classicos históricos-lord of raven's peak

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LORD OF RAVEN'S PEAK Escandinávia e Normandia, 916 Uma paixão a toda prova... Ao comprar um jovem no mercado de escravos de Kiev, Merrik Haraldsson conseguiu resgatar também o irmão mais velho do menino, um garoto maltrapilho, imundo e desnutrido. Por isso, qual não foi sua surpresa, tempos depois, ao descobrir que, na verdade, não se tratava de um irmão, mas de uma irmã... Por baixo da imundície e dos farrapos, escondia-se uma jovem linda e inteligente, determinada a usar sua habilidade de contar histórias para ganhar ouro e prata suficientes para comprar a sua liberdade e a do irmão. Merrick, no entanto, se recusou a deixar a encantadora Laren partir... E quando, finalmente, os segredos dela vieram à tona, ele lutou para protegê-la, e salvar a paixão avassaladora que tomara conta do seu coração... Capítulo I Mercado de Escravos de Khagan-Rus Kiev, ano de 916. O cercado de escravos recendia a corpos sem banho, naquela manhã fria. A brisa do rio Dnieper soprava gentilmente, e o sol acabara de nascer por trás de Kiev, os dedos dourados a se projetarem pela infindável extensão de colinas nuas e montanhas desoladas ao leste. O fedor das peles sujas do inverno e dos corpos sem higiene não ofendia as narinas tanto quanto a abjeta miséria humana ofendia a sensibilidade. Contudo, uma condição tão familiar em lugares como aquele dificilmente seria notada. Merrik Haraldsson soltou o pesado broche de prata do casaco de peles. Tirou o casaco e pendurou-o no braço ao rumar para o mercado. Aportara seu escaler, O Corvo de Prata, no longo píer de madeira que ficava numa enseada protegida do Dnieper, logo abaixo de Kiev. A subida era íngreme, e ele apertou o passo, pois queria chegar o mais cedo possível ao mercado para encontrar um escravo que sua mãe aprovasse antes que só restassem os mais fracos e doentes. Virou-se para Oleg, a quem conhecia desde que ambos eram garotos, ansiosos para superar os irmãos mais velhos e conseguir seus próprios escaleres para comerciar e ficarem ainda mais ricos que seus pais e irmãos: —Partiremos depois que eu comprar uma escrava. Fique atento, Oleg, pois não quero um burro de carga para a casa de minha mãe, ou uma criada de olhos puxados que venha a pôr em risco a fidelidade de meu pai. Ele não tem nenhuma concubina há trinta anos. Não quero que comece agora. —Sua mãe racharia a cabeça dele caso seu pai algum dia olhasse afetuosamente para outra mulher, e você sabe muito bem disso.

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LORD OF RAVEN'S PEAK

Escandinávia e Normandia, 916Uma paixão a toda prova...

Ao comprar um jovem no mercado de escravos de Kiev, Merrik Haraldsson conseguiu resgatar também o irmão mais velho do menino, um garoto

maltrapilho, imundo e desnutrido. Por isso, qual não foi sua surpresa, tempos depois, ao descobrir que, na verdade, não se tratava de um irmão, mas de uma

irmã...Por baixo da imundície e dos farrapos, escondia-se uma jovem linda e inteligente, determinada a usar sua habilidade de contar histórias para ganhar ouro e prata suficientes para comprar a sua liberdade e a do irmão. Merrick, no entanto, se

recusou a deixar a encantadora Laren partir... E quando, finalmente, os segredos dela vieram à tona, ele lutou para protegê-la, e salvar a paixão avassaladora que

tomara conta do seu coração...

Capítulo I

Mercado de Escravos de Khagan-Rus Kiev, ano de 916.

O cercado de escravos recendia a corpos sem banho, naquela manhã fria. A brisa do rio Dnieper soprava gentilmente, e o sol acabara de nascer por trás de Kiev, os dedos dourados a se projetarem pela infindável extensão de colinas nuas e montanhas desoladas ao leste. O fedor das peles sujas do inverno e dos corpos sem higiene não ofendia as narinas tanto quanto a abjeta miséria humana ofendia a sensibilidade. Contudo, uma condição tão familiar em lugares como aquele dificilmente seria notada.

Merrik Haraldsson soltou o pesado broche de prata do casaco de peles. Tirou o casaco e pendurou-o no braço ao rumar para o mercado. Aportara seu escaler, O Corvo de Prata, no longo píer de madeira que ficava numa enseada protegida do Dnieper, logo abaixo de Kiev. A subida era íngreme, e ele apertou o passo, pois queria chegar o mais cedo possível ao mercado para encontrar um escravo que sua mãe aprovasse antes que só restassem os mais fracos e doentes.

Virou-se para Oleg, a quem conhecia desde que ambos eram garotos, ansiosos para superar os irmãos mais velhos e conseguir seus próprios escaleres para comerciar e ficarem ainda mais ricos que seus pais e irmãos:

—Partiremos depois que eu comprar uma escrava. Fique atento, Oleg, pois não quero um burro de carga para a casa de minha mãe, ou uma criada de olhos puxados que venha a pôr em risco a fidelidade de meu pai. Ele não tem nenhuma concubina há trinta anos. Não quero que comece agora.

—Sua mãe racharia a cabeça dele caso seu pai algum dia olhasse afetuosamente para outra mulher, e você sabe muito bem disso.

Merrik sorriu.—Minha mãe é uma mulher de paixões fortes. Está bem, então pense na

esposa de meu irmão. Sarla é uma coisinha tímida e poderia facilmente ser governada por uma mulher mais esperta, escrava ou não. Teremos de levar em consideração muitos fatores antes de escolher a mulher certa. Minha mãe precisa de uma escrava que lhe seja fiel e que trabalhe só para ela. Quer ensiná-la a fiar, já que seus dedos estão endurecidos e doem agora. Roran me disse que haveria uma excelente seleção esta manhã, com muitos escravos trazidos na noite passada de Bizâncio.

—E da cidade dourada de Miklagard. Como eu gostaria de viajar para lá,

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Merrik. Dizem que é a maior cidade do mundo.— É difícil acreditar que mais de meio milhão de pessoas vive lá. No próximo

verão, teremos de construir um escaler mais forte para suportar as corredeiras abaixo de Kiev que são perigosas. Há sete delas e cada uma mais mortal que a outra, e a pior é a de Aifur. E existem muitas tribos hostis vivendo ao longo do Dnieper, esperando que os homens cheguem às margens com seus barcos para levá-los à força para o interior. Teremos de nos juntar à frota de outros mercantes em busca de segurança. Não quero morrer só para ver Miklagard e o mar Negro.

Oleg sorriu para Merrik.—Tem conversado com os outros mercadores, Merrik, não é? Já está se

preparando para isso em sua cabeça?—Sim, realmente estou pensando nisso; Oleg, ficamos ricos comerciando em

Birka e Hedeby; somos conhecidos lá e conquistamos a confiança do pessoal. Os escravos irlandeses trouxeram mais prata do que se poderia imaginar. E, este ano, enriquecemos mais ainda comerciando nossas peles em Staraya Ladoga. Lembra-se daquele homem que comprou cada pente de galhada de rena que tínhamos? Ele me disse que havia desposado mais mulheres do que queria, e todas pediam pentes a ele. Não, iremos para Miklagard no próximo ano. Contente-se com isso.

— E você que não está contente, Merrik.— Tem razão. Serei paciente. Voltaremos para casa com mais prata do que

nossos pais e irmãos já tiveram. Somos ricos, meu amigo, e ninguém pode negar agora.

— Não se esqueça daquela linda seda azul que veio do Califado, ou pelo menos foi o que o velho Firren alegou.

— Ele é um mentiroso que com o correr dos anos deu para acreditar nas próprias mentiras, mas o tecido é realmente extraordinário.

— Vai dar o tecido à sua noiva? Comprar sua própria fazenda agora, Merrik? Ou talvez devolver sua noiva ao pai dela?

Merrik não disse nada. Durante o inverno, seu pai entabulara negociações com os Thoragasson, sem se dar ao trabalho de avisá-lo. Ele mal conhecia a jovem Letta, de dezessete anos. Embora zangado com o pai por tal interferência, pois, afinal, já estava com vinte e quatro anos, ele não expressara seu aborrecimento. A jovem era adorável, parecia gentil, e o dote seria expressivo. Ele a avaliaria mais detidamente quando voltasse para casa e, depois, tomaria sua decisão. No entanto, se a desposasse, teria de deixar a fazenda do pai. Seu irmão mais velho já morava lá com a esposa, a meiga Sarla. Certamente teriam muitos filhos e, em breve, aquelas terras estariam cheias demais.

Meneou a cabeça ante o pensamento. Detestava pensar em ir embora de casa, e não havia mais terra em Vestfold que pudesse ser lavrada. Seu irmão, Rorik, fora para a ilha de Hawkfell, ao largo da costa da Britânia, e prosperara. Ah, mas deixar o seu lar era algo que ele não queria fazer. Ainda.

Virou-se para Oleg e disse apenas:—Uma fazenda e uma esposa são duas decisões que um homem deve

sopesar com cuidado.— Isso é o que meu pai diz, mas está sempre sorrindo quando me fala nisso.

Acha que ele me quer longe de seu escaler?Havia pelo menos oitenta escravos no poço, como o lugar era chamado. De

todas as idades e de ambos os sexos em número praticamente igual, alguns ainda orgulhosos, de ombros erguidos, mas a maioria de cabeças baixas, sabendo o que estava por vir.

Merrik caminhou lentamente pelas fileiras. As mulheres jovens estavam de

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um lado, as mais velhas atrás, e os garotos e homens do outro lado do poço. Havia guardas apenas atrás dos homens, chicotes nas mãos, observando... sempre observando, silenciosos e ameaçadores.

Era uma visão com que Merrik sempre se deparara desde menino, quando seu pai o levara pela primeira vez a York para comprar escravos. Nada era novidade, exceto que aquele mercado de escravos não era tão sombrio e sujo e nem cheirava tão mal.

Muitas das jovens eram de boa aparência e pareciam limpas. Vinham de todas as partes do mundo, algumas de pele amarelada e de belos olhos amendoados, e os cabelos mais lisos e pretos que ele já vira. Eram esguias, e todas mantinham as cabeças baixas. Havia ruivas e loiras de Samarkand, algumas muito altas e de compleição forte; outras baixas e gordas, de torsos pesados e pernas curtas que provinham da Bulgária e mais além. Merrik viu uma garota que o agradou. Tinha os cabelos de um ouro pálido próprio de seu povo, a pele clara e o corpo longo e esbelto. Uma leve onda de desejo o invadiu. Não, ela não serviria para sua mãe. Seu irmão logo a deitaria de costas, isso se ele não a tomasse primeiro.

Era melhor procurar por mulheres de rostos encovados, ossos à mostra. Selecionou três possíveis escravas, e virou-se para barganhar com o mercador, Vaiai. O homem negociava com um sueco, que cheirava a peixe podre, e Merrik percebeu que vira aquele mesmo sujeito na noite anterior, com uma dúzia de outros na casa de um homem que tinha muitas escravas para vender. Cada um recebera uma garota e, cada um por sua vez, com todos os outros olhando, despira as moças e fizera sexo com elas nas peles do chão. Ele sentira a lascívia invadi-lo, sabendo que uma seria dele, até que vira um mercador sobre uma delas. A jovem permanecera de olhos fechados, como se estivesse morta, e o gordo a penetrara, bufando, a barriga enorme chacoalhando, até que finalmente despejara a semente dentro dela. Grossas lágrimas escorreram por baixo das pálpebras fechadas da pobre moça, e deslizaram pela face. Indignado, Merrik fora embora.

Afastou-se do mercador gordo, e olhou com indiferença para a longa fila de homens e garotos. Enregelou. Não sabia por que, mas ao fitar um garoto, não conseguiu desviar os olhos dele. O rapazinho, de uns doze anos de idade, era tão magro que era possível ver os ossos nos braços nus. Tinha os cotovelos salientes, os pulsos delgados, as mãos longas e esguias caídas ao lado do corpo. As pernas, expostas abaixo dos joelhos, eram finas e muito brancas onde não estavam cobertas de sujeira e cortes. Podia até se enxergar as veias azuis. Era uma criatura patética, sem dúvida maltratado no passado. Usava trapos e uma pele de foca imunda e rasgada como roupa.

O garoto era um escravo e certamente seria vendido, talvez para um dono cruel, talvez não. Quem sabe ele tivesse um pouco de sorte. No entanto, havia algo nele que deixou Merrik imobilizado. Com esforço, virou-se para se afastar, quando o garoto de repente ergueu o olhar, e os olhos de ambos se encontraram. Os do escravo eram de um azul-acinzentado. Um cinza mais profundo que a mais cara tigela de estanho que sua mãe ganhara de presente de casamento, e o azul mais escuro que o do mar no inverno. Se não fosse por aqueles olhos, o garoto passaria despercebido. Olhos que eram baços, vazios, resignados.

Porém, de súbito, uma mudança notável aconteceu. Onde existira apenas o vazio, havia agora frieza e uma expressão de desafio. Num relance, aquele olhar de desafio tornou-se de raiva, imensa raiva; uma raiva que continha tamanha violência e ira, que abalou Merrik. Então, não mais que de repente, os olhos do garoto tornaram-se vagos de novo, toda a fúria e a paixão enterradas sob a desesperança e a consciência de que sua sina nessa vida era a de um escravo e

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assim seria até que morresse. Era como se pudesse enxergar o garoto se recolher para dentro de si mesmo. Vê-lo morrendo e aceitando a morte diante dos próprios olhos.

Merrik recobrou-se daquele ridículo devaneio. O garoto era um escravo, nada mais. Não importava se fora capturado de uma cabana num vilarejo, ou de uma rica fazenda. Nunca mais o veria depois que saísse do poço dos escravos. Deixaria de pensar nele no momento em que sua mão estivesse no leme do escaler, e o vento lhe açoitasse o rosto. Deu de ombros e meneou a cabeça. Virou-se quando Oleg cutucou-o no braço para apontar outro escravo.

Então, ouviu um grito agonizante e voltou-se depressa. O mercador obeso que ele vira na noite anterior, o mesmo sujeito que acabara de negociar com Vaiai, agarrara o braço do garoto e o puxava da fileira dos outros meninos e homens. E gritava que pagara muito dinheiro por aquele pequeno e imundo porco insignificante, ameaçando matá-lo se ele não se calasse. Mas os gritos e os berros não vinham apenas do garoto. Os mais dilacerantes eram de uma criança que se agarrava com todas as forças à outra mão do menino. Por todos os deuses, Merrik pensou, era o irmãozinho do escravo, e o homem não o comprara. A criança chorava, e os gritos de pavor eram tão patéticos que provocaram uma sensação de compaixão em Merrik, algo que ele não conseguiu entender. Adiantou um passo, ao ver o mercador esbofetear o garoto, para depois chutar a criança com toda a força. O menino caiu de cara no chão e ficou imóvel, encolhido numa bola, soluçando. O garoto então agrediu o mercador com um soco, não um soco forte, pois o pobre não tinha força, e o sueco levantou o punho cerrado, mas, então, o abaixou. Soltou uma praga, jogou o garoto sobre o ombro e se afastou.

A criança levantou-se devagar, esfregando as costelas, sem chorar agora, apenas olhando para o irmão. De repente, sem aviso, algo pareceu desabar dentro de Merrik. Não, não conseguia suportar aquilo.

— Espere aqui — disse a Oleg.Estava de joelhos diante da criança no momento seguinte. Segurou-o pelo

queixo e ergueu o pequeno rosto. As lágrimas que ainda escorriam pelas faces imundas deixavam rastros brancos em sua esteira.

— Qual é o seu nome? — perguntou.O menino o fitou, as feições tão tensas de pavor que Merrik murmurou:— Não vou machucá-lo. Qual é o seu nome? A resposta veio com um ligeiro

sotaque:— É Taby. O gordo levou meu... — A voz morreu, e lágrimas mais grossas

caíram, o corpo sacudido por tremores e soluços.Merrik quis rosnar como um lobo, tamanho o pavor que viu naqueles olhos,

mas não o fez. Não queria assustar o menino mais ainda.Disse apenas, num tom de voz baixo e lento:— Qual é o nome de seu irmão?A criança enterrou a cabeça no peito e não disse nada.— Ele é seu irmão?O garoto concordou, mais nada. Estava apavorado.A criança estava sozinha. E Merrik sabia muito bem o que sucedia às crianças

escravas que se viam sozinhas. A maioria morria e, se não morresse... bem, talvez o que lhes acontecia fosse ainda pior. Sem nem bem saber o porquê, ele não queria que aquela criança morresse. Pegou a mão do menino, sentiu a sujeira na pele acetinada, os ossos delicados que se estalariam como gravetos à menor pressão, e algo balançou dentro dele. A criança não era tão magra como o irmão, e Merrik entendeu a razão. O mais velho decerto dava a comida que conseguia ao garotinho.

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— Venha comigo, Taby. Eu o levarei deste lugar. A criança estremeceu diante daquelas palavras,porém não ergueu a cabeça, nem se mexeu.

—Sei que é difícil para você acreditar em mim. Venha, Taby, não vou machucá-lo, prometo.

— Meu irmão. — A criança olhou para Merrik, com uma expressão patética de esperança.

— Meu irmão... O que vai acontecer com ele?— Venha — Merrik murmurou. — Confie em mim. — Afastou-se da fileira de

escravos, com a mão do garotinho presa com firmeza na sua.Sabia que compraria a criança por poucas peças de prata, e estava certo.

Logo, concluía a transação com Vaiai, um homenzinho de olhos faiscantes e cérebro implacável. Ele não chegava a ser cruel, apenas prático, e falava o que lhe vinha à cabeça.

—Sei que você não é pederasta. Se essa criança não é para seu prazer, será apenas um fardo.

— Isso não importa. Eu a quero.Se a deixasse ali, aquela criança seria estuprada infinitas vezes e depois

treinada para dar prazer aos homens, àqueles malditos árabes que mantinham escravos de ambos os sexos em suas casas para desfrutar deles à sua vontade. E depois que crescesse e não tivesse mais a atração de um garoto, seria jogado nos campos para trabalhar na lavoura até morrer. Merrik não conseguia sequer pensar naquilo. Olhou para Taby. Não, não permitiria que isso acontecesse. Pagou Vaiai e, em seguida, saiu à procura de Oleg.

Se o amigo o julgasse um louco, ele não diria nada. Contudo, Oleg sempre amara uma aventura. E Merrik se deu conta de que havia embarcado em uma naquele dia. E Oleg tinha razão, era empolgante.

Thrasco, um riquíssimo mercador de peles de Kiev, que se orgulhava da qualidade dos debruns de raposa branca de seus mantos e de seu uso judicioso de subornos, sorriu com crueldade, e meneou a cabeça. •Jogou o chicote para seu escravo, Cleve, que também olhava para as costas ensangüentadas do corpo esquelético e trêmulo do rapaz.

Thrasco era gordo demais para se agachar, e apenas inclinou-se um pouco, respirando fundo por causa do leve esforço, ao dizer:

— Agora, garoto, você já sabe que a qualquer desobediência sua, qualquer hesitação em fazer o que lhe digam para fazer, eu arrancarei a carne de suas belas costas. Entendeu?

A cabeça do menino finalmente inclinou-se, em concordância.Endireitando o corpo, Thrasco ficou satisfeito e também aliviado. Pagara um

bom dinheiro pelo garoto e não queria matá-lo, mas tinha de discipliná-lo e corrigi-lo pelo soco que ele lhe dera no mercado de escravos. Agora, o rapaz fora subjugado. Sim, estava domado. Assim que o alimentasse por algumas semanas, conseguiria dobrar muitas vezes seu investimento. Virou-se para Cleve.

— Este garoto será um belo presente para a irmã de Khagan-Rus, a velha Evta. Ela é louca por rapazinhos, e assim que este aqui tomar um banho e receber um pouco de comida, irá agradá-la. Ela se divertirá muito com ele. E se o menino se mostrar com pouco ânimo, ela irá adorar arrancá-lo a chicote de dentro dele.

—Sim — o escravo resmungou, com um olho no chicote. Nada disse, pois não queria provar o açoite nas próprias costas.

— Sei o que está pensando — Thrasco continuou, olhando para o garoto. — Está pensando que o rapazinho é uma coisa patética e, mesmo limpo, continuará a parecer uma coisa patética. Sou um homem experiente, e sei que ele tem uma face bem cinzelada. E ele é frágil, até mesmo delicado. Olhe para as mãos e para

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os pés, longos e estreitos. Sim, carrega um sangue bom nas veias mirradas, Seus pais não eram escravos. Não, esse aí é diferente, e eu usarei essa diferença em minha vantagem. Cuide dele agora, lave as costas e use um pouco daquele creme que minha mãe mandou de Bagdá, para evitar cicatrizes. Deixe-o sujo por enquanto, com as roupas rasgadas. Ele merece chafurdar na imundície pelo soco que me deu. Se ele obedecer a você em tudo, poderá banhá-lo pela manhã.

Cleve concordou. Pobre garoto, pensou.Thrasco seguiu para a porta. Então, virou-se e disse:—A velha Evta vai gostar do esquilinho. Mandarei que lhe dêem comida, só

um pouco de caldo, não quero encher-lhe o bucho.Depois que o patrão saiu do quartinho, Cleve olhou para o garoto. Pelo

menos, o pequeno cativo não seria so-domizado, e isso já era alguma coisa. Cleve fora violentado por quase dois anos até ser finalmente vendido a uma mulher de cabelos tão claros como o trigo; uma mulher que tinha um ar daqueles anjos dos cristãos, mas só na aparência. Inconscientemente, ele passou o dedo pela cicatriz no rosto. Depois dela, fora comprado por um patrão que não gostava de rapazes, e esse patrão era Thrasco, graças aos deuses. O homem era cruel, mas não um pederasta. E, ocasionalmente, mostrava-se generoso. Até lhe dera um manto de retalhos de pele de castor no inverno passado.

— Está doendo muito, garoto? — perguntou, ao se ajoelhar ao lado do rapaz. — Thrasco gosta de usar o chicote. Você teve azar que a mãe dele não estivesse aqui. Ela desaprova isso. Vou banhar suas costas e irei buscar aquele creme de que ele falou. Depois, terá comida e poderá matar a fome.

— Ouvi tudo o que ele disse — o garoto resmungou.— Então, não preciso repetir nada.— Não há o que repetir. Não sou um esquilo. Seu patrão é mais que idiota. E

também feio e gordo.Cleve franziu a testa. O garoto era arrogante. Thrasco não iria gostar nada

disso.— Você ouviu Thrasco falar de Khagan-Rus?—Sim, ele me dará à irmã desse homem. Mas, quem é Khagan-Rus?— Como você pode ser tão ignorante, rapaz? Ora, ele é o príncipe de Kiev. É

rico, e a velha Evta é ainda mais rica. O que o príncipe odeia, pois ela o controla. Thrasco quer vender peles à velha, principalmente debruns, que ela compra muito. É muito gorda, quase tão gorda como Thrasco. Você será o meio para que ele seja bem-sucedido.

— Você olhou bem para mim?O tom de voz era estranho, mas Cleve limitou-se a dizer:— Você é uma oferenda miserável, a meu ver, mas com comida, vai

melhorar. Pelo menos Thrasco acha que sim. Espero que não seja realmente muito feio debaixo dessa sujeira.

— Sou.Cleve franziu a testa.— Você me responde como se eu não pudesse fazer algo para machucá-lo

ainda mais. Que idiotice!O garoto o encarou e, finalmente, fechou a boca.—Melhor assim — disse Cleve. — Mantenha a boca calada e cuidarei de você.

Thrasco não tolera que seus desejos sejam ignorados.— Ele logo morrerá pela gula.—Pode ser, mas você não estará aqui para ver isso. Agora, deixe-me ajudá-lo.

Não, não se encolha. Sei que suas costas doem, mas você precisa me deixar colocá-lo sobre o catre.

Cleve estendeu a mão e virou o rosto do garoto em sua direção. A dor sugara

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toda a cor daquelas faces pálidas. E havia a imensa raiva nos olhos que deveriam estar agora mais submissos. Gentilmente, sustentando-o de pé, quase o arrastou para o catre. Depois, deitou-o com cuidado de lado, e olhou atentamente para aquele corpo frágil e magro.

— Posso ver os seus seios.A garota não disse nada, nem fez qualquer movimento para puxar os

farrapos da túnica. A dor era grande demais.— Qual é o seu nome?— Laren.— Por que se finge de garoto? Nesta terra, ser menino não impede que se

seja violentado. Não, não se preocupe, não contarei a Thrasco, embora eu saiba que se ele souber a verdade, eu é que sofrerei por não ter dito nada a ele.

—Sei disso — a garota murmurou, e mordeu o lábio quando Cleve tirou os trapos da pele de foca de suas costas e começou a banhá-la. — Obrigada.

Cleve resmungou, maldizendo a si mesmo pela estupidez, mas suas mãos continuaram a lavá-la com loques gentis. A cada vez que a garota se encolhia de dor, ele se contorcia por dentro. Quando as costas estavam limpas e com uma espessa camada de creme branco por cima, o escravo levantou-se.

— Agora fique quieta. Eu lhe trarei comida. Caldo, foi o que Thrasco disse, caso contrário você vomitará as tripas.

Laren não disse nada. Quando o homem saiu do quarto, ela olhou ao redor. As paredes eram todas caiadas de branco. Havia apenas a cama em que se deitava, e a mesa. Uma janela alta, com as cortinas de pele corridas, deixava entrar a luz do sol, pelo que ela se sentiu agradecida. Olhou para a luz brilhante e imaginou o que teria acontecido a Taby. O sofrimento apertou seu peito. Falhara com ele.

Sabia o que acontecia com crianças deixadas no poço dos escravos. Morriam. Ou ali, naquela terra selvagem e estranha, eram abusadas sexualmente até que não mais satisfizessem seus donos. Taby não sobreviveria a isso.

Laren não chorou. As lágrimas tinham ficado havia longo tempo no passado, num passado vago e sussurrante e cinzento agora; as cores desaparecidas na premência da fome e da crueldade e diante do instinto de sobrevivência.

Agora, não havia mais razão para seguir em frente. Forçara-se a isso no passado, pelo bem de Taby. Seu irmãozinho mantivera seu ânimo vivo; mantivera sua determinação de lutar, caso contrário ela simplesmente teria fechado os olhos para sempre.

E, agora, Taby poderia morrer. Se não fosse comprado logo, ficaria no cercado de escravos.

Estaria sozinho, faminto e apavorado. Ela era sua única esperança.Laren sacudiu a cabeça e ergueu-se nos cotovelos. A dor espalhou-se pelas

costas e comprimiu seu peito, fazendo-a arquejar. Até respirar doía, mas ela se deu conta de que poderia suportar o sofrimento. Estranho como conseguia suportar coisas que antes certamente a teriam matado. Alguma vez fora tão frágil, tão delicada, tão imprestável...

Estava com fome. Muita fome. Sentiu o cheiro do caldo de carne antes mesmo de ouvir Cleve entrar no pequeno quarto. A saliva encheu-lhe a boca.

— Vai continuar deitada de barriga, e eu porei um travesseiro embaixo de seu peito para erguer sua boca — ele murmurou.

Logo, Cleve lhe dava colheradas do caldo quente, que desceu queimando pela garganta até o estômago. Laren sentiu uma tontura invadi-la, conforme o corpo se aquecia.

Quando a tigela ficou vazia, ela ergueu os olhos para Cleve.— Quero mais.

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Ele meneou a cabeça.—Não, vai vomitar se comer mais. Thrasco sabe dessas coisas. Você vai

dormir agora, é melhor.— Tenho um irmãozinho, Cleve. Preciso salvá-lo.— O menino não morrerá aqui, não em Kiev. Será vendido a algum mercador

árabe de Miklagard, ou de algum lugar mais longínquo ao sul. Será usado, sim, não vou mentir a respeito disso, mas não será de todo ruim. Ele sobreviverá.

—Sinto muito se foi o que houve com você, mas não posso permitir que isso aconteça a Taby.

—Você é impotente para evitar esse destino. É, uma escrava. Não importa se tem sangue real escorrendo nas veias. Não é nada agora, é menos que nada, ÍI penas um peão nos jogos de Thrasco.

—Você se expressa muito bem para um escravo, Cleve. Ele sorriu.— O patrão que me violentava também me educou.Gostava de discutir

filosofia depois de estar saciado. Quanto a você, vai ser surrada até a morte se não medir as palavras. Mantenha a boca fechada, caso contrário, esse creme mágico não poderá curá-la.

— Tem razão — Laren murmurou, sonolenta. Cleve levantou-se e olhou para as costas feridas.

— Não há mais sangramento. Thrasco disse que eu poderia lhe dar um banho e roupas limpas pela manhã. Ele não exigirá que fique nua na frente dele, já que não gosta de garotos, portanto você estará a salvo por enquanto, mas não sei se você ainda vai parecer um menino assim que ficar limpa.

—Faz muito tempo que me passo por garoto. Ninguém nunca adivinhou.— Então, esteve em terra de gente muito estúpida. — Cleve virou-se para

sair, preocupado com o destino da garota. Ela logo seria enviada para a velha Evta. Ou então Thrasco descobriria o seu verdadeiro sexo, e a surraria até a morte.

— Obrigada, Cleve. — Ele a ouviu dizer às suas costas.Sim, se Thrasco descobrisse o sexo da escrava, poderia matá-la por arruinar-

lhe os planos. Mas isso não era problema seu. No entanto, ficava triste só de pensar na garota morta, ou coisa pior.

Mas o que poderia ser pior que a morte?Anoitecera, finalmente. Pela janela estreita no quarto, Laren conseguia

enxergar a escuridão. Não havia lua, e as estrelas estavam ocultas por nuvens negras. Sim, estava muito escuro, graças aos deuses.

Ela terminara outra tigela de caldo, conversara brevemente com Cleve, que ainda tinha de servir a refeição da noite aos demais, e implorara a ele que lhe deixasse a cesta de pão para o decorrer da noite. E ele tinha deixado, o tolo. Enrolou a cesta num pedaço da coberta que rasgara da cama, Gostaria de ter algo para vestir, além dos trapos, mas não tinha. Por isso, enrolou-se no resto da coberta. Parecia um menino de novo. Seus seios não haviam desabrochado de todo e ela os mantinha achatados debaixo dos trapos. Os cabelos eram curtos e maltratados. E estava tão suja, cheirava tão mal que duvidava que alguém se importasse em saber qual era o seu sexo.

