados antes, não se cogitou essa possibilidade. Após um mês, todos estavam convencidos de que Faida havia sido morta na guerra. Eles disseram adeus a Faida com um período de luto e um culto memorial, como quan-do alguém morria.

Vida de soldadaDepois de seis meses com os soldados, Faida se sentia ter-rível.

“Eu estava enlouquecendo. Não aguentava mais ser escra-va, apesar das drogas que me forçavam a usar”. Algumas das garotas do campo eram soldadas, e Faida havia perce-bido que elas nunca eram estupradas. Um dia, ela per-guntou ao comandante se podia tornar-se soldada tam-

bém. “Ele concordou e, após dois meses de treinamento sobre como usar armas de fogo, facas e arco e fl echa, pas-sei a integrar seu exército”.

Os estupros terminaram, mas a violência não. Certa manhã, chegou o momento de Faida ir para sua primeira batalha.

“Eu estava apavorada, mas nos deram drogas antes de deixarmos a base. Todos os meus medos desapareceram e fi quei muito agressiva. Os sol-dados disseram que as drogas nos tornavam invisíveis”. Trinta soldados adultos e setenta soldados-criança esca-laram as montanhas cobertas de árvores, carregando suas pesadas armas. As crianças eram obrigadas a andar na frente.

Após algumas horas de caminhada, eles avis-taram o campo do inimigo na clareira da fl o-resta. Era um

campo exatamente como o deles, com soldados, mulhe-res e crianças.

“Meu grupo começou a ati-rar e se instalou o caos com-pleto. Pessoas gritavam e

Minha amiga Neema“Nós fazemos tranças nos cabelos uma da outra, Neema e eu”, conta Faida. “Eu geral-mente cobro 3 dólares americanos para tran-çar o cabelo das pesso-as”, diz Neema.

“Mas Faida nunca precisa pagar, nós somos amigas! Nos encontramos todos os dias e podemos conver-sar sobre tudo, até mesmo segredos, por-que confi amos uma na outra”.

Tarefas domésticasFaida cozinha um tipo de mingau de milho chamado ugali para a família. Ugali é o

prato mais comum na região oriental da República

Democrática doCongo.

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balas voavam por todos os lados. Uma saraivada de balas chovia sobre nós, com estilhaços de balas e lascas de árvores voando por toda par-te. De repente, minha amiga Aciza, que esta-va mais próxima de

mim, foi baleada nas costas. Ela morreu”.

Quando a batalha termi-nou, Faida e as outras crian-ças foram enviadas ao campo do inimigo.

“Devíamos revistar os corpos, recolhendo dinheiro, celulares e armas entre eles. Foi uma sensação estranha, pois era a primeira vez que eu fazia aquilo”.

Houve muitas outras bata-lhas para Faida.

MurhabaziFaida sentia tantas saudades de sua família que chegava a doer. Ela pensava constante-

mente em fugir, mas não era possível.

“Um garotinho tentou escapar uma vez. Atiraram nele imediatamente. Depois disso, eu não ousei tentar. Também estava envergonha-da. Quem iria querer cuidar de mim, depois de tudo que passei? Quem poderia me amar? Ninguém”.

Mas havia alguém que que-ria cuidar de Faida. Alguém que fez tudo o que estava ao seu alcance para salvá-la e às outras crianças. Era Murhabazi.

“Da primeira vez que ele foi ao acampamento, eu estava acabando de lavar roupa. Alguns jipes entraram no acampamento. Um homem desarmado pulou do jipe com os braços para cima e disse: ‘Amani Leo!’, ‘Paz agora!’. Era Murhabazi. Ele podia facilmente ser morto, mas não estava com medo”, lem-bra Faida.

Murhabazi foi até o coman-dante e disse que estava lá para levar as crianças para casa. Ele disse que crianças não deviam ser soldados. Que deveriam estudar.

“Quando os soldados ouvi-ram isso, eles rapidamente nos esconderam. Eu tentei

gritar socorro, mas eles me jogaram dentro de uma das casas”.

O comandante se recusou a liberar as crianças, então Murhabazi foi embora de mãos vazias. Mas ele não desistiu. Alguns anos depois ele voltou, mas o desfecho foi igual ao de sua primeira ten-tativa.

Sorte na terceira vezQuando Faida já estava no acampamento há quatro anos, Murhabazi voltou. E desta vez foi diferente.

