por que ler os classicos(completo)_italo calvino

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  • 8/11/2019 Por Que Ler Os Classicos(Completo)_Italo Calvino

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    Porque Ler Os Clssicos

    talo Calvino

    Teorema

    O AUTOR

    talo Calvino nasceu em Santiago de Las Vegas (Cuba), a 15 deOutubro de 1923. Em Itlia passou praticamente toda a sua vida,exceptuando os treze anos em que viveu em Paris. Faleceu em Siena,a 19 de Setembro de 1985. Estudou em San Remo at aos 20 anos,

    ingressando ento na Resistncia contra o fascismo e a ocupao nazi,depois de aderir ao Partido Comunista, que abandonou em 1957, apsa insurreio hngara. Terminada a Segunda Guerra Mundial,instalou-se em Turim, comeando a trabalhar na Einaudi, quedepressa se transformou numa das principais editoras italianas dops-guerra.

    J trabalhava na Einaudi (onde desempenhou importantssimo papelcomo consultor literrio) quando concluiu a sua licenciatura emLetras. Com Os Nossos Antepassados, a sua trilogia fantstica - OVisconde Cortado ao meio (1952), O Baro Trepador (1957) e OCavaleiro Inexistente (1959) ficou definitivamente consagrado comoum dos maiores escritores italianos contemporneos.

    A Teorema publicou j Os Nossos Antepassados (1986), Palomar(1987), Sob o Sol Jaguar (1992), Seis Propostas para o PrximoMilnio (1992), As cidades Invisveis, (1993), Cosmicmicas (1993),

    Marcovaldo (1994), e publicar, no prximo ano, NovasCosmicmicas e uma recolha pstuma de contos.

    TALO CALVINO

    PORQU Ler os CLSSICOS

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    Traduo de Jos Colao Barreiros

    Teorema

    (c) 1991, Palomar S. r. L. e Amoldo Mondadori S. P. A. Milo

    Ttulo original: Perch leggere i classici

    Traduo: Jos Colao Barreiros

    Capa: Fernando Mateus

    Paginao: RMA

    Impresso e acabamento: Rainho & Neto Lda. / Santa Maria da Feira

    ISBN: 972-695-158-5

    Depsito legal n 80191/94

    Todos os direitos desta edio reservados por

    EDITORIAL TEOREMA, LDA.

    Rua Padre Lus Aparcio, 9-1 Frente

    Telf.: 52 99 88 - Fax: 352 14 80

    1000 LISBOA

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    Numa carta de 27 de Novembro de 1961 talo Calvino escreveu aNiccol Gallo: Para recolher ensaios esparsos e desorganizadoscomo os meus tem de se esperar pela prpria morte ou ao menos pela

    velhice avanada.

    No entanto Calvino iniciou este trabalho em 1980 com Una pietrasopra, e em 1984 publicou Collezione di sabbia. Depois, autorizou arecolha no estrangeiro, nas verses inglesa, americana e francesa deUna pieira sopra - que no so idnticas ao original -, dos ensaiossobre Homero, Plnio, Ariosto, Balzac, Stendhal, Montale, e doensaio que d o ttulo a este livro. Alm disso, modificou - e num

    caso, Ovdio, acrescentou uma pgina que deixou manuscrita - algunsdos ttulos destinados a uma publicao italiana posterior.

    Neste volume encontra-se grande parte dos ensaios e dos artigos deCalvino sobre os seus clssicos:os escritores, poetas e cientistasque maior valor tiveram para ele, em diferentes perodos da sua vida.Quanto aos autores do nosso sculo, dei preferncia aos ensaios sobreos escritores e poetas por quem Calvino nutria uma especialadmirao.

    Esther Calvino

    Desejo agradecer a Elisabetta Stefanini a sua preciosa ajuda.

    E. C.

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    NDICE

    Porque ler os clssicos - 7

    As Odisseias na Odisseia - 15Xenofonte, Anabase (A Retirada dos Dez Mil) - 23Ovdio e a contiguidade universal - 29O cu, o homem e o elefante - 39As sete princesas de Nezami - 49Tirant Lo Blanc - 55A estrutura do "Orlando" - 61Pequena antologia de oitavas - 69

    Jernimo Cardano - 75O livro da Natureza em Galileu - 81Cyrano na Lua - 89Robinson Crusoe, o dirio das virtudes mercantis - 95Candide ou a velocidade - 101Denis Diderot, Jacques l Fataliste - 105Giammaria Ortes - 111O conhecimento pulviscular em Stendhal - 117Guia da Chartreuse para uso dos novos leitores - 131A cidade-romance em Balzac - 139Charles Dickens, Our Mutual Friend - 145Gustave Flaubert, Trois contes - 151Leo Tolstoi, Dois hussardos - 155Mark Twain, O homem que corrompeu Hadleyburg - 159Henry James, Daisy Miller - 165Robert Louis Stevenson, O pavilho nas dunas - 169Os capites de Conrad - 173

    Pasternak e a revoluo - 179O mundo uma alcachofra - 195Carlo Emilio Gadda, Il Pasticciaccio - 199Eugnio Montale, Talvez uma manh andando - 207O rochedo de Montale - 217Hemingway e ns - 221

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    Francis Ponge - 229Jorge Luis Borges - 235A filosofia de Raymond Queneau - 243Pavese e os sacrifcios humanos - 259

    Nota do Editor263

    PORQU LER OS CLSSICOS

    Comecemos com umas propostas de definio.

    1. Os clssicos so os livros de que se costuma ouvir dizer: Estou areler... e nunca Estou a ler...

    isto que se verifica pelo menos entre as pessoas que se pressupeserem de vastas leituras; no se aplica juventude, idade em que oencontro com o mundo, e com os clssicos como parte do mundo, vlido precisamente como primeiro encontro com o mundo.

    O prefixo iterativo antes do verbo ler pode ser uma pequenahipocrisia por parte de quem tiver vergonha de admitir que no leu umlivro famoso. Para o descansar bastar observar que por mais vastasque possam ser as leituras de formao de um indivduo, ficasempre um nmero enorme de obras fundamentais que no se leu.

    Quem leu todo o Herdoto e todo o Tucdides levante o dedo. ESaint-Simon? E o cardeal de Retz? Mas at os grandes ciclos deromances do sculo XIX so mais nomeados que lidos. Balzac, emFrana comea a ler-se na escola e pelo nmero de edies emcirculao dir-se-ia que tambm se continua a l-lo depois. Mas em

    Itlia se se fizesse uma sondagem Marktest receio que Balzac ficarianos ltimos lugares.7

    Os apaixonados de Dickens em Itlia so uma restrita elite de genteque quando se encontra se pe logo a recordar personagens e

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    episdios como se fossem pessoas suas conhecidas. H anos MichelButor, ao leccionar na Amrica, farto de ouvir perguntarem-lhe pormile Zola que nunca tinha lido, decidiu-se a ler todo o ciclo dosRougon-Macquart. Descobriu que era completamente diferente do

    que julgava: uma fabulosa genealogia mitolgica e cosmognica, quedescreveu num belssimo ensaio.

    Isto vem a propsito de dizer que ler pela primeira vez um grandelivro em idade madura um prazer extraordinrio: diferente (mas nose pode dizer que maior ou menor) do que se tem ao l-lo najuventude. A juventude comunica leitura, tal como a qualquer outraexperincia, um sabor e uma importncia muito especiais; enquanto

    na maturidade se apreciam (deveriam apreciar-se) muitos maispormenores, nveis e significados. Assim, podemos tentar outrafrmula de definio:

    2. Chamam-se clssicos os livros que constituem uma riqueza paraquem os leu e amou; mas constituem uma riqueza nada menor paraquem se reserva a sorte de l-los pela primeira vez nas condiesmelhores para os saborear.

    De facto as leituras da juventude podem ser pouco profcuas porimpacincia, distraco, e inexperincia das instrues para o uso einexperincia da vida. Podem ser (se calhar ao mesmo tempo)formativas no sentido de darem uma forma s experincias futuras,fornecendo modelos, contedos, termos de comparao, esquemas declassificao, escalas de valores, paradigmas de beleza: tudo coisasque continuam a agir mesmo que do livro lido na juventude se recordepouqussimo ou mesmo nada. Ao reler o livro em idade madura,

    acontece reencontrar-se estas constantes que agora j fazem parte dosnossos mecanismos internos e de que tnhamos esquecido a origem.H uma fora especial da obra que consegue fazer-se esquecerenquanto tal, mas que deixa sementes. Ento a definio que delapoderemos dar ser:

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    modernos. Se ler a Odisseia leio o texto de Homero mas no possoesquecer tudo o que as aventuras de Ulisses vieram a significardurante os sculos, e no posso interrogar-me se estes significadosestavam implcitos no texto ou se eram incrustaes ou deformaes

    ou dilataes. Ao ler Kafka no posso deixar de comprovar ou derecusar a legitimidade do adjectivo kafkiano que nos calha ouvir dequarto em quarto de hora, aplicado a torto e a direito. Se ler Pais efilhos de Turgueniev ou Os Demnios de Dostoievsky no possodeixar de pensar que estas personagens continuaram a reencarnar-seat aos nossos dias.

    A leitura de um clssico deve dar-nos qualquer surpresa em relao

    imagem que tnhamos dele. Por isso nunca ser suficiente recomendara leitura directa de textos originais evitando o mais possvelbibliografia crtica, comentrios e interpretaes. A escola e auniversidade deveriam servir para fazer compreender que nenhumlivro que fala de outro livro9

    diz mais que este; alis, fazem tudo para fazer crer o contrrio. Huma inverso de valores muito difundida pela qual a introduo, oaparato crtico e a bibliografia so usados como uma cortina de fumopara ocultar o que tem a dizer o texto e que s pode diz-lo se odeixarem falar sem intermedirios que pretendam saber mais que ele.Podemos concluir que:

    8. Um clssico uma obra que provoca incessantemente uma vaga dediscursos crticos sobre si, mas que continuamente se livra deles.

    O clssico no tem necessariamente de nos ensinar alguma coisa queno sabamos; s vezes descobrimos nele algo que tnhamos desdesempre sabido (ou julgado saber) mas no sabamos que ele j o tinhadito antes (ou que pelo menos se liga a isso de modo particular). Eesta tambm uma surpresa que d muita satisfao, como sempre ad a descoberta de uma origem, de uma relao, ou de um vnculo. De

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    tudo isto poderamos fazer derivar uma definio do tipo:

    9. Os clssicos so livros que quanto mais se julga conhec-los porouvir falar, mais se descobrem como novos, inesperados e inditos ao

    l-los de facto.