Gostaria apenas que suas costas não a fizessem quase ajoelhar de tanta dor. Cerrou os dentes para não deixar escapar nenhum som, nenhum gemido que atraísse atenção.

A porta não estava trancada. Se estivesse, ela daria um jeito de passar por aquela janela estreita do alto. Em passos lentos, esgueirou-se para um corredor estreito e escuro. Tentou recordar-se do caminho que fizera ao ser levada para lá. Visualizou o trajeto na mente, e virou à esquerda, onde o corredor se bifurcava.

Ouviu homens conversando. Certamente eram os guardas, e comprimiu as

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costas contra a parede. Arquejou de dor ao contato áspero. As tábuas estalaram sob seus pés.

— O que foi isso?— Está ouvindo você mastigar, idiota, nada mais.— É melhor ver. Você conhece Thrasco.Laren viu a sombra de um homem. Ele avançou um passo em sua direção e,

depois, parou, ouvindo. Ela não se mexeu, não respirou.O outro homem berrou:— Eu lhe disse que não havia nada.Ouviu-se um resmungo, seguido de um arroto forte. E uma risada.Lentamente, Laren soltou a respiração contida. Esperou ainda mais um

pouco. Então, caminhou o mais silenciosamente possível, espremendo-se contra a parede, indo sempre para a esquerda quando precisava escolher o caminho. Ouvia muitas vozes agora, até mesmo a de Thrasco, se não estava enganada. Deveria estar perto da sala de refeições.

Finalmente, viu-se diante de uma porta estreita. Girou a maçaneta de ferro e esgueirou-se para fora, na direção de um beco malcheiroso. Quase gritou de alívio. Respirou fundo, e encolheu-se diante da dor que isso provocou. Parou um momento, tentando recuperar o controle. Suas costas latejavam. Teve a impressão se sentir uma umidade pegajosa e imaginou que as lacerações estariam sangrando outra vez.

Entretanto, estava quase livre. O resto não importava. Suas costas iriam sarar, só que não ali, não na casa de Thrasco, não em Kiev. Ela pegaria o irmão e viajariam para o Norte. Furtaria algumas roupas, e se faria passar por uma viúva, e Taby por seu filho. Sobreviveria, e Taby também. Aquela era sua primeira oportunidade para fugir, e pretendia ter sucesso.

No passado, jamais conseguiria chegar tão longe. Talvez tivesse de agradecer pela surra. Afinal, Thrasco nunca poderia imaginar que alguém tentasse fugir com as costas em farrapos.

De repente, ela ouviu vozes. Falavam baixinho, descendo o caminho, logo à direita. Eram ladrões ou homens de Thrasco. Fechou os olhos por um instante, imaginando se os deuses estavam contra ela. Então, recuou para a escuridão. Não poderia correr, ou daria de frente com os homens.

As vozes se calaram, e ela podia ouvir apenas as passadas. Eram duas pessoas, não mais que isso. A qualquer segundo, seria avistada e seria o seu fim. E o de Taby. Apavorada, agachou-se, tentando desesperadamente comprimir-se contra a parede, unir-se às sombras. Ouviu um dos homens falar, a voz profunda e tranqüila.

— É naquela portinha, assim me disseram.— Disseram, Merrik? Não lhe disseram nada até que você deu ao "fuinha"

aquele bracelete de prata.— Isso não interessa. A porta deve estar fechada agora. Acho que o garoto

não está nas acomodações dos escravos, mas num quartinho dentro da casa...Estavam atrás dela. Laren não podia simplesmente ficar ali, fingindo que os

homens não existiam, fingindo que não a veriam. Iria surpreendê-los, atacaria e, depois, fugiria, pois era menor e mais rápida e... Saltou para cima do mais próximo, acertando-lhe a face com o punho fechado.

— Em nome de todos os deuses! Que diabo é isso? — Oleg era grande e forte, e em questão de segundos, agarrou-a pelos braços, obrigou-a a dar meia-volta

gritou-lhe na cara: — Fique quieto, seu traste maldito! Pare!O outro homem exclamou baixinho:

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— Fique quieto! A última coisa de que precisamos i dos guardas de Thrasco em cima de nós.

Laren debateu-se, mas logo se viu com os braços imobilizados dos lados. Ao erguer os olhos, percebeu que o hoomem erguia o punho fechado. A outra mão a segurava pelo braço. Num gesto rápido, ela abaixou a cabeça (!, com toda a força que conseguiu reunir, enterrou os dentes na mão que a retinha. O homem gemeu de dor, e ela sentiu o gosto de sangue na boca. Não o soltou.

O companheiro agarrou-a pelo pescoço.— Solte-o, ou vou estrangulá-lo.Laren largou a mão do estranho, e o homem praguejou baixinho, recuando

um passo. O outro continuou com as mãos em torno de seu pescoço e virou-a devagar, até que ela o encarasse.

—Olhe o que temos aqui, Oleg — ele exclamou. — Fomos abençoados ou amaldiçoados, dependendo da dor em sua mão. É o garoto que viemos buscar. Ele mesmo veio nos dar as boas-vindas. Bem, garoto, como saiu do prédio?

Laren ergueu os olhos para o homem que a segurava. Era aquele que vira no mercado de escravos.

Ela ouviu a praga furiosa, enquanto o homem apertava a mão ensangüentada contra o peito. Então, de repente, socou a barriga daquele que a segurava, ao mesmo tempo em que erguia o joelho para acertar-lhe a virilha.

Merrik soube, antes mesmo que a articulação ossuda o atingisse, que não gostaria nada do que iria acontecer. E não gostou. Puxou o fôlego quando a náusea inevitável o invadiu, e dobrou-se em dois.

Oleg agarrou o maldito garoto pelo pescoço antes que ele fugisse. Estava furioso.

Laren viu os olhos se toldarem, maldizendo-se por ter ficado parada, olhando para o homem que acabara de agredir; o homem que reconhecera do mercado, imaginando o que ele estaria fazendo ali. Em sua hesitação, perdera a chance de fugir. A negrura invadiu-lhe a mente até que ela não viu mais nada.

Oleg olhou para o garoto, amontoado inconsciente a seus pés.—Eu devia ter matado o coisa-ruim — disse. — Ele me mordeu até o osso.—Bem, ele me chutou até o osso — Merrik resmungou.De repente, sem aviso, ouviu-se um rosnar pavoroso, e um vulto, alto e

magro, saltou sobre as costas de Merrik.Ainda atordoado, ele não reagiu tão depressa como normalmente reagiria.

Oleg sacou a faca da bainha na cintura e ergueu-a para atacar o assaltante. Naquele instante, porém, sua perna foi empurrada com toda a força. Ele cambaleou, aturdido, e deparou-se com o garoto a encará-lo. Aquele safado o pegara desprevenido de novo! Ele mal podia acreditar. Estava desequilibrado quando o punho do moleque o acertou na barriga. Caiu contra a parede e depois sobre uma moita.

Não se ouviram pragas, nem gritos, nem gemidos. A luta era silenciosa, pois ninguém queria que Thrasco ou seus homens irrompessem de dentro da casa.

Merrik conseguiu afastar os braços do homem de sua garganta. Inclinou-se para frente, jogando o atacante por sobre os ombros. Lançou-o ao chão a seus pés, tirando-lhe o ar dos pulmões. Então, sacou a própria faca. No instante seguinte, estava de joelhos, a ponta da lâmina na garganta do sujeito.

— Não, não o machuque!O garoto arrastou-se até o homem caído, que tentava se sentar.—Pelos deuses! Cleve, o que está fazendo aqui? Não veio atrás de mim, veio?

Thrasco está por perto?... Vamos, responda.Cleve ficou de joelhos, sacudiu a cabeça e investiu às cegas contra Merrik.—Não! — o garoto exclamou, agarrando-o pelo braço. — Ambos estão

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armados. Vão matá-lo. Não, não se mexa.— Não estou aqui para matá-los — Merrik avisou. — Na verdade, estou aqui

para resgatar você, garoto. Estou com seu irmão, Taby.Laren o encarou, incapaz de acreditar nos próprios ouvidos. — Você o quê?—Estou aqui para resgatá-lo. Sou Merrik Haraldsson, da Noruega, e vim aqui

para levá-lo embora.Levá-la embora? Ele estava com Taby? Nada daquilo fazia sentido. Laren

encarou-o com ar estupidificado. I— Mas, por quê? Merrik deu de ombros.—Porque, de repente, fiquei maluco. Olhei para seu irmãozinho depois que

Thrasco o levou do poço dos escravos, e perdi o pouco juízo que tinha. — Não acrescentou que perdera a outra parte quando o havia encarado. — Venha, garoto, vamos embora daqui antes que seu dono saia uivando pela porta com uma dúzia de homens armados. Gostaria de resgatá-lo, mas não quero morrer por você.

— Tem razão quanto aos homens. Há muitos deles. Estavam bebendo num cômodo perto do corredor.

— Laren levantou-se devagar, mas continuou com a mão no ombro do feioso. — Cleve precisa vir também. — Com um olhar de súplica, encarou Merrik.

— Por favor.— Por que não? — Merrik deu de ombros. Virou-se para o amigo. — Oleg, está

vivo, ou o moleque o derrubou de novo?— Se você não estivesse resolvido a resgatar esse traste, eu o mataria agora

mesmo.— Acontece que estou resolvido — Merrik disse com um sorriso.Olhou para o homem com a horrível cicatriz na face e longos cabelos loiros

amarrados na nuca, que se levantava. Era magro, mas flexível e em boas condições físicas. Obviamente não sabia nada sobre luta, graças aos deuses.

—Venha também. Vamos zarpar assim que voltarmos para o meu escaler.Oleg olhou para o garoto imundo e, depois, para a mão ensangüentada.— Eu deveria surrá-lo.Laren vacilou onde estava e, então, desabou no chão.Cleve tentou segurá-la, mas Merrik foi mais rápido, e a ergueu nos braços.— Pelos deuses, o moleque não passa de uns poucos ossos presos a uma

carne suja e trapos imundos. E esta pele de foca fede como se estivesse apodrecendo ao sol durante anos.

— Pode deixar, senhor, eu levarei o garoto — Cleve apressou-se em dizer.— Não precisa. — Merrik ergueu Laren ao ombro. Sentiu os ossos da pelve

contra o peito e imaginou se aquele cisco de gente viveria o suficiente para reencontrar o irmãozinho. E, se o infeliz morresse, o que ele faria com Taby?

Cleve estava aturdido diante daquela repentina reviravolta do destino. Percorrera toda a propriedade na esperança de encontrar Laren antes que os guardas a encontrassem, pois sabia que ela nunca conseguiria escapar; estava fraca demais da surra e da falta de comida. Thrasco, naturalmente, acreditara na mesma coisa, e assim, ela havia ficado sem vigilância. E fugira, pelo menos até a estrada. Olhou para Merrik. Aquele homem viera salvá-la? Salvá-lo, melhor dizendo, ele acreditava que era um menino, na verdade. Meneou a cabeça, recusando-se a acreditar que algum bem resultaria disso. Aquele sujeito era um selvagem do Norte que saíra para capturar escravos e poupar dinheiro. Aquela Noruega, um lugar sobre o qual Cleve ouvira histórias assombrosas, era uma terra inóspita, muito ao norte de Kiev e, por isso mesmo, violenta e bárbara. Era berço de homens que não só exploravam, comerciavam e estabeleciam

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assentamentos, mas também de guerreiros que atacavam, saqueavam e matavam sem misericórdia. E agora um daqueles vikings tinha três novos escravos e todos sem pagar uma moeda de prata por eles. Por certo, ele mentia. Resgatar um garoto porque sentira pena do irmãozinho do rapaz? Ridículo! O que será que ele realmente queria? E quanto tempo se passaria antes que descobrisse que o garoto era uma menina?

O Corvo de Prata movia-se rápida e silenciosamente pelas águas escuras do Dnieper. Era o orgulho de Merrik. O navio de sessenta pés, construído três anos atrás, não fora feito para viagens longas, mas para transporte fluvial, carregando uma bela carga nos porões profundos. Os costados se erguiam pouco acima da linha d'água. Pranchas soltas de pinho cruzavam a viga mestra. Em trechos turbulentos, podiam ser erguidas facilmente para esgotar a água do casco; ou, como agora, para ocultar a prata, o ouro e as jóias, e outras mercadorias que tinham comprado em Kiev, além das tendas, utensílios de cozinha e comida para a jornada até em casa.

A vela estava içada ao alto na verga, pois o vento era arisco, e poderia levá-los rumo ao Norte em um bom tempo; mesmo assim, havia vinte buracos de remos a bordo.

Os homens começaram a remar num ritmo compassado. Levavam riqueza a bordo e, por isso, poderiam ser alvo de piratas. Contudo, Merrik duvidava que alguém fosse tolo o suficiente para tentar atacar vinte vikings bem armados.

Ao voltar para a popa, sentou-se perto do velho Firren, cuja mão não deixava o leme. Olhou para o menino agachado aos pés do velho, enrolado numa grossa manta de lã, e depois fez um gesto de cabeça para Cleve, que tomara um lugar nos remos.

O garoto gemeu, ao tentar virar-se de costas. Merrik segurou-o pelo braço fino, ajudando-o. Taby estava agachado ao lado dele, sem dizer nada, mas passando a mãozinha imunda pelo ombro do irmão.

— Ele ficará bem, Taby, eu prometo. Só está muito fraco de fome e cansaço. Em poucas horas, acamparemos até o amanhecer. Ele vai comer e depois descansar para recuperar as forças. Você também, rapaz.

— Está muito escuro — Taby murmurou. Ergueu os olhinhos azuis profundos para Merrik.

— Tenho medo do escuro.— Não precisa ter medo agora — Merrik ficou perturbado ao sentir um nó na

garganta. Obrigou-se a não estender a mão para a criança e puxá-la contra o peito. Não, isso a assustaria, mas ele gostaria de abraçá-la assim mesmo, e não compreendia por quê. — Não deixarei o escuro chegar. Precisamos colocar boa distância entre nós e Kiev antes de pararmos. Você está a salvo agora. E seu irmão também. Confie em mim.

O pequeno concordou, porém Merrik duvidou que ele acreditasse em suas palavras. Olhou para a mãozinha suja pousada no ombro do irmão.

Agora, tinha três escravos e não pagara um grama de prata por dois deles. Não conseguira uma escrava para sua mãe, mas não importava.

Escravos.Olhou de Taby para o irmão e para o homem, Cleve, com seus magníficos

cabelos dourados e a face marca da pela cicatriz, que remava desajeitado, obviamente desacostumado da tarefa. Era jovem, com não mais de vinte anos, porém forte, apenas destreinado em luta. O que faria com aqueles três?

O garoto aceitou o odre de água, e bebeu com avidez. Depois, começou a tremer por inteiro, e derrubou a vasilha.

Merrik levou a mão à sua testa. Estava quente ao toque. Tinha febre. Seria

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por causa da fome? Por que o chutara na virilha e na barriga e mordera a mão de Oleg até o osso? Não fazia sentido. Ele solou uma imprecação. Pouco poderia fazer, a não ser lavar o garoto em água fria para abaixar a temperatura. Era algo que sua mãe sempre fazia. Com um suspiro, rezou para que o garoto não estivesse com alguma doença * que pudesse matar a todos eles.

— Taby — disse, baixinho para chamar a atenção do menino sem assustá-lo. — Puxe um pedaço da coberta que seu irmão enrolou em torno dele. Dê para mim, para eu molhar no rio.

O menino fez o que ele pedira.Merrik enfiou as mãos debaixo das axilas do garoto e ergueu-o. Podia sentir

aquele corpo frágil sacudido por tremores e calafrios. Gritou para Cleve.— Sabe o que há de errado com o garoto? Está com febre. Treme como uma

virgem. O garoto começou a se debater. Merrik segurou-o com firmeza pelas costas,

mas o menino se encolheu. Ele sentiu algo úmido e pegajoso contra o braço. Franzindo a testa, deitou o garoto sobre as pernas, ergueu a pele de foca e depois a túnica rasgada. Debaixo havia uma camisa limpa. Quando suas mãos pegaram o tecido, o garoto tentou escapar. Com a mão comprimida às costas do garoto, Merrik o segurou firme.

Um choro sufocado subiu pela garganta do escravo. E foi então que Merrik viu as manchas escuras no tecido branco, sentiu a viscosidade nos dedos. Levantou a mão para a luz das estrelas. Sangue.

Pestanejou. Pelos deuses! Foi cuidadoso em não tocar as costas do garoto outra vez, ao murmurar a seu ouvido:

— Fique quieto, ou posso machucá-lo sem querer. Thrasco o surrou.— Sim — o garoto disse, entre arquejos.— Por socá-lo no mercado de escravos.— Por isso, e para me ensinar obediência.— Tenho de ver como está isso. Você está com febre e agora eu sei a causa.Com gestos cuidadosos, tirou-lhe a camisa, a maior parte do tecido grudado

aos vergões ensangüentados. Sabia que a dor deveria ser horrível, mas o garoto não se mexeu, não deixou escapar um som. Tinha coragem.

Ao abaixar a camisa até a cintura do garoto, viu as costas finas e muito brancas cobertas de vergões sangrentos. Praguejou baixinho. Taby estava parado a seu lado agora, o rosto descorado, as lágrimas a escorrerem pela face.

— Não chore, Taby, ele ficará bem. Prometo. Sente-se, não quero que caia pelo costado.

Merrik olhou novamente para aquelas costas marcadas por violentos golpes de açoite. Eram costas muito estreitas, muito brancas, que se curvavam até a cintura. Algo não estava certo ali. Olhou para os braços finos, para os ombros, para o pescoço esguio, para os cabelos imundos e emaranhados. Gentilmente, deitou o garoto de barriga nas coxas. Devagar, empurrou as calças rasgadas até os quadris. O garoto tentou reagir de novo, esmurrando suas pernas, sem êxito. Merrik puxou as calças mais para baixo, desnudando-lhe o traseiro.

Aquele não era o traseiro de um menino. Aquele não era o bumbum de um garoto.

Fechou os olhos por um instante. Não precisava de algo assim. Por todos os deuses, aquilo era demais.

Ouviu Cleve gritar.— Não, senhor. Não dispa o garoto. Ele precisa ficar com as roupas.—Compreendo — Merrik respondeu, tanto para Cleve, como para a menina

que tinha sobre as pernas. — Vou deixá-lo coberto. — Puxou as calças até a cintura da menina e murmurou:

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— Não se mexa. Agora que sei o que tenho aqui, vou deixá-la coberta.Praguejou novamente. Foi então que viu o medo nos olhos de Taby.— Não vou machucá-la — disse, baixinho. — Não vou. Continue sentado. Não

quero ter de me preocupar com você também.O que faria com aquela menina, ele não tinha idéia.Limpou as costas da garota o melhor que pôde. A água do rio era limpa, mas

a dor do contato contra os vergões, a crueldade de tudo aquilo... E ela não passava de uma menina. Ele jamais fora surrado em toda a sua vida. E nunca batera num escravo. Dava alguns tapas em ombros e cabeças quando precisava impor obediência, mas não usava o chicote, não para flagelar a carne das costas de alguém.

Com gentileza, comprimiu o pano molhado contra os vergões, esperando acalmar um pouco a dor e abaixar a febre.

O escaler balançou com a mudança repentina da correnteza, fazendo uma onda bater no casco, e a menina quase escorregou de suas pernas.

— Encontre um bom lugar na praia para passarmos o resto da noite — ele gritou a Oleg.

— Preciso cuidar das costas do garoto. Thrasco arrancou-lhe o couro.Levaram o escaler para a margem, num trecho coberto de pedras negras e

madeira flutuante. Uma vegetação compacta de abetos e pinheiros comprimia-se até a linha d'água, e só os deuses saberiam o que, ou quem, poderia se esconder naquela densa floresta.

— Vou erguê-la no ombro agora e iremos para terra. Não se mexa — ele disse a menina.

Ela permaneceu largada. Talvez inconsciente, ele pensou. Então, pegou Taby no colo e passou-o para Oleg. Cleve já andava de um lado para o outro pela estreita faixa de terra, a esperá-los.

— Ajude os homens a erguerem as tendas e depois espalhe cobertas e peles dentro da minha. Os homens vão fazer uma fogueira e iremos comer. Enquanto isso, eu cuidarei dela. Como ela se chama, você sabe?

— Laren.—Um nome estranho, como o sotaque. Sabe de onde ela vem?—Não estou morta — a garota resmungou, erguendo-se ligeiramente, e

Merrik percebeu a dor misturada à arrogância no tom de voz. — Cleve não sabe de nada. Deixe-o em paz. Ponha-me no chão. Não quero suas mãos pesadas em cima de mim.

— Você não tem força para me jogar de joelhos de novo, portanto é melhor fechar essa boca.

— Solte-me!—Assim que houver uma manta de pele onde deitá-la. Quando as mantas de

lã e de pele foram estendidas dentro da tenda, Merrik entrou e deitou-a de bruços.

— Não se mexa — disse, e levantou-se para ajudar a recolher lenha. Queria preparar-lhe um banho. O cheiro que exalava da garota era pior do que o de um cão sarnento, depois de um longo inverno. E o de Taby também.

Foi Cleve quem a alimentou com bocados de pão ázimo molhado em água quente e um punhado de nozes e avelãs. Foi ele também quem banhou Taby. Roran, um improvável viking moreno, arranjou umas peças de sobra de roupas para cobrir a criança.

Mas foi Merrik que resolveu que cuidaria da garota. Olhou para cada um de seus homens ao se sentarem em torno da fogueira, comendo coalho de queijo, carne seca, pão ázimo e nozes, e decidiu-se a ser franco.

— Aquele ali foi surrado por Thrasco para valer. E não é um garoto, é uma

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menina. Não há razão para não contar isso a vocês. Não sei nada sobre ela, a não ser o nome, Laren, e que Taby é seu irmãozinho.

Eu cuidarei dela. E muito jovem, da idade de suas irmãzinhas, portanto não acalentem pensamentos lascivos sobre essa menina. Comam, bebam apenas uma caneca de cerveja e durmam um pouco. Eller, deixe esse seu nariz atento para a noite. O primeiro turno é seu.

Ouviu Cleve puxar o fôlego enquanto ele falava, e então, dirigiu-se a ele:— Eles descobririam logo. Não havia razão para não contar. São bons

homens. Confio neles com minha vida.Foi até a tenda e olhou para aquelas costas em carne-viva.—Pense em mim como seu pai, seu irmão, sua mãe, se isso fizer bem à sua

modéstia. Vou tirar esses trapos e banhá-la, para depois vesti-la com roupas limpas. Tenho uma túnica que lhe darei, e Eller, o menor de meus homens, cederá umas calças. Oleg, aquele que você mordeu, vai lhe dar uma corda para amarrar as calças na cintura.

— Não quero que faça isso. Vá embora. Eu cuidarei de mim mesma.—Feche essa boca mentirosa, ou eu a deixarei aqui e levarei Taby embora.

Você nunca mais o verá novamente. Sua fuga para salvá-lo não terá valido de nada. Pode me entendeu garota?

Laren nada disse. Merrik franziu a testa.— Não tenho intenção de violentá-la, se é isso que a preocupa. Você é tão

tentadora quanto um campo de cebolas pisoteadas. Que idade tem, doze anos? Não tenho queda para crianças, e nenhum de meus homens. Descanse sossegada. E descanse a boca também. Isso irá doer, mas serei o mais gentil que puder.

Percebeu seu erro quando lhe tirou as calças, e jogou-as para fora da tenda. Ela estava de bruços, as pernas ligeiramente separadas. Ao olhar para aqueles membros longos, muito magros, é verdade, viu que eram torneados o bastante para dar uma idéia de como seriam quando ela ganhasse carnes. E os quadris certamente não eram os quadris de um menino.

Também não eram de garota. Eram quadris de uma mulher.Merrik praguejou.Merrik lavou as pernas e as costas de Laren depressa, com gestos práticos.

Ela era muito magra, pálida e ossuda, e isso ajudava. Era mais velha do que ele a princípio acreditara, mas mesmo assim, uma criatura patética, mais do que patética, e ele recusou-se a enxergar qualquer outra coisa a não ser as costas ensangüentadas e a carne emaciada. Tomou cuidado para que o pano ensaboado cobrisse bem sua mão quando a lavou entre as pernas. A garota estava doente, dependia dele. Era uma escrava, nada mais.

Lavou-lhe os cabelos, três vezes, e enxaguou-os outras duas, passando os dedos para desfazer os nós e os emaranhados. Custou-lhe um longo tempo. A sujeira se impregnara e era difícil de tirar.

— Consegui deixá-la quase limpa, mas você precisará de outro banho amanhã — disse, ao virá-la. — Agora, vou lavar a frente.

De olhos fechados, ela estava branca de exaustão e dor. Merrik viu as costelas, agudas e feias, o ventre chato, os ossos da pelve salientes. Mas também viu os seios bonitos que pareciam não pertencer a um corpo tão esquelético. Resolvido a controlar-se, ele retomou o trabalho. Ao terminar de lavar o rosto, continuou. Quando o pano passou pelos seios, ela não se moveu, mas Merrik viu as mãos se fecharem dos lados. E foi sua vez de fechar os olhos, ao esfregar o ventre e os dotes de mulher. Trabalhou tão depressa como pôde.

— Os escaldos cantarão belas odes sobre mim — ele disse, conforme deslizava a mão entre as pernas de Laren, para lavá-la. — Sou um homem com o

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controle de um monge cristão e a honra de um guerreiro, nina combinação que causa um sofrimento tão granar como esse em suas costas.

Ela abriu os olhos e o fitou.—Quem é você? O que pretende ao ser gentil comigo e com Taby? O que

quer? Vai me dar a seus homens ou a um amigo para ganhar alguma coisa? Thrasco ia me dar à irmã do príncipe de Kiev, que gosta de garotos. O que você fará?

— Vai ter de sarar para descobrir — ele respondeu, ao enxaguá-la e depois cobri-la com uma manta macia de lã. E mudou de assunto. — Dói muito quando se deita de costas?

— Sim, dói.Ajudou-a a virar-se de bruços, e estendeu um pano limpo sobre suas costas.

Olhou para os cabelos grossos, cacheados, curtos e muito estragados.— De que cor é seu cabelo?— Ruivo.Ele sentou-se de cócoras, atrás dela, e franziu a testa. A voz de Laren soava

arrogante outra vez, como se aquela simples palavra fosse um anúncio real da toca de uma realeza.

—Antes estava tão sujo que poderia ser verde. Então, é ruivo. Não gosto da cor. Nossas mulheres não têm cabelos assim.— E você acha que me importo, viking?Merrik sorriu, fitando a nuca daquela criatura orgulhosa.— É uma cor indecente, nada civilizada. Uma cor de que não gosto. E como você sabe que sou um Viking?— Você vem da Noruega. Será que é tão pouco inteligente que não se lembra

do que diz? Além disso, tem cabelos claros e olhos azuis. E maior que os homens que vi em outras terras. Todos os vikings são grandes. Todos os vikings são parecidos. Não há nada que o diferencie de qualquer outro homem de seu país. E um tipo comum.

Ele caiu na risada.— E, de onde você vem, todas as mulheres têm cabelos vermelhos, a pele de

um branco absoluto como a neve recém-caída, têm?— Não, mas algumas poucas são assim, quando se olha com atenção, o que

os vikings não fazem, já que todos atacam, matam e saqueiam o que podem carregar, inclusive pessoas.

Merrik ignorou a acusação.— Ah, você é diferente até da gente de sua terra. Cabelos ruivos e pele

branca, a praga do demônio dos cristãos, sinal da punição de um deus.— Não foi um deus ou um demônio que me amaldiçoou — Laren retrucou, e

Merrik percebeu o sofrimento em sua voz e a exaustão completa. Além da raiva contida, refreada, profunda, que continuaria com ela pelo resto da vida.

Indagou, já sem o tom de zombaria:— Quer mais pão?—Não, mas Taby está sempre com fome, muito mais fome do que eu. Ele

gostaria de mais pão.— Cleve está cuidando do menino, ele e Oleg. Há bastante comida para

vocês dois. Nenhum vai passar fome.— Vai vendê-lo?—Não creio que Taby me traga muita prata — Merrik murmurou, num tom

pensativo, embora zangado pela profunda desconfiança de Laren. Pelos deuses, ele não a salvara? — Ele é apenas uma criancinha, de pouco valor. Sim, é provável que eu o venda.

— Eu o comprarei de você. Cleve também.

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— Está escondendo sua prata em algum lugar onde não olhei? Difícil, eu a examinei inteira ao banhá-la.

Ela ficou muda como uma pedra.— Você não tem nada além da roupa que eu e meus homens lhe demos. A

comida nesse seu bucho magro vem de mim. Tudo vem de mim, inclusive seus cabelos lavados e seu couro limpo. Você não teria Taby se não fosse por mim. Quem sabe devesse tomar cuidado em guardar a língua antes de falar. Acho que seria melhor.

Ela continuou calada. Merrik levantou-se, e foi jogar a água suja do banho e os trapos na floresta. Duvidava que até mesmo os animais recolhessem aqueles trapos fedidos. Depois, voltou e deitou-se de costas ao lado de Laren. Assoprou a vela, lançando a tenda na escuridão.

— Você está certo — ela murmurou, e não disse mais nada. Virou o rosto para o outro lado e logo estava dormindo.

Merrik não dormiu até que o sol começou a apontar. Certo a respeito do quê, exatamente? Em guardar a língua perto dele? Era uma boa idéia, mas ele duvidava que Laren a mantivesse assim por muito tempo.

— Merrik! — Oleg berrou. — Eller farejou alguma coisa! O nariz de Eller era tudo de que Merrik precisava.

Em instantes, todos os homens carregavam seus suprimentos para o escaler. Ele enfiou as calças e uma túnica na garota às pressas, e jogou-a por sobre o ombro. Em questão de mais outros instantes, estavam todos empurrando o escaler para a correnteza, conduzindo-o pela margem. No momento seguinte, pelo menos cinqüenta homenzinhos bizarros irromperam pela praia estreita, uivando e gritando para eles, agitando lanças e atirando pedras. Uma lança cruzou o espaço e aterrissou com força no banco de madeira, a um fio de cabelo do velho Firren, mas ele não se moveu, nem tirou a mão do leme.