“Não pude acreditar quan-do Murhabazi me abraçou e disse: ‘Esta é a sua chance! Tudo fi cará bem!’”

No início, tudo correu bem. No lar de Murhabazi para meninas vulneráveis, Faida pode voltar para a escola. Havia muitas crianças com quem brincar e conversar. E adultos nos quais ela podia confi ar e que estavam sempre por perto. Ela sentiu-se segu-ra. As coisas foram tão bem para Faida na escola do BVES, que ela logo ingressou em uma escola regular. Lá tudo também funcionou bem no começo. Porém, Faida tinha problemas de concen-tração e mudanças repentinas

Faida e Neema ajudam-se mutuamente em muitas coisas, como buscar água.

“Eu seria muito solitária se não tivesse uma amiga como Faida”, confessa Neema, 16.

Amada irmã“É terrível que nossa mãe se recuse a receber Faida. Ela fi cou tão triste quando Faida desapare-ceu! E como os vizinhos podem gritar coisas tão horríveis para minha irmã tão amada? Todas as crianças que foram explo-radas na guerra são trata-das de forma pavorosa. Temos que dar a elas mui-to amor. Faida frequente-mente tem pesadelos e fi ca depressiva, eu tento confortá-la. Eu daria minha vida para protegê-la”, afi rma a irmã mais velha, Donia.

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Guerra contra as meninasMeninas e mulheres geralmente são quem mais sofrem na guerra. Cerca de 200.000 estupros foram registrados em 2009, mas acredita-se que um número muito maior de mulheres e meninas sofreram abusos. Em 2009, metade das vítimas era criança. Aquelas que sobrevivem aos estupros frequentemente encontram difi culdades na sociedade, que as consideram “impuras”. A solidariedade e o amor estão destruídos nas famílias e nas vilas. Muitas das vítimas estão com AIDS.

“Murhabazi logo me levou ao hospital para que eu fi zesse o exame de HIV. Tive muita sorte, pois não fui infectada enquanto estava com os soldados. Mas muitas meninas do lar são HIV positivas”, lembra Faida.

No momento, 13 das 68 garotas que vivem no lar de Murhabazi, em Bukavu, para meninas abusadas são HIV positivas. Desde 2002, 176 meninas que receberam aju-da do BVES morreram de AIDS. “Tentamos oferecer às garotas que são HIV positi-vas toda a ajuda que podemos, e garantimos que elas recebam medicamentos gra-tuitamente”, diz Murhabazi.

Escola ou curso de costura?“Murhabazi quer que eu aprenda a costurar até eu me recuperar um pouco e poder vol-tar à escola. Assim, posso aprender um ofí-cio e ocupar minha mente, a fi m de não pen-sar mais nas coisas terríveis pelas quais passei. E também estarei perto dele e dos psicólogos do BVES. Mas não tenho certe-za. Seria melhor se eu conseguisse ir para uma escola regular. Uma boa educação te dá mais oportunidades na vida. E eu sei que posso ter sucesso, sei que sou inteligente!”

de humor. “Eu fi cava furiosa com meus colegas de classe quando achava que eles não me entendiam”. Ela acabou não conseguindo mais lidar com aquilo, e abandonou a escola.

Nessa mesma época, Murhabazi conseguiu encon-trar a mãe de Faida. Faida fi cou radiante, mas, assim como na escola, as coisas não foram como ela esperava.

“Minha mãe nem olhou para mim. Ela estava com medo e não quis saber de mim. Como se tudo que aconteceu fosse culpa minha. Nem consigo explicar o quan-to aquilo doeu”. Por sorte, Murhabazi também havia localizado a irmã mais velha de Faida, Donia, que a rece-beu de braços abertos. Faida agora é parte da família dela.

“E ainda tenho Murhabazi. Mesmo que as coisas não este-jam fáceis agora, eu sei que tudo fi cará bem, porque ele faz parte da minha vida. Ele é como um pai para mim. Mesmo arriscando a própria vida, ele tentou me salvar não uma, mas TRÊS vezes! Ele é completamente diferente do comandante e dos outros adultos que conheci, que ape-nas usam as crianças. Murhabazi está do nosso lado. Sempre!”

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Mutiyaqueima seu uniformeNo abrigo de Murhabazi em Bukavu para meninos que foram soldados-crianças, um grupo de garotos se prepara para voltar para suas famílias e começar uma nova vida. Mas primeiro eles irão queimar seus antigos uniformes de soldados.