    Naturalmente isto verifica-se quando um clssico funciona comotal, ou seja, quando estabelece uma relao pessoal com quem o ler.Se no der fasca, no h nada a fazer: no se lem os clssicos pordever ou por respeito, mas s por amor. Salvo na escola: a escola devedar-nos a conhecer bem ou mal um certo nmero de clssicos entre osquais poderemos depois reconhecer os nossos clssicos. A escola

    destina-se a dar-nos instrumentos para exercermos uma opo; mas asopes que contam so as que se verificam fora e depois de todas asescolas.

    s nas leituras desinteressadas que pode suceder esbarrarmos numlivro que se torna o nosso livro. Conheo um ptimo historiador dearte, homem de vastssimas leituras, que entre todos os livrosconcentrou a sua predileco mais profunda no Crculo Pickwick, e apropsito de tudo e de nada cita piadas do livro de Dickens, e associacada facto da sua vida a episdios pickwickianos. Pouco a pouco eleprprio, o universo e a verdadeira filosofia foram tomando a forma doCrculo Pickwick numa identificao absoluta. Chegamos por estavia a uma ideia de clssico muito elevada e exigente:10

    10. Chama-se clssico um livro que se configura como equivalente douniverso, tal como os antigos talisms.

    Com esta ideia aproximamo-nos da ideia de livro total, como osonhava Mallarm. Mas um clssico pode estabelecer uma relaoigualmente forte de oposio, de anttese. Interessa-me muito tudo oque Jean-Jacques Rousseau pensa e faz, mas tudo me inspira umirreprimvel desejo de contradiz-lo, de critic-lo, de brigar com ele.

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    o nosso ritmo de vida, que no conhece tempos longos, nem arespirao do otium humanista; e tambm parece estar emcontradio com o ecletismo da nossa cultura que no saberia redigirum catlogo da classicidade que sirva para o nosso caso.

    Eram as condies que se realizavam em pleno para Leopardi, dada asua vida sob a gide paterna, o culto da antiguidade grega e latina e aformidvel biblioteca que lhe foi transmitida pelo pai Monaldo, tendoanexa12

    a literatura italiana completa, mais a francesa, excluindo os romances

    e em geral as novidades editoriais, relegadas quando muito para amargem, para conforto da irm (o teu Stendhal escrevia ele aPaolina). At as suas vivssimas curiosidades cientficas e histricas,Giacomo satisfazia-as em textos que nunca eram demasiado up todate: os hbitos das aves em Buffon, as mmias de Frederico Ruyschem Fontenelle, a viagem de Colombo em Robertson.

    Hoje impensvel uma educao clssica como a do jovem Leopardi,e sobretudo a biblioteca do conde Monaldo ardeu. Os velhos ttulosforam dizimados mas os novos multiplicaram-se proliferando emtodas as literaturas e culturas modernas. S resta inventar cada umuma biblioteca ideal dos nossos clssicos; e diria que ela teria de serconstituda metade por livros que j lemos e que foram importantespara ns, e metade por livros que nos propomos ler e pressupomosque sejam importantes. E deixando uma seco de lugares vazios paraas surpresas, para as descobertas ocasionais.

    Reparo que Leopardi o nico nome da literatura italiana que citei.Efeitos do incndio da biblioteca. Agora deveria reescrever todo oartigo tornando bem claro que os clssicos servem para compreenderquem somos e aonde chegmos e por isso os italianos soindispensveis precisamente para os compararmos com osestrangeiros, e os estrangeiros so indispensveis precisamente para

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    os compararmos com os italianos

    Depois deveria reescrev-lo mais uma vez para no se pensar que osclssicos devem ser lidos porque servem para alguma coisa. A

    nica razo que se pode aduzir que ler os clssicos melhor que noler os clssicos.

    E se algum objectar que no vale a pena ter tanto trabalho, citareiCioran (no um clssico, pelo menos por agora, mas sim umpensador contemporneo que s neste momento se comea a traduzirem Itlia) Enquanto lhe preparavam a cicuta, Scrates ps-se aaprender uma ria na flauta. "Para que te servir?" perguntaram-lhe.

    "Para saber esta ria antes de morrer".

    [1981]

    AS ODISSEIAS NA ODISSEIA

    Quantas Odisseias contm a Odisseia"? No incio do poema aTelemaquia a busca de um conto que no existe, do conto que ser aOdisseia. O cantor Fmio no palcio de taca j sabe os nostoi dosnossos heris; s lhe falta um, o do seu rei; por isso Penlope j noquer ouvi-lo cantar. E Telmaco parte procura desta narrativa juntodos veteranos da guerra de Tria: se descobrir o conto, acabe ele bemou mal, taca sair da informe situao sem tempo e sem lei em que seencontra h tantos anos.

    Como todos os veteranos, Nestor e Menelau tambm tm muito quecontar; mas no o conto que Telmaco procura. At que Menelau se

    sai com uma fantstica aventura: camuflado de foca, capturou ovelho do mar, ou seja, Proteu das infinitas metamorfoses, eobrigou-o a contar-lhe o passado e o futuro. Proteu evidentemente jconhecia toda a Odisseia de fio a pavio: comea a contar asdesventuras de Ulisses a partir do ponto em que inicia Homero, com oheri na ilha de Calipso; depois interrompe-se. Neste ponto Homero

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    pode tomar-lhe o lugar e continuar o conto.

    Chegado corte dos Fecios, Ulisses ouve um aedo cego comoHomero que canta as aventuras de Ulisses; o heri irrompe em

    lgrimas; depois decide-se a contar por sua vez. Neste seu relato,chega ao Hades

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    para interrogar Tirsias, e Tirsias narra-lhe a continuao da suahistria. Depois Ulisses depara-se com as Sereias a cantar; cantam oqu? Ainda a Odisseia, talvez igual que estamos a ler, talvez muito

    diferente. Este conto do regresso uma coisa que j existe, antes de serealizar: pr-existe prpria actuao. J na Telemaquia encontramosas expresses pensar o regresso, dizer o regresso. Zeus nopensava no regresso dos tridas (iII, 160); Menelau pede filha deProteu que lhe diga o regresso (IV, 379) e ela explica-lhe comopoder obrigar o pai a diz-lo (390), pelo que o trida pode capturarProteu e perguntar-lhe: Diz-me o regresso, como irei pelo marpescoso (470).

    O regresso identificado, pensado e recordado: o perigo o de poderser esquecido antes que se verifique. De facto, uma das primeirasetapas da viagem contada por Ulisses, a dos Lotfagos, implica orisco de perder a memria, por ter comido o doce fruto do ltus. Podeparecer estranho a prova do esquecimento apresentar-se no incio doitinerrio de Ulisses e no no fim. Se depois de ter superado tantasprovas, suportado tantas travessias e aprendido tantas lies, Ulissestivesse esquecido tudo, a sua perda teria sido bem mais grave: no

    extrair nenhuma experincia do que sofreu, nenhum sentido do queviveu.

    Mas vendo bem, esta do esquecimento uma ameaa que nos cantosIX-XII reproposta vrias vezes: primeiro com o convite dosLotfagos, depois com os frmacos de Circe e depois ainda com o

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    canto das Sereias. Ulisses tem sempre de se precaver, se no quiseresquecer imediatamente... Esquecer o qu? A guerra de Tria? Ocerco? O cavalo? No; a casa, a rota da navegao, o objectivo daviagem. A expresso que Homero usa nestes casos esquecer o

    retorno.

    Ulisses no deve esquecer o caminho que tem a percorrer, a forma doseu destino: em suma, no deve esquecer a Odisseia. Mas tambm oaedo que compe improvisando ou o rapsodo que repete de cortrechos de poemas j cantados no devem esquecer se quiseremdizer o retorno; para quem canta versos sem o apoio de um textoescrito, esquecer o verbo mais negativo que existe; e para eles

    esquecer o retorno quer dizer esquecer os poemas chamados nostoi,cavalo de batalha do seu repertrio.

    Sobre o tema do esquecer o futuro escrevi h uns anos algumasconsideraes (Corriere della Ser, 10 de Agosto de 1975) queconcluam: O que Ulisses salva do ltus, das drogas de Circe e docanto das Sereias, no s o passado ou o futuro. A memria s contarealmente

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    para os indivduos, para as colectividades ou para as civilizaes - setiver ao mesmo tempo a marca do passado e o projecto do futuro, sepermitir fazer sem o esquecer o que se queria fazer, de se tornar semdeixar de ser, de ser sem deixar de se tornar.

    Ao meu texto seguiu-se uma interveno de Eduardo Sanguinetti no

    Paese Ser (agora in Giornalino, Einaudi, Torino, 1976) e uma sriede rplicas, minha e dele. Sanguinetti objectava: No devemosesquecer que a viagem de Ulisses no uma viagem de ida, mas simuma viagem de volta. E ento temos mesmo de interrogar-nos ummomento, que raio de futuro tem ele frente: porque o futuro queUlisses procura afinal de contas na verdade o seu passado. Ulisses

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    vence as lisonjas da Regresso porque est todo virado para umaRestaurao.

    Compreende-se que um dia, por despeito, o verdadeiro Ulisses, o

    grande Ulisses, se tenha tornado o da ltima Viagem: para quem ofuturo no de modo nenhum um passado, mas sim a Realizao deuma Profecia - ou seja, de uma verdadeira Utopia. Enquanto o Ulisseshomrico chega recuperao do seu passado como um presente: asua sabedoria a Repetio, e podemos reconhec-lo bem pelacicatriz que tem, e que o marca para sempre.

    Em resposta a Sanguinetti recordava (Corriere della Ser, 14 de

    Outubro de 1975) que na linguagem dos mitos, tal como na dashistrias e do romance popular, toda a empresa que traz a justia, querepara os males e resgata de uma condio miservel, em via de regra representada como a restaurao de uma ordem ideal anterior; odesejo de um futuro a conquistar garantido pela memria de umpassado perdido.

    Se examinarmos os contos populares vemos que apresentam doistipos de transformao social, sempre de final feliz: primeiro de cimapara baixo e depois de novo para cima; ou muito simplesmente decima para baixo. No primeiro tipo um prncipe que por qualquerinfeliz circunstncia reduzido a porqueiro ou outra msera condio,para depois reconquistar a sua condio real; no segundo tipo h umjovem pobre de nascimento, pastor ou campons, e se calhar at pobrede esprito, que por virtude prpria ou ajudado por seres mgicosconsegue casar com a princesa e tornar-se rei.

    Os mesmos esquemas aplicam-se aos contos de protagonistafeminina: no primeiro tipo a donzela de condio real ou pelo menosrica cai numa condio de desamparo devido rivalidade de umamadrasta

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    (como Branca de Neve) ou das meias irms (como a GataBorralheira) at um prncipe se apaixonar por ela e a reconduzir aotopo da escala social; no segundo tipo trata-se de uma verdadeira

    pastora ou camponesa que supera todas as desvantagens do seuhumilde nascimento e tem acesso a um principesco casamento.

    Poder-se- pensar que so os contos do segundo tipo que exprimemmais directamente o desejo popular de uma subverso das categoriassociais e dos destinos individuais, enquanto os do primeiro tipodeixam transparecer este desejo de uma forma mais atenuada, comorestaurao de uma hipottica ordem anterior. Mas pensando bem, as

    extraordinrias fortunas do zagal ou da pastorinha s representamuma iluso miraculista e consolatria, que ser depois largamentecontinuada pelo romance popular e sentimental. Enquanto emcontrapartida os infortnios do prncipe ou da rainha infeliz ligam aimagem da pobreza ideia de um direito espezinhado, de uma justiaa reivindicar, ou seja, fixam (no plano da fantasia, onde as ideiaspodem ganhar razes sob a forma de figuras elementares) um pontoque ser fundamental para toda a tomada de conscincia social dapoca moderna, a partir da Revoluo Francesa.

