calvino lei

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livro Calvino Lei

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112LIVRO IIC A P T U L O VII

A LEI FOI DADA NO PARA QUE EM SI RETIVESSE O POVO ANTIGO, MAS, AO CONTRRIO, PARA QUE FOMENTASSE A ESPERANA DA SALVAO EM CRISTO AT SUA VINDA

1. A RELIGIO MOSAICA, FIRMADA NO PACTO DA GRAA, SE POLARIZA EM CRISTO

Dessa ininterrupta sucesso de testemunhos que referimos lcito concluir que a lei foi acrescentada cerca de quatrocentos anos aps a morte de Abrao no para afastar de Cristo o povo eleito; pelo contrrio, para que mantivesse as mentes suspensas at sua vinda, at mesmo lhe acendesse o desejo e na expectao os firmasse, para que no esmorecessem por uma demora mais longa.Pelo termo lei entendo no apenas os Dez Mandamentos, que prescrevem a norma de viver piedosa e justamente, mas tambm a forma de religio por Deus transmitida pela mo de Moiss. Pois, nem foi Moiss constitudo legislador para que cancelasse a bno prometida raa de Abrao; pelo contrrio, vemos que, a cada passo, traz de novo lembrana aos judeus, como se tivesse sido enviado a fim de renovar esse pacto gracioso feito com seus pais, do qual eram herdeiros.Isto se fez mui claramente manifesto luz das cerimnias veterotestamentrias. Ora, que mais intil ou frvolo que, a fim de se reconciliarem com Deus, oferecerem os homens o ftido odor a desprender-se da gordura de animais a fim de expurgar-se de suas imundcies, e a recorrerem asperso de gua e de sangue? Em suma, todo o sistema cultual da lei, se considerado em si, nem mesmo contm sombras e figuras a que corresponda a verdade, ser coisa inteiramente risvel. Pelo que, no sem causa, tanto no discurso de Estvo [At 7.44], quanto na Epstola aos Hebreus [8.5], to diligentemente ponderada aquela passagem onde Deus ordena a Moiss que tudo quanto dizia respeito ao tabernculo o fizesse em conformidade com o modelo que lhe havia sido mostrado no monte [Ex 25.40].Ora, a no ser que fosse proposto algo espiritual, a que se inclinassem, os judeus no teriam se afadigado mais nesses cerimoniais do que os gentios em suas ninharias. Os homens profanos, que jamais se entregaram seriamente ao zelo da piedade, no conseguem ouvir sem fastdio a to multplices ritos, nem s se maravilham por que Deus haja fatigado ao povo antigo com to grande acervo de cerimnias, mas ainda as desprezam e delas mofam como se fossem divertimentos infantis. Isto, na verdade, porque no atentam para o fim, do qual as prefiguraes da lei se destacam, tm-se necessariamente de condenar como futilidade.Com efeito, aquele modelo supra referido mostra que Deus no ordenou os sacrifcios para que ocupasse seus adoradores em exerccios terrenos, mas, antes, para que mais alto lhes elevasse a mente. O que se pode claramente constatar at mesmo de sua prpria natureza, posto que, como espiritual, no se agrada de outro culto que no seja espiritual. Comprovam isto tantas afirmaes dos profetas, com as quais acusam os judeus de estultcie, porquanto pensam ser de algum valor diante de Deus qualquer sacrifcio. Porventura porque o intento derroga alguma coisa lei? De modo algum. Pelo contrrio, visto que eram seus verdadeiros intrpretes, quiseram que desse modo fossem os olhos dirigidos para o escopo do qual o povo comum estava se desviando.J da graa oferecida aos judeus conclui-se com certeza que a lei no havia sido vazia de Cristo, pois Moiss lhes props esta finalidade da adoo: que fossem um reino sacerdotal a Deus [x 19.6], o que no podiam alcanar, salvo se uma recon- ciliao se interpusesse, maior e mais excelente que de sangue de animais [Hb 9.12-14]. Ora, a no ser que to excelente bem lhes proviesse de outra parte que no de si mesmos, que menos congruente que serem elevados rgia dignidade, e desse modo os filhos de Ado se fazerem participantes da glria de Deus, que de mcula hereditria nascem todos na servido do pecado?Tambm, como pde vigorar o direito de sacerdcio entre aqueles que, pela sordidez das transgresses, eram abominveis a Deus, a no ser que fossem consa- grados em uma Cabea Santa? Por isso, com muita propriedade, Pedro converte esse postulados de Moiss, ensinando ter sido exibida em Cristo a plenitude da gra- a, cujo gosto os judeus haviam provado sob a lei: Vs sois a raa eleita, diz ele,o sacerdcio real [1Pe 2.9]. Ora, a reverso dos termos aponta para isto: terem alcanado mais aqueles a quem Cristo apareceu mediante o evangelho do que seus pais, pois que todos foram dotados da dignidade sacerdotal e real, de sorte que, confiados em seu Mediador, ousem achegar-se livremente presena de Deus.

2. CRISTO, O REAL CUMPRIMENTO DA LEI, QUE A ELE CONDUZ

E aqui deve-se notar, de passagem, que o reino que foi, afinal, estabelecido na famlia de Davi parte da lei e est contido sob a ministrao de Moiss. Donde se segue que, tanto em toda a linhagem levtica, quanto nos psteros de Davi, Cristo fora posto diante dos olhos do povo antigo como que diante de um duplo espelho. Pois, como disse h pouco, no podiam de outra maneira ser ou reis ou sacerdotes diante de Deus aqueles que no s eram escravos do pecado e da morte, mas ainda manchados de sua prpria corrupo.Daqui se patenteia ser mui verdadeira a afirmao de Paulo, de que os judeus