“Será simplesmente fantástico trocar o uniforme de soldado pelo uniforme escolar novamente”, diz Mutiya, 15 anos.

Uniformes diferentesMurhabazi reúne os garotos antes de irem juntos para o pátio onde será realizada a cerimônia de queima dos uni-formes. Eles usam uniformes diferentes, pois todas as guerri-lhas do Congo usam soldados-crianças. Os meninos do abrigo pertenciam a diferentes grupos armados. Porém, nessas fotos – para a própria segurança dos garotos – eles NÃO estão necessariamente vestindo o uniforme que usavam quando eram soldados. Eles podem estar vestindo o uniforme de uma guerrilha diferente daquela à qual cada um pertenceu.

Sim ao uniforme escolar!Antes de queimar os uniformes, os garotos os vestem. Mutiya escreve: “Sim ao uniforme escolar” no seu.

Nossa última aula acaba-va de terminar numa sexta-feira. Meu amigo

Mweusi e eu estávamos a caminho de casa. Contávamos histórias enquanto caminhá-vamos. De repente, três sol-dados pararam na nossa frente e apontaram suas armas para nós. Eles disse-ram: “Vocês não podem passar! Se tentarem correr, não hesitaremos em atirar!”. Meus pais foram mortos por soldados, então tive muito medo. Começamos a chorar e meu amigo molhou as calças. Imploramos que nos deixassem ir, e argumentamos

que precisávamos continuar na escola, mas eles riram e disseram: “O que tem de tão especial na escola? Não importa, vocês vêm conosco agora mesmo!”. Depois, arrancaram nossos uniformes escolares, os rasgaram e joga-ram na lama. Pegaram nossas mochilas e rasgaram nossos livros. Após três dias sendo espancados em uma de suas prisões, recebemos uniformes de soldados. Poucos dias depois, fui mandado para a batalha pela primeira vez. Servi por dois anos. Eu sobre-vivi, mas cinco de meus ami-gos foram mortos. Vi muitas mortes e sangue.

Naquela época, eu nunca poderia imaginar que troca-ria o uniforme de soldado por um uniforme escolar novamente. Eu havia perdido as esperanças quando Murhabazi me resgatou. Ele foi ao acampamento militar e disse às crianças que haviam sido forçadas a tornarem-se soldados: “Vocês não deveri-am estar aqui. Vocês vão voltar para a escola. Venham comigo”. Parecia mentira, mas Murhabazi honrou sua palavra! Voltei a estudar aqui no BVES. Agora voltarei para casa, para meus irmãos mais velhos e minha escola na vila. Nem tenho palavras para expressar minha felicidade!

Porém, antes de partir, vamos queimar nossos uniformes de soldados. O uniforme só me faz lembrar de coisas ruins: morte, sangue, guerra, pilhagem... Será uma ótima sensação queimar esse lixo, fi nalmente me sentirei livre. Quando eu voltar para a vila, vou colocar meu uniforme escolar. No futuro, quero salvar crianças dos grupos armados, assim como Murhabazi me salvou”.Mutiya, 15 anos, foi soldado-criança por 2 anos

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Uniforme de soldado nunca mais!“Agora, olhem atentamente para a placa. Ela diz: “Uniforme de soldado nunca mais”. Vocês nunca mais usarão uniformes de soldado, vocês terão uniformes escolares, nunca se esqueçam disso! Vamos queimar os unifor-mes!”, conclama Murhabazi. Entre aplausos e muita vibração, Mutiya e os outros meninos tiram as roupas militares e as colocam numa pilha no pátio.

Boa sorte!“Mutiya, você quer voltar a estudar e come-çar uma nova vida. Sei que você está bem preparado e te desejo toda felicidade no futuro!”, Murhabazi diz, e abraça Mutiya.

“Obrigado pai, obrigado! Vou rezar por você, para que tenha forças para continuar lutando”, responde Mutiya.

A bolsa de MurhabaziTodas as crianças que passam por um dos abrigos de Murhabazi ganham uma bolsa com itens que tornarão sua vida mais fácil ao retor-narem para suas famílias. A bolsa contém:

Vamos para casa!

Chegou o grande dia. Murhabazi e o BVES conse-guiram localizar as famílias de Mutiya e de mais quinze meninos. Agora, eles fi nalmente vão para casa, depois de anos na guerra.