    No inconsciente colectivo, o prncipe disfarado de pobre a prova deque todo o pobre na realidade um prncipe que sofreu umausurpao e que tem de reconquistar o seu reino. Ulisses ou GuerinMeschino ou Robin Hood, reis ou filhos de reis ou nobres cavaleiroscados em desgraa, quando triunfarem sobre os seus inimigos irorestaurar uma sociedade de justos em que ser reconhecida a suaverdadeira identidade.

    Mas ainda a primeira identidade de antes? O Ulisses que chega ataca como um velho mendigo irreconhecvel a todos talvez j noseja a mesma pessoa que o Ulisses ido para Tria. No por acasoque salvou a vida mudando o nome para Ningum. O nicoreconhecimento imediato e espontneo surge por parte do co Argo,

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    como se a continuidade do indivduo se manifestasse atravs de sinaiss perceptveis a um olho animal.

    As provas da sua identidade so para a ama uma cicatriz do arranho

    de um javali, para a mulher o segredo da construo da cama nupciala partir de uma raiz de oliveira, para o pai uma lista de rvores defruto; tudo sinais que no tm nada de real, que fazem do heri umcaador, um carpinteiro ou um hortelo. A estes sinais vm juntar-se afora fsica e uma combatividade impiedosa contra os inimigos; esobretudo o favor manifesto dos deuses, que o que convencetambm Telmaco, mas s por acto de f.

    18

    Por sua vez Ulisses, irreconhecvel, despertando em taca noreconhece a sua ptria. Ter de intervir Atena a garantir-lhe que taca mesmo taca. A crise de identidade geral, na segunda metade daOdisseia. S a narrao garante que as personagens e os lugares so asmesmas personagens e os mesmos lugares. Mas at a narrao muda.A histria que o irreconhecvel Ulisses faz ao pastor Eumeu, depoisao rival Antinoo e prpria Penlope outra Odisseia, totalmentediferente; as peregrinaes que de Creta levaram at ali a personagemfictcia que ele diz ser, uma histria de nufragos e piratas muito maisverosmil que a outra que ele prprio contara ao rei dos Fecios.Quem nos diz que no esta a verdadeira Odisseia? Mas esta novaOdisseia remete ainda para mais outra Odisseia: o cretense nas suasviagens encontrou Ulisses: portanto Ulisses conta a histria de umUlisses em viagem por pases em que a Odisseia que dada porverdadeira no o fez passar.

    Que Ulisses seja um mistificador, j se sabe antes da Odisseia. Nofoi ele que ideou o grande engano do cavalo? E no princpio daOdisseia, as primeiras evocaes da sua personagem so doisflash-backs sobre a guerra de Tria contados um a seguir ao outro porHelena e por Menelau: duas histrias de simulao. Na primeira ele

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    penetra sob disfarce na cidade cercada para a levar carnificina; nasegunda encerrado dentro do cavalo com os seus companheiros econsegue impedir que Helena os desmascare induzindo-os a falar.

    (Nos dois episdios Ulisses encontra-se perante Helena; no primeirocomo aliada, cmplice da simulao; no segundo como adversria,que simula as vozes das mulheres dos aqueus para os induzir atrarem-se. O papel de Helena torna-se contraditrio mas semprediferenciado da simulao. Do mesmo modo, Penlope tambm seapresenta como simuladora, pelo estratagema da tela; a tela dePenlope um estratagema simtrico ao do cavalo de Tria, e talcomo ele um produto da habilidade manual e da contrafaco: as duas

    principais qualidades de Ulisses tambm so caractersticas dePenlope).

    Se Ulisses um simulador, toda a narrativa que ele faz ao rei dosFecios pode ser mentira. De facto, estas suas aventuras martimas,concentradas nos quatro livros centrais da Odisseia, rpida sucessode encontros com seres fantsticos (que surgem nos contos popularesdo folclore de todos os tempos e pases: o ogre Polifemo, os ventosencerrados no odre, os encantos de Circe, sereias e monstrosmarinhos) contrastam com o resto do poema, em que predominam ostons graves, a tenso psicolgica,

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    o crescendo dramtico gravitando em torno de um fim: a reconquistado reino e da esposa assediados pelos Prcidas. Aqui tambm seencontram motivos comuns aos contos populares, como a tela de

    Penlope e a prova de tiro ao arco, mas estamos num terreno maisprximo dos critrios modernos de realismo e de verosimilhana: osintervenientes sobrenaturais s dizem respeito s aparies dosdeuses olmpicos, habitualmente ocultos sob aparncia humana.

    Temos porm de recordar que as mesmas aventuras (sobretudo a

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    passada com Polifemo) tambm so evocadas noutros pontos dopoema, e portanto o prprio Homero que d a sua confirmao; eno s, os prprios deuses discutem-nas no Olimpo. E que atMenelau, na Telemaquia, conta uma aventura do mesmo gnero

    fabuloso das de Ulisses: o encontro com o velho do mar. S nos restaatribuir as diversidades do estilo fantstico montagem de tradiesde diferentes origens, transmitidas pelos aedos e confluindo depois naOdisseia homrica, que na narrativa de Ulisses na primeira pessoarevelaria o seu estrato mais arcaico.

    Mais arcaico? Segundo Alfred Heubeck, as coisas poderiam tercorrido de maneira inclusivamente contrria. (Vd. Omero, Odissea,

    Livros I-IV, introduzione di Alfred Heubeck, testo e commento a curadi Stephanie West, Fondazione Lorenzo Valla/Mondadori, Milano,1981).

    Ulisses antes da Odisseia (Ilada includa) fora sempre um heripico, e os heris picos, como Aquiles e Heitor na Ilada, no tmaventuras fabulosas desse tipo, base de monstros e de encantos. Maso autor da Odisseia tem de pr Ulisses longe de casa durante dez anos,desaparecido, perdido para os familiares e ex-companheiros dearmas. Para isso tem de faz-lo sair do mundo conhecido, passar paraoutra geografia, para um mundo extra-humano, para um alm (no em vo que as suas viagens culminam numa visita aos nferos). Paraeste exlio fora dos territrios da pica, o autor da Odisseia recorre atradies (estas sim, mais arcaicas) como as empresas de Jaso e dosArgonautas.

    Portanto a novidade da Odisseia a de ter posto um heri pico como

    Ulisses a braos com bruxas e gigantes, com monstros e comedoresde homens, ou seja, em situaes de um tipo de saga mais arcaica,cujas razes se tm de procurar no mundo da antiga fbula, einclusivamente de primitivas concepes mgicas e xamnicas.

    aqui que o autor da Odisseia, segundo Heubeck, manifesta a sua

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    verdadeira modernidade, a que o torna nosso prximo e actual: setradicionalmente o heri pico era um paradigma de virtudesaristocrticas e militares,

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    Ulisses no s isto mas tambm o homem que suporta asexperincias mais duras, os trabalhos, a dor e a solido. claro queele tambm arrasta o seu pblico para um mtico mundo de sonho,mas este mundo de sonho torna-se ao mesmo tempo a imagemespecular do mundo real em que vivemos, no qual predominam anecessidade e a angstia, o terror e a dor, e em que o homem est

    afundado sem sada.

    No mesmo volume, Stephanie West, que no entanto parte depremissas diferentes de Heubeck, apresenta uma hiptese que podervalidar o seu discurso: a hiptese de que tenha havido uma Odisseiaalternativa, outro itinerrio de retorno, anterior a Homero. Homero(ou quem quer que fosse o autor da Odisseia), considerando estanarrativa de viagens demasiado pobre e pouco significativa, t-la-iasubstitudo pelas aventuras fabulosas, mas conservando vestgios daoriginal nas viagens do pseudo-cretense. Com efeito no prembulo hum verso que deveria apresentar-se como a sntese de toda a Odisseia:De muitos homens vi as cidades e conheci os pensamentos. Quaiscidades? Quais pensamentos? Esta hiptese pode adaptar-se melhor narrativa das viagens do pseudo-cretense...

    Porm, assim que Penlope o reconheceu, no tlamo reconquistado,Ulisses volta a contar as histrias dos Ciclopes, das Sereias... No

    ento a Odisseia o mito de todas as viagens? Talvez paraUlisses-Homero no existisse a distino mentira-verdade, e elecontasse a mesma experincia ora na linguagem do vivido, ora nalinguagem do mito, tal como ainda hoje para ns qualquer viagem,pequena ou grande, sempre uma Odisseia.

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    [1983]

    XENOFONTE, ANABASE (A RETIRADA DOS DEZ MIL)

    A impresso mais forte que d Xenofonte, ao l-lo hoje, a de queestamos a ver um velho documentrio de guerra, como so repetidosde vez em quando no cran ou no video. Vem espontaneamente aonosso encontro o fascnio do preto e branco da pelcula um tantodesbotada, com crus contrastes de sombras e movimentos acelerados,a partir de excertos como este (no cap. V do livro IV):

    Sempre sobre uma alta espessura de neve percorrem outras quinze

    parasangas em trs dias. O terceiro dia particularmente terrvel, porvia do vento de tramontana que sopra em sentido contrrio marcha:embravece por toda a parte, tudo queimando e congelando oscorpos... Para defender os olhos da reverberao da neve, os soldadosdurante a caminhada pem frente dos olhos qualquer coisa preta:contra o perigo de congelamento, o remdio mais eficaz mexersempre os ps, nunca estar quieto e sobretudo tirar o calado denoite... Um grupo de soldados, que ficou para trs devido a taisdificuldades, descobriu no muito afastada, num pequeno vale nomeio da planura de neve, uma poa castanha: neve derretida,pensam. De facto, a neve derreteu-se naquele ponto, por umanascente de gua natural, que corre ali perto, exalando vapores para ocu.

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    Mas de Xenofonte cita-se mal: o que conta a sucesso contnua de

    pormenores visuais e de aco; difcil encontrar uma passagem querepresente com plenitude o sempre variado prazer da leitura. Talvezeste, duas pginas atrs:

    Alguns gregos, que se afastaram do campo, declararam ter entrevistoao longe como que a massa de um exrcito, e muitas fogueiras

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    aparecer na noite. Ouvindo isto, os estrategos reputam pouco seguropermanecer alojados em ordem esparsa, e renem novamente oexrcito. Os soldados acampam todos juntos ao ar livre, j que otempo parece voltar ao sereno. Nem que de propsito, durante a noite

    caiu tanta neve que cobriu armas, bichos e homens deitados no solo;os animais tm os membros to rgidos do gelo que no conseguemendireitar-se nas patas; os homens hesitam em levantar-se porque aneve depositada nos corpos e ainda no derretida infunde calor.Xenofonte ento audazmente levanta-se e, desnudando-se, comea adar machadadas na lenha; ao seu exemplo algum se ergue, tira-lhe damo o machado e prossegue a obra; mais outros se levantam eacendem o lume; todos untam os membros em vez de leo com

    unguentos descobertos na aldeia, de sementes de gergelim, deamndoas amargas e de terebinto, e com banha. Extrado das mesmassubstncias h at um unguento perfumado.