foram mantidos como que sob a custdia de um pedagogo at que viesse a semen-te a cujo favor a promessa fora dada [G1 3.24]. Ora, uma vez que Cristo ainda nose dera a conhecer intimamente, foram eles semelhantes a crianas, cuja insuficin- cia no podia ainda suportar o pleno conhecimento das coisas celestes.Como, porm, foram conduzidos pela mo a Cristo por meio das cerimnias, antes se disse e melhor se pode compreender dos muitos testemunhos dos profetas. Ora, ainda que, para propiciar a Deus, necessrio lhes foi achegar-se diariamente com novos sacrifcios, contudo Isaas [53.5] promete de virem a ser expiadas todasas transgresses com um nico sacrifcio, ao que Daniel [9.26-27] concorda. Aden- travam ao santurio os sacerdotes designados da tribo de Levi. Mas, do sacerdote nico foi dito que foi uma vez divinamente escolhido com juramento, o qual seria sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque [Sl 110.4; Hb 5.6; 7.21]. Havia, ento, uma uno visvel de leo; haveria de vir uma outra e diferente uno,o que Daniel sentencia de uma viso. E, para no insistir com mais referncias, o autor da Epstola aos Hebreus demonstra bastante prolixa e claramente, do quartoao undcimo captulos, que as cerimnias para nada servem e so fteis at quetenha chegado a vinda de Cristo.No que, porm, diz respeito aos Dez Mandamentos, deve-se sustentar, de igual modo, a postulao de Paulo: Cristo o fim da lei para salvao de todo o que cr[Rm 10.4]; e outra: Cristo o Esprito que vivifica a letra, em si mortfera [2Co3.6, 17]. Ora, na primeira destas postulaes significa certamente que em vo ensinada a justia pelos mandamentos at que Cristo a confira, tanto por graciosa imputao, quanto pelo Esprito de regenerao. Pelo que, com justia, Paulo cha- ma a Cristo o cumprimento ou fim da lei, porquanto de nada valeria sabermos o que Deus exige de ns, se aos que se esforam e esto oprimidos sob seu jugo e fardo intolervel Cristo no os socorresse.Em outro lugar [Gl 3.19], ensina ter sido a lei promulgada por causa das trans- gresses, isto , para que humilhasse os homens, dela convencidos de sua condena- o. Ademais, porque esta a verdadeira e exclusiva preparao para buscar-se a Cristo, todas e quaisquer noes que, em diferentes termos, transmite, harmonizam-se muito bem entre si. Porque, visto que sua controvrsia foi com mestres perverti- dos, que fantasiavam, das obras da lei, que merecemos a justia, para lhes refutar o erro, Paulo foi obrigado, por vezes, a tomar em sentido estrito a mera palavra lei que, no entanto, foi, por outro lado, vestida do pacto da adoo gratuita.

3. A LEI NOS MOSTRA UMA PERFEIO QUE JAMAIS ATINGIMOS, PELA QUAL NOS LEVA, NECESSARIAMENTE, CONDENAO

-nos, porm, de importncia conhecer sucintamente como, ensinados pela lei moral, nos tornamos mais inescusveis, para que a condio de culpados nos incite

a buscar o perdo. Se verdadeiro que na lei se nos ensina a perfeio da justia,tambm isto se deduz: sua absoluta observncia a perfeita justia diante de Deus, merc da qual, naturalmente, o homem julgado e considerado justo perante o tribunal celeste. Por cuja razo, promulgada a lei, Moiss no hesita em invocar por testemunhas ao cu e terra de que havia posto diante de Israel a vida e a morte, o bem e o mal [Dt 30.l9]. Nem h de contraditar-se que justa obedincia da lei esteja reservada a recompensa da salvao eterna, como foi prometida pelo Senhor. Por outro lado, entretanto, -nos de relevncia reconhecer se porventura prestamos essa obedincia a cujo mrito se deva atribuir a confiana de alcanar essa recompensa. Porque, de que nos serviria saber que o prmio da vida eterna consiste em guardar a lei, se no sabemos tambm que por este meio podemos alcanar a vida eterna?144Neste ponto, com efeito, faz-se patente a fraqueza da lei, porquanto, uma vez que essa observncia da lei em nenhum de ns se depreende, excludos das promes- sas da vida, s nos resta a maldio. Refiro-me no apenas ao que acontece, mas ainda ao que deve necessariamente acontecer, pois, se bem que o ensino da lei esteja muito acima da capacidade humana, o homem pode, sem dvida, contemplar de longe as promessas apostas, sem contudo delas colher fruto algum. Portanto, resta isto somente: que da excelncia destas promessas melhor estime o homem sua pr- pria misria, enquanto, cortada a esperana da salvao, reconhece amea-lo, ine- xoravelmente, a morte.De outro lado, pendem horrficas sanes, s quais enredilhados, nos constrin- gem no a poucos de ns, mas a todos, um por um; pendem sobre ns, repito-o, e nos acossam com inexorvel aspereza, de sorte que na lei descortinamos mui pre- sente a morte.

4. AS PROMESSAS DA LEI, CONTUDO, NEM SO FTEIS, NEM IRRELEVANTES

Portanto, se atentamos somente para a lei, no podemos fazer outra coisa que perdermos o nimo, ficarmos confusos e cairmos no desespero, uma vez que baseda lei somos todos condenados e amaldioados [G1 3.10], mantidos ao longe da bem-aventurana que prope a seus cultores.Dirs, portanto, que assim est o Senhor a zombar de ns? Ora, quo pouco dista de zombaria o exibir a esperana de felicidade, para ela convidar e exortar, atest-la a ns exposta, quando, a todo tempo, fechado e inacessvel lhe seja o in- gresso? Respondo: Se bem que, at onde so condicionais, as promessas da lei de- pendem da perfeita obedincia da lei, obedincia que em parte alguma se achar, contudo no foram dadas em vo. Pois, quando tivermos aprendido que elas nos

144. Primeira edio: Pois, de quo reduzido vulto ver o galardo da vida eterna posto na observnciada Lei, se, depois disso, claro se no estadeie, se, porventura, nos seja possvel chegar vida eterna por essa via?

havero de ser fteis e ineficazes, salvo se, de sua graciosa bondade, sem levar em considerao as obras, Deus nos abrace e, de igual modo, pela f sejamos abraado por essa bondade a ns exibida pelo evangelho, por certo que as promessas no carecem de sua eficcia, mesmo com a condio anexa. Ora, afinal, de tal forma tudo nos confere graciosamente o Senhor que tambm isto acrescente ao vasto acer-vo de sua benevolncia: que, no rejeitando nossa imperfeita obedincia, e suprindoo que lhe falta em completamento, nos faz perceber o fruto das promessas da lei, exatamente como se por ns fosse cumprida a condio. Visto que, porm, em tra- tando da justificao pela f, ter-se- de discutir mais plenamente esta questo, por agora no prosseguiremos alm.