“Estou tão feliz pelos garotos. É por isso que lutamos o tempo todo. Toda vez que uma criança é salva e pode voltar a ter uma boa vida, é uma gran-de vitória para nós”, diz Murhabazi, rindo.

Escova de dente

Sabonete

Cobertor

Um par de sapatos

Roupas novas

Toalha

Rádio

Creme dental

O rádio é importante“Estou dando estes rádios para que vocês saibam o que aconte-ce em nosso país e no mundo. Isso é importante. Ouçam esta-ções que têm noticiários e que falem sobre os direitos da criança. Caso sintonizem estações que pregam o ódio, a violência e a guerra, mudem a frequência! O rádio funciona com energia solar para que vocês não precisem comprar pilhas”.

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Uniformes viram fumaçaMutiya e seus amigos cantam e celebram enquanto os uniformes são destruídos pelo fogo.

Adeus, amigo!Os garotos se despedem uns dos outros e de Murhabazi. Eles se tornaram bons amigos e se ajudaram nos momentos difíceis. Portanto, apesar de estarem ansiosos para ir para casa, não é fácil se separar.

Novos sonhos“Eu havia perdido a esperança. Mas no BVES tive a chance de voltar para a escola. Fiquei muito feliz, mas não parava de pen-sar em todo o tempo que havia perdido. Dois anos! Imagine o quanto eu poderia ter aprendido enquanto eu era soldado. Agora vou começar a estudar na vila e, quando crescer, quero ser como Murhabazi!”

Tchau! Vamos para casa!

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Bolas no lugar de bombas!“Os soldados pegaram os unifor-mes escolares dos meninos e lhes deram uniformes militares. E armas no lugar de canetas. Bombas no lugar de bolas. Mas nós damos bolas de futebol para os meninos levarem para casa. Aqueles que moram perto uns dos outros podem montar um time de futebol e continuar se encontrando e se apoiando mutuamente. Porém, o mais importante é que eles se divir-tam!”, diz Murhabazi.

“Este é um momento de muita ale-gria! Minha única preocupação é que novas batalhas se iniciem nas áreas para onde os garotos estão voltando, e que eles sejam força-dos a ser soldados de novo. Isso acontece, e me deixa louco da vida. É extremamente difícil, mas reco-meçamos toda vez que isso ocorre. Um menino foi pego três vezes, por três grupos armados diferentes. Nós o libertamos todas as vezes. Nunca abandonaremos as crian-ças, e não desistiremos até que todas estejam livres”, afi rma Murhabazi.

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Vamos para casa!

Sentia falta de paz

Tem saudade da mãe

Sonhava com a escola

Quer rir e brincar

“Quando eu era soldado, havia guerra todos os dias. Nunca paz. Exceto por minha mãe e meu pai, o que eu mais sentia falta era de paz. Eu sofri todo o tempo. Foi terrí-vel. Estou feliz por fi nalmente ir para casa. Espero que minha vida seja boa. Que eu possa ir à escola e fazer mui-tos amigos. Porém, meus pais estão velhos e meio doentes. Temo o que aconte-cerá comigo quando eles morrerem. Quando isso acontecer, entrarei em conta-to com Murhabazi, pois sei que ele me dará bons conse-lhos. Eu o amo, ele salvou minha vida. Sentirei sauda-des dele”. Amani, 15 anos, foi soldado-criança por 2 anos

“Tenho muitas saudades de minha mãe! Durante a guerra, eu pensava nela o tempo todo. Antes de me obrigarem a ser soldado, eu a ajudava no campo e buscava água. Como meu pai morreu quan-do eu era pequeno, me preo-cupava se ela conseguiria se virar sozinha enquanto eu estava fora. Eu converso mui-to com minha mãe e a amo. Sinto-me seguro e calmo quando estou com ela. Agora só quero ir para casa e fi car perto dela novamente. O que me preocupa é deixar meus amigos aqui. Pudemos con-versar uns com os outros sobre nossas terríveis experi-ências, e isso foi ótimo. Em casa não será assim. Os garotos da vila que nunca foram soldados, nunca pode-rão entender o que eu passei”. Obedi, 15 anos, foi soldado-criança por 2 anos

“O que eu mais sentia falta era da escola. Quando eu era soldado, sentia o tempo todo que estava no lugar errado, que deveria estar na escola, e não ali. Agora Murhabazi vai me ajudar a voltar para a escola quando eu chegar em casa, e isso é incrivelmente