    O rpido passar de uma representao visual para outra, e da anedota, e da ainda anotao dos costumes exticos: este o tecidoque serve de fundo a um contnuo desfiar de episdios aventurosos,de obstculos imprevistos marcha do exrcito errante. Todo oobstculo costuma ser superado por meio de uma astcia deXenofonte: cada cidade fortificada a assaltar, cada armada inimigaque se lhe ope em campo aberto, cada vau, cada intemprierequerem uma descoberta, um faiscar de gnio, uma invenoestratgica do narrador-protagonista-dirigente. Por vezes Xenofonteparece uma personagem infantil das histrias de quadrinhos que emcada episdio consegue safar-se em circunstncias impossveis; alis,tal como precisamente nas histrias infantis, muitas vezes osprotagonistas do episdio so dois, os dois oficiais rivais, Xenofonte e

    Quirsofo, o ateniense e o espartano, e a inveno de Xenofonte sempre a mais astuta, generosa e decisiva.

    Em si o tema da Retirada serviria muito bem para um conto pcaro ouheri-cmico: dez mil mercenrios gregos, recrutados com enganador

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    pretexto por um prncipe persa, Ciro o Jovem, para uma expedio nointerior da sia Menor destinada na realidade a depor o irmo

    Artaxerxes II, so derrotados na batalha de Cunaxa, e vem-se semchefes, longe da ptria, a ter de abrir caminho para o regresso porentre populaes inimigas. No querem seno tornar a casa, masfaam o que fizerem constituem um perigo pblico: dez mil homensarmados e famintos, aonde chegam depredam e destroem, como umenxame de gafanhotos; e atraem consigo um grande squito demulheres.

    Xenofonte no era o tipo nem de se deixar tentar pelo estilo hericoda epopeia nem de saborear - seno raramente - os aspectostruculento-grotescos de uma situao daquelas. O seu um memorialtcnico de um oficial, um dirio de viagem com todas as distncias epontos de referncia geogrficos e notcias sobre os recursos vegetaise animais, e uma resenha dos problemas diplomticos, logsticos eestratgicos e das respectivas solues.

    O conto entremeado por actas dereunies do estado-maior e pordiscursos de Xenofonte s tropas ou aos embaixadores dos brbaros.Destes trechos oratrios eu conservava dos bancos de escola alembrana de uma grande chatice, mas estava enganado. O segredo,ao ler a Retirada dos Dez Mil o de nunca saltar nada, de seguir tudoponto por ponto. Em cada um daqueles discursos h um problemapoltico: ou de poltica externa (as tentativas de relaes diplomticascom os prncipes e os chefes dos territrios de que se solicita apassagem) ou de poltica interna (as discusses entre os chefes

    helnicos, com as habituais rivalidades entre atenienses e espartanos,etc.). E como o livro escrito em polmica com outros generais, sobrea responsabilidade de cada um no comportamento daquela retirada, ofundo de polmicas abertas ou apenas aludidas, dessas pginas quetemos de extra-lo.

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    Como escritor de aco, Xenofonte exemplar; se o compararmoscom o autor contemporneo que mais lhe corresponde - o coronelLawrence - veremos como a mestria do ingls consiste em suspender- como subentendido exactido toda - factos da prosa - uma aura de

    maravilha esttica e tica em torno dos acontecimentos e dasimagens; no grego no, a exactido e a secura no subentendem nada:as duras virtudes do soldado no pretendem ser seno as durasvirtudes do soldado.

    H realmente um pathos na Retirada: a nsia do regresso, o pavor daterra estrangeira, o esforo de no se dispersar porque enquantoestiverem juntos de certo modo trazem dentro de si a ptria.

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    Esta luta pelo regresso de um exrcito conduzido derrota numaguerra que no sua e abandonado a si prprio, este combater j spara abrir o caminho de sada contra ex-aliados e ex-inimigos, tudoisto aproxima a Retirada a um filo das nossas leituras recentes: oslivros de memrias sobre a retirada da Rssia dos alpinos italianos.No uma descoberta de hoje: em 1953 Elio Vittorini, ao apresentar oque devia ficar como livro exemplar do gnero, O Sargento na Nevede Mrio Rigoni Stern, definia-o como pequena anabase dialectal.E com efeito os captulos de retirada na neve da Anabase (de queextra as citaes anteriores) so ricos de episdios que poderiamabsolutamente ser confundidos com os do Sargento.

    Caracterstica de Rigoni Stern e de outros dos melhores livrositalianos sobre a retirada da Rssia, que o narrador-protagonista

    um bom soldado, tal como Xenofonte, e fala das aces militares comcompetncia e empenho. Para eles assim como para Xenofonte asvirtudes guerreiras, na derrocada geral das mais pomposas ambies,tornam-se virtudes prticas e solidrias pelas quais se mede acapacidade de cada um de ser til no s a si prprio mas tambm aosoutros. (Recordemos La guerra dei poveri [A Guerra dos pobres] de

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    Nuto Revelli quanto ao apaixonado furor do oficial desiludido; eoutro belo livro injustamente descurado, lunghi furli [As longasespingardas] de Cristoforo M. Negrij.

    Mas as analogias ficam por aqui. As memrias dos alpinos nascem dacontradio de uma Itlia humilde e sensata com as loucuras e omassacre da guerra total; nas memrias do general do sculo V acontradio com a situao do bando de gafanhotos a que se reduziua armada dos mercenrios helnicos e o exerccio das virtudesclssicas, filosficas-civis-militares, que Xenofonte e os seus tentamadaptar s circunstncias. E resulta que esta contradio no tem demodo algum a pungente tragicidade da outra: ao conciliar os dois

    termos Xenofonte parece seguro de t-lo conseguido. O homem podereduzir-se a gafanhoto e no entanto aplicar a esta sua condio degafanhoto um cdigo de disciplina e de decoro, - numa palavra: umestilo -; e ficar satisfeito; no discutir nem muito nem pouco o factode ser gafanhoto mas apenas o melhor modo de s-lo. Em Xenofontej est bem delineada com todos os seus contornos a tica moderna daperfeita eficincia tcnica, do estar altura da situao, do fazerbem o que se faz independentemente da avaliao da prpria acoem termos de moral universal. Continuo a chamar moderna a estatica porque o era quando eu era jovem,

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    e era este o sentido que se extraa de muitos filmes americanos, e atdos romances de Hemimgway, e eu oscilava entre a adeso a estamoral toda tcnica e pragmtica e a conscincia dovazio que seabria por baixo dela. Mas ainda agora, que parece afastadssima do

    esprito dos tempos, acho que tinha a sua parte boa.

    Xenofonte tem o grande mrito, no plano moral, de no mistificar, denunca idealizar a posio da sua parte. Se em relao aos costumesdos brbaros manifesta muitas vezes o distanciamento e a aversodo homem civilizado tem porm de se dizer que lhe estranha a

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    hipocrisia colonialista. Sabe que est cabea de uma horda depredadores em terra estrangeira, e sabe que a razo no est do ladodos seus mas sim do dos brbaros invadidos. Nas suas exortaes aossoldados nunca deixa de recordar as razes dos inimigos: Outra

    considerao deveis fazer. Os inimigos tero tempo para nosdepredarem, e tm boas razes para nos atacarem, dado queocupamos a propriedade deles.... em procurar dar um estilo, umanorma, a este movimento biolgico de homens vidos e violentosentre as montanhas e as plancies da Anatlia que est toda a suadignidade: dignidade limitada, no trgica, no fundo burguesa.Sabemos que se pode conseguir muito bem dar a aparncia de estilo edignidade s piores aces, mesmo que no ditadas como esta, por um

    estado de necessidade. O exrcito dos helenos que serpenteia pelomeio das gargantas das montanhas e dos vaus, entre contnuas emboscadas e saques, j no distinguindo at onde vtima e at onde opressor, cercado at na frieza dos massacres pela supremahostilidade da indiferena e do acaso, inspira uma angstia simblicaque s ns podemos entender.

    [1978]

    OVDIO E A CONTIGUIDADE UNIVERSAL

    H l no alto no cu uma via, que se v quando est sereno. Lctea sechama, e sobressai precisamente pelo seu esplendor. Por ela passamos deuses para se dirigirem morada do grande Tonante, ao palcioreal. direita e esquerda, com as portas abertas, so os trios dosdeuses nobres, sempre apinhados. A plebe habita dispersa pelosoutros stios. Os deuses mais poderosos e ilustres estabeleceram aqui

    o seu domiclio, na frente ("...a fronte potentes / caelicolae clariquesuos posuere penates"). Se a expresso no soasse a irreverncia,atrever-me-ia a dizer que este lugar o Palatino do grande cu.

    assim que Ovdio, na abertura das Metamorfoses, para nosintroduzir no mundo dos deuses celestes, comea por aproxim-lo

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    tanto de ns que o torna idntico Roma de todos os dias, comourbanstica, como diviso em classes sociais, como factos de costume(o apinhar-se dos clientes). E como religio: os deuses tm os seusPenates nas casas em que habitam, o que implica que os soberanos do

    cu e da terra tributam por sua vez um culto aos seus pequenos deusesdomsticos.

    Aproximao no quer dizer reduo ou ironia: estamos numuniverso em que as formas preenchem densamente o espao mudandocontinuamente de qualidades e dimenses, e o fluir do tempo preenchido por um proliferar de contos e de ciclos de contos.

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    As formas e as histrias terrestres repetem formas e histrias celestesmas tanto umas como outras se deixam envolver por sua vez numadupla espiral. A contiguidade entre os deuses e os seres humanos -aparentados aos deuses e objecto dos seus amores compulsivos - umdos temas dominantes das Metamorfoses, mas apenas um casoparticular da contiguidade entre todas as figuras ou formas do queexiste, antropomrficas ou no. Fauna, flora, reino mineral efirmamento englobam na sua substncia comum o que nscostumamos considerar humano como conjunto de qualidadescorpreas, psicolgicas e morais.

    A poesia das Metamorfoses enraza-se sobretudo nestas indistintasfronteiras entre mundos diferentes e logo no livro II encontra umaoportunidade extraordinria no mito de Faton que ousa pr-se srdeas do carro do Sol. O cu aparece como um espao absoluto,

    geometria abstracta, e ao mesmo tempo como teatro de uma aventurahumana transmitida com tanta preciso de pormenores que no nosdeixa perder o fio meada nem por um segundo, levando oenvolvimento emotivo at ao espasmo.