5. HOMEM NENHUM JAMAIS PDE CUMPRIR A LEI INTEGRALMENTE

Entretanto, o que dissemos ser impossvel observncia da lei, isto se deve, em poucas palavras, a um tempo, explicar e confirmar. Ora, costuma ela comumente parecer opinio de todo absurda. Tanto assim que Jernimo no hesitou em lanar- lhe antema. Que tenha parecido a Jernimo, no me demoro a considerar; inda- guemos o que h de verdadeiro nisso.No tecerei aqui longos rodeios acerca das vrias espcies de possibilidade. Chamo impossvel o que jamais nem mesmo existiu, e pela ordenao e decretode Deus impedido de vir existncia no futuro. Se da mais remota reminiscncia perquirirmos, afirmo que nenhum dos santos jamais existiu que, revestido do corpode morte [Rm 7.24], a este grau de amor haja atingido, que amasse a Deus de todo ocorao, de todo o entendimento, de toda a alma, de toda a fora; por outro lado, ningum que no tenha mourejado na concupiscncia. Quem o contradiga? Vejo, com efeito, que sorte de santos nos imagine a estulta superstio, isto , santos a cuja pureza mal correspondem os anjos dos cus, mas o repelem tanto a Escritura quanto o ditame da experincia.Digo, ademais, ningum para o futuro h de vir a existir, que possa chegar meta da verdadeira perfeio, a no ser desvencilhado do fardo do corpo. Nesta matria abundam, em primeiro plano, manifestos testemunhos da Escritura. Noh homem justo sobre a terra, que no peque, dizia Salomo [1Rs 8.46; Ec 7.20]. E Davi: Nenhum vivente ser justificado tua vista [Sl 143.2]. J afirma o mesmo em muitos lugares. Mais claramente que todos, Paulo, que a carne cobia contra o esprito e o esprito contra a carne [G1 5.17]. Nem de outra razo prova sujeitos maldio todos os que esto debaixo da lei, seno porque est escrito: Malditos todos os que no permanecerem em todos os seu mandamentos [Dt 27.26; Gl 3.10], insinuando, sem dvida, de fato assumindo como confesso, que ningum pode as- sim permanecer. Tudo, porm, quanto foi predito nas Escrituras, isto ensina ele haver de ser por perptuo e at mesmo como necessrio.

Com sutileza desse porte os pelagianos molestavam a Agostinho, a saber, fazer-se injria a Deus, se ele ordena mais do que, merc de sua graa, possam os fiis executar.145 Aquele, para que lhes evadisse invectiva, confessava poder o Senhor, certamente, se o quisesse, transportar o homem mortal pureza anglica. Entretan-to, nem jamais fizera, nem haveria de fazer o que declarara em termos diferentes nas Escrituras. Nem nego isto. Mas acrescento, no entanto, que se contrape inapropri- adamente o poder de Deus sua verdade. Portanto, se algum diz que no pode acontecer o que as Escrituras declaram no haver de ocorrer, tal postulao no est sujeita a cavilaes.Se, porm, se discute acerca do termo poder, o Senhor responde aos discpulos que lhe perguntavam: Quem pode ser salvo?, que entre os homens isto certa- mente impossvel; em Deus, entretanto, so possveis todas as coisas [Mt 19.25,26]. Tambm, com validssima razo, isto contende Agostinho: jamais nesta carne rendemos ns o legtimo amor que devemos a Deus. O amor, diz ele, assim segue ao conhecimento, que ningum pode amar perfeitamente a Deus antes que a bondade lhe seja plenamente conhecida. Ns, enquanto peregrinamos no mundo, vemos por um espelho e em enigma [1Co 13.12]. Segue-se, portanto, que nosso amor imperfeito.Esteja, pois, fora de controvrsia, se visualizamos a falta de poder de nossa natureza, que nesta carne impossvel o cumprimento da lei, como, alis, se mostra, alm disso, de Paulo em outro lugar [Rm 8.3].

6. A LEI EVIDENCIA NOSSA DEPLORVEL CONDIO DE PECADO

Mas, para que toda a matria melhor se ponha mostra, coletemos, em forma sucinta, a funo e uso da lei a que chamam Lei Moral. Ora, at onde a entendo, ela consiste nestas trs partes. A primeira : enquanto manifesta a justia de Deus, isto, a justia que aceita por Deus, a cada um de ns de sua prpria injustia adverte, informa, convence e, finalmente, condena. Pois, assim se faz necessrio que o ho- mem, cego e embriagado de amor prprio, seja a um tempo impelido ao conheci- mento e confisso, seja de sua fraqueza, seja de sua impureza. Pois, a no ser que sua fatuidade seja claramente evidenciada, infla-se o homem de insana confiana de suas foras, no pode jamais ser levado a sentir sua debilidade sempre que as mede pela medida de seu alvitre. Contudo, to logo comea a compar-las dificuldadede observar a lei, a tem ele o que arrefea sua altivez. Ora, por mais exaltada opinio ele presuma acerca dessas suas fora, entretanto logo as sente a palpitar ofegante sob to grande peso, ento vacila e cambaleia, por fim at cai por terra e desfalece. E assim, ensinado pelo magistrio da lei, o homem se despe daquela arro- gncia que antes o cegava.

145. Do Esprito e da Letra, captulo 36.

De modo semelhante, ele precisa ser curado de outra enfermidade, a saber, do orgulho, do qual se diz padecer. Por quanto tempo se lhe permite firmar em seu prprio julgamento, fomenta a hipocrisia em lugar da justia, contente com a qualse levanta contra a graa de Deus, no sei com que engendradas justias. Entretanto, depois que obrigado a pesar sua vida na balana da lei, posta de parte a presuno dessa justia imaginria, percebe estar distanciado da santidade por imenso espao; pelo contrrio, que superabunda de infinitos vcios dos quais at aqui parecia livre. Pois em to profundos e sinuosos recessos se escondem os males da cobia, que enganam facilmente a viso do homem. Nem sem causa diz o Apstolo que teria ignorado a cobia, se a lei no dissera: No cobiars [Rm 7.7]; porquanto, a no ser que a cobia de seu covil seja posta a descoberto mediante a lei, ela destri o msero homem to dissimuladamente, sem que possa ele sentir esse golpe mortal.