— Poderíamos ter acabado com a maioria deles e levado o resto — Oleg disse, num tom tristonho.

— Não parecem prováveis escravos. São muito selvagens — contestou Merrik.

Oleg protegeu os olhos do sol que se levantava.— E, acho que tem razão.Taby encostou-se no guerreiro e fitou-o com aqueles olhos límpidos de

criança. Merrik percebeu as expressões cambiantes na face de Oleg e, depois viu que ele suspirava e erguia o menino no colo. Sem uma palavra, ele inclinou-se para o remo.

Em pouco tempo, já não ouviam mais os gritos da praia ou viam os homenzinhos com as peles de animais cobrindo o corpo, praguejando numa língua estranha.

Laren dormia profundamente agora. Quando acordou, Merrik tinha um pão a esperá-la. Calada, ela o fitou, sem se mover.

— Como se sente?— Limpa.—Deveria — ele murmurou, com um sorriso. — Lembra-se do banho que lhe

dei a noite passada?Ela simplesmente concordou. Mas Merrik sabia que, logo, ela diria algo ferino.

Seria incapaz de guardar a língua. Pegou um pedaço de pão e enfiou-lhe na boca.— Estou contente de que esteja viva — disse, vendo-a mastigar o pão.Havia uma expressão de absoluta bem-aventurança na face pálida, Merrik

percebeu. Pena que o pão estava azedo, ele pensou, embora quem a fitasse não pudesse imaginar. Continuou a lhe dar bocados até que ela murmurou:

—Não quero mais. Estranho, mas não quero. Passei fome durante tanto

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tempo... Estar de barriga cheia é uma coisa maravilhosa. Obrigada.—De nada — ele retrucou. — Quer dormir mais um pouco?— Não.—Talvez seja melhor fechar os olhos, pois preciso examinar suas costas e

lavá-la de novo, se for necessário.Laren apenas o encarou. E Merrik percebeu que ela gostaria de se recusar,

porém não disse nada. Manteve a boca fechada. Estava aprendendo; mostrando controle. Aliás, controle era algo que ela deveria ter, ou não teria sobrevivido até então como escrava.

Deitou-a com cuidado sobre as coxas, e puxou-lhe a túnica. Depois, relanceou os olhos ao redor para certificar-se de que todos os homens estavam em seus remos, de rosto virado para o outro lado. Então, pegou água do rio com a mão em concha.

Como alguém poderia ter acreditado que ela fosse um garoto? Seus cabelos, tão vermelhos como o pôr-do-sol do início do outono, curvavam-se em tufos desordenados em torno de sua face e desciam pelo pescoço. Um belo rosto, ele pensou, jamais o rosto de um garoto.

Depois de lavar-lhe as costas, ele a cobriu outra vez com a túnica. E Laren tornou a dormir. Merrik entregou-a aos cuidados de Cleve e assumiu seu turno nos remos. Estava inquieto. Taby continuava sentado no colo de Oleg e quando ele o fitou, viu o medo nos olhos do menino. Era estranho, mas gostaria de segurá-lo e protegê-lo, e não sabia por quê.

— Sua irmã está dormindo — disse. —A febre quase sumiu. — Esperava que fosse verdade. Não podia fazer mais por Laren. Inclinou-se sobre os remos.

O dia avançou, tranqüilo e quente, sem quase uma brisa para refrescar os homens. Seguiriam até meia distância de Gnezdove e Smolensk antes que o sol se pusesse naquele dia e, no seguinte, arrastariam o escaler para a margem para começar o translado por terra até o rio Dvina.

Quando Laren acordou e bocejou profundamente, Merrik sorriu e lhe deu um bocado de pão na boca. Ela mastigou silenciosamente. Ele continuou a alimentá-la até que ela meneou a cabeça.

— Quero ir a terra por um momento — murmurou.— O quê?— Preciso aliviar-me.— Você viu os homens se aliviarem. Sei que é mais difícil para você, mas tem

de fazer o mesmo. Ficarei de pé na sua frente para lhe dar alguma privacidade. Quer fazer isso agora?

Laren concordou. E, quando terminou, ele ajudou-a a sentar.— Não foi tão ruim, foi?— A princípio eu não conseguia suportar, era muita humilhação. Então,

percebi que todos olhavam para isso com indiferença, exceto aqueles que gostavam de envergonhar os escravos. Quando resolvi me passar por um menino foi ainda mais difícil. — Laren suspirou e depois sorriu. — Tornei-me muito boa em imitar os garotos. Eu me virava de costas, posicionava meus braços do jeito certo e todos pensavam que era um menino urinando. Uma representação para não levantar suspeitas.

—Por quanto tempo foi uma mulher antes de se fingir de garoto?— Não muito, era perigoso, e eu não queria ser violentada. Ser um garoto era

mais seguro.— Não em Kiev e ao sul. Quantos anos tem?— Dezoito.— E Taby?— Quase seis agora.

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— Há quanto tempo são escravos?— Quase dois anos... acho. Já me esqueci.— E incrível como você tenha conseguido manter Taby vivo por todo esse

tempo. Ele não passava de um bebê. De onde são?— Sou de um lugar muito parecido com o de onde você vem. E é o lugar para

o qual voltarei, no tempo certo. E falo sério, viking, quero comprar nós três de você. — Laren respirou fundo. — Pagarei pelas roupas, pagarei o que custou Taby...

Ele agarrou-a pelo braço e virou-a para que o encarasse.— Meu nome é Merrik. E é assim que irá se referir a mim. Também aprenderá

a guardar essa sua língua.Não é de se admirar que Thrasco a tenha surrado. Quantos outros donos

arrancaram seu couro por sua insolência?— Só um, o primeiro — ela retrucou, encarando-o diretamente nos olhos. —

Fiquei calada depois disso. Mas por que ele comprou Taby também.— Acha que sou muito mole para lhe bater?— Você não é como os outros. Não é mole, mas é diferente. Não tenho medo

de você, pelo menos não tenho medo de que me machuque ou faça mal a Taby.—Pois deveria ter medo se achar que é difícil me obedecer.— Não vai nos vender ou nos dar a seus amigos?— Talvez uma dessas escolhas me convenha. Preciso pensar, conversar com

Oleg. De qualquer forma, devo engordá-la primeiro. Nenhum homem há de querer moer o corpo nesses ossos.

— Pois eu soube que os homens se ralam com qualquer mulher que não está morta. Tornei-me um garoto depois que vi um homem abusando de uma moça. Ele a estapeou até o sangue escorrer pelo nariz e pela boca e, depois, a violentou. Não sei se ela sobreviveu. Quando terminou, ela sangrava por toda parte. Se eu tivesse uma faca, o teria matado. E se você resolver me vender para um homem que queira fazer isso, eu o matarei.

— Então, talvez seja melhor usar de mais gentileza nas palavras e nos modos comigo.

Era bom que Laren não pensasse na possibilidade de que ele a estuprasse. Contudo, ele poderia, se quisesse. Em viagens anteriores, tinham lhe oferecido escravas para agradá-lo. E as moças não o haviam recusado. Ele não as magoara. Ou magoara?

Contudo, uma escrava servia para o uso de seus donos, não servia?Aborreceu-se com o rumo dos próprios pensamentos. Por que resgatara

aqueles três de Kiev? Por certo fora atacado pela loucura, um tipo estranho de doença que logo o abandonaria. Deu um murro na água, e os pingos choveram de leve por seu peito.

— Por que olhou para mim no mercado de escravos?

Capítulo II

Ele não a fitou, mas cravou os olhos na vela ao alto. Ergueu a mão para sentir a exata direção do vento.

—Lembro-me de sentir que alguém estava me olhando e foi por isso que ergui os olhos. Lá estava você, parada como se congelada, me encarando com raiva. — Deu de ombros. — Não consegui desviar os olhos. Julguei que estava derrotada, completamente abatida e, então, de repente, seus olhos mostravam raiva, amargura. Confesso que não a compreendi. Você me deixou intrigado.

Laren não disse uma palavra.—Então, lá estava Taby... — ele continuou. — Estranho. Não tenho nenhum

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afeto particular por crianças. Mas, um sentimento profundo surgiu dentro de mim no momento em que o vi. Não compreendi então e nem entendo agora, mas quero manter Taby em segurança.

— Você vai superar esse estranho sentimento por meu irmãozinho. Afinal, é um homem e amam crianças, não como as mulheres. Ficam orgulhosos delas se demonstram perícia em algo, mas não têm amor por elas, não lhes dão atenção. Para eles, é mais uma coisa de palavras, não de ação, como para as mulheres.

— Você parece ter mais conhecimento do que idade — Merrik retrucou, num tom pesado de sarcasmo. — Suas palavras talvez sejam verdadeiras para os homens de seu país, mas eu duvido. Homens são homens. Meu pai me ama, e ama meus irmãos. A afeição que tem por nós não é de ser questionada. Ele também nos dava palmadas e nos elogiava igualmente, e nos ensinava sem cessar quando éramos garotos. Quanto aos meus sentimentos por Taby, você não tem idéia do tipo de homem que eu sou, e o que sentirei ou não por ele num prazo de um ano ou cinco.

— Ele não é parente seu. Não é seu sangue. Esquecerá Taby facilmente assim que estiver em casa outra vez. O que sua esposa vai pensar?

— Não tenho esposa.— Os homens precisam de esposas. Precisam procriar quando são jovens,

caso contrário, suas sementes perdem a potência. Sim, você terá uma esposa... E vai esperar que ela cuide de Taby? E se ela for cruel com ele? Não é justo. E por isso que precisa me deixar comprá-lo de volta, antes que não se importe mais com ele, antes que sua esposa o magoe, antes que venha a vendê-lo.

—Você desfia histórias melhor que um escaldo. Pare de dizer bobagens. Não tem como comprar coisa alguma, muito menos três pessoas.

— Posso conseguir prata, um monte dela, mais do que um homem como você poderia comerciar ou roubar.

— Será que farejo um resgate nesse insulto? Você tem pais, parentes ricos? E essa prata de que fala? Se há alguém que possa resgatá-la, diga-me. Pelo menos posso mandar alguém até essa pessoa para perguntar se ela ainda a deseja de volta. Se for um homem, talvez tenha se esquecido de você, uma vez que não teria nenhum amor ou afeição particular no coração.

Merrik podia ver a miríade de expressões mutantes na face de Laren. Detestava mentiras. A resposta, porém, o pegou de surpresa.

— Não posso lhe contar. Existe alguém, mas não tenho certeza. Talvez esse alguém não esteja mais lá. Mas, ouça-me, enterrei prata faz um longo tempo. Sim, tenho um tesouro enterrado.

Ah, a mentira, enfim.— Justamente para esta emergência?— Está caçoando de mim, viking. Um homem como você nunca entenderia.— Um homem como eu? Pensei que você havia dito que eu era diferente.— Ainda é um viking. E um mercador também, e matará sem hesitação a fim

de conquistar algo que você deseja. Eu aceito o modo como os homens são. Além disso, durante os últimos dois anos, aprendi a reconhecer o rumo das coisas. Aprendi que se você não finge pelo menos aceitação, apodrecerá bem depressa numa vala, ou será surrada até a morte.

— Então, você tem mesmo gente que poderia resgatá-la? Se ao menos pudesse mandar uma mensagem para eles... — ele murmurou, sem encará-la. — E mesmo curioso. Você não quer me contar nada porque tem medo que qualquer mensagem que mande chegue à pessoa errada. — Ergueu os olhos e viu que ela empalidecia. — Seu nome, Laren, é estranho. De onde você vem?

— Isso não lhe diz respeito.Merrik optou por divertir-se diante de tamanha arrogância, contendo o

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ímpeto de lhe torcer o pescoço.— Seus olhos têm mais cinza do que azul com luz mais clara.— São comuns. Quanto aos seus, Merrik, o azul é como o céu claro de verão,

como os de qualquer outro homem de seu país.— Roran tem olhos negros.— Ele parece árabe. Por certo não é um viking. Um árabe, Merrik pensou. De

onde ela viera antes de chegar a Kiev? Miklagard? Do Califado? Talvez de tão longe como a Bulgária?

— Roran é de Danelaw, perto de York. A mãe é saxônia, mas o pai é um mercador viking.

Laren fez um gesto de concordância. Ah, então ela conhecia Danelaw, Merrik pensou, ou pelo menos ouvira falar.

— Merrik! — Oleg o chamou. — Eller fareja alguma coisa.— O que ele quer dizer com isso? — Laren indagou.— O nariz de Eller é mágico. Sente-se quieta aqui ao meu lado. Precisamos

chegar depressa ao centro do rio.— Não vejo ninguém na praia.— Certa vez, ignorei o nariz de Eller, e custou caro. Nunca mais. Fique quieta

e mantenha a cabeça abaixada. Os homens concentraram toda a energia em levar o escaler para a correnteza forte, afastando-se rapidamente do cheiro que chegara ao nariz de Eller. Laren olhou para trás e viu a praia se encher de homens com lanças e pedras. Não pareciam amistosos.

Ela inclinou a cabeça para trás e olhou para Merrik de soslaio. Ele havia chegado muito perto da verdade. E o que aconteceria no futuro seria o que ela fizesse acontecer. Ela seria a responsável, só ela.

O vento agora estava mais fraco, e os homens remavam novamente. Merrik estava nu da cintura para cima e sua pele tinha um tom profundo de bronze. Os músculos das costas e braços retesavam-se com a força da juventude e da saúde. Era um belo homem, Laren tinha de admitir. Seu corpo era esplêndido em vigor e forma, as feições bonitas, de linhas fortes, o queixo mostrando ousadia e determinação. Poderia ser teimoso como um porco, ela não duvidava, mas isso não era ruim, caso quisesse sobreviver.

No entanto, ele era um viking, igual a todos os outros. Os últimos dois anos tinham lhe ensinado muita coisa, e ela se vira diante da perfídia e traição. Aprendera a perceber o cheiro das mentiras. Seu nariz era tão bom como o de Eller, quando se tratava de reconhecer a crueldade e o egoísmo. Confiança era algo para tolos. E ela não era mais uma tola.

Merrik era um mercador antes de ser um guerreiro. E tinha três seres humanos para comerciar, agora. As razões para salvá-los pareciam verdadeiras, mas Laren ainda não conseguia acreditar no que ele dissera. Bastara um olhar para Taby, e ele se sentira compelido a resgatar os dois? Homens, qualquer um, não se comportavam daquela maneira. Vikings transpassariam uma criança com a espada antes de pensar em salvá-la.

Merrik largou os remos, levantou-se e esticou-se, e voltou até onde ela se sentava. A tanga bem baixa no ventre liso, deixava à mostra os pêlos dourados e espessos do peito e da barriga.

Laren desviou os olhos. Conforme ele se sentava a seu lado, enfiando a túnica pela cabeça, ela sentiu o cheiro de suor e o odor másculo; um cheiro intenso e agradável. Fitou-a, examinando-lhe os sinais de exaustão, as olheiras arroxeadas. Não disse nada.

Aos poucos, um torpor a invadiu e, logo, ela adormecia com a face apoiada nas coxas fortes de Merrik.

Ao crepúsculo, os homens levaram o escaler para fora do rio. Era uma tarefa

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de arrebentar as costas, carregá-lo na força bruta, sem a ajuda de roletes. E sempre havia o perigo das tribos que se ocultavam entre os dois rios poderosos, à espera de mercadores desprevenidos.

— Eu me lembro disso — Laren murmurou, olhando ao redor. — Isto é, lembro-me de fazer uma travessia assim, só que num lugar diferente.

— Então você veio do lago Ladoga e de Novgorod — Merrik opinou, com aquele fragmento de informação.

Laren afastou-se. Se ela fora trazida pelo rio Neva até o lago Ladoga, isso significaria que viera do Báltico, Merrik pensou. Muitos mercadores e viajantes seguiam por aquela rota, todos transportando escravos. Era um caminho bem mais longo, porém menos pprigoso.

Estranho, mas estava preocupado como nunca se sentira e não gostou da sensação. Tinha de manter Laren e Taby a salvo.

O tempo continuou quente e seco, conforme transportavam o escaler pela rota esburacada, parando apenas brevemente para comer e descansar.

Ao acamparem por fim, Eller cuidou da coleta de lenha para uma pequena fogueira. O velho Firren tirou o caldeirão de ferro do gancho para preparar algumas verduras. Oleg sentou-se nos limites do acampamento para vigiar o escaler e a todos. Roran e três outros homens saíram para caçar.

—Estendi algumas peles dentro da tenda para você e Taby — Merrik disse a Laren.

— Descansem. Cleve lhes levará a comida quando estiver pronta.Ela o encarou, vendo os cabelos loiros emplastrados de suor, as gotas

escorrendo pela face, os braços úmidos, os músculos ainda tensos.— Chegamos tão longe como você queria?— Um pouco mais longe até. Não confio naquelas nuvens a leste. Descansem

agora, vocês dois.— Eu sei cozinhar.Merrik fitou-a como se ela tivesse dito que praticava algum tipo de magia.— É mesmo?—Aprendi com uma mulher o ano passado. Ela me socava a cabeça toda vez

que eu fazia algo que não era de seu agrado. Aprendi depressa, caso contrário ficaria surda.

— Vou falar com o velho Firren. Temos repolho, ervilhas, arroz, cebolas e algumas maçãs. Roran está caçando. Talvez traga algumas codornas ou um faisão.

— Farei um ensopado.E fez, com a ajuda do velho Firren. Um ensopado de coelho. Taby e Cleve

também ajudaram. O primeiro bocado fez Merrik fechar os olhos, absolutamente deslumbrado. O segundo provocou um resmungo de prazer. Ao redor, só se ouviam os ruídos do mastigar e engolir, e os suspiros de satisfação.

—Detesto minha comida — resmungou o velho Firren. — Minha barriga está cantando de felicidade.

Todos riram, concordando. E Taby contou:— Antes, ela não sabia fazer nada. Os criados cuidavam de tudo, mas então,

quando fomos...Laren tapou-lhe a boca.— Merrik não está interessado nisso, Taby. O menino a encarou, franzindo a

testa.Merrik riu e então estendeu o braço na direção de Taby. O garoto levantou-se

de onde estava e foi se sentar no colo dele.— Minha mãe cozinhava bem — Merrik começou. — Agora, cozinhar é um

sacrifício para ela por causa da dor em seus dedos. Mas Sarla, a esposa de meu

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irmão, está aprendendo. — Calou-se por um instante e depois acrescentou. — Você cozinha tão bem quanto minha mãe.

Levou Taby até a fogueira, onde os homens conversavam em voz baixa, contentes.

—Eu gostaria de ouvir uma história — disse. — Deglin, tem alguma nova para nos contar?

Deglin esboçou um sorriso tímido, olhou para Taby e indagou:— Ouviu falar do grande guerreiro Grunlige, o dinamarquês? Não? Sente-se, e

eu lhe contarei sobre ele antes que você durma.Todos se acomodaram. Deglin conhecia bem sua platéia. Falava lentamente,

enfatizando as palavras mais importantes, de olho nos homens para ver a reação.— Grunlige, o dinamarquês, era um homem muito forte, enfrentava quatro

touros e depois os matava para a festa do solstício do inverno. Embora poderosos, conhecia a honra e nunca fazia mal a quem não merecia. Um dia, quando ele e seus homens viajavam de volta à Dinamarca, foram pegos por uma massa de gelo flutuante. Grunlige saltou no primeiro bloco de gelo e começou a parti-lo com as mãos nuas. Seus homens imploraram que ele protegesse as mãos, mas ele não lhes deu ouvidos. Quebrou o primeiro bloco de gelo e só voltou para o barco quando todos não passavam de estilhaços inofensivos como a areia da praia. Olhou para as mãos que estavam azuis como a água gelada e disse: "Não posso sentir minhas mãos". Seus homens as envolveram em peles e mantas, mas era tarde demais. As mãos estavam congeladas. E quando descongelaram no começo da primavera, estavam enrugadas e pareciam pequenas garras, e não havia mais força nelas. Todos lamentaram a situação de Grunlige, menos seus inimigos, que se regozijaram em segredo e festejaram. — Deglin fez unia pausa, sorriu e olhou para Taby. — E isso é tudo que lhe contarei por esta noite.

Houve um suspiro coletivo e resmungos, pois todos sabiam que Deglin só terminaria a história quando desejasse.

— Esta é uma nova história só para você, Taby — Merrik disse ao menino, que se recostou contra seu peito. — Obrigado, Deglin. Vai nos contar mais, em breve?

— O menino precisa dormir agora. Não quero desperdiçar palavras com esse bando de barbados quando Taby está tão sonolento que nem pode apreciar minha história.

Laren esgueirou-se para a tenda, o coração pulsando com palavras e idéias que transbordavam e queriam saltar de sua boca. Agarrou-se a elas ao se deitar entre duas peles de lobo para dormir. Que fábula maravilhosa, mas era importante que continuasse a...

— Taby dormirá conosco — Merrik informou, colocando o menino ao lado dela. Acomodou-se e, logo depois, adormecia. Quando Laren gritou, ele tinha a espada na mão direita, e a faca na esquerda em questão de segundos.

Ele se debruçara sobre ela, tão perto que Laren podia sentir a respiração quente em sua face e sentir o hálito de vinho.Não teve medo a princípio, apenas ficou confusa, pois era tarde da noite, e ela dormia profundamente. Obrigou-se a abrir os olhos para encará-lo. Enxergou-o claramente, e ficou paralisada de medo. Quis gritar, mas a voz não passou pela garganta. Mãos rudes a agarraram, e ela recuou, tentando livrar-se, fugir, mas os dedos enterraram-se em sua carne. Aquilo não era um sonho, ou brincadeira de alguém, e aquele homem estava ali para lhe fazer mal.

Taby!

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O menino fora até seu quarto e na inquietação de criança, deitara-se ao lado dela. Ela o abraçara na tentativa de acalmá-lo e cantara os feitos do tio e d<> pai até que ele adormecesse de novo.

— Eu a peguei — o homem disse.Enfrentá-lo agora não resultaria em nada de bom. Foi a coisa mais difícil que

Laren já fizera, mas ela obrigou se a ficar com os músculos lassos. E, para seu alívio, as mãos do homem se afrouxaram, e ele resmungou:

— Acho que a menina desmaiou de pavor.— E bom que tenha desmaiado — murmurou outra voz. — Ouvi dizer que é

arisca como um lobo. Peguei a criança. Não é maior que um pão. Amarre as pernas e os braços dela e depois a carregue. Há muitos guardas aí fora, para meu gosto, mais do que o prometido Quero acabar com isso bem depressa.

Laren forçou-se a ficar absolutamente largada. Contou cada segundo, sentindo o terror contrair seus músculos, a garganta se fechar, querendo puxar o ai mas sem se atrever. Por fim, o outro homem afastou se com Taby. Num gesto rápido, ela agarrou o castiçal de bronze ao lado da cama, ergueu-o e bateu contra a cabeça de seu algoz. Ele berrou, afastando-se. Laren ficou de pé, e começou a chutá-lo na barriga e nas pernas, acertando-o com o castiçal vezes seguidas, derrubando-o de joelhos. Viu o sangue espirrar de um golpe ao lado da cabeça. Então, o outro homem voltou correndo, atônito diante da cena, e ela percebeu que não tinha chance contra os dois. Ele jogou Taby sobre a cama e virou-se de mãos estendidas. Laren saltou para trás, e gritou tão alto quando pôde.

Eram dois contra ela agora, as mãos a se enterrarem em suas carnes. Estavam furiosos, e ela continuou gritando até que o homem acertou um soco em seu queixo. Mesmo enquanto a escuridão toldava sua mente, ela imaginou, antes que todos os pensamentos fugissem: Por que ninguém vinha ajudá-la?

— Maldição, acorde!O grito dissolveu-se num gemido profundo. Merrik jogou a espada e a faca de

lado e agarrou-a pelos ombros, sacudindo-a.— Acorde!— Não machuque minha irmã!De repente, Taby estava sobre as costas de Merrik, esmurrando-lhe os

ombros, puxando-lhe os cabelos. Laren acordou de vez, viu o homem sobre ela, e gritou de novo. Ergueu os punhos para agredi-lo. Não, não, espere, espere... Aquele era Merrik, e Taby estava em suas costas, gritando, a esmurrá-lo, enquanto soluçava, as lágrimas escorrendo pelas faces, num choro tão dolorido que ela quis uivar com o sofrimento do irmão.

Sentiu a humilhação transpassá-la. E raiva, por ter sucumbido ao medo e gritado como uma tola. Fazia meses que não sonhava com aquela noite, mas o pesadelo ressurgira, mais intenso. Já devia ter se acostumado com todo aquele terror, ainda tão fresco em sua memória. Só que, desta vez, ela tinha acordado Merrik e assustara o irmão. Respirou fundo e tentou imprimir calma à voz.

—Taby, está tudo bem, meu querido. Não bata em Merrik. Ele estava tentando me acordar. Tive um pesadelo, e foi muito real, mas acabou agora. Vamos, Taby, venha cá.

Embalou o irmãozinho, cantando para ele, o rosto enterrado no pescoço do menino. Por fim, Taby afastou-se e ajoelhou-se ao lado dela.

— Foram os homens maus de novo?— Foi só um sonho, meu amor.— Que homens maus? — Merrik indagou.— Sinto muito se o acordei. Foi apenas um sonho estúpido, nada mais.—Compreendo — ele murmurou, e levantou-se Olhou para ela, e então, saiu

da tenda.

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Laren ouviu os resmungos quando Merrik berrou para os homens se levantarem.

— Você não deve contar nada a ele sobre antigamente, Taby. Ele não entenderia. E você nem se lembra muito bem. Faz muito tempo, muito tempo.

—Então, porque você ainda tem sonhos maus sobre isso?— Foi um tempo ruim. Estamos seguros agora.— Merrik tomará conta de nós.Laren detestou a confiança, a certeza absoluta do menino. Durante os

últimos dois anos, aprendera que os homens eram brutais, indignos de confiança, criaturas que se apossavam daquilo que desejavam sem remorso, sem consciência. Aprendera que confiar em algo ou em alguém poderia conduzir à morte ou coisa pior. Recordou-se da surra que tinha levado de Thrasco. Inconscientemente, encolheu os ombros.

— Não, querido, isso não é responsabilidade de Merrik. Ele não nos conhece direito, e as pessoas não se sentem bem cuidando de gente que não é de sua família de sangue. E só por enquanto. Depois, eu tomarei conta de nós. Ainda estamos muito longe de casa, mas em breve... muito em breve, nós voltaremos.

Será que acreditava em si mesma? Poderia voltar quando não conhecia a face do inimigo? Laren imaginou, como já fizera incontáveis vezes durante os últimos dois anos, como estaria seu lar agora.

Com hurras e preces a Thor, os homens finalmente empurraram o escaler para o golfo de Riga, seis dias mais tarde. Uma violenta tempestade testara o ânimo e a tempera de todos, mas só durara um dia e meio. Quando o barco deslizou para as águas azuis do golfo, ouviu-se um profundo suspiro de alívio.

Ninguém os atacara.Ao acamparem para a noite, Laren resolveu fazer um jantar delicioso. Suas

costas já haviam se curado, mas ela ainda se cansava depressa, e isso a enraivecia. Quanto a Taby, o rostinho não estava mais encovado. Caminhava ereto, e não vergado de fome. Tinha luz nos olhos, não a estúpida aceitação, ou as perguntas mudas que ela não poderia responder. E a risada, era o melhor de tudo. Pouco antes, quando todos festejavam a travessia segura, Merrik erguera Taby no ar, rodando-o sobre a cabeça. O menino rira, aos gritos. Era muito bom ver e ouvir a alegria de seu irmãozinho.

Os homens trouxeram um cervo para o jantar. Laren cortou a carne em pedaços grossos e temperou-os com viburno e raiz de zimbro, e depois os envolveu em folhas de bordo cobertas com a gordura da caça, antes de assá-los. O aroma da comida deixou a todos com água na boca.

Depois da refeição, os homens, felizes e de barriga cheia, pediram a Deglin que terminasse a história de Grunlige, o dinamarquês.

Mas Deglin recusou-se a atender. Estava emburrado por ter sido obrigado a escovar as peles que Merrik reservara para presentear a família. Ele era um poeta não um escravo, não deveria ter de cumprir uma tarifa indigna de seu talento e habilidade. Laren, sim, era uma escrava, ela é quem deveria cuidar das peles.

Alegando que suas entranhas estavam revoltada; com a comida horrível que ela preparara, Deglin in ternou-se entre os pinheiros, sob os protestos dos homens, revoltados com tamanha injustiça. Afinal, os bifes estavam deliciosos.

Foi quando Laren disse:— Talvez eu possa continuar a história no lugar dele. Os homens a fitaram

como se ela tivesse perdido o juízo. Ela era uma mulher. Podia cozinhar, mas, contar uma história?

Ela os encarou de volta, séria, sem dizer nada. Taby, sentado entre as pernas de Merrik e recostado ao peito dele, deu sua opinião:

— Conte, Laren, suas histórias são maravilhosas.

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— Isso mesmo — disse Oleg, sem muita convicção. — Não temos nada mais a fazer. Conte.

— Estou de barriga cheia e não me importo com o que chegar aos meus ouvidos — murmurou o velho Firren. — Vá em frente, moça.

Merrik não disse nada, mas Laren sabia que ele, como os outros homens, acreditava que mulher alguma poderia desfiar uma história que prendesse o interesse de um homem. Todos sabiam que as mulheres não tinham talento para isso. Os escaldos eram homens, só homens.

Ela emprestou um tom baixo e suave à voz, e inclinou-se ligeiramente para lhes atrair a atenção, algo que presenciara nos escaldos de seu tio, muitas vezes.

— Não posso sentir minhas mãos — disse Grunlige.Seus homens se entristeceram diante da visão das horríveis garras

contraídas. Parecia que toda a sua poderosa força, sua milagrosa coragem o abandonara. Não demorou muito para que ficasse encolhido, ombros e cabeça inclinados, olhos no chão, sem esperanças.

Não muito tempo depois disso, Grunlige foi embora sozinho, e muitos acreditaram que ele se retirara para morrer. Não tinha mais força e, portanto, nenhum motivo de orgulho, já que nela jazia o seu valor e seu senso de grandeza.