    No s a preciso nos dados concretos mais materiais, como o

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    movimento do carro que se despista e d solavancos devido inslitaleveza da carga, ou nas emoes do jovem cocheiro desajeitado, masna visualizao de modelos ideais, como o mapa celeste. Digamos jque se trata de uma preciso aparente, de dados contraditrios que

    comunicam a sua sugesto se tomados um a um e at como efeitonarrativo geral, mas no podem saldar-se numa viso coerente: o cu uma esfera atravessada por vias a subir e a descer, reconhecveispelos sulcos das rodas, mas ao mesmo tempo girando freneticamenteem direco contrria do carro solar; est suspenso a uma alturavertiginosa por cima das terras e dos mares que se vem l ao fundo;ora aparece como uma abbada dominante em cuja parte mais altaesto fixadas as estrelas, ora como uma ponte que sustm o carro no

    vcuo provocando em Faton um igual terror de prosseguir ou derecuar (Quid faciat? Multum caeli post terga relictum ante culosplus est. Animo metitur utrumque); vcuo e deserto (no ocu-urbe do livro I, portanto: Acaso pensars que haja bosquessagrados e cidades dos deuses e templos ricos de oferendas? dizFebo), povoado pelas figuras de animais ferozes que so ssimulacro, formas de constelaes, mas nem por isso menosameaadoras; nelas reconhece-se uma pista oblqua, a meia costa, queevita o plo austral e a Ursa; mas se sair da estrada e se se perder pelosprecipcios acaba

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    por passar debaixo da Lua, por chamuscar as nuvens e por pegar fogo Terra.

    Aps a cavalgada celeste suspensa no vcuo, que a parte mais

    sugestiva da narrao, comea a grande descrio da Terra a arder, domar fervente em que flutuam corpos de focas de barriga para o ar,uma das clssicas pginas do Ovdio catastrfico, que serve desuporte ao dilvio do livro I. Em volta da Alma Tellus, da Terra Me,concentram-se todas as guas. As fontes consumidas procuram tornara sepultar-se no escuro tero materno (fontes qui se condiderant in

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    opacae vscera matris...) E a Terra, mostrando os cabeloschamuscados e os olhos injectados de cinzas, suplica a Jpiter com ofio de voz que resta sua garganta sequiosa, avisando-o de que se osplos se incendiarem tambm os palcios dos deuses ruiro. (Os

    plos terrestres ou os celestes? Fala-se tambm do eixo da Terra queAtlas j no consegue suster porque est incandescente. Mas os plosnaquela poca eram uma noo astronmica, e de resto o versoseguinte precisa: regia caeli. Ento o palcio real do cu era de factol em cima? Ento por que motivo Febo o exclua e Faton no oencontrou? Alis estas contradies no existem s em Ovdio;tambm a partir de Virglio, tal como dos outros maiores poetas daantiguidade, difcil fazer uma ideia clara de como realmente viam

    o cu os antigos).

    O episdio culmina com a destruio do carro solar atingido pelo raiode Jpiter, numa exploso de fragmentos estilhaados: Ilic frenaiacent, ilic temone revulsus axis, in hac radii fractarum parterotarum... (No este o nico acidente de trnsito nasMetamorfoses: outra derrapagem a grande velocidade a de Hiplitono ltimo livro do poema, em que a riqueza de pormenores ao referiro sinistro passa da mecnica anatomia, descrevendo o horror dasvsceras e dos ossos de fora).

    A interpenetrao deuses-homens-natureza implica no uma ordemhierrquica unvoca mas sim um intricado sistema de inter-relao emque cada nvel pode influir sobre os outros, embora em medidasdiferentes. O mito, em Ovdio, o campo de tenso em que estasforas se defrontam e se equilibram. Tudo depende do esprito comque narrado o mito: s vezes os prprios deuses contam os mitos de

    que fazem parte como exemplos morais para advertir os mortais;outras vezes os mortais usam os prprios mitos em polmica ou comodesafio aos deuses, como fazem as Pirides ou Aracne. Ou talvez hajamitos que os deuses gostem de ouvir contar e outros que prefiram vercalados.

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    As Pirides so uma verso da escalada dos Gigantes ao Olimpo vistapelo lado dos Gigantes, com o medo dos deuses postos em fuga (livro

    V). Narram-na depois de terem desafiado as Musas na arte danarrativa, e as Musas respondem com outra srie de mitos querestabelecem as razes do Olimpo; a seguir punem as Piridestransformando-as em pegas. O desafio aos deuses implica umainteno irreverente ou blasfema no conto: a tecedeira Aracne desafiaMinerva na arte do tear e representa numa tapearia os pecados dosdeuses libertinos (livro VI).

    A preciso tcnica com que Ovdio descreve o funcionamento dosteares no desafio pode dar-nos uma possvel identificao do trabalhodo poeta com a tecelagem de uma tapearia de prpura multicor. Masqual? A de Palas-Minerva, onde em torno das grandes figurasolmpicas com os seus tradicionais atributos so representadas, emmnimas cenas nos quatro cantos da tela, emolduradas em ramos deoliveira, quatro punies divinas a mortais que desafiaram os deuses?Ou a de Aracne, em que as insidiosas sedues de Jpiter e Neptuno eApolo que Ovdio j contara longamente reaparecem como alegoriassarcsticas por entre grinaldas de flores e festes de hera (no semacrescentar um ou outro pormenor precioso: Europa que, levada pelosmares na garupa do touro, levanta os ps para no se molhar:...tactumque vereri adsilientis aquae timidasque reducere plantas)!

    Nem uma nem outra. No grande mostrurio de mitos que todo opoema, o mito de Palas e Aracne pode conter por sua vez doismostrurios em escala reduzida orientados em direces ideolgicas

    opostas: um para infundir um sacro temor, o outro para incitar irreverncia e relatividade moral. Quem da inferir que todo opoema deve ser lido no primeiro modo - dado que o desafio de Aracne cruelmente castigado - ou no segundo - dado que o potico ajuste decontas favorece a culpada e vtima - enganar-se-ia redondamente: asMetamorfoses pretendem representar o conjunto do que narrvel

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    transmitido pela literatura com toda a fora de imagens e designificados que isso implica, sem se decidir - de acordo com aambiguidade propriamente mtica - entre as chaves de leiturapossveis. S acolhendo no poema todas as narrativas e intenes de

    narrativa que circulam em todas as direces, que se amontoam eempurram para se canalizarem na ordenada extenso dos seushexmetros, o autor das Metamorfoses ter a certeza de no servir umdesgnio parcial mas sim a multiplicidade viva que no excluinenhum deus conhecido ou desconhecido.

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    O caso de um deus novo e estrangeiro, nada fcil de reconhecer comotal, um deus-escndalo em contradio com todos os modelos debeleza e virtude, amplamente recordado nas Metamorfoses:Baco-Dionsio. ao seu culto orgaco que as devotas de Minerva (asfilhas de Minias) se recusam a juntar-se e continuam a fiar e a cardar al nos dias das festas bquicas, aliviando a longa fadiga com oscontos. Eis assim outro uso dos contos, que laicamente se justificacom o divertimento puro (quod tmpora longa videri non sinat) ecom o auxlio da produtividade (utile opus manuum vario sermonelevemus) mas que no entanto se dedica a Minerva, melior dea paraessas laboriosas donzelas a quem repugnam as orgias e devassidodos cultos de Dionsio, que inundaram a Grcia depois de terconquistado o Oriente.

    certo que a arte de contar, to cara s tecedeiras, tem uma ligao aoculto de Palas-Minerva. Vimo-lo com Aracne, que por ter desprezadoa deusa transformada em aranha; mas vemo-lo tambm no caso

    oposto, de um culto excessivo por Palas que leva a ignorar os outrosdeuses. Tambm as filhas de Minias, com efeito (livro IV), culpadasde serem demasiado seguras das suas virtudes, e demasiadoexclusivas na sua devoo (intempestiva Minerva), sero castigadashorrendamente, com a metamorfose em morcegos, pelo deus que noconhece o trabalho mas sim a embriaguez, que no ouve as histrias

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    mas sim o canto irresistvel e obscuro. Para no ser tambmtransformado em morcego, Ovdio tem muito cuidado em deixarabertas todas as portas do seu poema aos deuses passados presentes efuturos, indgenas e estrangeiros, ao Oriente que para alm da Grcia

    persegue o mundo das fbulas, e restaurao augustal daromanidade que pressiona a actividade poltico-intelectual. Mas noconseguir convencer o deus mais prximo e executivo, Augusto, queo transformar para sempre em exilado, num habitante da lonjura, aele que queria tornar tudo prximo e presente.

    Do Oriente (de algum antepassado das Mil e uma noites, dizWilkinson) vem-lhe a romntica novela de Pramo e Tisbe (que uma

    das Minades escolhe numa srie de outras da mesma misteriosaorigem), com o muro que abre caminho s palavras sussurradas masno aos beijos, com a noite branca do luar sob a cndida amoreira, quemandar os seus reflexos at noite de Vero isabelina.

    Do Oriente atravs do romance alexandrino chega a Ovdio a tcnicade multiplicao do espao interior obra por meio dos contosencaixados noutros contos, que aumentam aqui a impresso de denso,

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    De pululante, de intrincado. Como a floresta em que uma caa aojavali envolve os destinos de ilustres heris (livro VIII), no longe dosabismos do Aqueloo, que detm os regressados da caa no caminhode volta. Estes so acolhidos na residncia do deus fluvial, que seapresenta como obstculo e ao mesmo tempo como refgio, comopausa na aco, momento de narrao e de reflexo. Como entre os

    caadores est no s Teseu curioso de conhecer a origem de tudo oque v, mas tambm Pirtoo descrente e insolente (deorum spretorerat mentisqueferox), o rio sente-se encorajado a contar histriasmaravilhosas de metamorfoses, no que imitado pelos convidados.Assim continuamente se saldam nas Metamorfoses novas concreesde histrias como de conchas de que pode nascer a prola: neste caso

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    o humilde idlio de Filmon e Bucis que contm todo um mundominucioso e um ritmo totalmente diferente.

    Deve-se dizer que destas complicaes estruturais Ovdio s

    ocasionalmente se serve: a paixo que domina o seu talentocompositivo no a sistematicidade mas sim a acumulao, e estligada s variaes de perspectiva e s mudanas de ritmo. Por isso,quando Mercrio, para adormecer Argo cujas cem plpebras nunca sebaixam todas juntas, comea a contar as metamorfoses da ninfaSiringe num tufo de canas, a sua narrao referida em parte porextenso, e em parte resumida numa nica frase, porque a continuaodo conto se tornou implcita pelo emudecimento do deus, quando v

    que todos os olhos de Argo cederam ao sono.

    As Metamorfoses so o poema da rapidez: tudo deve suceder-se numritmo cerrado, impor-se imaginao, cada imagem tem de sesobrepor a outra imagem, adquirir evidncia e desvanecer-se. oprincpio do cinematgrafo: cada verso como cada fotograma deveestar pleno de estmulos visuais em movimento. O horror vaculdomina tanto o espao como o tempo. Durante pginas e pginastodos os verbos esto no presente, tudo se passa diante dos nossosolhos, os factos perseguem-nos, nega-se toda a distncia. E quandoOvdio sente a necessidade de mudar de ritmo, a primeira coisa quefaz no mudar o tempo dos verbos mas sim a pessoa, passar daterceira para a segunda, ou seja, introduzir a personagem de quem vaifalar dirigindo-se-lhe directamente por tu: Te quoque mutatumtorvo, Neptune, invaico.... O presente no existe s no tempo verbalmas a prpria presena da personagem que evocada. Mesmoquando os verbos esto no passado, o vocativo opera uma

    aproximao repentina. Este procedimento usado muitas vezesquando vrios sujeitos

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    efectuam aces paralelas, para evitar a monotonia na listagem. Se

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    falou de Tcio na terceira pessoa, Tntalo e Ssifo so chamados emcausa por tu e com o vocativo. segunda pessoa tm direito at asplantas (Vos quoque, flexipedes hederae, venistis...) e no h razopara espantos, sobretudo quando so plantas que se movem como

    pessoas e acorrem ao som da ctara do vivo Orfeu, acumulando-senum denso viveiro da flora mediterrnica (livro IX).