7. A LEI EVIDENCIA NOSSA INILUDVEL CONDIO DE CULPA

Desta sorte, a lei como que um espelho no qual contemplamos nossa incapaci- dade, ento resultante desta a iniqidade, por fim a maldio proveniente de ambas, exatamente como o espelho nos mostra as manchas de nosso rosto. Pois aquele a quem falta a capacidade para seguir a justia, este est inexoravelmente chafurdado em um lamaal de pecados. Ao pecado se segue imediatamente a maldio. Portan-to, quanto mais a lei nos convence de que somos homens que tm cometido trans- gresso, tanto mais nos mostra que somos dignos de pena e castigo.146A isto pertinente o dito do Apstolo, de que o conhecimento do pecado mediante a lei [Rm 3.20]. Pois ele a est apenas a assinalar-lhe a primeira funo, que experimentada nos pecadores ainda no regenerados. A esta passagem so anexas estas: Sobreveio a lei para que o pecado abundasse [Rm 5.20]; e por isso a dispensao da morte [2Co 3.7], que produz a ira [Rm 4.15] e mata. Ora, quanto mais claramente a conscincia espicaada pelo conhecimento do pecado, com muito mais firmeza cresce a iniqidade, pois juntamente com a transgresso dalei acresce, ento, a contumcia contra o Legislador. Resta-lhe, portanto, que acen-da a ira de Deus para a runa do pecador, porquanto de si a lei nada pode seno acusar, condenar e perder. E, como escreve Agostinho:147 Se o Esprito da Graa est ausente, a lei no serve para outra coisa seno para acusar-nos e condenar-nos morte.148

146. Primeira edio: Portanto, de quanto maior transgresso a Lei [nos] mantm flagrados e incriminados,de tanto mais severo juzo ao mesmo tempo [nos] faz rus.147. Da Correo e da Graa, captulo I.148. Primeira edio: Se est ausente o Esprito da Graa, a isso apenas est presente [a Lei]: para que[nos] faa culpados e [nos] mate.

Quando, porm, se diz isso, no se afeta a lei de ignomnia, na verdade nemmesmo derroga-se-lhe algo da excelncia. Com efeito, se toda nossa vontade fosse conformada e ajustada obedincia, evidentemente seu conhecimento seria sufici- ente para a salvao. Quando, porm, nossa natureza carnal e corrupta contende hostilmente com a lei espiritual de Deus, nem se deixa corrigir por sua disciplina, segue-se que a lei, que fora dada para a salvao, se encontrasse ouvintes idneos,se converteria em ocasio de pecado e de morte. Portanto, uma vez que somos todos comprovadamente transgressores, quanto mais claramente revela ela a justia de Deus, tanto mais desvenda, em contrrio, nossa iniqidade; quanto mais explicita- mente confirma o galardo da vida e da salvao como dependente da justia, tanto mais confirma a perdio dos inquos.Portanto, estas ponderaes longe esto de ser injuriosas lei; ao contrrio, so valiosas para uma recomendao mais excelente da beneficncia divina. Ora, da se evidencia cabalmente que por nossa corrupo e perversidade somos impedidos de fruir da bem-aventurana de vida revelada mediante a lei. Donde se torna mais dulorosa a graa de Deus que nos socorre sem o subsdio da lei e mais aprazvel sua misericrdia que no-la confere, mediante a qual aprendemos que ele jamais se cansa de continuamente conceder-nos benefcios e cumular-nos de novas ddivas.

8. A LEI NOS LEVA A RECORRER GRAA

No entanto, que a iniqidade e a condenao de todos ns so certificadas pelo testemunho da lei, isso no se faz, desde que dela tiremos o devido proveito, para que caiamos em desespero e, de nimo consternado, nos precipitemos ao despenha- deiro. verdade que os rprobos se aterram proveniente disso, porm em razo de sua obstinao de esprito.Convm que entre os filhos de Deus seja outro o propsito do conhecimento da lei. O Apstolo atesta que ns, de fato, estamos condenados pelo julgamento da lei, para que toda boca se feche e o mundo todo se faa culposo diante de Deus [Rm3.19]. O mesmo ensina ainda o Apstolo, em outro lugar [Rm 11.32], que Deus a todos encerrou debaixo da incredulidade, no para que os perca, ou deixe que todos peream, mas para que ele tenha misericrdia de todos. Isto , para que, posta de parte a opinio injustificada de sua prpria capacidade, compreendam que to- somente pela mo de Deus que so firmados e subsistem, de sorte que, nus e vazios,se refugiem na misericrdia, nesta repousem inteiramente, no recesso desta se es-condam, e to-somente a esta se apeguem por justia e mritos, misericrdia que foi revelada em Cristo a todos quantos, em verdadeira f, no s a buscam, mas tam- bm nela esperam. Pois, nos preceitos da lei Deus no aparece como recompensa- dor seno da perfeita justia, da qual todos ns estamos destitudos; em contraposi- o, porm, como severo juiz dos feitos maus. Mas, em Cristo sua face brilha, cheiade graa e brandura, para com os pecadores, ainda que mseros e indignos.