“Sinto muita falta de meus amigos lá em casa. Não nos vemos há mais de quatro anos, e realmente espero que eles se lembrem de mim. Também espero que eles não tenham medo de mim porque fui soldado. Estou meio preo-cupado com isso. Porque eu realmente senti falta de meus amigos. Só quero poder con-versar, jogar futebol e brincar. Não havia espaço para risa-das e brincadeiras quando eu era soldado.

bom. Eu adoro estudar! Adoro a escola! A escola é importante. Quem vai à esco-la tem muitas oportunidades na vida. Eu gostaria de ser presidente quando crescer. A primeira coisa que faria seria libertar todas as cri-anças que são forçadas a ser soldados. Eu as ajudaria a reencontrar suas famílias e deixaria que voltassem para a escola. Meu maior medo agora é ser pego por solda-dos e forçado a lutar nova-mente. Eu fi caria devastado se isso acontecesse”. Assumani, 15 anos, foi soldado-criança por 2 anos

Estou feliz por poder ir para casa. Não importa o que aconteça, se meus amigos tiverem medo de mim ou algo assim, nada mais me assus-ta. Nada pode ser pior do que aquilo que vivenciei como soldado. Nada.”Aksanti, 15 anos, foi soldado-criança por 4 anos

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Uniforme militar, nunca mais!

Escola – sim!Acampamento militar – NUNCA MAIS!

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Quer rir e brincar

Sonha com boas pedras

“Todo sábado e domingo às 17h30 eu falo sobre os direitos da criança no rádio, principal-mente sobre a violência com que as garotas são exploradas na guerra do Congo”, fi naliza Bahati.

“O grupo armado que me pegou me forçava a procurar ouro, diamantes e outros minerais. Eu era obrigado a entregar todas as pedras que encontrava a meus líderes. Eu era escravo deles. Nós que procurávamos tentáva-mos esconder um pouco, bem pouquinho, mas era difí-cil. Quem era pego apanhava muito. Podia até ser morto. Quando nosso grupo não estava garimpando, saqueava outros que trabalhavam nas minas. Não sei quantas pes-soas morreram. Eles usavam o ouro e outros minérios para comprar armas dos ricos contrabandistas de armas que apareciam na fl oresta. Acho que, no fi m das contas, a guerra se tratava de grupos diferentes, tanto congole-ses como estrangeiros, que lutavam pelo controle das minas do Congo. Se não tivéssemos esses minérios, haveria paz há muito tempo. Talvez nunca tivesse havido guerra. Agora, todas as riquezas naturais são ruins para nós. Mas, na verdade, elas deveriam ser boas. Se o governo do Congo pudesse vender os minérios de forma apropriada, poderíamos construir escolas, estradas e hospitais. Tudo o que as pessoas precisam. Eu sonho com esse dia. Também sonho em me tornar alfaiate e ter um boa vida. E acredito que isso seja possível, porque Murhabazi e o BVES estão comigo.”Isaya, 15 anos, foi soldado-criança por 4 anos

“Embora Murhabazi não tenha encontrado meus pais após três meses, ele não me mandou para fora do abrigo. Ele cuidou de mim por mais de um ano, como se eu fosse seu próprio fi lho. Eu ainda o vejo como um pai. Após fre-quentar a escola do BVES, ele me ajudou a ingressar em uma escola regular. Ele pagou as taxas escolares e tudo mais que precisei. Eu contei a Murhabazi sobre o meu sonho de ser jornalista. Então ele me ajudou e tive a chan-ce de fazer um teste para um curso de jornalismo para jovens na organização Search for Commom Ground (Em Busca de um Denominador Comum). Eu passei no teste e concluí o curso, e hoje sou um jovem repórter em seu pro-grama de rádio ‘Sisi Watoto – Nós Crianças’! É, provavel-mente, o melhor programa do mundo, pois tratamos do assunto mais importante que existe, os direitos da crian-ça. Muitas crianças nos telefonam, e a intenção do pro-grama é dar voz às crianças do Congo. Algo incomum por aqui. Os adultos daqui quase nunca escutam as crian-ças. No futuro, espero poder ajudar o BVES a salvar mais crianças, exatamente como Murhabazi fez comigo. Ele salvou minha vida.”Bahati, 17 anos, foi soldado-criança por 3 anos

Murhabazi não desampara ninguémA ideia é que as crianças resgatadas por Murhabazi per-maneçam no abrigo por três meses. Porém, às vezes leva mais tempo para localizar suas famílias e ajudar as cri-anças a começarem uma nova vida. Foi assim com Bahati.