Porém, três dias depois, ele voltou, lívido e silencioso. Seus inimigos se regozijavam, mas em segredo, pois não era prudente falar com satisfação daquilo que recaíra sobre ele.

Alguns começaram a fazer planos. Eram homens maus, não conheciam a honra. Não eram vikings, nem guerreiros valentes, mas saxões assaltantes, de espírito mesquinho, e conheciam apenas a traição e a deslealdade. Assim, resolveram atacar seus domínios. Nos meses que se seguiram, eles se apoderaram de seus navios de guerra, roubaram seus escravos, seu ouro e sua prata. Mataram seu povo e se apossaram do gado e das ovelhas.

Até mesmo tentaram seqüestrar Selina, a bela esposa de Grunlige.Seus homens reclamavam, implorando a Grunlige para ajudá-los, mas ele

não dizia nada, meneava simplesmente a cabeça e bebia cerveja até ficar sem sentidos a ponto de os escravos precisarem carregá-lo para a cama.

Então, num dia de verão, logo depois do amanhecer,Parma, um malvado assaltante de Wessex, conseguiu se esgueirar até a

fazenda onde Selina vivia. Era uni homem alto, moreno, de sobrancelhas grossas. Odiava Grunlige, e sabia que a melhor vingança contra ele não seria a própria morte, mas a perda da esposa amada.

Grunlige matara seu irmão que, embriagado, açoitara até a morte um dos cavalos prediletos do dinamarquês. Essa era a razão do ódio de Parma.

Naquela manhã, ele viu Selina, e ela estava sozinha, sentada ao lado de um riacho, olhando para o nada, pensando no marido e no triste fato que lhe acontecera. Ele esgueirou-se, sem fazer ruído, e quando estava logo atrás dela, disse:

— Meu nome é Parma, e vim para levá-la, Selina, esposa de Grunlige. Eu a tratarei como trataria Grunlige, fosse ele meu prisioneiro. Quero tê-la de joelhos, implorando por misericórdia. Depois, irei açoitá-la como Grunlige açoitou meu irmão.

Ela não demonstrou medo, mas ergueu os olhou para o homem mau, e disse:—Se me tocar, Parma, vai lamentar-se até o instante em que a respiração

deixar seus pulmões.Ele riu ruidosamente, pois Selina não passava de uma mulher sem

importância. Apenas uma mulher, mas a mulher de Grunlige, e por isso Parma a queria. Inclinou-se para agarrá-la. Mas quando suas mãos tocaram-lhe os braços, algo muito estranho aconteceu.

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Laren sorriu e virou-se para Merrik.—Meu irmão está quase dormindo. Continuarei a história, se vocês quiserem,

amanhã à noite. Creio que não os matei de tédio.Os homens a fitaram, carrancudos, resmungando. E Roran gritou:— O que foi que aconteceu? A única coisa estranha quando um homem toca

uma mulher é que ele a deseja, e isso não é estranho, ora!— Taby não está cansado, está, garoto?— Que negócio é esse?Merrik não se manifestou, apenas olhou para Laren com um ligeiro sorriso.

Então, de repente, soltou uma gargalhada. Logo, todos estavam rindo e gritando. E antes que Laren fosse para a tenda, para passar a noite, quatro moedas de prata foram colocadas na palma de sua mão.

Quatro moedas para contar uma história. Conforme ela mergulhava no sono, imaginou o que teria Parma sentido ao tocar os braços de Selina.

Remaram para o mar Báltico um dia depois, pois não havia vento. Merrik estava calado, pensativo, talvez imaginando novas aventuras, pensou o velho Firren, ao manobrar o escaler para longe de um tronco afundado.

—Estaremos em casa em cinco dias se um bom vento ajudar — Merrik disse a Laren, naquela tarde. — Os homens resolveram que Thor exige um sacrifício de nós para nos mandar vento suficiente para inflar a vela. Decidi que você o cumprirá.

Ela quase tropeçou ao recuar depressa. Sentiu a mão de um homem em suas costas e arrojou-se para frente a fim de fugir dele. Caiu nos braços de Merrik. Ele não a tocou, simplesmente sorriu.

— O sacrifício não é o de uma virgem. Você só tem de continuar a história de Grunlige esta noite, caso contrário Thor não nos dará vento para nossas velas.

— Depois de terminar de preparar nossa refeição— Eller emendou. — Não sei o que escolher se tiver de optar.—Já pode sentir o cheiro da comida, não pode?— Roran riu com gosto.— Sonho com um faisão, talvez cozido com verduras e ervilhas e cogumelos.— Encherei suas panças — ela brincou, e então se enregelou diante da

expressão de Deglin.Era de pura fúria. E a fúria de um homem poderia bem depressa transformar-

se em violência. Deglin não era um guerreiro como Merrik. Para ele existia somente o homem e o escaldo, e os dois estavam incutidos em sua mente. Duas coisas que ela afrontara. Laren pensou nas quatro moedas de prata que havia escondido na barra das calças. Só poderia comprar a liberdade com prata. Não com sorrisos doces e comida boa. Apenas com prata.

— Contarei o que aconteceu só se prometerem não roncar alto do lado de fora de minha tenda — disse.

— O que quer dizer com sua tenda, moça? — Deglin indagou num frio tom de voz. — Merrik dorme lá com você. Nós é que deveríamos pedir que não grite tão alto quando Merrik a toma de noite.

Sem erguer a voz, Merrik disse:— Basta, Deglin. Sua própria vaidade e presunção provocaram isso. Você se

recusou a continuar a história. Não culpe a moça.—Ela não é nenhum escaldo! — Deglin berrou. — Não é nada! E uma escrava,

um refugo de causar pena que você deveria ter matado e deixado em Kiev! Não permito que manche minha reputação com as tentativas estúpidas de me imitar. Ela não passa de uma mulher, e uma mulher não tem utilidade a não ser para aquilo que tem entre as pernas e com um caldeirão. Só serve para isso, mais

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nada.Merrik levantou-se devagar. Entregou o menino ainda adormecido a Cleve,

que estava mudo como uma tumba. Então, assomou sobre Deglin, que encarava Laren com ódio.

— Eu lhe disse para não culpá-la — repetiu friamente.— Mas ela...Merrik agarrou-o pela túnica. Puxou-o para bem perto.— Chega, ou eu o farei se arrepender!Com a voz agora suave e suplicante, Deglin murmurou:— Eu não queria insultá-lo, mas ela... ah, o senhor tem razão. Eu deveria ter

feito o que o senhor queria sem mostrar meu desprazer, sem me sentir vexado. Continuarei a história. Não quero mais privar os homens de diversão. Não é preciso que a ouçam de novo.

Merrik soltou-o e voltou a sentar-se no baú de seus pertences. Olhou para Laren, mas ela estava de cabeça baixa, e ele não conseguiu ver sua expressão.

—Esta noite, Deglin continuará a história de Grunlige, o dinamarquês.Ninguém disse uma palavra. O escaler continuou a deslizar suavemente pela

água. Sim, tudo estava como deveria ser de novo, e Laren sentiu a raiva ferver dentro de si. Contudo, aprendera nos últimos dois anos a ocultar seus sentimentos. Olhou para Deglin. Ele sorria, e não era um sorriso bonito.

As quatro moedas de prata. Não haveria mais paro se somar a elas.Depois do jantar, quando os homens estenderam-se sobre as peles, perto do

fogo, de barriga cheia, Deglin levantou-se, esticou-se a plena altura, tossiu atrás da mão e tomou um gole de cerveja. Olhou para todos. E começou a narrativa:

Quando Grunlige, o dinamarquês, destruiu as próprias mãos no gelo, percebeu que fracassara. Ele se acreditava são e salvo com sua própria força e, agora, matara parte de si mesmo.

Era um homem orgulhoso e, ao olhar para as mãos, viu as garras enrugadas, as unhas azuis curvadas nas pontas. Chamou o filho e disse:

— Innar, para mim, tudo acabou. Lego tudo que tenho a você. Não se mate como eu fiz.

Três dias mais tarde, seus homens o encontraram morto no fundo de uma ravina. Ordenara a um deles que lhe decepasse as garras mortas, e elas jaziam lá, ao sol da manhã, enrugadas e enegrecidas, e todos souberam que ele se esvaíra em sangue até morrer, olhando para as mãos.

Seu filho, Innar, não chorou, pois julgou que o pai fizera a coisa certa. E como o pai, ele era orgulhoso, mas não tinha grande respeito pelo velho cuja semente o criara. Não tinha desejo de partir um touro ao meio, nem desejo de dobrar os outros à sua vontade, pois não possuía a força de seu pai, de qualquer forma. Queria, na verdade, amealhar fortuna. 0 que seu pai lhe deixara não era o suficiente. Por isso, reuniu os homens e lhes disse que zarpariam para Kiev. No caminho, apresariam escravos para vender no mercado de Khagan-Rus. Na viagem, mataram muitos homens e capturaram muitas mulheres. E Innar fez todos enaltecerem sua perícia e sagacidade e proclamarem que fora ele que matara as tribos.

Os homens começaram a se entreolhar, demonstrando raiva, embaraço, incerteza. Alguns murmúrios se elevaram.

Deglin apressou-se a continuar:Innar tornou-se conhecido por sua habilidade em negociar escravos. Um dia,

viu uma garota magra e vestida de trapos. Então, ele resolveu que a queria e assim comprou-a e a trouxe na volta para casa. Não sabia que ela era cheia de maldade, que detestava ser mulher, que queria ser um homem, ter os talentos e as habilidades de um homem, e o gênio de um homem. Ela tentou fazer as coisas

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que os homens faziam e fracassou, e enraiveceu ao perceber que era um ser inferior.

Os murmúrios eram mais altos agora, abafando as palavras de Deglin. Os olhos se voltaram para Merrik, que continuava impassível. Então, com uma expressão pensativa, ele ergueu a mão para aquietar os homens.

— Você não quer continuar a história tal como é, Deglin.—A voz era suave, mas Laren sentiu um calafrio de absoluto terror. — Diga-nos o que aconteceu a Innar, esse homem que não tinha respeito pelo próprio pai.

— Ora, meu senhor — Deglin retrucou, depois de um momento. — Ele mudou, por certo que mudou. Passou a respeitar o pai que lhe dera todas as, dádivas que ele agora usava para ser bem-sucedido Conquistou as honras e a consideração dos homens pois era um mercador acima de todos os outros mercadores. Matou a escrava má. Levou para casa muita prata e ficou mais rico do que o pai algum dia sonhara ser. Casou-se com a moça que o pai escolhera para ele, e teve muitos filhos. Assim, Grunlige, o dinamarquês, foi sucedido por aqueles que não envergonharam seu nome.

Houve um longo silêncio, quebrado finalmente por Oleg, que disse num tom de desgosto:

— Sua história não vale nada, Deglin. Está cheia de veneno mal-disfarçado e de mentiras. Você é como um inseto que zumbe por aí. Investe para atacar, depois some de novo, escondendo a covardia nas palavras. Eu preferiria ouvir a moça nos contar o que aconteceu a Grunlige, o dinamarquês.

— A moça não contará mais nada! — Deglin berrou, sentindo-se insultado. — Ela não tem nem a imaginação nem a habilidade. E uma escrava, nada mais, apenas uma escrava miserável. Não enxergam? Ela é má, semeou a discórdia entre nós. Lançou um sortilégio sobre Merrik, para enfraquecê-lo!

Oleg tirou a faca do cinto. Não havia qualquer expressão em seu rosto, nada que demonstrasse sua intenção.

— Calma, Oleg — disse Merrik. — Deglin deixou novamente a boca dominar a lógica de seu cérebro. Não é verdade, Deglin?

Deglin respirou fundo, recuperando o controle.— Fui descuidado. Sim, meu senhor, não dei ouvidos ao que deveria. Contarei

outra história, uma que achará mais de seu agrado.Oleg meneou a cabeça, embainhou a faca e sentou-:• sobre a pele de lobo,

cruzando as pernas.—Vamos, Laren — murmurou. — Conte o que aconteceu quando Parma tocou

os braços de Selina sentiu algo estranho. Continue.Ela ficou em silêncio, pensando no que fazer. Não havia como decifrar a

expressão fechada de Merrik. Taby cochilava em seus braços, a cabeça apoiada no peito do viking. Alguns dos outros homens pediram de novo que ola prosseguisse com a narrativa. Laren olhou novamente para Merrik que aquiesceu com a cabeça.

Ela sorriu e se levantou. As palavras borbulhavam cm sua mente. Então, viu o braço erguer-se, mas não recuou a tempo. Deglin acertou-a na face com o punho, derrubando-a no chão, dentro da fogueira.

Merrik largou Taby no chão e saltou de pé, mas Cleve foi mais rápido. Correu para Laren e arrastou-a para longe do fogo, ainda sem sentidos pelo soco que Deglin lhe dera. A perna direita das calças estava queimando, as chamas a consumir a lã, soltando uma fumaça preta. Cleve escavou a terra com os dedos, jogando-a sobre as pernas de Laren e esfregando furiosamente. No mesmo instante Merrik tirou a própria túnica e estendeu-a sobre Laren, abafando o fogo.

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Depois, olhou para a lã queimada, que deixara um buraco nas calças.Laren virou-se devagar de lado, e ele a fitou.— Você está bem?Ela o encarou por um momento, o rosto sem co Pestanejou e então tocou a

face onde Deglin a atingira. Sacudiu a cabeça, como se para clareá-la. O sangue pulsava rápido em suas veias, e o medo toldava seu cérebro.

Merrik apalpou-lhe a face, os dedos leves e gentis— O queixo não está quebrado, mas o rosto vai fie roxo. — Olhou para a

perna dela outra vez. — Sente-se.Laren obedeceu, calada.Ele rasgou a lã, desnudando-lhe a perna. Não estava muito queimada, mas a

pele do tornozelo até o joelho era de um vermelho escuro. A dor deveria ser grande, z quando Merrik a encarou de novo, viu apenas estupefação, e percebeu que Laren ainda não se dera conta do que havia acontecido e das conseqüências.

— Fique quieta — murmurou, e levantou-se.Virou-se. Oleg segurava Deglin pelo pescoço. O escaldo ofegava e se debatia,

mas Oleg era forte e estava muito zangado.Merrik aproximou-se, e parou, na frente do escaldo, sem dizer nada.— Eu não pretendia feri-la, só castigá-la — Deglin resmungou. — Ela mereceu

o soco na cara, mas caiu no fogo e não foi culpa minha. E uma escrava, senhor, não pode haver desforra.

Cleve rosnou algo atrás de Merrik, as mãos fechadas em punho, o corpo tenso. E os homens estavam todos de pé, o choque do espanto transformado em fúria. Aguardavam ansiosos para ver o que Merrik faria. A decisão era sua, não deles.

Merrik ouviu Taby chorando.—Cleve, leve o garoto até a irmã — ordenou. — Oleg, traga nosso escaldo

aqui, ao lado do fogo. Sem dúvida ele está com frio, pelo menos provou que seu cérebro está frio e sem razão ou senso. Vamos aquecê-lo, tal como ele fez com Laren.

Oleg sorriu e arrastou Deglin até a fogueira. Os homens todos se aproximaram, formando um círculo, calados, à espera.

— Dê-o para mim — disse Merrik.Oleg empurrou Deglin na direção de Merrik, que o agarrou pelo pescoço e o

forçou a se abaixar no chão. Sem aviso, pegou a perna direita do homem e colocou-a nas chamas, segurando-a lá.

Deglin viu com horror as chamas lamberem suas calças e subirem pela perna. Sentiu o calor escaldante, o tecido incendiar-se, o fogo chegando à carne. Berrou e se debateu, lutando desesperadamente para se safar.

Merrik soltou-o só depois que o pano virará cinzas. E observou, sem qualquer emoção, o escaldo arrastar-se e rolar pela terra, gritando, arquejando, engasgando de dor.

—Você tem menos senso que um prego, Deglin. Sua falta de controle é revoltante. Não o matarei desta vez. Mas preste atenção, nunca mais faça mal a alguém sem minha permissão. Estamos entendidos?

Deglin estava desvairado de dor, tomado de espanto, aturdido com o que Merrik lhe fizera simplesmente porque ele havia esmurrado uma escrava. Sentiu o cheiro da própria carne queimada, e sua garganta encheu-se de vômito e ódio. Mas, disse, num arquejo:

— Sim, meu senhor, eu entendo.— Ótimo — murmurou Merrik, e afastou-se. Viu que Laren estava sentada

agora, e olhava par M a perna queimada. Cleve estava ao lado, segurando Taby, que engolia as próprias lágrimas. Merrik virou se para Eller.

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—Traga-me o creme curativo que minha mãe mandou junto com a sacola de ervas em minha tenda.

Depressa. — Agachou-se e ergueu a face de Laren — O creme vai diminuir o calor e a dor. E o mesmo que passei em suas costas, e a aliviou, não é?

Ela aquiesceu, sem tirar os olhos da perna queimada. Merrik viu a mancha arroxeada alastrar-se pela face dela. Não era justo. Ela

já tinha sofrido demais e, agora, isso.Eller estendeu-lhe o creme.— Tenho outro par de calças, Merrik.— Traga-as. Ela não pode ficar nua perto de um bando de homens.Pegou o creme numa das mãos e segurou-a sob o braço com a outra.

Amparou-a até chegarem à tenda. Quando a deitou de costas, disse:— Vou tirar essas calças de você.O que importava? Ele já vira seu corpo, já cuidara de suas costas, dera-lhe

banho. Quando ele se ajoelhou a seu lado, Laren não o encarou. Fechou os olhos ; ao sentir as mãos de Merrik em sua cintura, desa- : marrando a corda que segurava as calças. Depois, o \ frio da noite arrepiou-a, assim que ele puxou as calças para baixo. Foi cuidadoso, ela tinha de admitir, mas quando um pedaço de lã queimada grudou em sua perna, ela se encolheu, gritando de dor.

— Sinto muito. Eu sei que dói. Deite-se.Ela ficou imóvel, apesar da dor. Sentia-se impotente e odiou o fato. Merrik

estendeu uma manta sobre ela, deixando apenas a perna exposta. De repente, ela sentiu os dedos tocarem ligeiramente a pele queimada, esfregando o creme. Quis berrar, mas obrigou-se a suportar. O creme trazia uma estranha mistura de dor e alívio, de quente e frio, seguido de uma insensibilidade abençoada, tal como acontecera em suas costas.

Quando Merrik terminou, sentou-se nos calcanhares.— Você vai ficar bem. A queimadura não é tão feia. Minha mãe faz o creme

com suco do fruto do sabugueiro, ela me contou. Vai gostar de minha mãe, ela pode ser feroz como um guerreiro num

momento e gentil como uma criança no outro. Conhece tudo sobre poções e remédios. Quando eu era menino, estava lutando com Rorik, meu irmão mais velho, e caí na vala da fogueira, e ela...

Laren sabia que ele tentava distraí-la, tentava mantê-la concentrada em sua voz e em suas palavras, não na dor da queimadura. E ela procurou ouvir a voz suave e profunda, e se esforçou em pensar no que ele estava dizendo.

—Você ama sua mãe — murmurou, quando Merrik calou-se por um momento.— Sim, ela e meu pai são os melhores pais que conheço. Mesmo quando

odeiam, fazem isso melhor do que qualquer um. Mas não deixam de ter defeitos, entenda bem. Lembro-me como odiavam a esposa irlandesa de Rorik, julgando-a uma pessoa má. Mudaram de opinião porque viram que estavam errados sobre ela.

— Obrigada, Merrik. Você é gentil.— Espero não precisar usar este creme de novo em você. Não sobrou muito,

pois minha mãe só pode fazê-lo nos meses do outono.—O que mais poderia acontecer? Você não esta longe de sua casa agora,

está?— Não, mas, mesmo assim, você precisa aprende a ser mais rápida.— Da próxima vez — Laren murmurou, sentindo pele ficar fria e entorpecida

—, serei eu a causar dor.—Uma escrava não causa dor — ele disse, sem qualquer emoção. — Virou-se e gritou: — Oleg, traga um copo de hidromel.

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Instantes depois, Oleg entrou na tenda sem dizer nada, olhou para Laren e entregou o hidromel e saiu depressa.

— Beba tudo — murmurou Merrik, levando a caneca aos lábios de Laren. — Vai fazer você dormir.E ela bebeu. Sobreviveram a uma tempestade de dois dias inteiros no mar

Báltico antes de seguir até o fiorde de Oslo, para Kaupang. Estranho, mas Laren não ficou assustada, ocupada que estava tentando acalmar Taby. O menino estava tão molhado e miserável como todos, e não havia nada que ela pudesse fazer a respeito. Contou-lhe uma história atrás da outra. Sua face estava roxa e amarelada do soco, e inchara. Não doía, mas a fazia parecer uma bruxa, Laren imaginou. Era sua perna que a incomodava, pois doía e latejava, mas, por outro lado, a de Deglin também doía, e cada vez que ela pensava nisso, a dor parecia diminuir. Merrik o obrigara a remar por tanto tempo e dar duro como todos os outros homens.

Laren imaginou se ele iria morrer, pois gemia sobre o remo e reclamava incessantemente. Os homens, porém, o ignoravam. Mas Deglin era forte e, naquela quinta manhã quando o sol brilhava no céu e os ventos se aquietaram em brisas suaves que apenas tinham força suficiente para inflar as velas, ela viu que ele não adoecera nem reclamava mais. Estava calado, mudo, e ela desconfiou de tal comportamento. Homens silenciosos, por sua experiência, normalmente estavam ruminando vingança. Deglin percebeu que ela o fitava, e Laren apressou-se em desviar os olhos para longe.

Desde aquela noite, nenhum dos homens lhe pedira para contar a história de Grunlige, o dinamarquês. Se lhe pedissem para continuar a história, ela concordaria. Afinal, Deglin não merecia outra coisa de sua parte.

Havia gaivotas ao alto, grasnando conforme mergulhavam perto do escaler e depois se desviavam no último instante. Laren ouviu um homem berrar quando a asa de uma delas acertou-lhe a face. Dezenas de cormorões enfeitavam o caminho, em bandos reunidos numa formação em arco. E havia uma nova vitalidade na conversa dos homens. Todos falavam de casa, das esposas, dos filhos, das lavouras. E se vangloriavam da fortuna, cada um deles mais rico do que era apenas quatro meses atrás.

Quanto a Merrik, todas as noites ele continuava a esfregar o creme na perna de Laren, mesmo que ela pudesse fazer isso e lhe dissesse que podia. Ele simplesmente meneava a cabeça e continuava com a tarefa.

A cidade comercial de Kaupang era protegida por uma paliçada pontiaguda de madeira em forma de meio círculo. Havia uma meia dúzia de docas que se estendiam para o cais, e foi na primeira delas que Merrik fez os homens conduzirem o escaler. Quando pararam, ouviu-se um hurra estrondoso. Estavam em casa. Ou quase.

Não fariam nenhum comércio ali desta vez, mas os homens queriam mulheres e não havia escravos para isso na viagem de volta de Riev. Estavam ávidos por uma última noite de loucura e liberdade antes de retornarem às suas famílias. Laren notou. E compreendeu. Eram homens e esse era o jeito deles.

Não os detestava por isso, simplesmente sentia-se aliviada de que nenhum deles a quisesse. E isso era graças a Merrik.

Foi o que disse a ele ao pisar em terra firme.— Obrigada por me proteger.— Não consegui — ele retrucou. — Deglin a machucou seriamente.— Não é isso que quero dizer. Os homens... vieram aliviar a luxúria aqui e me

pouparam. Agradeço a você por isso.— Olho vivo — ele disse aos guardas que ficariam no barco.—Voltaremos em

seis horas e será a vez de vocês. — Então, olhou para Laren. — Pode caminhar?

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Ela fez que sim.— Cleve tomará conta de Taby. Gostaria de um banho?Tiveram permissão da guarda para entrar pelos portões duplos, e Laren se

viu numa área repleta de gente e pequenas casas e lojas de madeira, todas ligadas por calçadas de tábuas. Parecia que todos estavam ocupados vendendo alguma coisa, fazendo algo para vender, berrando para trocar ou barganhar mercadorias. Ela sorriu, querendo parar apenas por um momento, só o tempo suficiente para olhar as belas tigelas de pedra-sabão exibidas na frente de uma loja. Merrik, porém, não atendeu. Então, ela viu uma coleção de armas, e desejou poder comprar uma faca, mas julgou que suas quatro pequenas peças de prata não seriam o bastante. Merrik levou-a até a casa de banhos onde uma velha senhora a mediu de cima a baixo, olhou para as calças usadas e a túnica suja, estalou a língua e mandou que ele a levasse para dentro.

Foi difícil, mas em questão de uma hora, Laren havia lavado os cabelos e o corpo, conseguindo manter a perna seca. Usava a mesma túnica suja quando Merrik entrou na penumbra da cabana e jogou-lhe uma muda de roupa no colo.

— Está limpa. Vista. Aí tem um vestido e uma túnica. Não quero chegar em casa com você parecendo um moleque esfaimado.

— Obrigada — ela murmurou, sorrindo.—Quando terminar, iremos ao sapateiro. Você precisa de um calçado.Quando voltaram ao escaler, horas depois, Laren estava de barriga cheia,

bem vestida e com sapatos de couro macio nos pés. Não se via daquele jeito fazia dois anos. Sentia-se como... Não encontrou na mente a sensação exata.

— Estou com medo — murmurou por fim, quando caminhavam devagar lado a lado. Ela estava mancando, mas Merrik não fez menção de carregá-la ou ajudá-la. Laren gostou da atitude.

— Por quê?— O que fará comigo e com Taby? O que será de Cleve? Ele franziu a testa, e

disse apenas:— Saberá quando eu lhe disser. Quero ver se Cleve comprou as roupas certas

para Taby.O garotinho estava limpo e tão bem vestido quanto ela. Mas o que a deixou

surpresa foi que Cleve também usava uma nova túnica e calças novas, e tinha sandálias de couro nos pés. Estava magnífico. Sorriu-lhe e estufou o peito de satisfação. Era a primeira vez que Laren o via sorrir. E sentiu-se invadida por uma onda de emoções. Mal percebeu a cicatriz que ficava ainda mais horrível quando ele sorria. Não era importante.

Empolgada, ela não conseguiria impedir o gesto mesmo que tivesse pensado a respeito. Virou-se para Merrik e gritou de alegria. Depois, abraçou-o com força.

— Obrigada — disse, ainda a enlaçá-lo pelo pescoço. No entanto, ao fitá-lo, percebeu o que fizera, que o tocara, que o abraçava com força, tratando-o como se ele fosse um amigo fiel, um parente ou mesmo um marido. E se deu conta naquele instante de que Merrik era um homem; um homem grande, um belo homem, e estar apertada contra ele, sentir sua carne sob os dedos lhe trazia prazer. Um estranho prazer que ela nunca sentira antes, mas que estava lá e era profundo dentro dela. Espantou-se, chocada, mas não o soltou. Apertou-o ainda mais, sentindo o prazer que isso lhe dava.

Merrik ficou estático, os braços caídos ao lado do corpo. E não disse nada. Por fim, Laren percebeu que ele estava imóvel como uma pedra. Ela o envergonhara com sua atitude. Não passava de uma escrava, embora ele a tivesse protegido. Soltou-o depressa e recuou um passo, de cabeça baixa.

Mas Taby não percebera que algo estava errado.Cleve colocou-o no chão e o menino tomou o lugar de Laren, correndo de

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encontro a Merrik, puxando-o pela túnica até que ele o pegou no colo. O menino passou os bracinhos em torno do pescoço de Merrik, e o abraçou com toda a força que tinha, rindo.

— Sou um príncipe — disse. —Você comprou roupas para um príncipe. Algum dia eu o recompensarei.

Merrik sentiu algo pungente e doce desdobrar-se no fundo de seu ser. Apertou a criança junto ao peito, sentindo o cheiro doce do menino, adorando o som daquela risada. Gostava daquele garoto e jamais deixaria que ele fosse embora, jamais.

—Eu lhe agradeço, príncipe Taby — murmurou, contra a bochecha macia, não tão encovada agora. Olhou para Laren. Ela estava parada, com Cleve ao lado, e olhava para ele e para Taby com uma expressão estranha que ele a princípio não entendeu. Era medo, percebeu por fim. Tinha medo dele? Não! Ou será que percebera que Taby era seu agora? O que ele sentira quando Laren se apertara tão espontânea e completamente contra seu corpo fora uma onda de luxúria só porque não tinha uma mulher fazia um longo tempo. Desviou os olhos dela e afagou os cabelos do menino. Franziu a testa. Taby ainda estava muito magro, os ossinhos saltados, as costelas pontudas.

Fechou os olhos por um instante, sentindo apenas o calor do corpo da criança invadi-lo, preenchendo-o com um sentimento de correção, da certeza que aquele pequeno ser humano nascera para seus cuidados, para a sua guarda. Quanto a Laren, ela nada mais era do que a irmã de Taby. E, mais uma vez, ele ponderou: quem seriam aqueles dois, afinal?

Vestfold era uma terra imensa. Penhascos escarpados abraçavam o fiorde, subindo muitas vezes até se afogarem entre nuvens baixas. As colinas e montanhas se revestiam de abetos e carvalhos, algumas tão escarpadas e pontiagudas que Laren não conseguia se imaginar seguindo o caminho até o topo daqueles picos. O fiorde era como vidro polido, mas a correnteza estava a favor, e os homens falavam e brincavam, remando com vontade.

O ar era quente e suave, o sol brilhante. Que lugar incrível. Ela nunca antes imaginara algo assim. Não conseguia desviar os olhos da interminável extensão de penhascos que pareciam maiores a cada volta do fiorde.

— Este é o meu lar — disse Merrik. — Logo passaremos pelo vale Gravak. Tenho muitos primos que vivem lá.

— Vamos parar? — Laren indagou, ao ver a sombra de um sorriso nos lábios dele.

—Não. Quero voltar para casa. É estranho, mas sinto algo, uma sensação desconhecida que me devora. Não gosto disso.

Laren aprendera a não desprezar tais sensações quando surgiam.— Que sensações?—Eu não sei, mas fazem minha pele formigar. E dá vontade de me apressar,

pois há algo que não está certo em casa. — Merrik meneou a cabeça. — Não é nada, por certo que não é nada. Estou ficando bobo como uma mulher.