9. O RESPALDO DESTA FUNO RECURSIVA DA LEI EM RELAO GRAA, EMAGOSTINHO

Quanto ao proveito de implorar-lhe a graa da assistncia, Agostinho se expres- sou amide, como quando escreve a Hilrio:149 A lei ordena que, tentando ns cumprir-lhe as injunes e fatigados em nossa fraqueza debaixo da lei, saibamos pedir ajuda da graa. De igual modo, a Aslio:150 A utilidade da lei que convenao homem acerca de sua enfermidade e o compila a implorar o remdio da graa que est em Cristo. Tambm, a Inocncio de Roma:151 A lei ordena; a graa ministra o poder para cumprir. Ainda, a Valentino:152 Deus ordena as coisas que no pode- mos, para que saibamos o que lhe devamos pedir. Ento: A lei foi dada para que vos fizesse culpados; feitos culpados, temsseis; temendo, buscsseis perdo e no vos fisseis em vossas prprias foras.153 Ademais: A lei foi dada para isto: quede grande pequeno te fizesse; que te mostrasse que, de ti mesmo, no tens poder para a justia; e assim, pobre, necessitado e carente, recorras graa.154A seguir, Agostinho155 dirige a palavra a Deus: Assim faze, Senhor; assim faze, Senhor misericordioso; ordena o que no se pode cumprir; sim, ordena o que no se pode cumprir, a no ser por tua graa, para que, uma vez que os homens noo possam cumprir por suas prprias foras, toda boca se cale e ningum se faa grande a si mesmo. Sejam todos pequeninos e o mundo todo se faa culpado diantede Deus.Eu, porm, sou tolo em acumular tantos testemunhos, quando esse santo varo escreveu seu prprio tratado, a que deu o ttulo de De Spiritu Litera [Do Esprito eda Letra].Agostinho no expe to significativamente a segunda utilidade da lei, ou por- que a reconhecia como dependente dessa primeira, ou porque no a apreendia to exaustivamente, ou porque no tinha palavras com que lhe expusesse to distinta e lucidamente como gostaria. Contudo, esta primeira funo da lei no deixa de apli- car-se tambm aos prprios mpios. Pois, embora no avancem com os filhos de Deus at este ponto, a saber, que aps a degradao da carne so renovados e reflo- resam no homem interior, ao contrrio, atnitos pelo primeiro terror, prostram-seno desespero; todavia, ao agitar-se-lhes a conscincia com ondas desta natureza, servem para manifestar a eqidade do juzo divino. Verdade que os mpios sempre desejam de bom grado tergiversar contra o juzo de Deus. E ainda que por ora no se

149. Carta CLVII, captulo II.150. Carta XCCVI, captulo II.151. Carta CLXXVII, captulo V.152. Da Graa e do Livre-arbtrio, captulo XVI.153. Sobre o Salmo 70.154. Sobre o Salmo 113.155. Ibidem.

revele o juzo do Senhor, contudo suas conscincias de tal maneira se vem abatidaspelo testemunho da lei e de suas prprias conscincias, que de forma bem ntida deixam ver o que de fato mereceram.156

10. A FUNO INIBIDORA DA LEI A RESTRINGIR A PRTICA DO MAL

A segunda funo da lei que aqueles que, a no ser que a isso sejam obrigados, no so tangidos por nenhuma preocupao do justo e do reto, tenham de ser conti- dos ao menos pelo temor dos castigos, enquanto ouvem as terrveis sanes nela exaradas. So, porm, contidos, no porque a disposio interior lhes seja acionadaou afetada, mas porque, como que interposto um freio, contm as mos de ao externa e cobem internamente sua depravao, a qual, de outra sorte, teriam de derramar desabridamente. Na verdade, isto no os faz nem melhores, nem mais justos diante de Deus. Pois, ainda que, impedidos ou de pavor ou de pudor, no ousam executar o que conceberam na mente, nem extravazar abertamente as friasde sua licenciosidade, contudo no tm o corao inclinado ao temor e obedinciade Deus. Antes, quanto mais se reprimem, tanto mais fortemente se incendem, fer- vem, ebulem, predispostos a fazer qualquer coisa que seja e a precipitar-se aonde quer que seja, salvo se fossem refreados por este pavor da lei. No s isso, mas tambm to acerbamente odeiam a prpria lei e execram a Deus o Legislador que,se pudessem, suprimiriam completamente esse a quem no podem suportar, nem quando ordena o que reto, nem quando toma vingana dos que desprezam sua majestade.A uns, de fato, mais obscuramente; a outros, mais claramente; a todos os que ainda no so regenerados, entretanto, to inerente este sentimento, que so arras- tados observncia da lei apenas pela violncia do temor, no por submisso volun- tria, mas a contragosto e renitentemente. No entanto, esta justia, coata e compul- sria, necessria sociedade comum dos homens, a cuja tranqilidade este se vota, enquanto se vela para que todas as coisas no se misturem em confuso, o que aconteceria, se a todos tudo se permitisse.Ora, at mesmo aos filhos de Deus til que sejam exercitados por esta tutela, por quanto tempo, antes de sua vocao, destitudos do Esprito de santificao, se esbaldem na insipincia da carne. Pois, enquanto pelo temor da vingana divina se retraem pelo menos ao desregramento exterior, e de alguma forma ainda no que- brantados no esprito faa pouco progresso no presente, contudo, ao levarem o jugoda justia, so por outro lado acostumados, de modo que, quando forem chamados, no sejam inteiramente inexperientes e novios em relao disciplina ou coisa desconhecida.

156. Primeira edio: Agora, no manifesto ainda esse [juzo], no entanto, consternados em tal grau pelotestemunho da Lei e da conscincia, mostram em si mesmos qu hajam merecido.

Tudo indica que o Apstolo tenha abordado especificamente esta funo, quan-do ensina [1Tm 1.9, 10] que a lei no foi promulgada para o justo, mas para os injustos e os devassos, os mpios e os pecadores, os depravados e os profanos, os parricidas, os homicidas, os fornicrios, os pederastas, os raptores, os mentirosos eos perjuros, e qualquer outra coisa que porventura se contraponha s doutrina. Dessa forma ele mostra que a lei um inibidor das paixes da carne, atuantes e de outra sorte prontas a alastrar-se sem medida.