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O dia de Valentina no lar de Murhabazi para meninas

“Murhabazi é como um pai para mim!”“Num domingo, há um ano, minhas duas irmãs e eu está-vamos na igreja quando nos-sa vila tornou-se um campo de batalha entre dois grupos militares. Os soldados dispa-ravam suas metralhadoras e jogavam bombas na direção da igreja, portanto não con-seguíamos sair. Meu corpo inteiro tremia de medo. O que eu não sabia é que, naquele momento, nossos pais fugiam para a fl oresta para tentar se salvar. Alguns dias depois, quando o tiro-teio cessou, a Cruz Vermelha e a ONU vieram à igreja e nos levaram para um campo de refugiados. Morei lá por cin-co meses. Foi difícil. A comi-da era diluída e os colchone-tes fi cavam no chão. Nós não podíamos ir à escola. Um dia, Murhabazi veio e perguntou se eu queria morar em seu lar para meninas. Fiquei imensa-mente feliz, pois havia ouvido muitas coisas boas a seu respeito. Fomos com ele, 29 crianças ao todo. Estou feliz por estar aqui, agora sinto como se estivesse em casa. Murhabazi cuida de mim como um pai. Porém, todas as noites, sonho que mamãe e papai estão vivos e que posso voltar para casa. Murhabazi continua procu-rando meus pais.Valentina, 12 anos

O lar de Murhabazi para meninas vulneráveis fi ca numa das colinas da cidade de Bukavu. Muitas das garotas foram capturadas por diferentes grupos armados. 47 das 68 garotas que vivem lá sofreram abusos sexuais.

“Estou feliz por estar aqui, agora sinto como se estivesse em casa. Murhabazi tornou-se um pai para mim”, diz Valentina, 12.

6h00Hora de Levantar“Escovamos os dentes e toma-mos banho. Aqui nos dão sabone-te, creme dental, óleo para o corpo e para o cabelo. Eu perdi minha escova de dente e ainda não deu tempo de arru-mar outra, por isso estou usan-do o dedo. Na verdade, funcio-na muito bem!”, brinca Valentina, rindo.7h00

Café da manhãO café da manhã é um tipo de mingau de milho, Buyi.

8h00 Aulas“Eu não ia para a escola quando morava no campo de refugiados. Sei que ter a chance de frequentar a escola é direito de toda criança, mesmo nós que vivemos na guerra e somos refugiadas. De repente, eu não podia mais ir à escola e isso me fazia sentir mal. Como se eu estivesse perdendo tempo de aprender coisas importantes. Fiquei tão feliz no primeiro dia em que fui à escola aqui na casa de Murhabazi! É pre-ciso ir à escola se você quer aprender as coisas e, assim, ser capaz de tomar boas deci-sões na vida e conseguir um bom emprego para sustentar sua família”.

“Quando for mais velha, quero aprender a costurar aqui no BVES e ser costurei-ra. Mas o que eu mais quero é ser professora. Minha profes-sora, Ndamuso, não é apenas professora, ela é muito cari-nhosa e cuida de mim. Ela me aconselha, como uma mãe. Quero ser como ela quando eu crescer. As meninas muito novas para ir à escola vão para a creche”.

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O dia de Valentina no lar de Murhabazi para meninas

14h30 Brincar“Adoro brincar com minhas amigas. Você se sente feliz e espanta os maus pensa-mentos. Além disso, você se movimenta, desenvolve seus músculos e fica em for-ma! Nós brincamos de salto à distância, criamos brincadeiras com canto e dança e diversos tipos de jogos de bola.

12h00AlmoçoHoje temos arroz e feijão.

13h30 Descanso“É bom descansar um pouco no período mais quente do dia”.

A garota que divide a cama com Valentina se chama Noella e tem 10 anos de idade.

“Geralmente, muitas crianças dividem a cama. Às vezes fica um pouco apertado. Ao mesmo tempo, é bom não ficar sozinha”, comenta Valentina

15h30 Lavar a roupaValentina divide uma bacia com Donatella.