— Eu não sou boba.—Está certo. Estou ficando bobo como uma mulher que não é você.— Seu lar tem um nome?—Sim, geração após geração, a fazenda de meu pai é chamada de Malverne.

O nome é mais antigo do que estas montanhas de cada lado de nós, e ninguém sabe o que significa ou de que idioma provém.

—Malverne — murmurou Laren. — É uma palavra estranha e não a reconheço também, a não ser que... — Sua voz despencou como uma pedra caída de um dos imensos penhascos.

Ele arqueou a sobrancelha, esperando o resto da frase, mas Laren meneou a

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cabeça, e murmurou, num tom que soou falso aos ouvidos de Merrik:— Fale-me de seus primos.—Um deles é casado com uma mulher que não escuta. O nome dela é Lotti.Laren não podia imaginar uma coisa assim.—Egil, meu primo e marido dela, toma conta de Lotti desde que ela tinha a

idade de Taby. Ela consegue ler as palavras de seus lábios quando você fala, mas Egil também inventou sinais com os dedos para que possam conversar de um jeito mais fácil. É fascinante observar os gestos, os dedos voarem e depois ouvir os dois rindo. Podem brincar nessa linguagem das mãos. São muito felizes e têm quatro filhos. Lotti é especial.

Laren caiu em silêncio. Os homens remavam agora mais perto da praia e o penhasco assomava sobre eles, bloqueando o sol.

—Não sei se eu gostaria disso no inverno. Ouvi falar dos invernos aqui, é claro. Dizem que...

De novo, ela se calou, e Merrik não franziu a testa desta vez, mas esperou, impassível, olhando para as montanhas que passavam.

— Devem ser difíceis — ela completou, por fim.— Não mais do que a maioria das coisas. E de um tipo diferente de beleza.

Mas você tem razão, quando os dias são curtos, as montanhas e as árvores cobertas de neve, há uma mesmice que logo deprime nossos pensamentos. Passamos muito tempo dentro de casa durante os meses de inverno, pois a neve pode ficar tão profunda que se pode sair e afundar até a cabeça. — Ele fez uma breve pausa, e então acrescentou: — Ah, mas ficar sozinho no meio de uma floresta de pinheiros, sem nada mais além do silêncio e a absoluta brancura da neve recente, é algo que comove o mais frio dos homens.

— Ouvi dizer que os vikings guardam os animais dentro das casas durante o inverno.

—De fato, caso contrário eles morreriam congelados ao relento. Os animais de sobra são mortos, a carne defumada e seca para que possamos comer bem durante o inverno. E os restantes são trazidos para a casa-grande. — Ele sorriu com ar malicioso. — O cheiro não é tão ruim. A gente se acostuma. Mas quando a neve pára e o sol queima forte no céu, e o ar fresco enche tudo, ah... é isso que torna tudo perfeito por estes lados. — Respirou fundo, com uma expressão saudosa. Então, perguntou: — De onde você vem, Laren?

—Da Nor... — Ela se calou e começou a torcer as míseras trancas. — Não é importante, Merrik. Obrigada pelas roupas. Não me sinto mais um homem, e essa era uma sensação horrível que eu não gostava de sentir. Mas confesso que a liberdade de correr e me movimentar depressa sejam algo de que sentirei falta.

Merrik não insistiu e deixou-a em paz. Saberia tudo sobre ela e Taby muito em breve. Observou-a mexer nos cabelos, cabelos grossos e cacheados que ela dera um jeito de trançar, embora ainda estivessem muito curtos para isso, prendendo-os com pauzinhos no alto da cabeça. Mecham mais curtas caíam em torno da face e outras mais compridas desciam pela nuca. Mesmo com os fiapos ruivos escapando das trancas, ela parecia muito feminina, e ele teve de admitir para si mesmo que, em roupas de mulher, Laren estava encantadora. Na verdade, apesar da mancha amarelo-esverdeada na face, ela parecia bastante agradável aos olhos. Pelos deuses, ele pensou, com relutância, ela era linda com aqueles seus cabelos de um vermelho feroz faiscando com a luz do sol.

Merrik desviou os olhos para a linha da praia, que não tinha nada de praia com seus penhascos a despencar das alturas até as águas profundas do fiorde, numa linha contínua, sem a interrupção de areia ou pedras soltas, sem uma brecha. Pensou em Malverne outra vez, e sentiu aquela sensação de aperto agora familiar a lhe remoer as entranhas, uma frieza e um pavor. Detestou-se por isso,

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mas não havia nada a fazer, a não ser esperar.— Lá está Malverne — Eller gritou. — Não farejo nada, Merrik, mas lá está

Malverne! Olhem lá!Os homens esticaram o pescoço para olhar e logo começaram a gritar de

alegria.Oleg veio se postar ao lado de Merrik.—Foi uma boa viagem de negócios — disse. — Nossos baús estão cheios de

prata. As mulheres ficarão muito felizes com as belas peles que trouxemos.Merrik sorriu, expulsando as tolas sensações de inquietação para longe, já

descuidado como um garoto.— E mesmo, e o broche que eu trouxe para minha mãe a fará sorrir e me

encher com todas as comidas deliciosas que ela faz até minha barriga ficar redonda assim. — Fez um gesto em volta do abdômen.

Oleg caiu na risada.—Eu trouxe um bracelete para Tora — disse. — Estou tão magricela que ela

terá de me alimentar bem por um ano. O que trouxe para seu pai?—Ah, trouxe um punhal de grande valor, o cabo de um marfim estranho que

veio de muito além da Bulgária. Oleg riu ainda mais alto.— E eu trouxe para Harald uma caixa para suas jóias, e mandarei o mestre

de runas entalhá-la para ele.Merrik socou-lhe o braço. Oleg acertou-o na barriga. O escaler balançou. Os

homens riram e gritaram, pedindo cautela.Os dois então se agarraram, resmungando com os socos um no outro, e o

escaler inclinou-se primeiro de um lado e depois do outro.Laren ficou a observá-los, com um sorriso nos lábios, até que viu que Merrik

estava perigosamente perto de um remo de borda aguda. Gritou paia avisá-lo no mesmo instante em que Oleg o empurrava, e Merrik perdeu o equilíbrio. Levou os braços para cima, fez um ar de absoluta incredulidade e caiu pela beirada do barco.

Os homens o vaiaram, às gargalhadas, enquanto o "pescavam" da água. Merrik subiu ao escaler pingando, e sacudiu-se como um cão vadio depois da chuva.

— Acha que é engraçado? — perguntou a Laren, que segurava a barriga de tanto rir.

— Claro, você está com um ar de um deus afogado. A própria risada de Merrik morreu na garganta.

Um deus? Laren achava que ele se parecia com um deus? Virou-se depressa, constrangido com aquelas palavras, ao som do riso cristalino de Taby. O menino o apontava e tentava se aproximar dele.

— Fique longe, príncipe Taby — ele avisou. — Não quero que se torne um deus tão molhado como eu.

Quando chegaram à longa doca na base de uma trilha sinuosa que subia até a imensa fazenda, os homens não conseguiam conter a excitação. Esposas e filhos os esperavam, gritando.

Merrik esquadrinhou o pessoal reunido, procurando pelo pai e pela mãe. Avistou o irmão, Erik e, daquela distância, ele não viu nenhum sorriso de boas-vindas no belo semblante de seu irmão mais velho. Seu coração começou a martelar, em batidas lentas e fortes. A premonição que sentira... Não, não podia ser verdade.

Mas era. Tanto seu pai como sua mãe haviam morrido de uma praga virulenta que assolara a fazenda um mês atrás.

Merrik sentou-se, calado, debruçado sobre o copo de hidromel entre as mãos.

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Erik acomodou-se ao seu lado, silencioso também.— O passamento foi rápido — informou. — A morte estava aqui e a gente

podia sentir o cheiro no ar ao redor, e não havia nada que se pudesse fazer, apenas olhar e ver os entes amados morrerem. — Calou-se por um momento, meneando a cabeça. — Sarla ficou doente, mas se recuperou. Creio que foi ela que passou a doença para nossa mãe, pois mamãe cuidava dela. E depois atacou papai, que não saiu do lado de mamãe nem por um instante. E Sarla sobreviveu.

Merrik gostaria de dizer a ele que não fosse estúpido, que não fora culpa de Sarla, mas as palavras entalaram em sua garganta. Sentiu o autocontrole fugir e engoliu em seco, baixando a cabeça ainda mais.

Erik continuou, depois de um momento.— Os mais velhos, bem... foram os mais abatidos, e a maioria morreu. Nossos

pais estavam entre os primeiros. Dez dos nossos parentes se foram, e oito escravos. Foi horrível. Gostaria que você estivesse aqui, mas talvez tenha sido melhor assim. Seria muito triste caso tivesse perdido você também.

— Atacou alguma das outras fazendas?— Quer dizer a de nosso primo Egil? Não, ele e a família foram poupados. A

morte veio e ficou aqui, e depois se foi de repente como um fantasma que desaparece com a luz do dia. Todo o vale do Gravak foi poupado, exceto nós.

Sarla apareceu ao lado de Merrik, e disse, baixinho:— Você precisa comer, Merrik. Preparei o ensopado de que gosta tanto, pelo

menos foi o que sua mãe me contou. Não tenho os dotes dela, mas ficou bastante saboroso, eu acho.

Merrik sorriu para a cunhada, a esposa tímida de seu irmão, tão modesta, tão bonita quando se olhava bem para ela, mas tão calada que era fácil não notá-la. Seus cabelos eram de um loiro profundo e raro, os olhos mais cinzentos que azuis, a pele clara e perfeita. Sarla era também completamente dominada por Erik, como a maioria era. E Merrik estava feliz que ela tivesse sobrevivido.

—Obrigado, Sarla, mas não tenho fome. Veja os outros homens. — Percebeu que se esquecera de Laren e Taby. — E, por favor, veja também a mulher e a criança que eu trouxe comigo. O nome do homem é Cleve. Dormirão aqui na casa-grande.

Ela aquiesceu, e perguntou se desejava mais hidromel. Antes que ele pudesse responder, o irmão interveio num tom frio e impaciente:

—Se ele quiser você tagarelando aos ouvidos, Sarla, Merrik lhe dirá. Vá cuidar de suas obrigações.

Ela não disse nada, simplesmente inclinou a cabeça e saiu.— Você comprou esses três em Kiev — Erik dirigiu-se a Merrik —, Eller me

contou.— Comprei o menino. A mulher e o homem saíram de graça para mim. — Por

um instante, o pesar afastou-se, e Merrik sorriu para o irmão. — Na verdade, tive de fugir de Kiev antes que um mercador enraivecido descobrisse que tinha perdido um garoto e um homem.

— Garoto? É evidente que se trata de uma moça.— Sim, mas na ocasião ela se fazia passar por garoto, magro como uma vara

e vestido com calças e túnicas em trapos. Mesmo eu não percebi que se tratava de uma moça até que tive de cuidar das costas dela. O mercador a surrou demais.

— Então, ela é uma escrava — Erik concluiu, com um toque de satisfação.

Merrik não disse nada, nem mesmo ouvira o irmão na verdade, pois seus pensamentos tinham se voltado novamente para os pais.

— E continua muito magra — Erik observou. Merrik ergueu os olhos para ver

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o irmão fitando Laren, sentada perto do fogo, com Sarla parada ao lado dela. — Mas não parece doente.

—E não está. Devia ter visto a moça como era quando fugi com ela. Nada mais era que ossos cobertos por uma pele branca. O menino também, tão magro que dava vontade de chorar.

—O menino? — Erik olhou para Taby, que brincava com uma bola. — Um menino assim é um fardo, mais que qualquer outra coisa. A garota implorou para que o comprasse? Prometeu ser sua meretriz se você o comprasse? Isso não importa, pois um homem faz o que tem vontade com uma mulher, e uma escrava não conta para nada. Por que, em nome dos deuses, você comprou uma criança, Merrik?

—Não sei. Olhei para ele e soube que tinha de ficar com o menino. Comprei-o. Laren não teve nada a ver com isso. Ela já tinha sido comprada por um mercador. — Deu de ombros.

— Mas é minha agora. Eu a salvei porque é irmã de Taby.—Ah... — Erik murmurou e caiu em silêncio. Encarou a moça por algum

tempo. — Por que ela tem aquele ferimento no rosto? O arroxeado quase sumiu, mas

ainda posso ver. Foi atrevida, e você teve de bater nela?Merrik não tinha vontade alguma de responder às perguntas do irmão.

Queria apenas lamentar a perda de seus pais queridos.— Não — sussurrou, e se levantou. — Não bati nela. Vou sair um pouco, Erik.

Preciso ficar sozinho. Erik observou, pensativo, o irmão sair. Em seguida, desviou os olhos para a mulher que ele trouxera de Kiev. Ela estava rindo baixinho de algo que a criança dissera, o rosto iluminado ao abraçar o menino. Ele suspirou. Olhou ao redor do enorme aposento, cheio da suave névoa azulada do fogo de chão. Uma fina serpentina de fumaça subia, desaparecendo pelo pequeno buraco circular no teto da casa. Quando criança, ele olhava para aquela linha tênue que parecia irreal, tão constante, tão imutável e tão azul. Algumas coisas não mudavam, ele pensou, tal como as pessoas mudavam. Sentiu as lágrimas requeimarem seus olhos, mas não rolaram. Não agora. Não depois de uma semana.

Conversas ressoavam na grande e abafada sala externa. Algumas risadas de crianças eram logo repreendidas, algumas palavras zangadas, tudo muito normal. Erik deixou que a sensação flutuasse em torno de si, mal o tocando. Podia ouvir o timbre de tenor nas vozes, a tristeza, muita tristeza, entranhada dentro de todos, perto da superfície, muito perto. Suspirou.

Diferentemente de Merrik, cujo sofrimento podia compreender, ele tivera um mês para acostumar-se com a morte do pai e da mãe. E, diferentemente do irmão, ele tivera de viver ali com eles, em Malverne, sem nunca partir em viagens de negócios, já que era o filho mais velho.

E, por isso mesmo, suas lembranças eram temperadas com discussões amargas, berros zangados, da raiva que ele sentira algumas vezes com relação aos pais.

Agora, Malverne era propriedade sua e apenas sua. Não haveria mais discussões com seu pai sobre algo que ele quisesse fazer. Era o dono e senhor absoluto. Olhou para a esposa, Sarla, sabendo que ela era infértil, sabendo que teria de livrar-se dela se quisesse um herdeiro. Era pouco mais que uma sombra, cujo corpo ele ainda apreciava, mas que se mantinha fria e muda, esperando que ele terminasse. E ele a machucara muitas vezes na tentativa de lhe arrancar alguma expressão, fosse de prazer ou de dor.

O cheiro da carne do ensopado invadiu o ambiente. Era forte, muito forte. Erik franziu a testa. Quando sua mãe preparava o ensopado de cervo, o aroma

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era maravilhoso, e o odor da carne jamais se sobrepunha aos outros ingredientes. Porém, o que ele poderia esperar? Sarla não tinha as habilidades de sua mãe.

Sarla deu a Laren duas mantas e disse com seu jeito tranqüilo, que dormisse perto do fogo, pois a noite seria gelada e as brasas ajudariam a mantê-la aquecida. Quanto a Cleve, ela simplesmente lhe estendera um cobertor, dizendo que descansasse em qualquer lugar que quisesse. Depois, sorrira. Será que não via a cicatriz medonha em sua face? Era cega? Ele agradeceu com um gesto de cabeça e pegou a manta.

— Sarla!Ela virou-se e se deparou com o marido de pé, mãos nos quadris, as feições

crispadas de impaciência. Era sempre assim. Ela suspirou, e se retraiu rio íntimo.Erik queria que ela lhe desse prazer na cama. Ah, como gostaria de se negar,

não ter de deitar-se de costas e senti-lo invadi-la, a suar, fazendo aqueles horríveis ruídos roucos. Porém, não tinha escolha. Baixou a cabeça.

— Sarla, vá para o meu quarto agora.O quarto era dele, não deles, pensou ela. E o mesmo acontecia com

Malverne. Desde que o pai de Erik morrera, Malverne era dele, e ele gostava de dizer isso em voz alta, saborear o gosto da afirmação na boca. Sarla pensou na fazenda dos pais, não tão distante, ao norte de Vestfold, e estremeceu. Viu o pai, o cinto largo de couro enrolado na mão. Viu a mãe de joelhos, as costas nuas. O cinto descendo e subindo e tornando a descer. Viu a mãe cair e ficar amontoada no chão, enquanto o pai estampava a raiva na face. Sarla estremeceu de novo. Preferia Erik. Sabia que ele tinha suas mulheres, por isso não a importunava com freqüência. E também nunca a agredira.

Aproximou-se, de cabeça ainda baixa. Sentiu a mão do marido fechar-se em seu braço.

— Preciso de você esta noite — ele disse.Laren observou os dois, mas Taby desviou-lhe os pensamentos ao dizer:—O pai e a mãe de Merrik estão mortos, como os nossos, Laren. Ele está

muito triste.— Sim, está. Merrik estava tão ansioso para vê-los de novo. — Recordou-se

das estranhas sensações que ele sentira, e ficou pensativa.Começou a estender as mantas no chão de terra batida. Ergueu os olhos, e

viu que Taby não estava mais ao seu lado. Viu-o esgueirar-se pelas portas da casa-grande. Ia gritar, chamando por ele, mas levantou-se e seguiu o irmão.

Taby viu Merrik parado perto da paliçada, calado e imóvel, olhando para o céu repleto de estrelas. A imensa extensão de água abaixo, as montanhas cobertas de vegetação do lado oposto do fiorde, tudo estava silencioso. Um silêncio que chegava a assustar.

—Sinto muito que eles tenham morrido — Taby disse ao homem em quem confiava mais que qualquer um que ele já conhecera em sua curta existência, além de sua irmã.

Merrik virou-se e as palavras se engasgaram em sua garganta. Sabia que tinha as faces molhadas, mas não se importou.

— Não me lembro de minha mãe nem de meu pai — o menino disse. — Era pequeno demais quando eles morreram, mas Laren me fala sobre eles às vezes. Ela conta histórias muito boas.

— Eu sei.— Às vezes ela chora, assim como você está fazendo. Eu pergunto por que, e

ela diz que a lembrança deles é muito dolorida, e que chorar faz com que quase os sinta por perto outra vez. Não entendo.

Ah, mas Merrik entendia. Inclinou-se e pegou Taby nos braços. Carregou-o até um carvalho e recostou-se ao tronco. Acomodou o menino contra o peito.

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—Tenho sorte, pois cresci até ser um adulto ao lado de meus pais. Foram primeiro meus pais, depois pessoas em quem eu podia confiar além da própria vida, e meus mais queridos amigos. Meu pai era um homem muito orgulhoso, mas amava os filhos, a esposa, e nunca agiu de modo injusto ou magoou alguém num momento de raiva.

— Ele é como você — Taby murmurou, ajeitando-se ao ombro do amigo.Merrik sorriu e beijou de leve a cabeça do menino.— Ser como meu pai seria um grande elogio. Você iria gostar da minha mãe,

Taby. Todas as crianças amontoavam-se em torno dela, e ela lhes dava amor e atenção. Era gentil e forte, e meu pai nunca tentou torná-la submissa.

— Parece Laren.— Minha mãe era muito diferente. Não tinha o orgulho, a vaidade, a

arrogância de sua irmã.— Não sei o que quer dizer. Laren mataria para me salvar. Morreria para me

salvar também.Merrik não queria falar de Laren. Ela só era importante porque era irmã de

Taby. Lembrou-se da sensação dela quando o abraçara por causa das roupas, recordou-se do calor do hálito quente em seu rosto.

— Terei de ir embora de Malverne em breve. Agora essa casa pertence ao meu irmão, e ele e Sarla terão filhos, e não haverá lugar para nós. Eu tinha pensado nisso antes, em construir minha própria casa, cultivar minha própria terra. Meu outro irmão, Rorik, é dono de uma ilha inteira na costa de Anglia do Leste, a ilha Hawkfell. E um lugar lindo, e é só dele. Preciso traçar minha rota como ele fez. O que acha disso, Taby?

O menino tinha dormido.Laren deu um passo à frente, entrando em sua linha de visão.— Um homem deve ser seu próprio patrão — disse, com suavidade. —

Caminhar pelo chão que é só seu, cultivar a terra onde espalha seu grão, cuidar e colher o seu fruto.

Merrik fora pego desprevenido, e não gostou. El se aproximara, silenciosa como uma sombra, e ouvir a conversa. Isso o desagradou. Não queria que Laren tivesse intimidade com tais pensamentos, que os adivinhasse. Não queria admitir que havia pensado nela.

—Não gosto que se esconda e escute o que não é para seus ouvidos. Mas é verdade, e direi em sua cara: seu orgulho é excessivo. Você é tão arrogante como um guerreiro, o que é um absurdo. Sua crença em seu próprio valor é mais do que deveria ser o de uma mulher.

Laren apenas deu de ombros.— Se é o que acredita, não posso fazer nada.Ele suspirou e olhou para o nada. Laren passara fome, fora surrada e depois

queimada. E sua raiva sumiu. Ela sobrevivera em razão daquele mesmo orgulho e da mesma arrogância. Sim, ele pensou, parte dela era como sua mãe.

— Detesto a surpresa da morte. Morrer em combate... um homem está pronto para isso, porque sabe que, se cair, irá para Valhala e viverá lá por toda a eternidade. Porém, sucumbir de uma doença inesperada, ficar impotente diante dela, saber que não há nada a fazer é assustador. Despoja um homem de sua dignidade, da honra.

A voz de Laren soou dura.— Honra e dignidade nada têm a ver com a morte. Existe tanta morte em

vida que não se pode pensar em uma sem a outra. Tudo termina do mesmo jeito. Em nada.

—Você não compreende. Meu pai não escolheu essa praga.

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— Nem sua mãe. Lembre-se, Merrik, as mulheres não têm a chance de ser massacradas em batalha como os homens. Falta honra e dignidade à morte de todas elas?

— Não sei. Nunca pensei nisso. As mulheres... são diferentes. — Ele a fitou, pensando novamente em sua perna queimada. — Você sobreviveu.

Ela riu, mas não um riso de alegria.—Sem você, eu não teria sobrevivido muito mais tempo. Acho que Thrasco

foi o elo final da cadeia. Quando descobrisse que eu não era um garoto, teria me vendido ou então me matado. Já que Taby tinha sido tomado de mim, já que eu tinha falhado em conservá-lo comigo em segurança, ora, nada mais importava.

— Teria se matado?Laren ficou calada por um longo tempo.— Não tive tempo de pensar nessa hipótese. Pretendia apenas encontrar

meu irmão. E então, você surgiu. Sinto muito sobre seus pais, Merrik.Ele recostou-se ao carvalho e fechou os olhos.— Deixe Taby comigo — pediu, ainda de olhos fechados. — Eu o levarei para

dentro quando tiver vontade de voltar.— Como queira. O que fará agora?— Quero uma ilha como a de meu irmão Rorik. Laren riu. Um som rico, puro,

sem zombaria. EMerrik se deu conta de que nunca a ouvira rir antes, não assim, franca e

abertamente. Abriu os olhos.— Divertindo-se?— Onde arranjaria uma ilha?—Não sei, foi apenas um pensamento, uma resposta à sua pergunta

insolente.Ela se empertigou, mas Merrik não deu importância. Afinal, ela merecia a

frase ferina. Laren virou-se e foi embora. Ele fechou os olhos de novo e puxou Taby contra o peito. Sentiu a mão do menino sobre o coração.

Foi feita uma festa para comemorar o retorno de Merrik, mas não como aquela do ano anterior, ou do retrasado. Havia hidromel e cerveja para beber, queijo, repolho, cebolas, ervilhas, filé de porco-do-mato, postas de salmão defumado, pão ázimo e de centeio, e maçãs em doce e em torta. Quando Sarla estendeu uma bela toalha de linho sobre a mesa, Laren sentiu os olhos marejarem de lágrimas de repente. Sempre houvera luxo em sua vida até aquela noite horrível: belas toalhas, mobílias requintadas, espaços imensos, não escuros e baixos e repletos de fumaça como aquela casa-grande. Recordou-se do riso de sua mãe ao arrumar uma mesa. Lembrou-se das beiradas bordadas... Não pensava na mãe fazia muitos meses. O nome dela era Nirea, um nome suave, música para os ouvidos.

— O que posso fazer? — perguntou.— Você vai comer, Laren, é tudo que pode fazer até ficar mais forte.— Ela é uma escrava — Erik lembrou, chegando por trás da esposa. — Dê

tarefas a ela, Sarla. Você é a senhora daqui, é hora de agir como tal.Sarla não hesitou.— Há colheres na tigela de sopa sobre o aparador. Por favor, coloque-as na

mesa, Laren.Erik resmungou qualquer coisa e afastou-se. Laren sentiu a raiva irromper em

seu íntimo.O irmão de Merrik era um tirano, um brutamontes, orgulhoso de sua

linhagem. Um homem que seria perigoso além dos limites se não houvesse outros para contê-lo.

Como havia conseguido manter moderada a arrogância e o autoritarismo

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quando o pai ainda era vivo e dono de Malverne?A festa corria bem, Merrik julgou, tomando o hidromel que Sarla sabia fazer

tão bem. Sua mãe ensinara quase tudo a ela, recordou-se, mas não como fazer aquela bebida. Cumprimentou-a por sua habilidade.

— Tem muito mel, para meu gosto — contestou Erik.— Está perfeito — insistiu Merrik. — O que acha, Oleg?— Vou beber mais dez canecas e depois eu lhe direi. Houve uma risada ou

duas, mas foi um começo. EErik disse, mais animado:—Depois de jantarmos, Deglin nos contará uma história, quem sabe das

corajosas façanhas de meu irmão em Kiev.O silêncio se fez, brutal e frio, constrangedor, com olhares de soslaio. Os

homens cochicharam, esperando que Merrik se pronunciasse. Erik arqueou uma sobrancelha, olhando primeiro para o irmão e em seguida para o escaldo.

— Deglin não nos conta mais histórias, Erik — informou o irmão, num tom indulgente.

— Descobriu que não gosta mais de ser um menestrel.—Isso mesmo — Eller apressou-se em dizer. — Treinou outra pessoa, esta

moça aqui. — Apontou para Laren. — E ela que nos conta histórias agora.— Que bobagem. Ela é uma moça, nada mais. Não pode.— Você a ouvirá antes de fazer suas considerações. Erik pareceu prestes a

agredir o irmão, mas não o fez. Limitou-se a afundar na cadeira com o rosto rubro, os olhos estreitados. Olhou para Laren, sentada ao lado do velho Firren.

— Você se imagina um escaldo, moça?Ela o fitou com um ar indiferente e deu de ombros.—Não imagino ser nada. Você, sem dúvida, me dirá o que eu sou.Sarla respirou fundo. Sentada perto do marido, sentia a raiva pulsando

através dele. Com voz muito baixa e assustada, perguntou:— Gostou do arenque, meu senhor? Roran pegou-o esta tarde.—Roran sempre tem sorte com a pesca — Erik garantiu, e entornou a caneca

de hidromel.Foi assim que depois da interminável refeição, Laren foi solicitada a ficar

diante de todos e começar a história de Grunlige, o dinamarquês, desde o princípio. Pelo canto do olho, ela viu Deglin sair da sala e ficou aliviada. Notou que ele mancava e que certamente a culpava por isso.

Então, pensou nas moedas de prata, tomou um gole de cerveja e sorriu para todos.

—Era uma vez um valente guerreiro cujo nome era Grunlige, o dinamarquês...

Embelezou o começo da história de tal forma que todos os homens de Erik sentavam-se mais perto agora, ouvindo atentos, sem conversar.

— ...e quando Parma inclinou-se para agarrar Selina, quando suas mãos tocaram-lhe os braços, algo muito estranho aconteceu.

Laren fez uma pausa de propósito, olhando para cada homem, mulher e criança. Seus olhos faiscaram, e ela inclinou-se para mais perto, como se fosse contar um segredo. Correu a língua pelos lábios. Foi Oleg quem disse, finalmente:

— Basta, moça! Conte logo, ou roubarei sua cerveja e você não terá mais nada por duas estações!

Os homens soltaram hurras, e Eller disse, aos berros:—Dêem uma chance à moça. Sinto o cheiro de uma boa história chegando.

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Capítulo III

Numa voz grave e cheia de emoção, Laren começou: Quando Parma tocou os braços de Selina, foi como se o próprio Thor tivesse disparado um raio em seu corpo. Caiu, tremendo, enregelado, os dedos abrasados. As mãos doíam e latejavam. Assustado ele olhou para Selina.

— Eu lhe disse para não me tocar — ela murmurou, calmamente. Parma encheu-se de raiva, sem querer acreditar que algo estranho realmente havia acontecido, algo que não vira ou compreendera. Rosnou para Selina e saltou sobre ela, jogando-a de costas no chão. Sorrindo, a saliva escorrendo de seus lábios num sorriso mau de triunfo, ele disse:

— Não aconteceu nada estranho. Foi apenas um sonho momentâneo, um instante de incerteza, nada mais. Vou me enterrar em seu ventre agora e depois a levarei para minha fazenda, e você se tornará uma de minhas concubinas e conhecerá uma vida de servidão.

Nem bem as palavras saíram de sua boca, e ele sentiu-se içado de cima dela. Que homem teria a força de erguê-lo e segurá-lo assim, como se ele não passasse de uma criancinha?

Parma tentou se libertar, mas não conseguiu. Pairava no ar a quase dois metros do chão, olhando para ela, aturdido, sem fala, as palavras entaladas na garganta. E começou a elevar-se ainda mais, até que finalmente via Selina ainda deitada de costas no chão, sorrindo.

— Vá mais alto, Parma, é a sua ambição, não é? Sim, tão alto quanto as nuvens. Vá, Parma. Seu destino o espera.

Ele chutou e se debateu, mas continuou a subir. Estava tremendo de medo, lutando loucamente contra a força desconhecida que o segurava, e embora tentasse virar-se de costas, não pôde. Seu corpo parecia enregelado. Olhava para baixo e via Selina que ficava menor e menor. Berrou, gritou, quis soltar-se, mas sabia que morreria, pois despencaria no chão e seria destroçado contra as pedras.