    Tambm h momentos - e aquele de que agora se fala um deles- em que a narrao tem de abrandar a velocidade, passar para umandamento mais calmo, tornar o passar do tempo como que suspenso,uma velada distncia. Nestes casos o que faz Ovdio? Para ser claroque a narrao no tem pressa, detm-se a fixar os nfimos

    pormenores. Por exemplo: Filmon e Bucis recebem na sua humildecasa os visitantes desconhecidos, os deuses. ...Mensae sed erat pstertius impar: testa parem fedi; quae postquam sbdita clivam sustulit,aequatam mentae tersere virentes... Mas uma das trs pernas damesa muito curta. Um calo nivela-a; enfiado por baixo elimina ainclinao, e o tampo depois limpo com folhas de hortel verde. Eem cima pem-se azeitonas de duas cores, consagradas puraMinerva, e comalinas outonais em molho lquido, e endvias erbanos e uma forma de leite, coalhado, e ovos rolados delicadamenteem cinzas no demasiado escaldantes: tudo em loia de barro...(livro VIII).

    continuando a enriquecer o quadro que Ovdio alcana umresultado de rarefaco e de pausa. Porque o gesto de Ovdio sempreo de acrescentar, nunca o de tirar; de entrar cada vez mais nopormenor, nunca de se esfumar no vago. Procedimento que surteefeitos diferentes conforme a entoao, ora submissa e solidria com

    as pobres coisas, ora excitada e impaciente de saturar o maravilhosoda fbula com a observao objectiva dos fenmenos da realidadenatural. Como quando Perseu luta com o monstro marinho de dorsoincrustado de conchas, e pousa a cabea hirta de serpentes da Medusade cara para baixo num rochedo, depois de ter estendido - para nosofrer o contacto com a areia grossa - uma camada de algas e de

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    plantinhas nascidas na gua. Vendo as ramagens tornar-se pedras aocontacto com a Medusa, as Ninfas divertem-se a fazer sofrer a mesmatransformao a outros ramos: assim nasce o coral que, mole debaixode gua, se petrifica ao contacto com o ar; assim Ovdio conclui a

    aventura fabulosa como lenda etiolgica, no seu gosto pelas formasestranhas da natureza.

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    Uma lei de mxima economia interna domina este poemaaparentemente votado ao dispndio desenfreado. a economiaprpria das metamorfoses, que exige que as novas formas recuperem

    o mais possvel os materiais das velhas. Aps o dilvio, notransformar-se das pedras em seres humanos (livro I) se havia nelasuma parte hmida de qualquer suco ou terrosa, esta passou a fazer decorpo; o que era slido, impossvel de vergar, tornou-se osso; as queeram veias ficaram, com o mesmo nome. Aqui a economia alarga-seao nome: quaemodovenafuit, sub eodem nomine mansit. Dafne(livro I) de quem o que chama mais a ateno so os cabelosdescompostos (de tal modo que o primeiro pensamento de Febo aov-la : Imaginem, se se penteasse! Spectat inornatoscollopendere capillos / et "Quid, si comantur? ait est ) est jpredisposta nas linhas flexuosas da sua fuga metamorfose vegetal:... in frondem crines, in ramos bracchia crescunt; / pes modo tornvelox pigris radicibus haeret... Cane (livro V) no faz seno levar aoextremo a consumao em lgrimas (lacrimisque absumitur omnis)at se dissolver no lago de que era ninfa. E os camponeses da Lcia(livro VI) que errante Latona que pretende dessedentar os seusgmeos recm-nascidos lanam injrias e turvam o lago agitando o

    seu lodo, j no eram muito diferentes das rs em que se transformampor justo castigo: basta que desaparea o pescoo, os ombros se unam cabea, o dorso se torne verde e o ventre esbranquiado.

    Esta tcnica da metamorfose foi estudada por Sceglov num ensaiobem claro e persuasivo. Todas estas transformaes - diz Sceglov -

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    tm precisamente a ver com os factos diferenciadores fsico-espaciaisque Ovdio costuma isolar nos objectos mesmo fora da metamorfose("pedra dura", "corpo comprido", "espinha curvada")... Graas ao seuconhecimento das propriedades das coisas, o poeta faz a

    transformao percorrer o caminho mais curto, visto que sabeantecipadamente o que tem o homem em comum com o golfinho, oque lhe falta ou o que tem mais em relao a este. O facto essencial que, graas representao de todo o mundo como um sistema depropriedades elementares, o processo da transformao - estefenmeno inverosmil e fantstico - reduz-se a uma sucesso deprocessos bastante simples. O acontecimento j no apresentadocomo uma fbula mas sim como toda uma srie de factos habituais e

    verosmeis (crescimento, diminuio, endurecimento, amolecimento,encurvamento, retesamento, conjuno, rarefaco, etc..

    A escrita de Ovdio, como Sceglov a define, conteria em si o modeloou pelo menos o programa de um Robbe-Grillet mais frio e maisrigoroso.

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    evidente que esta definio no esgota o que podemos achar emOvdio. Mas o importante que este modo de designarobjectivamente os objectos (animados e inanimados) comodiferentes combinaes de um nmero relativamente pequeno deelementos fundamentais e simplicssimos corresponde nicafilosofia certa das Metamorfoses: a da unidade e parentesco de tudoo que existe no mundo, coisas e seres vivos.

    com o conto cosmognico do livro I e a profisso de f de Pitgorasno ltimo, Ovdio quis dar uma sistematizao terica a esta filosofianatural, talvez em concorrncia com o distantssimo Lucrcio. Sobreo valor a dar a estes enunciados tem-se discutido muito, mas talvez anica coisa que conta para ns seja a coerncia potica no modo quetem Ovdio de representar e contar o seu mundo: este fervilhar e

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    amontoar de casos muitas vezes semelhantes e sempre diferentes, emque se celebra a continuidade e a mobilidade do todo.

    Ainda no encerrou o captulo das origens do mundo e das catstrofes

    primordiais e j Ovdio se atira srie dos amores dos deuses pelasninfas ou pelas mulheres mortais. As histrias amorosas (que ocupampredominantemente a parte mais viva do poema, os primeiros onzelivros) apresentam vrias constantes: como mostra depois Bernardini,trata-se de enamoramentos primeira vista, um apelo premente, semcomplicaes psicolgicas, que exige uma satisfao imediata. Ecomo a criatura desejada normalmente se recusa e foge, frequente omotivo da perseguio nos bosques; a metamorfose pode intervir em

    momentos diferentes, ora como disfarce do sedutor ora como sadapara a sitiada ou punio da seduzida por parte de outra divindadeciumenta.

    Em comparao com o contnuo perseguir dos desejos masculinos, oscasos de iniciativa amorosa feminina so mais raros; mas emcompensao trata-se de amores mais complexos, no de caprichosextemporneos mas sim de paixes, que contm uma riquezapsicolgica maior (Vnus enamorada de Adnis), implicam comfrequncia uma componente ertica mais mrbida (a ninfa Salmacisque na cpula com Hermafrodito se funde numa criatura bissexual), eem certos casos trata-se de paixes ilcitas, incestuosas (como astrgicas personagens de Mirra e de Bblis; o modo como a esta ltimase revela a paixo pelo irmo, o sonho, as perturbaes, so uma dasmais belas pginas do Ovdio psiclogo), ou homossexuais (comofis), ou de criminoso cime (como Medeia). As histrias de Jaso eMedeia abrem no meio do poema (livro VII) o espao de um

    verdadeiro romance, em que se entrelaam a aventura e a cupidez

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    passional o o grotesco negro da receita dos filtros de feitiaria, quepassar com a mesma equivalncia para o Macbeth.

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    O saltar sem intervalos de uma histria para a outra sublinhado pelofacto - como observa Wilkinson - de que o fim de uma histriararamente coincide com o fim de um dos livros em que est dividido o

    poema. Ovdio pode comear uma histria nova quando lhe faltampoucos versos para o fim de um livro, e este em parte o velhoexpediente do folhetinista que agua o apetite do leitor para oprximo episdio, mas tambm um sinal da continuidade da obra,que no seria dividida em livros se pelo seu comprimento noprecisasse de um certo nmero de volumes. Assim comunica-se-nos aimpresso de um mundo real e coerente em que se verifica umainteraco entre acontecimentos que costumam ser considerados

    isoladamente.

    As histrias podem parecer-se, mas nunca repetir-se. No em voque a histria mais impressionante a do infeliz amor (livro iII) daninfa Eco, condenada repetio dos sons, pelo jovem Narciso,condenado contemplao da sua prpria imagem repetida noespelho lquido. Ovdio atravessa a correr esta floresta de histriasamorosas todas parecidas e todas diferentes, perseguido pela voz deEco que se repercute por entre as rochas: Coeamus! Coeamus!Coeamus!

    [1979]

    O CU, O HOMEM, O ELEFANTE

    Para maior prazer da leitura, na Histria Natural de Plnio, o Antigo,aconselharei que se aponte sobretudo para trs livros: os dois que

    contm os elementos da sua filosofia, ou sejam o II (sobre acosmografia) e o VII (sobre o homem), e, como exemplo das suascavalgadas entre a erudio e a fantasia, o VIII (sobre os animaisterrestres). Naturalmente podem descobrir-se pginas extraordinriaspor toda a parte: nos livros de geografia (III-VI), de zoologiaaqutica, entomologia e anatomia comparada (IX-XI), de botnica,

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    agronomia e farmacologia (XII-XX), ou sobre os metais e pedraspreciosas e as belas-artes (XXXII-XXXVII).

    O uso que sempre se fez de Plnio, creio eu, o da consulta, quer para

    conhecer coisas que os antigos sabiam ou julgavam saber sobre umdado assunto, quer para respigar curiosidades e estranhezas. (Sob esteltimo aspecto, no se pode esquecer o livro I, ou seja o sumrio daobra, cujas sugestes provm das associaes imprevistas: Peixesque tm um seixinho na cabea; Peixes que se escondem de Inverno;Peixes que sentem a influncia dos astros; Preos extraordinriospagos por certos peixes, ou ento Da rosa: 12 variedades, 32frmacos; 3 variedades de lrios: 21 frmacos; Planta que nasce de

    uma sua lgrima; 3 variedades de narcisos: 16 frmacos; Planta deque se tinge a semente para nascerem flores coloridas; O aafro: 20frmacos; Onde se do as flores melhores;

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    Quais as flores conhecidas nos tempos da guerra de Tria; Roupasque rivalizam com as flores, ou ainda: Natureza dos metais; Doouro; Da quantidade de ouro possuda pelos antigos; Da ordemequestre e do direito de usar anis de ouro; Quantas vezes a ordemequestre mudou de nome?) Mas Plnio tambm um autor quemerece uma leitura dilatada, no calmo movimento da sua prosa,animada pela admirao por tudo o que existe e pelo respeito pelainfinita diversidade dos fenmenos.