11. A FUNO INIBIDORA DA LEI QUANDO ATIVA NO AINDA NO-REGENERADO

A uma e outra dessas funes da lei pode na verdade acomodar-se o que Paulo diz em outro lugar [Gl 3.24], a saber, que a lei foi para os judeus um guia e acompa- nhante de crianas de escola em relao a Cristo, pois que h dois tipos de homensa quem conduz pela mo a Cristo atravs de sua ao tutorial. Os primeiros so aqueles acerca de quem temos falado, porquanto esto demasiadamente cheios de confiana, seja da virtude pessoal, seja da prpria justia, no esto habilitados para receber a graa de Cristo, a no ser que sejam antes esvaziados. Portanto, anteo reconhecimento de sua prpria misria, a lei os sujeita humildade para que sejam assim preparados a buscar o que antes disso no julgavam faltar-lhes.Os outros tm necessidade de um freio com que sejam coibidos, para que no soltem a tal ponto as rdeas concupiscncia de sua carne, que se afastem inteira- mente de todo o zelo de retido. Pois, onde o Esprito de Deus ainda no impera, a por vezes as paixes refervescem em tal medida que h perigo de que mergulhem no esquecimento e desprezo de Deus a alma que a si sujeita. E isto aconteceria se Deus no viesse a seu encontro com este remdio. E, desta sorte, se Deus no regenera imediatamente aqueles a quem destinou herana de seu reino, mediante as obrasda lei os conserva debaixo do temor at o tempo de sua visitao, certamente no aquele temor casto e puro, qual deve haver em seus filhos, todavia, prestante para isto, sejam, segundo sua capacidade, instrudos na verdadeira piedade. Desta mat-ria temos j tantas comprovaes que no h absolutamente necessidade de exem- plo. Ora, todos quantos viveram por algum tempo na ignorncia de Deus confessam haver-lhes isso acontecido que fossem contidos em certo temor e deferncia de Deus pelo freio da lei, at que, regenerados pelo Esprito, comeassem a am-lo de corao.

12. A FUNO ILUMINADORA DA LEI NA VIDA DOS PRPRIOS REGENERADOS

O terceiro uso, que no s o principal, mas ainda contempla mais de perto ao prprio fim da lei, tem lugar em relao aos fiis, em cujo corao j vigora e reinao Esprito de Deus. Pois ainda que tm a lei escrita e gravada pelo dedo de Deus no corao [Jr 31.33; Hb l0.16], isto , tm sido afetados e animados pela direo do

Esprito a tal ponto que desejem obedecer a Deus, contudo tm ainda duplo proveitona lei. Pois a lei lhe o melhor instrumento mediante o qual melhor aprendam cada dia, e com certeza maior, qual a vontade de Deus, a que aspiram, e se lhe firmemna compreenso. como se um servial qualquer j esteja de tal modo preparado, com todo o empenho do corao, para que seja aprovado por seu patro, contudo tem necessidade de investigar e observar mais acuradamente os costumes do patro aos quais se ajuste e acomode. No que desta necessidade se exime qualquer de ns, pois que ningum at agora penetrou tanto a sabedoria que no possa da instruo diria da lei fazer novos progressos no conhecimento mais puro da vontade divina.Em segundo lugar, visto que necessitamos no s de ensinamento, mas ainda de exortao, o servo de Deus tirar ainda esta utilidade da lei para que, mediante sua freqente meditao, seja incitado obedincia, nela seja consolidado e seja impe- dido de transgredir neste caminho escorregadio. Pois nesta disposio convm queos santos persistam para que, por grande que seja o nimo com que, segundo oEsprito, se empenham para com a justia de Deus, entretanto so sempre onerados pela inrcia da carne para que no prossigam com a devida prontido. A esta carnea lei um chicote no uso do qual, como no caso de um asno estacado e lerdo, sejam estimulados ao. At mesmo ao homem espiritual, visto que ainda no foi des- vencilhado do fardo da carne, a lei lhe ser um acicate constante a no permitir que fique ele inerte.Sem dvida, Davi atentava para este uso quando celebrava a lei com esses insig- nes encmios: A lei do Senhor imaculada, convertendo almas; as justias do Senhor so retas, alegrando coraes; o preceito do Senhor luminoso, iluminandoos olhos etc. [Sl 19.8, 9]. Ainda: Lmpada para meus ps tua palavra e luz paraminhas veredas [Sl 119.105]; e as inmeras outras declaraes que seguem em todo esse Salmo. Com efeito, tampouco estas contradizem as declaraes paulinas nas quais se mostra no que uso a lei presta aos regenerados, mas, em contrrio, o que pode ela de si mesma conferir ao homem. Aqui, porm, o Profeta canta com quo grande utilidade o Senhor instrui pela leitura de sua lei queles a quem inspira interiormente a prontido de obedecer. E no faz apenas meno dos preceitos; pelo contrrio, tambm da promessa da graa que acompanha as coisas, a qual faz com que o que amargo se torne doce. Pois, o que menos aprazvel que a lei, se, simplesmente importunando e ameaando, perturbe as almas pelo medo e as angus-tie pelo pavor? Davi, porm, mostra especialmente que na lei ele havia apreendido ao Mediador, sem o qual no h nenhum desfruto ou doura.

13. A FUNO TELEOLGICA DA LEI PARA O CRENTE

Certos espritos ignorantes, ainda que no saibam discernir isso, rejeitam ani- mosamente a Moiss todo e dizem adeus s Duas Tbuas da Lei, porquanto julgam ser obviamente imprprio aos cristos que se apeguem a uma doutrina que contm

a dispensao da morte [2Co 3.7]. Esteja longe de nossa mente esta opinio profana, pois Moiss ensinou com muita propriedade que a lei, que entre os pecadores no pode gerar nada mais que a morte, deve ter entre os santos um uso melhor e superior. Pois, estando para morrer, assim decretou ao povo: Ponde vosso corao em todasas palavras que eu hoje vos testifico, para que as ordeneis a vossos filhos e lhes ensineis a guardar, a fazer e a cumprir todas as coisas que foram escritas no rolo desta lei, porque no vos foram preceituadas em vo, mas para que, um a um, nelas vivessem [Dt 32.46, 47].Ora, se ningum negar que nela sobressai um modelo absoluto de justia, ou se impe no nos haver nenhuma regra de viver bem e retamente, ou dela no nos seguro afastar-nos. Na verdade, porm, a perptua e influxvel regra de viver no so muitas, mas uma nica. Pelo que, o que diz Davi, que o homem justo medita diae noite na lei do Senhor [Sl 1.2], no se deve entender como a referncia a uma s era,157 pois que muitssimo aplicvel a todas as pocas, uma a uma, at o fim do mundo. Tampouco nos deixemos afastar pelo temor ou nos subtraiamos sua ins- truo porque prescreve uma santidade muito mais estrita do que haveremos de experimentar enquanto carregarmos conosco o crcere de nosso corpo. Pois a lei j no desempenha a nosso respeito a funo de um rgido exator, a quem no se satisfaza no ser que se efetue o requerido. Mas, nesta perfeio a que nos exorta, ela apontaa meta em relao qual no nos menos proveitoso porfiar por toda a vida, que consistente com nosso dever. Nessa porfia, se no falharmos, tudo bem. Com efeito, toda esta vida um estdio, do qual, corrido o percurso, o Senhor nos conceder que alcancemos aquela meta a que agora nossos esforos se empenham distncia.