Então, de súbito, sem aviso, viu-se empurrado para a frente, como se jogado por uma força poderosa e lançado para leste. A água estendia-se lá embaixo, um imenso mar de água, e o medo tornou-se tão grande que Parma não conseguiu entender o que estava acontecendo. Selina deveria tê-lo amaldiçoado, pensou. Sim, ela era uma bruxa. Nada daquilo realmente acontecia, era apenas uma visão, uma ilusão. Iria encontrá-la, matá-la, mas tudo que conseguiu foi mover-se ainda mais depressa, lançado ao sul agora por aquela estranha força. Estava nas nuvens, e não podia enxergar através da névoa branca. Sentia frio, tremia. Sua pele estava azul, tão azul como as mãos de Grunlige, depois que ele esfacelara os blocos de gelo.

Parma então se recordou das palavras de Selina. Ele morreria ali, acima da terra, enregelado até a morte nas nuvens, tudo por causa de uma praga de uma mulher que ele mataria se pudesse encontrá-la outra vez.

De repente, o ar tornou-se mais quente, e Parma sentiu-se mais uma vez capaz de pensar, de ver, de raciocinar. Podia ver a terra, as pedras, o riacho estreito, o verde da grama. Não subia de costas, mas deslizava suavemente.

Ah, sentia-se como um mágico, e começou a imaginar se não fora ele mesmo que se alçara aos céus.

Sim, fora ele que subira e começara a voar. Parma acreditou nisso, e abriu um sorriso ao ver-se mais próximo do chão.

Estava quente, sentia o sangue pulsar nas veias. Agitou os braços ao redor para mudar de direção. E mudou.

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Riu alto diante da maravilhosa descoberta. Os deuses tinham lhe concedido o poder. Ah, não havia nada que não pudesse fazer agora. Bateu os pés e viu-se lançado para a frente, através do ar. Riu alto de novo, e começou a testar as novas habilidades. Porém, antes que conseguisse agitar os braços ou bater os pés, caiu como uma pedra no chão, como se tivesse sido solto e jogado para baixo.

Aterrissou aos pés de um enorme homem vestido em pele de urso, talvez um berserker, um guerreiro de Odin, imenso e forte, com uma poderosa espada na mão enfaixada.

Aquele guerreiro era Grunlige, o dinamarquês. Suas mãos estavam ainda enfaixadas, mas ele parecia segurar a espada facilmente. Postava-se ereto, tão orgulhoso como era antes da tragédia que o atingira. Ao vê-lo, Grunlige perguntou:

— Você é Parma, e ousou tocar em minha esposa. Sabe o que farei a você?Parma olhou para Grunlige, boquiaberto de espanto. Meneou a cabeça,

aturdido, incapaz de acreditar. Não poderia ser. Ganhando coragem, respondeu num tom insolente e arrogante:

— Você deveria estar morto. Foi embora para morrer. Está morto. Não passa do resto de um homem, uma sombra perdida que não caiu no esquecimento. Isso nada mais é do que sua casca. Você não passa de uma ilusão. Ataquei seus domínios, roubei seu gado e saqueei seus navios. Você não estava lá quando seus homens clamaram por ajuda. Você não pode ser Grunlige, pois ele não se mostra mais orgulhoso e ereto. É um ser patético, morto pelas próprias mãos. Grunlige o encarou, e sorriu.

— Devo lhe dizer, Parma, exatamente o que sou e onde estamos? O que gostaria de ouvir primeiro, seu vil covarde?

Parma o fitou e disse:— Voarei para longe de você e depois voltarei e o matarei!

Saltou de pé, bateu os braços, mas nada aconteceu. Subiu numa pedra e pulou, agitando os braços, batendo os pés, mas não subiu aos céus, caiu duro outra vez aos pés de Grunlige.

Berrou de raiva:—É a bruxa de novo! Ela roubou meus poderes. Maldita seja para sempre!Grunlige muito calmo, murmurou:— Ouça, seu tolo, você não tem quaisquer poderei, apenas vaidade. E cultua

a arrogância de um estúpido. Agora, vai ganhar o que merece.Laren parou, sorriu para os homens, mulheres e crianças, todos eles a

encará-la, a atenção concentrada apenas nela. Cleve sorria, com Taby adormecido em seus braços.

—Continue! — Erik berrou. — Maldição, o que aconteceu? O que Grunlige fez? Meteu o pé na cabeça de Parma? Onde estavam eles, em nome dos deuses?

Ela meneou a cabeça.—Sou apenas uma mulher, meu senhor, e devo descansar agora. Perdoe-me.

Meu cérebro e minha garganta estão doloridos e precisam se recuperar. Talvez amanhã à noite eu possa continuar.

Ouviram-se murmúrios de protestos, e Erik pareceu que iria explodir. Merrik riu e levantou-se.

—Laren pára, não por causa de alguma suposta fraqueza de mulher. Ela nos deixa curiosos de propósito, enganchados como uma isca num anzol. Não se aflijam. Digam que ela se saiu bem, mas que vocês realmente não se importam com o que acontece a seguir. Isso a deixará louca, cheia de dúvidas, e menos

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cheia de si. — Riu de novo, e virou-se para Erik. — Bem, irmão, o que acha de meu novo escaldo, meu escaldo feminino?

Erik olhou para Laren com olhos de cobiça. E, de repente, Merrik não gostou do jeito com que o irmão a encarava. Não desejava aquele tipo de confusão. Olhou para Sarla que, por sua vez, encarava o marido. Ela tinha percebido, pensou. E não era difícil para ela perceber. Dois dos bastardos de Erik estavam ali, na casa-grande, e Kenna era a imagem do pai. E as mães estavam ali também, e tanto Megot como Caylis ainda partilhavam a cama de seu irmão.

Merrik suspirou, desgostoso. Aproximou-se de Cleve e estendeu os braços para Taby. Pegou o menino e depois saiu à procura de algumas mantas. Notou que Laren o fitava.

— Cuidarei de Taby esta noite — avisou-a e percebeu que ela estava corada de calor e pelo sucesso. Sorriu-lhe e, para sua surpresa, ela sorriu em resposta. Um sorriso adorável. Gostaria que ela sorrisse mais e mais, porém não naquele instante.

— Fique perto da casa-grande. Fique ao lado de Sarla — disse, ao afastar-se. — Não saia sozinha.Laren franziu a testa, apertou as sete peças de prata na mão, e concordou,

sem compreender. Merrik sabia que ela estava confusa, mas não disse mais nada.

Na manhã seguinte, logo cedo, Laren saiu para aliviar-se. Ao sair da privada, deparou-se com Erik de pé, mãos nos quadris.

— Fiquei esperando por você. — Ele sorriu.— Por quê? — Ele franziu a testa, e Laren emendou depressa: — Meu senhor.— Assim é melhor. Sou o senhor de Malverne, e você é uma escrava. É bom

não se esquecer disso. Você é bonita, Laren. Ainda está muito magra, mas tomarei cuidado para não me ralar em seus ossos.

—Por que razão haveria de querer isso? — ela perguntou, mas sabia que Erik a desejava, reconhecia a lascívia em seus olhos e a suprema autoconfiança. Ele a queria e tinha certeza de que a teria, Laren percebeu. Contudo, fingiu ignorância. Precisava pensar em alguma coisa, qualquer coisa...

—Você não parece tão magra com o vestido e a túnica. Vou tirar suas roupas, olhar e decidir por mim mesmo.

—Senhor, vou ajudar sua esposa—ela murmurou, com um certo ar de ingenuidade. — Faço um mingau excelente.

—Não vai ajudar a ninguém, a não ser a mim, Laren. — Deu um passo na direção dela, mas Laren recuou. Erik irritou-se. — O que está fazendo? Sou o senhor aqui, e se eu quiser me deitar e me divertir com você, eu o farei. Você não tem querer, aqui. Além do mais, sou um homem de belas partes e não há razão para que não queira que eu a toque e a acaricie.

Ah, Laren pensou, mas as partes não faziam um todo bonito. Não poderia dizer isso, com risco de levar uma surra ali mesmo. Por isso, murmurou, hesitante, olhando por sobre o ombro:

— Não posso, senhor. Sou escrava e concubina de Merrik, e pertenço a ele. O senhor precisa pedir a seu irmão se quiser.

Aquelas palavras pegaram Erik de surpresa.—Meu irmão não disse nada em mantê-la. E você não dorme com ele. Ele

dorme com seu irmão, ou sozinho. Está mentindo. Ele não a quer. Até me disse isso. Contou que a pegou só porque você era irmã da criança.

Laren sentiu um dardo cravar-se em seu peito diante daquelas palavras, uma dor tão profunda que ela julgou que fosse dilacerá-la, mas conseguiu dizer, com calma:

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— Estou no meu ciclo do mês. Merrik não gosta de me tocar nessas ocasiões.—Fico surpreso que meu irmão deixe que unia coisa tão simples o impeça.

Quanto a mim, não me importo. — Avançou outro passo.Laren meneou a cabeça e esgueirou-se para a esquerda, na direção da casa.

E, para seu imenso alívio, um dos homens de Erik, um grandalhão de nome Sturla, saiu da casa, em passos largos.

— O pessoal está pronto, Erik. Avistaram um porco selvagem ontem, e eu sei onde poderemos encontrá-lo. Prometi a Sarla que teremos belos bifes esta noite mesmo.

Laren gostaria de beijar o homenzarrão que poderia, se quisesse, matá-la com um único soco daquela mão enorme.

Erik fitou-a, viu o alívio em seus olhos e praguejou. Era óbvio que se esquecera da caçada. Mas não disse nada, simplesmente virou-se para Sturla.

— Vamos embora então. — Virou-se, e disse por sobre o ombro para Laren: — Eu a verei esta noite. Você não vai levar a melhor sobre mim.

Laren não disse uma única palavra. Esperou, imóvel, até que ele desapareceu pelos portões da paliça-da, seguido de seis de seus homens.

Uma voz de mulher soou às suas costas.— Não dá ouvidos aos conselhos de seu dono? Ouvi Merrik avisá-la para que

não saísse sozinha.Laren não respondeu, apenas continuou olhando para Erik e Sturla até que

todos sumiram de vista. A mulher insistiu:— Erik a terá, apesar de seus desejos, apesar dos desejos do irmão.Laren virou-se devagar, e deparou-se com uma jovem de brilhantes olhos

azuis e cabelos loiros que pareciam reter a luz da manhã. Era mais alta que a maioria das mulheres, de seios fartos, bem vestida.

— Eu tinha de me aliviar. Não é uma coisa que se faça com os outros. Quem é você?

—Sou Caylis. Erik me mantém faz nove anos. O pai dele me comprou quando eu tinha trezes anos para ajudar a esposa e para fazer companhia à sobrinha. Erik me desejou e me tomou. Meu filho tem oito anos agora. E Kenna, um bom garoto, forte e orgulhoso. Se Sarla não tiver filhos, Erik irá legitimá-lo. Rezo para que isso aconteça. Já lhe dei três outros filhos, mulheres, mas morreram.

— Mas Erik é casado com Sarla.—Ah, a pobre tola. Faz dois anos. Foi um casamento arranjado pelo pai de

Erik. Ela não tem malícia para segurá-lo, para fazê-lo agir do jeito que ela quiser. E medrosa como um bezerro recém-nascido. — Caylis calou-se, examinando Laren de cima a baixo. — Erik era cuidadoso enquanto os pais viviam. Só visitava minha cama e a das outras mulheres depois que os pais se recolhiam para passar a noite. Sabia que eles gostavam de Sarla, portanto não fazia nada inconveniente com relação a nós enquanto eles estavam por perto. Mas agora, ele não tem razão para negar a si próprio qualquer coisa. Pode fazer o que quiser e, seja lá qual for a razão, ele a deseja. Acho que é porque você é nova e, como todos os homens, Erik fará tudo para dobrá-la e se deitar com você e descobrir que você é como o resto de nós, só que não tão bonita ou bem-feita.

Laren não fez qualquer comentário, apenas ergueu a saia e sorriu para a mulher. Caylis respirou fundo.

— Sua perna... é horrível!—Eu me queimei. Vou mostrá-la a seu patrão. Talvez isso esfrie seu ardor.Caylis meneou a cabeça.—Então, você é amante de Merrik? Ouvi quando disse a Erik. Merrik é um

belo homem, eu notei muitas vezes. E um bom amante, ou só quer que você lhe dê prazer e olhe enquanto ele fica vermelho com a própria paixão? Ele se importa

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com o que você sente?Laren continuou a fitá-la, e Caylis riu.— Ora, você não se deitou com ele. Resigne-se então. Será Erik que lhe

tomará a virgindade. Não é ruim, se ele estiver de bom humor. Se não estiver, você vai conhecer muita dor. Às vezes, ele gosta de sofrimento, às vezes não. Você aprenderá logo o que ele quer de você.

Caylis pôs-se a caminhar ao lado de Laren, voltando para a casa-grande. Mediu-a de alto a baixo, mais uma vez.

— É uma pena que Merrik não tenha nenhum poder aqui. Erik não lhe concederá nenhum. Se ele a quiser, ele a terá. — Deu um longo suspiro. — Faz mesmo um bom mingau? Sarla não faz. Venha, estou morrendo de fome.

Naquela noite, farto dos deliciosos bifes de porco selvagem que Laren ajudara Sarla a preparar, Erik reclamou o fim da história de Grunlige, o dinamarquês.

Laren pensou nas moedas de prata e em seguida no que viria depois. Sabia que Erik a procuraria. Decidiu que primeiro contaria a história, depois resolveria o que fazer.

Levantou-se e esfregou as mãos, sem dizer nada até todos a fitarem, atentos. E só então começou:

— Eu lhe direi quem e o que sou — Grunlige disse, o pé pousado sobre o pescoço de Parma. — Não sou uma sombra das regiões inferiores. Sou de carne e osso, mas fui além da carne e osso de um mero homem para um reino mais elevado. Mas ainda sou eu mesmo, e Selina é minha amada esposa. Veja minhas mãos, ainda enfaixadas. Foi para que as notasse e se sentisse superior.

Grunlige desenrolou lentamente as bandagens. E as mãos não mais se encolhiam como garras, de unhas retorcidas, negras. Não. Estavam íntegras, fortes, e o cabo da espada se encaixava bem em sua palma.

—Sua esposa feiticeira, ela o trouxe de volta. — Parma arquejou, tão apavorado agora que sentiu a bexiga se soltar, urinando-se todo, para sua completa vergonha.

—Não, foi Odin Pai-de-Todos — Grunlige disse, sem rodeios. — Ele me considerou digno, considerou meu povo digno e, assim, me recuperou. Você é um tolo, Parma, não reconhece onde está?

Parma olhou ao redor, mas não reconheceu nada. Então, viu Selina caminhando para eles; a túnica branca esvoaçando; os ombros eretos, orgulhosos; o passo confiante.

— Você ainda está aqui onde atacou minha esposa. Odin apenas lhe pregou uma peça, o provocou, e você foi um tolo. Agora, o que tem a dizer por seu bem?

Parma pensou furiosamente, percebendo que tinha apenas uma chance de conservar a vida. Então disse:

— Se você é realmente um herói, não esmague meu pescoço com o seu pé. Isso não seria nada além do ato de um covarde. Vá, Grunlige, e prove a si mesmo. Vá num navio para os mares ao leste da Islândia.

Mais uma vez, espatife os blocos de gelo, e veja se realmente é o herói galante que acredita ser.

— Não dê ouvidos a ele, Grunlige! — Selina gritou.— Ele quer apenas fazê-lo perder o senso daquilo que é certo! Não lhe dê

ouvidos!Grunlige, porém, já havia tirado o pé do pescoço de Parma. Afastou-se, olhou

para os céus, jogou a cabeça para trás e bradou:— Odin! Escutai-me. Oh, poderoso senhor dos céus e de todos os guerreiros!

Irei novamente me colocar à prova para que me concedeis o que eu mereço!De repente, um imenso raio branco riscou o céu, transformando o ar em

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vapor. Seguiram-se estrondos após estrondos de trovões que sacudiram o chão. Selina caiu de joelhos, enterrando o rosto nas mãos. Parma teve medo, mas também foi tomado de esperança. Olhou para Grunlige.

— Eu vos ouço, Odin. Irei provar a mim mesmo diante de vós. —Antes de se afastar, Grunlige agarrou Parma pelo pescoço e ergueu-o bem alto. Sacudiu-o até que Parma pensou que seu pescoço se destacaria do corpo. — Se tocar em minha esposa novamente ou em qualquer de meus pertences ou em qualquer um de meu povo, eu lhe arrancarei a pele do corpo. Depois, o lançarei sobre um bloco de gelo e lá seu sangue gotejante irá congelar, e você conhecerá mais agonia do que um homem poderia suportar. — Caminhou até a esposa, ergueu-a de pé e abraçou-a. Depois, foi-se embora, empossadas rápidas e seguras.

Laren calou-se e sorriu.— Não aceitarei essa delonga — Erik esbravejou.— Termine a maldita história!Sturla, o enorme guerreiro de Erik, se interpôs.—Não, senhor, deixe-a em paz. Gosto desse suspense; provoca meu tutano e

me faz imaginar o que irá acontecer a seguir.Erik afundou-se na cadeira. Esperou Sarla dispensar os escravos, observou

todas as crianças serem levadas para os quartos onde dormiriam, e viu seus homens se enrolarem em mantas. Preparou-se para levantar, mas parou. Merrik se dirigia até onde Laren se deitara. Ela estava perto do fogo com a manta apertada em torno do corpo e Taby encolhido na curva de seu ventre.

— Ouvi dizer que você é minha concubina — ele murmurou, agachando-se ao lado dela.

— Entregue Taby a Cleve e venha comigo. Dormiremos em meu quarto.Ela o encarou.—Não quero ser sua concubina, Merrik. Apenas não pude pensar em nada

mais para dizer.— Eu sei, mas foi você que falou. Portanto, devemos continuar com a farsa,

caso contrário Erik estará a seu lado daqui a um instante. E então? O que quer?Ela não o fitou, e disse apenas:— Onde está Cleve? Merrik sorriu.— Vou buscá-lo.Erik postou-se ao lado de Laren, alheio ao irmão e ao pessoal que estava por

perto.— Deixe a criança de lado e venha comigo.— Receio que ela não possa, irmão — Merrik disse, e virou-se para Cleve. —

Cuide de Taby esta noite. A irmã ficará comigo.Sem nada dizer, Cleve pegou o menino adormecido. Laren ficou imóvel, no

chão, enrolada na manta, observando os dois homens.— Eu a quero — Erik proclamou, e Laren ouviu Q tom petulante, a cobiça em

sua voz.— Ela é minha concubina, e minha escrava também. Quando me cansar dela,

pensarei se posso vendê-la a você. Venha, Laren.— Ela disse que você não a queria porque está naqueles dias do mês. Disse

que você não iria querê-la até que o ciclo terminasse. E eu o observei, Merrik, você não a tocou, mal olhou para ela desde que voltou para casa. Tudo com que se importa é com aquele maldito garoto.

Merrik obrigou os punhos cerrados a relaxarem, e disse, com calma aparente:— É verdade que não gosto de tomá-la nessas ocasiões, mas estou precisado

e é o que farei. E tento não olhar para ela, porque sempre que olho, meu desejo desperta. Não gosto de me atormentar. Mas hoje, não quero esperar. E é a minha vontade que prevalece, pois ela é minha escrava, não sua. Desejo-lhe boa-noite,

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irmão. Vejo que Sarla o espera.—Maldito seja, Merrik, não quero só me enterrar dentro dela. Eu a faria

contar o que aconteceu a Grunlige, o dinamarquês!Se não estivesse com tanto medo, Laren teria caído na risada.— Ela lhe contará amanhã à noite, Erik. Merrik estendeu a mão e, sem

hesitar, Laren tomou-a. Ele a ajudou a se levantar, mas ela perdeu o equilíbrio e caiu contra seu peito. Merrik riu e abraçou-a, afagando os cabelos com intimidade.

— Eu lhe disse que ela é magra. Tão magra que você a olharia uma vez e a mandaria embora. E os cabelos são curtos e ásperos, como pode ver, não fartos e sedosos como os de sua esposa ou suas amantes.

Laren ouviu uma risada e percebeu que era a mulher, Caylis, que ria. Então, olhou para Sarla pelo canto do olho. Como Erik poderia envergonhar a esposa daquele jeito? Encheu-se de raiva. Mas antes que pudesse dizer alguma coisa, Merrik inclinou a cabeça e beijou-a de um modo rude.

O espanto a fez calar-se de imediato. Ele riu, endereçou ao irmão um ligeiro cumprimento, e ergueu-a nos braços. Laren mal conseguiu respirar até que ele colocou-a sobre a cama, no quarto que pertencera ao irmão antes de os pais terem morrido.

O quarto era pequeno e escuro. Merrik praguejou baixinho, saiu e logo retornou com uma lamparina de óleo. Havia mantas de lã sobre a cama, e por cima, peles de lontra e de rena compradas dos lapões ao Norte. Aos pés da cama, um grande baú com o tampo belamente entalhado, nada mais.

Ele rumou para a entrada do quarto, puxou a cortina de pele de lado e olhou para fora. Erik não estava em parte alguma. Tudo parecia tranqüilo, a não ser por alguns homens que roncavam, e poucos gemidos e risadinhas de casais se divertindo antes que o sono viesse. Merrik praguejou e saiu outra vez.

Laren não se moveu, apenas olhou para a pele de urso que cobria a abertura de entrada. Quando Merrik voltou, trazia uma jarra de pedra-sabão.

— O creme para suas costas. Tire as roupas. Ela não se mexeu.— Por que me beijou?— Para mostrar minha posse sobre você a meu irmão.— Mas todos estavam olhando.Ele deu de ombros e resmungou, com uma franqueza rude:—Eu sei. Isso manterá os homens de Erik longe de você também. Obedeça,

agora. Estou cansado, e quero dormir.Laren não queria tirar as roupas na frente dele, não queria causar-lhe repulsa

com sua magreza. Jamais havia se importado com isso antes, mas agora era diferente. Agora ela se importava com o que Merrik pensava, e não queria obedecer à ordem. Para ele era como se ela não tivesse nenhuma importância. Era Taby que Merrik queria, não ela. Era de Taby que ele gostava, não dela. Erik estava certo sobre isso, mas ela não disse nada, absolutamente nada.

Queria muito que ele a beijasse de novo, mas claro que ele jamais a beijaria por livre e espontânea vontade, por desejá-la, por querê-la. Não havia ninguém que se interessasse por ela como pessoa, ninguém a não ser uma criança de cinco anos.

De repente, o terror dos últimos dois anos, o pesadelo infindável de desesperança, de raiva e fúria que a devorara profundamente conforme o tempo passava, tudo a engolfou, e ela sentiu-se esmagada sob o peso de tamanha desventura. Começou a soluçar. Espasmos sacudiram seu corpo inteiro. Enterrou a face nas mãos, odiando-se pelos sons horríveis que revelavam sua fraqueza, mas onda após onda, a dor lancinante não cessou. A impotência, o medo, a

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amargura, tudo estava lá, destroçando-a, derrotando-a.Tentou desesperadamente recobrar o controle, pois não queria que Merrik

visse o quanto ela era patética, mas os soluços se tornaram mais profundos e não paravam.

Merrik ficou parado ao lado da cama, olhando para Laren. Seu primeiro pensamento foi de que Erik a apavorara. Então, percebeu que não era esse o caso. Ela não era nenhuma mulher sem coragem. Laren era uma sobrevivente e o desejo de Erik não teria efeito sobre ela, pelo menos não esse efeito. Porém, parecia que, para ela, o mundo tinha acabado.

Colocou o creme sobre a cama, sentou-se e, sem uma palavra, tomou-a nos braços. Esfregou as mãos pelas costas delicadas, e recordou-se que ainda estavam doloridas da surra que Thrasco lhe dera. Acariciou-lhe os cabelos, dizendo coisas, palavras apenas, sem significado, num tom terno e reconfortante. Imaginou estar abraçando Taby, afagando-o, e dizendo-lhe que tudo ficaria bem, porque ele estava ali para protegê-lo.

Laren moveu-se, e os seios roçaram em seu peito. Ela não era uma criança, e Merrik sentiu-se como um tolo. Não, ela não era uma criança, e uma onda de desejo o invadiu. Fazia um longo tempo desde que ele estivera com uma mulher... tempo demais.

Beijou-a na testa e sentiu os cabelos roçarem sua face, seu nariz.— Está tudo bem — murmurou, a voz rouca e profunda do desejo florescente. — Não vou machucá-la.Com a respiração presa na garganta, Laren soluçou.As mãos de Merrik subiram até seu queixo, e ele ergueu-lhe a face.As lágrimas ainda escorriam e ela arquejava. Tinha os olhos e o nariz

vermelhos, os cabelos emaranhados na testa, mas era a mulher mais bonita que ele já vira. E ele a queria.

Naquele momento, esqueceu-se de Taby, esqueceu que aquela era a irmã de Taby. Inclinou-se e beijou-a. Pela segunda vez. Saboreou as lágrimas salgadas e algo mais; algo doce, profundo, misterioso; algo que não tinha nada a ver com qualquer um deles separadamente, mas que era mágico e de um encanto estranho quando lhe tocava a boca, quando se uniam no beijo. Algo que nunca experimentara antes; algo que queria para si mesmo, e queria desesperadamente. Era um homem, com as necessidades de um homem, e Laren estava ali, sozinha com ele, e lhe pertencia.

Laren não se moveu. Merrik beijou-a de novo, com mais ardor desta vez, desejando que ela entreabrisse os lábios. Percebeu, no entanto, que ela era inocente e não sabia como beijá-lo. Os lábios estavam fechados, mas eram macios, e se comprimiam contra sua boca. Um beijo de virgem.

Ele abriu ligeiramente a boca e deixou que a ponta da língua a tocasse de leve. Laren sobressaltou-se. Então, para sua surpresa e prazer, aconchegou-se a ele, e desta vez, também entreabriu os lábios.

Merrik sentiu a onda de luxúria invadir-lhe o corpo. Mas não era apenas isso. Sentiu aquele mistério outra vez, algo profundo e ainda oculto a se mover dentro dele, a empurrá-lo para Laren. E soube que se unir a ela mudaria sua vida.

Lutou contra as estranhas sensações que o envolviam. Merrik tentou afastar-se, temeroso. Não devia tomá-la com o propósito de apenas saciar seus desejos. Ele não a salvara para violentá-la. Não a salvara para deixá-la magoada.

De repente, viu-a como no dia em que a vira pela primeira vez: o menino esfarrapado, derrotado, mas ainda orgulhoso e desafiador, parado, indefeso, no poço dos escravos de Khagan-Rus. Fitou-a mais uma vez, e percebeu que o que sentia por ela era diferente, pois Laren o tocara com a própria essência. E ele jamais se livraria dela assim como nunca se livraria de Taby.

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Supôs que isso era o certo, pois naquele momento não queria ver-se livre dela, não queria rebelar-se nem proteger-se, pois seu desejo o remoia por dentro. E quando a língua de Laren tocou a sua, ele desistiu.

Não havia violência ali. Se ele a machucasse por causa da magreza, que assim fosse. Ele tentaria não magoá-la, porém...

Empurrou-a para baixo e se colocou sobre ela. Senti-la sob o corpo o fez querer berrar e gemer e enterrar-se, tudo no mesmo instante. Sua mão foi com fúria até a barra do vestido, para erguê-la, num gesto frenético. Mas seus dedos escorregaram pela perna nua, e ao ser tocada, Laren contraiu-se e gritou.

A princípio, Merrik não entendeu o que acontecera. Então, deu-se conta. Batera na perna queimada e a machucara. Respirou fundo, sentindo o corpo estremecer com a força do controle que tentava encontrar dentro de si.

Os seios de Laren arfavam, não de desejo ou pela excitação do desconhecido, mas da dor que ele lhe infringira. Estreitou-a de encontro ao peito e murmurou ao seu ouvido:

— Sinto muito. Maldição, eu a machuquei. Tenho o creme. Fique quieta e logo a dor vai passar.

Laren ficou deitada ali, imersa na curiosa mescla da dor intensa e das sensações que não sabia descrever. Jamais sentira tais coisas antes, e era maravilhoso. Não queria que parassem. Olhou para Merrik, e viu que ele tinha o rosto rubro, as mãos trêmulas.

Sentiu os dedos gelados com o creme a lhe tocar de leve a perna, e ela arquejou, a dor fazendo todas as outras sensações desaparecerem. Tentou não gritar, mas não conseguiu evitar.

Calado, Merrik apenas a fitou. Esfregou o creme de leve enquanto lágrimas de dor brotavam dos olhos de Laren. A perna parecia muito melhor. Se ficasse uma cicatriz, seria ligeira.

Seu desejo quase sumira, e ele sentiu-se grato. Não podia sair e procurar por outra mulher, não podia deixá-la ali sozinha. Laren estava em seu quarto como sua concubina, e ninguém deveria duvidar disso, muito menos seu irmão.

Pensou em examinar-lhe as costas, mas pensar nela nua fez sua virilha contrair-se. Ele a vira nua antes, e não ficara particularmente perturbado. Porém, fora antes de beijá-la e abraçá-la, de tocar-lhe os lábios com a língua, sentir o cheiro doce e as sensações maravilhosas que tinham partilhado, unindo-os naquele breve instante. Era algo além do que ele poderia compreender ou aceitar. Não a penetrara; não havia espalhado sua semente dentro dela e chegara ao alívio. Tudo apenas com um beijo, um abraço, coisas simples que o tinham levado até o limite da razão. Jamais perdera a consciência de si antes, não com uma questão simples como o sexo, não com os atos simples que precediam o sexo. Nunca acontecera. E jamais aconteceria. Ele não permitiria. Veria as costas de Laren, passaria mais creme se necessário, e tudo seria como antes.

Contudo, não a beijaria. Não era tão tolo assim.Sua voz soou tão ríspida e fria que o surpreendeu, muito mais que a ela.— Eu a ajudarei com as roupas. Quero ver suas costas.Desatou os nós da túnica nos ombros e puxou-a por sobre a cabeça de Laren.

Desamarrou a frente do vestido e desceu-o até a cintura. Ela usava apenas uma combinação simples por baixo, e estava apertada, os seios comprimidos contra o tecido. Empurrou-a de bruços, depressa.