16h30Dever de casa“Geralmente fazemos nosso dever de casa juntas, assim podemos ajudar umas às outras”, conta Valentina.

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18h00 JantarArroz e feijão também.

19h00 Reunião noturna“Todas as noites sentamos e conversamos sobre nosso dia. Cantamos e contamos histórias. As reuniões são muito importantes para mim, pois ajudam a me acalmar. Por alguns momentos, me esqueço da minha constante preo-cupação sobre o paradeiro de meus pais. Durante as reuni-ões, parece que somos uma família de verdade. Cuidamos umas das outras, e as mais velhas cuidam das mais novas. Os adultos daqui realmente se importam conosco. Sempre tenho alguém para me ouvir quando não estou me sentindo bem. Nesses momentos, converso com Murhabazi, minha professora, a enfermeira ou com a psicóloga. É assim que deveria ser em todas as famílias.

“Todas as minhas roupas estão em uma mala, no quarto.”

“O colar com a Virgem Maria é o acessório mais bonito que tenho. Sinto-me segura quando o uso. Como se eu estivesse protegida.”

“Eu consegui trazer minhas roupas comigo, quando fui para um campo de refugiados. Isso me deixa muito feliz, pois foi minha mãe quem me deu as roupas. Adoro minhas roupas. Elas são lindas e me fazem lembrar a mamãe.”

“Este lindo vestido branco eu uso para ir à igreja, todo domingo.”

“Essa blusa amarela macia é minha favorita!”

20h00Hora de dormirDepois de escova-rem os dentes, as garotas vão para a cama, fi cam bem juntinhas nas camas e adormecem.

O guarda-roupa de Valentina

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As irmãs Benon, Vestine e Valentina vivem juntas em um dos lares de Murhabazi.

Quem é Murhabazi? Três garotas do lar para meninas vulneráveis descre-vem Murhabazi assim:

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Ele protege as meninas“Eu fui prisioneira dos soldados e Murhabazi salvou minha vida. É ele que cuida para que possamos viver em segu-rança, sãs e salvas aqui. Ele nos dá tudo. A situação das mulheres e meninas em nosso país é terrível. Nós sofremos. Muitas são abusadas e estupradas por soldados e outros homens. Murhabazi cuida de nós como se fôssemos suas pró-prias fi lhas ou irmãs. Se não fosse por Murhabazi, as vidas de muitas garotas na República Democrática do Congo seriam muito piores. Ele nos protege”Donatella, 13 anos

Eu o amo!“Minha família se dividiu durante a guerra, pois nos separamos ao fugir. Murhabazi e a Cruz Vermelha ainda estão procuran-do meus pais. Eu não sei nem se eles ainda estão vivos. Mas por enquanto, Murhabazi é meu pai. Eu o amo e sei que ele me ama, porque ele me ajuda em tudo. Eu penso na minha mamãe, no meu pai e nos meus irmãos e irmãs o tempo todo. Coisas horríveis aconteceram. Apesar de tudo, a vida está um pouco mais fácil agora que Murhabazi toma conta de mim.”Vestine, 15 anos

Há 68 garotas morando no lar de Murhabazi para meninas vulneráveis em Bukavu. Durante o dia, mais 297 garotas vêm ao lar para ir à escola do BVES. Elas já viveram no lar, mas agora retornaram para suas famílias.

“As famílias geralmente são tão pobres, que não têm condições de man-dar seus fi lhos para escolas regulares. Nossa escola é gratuita, e as crian-ças podem permanecer o tempo que precisarem”, diz Murhabazi. Atualmente, 71 meninos moram no lar de Murhabazi em Bukavu para meninos que foram soldados-criança.

Murhabazi tem 35 lares e escolas por toda a República Democrática do Congo. Atualmente, há um total de 15.284 crianças que recebem algum tipo de apoio do BVES. Por exemplo, 8.138 crianças recebem auxílio para frequentar escolas regulares e 37 jovens têm apoio para cursar uma universidade.

Crianças nos lares e escolas de Murhabazi

Ele é meu pai!“Murhabazi cuida de mim. Ele me proporciona um lugar para dormir, sabonete para o banho, comida para me alimentar e a oportunida-de de ir à escola. Se eu adoeço, ele me leva ao médico. Murhabazi é como todo pai e mãe deveriam ser. Ele é como meu pai! Sem ele, minha vida seria difícil demais. Eu o amo!”Josepha, 10 anos

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