    Poderemos distinguir um Plnio poeta e filsofo, com um seusentimento do universo, um seu pathos do conhecimento e do

    mistrio, e um Plnio neurtico coleccionador de dados, compiladorobsessivo, que s parece preocupar-se com o no desperdiarnenhuma anotao do seu mastodntico ficheiro. (Na utilizao dasfontes escritas era omnvoro e eclctico, mas no acrlico: havia odado que tomava por bom, o que registava com benefcio da dvida eo que refutava como evidente patranha: s que o mtodo das suas

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    avaliaes parece por vezes oscilante e imprevisvel). Mas uma vezadmitida a existncia destas duas faces, tem de se reconhecer logo quePlnio sempre uno, tal como uno o mundo que ele quer descreverna variedade das suas formas. Para alcanar os seus intentos, no

    receia dar fundo ao ilimitado nmero das formas existentes,multiplicado pelo ilimitado nmero de notcias existentes sobre todasestas formas, porque as formas e notcias para ele tm o mesmodireito de fazer parte da histria natural e de serem interrogadas porquem procurar nelas o sinal de uma razo superior que ele cr quedevero conter.

    O mundo o cu eterno e no-criado, cuja abbada esfrica e rotante

    cobre todas as coisas terrenas (II, 2), mas o mundo dificilmente podedistinguir-se de Deus que para Plnio e para a cultura estica umDeus nico, no identificvel com qualquer das suas partes ouaspectos, nem com a multido de personagens do Olimpo (mas talvezsim com o Sol, alma ou mente ou esprito do cu, II, 13). Mas aomesmo tempo o cu feito de estrelas eternas como ele (as estrelastecem o cu e ao mesmo tempo o cu feito de estrelas eternas comoele (e as estrelas tecem o cu e ao mesmo tempo so inseridas notecido celeste: aetema caelestibus est natura intexentibus mundumintextuque concretis, II, 30), mas tambm o ar (por cima e porbaixo da Lua) que parece vazio e derrama c para baixo o espritovital e gera nuvens, granizo, troves, raios e tempestades (II, 102).

    Quando falamos de Plnio nunca sabemos at que ponto podemosatribuir-lhe as ideias que exprime; com efeito, tem sempre oescrpulo de

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    pr de seu o menos possvel, atendo-se ao que transmitem as fontes; eisto de acordo com uma ideia impessoal do saber, que exclui aoriginalidade individual. Para tentarmos compreender qual realmente o seu sentido da natureza, qual o lugar que nele ocupa a

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    arcana majestade dos princpios e o que ocupa a materialidade doselementos, teremos de nos ater ao que seu de certeza, ou seja, substncia expressiva da sua prosa. Vejam-se por exemplo as pginassobre a Lua, em que o tom de comovida gratido por este astro

    ltimo, o mais familiar a todos os que vivem na terra, remdio para astrevas (novissimum sidus, terrs familiarissimum et in tenebrarumremedium..., II, 41) e por tudo o que nos ensina com o movimentodas suas fases e dos seus eclipses, vem juntar-se gil funcionalidadedas frases para nos dar este mecanismo com cristalina limpidez. naspginas astronmicas do livro II que Plnio demonstra poder ser algomais que o compilador de gosto imaginoso que se costuma dizer, e serevela um escritor que possua o que ser o dote principal da grande

    prosa cientfica: dar com ntida evidncia o raciocnio maiscomplexo, dele extraindo um sentimento de harmonia e de beleza.

    Isto sem nunca se deixar arrastar para a especulao abstracta. Plnioatm-se sempre aos factos (aos que ele considera factos ou quealgum considerou como tal): no aceita a infinidade dos mundosporque a natureza deste mundo j bastante difcil de conhecer e ainfinidade no simplificaria o problema (II, 4); no acredita no somdas esferas celestes, nem como fragor para alm do audvel nem comoindescritvel harmonia, porque para ns, que estamos dentro dele, omundo desliza dia e noite em silncio (II, 6).

    Depois de ter despido Deus das caractersticas antropomrficas que amitologia atribui aos imortais do Olimpo, Plnio tem logicamente deaproximar Deus dos homens pelos limites impostos pela necessidadeaos seus poderes (alis, num caso Deus menos livre que os homens,porque no poderia matar-se mesmo que quisesse): Deus no pode

    ressuscitar os defuntos, nem fazer que quem vive no tenha vivido;no tem nenhum poder sobre o passado, sobre a irreversibilidade dotempo (II, 27). Tal como o Deus de Kant, no pode entrar em conflitocom a autonomia da razo (no pode evitar que dez mais dez faamvinte), mas o defini-lo nestes termos afastar-nos-ia do imanentismopnico da sua identificao com a fora da natureza (per quae

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    declaratur haut dubie naturae potentia idque esse quod deumvocemus, II, 27).

    Os tons lricos ou lrico-filosficos que dominam os primeiros

    captulos do livro II

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    correspondem a uma viso de harmonia universal que no tarda aapresentar brechas; uma parte considervel do livro dedicada aosprodgios celestes. A cincia de Plnio oscila entre a tentativa dereconhecer uma ordem na natureza e o registo do extraordinrio e do

    nico: e o segundo aspecto acaba sempre por ganhar a partida. Anatureza eterna e sagrada e harmoniosa, mas deixa uma largamargem ao surto de fenmenos prodigiosos inexplicveis. Queconcluso geral devemos tirar da? Que se trata de uma ordemmonstruosa, toda feita de excepes regra? Ou que se trata de regrasto complexas que escapam ao nosso entendimento? Em ambos oscasos, para cada facto deve existir alguma explicao, mesmo que poragora a ignoremos: Tudo coisas de explicao incerta e oculta namajestade da natureza (II, 101), e logo a seguir: Adeo causa nondeest (II, 115), no so as causas que faltam, uma causa pode -sesempre arranjar. O racionalismo de Plnio exalta a lgica das causas edos efeitos, mas ao mesmo tempo minimiza-a: quando descobrimostambm a explicao dos factos, nem por isso os factos deixam de sermaravilhosos.

    A mxima que acabei de citar conclui um captulo sobre a origemmisteriosa dos ventos; cumes de montanhas, concavidades de vales

    que lanam de uns para os outros os sopros de ar como os sons do eco,uma gruta na Dalmcia para onde basta atirar qualquer coisa pormuito leve que seja para desencadear uma tempestade marinha, umarocha na Cirenaica que basta tocar com uma mo para levantar umturbilho de areia. Catlogos destes de factos estranhos, desligadosentre si, Plnio d-nos muitssimos: uns sobre os efeitos do raio no

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    homem, com as suas chagas frias (entre as plantas o raio s poupa olouro, entre as aves a guia, II, 146), outros sobre as chuvasextraordinrias (de leite, de sangue, de carne, de ferro ou esponjas deferro, de l, de tijolos cozidos, II, 147).

    E no entanto Plnio limpa o campo de muitas lendas, como ospressgios dos cometas (por exemplo, refuta a crena de que umcometa que aparea entre as partes pudibundas de uma constelao - oque no viam no cu estes antigos! - anuncia uma poca dedevassido dos costumes: obscenis autem moribus in verendispartibus signorum, II, 93), alis, cada prodgio apresenta-se-lhecomo um problema da natureza, na medida em que a outra face da

    norma. Plnio defende-se das supersties, mas nem sempre sabereconhec-las, e isto verifica-se sobretudo no livro VII, onde fala danatureza humana: at sobre factos facilmente observveis

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    refere as crenas mais abstrusas. tpico o captulo sobre asmenstruaes (VII, 63-66), mas tem de se observar que as notcias dePlnio vo todas no sentido dos mais antigos tabus religiosos relativosao sangue menstrual. H uma rede de analogias e de valorestradicionais que no entra em contradio com a racionalidade dePlnio; como se esta assentasse tambm no mesmo terreno. Assim elepor vezes inclina-se a construir explicaes analgicas de tipo poticoou psicolgico: Os cadveres dos homens flutuam de costas, e os dasmulheres de bruos, como se a natureza quisesse respeitar o pudor dasmulheres mortas (VII, 77).

    Raramente Plnio refere factos testemunhados pela sua prpriaexperincia directa: vi de noite durante os quartos de sentinela diantedas trincheiras brilhar luzes em forma de estrela nas lanas dossoldados (II,101); durante o principado de Cludio, vimos um centauro que elemandou vir do Egipto, conservado em mel (VII, 35); eu mesmo vi

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    em frica um cidado de Tisdro, transformado de mulher em homemno dia das npcias (VII, 36).

    Mas para um investigador como ele, protomrtir da cincia

    experimental, que iria morrer asfixiado pelas exalaes do Vesvioem erupo, as observaes directas ocupam um lugar mnimo na suaobra, e no contam nem mais nem menos que as notcias lidas noslivros, tanto mais autorizados quanto mais antigos forem. Quandomuito ele pe uma mo frente, declarando: Contudo, para a maiorparte destes factos, no empenharia a minha palavra, mas prefiroguiar-me pelas fontes, a que remeto em todos os casos dbios, semme cansar de seguir os Gregos, que so os mais exactos na

    observao, bem como os mais antigos (VII, 8).

    Aps este prembulo, Plnio sente-se autorizado a lanar-se na suafamosa resenha das caractersticas prodigiosas e incrveis de certospovos do ultramar, que ser to afortunada na Idade Mdia e atdepois, e transformar a geografia numa barraca de fenmenos vivos.(Os ecos prolongar-se-o at nos relatos de viagens verdadeiras,como as de Marco Polo). No deve espantar ningum que as lendasdesconhecidas fronteira da Terra alberguem seres na fronteira dohumano: os Arimaspos com um olho s no meio da fronte, quedisputam as minas de ouro aos grifos; os habitantes das florestas deAbarimon, que correm velocssimos com os ps ao contrrio; osandrginos de Nasamona que alternam um ou o outro sexo quandoacasalam; os Tbios, que num olho tm duas pupilas e no outro afigura de um cavalo. Mas o grande Circo Barnum

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    apresenta os seus nmeros mais espectaculares na ndia, onde se podeencontrar uma populao montanhesa de caadores com cabea deco; e outra de saltadores numa nica perna, que para descansar sombra se deitam levantando o nico p como guarda-sol; e outraainda de nmadas de pernas em forma de serpente; e os Astomos sem

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    boca, que vivem cheirando perfumes. No meio, notcias que agorasabemos serem verdadeiras, como a descrio dos faquires indianos(denominados por filsofos gimnosofistas), ou que continuam aalimentar as crnicas misteriosas que lemos nos nossos jornais (onde

    se fala de ps imensos, poder tratar-se do Yeti dos Himalaias), oulendas cuja tradio se prolongar no decorrer dos sculos, como arelativa aos poderes taumatrgicos dos reis (o rei Pirro que curava asdoenas do bao com a imposio do dedo grande do p).