Pegou a lamparina e aproximou a luz. As marcas do chicote ainda eram claras, longas marcas estreitas que se entrecruzavam nas costas. O horrível vermelhão se transformara em rosa pálido, e não havia inchaço, nem linhas escuras ou sinal de doença. Mesmo assim, o remédio não faria mal. Encheu dois dedos de creme e começou a lhe massagear as costas.

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Laren ficou rígida como uma tábua, mas ele continuou, com toque leves, e logo sentiu que ela relaxava e gemia de prazer. Esfregou-lhe os ombros tensos, e ele tornou a gemer.

Puxou o vestido até os quadris. Queria ver quanta carne ela já ganhara durante as semanas em que estavam juntos. Ainda podia ver as costelas, mas já havia curvas femininas também, e os quadris muito brancos começavam a ficar roliços.

Quase gritou de desejo. Ergueu o vestido depressa até a cintura e levantou-se. Colocou o creme no chão, ao lado da cama.

Dormiria na mesma cama com Laren, perto dela, tinha de dormir, caso contrário seu irmão estaria ali num instante. Não permitiria que Erik a violentasse. Nem se permitiria seduzi-la.

— Vou tirar seu vestido e a combinação. Colocarei uma de minhas túnicas limpas em suas costas.

Laren simplesmente aquiesceu com um gesto de cabeça. Sentia-se exposta e excitada. E também uma tola, uma estúpida tola. Suas costas e a perna eram mais que pavorosas, ela se esquecera disso. E ainda estava muito magra.

As lágrimas queimaram seus olhos novamente, mas não eram as mesmas lágrimas que ela havia acumulado no peito durante os últimos dois anos. Eram lágrimas que mostravam o quanto se sentia miserável naquele instante, com aquele homem que não a queria, naquela situação infeliz.

Deixou que Merrik lhe tirasse as roupas. Sentiu a túnica macia deslizar por suas costas.

Em seguida ele se deitou, e cobriu-os com uma manta de lã.— Não farei isso com você de novo.— Por que sou muito magra e feia.— Não. Por causa de Taby.Merrik sabia que não dissera a verdade. Não, não era apenas por causa de

Taby.O dia seguinte passou depressa. A toda oportunidade, Merrik lhe dava

comida, parado diante dela até que Laren comesse cada bocado que ele lhe servia.

Taby brincava com as outras crianças. Kenna, o filho de oito anos de Caylis, era seu herói particular. Ele o seguia por toda parte. Kenna, um garoto bonito que não parecia ter a mesquinhez ou a arrogância do pai, tratava Taby com uma tolerância benevolente. As outras crianças seguiam sua liderança.

Cleve se achava numa estranha condição ali. Era um escravo e, no entanto, não dormia na cabana dos escravos, nem executava tarefas humildes. Merrik o mantinha com ele e seus homens e o levara para caçar aquela tarde.

Laren contara suas moedas de prata. Tinha dezoito, agora. Muito em breve, poderia conversar com Merrik. Esquecera disso na noite anterior. Muita coisa havia acontecido e ela sabia que em breve teria de ir embora dali, levando Taby consigo. Em momentos de fraqueza, como aquele, ela não queria deixar Merrik, tanto quanto Taby não gostaria, mas tinham de afastar-se. Nenhum dos dois pertencia àquele lugar.

Cozinhou naquela noite, fazendo um ensopado da carne de porco, que provocou murmúrios satisfeitos dos homens de Merrik e sinais de surpresa do pessoal de Malverne. Depois da refeição, Erik fitou-a, e havia desejo e mesquinhez em seus olhos.

— Não quero que a moça continue com sua história tola esta noite. Tenho outros assuntos a cuidar.

Assim sendo, Laren não ganhou mais moedas de prata naquela noite, e ela percebeu que Erik julgava que a castigava, porém, não se importou.

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— O ensopado foi o melhor que já comi. Precisa me ensinar, Laren, precisa mesmo.

— Sarla tocou-a na manga da túnica.A voz de Sarla saíra num tom afobado, aflito, e Laren fitou-a, franzindo a

testa.— E simples, na verdade. Sua comida é muito boa, a minha é apenas

diferente.— Não, você precisa me mostrar.Laren a olhou atentamente, bem de perto, e pela primeira vez viu o leve

hematoma que havia sob o olho direito de Sarla. A fúria congelou suas entranhas.— Pelos deuses, ele a agrediu!— Shhh! Fique quieta, por favor, não abra a boca. Não é nada, nem está

doendo. Não se pode ver a menos que se olhe de perto. Fique quieta.— Por que ele bateu em você?Sarla não respondeu. Simplesmente deu de ombros.— Por quê?— Erik não precisa de razões para seus atos. Eu o desagradei e ele me bateu.— Ele já bateu em você antes?Sarla a fitou então, e viu a pena nos belos olhos cinzentos de Laren.— Parece que eu o desagrado cada vez mais conforme os dias e as semanas

passam.Laren sabia que os homens costumavam agredir as mulheres, fossem elas

esposas, concubinas, escravas... não fazia diferença. Mas Sarla era tão calada e gentil... Como poderia desagradar a alguém?

Então, percebeu a razão pela qual Erik a agredira. Ela eraa razão. Erik a queria e Merrik não tinha permitido que ele se aproximasse.—Seu ar é de fúria, Laren. Eu lhe peço, por favor, não diga nada. Esqueça

esse assunto. Além disso, eu o vi conversando com Caylis e depois com Megot, aquela moça bonita ali perto do tear. É bem provável que ele me deixe em paz agora.

Laren controlou-se, mas foi difícil.— Você está brava.Laren fazia pão, na manhã seguinte, pois os homens tinham comido cada

filão que ela assara no dia anterior. Enfiou as mãos na gamela cheia de massa, até os cotovelos. Olhou para Cleve e forçou um sorriso.

—Não, não zangada realmente. E que Sarla é muito meiga e gentil. E o marido a trata como se ela fosse um animal.

— É um homem que gosta de ser o senhor. Detesta qualquer um que discorde dele. Ouvi dizer que desde que o pai morreu, está mais agressivo. Sente-se importante e poderoso por saber que pode ferir ou matar qualquer homem ou mulher, a seu bel-prazer.

—Pelo menos Sarla foi poupada desse tipo de atenção a noite passada.—Sim, foi. Ela dormiu no quarto de fora. Perto de mim.Laren suspirou e afundou as mãos pela massa, sovando-a furiosamente. A

farinha não fora moída tão bem como deveria, e ela sentiu a granulação entre os dedos. Teria de tomar uma providência quanto a isso.

— Você e eu vimos muito, Cleve, superamos muita coisa. Não sei por que um machucado no rosto de Sarla me deixou tão brava. Fiquei quase tão zangada quando soube o que lhe causou essa cicatriz na sua face. Se eu pudesse, mataria ambos os homens que causaram a vocês dois esse tipo de sofrimento. — Calou-se por um momento, e murmurou: — Tenho medo de Erik.

— Eu sei. É uma pena que seu corpo não seja tão forte quanto seu espírito. Mataria mesmo o homem que me marcou, Laren?

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— Sim, e gostaria de lhe causar uma imensa dor.— Foi uma mulher.Laren o encarou boquiaberta, e meneou a cabeça.—Não sei por que estou surpresa. Tenho visto crueldade tanto em homens

como em mulheres. Por que ela fez isso?— Não consegui deitar-me com ela.— E essa cicatriz importa muito para você?— Sim — ele murmurou num fio de voz. — Importa muitíssimo para mim.Laren achou melhor mudar o rumo da conversa, pois Cleve certamente não

queria relembrar as agruras do passado.— Vai caçar com Merrik hoje? Cleve meneou a cabeça.— Não, estou aqui só para comer um pouco de seu mingau, e depois irei

trabalhar nos campos. A colheita está chegando e há necessidade de todas as mãos disponíveis. Até mesmo Merrik irá para os campos de cevada em breve.

— E Erik?Cleve sacudiu os ombros conforme pegava uma cumbuca e se servia de uma

concha de mingau de uma caçarola de ferro pendurada na corrente sobre o fogo de chão.

— A última vez que o vi ele levava uma mulher para a casa de banho junto com ele. Creio que o nome dela é Megot. Ela é baixa e muito gorda para meu gosto, mas seu cabelo é de um dourado tão belo como a cevada no campo.

— Ela é muito bonita... — De repente, Laren disse, num impulso: — Tenho dezoito peças de prata.

Cleve derramou um pouco de mel sobre o mingau.— É um bocado de dinheiro, Laren. Eu lhe daria algum se eu tivesse, mas não

tenho.—Você não entende, Cleve. Quando eu tiver bastante, comprarei todos nós

de Merrik e iremos para casa.— Para casa?— Sim, minha casa.Ele a fitou e então meneou a cabeça.— Como chegaríamos lá? Onde é sua casa? Quem nos levaria?Laren sovou a massa com mais força.—Não sei. Primeiro, preciso ter prata suficiente. Depois, irei me preocupar

com o que vier a seguir.— Vai ganhar muito mais hoje à noite. Imagino que Erik pedirá que você

continue a história. Ele castigou a si mesmo a noite passada. Eu, como os outros, queremos saber o que vai acontecer a Grunlige, o dinamarquês.

— Na verdade, nem eu sei até que as palavras saltam de minha boca.Ele a encarou meio intricado.— Está falando sério?— Sim, Grunlige é um homem ardiloso e às vezes faz coisas que eu jamais

imaginei.Cleve levou a colher de mingau à boca, pensativo.—Quando você fala, começo a pensar nele como um homem de verdade.

Saber que ele é uma fantasia de sua cabeça me entristece.— Não conte nada aos outros, está bem?— Fique tranqüila — ele retrucou, sorrindo. — Não contarei.— A maior parte do tempo ele é muito real para mim também.Laren continuou a trabalhar em silêncio, enquanto Cleve comia o mingau.

Então, ela ergueu os olhos. E viu Cleve olhando para Sarla com ternura.— Oh, não... — ela murmurou. Cleve virou-se, e sorriu.—Não, Laren. Não sou tolo. Sabe que ela parece não se importar com a feiúra

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de meu rosto? Às vezes, quando ela sorri para mim, nem acredito que ela veja a cicatriz. Existe apenas gentileza e bondade em Sarla. E uma simpatia por mim, não que isso importe. É uma pena. Ela é casada com aquele tirano idiota, e eu... bem, não mereço nem secar suas lágrimas.

Laren recordou-se novamente de que a vida era feita de poucas alegrias, e que cada alegria que surgisse devia ser saboreada em sua plenitude.

Uma enorme comoção instalou-se do lado de fora da casa-grande, ao cair da tarde. Ouviam-se os homens gritando, mas não era de medo ou do tipo de ordens que precedem um ataque. Laren saiu para ver o que estava acontecendo e soube que chegavam visitantes a Malverne.

—São os Thoragasson! — Sarla exclamou, ao se postar ao lado dela. —Vivem no vale de Bergson, uns três dias de viagem daqui. — Calou-se por um momento para depois acrescentar: — Antes de o pai de Merrik morrer, negociou um contrato de casamento com Olaf Thoragasson entre a filha mais velha de Olaf, Letta, e Merrik. Não sei se Merrik irá sacramentá-lo. Esperam que ele honre o compromisso. Talvez ele queira, eu não sei.

—Oh... — Laren murmurou, sentindo o chão se abrir-se sob seus pés.Sarla endereçou-lhe um olhar de soslaio. Depois, fitou a distância, o verde

dos abetos que cobriam as montanhas do lado oposto do fiorde.— Sei que Merrik a levou para seu quarto a noite passada, assim como na

noite anterior. Todos sabem, Erik também.— Merrik não fez nenhum segredo de suas intenções,— Erik ficou furioso. Ordenou que eu ficasse no corredor. Levou Caylis e

Megot para o quarto com ele.— Ele não a merece, Sarla. Sarla deu de ombros.— Ele é um homem e, agora, é o senhor de Malverne. O que quer que deseje

ele pode ter. Eu inclusive e outras mulheres também. Fico contente que me deixe em paz. — Calou-se por um momento, e depois emendou com um toque de surpresa na voz: — Falo tão francamente com você e não entendo por quê. Muitas das mulheres aqui são minhas amigas, me acolheram bem quando eu cheguei a Malverne, dois anos atrás, como esposa de Erik, e, no entanto, não falo nada com elas sobre... Bem, não falo de nada a não ser dos assuntos domésticos. Era a mesma coisa com Tora, a mãe de Merrik, e ela sempre foi muito gentil comigo.

—Eu não trairei sua confiança, Sarla. Não fui criada para isso.— Nunca pensei que trairia. De uma certa forma, sinto isso. Talvez você

também possa confiar em mim. Duvido que eu possa ajudá-la, mas quem sabe seja possível. Merrik a machucou?

— Não. Ele não me quer, Sarla, isso eu posso lhe dizer. Ele só deseja me proteger de Erik, e é o que fez as últimas duas noites como creio que continuará a fazer. Faz isso porque ama Taby, e sente que não corresponderia à fé do menino se permitisse que eu fosse violentada. Não pensa em mim como mulher, o que é ótimo para mim.

— Eu não o conheço tão bem. Mas você gosta dele. Deve sentir algo de valor nele. Tenho visto como o olha, Laren. Sabe que quando você fala de Grunlige, o dinamarquês, você quase sempre olha para Merrik? Ah, diga o que quiser, Laren, negue até sua língua secar com tantas negativas, mas eu manterei minha opinião.

— Está enganada, Sarla.—Veremos. Agora, tenho de cumprimentar os Thoragasson.

Os Thoragasson formavam uma bela família composta de doze homens e quatro mulheres. Letta, parecia uma criança mimada. Bem bonita, de dezessete

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anos, com fartos cabelos loiros trançados e presos no alto da cabeça, a boca carnuda num perpétuo biquinho de enfado, e seios muito grandes para uma moça.

Laren era apenas um ano mais velha e, contudo sentia-se uma velha senhora diante dela. Mal conseguia recordar-se da época em que era uma menina feliz e que nada mais importava além de brincar e cavalgar.

Viu Erik cravar os olhos naqueles seios volumosos, e olhou depressa para Merrik. Ele também olhara, mas não para os seios de Letta. Simplesmente a fitara, incomodado, sem qualquer prazer em ver a escolha da noiva pelo pai.

Ao saberem das mortes, os Thoragasson mostraram consternação, não pela sorte de Harald e Tora, mas por não restarem vínculos que prendessem Merrik Haraldsson à família.

Mesmo assim, o mais velho dos Thoragasson deu um tapa nas costas de Merrik, e quis saber de sua fortuna atual depois do comércio de verão, para depois apontar, com uma piscadela maliciosa, os atributos adoráveis da filha.

— Minha pequena Letta não é uma jóia? Seu pai queria muito unir nossas famílias. Ele próprio escolheu minha filha para você. Certamente você admirava seu pai e confiava no julgamento dele.

— Na maioria dos casos, sim — Merrik resmungou.— Minha Letta é uma viking. Seguiria o marido para onde quer que ele

desejasse. Além disso, há mais que terra suficiente para você perto de nossa fazenda. O vale de Bergson é rico.

Merrik detestava o vale de Bergson. Chovia demais; o fogo amortalhava o fiorde na maioria dos dias. E ele não gostava dos Thoragasson. Olhou para Letta, sentada perto de Ileria, a velha senhora (p.e trabalhava no tear a vida inteira. A túnica que ele usava, fora ela que tecera durante a primavera, da mais fina lã. Letta estava ajudando Ileria, enchendo um lançador com fio de um fuso. Parecia competente fazendo o trabalho.

—Letta está sempre querendo saber mais, sempre perguntando aos mais velhos o que é certo, o que é bom. É uma ótima moça. Seria submissa aos seus desejos.

Merrik duvidava, mas não disse nada. Até mesmo sorriu. O homem, satisfeito, afastou-se para conversar com Erik.

Bem mais tarde, depois do jantar preparado às pressas aquela noite, o velho esfregou a barriga, e olhou ao redor. Avistou Deglin a um canto.

— E então, Deglin, tem uma história especial para mim esta noite?A voz retumbante de Erik chamou a atenção de todos.— E esta moça aqui que agora é nosso bardo. Ouviu-se uma gargalhada

generalizada entre osThoragasson.—Quem? — um dos homens berrou. — Esse trapinho insignificante que eu

poderia esmagar com um sopro forte?— Seu sopro pode derrubar um carvalho — um dos amigos gritou.Iniciou-se uma discussão acalorada, e Laren esperou, calada, sabendo que

Erik logo diria alguma coisa. Então, olhou para os Thoragasson e, de repente, enxergou-os com outros olhos, como uma fonte de mais peças de prata. E, quando Erik pediu silêncio e lhe disse para começar, ela levantou-se, sorriu para todos, e começou a história mais uma vez do início. E, para não aborrecer o pessoal de Malverne, enfeitou-a com mais detalhes, ligeiras modificações. Então, fez uma pausa, imprimindo uma nova dramaticidade e um novo mistério às palavras:

Selina continuou de joelhos olhando para o marido que se afastava. Quanto a Parma, assim que Grunlige desapareceu numa colina, levantou-se e riu,

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orgulhoso de si mesmo e de sua esperteza. Deu um passo na direção de Selina e, então, parou.

— Quando Grunlige estiver morto, quero ver o corpo e cuspir nele. Depois, cortarei sua cabeça de bruxa para que todo o mal morra com você. — Riu de novo e deixou-a lá, sacudida por soluços.

—Grunlige sentia-se cheio de poder e de força. Odin o salvara uma vez e quando ele comprovasse novamente seu valor, Odin o recompensaria com mais poder do que antes, e então ele mataria todos os seus inimigos. Voltou à fazenda e reuniu seus homens, que se maravilharam ao vê-lo, inteiro e forte. Mas quando ele lhes disse que viajariam para a Islândia para coletar peles, eles se entreolharam furtivamente, com medo evidente. Ainda era inverno, seria perigoso, tão perigoso como fora da primeira vez.

Grunlige, porém, era seu dono, e eles punham fé nele e em nenhum outro. Não voltara, inteiro e forte? Sim, ele era próximo de Odin.

Assim, partiram da Noruega e seguiram para o mar do Norte, passaram as ilhas Shetland e as Faroés, e depois rumaram para a colônia de Thingvellir, na Islândia.

Merrik a fitou. Como Laren podia conhecer todas aquelas coisas? Todos aqueles lugares?

Tudo corria bem, miraculosamente bem. A viagem demorou apenas duas semanas, o vento a empurrá-los para Oeste. Era como se uma força invisível os carregasse. O medo dissipou-se, pois os deuses certamente tinham abençoado a viagem, e quando chegaram a Thingvellir, conseguiram mais peles do que nunca antes. O porão do escaler estava transbordando. Zarparam da Islândia e, como antes, o vento empurrou-os depressa para o Leste. De repente, sem aviso, uma terrível tempestade se formou. O tempo estava tão frio que mesmo a mais quente das peles mal conseguia aquecê-los. E, ainda mais repentinamente, um imenso campo de gelo deslocou-se do Norte e cruzou-lhes o caminho. Ficaram presos e não podiam avançar. Blocos de gelo destacaram-se do imenso campo e começaram a rodear o escaler. Os homens se apavoraram, logo estariam encurralados no meio do gelo e morreriam de frio, longe de casa, esquecidos pelos deuses. Grunlige não disse nada. Sorriu e abriu os braços, gritando para os céus:

— Odin, estou aqui. Testai-me!Laren parou, mas depois emendou, depressa.—Esta noite todos saberão o que aconteceu a Grunlige, o dinamarquês, mas

primeiro preciso de hidromel para amaciar minha garganta.Erik resmungou, afundando na cadeira com um suspiro de enfado. Letta,

sabendo que aquela moça tinha a atenção de todos, inclusive a de Merrik, disse, num tom irritado:

—Estou cansada desse palavrório interminável. É uma bobagem. Você, meu senhor, Merrik, jamais seria tão estúpido em se aventurar outra vez até u bloco de gelo, como fez esse dinamarquês presunçoso Eu gostaria que Deglin terminasse a história, poi ela precisa de uma conclusão digna da capacidade d um grande homem.

Houve um silêncio absoluto. Laren olhou par Letta, com vontade de esbofeteá-la. Pensou nas peça de prata e quase chorou.

—Ela terminará a história, Letta Thoragasson! — exclamou Erik num tom frio. — Continue, Laren.

Naquele instante, Laren sorriu para Erik, tão aliviada ficou. No mesmo instante, ele a encarou com olhos faiscantes.

Laren percebeu que aquele sorriso fora um erro. Olhou para Merrik, e disse, depressa:

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—Testai-me! — Grunlige gritou para os céus, de braços abertos. — Sim, Odin Pai-de-Todos, testai-me!

Então, ele saltou do escaler até o bloco mais próximo. Riu, e berrou para seus homens:

— Não tenham medo, pois não sou o tolo que fui antes! Sim, fui presunçoso e não pensei em mim como um homem que pudesse ser ferido e morrer. Saibam que Odin está testando minha mente desta vez, e não minha força. Joguem-me a mais grossa das peles de foca!

Um imenso suspiro coletivo de alívio ouviu-se por toda a sala, e Merrik sorriu para Laren.

Grunlige triturou o bloco de gelo até que, mais uma. vez, nada restava a não ser lascas que não machucariam um peixe. Voltou para o escaler e disse:

— Eis por que eu queria tantas peles. Sabia que precisaria delas. Acabei com pelo menos trinta das peles mais resistentes nesta batalha. — Então, olhou para o céu. — Ganhei os vossos favores de novo, Odin?

Um raio fulgurante atingiu o centro do enorme campo de gelo que flutuava logo a leste. O campo explodiu, lançando estilhaços de gelo no ar, fazendo as ondas se revolverem e sacudirem o escaler de um lado e de outro. Os homens caíram de joelhos, de medo e admiração.

Quando chegaram de volta à Noruega, Grunlige avistou a esposa e correu até ela. Estendeu-lhe as mãos e disse:

—Não sou o tolo que você acreditou que eu fosse. Estou em casa e sou um homem com uma nova humildade.

A alegria contagiou a todos até que, de repente, o silêncio caiu e todos olharam para a soleira da porta da casa-grande. Lá estava Parma.

— Grunlige? — berrou. —Ah, quero matá-lo desta vez, e arrancarei suas entranhas e as jogarei para as gaivotas na praia.

— Parma, Grunlige não existe mais — disse Selina. — Este é ele em espírito, que veio dizer adeus a todos. Entre e veja o que você forjou com sua trapaça e sua esperteza.

Parma atravessou a sala até chegar perto de Grunlige. Olhou para as mãos do guerreiro, inteiras, fortes, rijas. Olhou para a face de Grunlige. Viu a verdade e se percebeu condenado. Empalideceu e virou-se para fugir.

De repente, uma espada apareceu na mão de Grunlige. Ele ergueu a espada lentamente, ao alto da cabeça. Sorriu ao baixá-la, partindo a cabeça de Parma em duas metades, e continuando a descer até que Parma fosse cortado em duas partes iguais, que caíram no chão. E, estranhamente, nenhum sangue, nenhuma gota escorreu.

Todos olharam para baixo, mas não havia nada dentro das metades. Os homens recuaram com medo, e imploraram a Grunlige que lhes dissesse o que acontecera.

— Eu derrotei o demônio enviado para me testar. — Grunlige virou-se para a esposa. — Ele era Parma antes de entrar nesta sala, mas Odin o removeu e o lançou no esquecimento dos covardes. E colocou o demônio do ar no lugar de Parma. Acabou agora.

Depois disso, a boa sorte acompanhou Grunlige, o dinamarquês, e seus filhos, e os filhos de seus filhos. Cada geração soube de seu valor e sua sabedoria, e a história foi repetida tantas vezes que passou para a lenda e depois para o mito. Mas dizem que suaprogênie ainda vive aqui na Noruega. Onde, não se tem certeza. Mas vocês acreditarão que é fato se, num dia tempestuoso, ouvirem com muita atenção, e escutarem o trovão ribombar o seu nome. Saberão que Odin Pai-de-Todos jamais esqueceu o seu guerreiro, leal e fiel a ele, o deus

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de todos os deuses.Laren calou-se, de cabeça baixa. Não ergueu os olhos quando os vivas

começaram, nem se moveu quando as moedas de prata caíram ao chão a seus pés.

Uma peça acertou seu dedo do pé, e ela quase ficou tonta de alegria. Manteve a cabeça baixa. Não queria que ninguém deles visse a esperança em sua expressão. E sabia que, se alguém visse e entendesse, esse alguém seria Merrik.

Não muito depois, ele a levou para o quarto de dormir. Fez isso à vista de todos os Thoragasson, e da jovem, Letta. Deixou Taby com Cleve, dizendo que o pusesse na cama com todas as outras crianças. E, ao se deitar ao lado de Laren, disse:

— Você se saiu bem.Ela agradeceu e, depois, respirou fundo.— Gostaria de lhe perguntar uma coisa, Merrik.— Sim?— Quanto pagou por Taby no mercado de escravos? Merrik inteiriçou-se. Ela

o julgava um estúpido,maldita fosse, achava que ele não se lembraria de todas as peças de prata

que ela ganhara desde que começara com a narração da história. Quantas teriam agora? Havia pelo menos vinte delas aos pés de Laren quando ela terminara a narrativa, e dois pesados braceletes, um do próprio Olaf Thoragasson.

—Paguei cinqüenta peças de prata por ele. — Ouviu o grito de aflição de Laren, e perguntou: — O que isso importa? Eu pagaria ainda mais por Taby. Ele vale muito para mim.

Laren não disse nada. Viu seus sonhos se afundando nas correntes raivosas do mar do Norte.

— Taby me disse outra vez esta tarde que era príncipe — Merrik comentou, com uma risada. — Empinou o queixo no ar, pavoneando-se ao afirmar isso.

Silêncio. Estranho, ele pesou. Laren devia rir ou dizer algo sobre a imaginação do menino.

— Disse que permitiria que eu continuasse tomando conta dele. Depois, arruinou a imagem principesca saltando e enrodilhando os braços em torno de meu pescoço. Quase o deixei cair, pois estava afiando a foice que logo usaremos no campo de centeio.

Ouviu-a respirar, em haustos rápidos e curtos.—A comida que você preparou estava muito além de qualquer coisa que

nosso pessoal já comeu. Acho que Thoragasson, quando descobrir quem deu alegria à sua barriga esta noite, vai querer comprá-la. Imagine, Laren, ele ganharia uma cozinheira e um escaldo.—Merrik calou-se por um instante. — Seu valor sobe a cada dia que passa.

— E sou sua concubina.— Sim, isso também. Duvido que haja muita inveja, pois você ainda está

muito magricela.— Você deixou que todos os Thoragasson vissem que me trazia para o

quarto. Se está noivo de Letta, por que magoá-la assim?— Creio que uma mulher deve saber que um homem sempre fará o que quer.

Se eu me casar com ela, ela não se surpreenderá quando eu levar outra mulher para minha cama.

— Então, você é como Erik.—Oh, não — ele retrucou, desejando ter ficado com a boca fechada. — O que

há de errado com meu irmão, além de ele querer se deitar com você?— Ele bate em Sarla.

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— Erik está acostumado a ter o que quer, mas bater em Sarla é absurdo. Ele é um homem honrado, e é meu irmão. Você está inventando isso porque o detesta, porque tem medo dele.

— Olhe para o rosto dela. Sarla disse que ele bate nela sempre que ela o desagrada. Bateu três dias atrás, quando você me afastou dele. Foi por desapontamento, ela acrescentou em pensamento.

Merrik lutou contra a imagem que as palavras provocaram em sua mente. Erik batia na meiga Sarla?

Laren suspirou.—Se ela for infértil, não duvido que ele a mate, ou simplesmente a mande de

volta para a família. Quanto tempo um homem dá a uma mulher para gerar um filho seu? Três anos? Quatro, talvez?

— Não, ele não faria isso. Pare com suas histórias, Laren, pois não lhe darei nenhuma moeda. Se quisesse, contudo, poderia me dizer quem é você e de onde vem.

— Talvez assim que eu me libertar de você, com Cleve e Taby comigo, eu mande um mensageiro de volta. Assim eu não terei nada mais a temer de você.

—Que maldito orgulho e arrogância! Você me provoca, mulher. Tem medo de mim? Por que razão? Alguma vez a machuquei? Maldição, não a tomei quando você se ofereceu a mim, e estava mais que disposta, não estava? Não, não a tomei porque...

— Não me tomou porque me acha feia.— Isso não é verdade.—O outro motivo é Taby. Você ama essa criança que nem é de seu sangue.

Ele poderia ser o filho de um selvagem dos pântanos fedorentos da Irlanda, roubado pelos invasores vikings como você e sua gente. Aceitarei que cuide dele embora eu não compreenda a extensão de seus sentimentos. O que fez, Merrik, prometeu a ele que me protegeria assim como protege a ele? Jurou que não iria me violentar?

— Você deveria escolher outra palavra. Violentar não se aplica a nós.Ela puxou o fôlego diante da lembrança fugidia das sensações incríveis que

lhe invadiam a mente.— Mesmo que eu me jogasse sobre você, nua, você não faria nada. Decerto

me jogaria de lado.Merrik franziu a testa. E escolheu as palavras, ao murmurar:— Parece que você deseja que eu a tome, que a faça minha concubina.Ah, Laren pensou, ali estava o problema, ali estava a verdade,

desmascarada, porém ela não poderia admitir isso a Merrik.—Talvez eu queira que você me tome uma vez para saber do que se trata.

Seria o bastante. E eu me esqueceria disso. Mas saiba, Merrik, eu jamais haveria de querer você para algo mais que uma breve diversão, um divertimento para uma única noite que pudesse me agradar tanto quanto uma boa história.

Ele lhe salvara a vida, maldita fosse. Cuidara dela e a protegera das mãos de Erik. Gostaria de estrangulá-la. Atirou-se sobre ela e suas mãos se fecharam em torno do pescoço esguio, mas sem apertar.

— Bruxa maldita! — exclamou, e então encontrou a boca de Laren na escuridão, e beijou-a com rudeza, sem se importar em machucá-la. Que fosse uma diversão para ele, que ela gritasse de dor com tal diversão.

Sua raiva aumentou quando Laren não se mexeu, deixou-se ficar lá, sofrendo sua investida. Sentiu a suavidade do ventre, o peso dos seios contra o peito.