14. A LEI EST CANCELADA NO TOCANTE MALDIO, NO A SEU MAGISTRIO

Portanto, visto que agora a lei tem em relao aos fiis o poder de exortao, no aquele poder que ate suas conscincias na maldio, mas aquele que, com ins-tar repetidamente, lhes sacode a indolncia e lhes espicaa a imperfeio, enquanto querem significar sua libertao da maldio, muitos dizem que a lei (continuo fa- lando da Lei Moral) foi suprimida aos fiis, no significando que no mais lhes ordene o que reto, mas somente que no mais lhes o que lhes era antes, isto , que no mais lhes condena e destri a conscincia, aterrando-as e confundindo-as.E, sem dvida, Paulo no ensina obscuramente esse cancelamento da lei. Que esse cancelamento foi tambm pregado pelo Senhor, disso se evidencia o fato de que ele no refutou aquela opinio de que a lei teria sido abolida por ele, a no ser que essa idia viesse a prevalecer entre os judeus. Como, porm, no poderia ela emergir ao acaso, sem qualquer pretexto, cr-se que ela se originou de uma falsa

157. Primeira edio: Pelo que, isto no refiramos a uma era nica: que Davi faz permanente na medita-o da Lei a vida do homem justo ...

interpretao de sua doutrina, exatamente como quase todos os erros costumeira-mente se arrimam na verdade. Ns, porm, para que no tropecemos na mesma pedra, distingamos acuradamente o que foi cancelado na lei e o que permanece firme at agora.Quando o Senhor testifica que no viera para abolir a lei, mas para cumpri-la, at que se passem o cu e a terra no deixaria fora da lei um til sem que tudo se cumpra [Mt 5.17, 18], confirma ele sobejamente que, por sua vinda, nada seria de- trado da observncia da lei. E com razo, uma vez que ele veio antes para este fim,a saber, para que lhe remediasse s transgresses. Por parte de Cristo, portanto, permanece inviolvel o ensino da lei, a qual, instruindo, exortando, reprovando, corrigindo, nos plasma e prepara para toda obra boa.

15. CRISTO NOS LIVRA DA MALDIO DA LEI

Com efeito, evidente que as coisas que so ditas por Paulo acerca da abolio dalei no dizem respeito ao ensino propriamente dito; pelo contrrio, apenas ao poder de constringir a conscincia. Pois a lei no apenas ensina, como tambm exige imperio- samente o que ordena. Se no obedecida, alis, se deixa de ser aplicada em qualquer ponto, ela despede o raio da maldio. Por esta razo, diz o Apstolo [G1 3.10] que esto sujeitos maldio todos quantos so das obras da lei, porquanto foi escrito: Maldito todo aquele que no cumpre todas as coisas prescritas na lei [Dt 27.26]. E diz que todos quantos esto debaixo da lei no fundamentam sua justia e no perdo dos pecados, pelo qual ficamos livres do rigor da mesma.158Portanto, Paulo ensina que devemos tudo fazer para nos desvencilharmos dos grilhes da lei, se no queremos perecer miseravelmente sob eles. Mas, de que gri- lhes? Dos grilhes daquela austera e hostil exao que nada remite do supremo direito, nem deixa impune qualquer transgresso. Para redimir-nos desta maldio, digo-o, Cristo se fez maldio por ns. Pois, est escrito: Maldito todo aquele que pendurado em um madeiro [G1 3.13; Dt 21.23]. No captulo seguinte, verdade, ensina que Cristo se sujeitou lei [Gl 4.4], para que redimisse aqueles que estavam debaixo da lei [G1 4.5], porm com o mesmo sentido, pois acrescenta, em seguida: Para que por adoo recebssemos o direito de filhos [G1 4.5]. Por qu? Para que no fssemos oprimidos por perptua servido que mantivesse nossa conscincia angustiada pela ansiedade da morte. Entretanto, isto permanece sempre incontest- vel: nada se deve detrair da autoridade da lei, e que ela deve ser sempre tomada por ns com a mesma venerao e obedincia.159

158. Primeira edio: Diz, porm, sob as obras da Lei aqueles que no fundamentam [sua] justia naremisso dos pecados, atravs da qual somos livrados do rigor da Lei.159. Primeira edio: Entretanto, isso permanece sempre inconcusso: nada haver-se detrado da autori- dade da Lei, que se no imponha seja ela de ns tomada sempre com a mesma venerao e obedincia.

16. ABOLIDA A LEI CERIMONIAL NO QUE TANGE A SEU USO

Outra a situao das cerimnias, as quais foram abolidas no no efeito, mas somente no uso. Mas que, por sua vinda, Cristo lhes ps fim, nada lhes subtraindo santidade; ao contrrio, ainda mais a recomenda e enaltece. Ora, assim como ao povo antigo teriam as cerimnias oferecido um espetculo vazio, salvo se ne1as fosse revelado o poder da morte e ressurreio de Cristo, assim tambm, se elas no cessassem, hoje no seria possvel discernir a que propsito foram institudas.Conseqentemente, para que a observncia prove serem elas no apenas supr- fluas, mas at nocivas, Paulo ensina que foram sombras cujo corpo se nos depara em Cristo [Cl 2.17]. Vemos, pois, que em seu cancelamento refulge melhor a verda-de do que se continuassem tipificando a Cristo, embora de longe e como que por trs de um vu, o qual j apareceu concretamente. Por isso tambm, na morte de Cristo, o vu do templo se rasgou em duas partes [Mt 27.51], porque j era vinda luz a imagem viva e expressa dos bens celestes, que foi iniciada apenas em deline- amentos obscuros, como fala o autor da Epstola aos Hebreus [10.1].A isto se aplica a declarao de Cristo: A Lei e os Profetas vigoraram at Joo;a partir de ento comeou a proclamar-se o reino de Deus [Lc 16.16]; no que os santos patriarcas fossem privados da pregao que contm a esperana da salvaoe da vida eterna, mas, ao contrrio, que apenas vislumbraram de longe e sob som-breamentos o que hoje contemplamos em plena luz.Por que, porm, se fez necessrio Igreja de Deus que esses rudimentos su- bissem mais alto, explica-o Joo Batista: Porque a lei foi dada por Moiss, a graa, entretanto, e a verdade foram trazidas por intermdio de Jesus [Jo 1.17]. Pois, se bem que nos sacrifcios antigos foi, na verdade, prometida a expiao, e a Arca da Aliana foi seguro penhor do paterno favor de Deus, tudo isso teria sido umbroso, salvo se fundado na graa de Cristo, em quem se acha slida e eterna estabilidade.Contudo, que isto fique estabelecido: ainda que os ritos legais tenham deixadode ser observados, entretanto, por seu prprio fim, melhor se conhece quo grande lhes foi a utilidade antes da vinda de Cristo que, ao abolir seu uso, por sua morte, lhes selou a fora e o efeito.