    De tudo isto ressalta uma ideia dramtica da natureza humana, comouma coisa precria, insegura: a forma e o destino do homem estopendurados num fio. Dedicam-se muitas pginas imprevisibilidade

    do parto, com os casos excepcionais e as dificuldades e os perigos.Esta tambm uma zona de fronteira: quem quer que exista poderiano existir, ou ser diferente, e l que se decide tudo.

    Tudo nas mulheres grvidas, como por exemplo o modo decaminhar, influi no parto: se tomarem comidas demasiado salgadasdo ao mundo uma criana sem unhas; se no souberem conter arespirao, tero maior dificuldade em parir; at mesmo um bocejodurante o parto pode ser fatal; assim como um espirro durante o coitopode provocar o aborto. Cobre-se de compaixo e de vergonha quemse der conta de como precria a origem do mais soberbo dos seresvivos: muitas vezes para abortar basta o odor de uma candeia acabadade apagar. E dizer que de um incio to frgil pode nascer um tiranoou um algoz! Tu que te fias na tua fora fsica, que encerras nos teusbraos os dons da fortuna e te consideras no um pupilo dela mas simseu filho, tu que tens a alma dominadora, tu que mal um sucesso te fazinchar o peito te julgas deus, pensa que bastaria pouco para poder

    destruir-te! (VII, 42-44).

    Compreende-se que Plnio tenha tido xito na Idade Mdia crist:para pesar a vida numa balana justa, devemos sempre recordar-nosda fragilidade humana.

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    O gnero humano uma zona dos seres vivos que se definecircunscrevendo os seus confins: por isso Plnio anota os extremoslimites atingidos pelo homem em todos os campos, e o livro VIItorna-se uma coisa

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    muito parecida com o que hoje o Guinness Book of Records.Recordes quantitativos, sobretudo: de fora a levantar pesos, develocidade na corrida, de agudez de ouvido, bem como de memria, eat de extenso de territrios conquistados; mas tambm recordespuramente morais, de virtude, de generosidade, de bondade. No

    faltam os recordes mais curiosos: Antnia mulher de Druso que nuncacuspia, o poeta Pompnio que nunca dava arrotos (VII, 80); ou opreo mais alto pago por um escravo (o gramtico Dafnis custousetecentos mil sestrcios, VII, 128).

    De um s aspecto da vida humana Plnio no se sente capaz de indicarrecordes ou de tentar medidas e comparaes: a felicidade. No sepode decidir quem feliz e quem no , visto que depende de critriossubjectivos e opinveis. (Felicitas cui praecipua fuerit homini, nonest humani iudicii, cum prosperitatem ipsam alius alio modo et suopteingenio quisque determinei, VII, 130). Se se quiser olhar cara a caraa verdade sem iluses, nenhum homem se pode considerar feliz: eaqui a casustica antropolgica de Plnio alinha exemplos de destinosilustres (extrados sobretudo da histria romana), para demonstrarque os homens mais favorecidos pela fortuna deveriam suportar ainfelicidade e a desventura.

    Na histria natural do homem impossvel fazer entrar a varivel que o destino: este o sentido das pginas que Plnio dedica svicissitudes da fortuna, imprevisibilidade da durao de cada vida, vacuidade da astrologia, s doenas, morte. A separao entre asduas formas de saber que a astrologia tinha ligado - a objectividadedos fenmenos calculveis e previsveis e o sentimento da existncia

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    individual de futuro incerto, - esta separao que serve de pressuposto cincia moderna, podemos dizer que j est presente nestas pginasmas como uma questo ainda no definitivamente resolvida, para aqual se tem de reunir uma documentao exaustiva. Ao produzir estes

    exemplos, Plnio parece atrapalhar-se um pouco: todos os factosacontecidos, todas as biografias, todas as anedotas, podem servir paraprovar que a vida, se considerada do ponto de vista de quem a vive,no suporta quantificaes nem qualificaes, no permite sermedida ou comparada com outras vidas. O seu valor intrnseco aela: tanto mais que as esperanas e os receios do alm so ilusrios:Plnio compartilha da opinio de que depois da morte comea umano-existncia equivalente e simtrica que antecede o nascimento.

    por isso que a ateno de Plnio se projecta sobre as coisas domundo, corpos celestes e territrios do globo, animais e plantas epedras.

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    A alma, de que se nega toda a sobrevivncia, se se fechar sobre simesma s no presente pode gozar o facto de ser viva. Etenim si dulcevivere est, cui potest esse vixisse? At quantofacilius certiusque sibiquemque credere, specimen securitas antegenitali sumereexperimento! (VII, 190). Modelar a sua tranquilidade sobre aexperincia anterior ao nascimento; isto , projectar-se na suaprpria ausncia, nica realidade segura antes de virmos ao mundo edepois de morrermos. Eis ento a felicidade de reconhecer a infinitavariedade do outro de ns, que a Naturalis historia exibe diante dosnossos olhos.

    Se o homem definido pelos seus limites, no deveria s-lo tambmpelos pontos culminantes em que pode sobressair? Plnio sente-se nodever de incluir no livro VII a glorificao das virtudes do homem, acelebrao dos seus triunfos: dirige-se histria romana como aoprotocolo de todas as virtudes, e tentado a descobrir uma concluso

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    pomposa cedendo encomistica imperial que lhe permitiriaassinalar o topo da perfeio humana na figura de Csar Augusto.Mas creio que no so estes os tons que caracterizam o seu tratado: o comportamento titubeante, limitativo e amargo que mais condiz

    com o seu temperamento.

    Poderemos reconhecer aqui questes que acompanharam aconstituio da antropologia como cincia. Uma antropologia devetentar sair de uma perspectiva humanista para alcanar aobjectividade de uma cincia da natureza? Os homens do livro VIIcontam mais quanto mais forem outros diferentes de ns, talvez jno ou ainda no homens? Mas possvel que o homem saia da sua

    prpria objectividade a ponto de se tomar a si mesmo como objectode cincia? A moral que Plnio evoca convida cautela e reserva:nenhuma cincia pode esclarecer-nos sobre a felicitas, sobreinfortuna, sobre a economia do bem e do mal, sobre os valores daexistncia; cada indivduo morre levando consigo o seu segredo.

    com esta nota desconsolada Plnio poderia concluir o seu tratado, masprefere acrescentar uma lista de descobertas e invenes, tantolendrias como histricas. Antecipando os antroplogos modernosque defendem uma continuidade entre a evoluo biolgica e atecnolgica, dos utenslios paleolticos electrnica, Plnioimplicitamente admite que as contribuies dadas pelo homem natureza passam tambm a fazer parte da natureza humana. Daqui aestabelecer que a verdadeira natureza do homem a cultura vaiapenas um passo. Mas Plnio, que no conhece as generalizaes,procura o especfico humano em invenes e costumes que

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    possam ser considerados universais. So trs, segundo Plnio (ousegundo as suas fontes), os factos culturais em que se estabeleceu umacordo tcito entre os povos (gentium consensus tacitus, VII, 210):a adopo do alfabeto (grego e latino); o rapar do rosto masculino

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    executado pelo barbeiro, e a notao das horas do dia no relgio solar.

    A trade no podia ser mais estranha, pela associao incongruentedos trs termos: alfabeto, barbeiro e relgio, nem mais discutvel.

    Com efeito, no verdade que todos os povos tenham sistemas deescrita afins, nem verdade que todos faam a barba, e quanto shoras do dia o prprio Plnio alarga-se a traar uma breve histria dosvrios sistemas de diviso do tempo. Mas aqui no pretendemossublinhar a perspectiva eurocntrica que no particular de Plnionem do seu tempo, mas sim o sentido em que ele se move: a intenode fixar os elementos que se repetem constantemente nas culturasmais diferentes para definir o que especificamente humano

    tornar-se- um princpio de mtodo da etnologia moderna. E,estabelecido este ponto do gentium consensus tacitus, Plnio podeencerrar o seu tratado do gnero humano e passar ad reliquaanimalia, aos outros seres animados.

    O livro VIII, que passa em resenha os animais terrestres, inicia-secom o elefante, a que dedicado o captulo mais longo. Porqu estaprioridade do elefante? Porque o maior dos animais, certamente (e otratado de Plnio procede de acordo com uma ordem de importnciaque frequentemente coincide com a ordem de grandeza fsica); mastambm e sobretudo porque, espiritualmente, este o animal maisprximo do homem! Maximum est elephas proximumque humanissensibus, assim comea o livro VIII. De facto o elefante - explica-selogo a seguir - reconhece a linguagem da ptria, obedece aosmandamentos, memoriza as aprendizagens, conhece a paixoamorosa e a ambio da glria, pratica virtudes raras at entre oshomens como a probidade, a prudncia e a equidade, e tributa uma

    venerao religiosa s estrelas, ao sol e lua. Nem uma palavra (almdaquele superlativo maximum) gasta Plnio para descrever esteanimal (de resto figurado com fidelidade nos mosaicos da poca),mas s refere as curiosidades lendrias que encontrou nos livros: osritos e os costumes da sociedade elefantina so representados como osde uma cultura diferente da nossa mas igualmente digna de registo e

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    de compreenso.

    Na Naturalis historia o homem, perdido no meio do mundomultiforme, prisioneiro da sua prpria imperfeio, por um lado tem o

    consolo de saber que at Deus limitado nos seus poderes(Imperfectae vero in homine

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    naturaepraecipua solada, ne deum quidem posse omnia, II, 27) e poroutro tem como seu prximo imediato o elefante, que pode servir-lhede modelo no plano espiritual. Preso entre estas duas grandezas

    imponentes e benignas, o homem surge certamente diminudo, masno esmagado.

    Dos elefantes a resenha dos animais terrestres passa - como numavisita infantil ao jardim zoolgico - aos lees, s panteras, aos tigres,aos camelos, s girafas, aos rinocerontes, aos crocodilos. Seguindouma ordem decrescente de dimenses, passa-se s hienas, aoscamalees, aos porcos-espinhos, aos animais de toca, e tambm aoscaracis e aos lagartos; os animais domsticos aparecem em bloco nofim do livro.

    A fonte principal a Historia animalium de Aristteles, mas Plniorecupera de autores mais crdulos ou mais fantasiosos as lendas que oEstagirita rejeitava ou referia s para as refutar. Isto verifica-se tantopara as notcias sobre os animais mais conhecidos como para ameno e descrio de animais fantsticos, cujo catlogo se misturacom o dos primeiros: assim, falando dos elefantes, uma digresso

    informa-nos dos drages, seus inimigos naturais; e a propsito doslobos, Plnio regista (embora troando da credulidade dos gregos) aslendas dos lobisomens. desta zoologia que fazem parte a anfisbena,o basilisco, o catoblepa, os crocotes, os corocotes, os leucocrotes, osleontofantes, as manticoras, que destas pginas passaro a povoar osbestirios medievais.

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    A histria natural do homem prolonga-se pela dos animais por todo olivro VIII, e no s porque as noes referidas em grande medidadizem respeito criao dos animais domsticos e caa dos

    selvagens, bem como a utilidade prtica que o homem tira de uns e deoutros, mas tambm porque uma viagem pela fantasia humanaaquela em que Plnio nos guia. O animal, seja ele verdadeiro oufantstico, tem um lugar privilegiado na dimenso do imaginrio:quando nomeado, investe-se de um