17. CANCELADO O TTULO DE DVIDA REPRESENTADO PELA LEI CERIMONIALUm tanto mais difcil o ponto assinalado por Paulo: E vs, quando estveis mortos por vossos delitos e pela incircunciso de vossa carne, Deus vos vivificou juntamente com ele, perdoando-vos todos os delitos e cancelando o ttulo de dvida que nos era adverso nos decretos, e o removeu do meio, pregando-o na cruz etc. [Cl

CAPTULO VII

2.13, 14]. Com esta declarao, como se ele quisesse levar mais adiante a aboli-o da lei, de modo a no ter nada a ver com os decretos.160Erram, portanto, os que tomam isto em referncia simplesmente Lei Moral, cuja inexorvel severidade, contudo, interpretam como abolida, e no propriamente a dou- trina. Outros, ponderando mais agudamente as palavras de Paulo, discernem que isto diz respeito propriamente Lei Cerimonial, e mostram que em Paulo o termo decreto significa isto no apenas uma vez. Ora, tambm aos Efsios assim fala: Ele nossa paz, o qual de ambos fez um, abolindo a lei dos mandamentos situada em decretos, para que em si mesmo dos dois criasse um novo homem [Ef 2.14, 15]. Longe de ser ambguo, aqui se trata das cerimnias, uma vez que as chama um muro de separao pelo qual os judeus se separavam dos gentios [Ef 2.14].Portanto, confesso que aqueles primeiros so com justia criticados por estessegundos, mas tambm confesso que a mim me parece que a mente do Apstolo no por estes ainda bem explicada. Com efeito, de modo nenhum me apraz sejam estas duas passagens comparadas como afins em todos os aspectos. Como se quisesse certificar aos Efsios acerca de sua adoo na comunidade de Israel, ensina estar removido o impedimento pelo qual outrora eram barrados. Ele estava nas cerimni- as. Pois os ritos de ablues e sacrifcios, atravs dos quais os judeus eram consa- grados ao Senhor, segregavam-nos dos gentios. Quem no v, porm, que na Eps- tola aos Colossenses se tange um mistrio mais sublime? Aqui, a contenda , na verdade, acerca das observncias mosaicas, s quais os falsos apstolos porfiavam por impelir o povo cristo. Mas, da mesma forma que na Epstola aos Glatas o Apstolo conduz essa discusso mais fundo e, de certo modo, volve-a ao ponto de partida, tambm assim nesta passagem. Ora, se nos ritos outra coisa no consideras seno a necessidade de celebr-los, que significado teria serem eles chamados ttu-lo de dvida que nos contrrio? E, igualmente, por que se haveria de fazer consis-tir quase toda nossa salvao em sua abolio?161 Por essa razo, a prpria matria reivindica que aqui se deve considerar algo mais recndito.Eu, porm, confio haver-lhe alcanado a genuna compreenso, se contudo se me concede ser verdadeiro o que, em algum lugar, foi escrito por Agostinho162 com muita veracidade, ou, antes, o que ele hauriu das claras palavras do Apstolo, a saber, haver-se manifestado nas cerimnias judaicas mais confisso do que expia- o de pecados. Pois, que outra coisa faziam com os sacrifcios, seno confessar-se culpados de morte os que, em seu lugar, substituam meios de purificao? Que obtinham com essas purificaes, seno que atestavam ser impuros?

160. Primeira edio: Pois [esta assero] parece dilatar a abrogao da Lei um tanto alm, assim que jnada lhe tenhamos com os decretos.161. Primeira edio: Ademais, nisto colocar quase toda a suma de nossa redeno: que fosse [ele]cancelado?162. Da Graa e da Remisso, livro I, captulo XXVII.

LIVRO II

Por isso era repetidamente renovado por eles o ttulo de dvida, no s de sua culposidade, mas tambm de sua impureza. Nessa testificao, no entanto, no ha- via quitao da dvida. Por essa razo, escreve o Apstolo que, intervinda, afinal, a morte de Cristo, foi consumada a redeno das transgresses que permaneciam sobo antigo testamento [Hb 9.15]. Com justia, portanto, o Apstolo chama aos ritos e cerimnias veterotestamentrios ttulos de dvida contrrios aos que os observa- vam, uma vez que atravs deles atestavam abertamente sua condenao e impureza. Nem a isto se contrape o fato de que eles tambm fossem participantes conosco da mesma graa. Pois alcanaram isto em Cristo, no nas cerimnias, o que o Apstolo naquela passagem dele distingue, porquanto, ento em vigor, obscureciam sua glria.Conclumos que as cerimnias, consideradas em si mesmas, so apropriada e convenientemente chamadas ttulos de dvida que so contrrios salvao dos homens, embora fossem como que documentos solenes que lhes atestavam o endi- vidamento. Como quisessem os falsos apstolos de novo sujeitar-lhes a Igreja Cris-t, Paulo, no sem causa, reinvestigando-lhes mais a fundo o significado, advertiu aos colossenses no que recairiam se neste modo se deixassem subjugar-se por elas. Pois, ao mesmo tempo, se privavam do benefcio de Cristo, razo por que, consuma-da uma vez a expiao eterna, Cristo aboliu essas observncias dirias, as quais, eficazes apenas para atestar os pecados, nada podiam fazer para cancel-los.