— Maldição, resista!Ela não resistiu, oh, não, resistir passava longe de sua mente. Atirou-se nele,

segurou-lhe a face entre as mãos e o puxou para baixo. Com ardor, beijou-lhe o

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queixo, o nariz, a bochecha, os lábios separados desta vez. Merrik ficou tão surpreso, tão absolutamente aturdido, que se viu paralisado, sem abrir a boca, sem fazer nada, a não ser tentar controlar a respiração ofegante que traía seu desejo.

Afastou-se depressa, o coração batendo tão acelerado que ele julgou que poderia morrer. Continuou sobre ela, equilibrando-se nos cotovelos.

— Por que fez isso, maldição? Você estava deitada ali como se fosse morta, e então me ataca.

Laren sorriu, bateu com os lados das mãos com força contra as pontas dos cotovelos de Merrik, e ele caiu sobre ela, expulsando o ar de seus pulmões. Agarrou-o pelas orelhas e o segurou ali, beijando-o no pescoço, nos ombros. Merrik não conseguiu sufocar a risada. Recuou de novo, ainda rindo.

— Você se esqueceu de que sou muito esperta — ela murmurou.— Não me esquecerei no futuro. Responda, por que fez isso?Laren não disse nada, só o fitou. Merrik gostaria de exigir que ela falasse,

mas aquele olhar, aquela risada... Pelos deuses, ela era maravilhosa. E o derrubara, e o beijara com vontade. Então disse, surpreendendo-se com as próprias palavras:

— Deixarei que faça comigo o que lhe agradar.— Venha para mim.Laren sabia exatamente o que estava pedindo. Seu futuro mudara

irrevogavelmente naquela noite de longo tempo atrás, quando ela e Taby haviam sido raptados, e o futuro que viria não tinha qualquer significado, pois estava envolto em incerteza e medo. Ela se tornara realista e não mais acreditava que pudesse existir algo doce e bom à frente. Sabia que deveria tentar voltar para casa, descobrir quem os traíra, restaurar o que Taby perdera e o que ela mesmo perdera também. Mas isso estava no futuro, e ela estava ali, agora. Queria alguma coisa para si, e se Merrik estivesse disposto a lhe conceder, ela aceitaria. Por uma noite, ela poderia tê-lo, um homem tão diferente dela própria, mas cujas mãos eram gentis; um homem que poderia lhe dar um imenso prazer.

— Sim — murmurou, a voz rouca com a excitação crescente. — Venha para mim, Merrik.

Ele a atendeu, abaixando a cabeça. As mãos de Laren fecharam-se novamente em sua face, e as pontas dos dedos traçaram o contorno das sobrancelhas, do nariz, do queixo. Merrik podia sentir a respiração quente bafejá-lo conforme ela arquejava. Laren o desejava. Realmente o desejava. E, naquele momento, ele sentiu-se como se Grunlige, o dinamarquês, nada mais fosse que um arremedo de homem em comparação a ele mesmo.

— Venha para mim — Laren repetiu.Desta vez, quando Merrik a tocou, ele abriu a boca e deixou que ela sentisse

sua textura. E quando sua língua tocou a dela, Laren estremeceu, e ele também.— Abra mais os lábios — ele murmurou, e sentiu o calor invadi-lo quando ela

o fez.Laren reagiu, sem medo, ansiosa. Era uma virgem. E isso o fez parar.

Afastou-se, um pouco apenas.—Escute por um momento antes que eu me esqueça de quem sou. — Merrik

obrigou-se a dizer a coisa mais grosseira que alguma vez dissera: — Quer ser minha meretriz?

Escolhera de propósito a palavra mais crua que conhecia, para chocá-la, fazê-la recuar e pensar. Por todos os deuses, Laren certamente não haveria de querer uma coisa dessas. Tinha tanto orgulho, tanta arrogância, que não se entregaria a um homem que não fosse seu marido. Era provável que fosse filha de algum mercador de Terra do Reno, ou de um sapateiro de uma vila ao longo do Sena, ou

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talvez de algum senhor das planícies quentes de Córdoba, na Espanha, mas merecia mais do que ele poderia lhe dar, merecia mais do que ser um objeto de seu desejo.

Toda aquela arrogância e orgulho soaram na voz com que Laren respondeu:— Não, jamais serei a meretriz de um homem. Eu o quero só por esta noite.

Quero que me ensine. Quero experimentar essas sensações uma vez em minha vida. Será suficiente. Na verdade, nem mesmo tenho certeza de que elas existem. Talvez cheguem até certo ponto, o bastante para que uma mulher faça qualquer coisa pelo homem que a perturba desse jeito, e depois as sensações param, e o homem não. Mas não importa, quero saber, e quero que seja você a me ensinar.

Laren estava lhe dando permissão para tomá-la. Merrik poderia lhe dizer que, se quisesse, a teria forçado no momento em que a tirara da casa de Thrasco, e que ela nada faria a respeito. Estava em seu poder e sempre estivera. Em vez disso, perguntou:

— E se você me quiser outra vez depois disso? Ela meneou a cabeça.—Mesmo que seja possível que eu queira, tenho coisas mais importantes

para considerar em minha vida. Eu o quero apenas uma vez. Só preciso disso para saber por que me sinto assim a seu respeito, por que você me faz respirar mais depressa quando está perto e quando me toca, por que desejo me atirar contra você e beijá-lo e acariciá-lo e tocá-lo...

Merrik gostaria de estrangulá-la e obrigá-la a engolir as palavras, porém nem todas, oh, não, por todos os deuses, nem todas. Pensou em beijá-la e nunca mais parar, e não lhe pareceu uma má idéia. E resolveu naquele instante que lhe daria tamanho prazer que Laren esqueceria as palavras tolas. Afinal o que poderia ser mais importante do que ele? Ela esqueceria tudo a não ser dele, e de como ele sempre a faria se sentir.

Sempre.

Laren amoldou-se a ele e começou a mordiscar o lóbulo de sua orelha, as mãos a se enterrarem em seus cabelos, puxando, beijando seu queixo, buscando sua boca, e agora insinuando a língua entre seus lábios, sondando, pois tudo ainda era muito novo, e ela não sabia o que fazer.

— Adoro sua boca, Merrik... Nunca pensei na boca de um homem assim, mas, com você, tudo que eu quero é beijá-lo e acariciar seu rosto.

Ela o beijou de novo, os dedos como pluma a deslizar por suas faces, entre beijos e mais beijos, até que Merrik sentiu que se afogava na sensação, no calor, no sabor de Laren.

Ele a desejava mais do que jamais desejara outra mulher, exceto talvez Gunnvor, quando ele completara doze anos, e ela, na plenitude dos quatorze, deixara que ele a beijasse e a tocasse, e Gunnvor tomara seu membro entre as mãos e o acariciara até que ele expelira a semente não uma, mas duas vezes, e teria matado qualquer dragão no mundo por ela naquele dia.

Contudo, aquilo era diferente; ele era um homem agora, e Gunnvor apenas uma lembrança do passado.

Estava louco, Merrik se deu conta naquele momento, completamente louco, o julgamento alterado, a razão lançada aos quatro ventos. Então, viu a si mesmo em sua própria loucura, e percebeu que seria muito mais que loucura tomá-la. Puxou a respiração, trêmulo, mesmo enquanto ela ainda o beijava, a língua a tocar a sua, fazendo-o suspirar de prazer.

Contudo, ele a queria, desesperadamente. Só daquela vez, sim, e então ficaria livre dela e do desejo idealizado de Laren por ele. E ela estaria livre dele

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também. Ela mesma dissera.Sim, estaria livre. Ela voltaria a ser a irmã de Taby, nada mais.Os olhos de Merrik toldaram-se de desejo. E ele beijou-a avidamente, a língua

a lhe penetrar a boca com toda a luxúria de um homem, não com gentileza. Despiu-a apressado, sem cuidado, e quando se livrou das próprias roupas também finalmente lhe beijou os seios, sentindo-os nas mãos, segurando-os nas palmas. Tentando desesperadamente não se perder nas sensações, no gosto doce daquela pele macia, foi forçado a fechar os olhos diante da alegria que Laren lhe trazia. Não com seus seios, mas pelo modo com que o acariciava de leve no peito, braços, em torno de suas costas, puxando-o, a gemer baixinho, sem medo. Ela o beijava e mordiscava-lhe os ombros para depois passar a língua levemente no ponto que apertara entre os dentes.

Sua mão escorregou pelo ventre liso, sentindo a magreza, os ossos ainda salientes, mas sem se importar. Laren estava viva e era tudo que interessava. Desceu mais até tocá-la em sua intimidade com a ponta dos dedos e, para seu imenso prazer, ela estremeceu. Laren o desejava tanto quanto ele a queria.

Sua mão tremeu. Ele fechou os olhos e sugou o mamilo rosado. Laren arqueou-se, oferecendo-se mais, as mãos como loucas a se apertarem em suas costas. Ela o encorajava, sem realmente saber como, e aquela ingenuidade era mais excitante do que qualquer mulher mais experiente de quem ele desfrutara. Então, sua língua deslizou para o ventre, depois mais baixo ainda. Merrik tinha de prová-la, explorá-la, senti-la com os dedos, com a boca, com a língua.

Abriu-lhe as pernas, e se acomodou entre elas. Não queria olhar, mas olhou, mesmo assim, abrindo sua doce fenda e, depois, acariciando-a com a língua.

Laren estava dura, imóvel. E, de repente, gritou sob a força das sensações.Num gesto rápido, ele tapou-lhe a boca com a outra mão, continuando a

acariciá-la. Laren começou a se contorcer, a jogar a cabeça de um lado para outro, quase fora de si, e ele percebeu que não poderia esperar outro instante, um minuto a mais, pois sua semente jorraria sobre o ventre de Laren e, por todos os deuses, ele queria estar bem fundo, dentro dela, com Laren a comprimi-lo quando chegasse ao êxtase.

Enterrou-se com força. Sentiu uma dor dilacerante, pois foi difícil penetrá-la, ela era estreita e, embora úmida, ainda não estava pronta. Mas ele não parou, continuou a investir, forçando mais e mais até que finalmente, com um gemido rouco, rompeu-lhe a virgindade. Abafou o grito de dor com a boca ao beijá-la, pois sabia que se Erik ouvisse aquele grito, saberia que tudo antes fora uma farsa, até aquela noite, até aquele momento.

Preencheu-a, então, parando apenas um instante, porque a força do desejo o fazia tremer e arquejar. Quis recuar, acariciá-la de novo, mas gemeu, tenso, enterrando-se ainda mais. Recuou e depois tornou a investir. E de novo recuou, de novo se afundou. Não demorou mais que isso, apenas uma última vez, e sua semente espalhou-se pelo ventre de Laren.

Com o coração a martelar loucamente, Merrik pensou que morreria, tamanho o impacto das sensações que acabara de sentir. Deitou-a de lado e fitou-a, ainda dentro dela, não tão fundo agora, mas ainda podia sentir a pulsação, o calor do corpo de Laren. Afastou os cabelos que caíam na testa dela.

— Sinto muito pela dor — disse, contra seus lábios. — Foi sua virgindade. Eu tinha de passar por ela.

Não lhe dera muito prazer, Merrik pensou, mas houvera algum antes que ele se enterrasse com tanta urgência dentro de Laren, e perdesse a razão.

— Você não sentiu prazer em nossa relação como eu senti, e sinto muito por isso. Se for para não haver mais nada entre nós depois desta noite, então eu devo tomá-la de novo, depois que você descansar, e lhe mostrar como é entre

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um homem e uma mulher.Laren continuou encolhida contra ele, e Merrik não mais a preenchia. Estava

apenas muito perto.—Eu gostaria, a não ser que doa muito. Estou sangrando. Vai parar logo?Merrik levantou-se da cama e saiu do quarto, sem se importar em estar nu.

De qualquer maneira, só havia uma nuvem de fumaça no salão de fora, e ninguém estava acordado. Ele pegou uma lamparina e levou-a até o quarto. Ergueu a luz para olhar e examiná-la.

—Fique imóvel, vou ver se a machuquei. Não fique com esse ar perdido — ele resmungou, num tom mais ríspido do que gostaria. — Ter relações sexuais não mata uma mulher, Laren, e certamente não vai doer da próxima vez.

— Isso era um mistério que eu queria muito desvendar... e acho que consegui... mas não foi o que eu esperava. Doeu bem mais do que eu gostaria, e isso me desapontou.

Pelo menos ela era franca, Merrik pensou.— Fique quieta.Laren sentiu a umidade de um pano macio entre as pernas. Desviou os olhos

de Merrik. Não tinha idéia do que ele estava pensando, do que estava sentindo.— Quando me beijou e senti sua língua em minha boca e em meu corpo, foi

como se uma parte do mundo fosse só minha e tudo fosse bom. — De repente, ela suspirou e tentou afastar-se. Merrik comprimiu a palma da mão em seu ventre, segurando-a.

— Não se mova — ele murmurou, e passou o pano molhado mais uma vez por entre as pernas dela. — Não, não contraia o corpo assim. Tente relaxar.

Ela se retesou, e Merrik tentou ser gentil. Tirou o pano devagar, e ficou aliviado ao ver que o fluxo de sangue quase havia parado. Enxaguou o pano. Sentou-se ao lado de Laren na cama, dobrou o pano, e comprimiu-o contra a pele sensível, segurando-o. Olhou para o rosto de Laren. Ela estava pálida, os olhos vermelhos, os cabelos emaranhados.

— Você ficará bem. Não acho que eu deva tomá-la de novo esta noite. Mas talvez amanhã, ou depois de amanhã, quando você estiver curada. Sinto muito.

— Por quê? Fui eu que insisti que você me possuísse. — Ele a fitou, e Laren se encolheu.

— Não tenho nada para me cobrir, e estou envergonhada. Sou feia e ossuda e sei disso, e não quero que você me olhe. Pode me cobrir, Merrik?

Ele a cobriu, e a própria mão também, pois continuou a comprimir o pano com firmeza contra a pele ferida.

— Você não é feia. Pare de dizer que é. — Laren sorriu.—Veja — ele murmurou, desviando os olhos —, o sangramento parou. Ainda dói?

Ela aquiesceu, sem fitá-lo.— Estará boa amanhã — ele murmurou, e levantou-se. Espreguiçou-se, jogou

o pano manchado de sangue na bacia de água. Quando veio para a cama outra vez, simplesmente puxou-a de encontro ao corpo.

— Gosto de você aqui pertinho de mim.—Eu também — ela murmurou, incapaz de não dizer a verdade naquele

instante.O braço de Merrik apertou-se de leve em torno de suas costas. E Laren

aninhou o rosto no peito forte, aspirando o cheiro dele, sentindo os pêlos contra a face e o nariz, com vontade de saboreá-lo.

E percebeu, naquele momento, que sua vida mudara irrevogavelmente. Recebê-lo dentro de seu corpo, ficar abraçada a ele, mudara tudo. Aquilo a que ela fora destinada não significava mais nada. Só Merrik era importante agora.

E Taby.

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Fechou os olhos, desejando que o vazio chegasse, mas sem conseguir prever a enormidade do que jazia além daquele quarto de dormir.

A noite estava fria, as estrelas brilhantes ao alto. Uma lua crescente iluminava o céu. Laren voltou devagar para a casa-grande. Sentira uma urgência premente de caminhar para além dos portões da paliçada, e continuar caminhando, para sempre, pois não havia lugar para ela ali.

Encolheu-se, ao se recordar de como Erik a abordara naquela tarde, à plena vista da esposa e de muitos de seus homens. Ele a forçara a erguer os olhos e a encará-lo, tomando-lhe o queixo na palma da mão, num gesto rude que chegou a machucá-la. E dissera:

— Megot me contou que havia sangue na manta no quarto de Merrik. E sangue num pano dentro de uma bacia com água. Então, você não mentiu para mim. E seu ciclo mensal e ele a tomou mesmo assim, aquele meu irmão melindroso. — Soltou-a, e disse, por sobre o ombro.

— Ainda está magra como uma franguinha no solstício de verão, e Merrik logo vai se cansar de você. Então, você virá para mim e eu a tomarei.

Laren estremeceu, não pela brisa fria que soprava do fiorde, mas por causa daquelas palavras. Tinha medo de Erik, muito medo. E raiva também. Sarla sabia o que ele fazia, e o maldito nem se importava em esconder.

Ele era muito diferente do irmão. Pelo menos, Merrik jamais ergueria a mão para ela ou para qualquer uma de seu povo. Não duvidava que fosse violento e implacável, que pudesse matar sem remorso, que um inimigo não tivesse misericórdia em suas mãos, porém ele não infligiria dor a alguém mais fraco, a alguém de quem gostasse.

Caminhou lentamente de volta para a casa-grande. As portas estavam abertas, e ela podia ouvir o vozerio de conversas lá dentro. Viu até mesmo dois homens brigando, mas não viu Merrik.

Não pusera os olhos nele durante o dia inteiro. Ele trabalhara nos campos até quase o anoitecer, e depois fora para a casa de banho com vários de seus homens, rindo, fazendo piadas, socando-se uns aos outros. Parecia inteiramente indiferente a seus olhos, e isso a magoou. A noite anterior não tivera qualquer significado para ele. Mas o que ela esperava? Era a única responsável por seus próprios sentimentos, suas próprias atitudes, não Merrik.

Com toda aquela gente ali, ela não se oferecera para ajudar a preparar o jantar nem Sarla lhe pedira. Sentia que havia algo errado, porém não dissera nada, apenas dera um tapinha no braço de Laren. Tinha ajudado a servir o jantar e trabalhara arduamente até deixar tudo arrumado. Depois, saíra da casa. Agora, estava perturbada, e detestou-se por isso. Endireitou os ombros e entrou. Ninguém a notou, nem Taby, que se dobrava ao meio de tanto rir enquanto Kenna lhe ensinava alguns truques de luta.

Serviu-se de uma porção de carne de cervo, e começou a comer quando Erik gritou:

— Venha cá, moça. Todos nós queremos ouvir outra história.Outra história. Laren olhou ao redor para todas aquelas faces que a

encaravam. Os homens pareciam tão ansiosos quanto as mulheres, e as crianças começaram a se amontoar em torno dela. Taby postou-se a seu lado, segurando-lhe a saia com a mãozinha.

Ela pensou naquele e em todos os outros longos dias. Sim, tinha uma história para contar. Olhou para os Thoragasson e eles, também, pareciam ávidos. Todos exceto Letta, que tinha um ar emburrado.

A jovem olhou para Merrik quando ele chamou Taby e o sentou nas pernas, fazendo cócegas na barriga do menino, e rindo enquanto ele se debatia,

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desmanchando-se em gargalhadas. Os olhos de Letta, faiscaram um sentimento profundo, de puro ódio.

Laren sorriu para cada um deles.

Capítulo IV

Laren sobrevivera por força da própria inteligência por dois longos anos. Sim, e unia grande dose de sorte. Ela não iria falhar agora, não poderia. Pensou nas quarenta peças de prata, nos dois braceletes, e percebeu que não fariam diferença. Olhou para as crianças sentadas em círculo. Ah, como gostaria de falar depressa, acabar logo, mas sabia que a prudência mandava que começasse devagar, ganhasse a atenção de todos enquanto construía sua história como uma casa.

— Vou lhes contar sobre Rolf, o viking, que viveu aqui na Noruega, longo tempo atrás...

Rolf era um homem orgulhoso, forte e destemido; um guerreiro de rara coragem, como é a maioria dos homens na Noruega. Rolf era jovem, na plenitude da idade, e belo. Tinha dois irmãos, ambos fortes, belos e ambiciosos.

Rolf era o mais velho e saía em incursões pelo simples prazer do combate, e sua fortuna aumentara quando o verão terminou. Radnor, o segundo filho, era um mercador, e viajava para longe com suas mercadorias. Era sagaz e de raciocínio mais ligeiro que um árabe num bazar, e bem depressa, enriqueceu tanto quanto Rolf. O filho mais novo era Ingor, um fazendeiro. Sua fazenda prosperava, pois ele tinha um dom mágico para a lavoura, tornando-se cada vez mais rico a cada estação. Certo dia Rolf chegou em casa depois de uma incursão ao longo do poderoso rio Sena. Trouxera com ele doze escravos, seis homens e seis mulheres, todos capturados de três pequenas vilas que, por infortúnio, erguiam-se muito próximas do rio. Um dos escravos era um homem orgulhoso e forte como os guerreiros vikings que o tinham capturado. Estava doente e mesmo assim lutara até desmaiar por causa dos ferimentos e da doença. Vestia-se com mais elegância que os outros capturados, mas, quem quer que fosse e qual era seu verdadeiro nome, ninguém sabia, e ele não disse nada. Era também um homem com um dom, um mestre das runas, porém, mais que isso, descendia de uma família orgulhosa de muito poder e fortuna daquela região da França. Estava na vila naquele dia fatídico, visitando um artesão para aperfeiçoar suas habilidades.

Agora, porém, era um escravo, tal como os outros. Rolf fez dele seu mestre de runas e ficou espantado com os magníficos entalhes e com a elegância da escrita do homem. Visitantes começaram a acorrer para lá de todas as partes. Radnor, o segundo irmão, tentou comprar o escravo, mas Rolf recusou.

O escravo tornou-se renomado pelos magníficos entalhes em cadeiras, pelos desenhos intricados em jóias e caixas de jóias. Logo, tinha tanta prata que pensou que poderia comprar a si mesmo de Rolfe, assim, reconquistar a liberdade.

Rolf permitiu que o escravo guardasse sua fortuna, mas disse que não o venderia. Disse também ao escravo que o admirava, que queria que se sentisse feliz em sua nova casa, em sua nova terra.

Também lhe assegurou que o que quer que desejasse lhe dizer, ele manteria em segredo; jurou pela própria honra. O escravo não era estúpido, mas confiou nele e agarrou-se à chance de voltar para casa. Assim, contou que sua família era poderosa e rica, e que ele era o herdeiro. Pediu a Rolf para continuar seu amigo e ajudá-lo a reconquistar seu status na vida.

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Rolf apertou a mão do escravo, e lhe disse que confiasse nele, que realmente era seu amigo, que iria ajudá-lo a voltar para casa. Agora, a questão é, o que Rolf realmente fez?

Laren olhou para Olaf Thoragasson.— Meu senhor, o que faria, se fosse Rolf? Olaf Thoragasson exclamou:— Ora, eu arrancaria a pele das costas do homem por tamanha insolência!

Um juramento feito a um escravo não significa nada, menos que nada, a despeito de suas alegações, apesar de suas habilidades. Sim, Rolf deveria acorrentá-lo e deixá-lo morrer de fome até que declarasse sua fidelidade a ele e a mais ninguém!

Recostou-se na cadeira, e seus homens aplaudiram. Laren virou-se para Erik.— Meu senhor, o que faria, se fosse Rolf?Ele sorriu, um sorriso de superioridade diante de sua ignorância, pela falta de

compreensão dos costumes dos homens e da honra.— Pediria um resgate de sua poderosa e rica família, e depois o manteria

acorrentado. Olaf tem razão, só que eu não só faria o certo, mas também ficaria mais rico.

As risadas se elevaram, e Thoragasson elogiou a esperteza de Erik.Laren dirigiu-se então a Merrik.— Meu amo Merrik, o que faria, se fosse Rolf?— Se eu fosse Rolf, manteria minha palavra. Não importa se o homem era

um escravo ou um rei. Eu o levaria de volta a seus parentes. Eu lhe devolveria a dignidade.

— Que tolice, irmão! — Erik berrou. — Perderia uma posse valiosa, e nem o faria pagar pela liberdade?

— Ora — Thoragasson murmurou. — A honra não entra nisso, Merrik. Sua palavra dada a um escravo não vale nada, como eu disse. Se Rolf tivesse empenhado a palavra a um dos irmãos, seria diferente. Mas a esse maldito escravo? Nunca! Fosse um rei capturado, não importa!

Laren esperou até que todos ficassem em silêncio novamente e que, um a um, a encarasse outra vez.

— Diga-nos, moça — disse Thoragasson. — O que Rolf fez?

— Foi conversar com seus irmãos. Ragnor disse-lhe para tratar o escravo tal como o senhor falou, Olaf Thoragasson. E Ingor aconselhou-o a fazer justamente o que disse Erik.

Ela olhou para cada um deles e depois prosseguiu:— Ele não conseguia se decidir. Confiava nos irmãos, mas não tinha certeza

se estavam certos. O tempo passou e a raiva diante do próprio fracasso em se resolver o deixou quase maluco. Finalmente, num momento de loucura, pegou a espada, despediu-se do escravo e atravessou o coração do homem.

Ouviram-se brados dos Thoragasson, gemidos das mulheres, risos de Erik, e nada, absolutamente nada da parte de Merrik. Ele não se mexeu, sua expressão não se alterou. Continuou a fitá-la, impassível. E quando todos se aquietaram, ele indagou:

— Este não é o fim do viking, é? O que aconteceu a seguir?— Rolf recuperou o bom senso mais uma vez, e lamentou o que fizera. Não

conseguia dormir nem comer. Afastou-se dos irmãos, culpando-os pelo erro de julgamento, pela morte do escravo.

— Os irmãos ficaram furiosos e começaram a atormentá-lo, dizendo que era mais tolo que o escravo que confiara em sua palavra. Matar um escravo tão valioso era loucura. Rolf era louco. Por fim, ele não conseguiu suportar mais. Só

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havia um jeito de emendar as coisas. Livrou-se de todas as armas e embrenhou-se na floresta. Sabia que cedo ou tarde, um animal selvagem o atacaria e o mataria. Queria a morte para livrá-lo do homem em que se tornara.

Laren parou. Sua cabeça latejava, e ela estava com sede. Ainda sentia dor entre suas coxas. Estava em carne viva, mas a dor da indiferença de Merrik durante o dia inteiro a machucava muito mais.

Na sala, fez-se um silêncio tão grande que ela poderia ouvir a fumaça subindo pelo buraco no teto de palha. Tinham detestado sua história. Jogariam coisas nela. Pediriam para que Deglin voltasse. Então, um resmungo ecoou, e logo todos pediam para que continuasse. Ela sorriu e meneou a cabeça latejante.

— Estou muito cansada. Por favor, preciso parar agora. Havia moedas de ouro entre as de prata, a maioria apertada contra a palma de sua mão, e um belo broche. Então, Letta Thoragasson parou diante dela e sorriu. Não era um sorriso agradável.

— Escute aqui — disse, e agarrou Laren pelo pulso, puxando-a para perto. — Não pense que vai me derrotar, porque não vai. Não me importo que Merrik a use. É um homem, com as necessidades de um homem, e você nada mais é que um objeto onde ele descarrega a luxúria. Por enquanto, pois em breve, assim que nos casarmos, eu a venderei e nunca mais verei sua cara feia outra vez. — Parou, e o sorriso alargou-se. — Oh, sim, ele a venderá. Será meu presente de casamento. Quem sabe? Talvez meu pai a compre, e você passará o restante de sua vida miserável contando histórias a ele. — Largou o pulso de Laren com um safanão, e afastou-se.

— Ela tem razão, você sabe.Laren virou-se. Era Erik, e ele ouvira as palavras de Letta.— Você é a concubina de Merrik, e isso vai acabar quando ele se casar com

aquela tolinha. Meu irmão sonha em encontrar uma esposa que seja como nossa mãe foi para nosso pai. Não acontecerá com essa aí. Ele se deitará com Letta por um curto tempo, será fiel a ela até perceber que ela lhe dá muito pouco, e então terá outras mulheres, como tem de fazer. Pode acreditar em Letta e pode acreditar em mim. Merrik a venderá assim que se casar. Mas, se você for boa comigo, Laren, eu não deixarei que ele a venda para o velho Thoragasson. Eu a comprarei e a manterei aqui, comigo.

—Laren! — Merrik aproximou-se dos dois. — Faltou força e paixão à sua história, esta noite. Talvez esteja poupando esta paixão para mim. Venha.

Laren tomou a mão que ele lhe estendeu, e o seguiu para o quarto. Ouviu uma risadinha maldosa. Virou-se. Era Letta.

Ele soltou-lhe a mão assim que estavam dentro do aposento e começou a se despir. Perguntou, enquanto puxava a túnica pela cabeça:

—Quem é você, Laren, a filha de um mercador? Sobrinha de um estalajadeiro? Sei que não era escrava dois anos atrás. Você é muito orgulhosa, e era virgem, algo que não seria depois da infância, caso contrário.

Ela não disse nada.Ao ficar nu, Merrik virou-se e viu Laren sentada na beirada da cama,

completamente vestida, as mãos no colo. Tinha os olhos cravados nele, no abdômen coberto de pêlos loiros. Então, ela desviou os olhos para baixo e enrubesceu.

— Pare de olhar para mim — ele disse, enfurecido. — Esqueceu o que eu lhe fiz a noite passada? Tire suas roupas e vá dormir. Ainda deve estar muito dolorida para que eu possa tomá-la de novo.

Mesmo assim, ela não se mexeu. Merrik sentiu seu membro intumescer, e nada pôde fazer. Seu coração martelava no peito; e ele ardia de desejo por ela, maldita fosse.

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— Quer mais da dor que sentiu a noite passada? Laren meneou a cabeça em negativa.

— Então pare de me olhar, maldição! Fiz meu papel na frente de Erik, mas agora quero dormir apenas.

Deitou-se, e o quarto mergulhou na escuridão quando Laren apagou a lamparina. Ouviu então o farfalhar de roupas. Não se mexeu.

—Sua história foi muito estranha. Creio que é mais que um simples conto, não é?

—Não passa de um conto, Merrik.—Ela quase podia ouvi-lo pensando no escuro, remoendo perguntas sobre ela e Taby. Tentou distraí-lo. — Letta me disse que não se importa que eu seja sua concubina até o casamento. Acho que quis dizer que você podia praticar comigo. Talvez pudesse se beneficiar de algo na noite passada, mas não tenho certeza. — Ela o ouviu respirar fundo. Continuou, com voz irônica: — Eu me imaginei como um tipo de alvo e você como uma espada poderosa. Você não errou o alvo, mas não foi uma morte limpa, falando com relação ao alvo, é claro. Mas acho que as espadas não se importam, contanto que haja uma morte.

Merrik ficou furioso. Letta era assunto seu, e de mais ninguém. Virou-se de costas, lutando para não rebater as palavras de Laren, mas não conseguiu.

— Não gosto de sua comparação; é insultante. Que bobagem é essa, você um alvo e eu uma espada? Está insinuando que eu preciso praticar mais?

— Perguntei a Sarla sobre as relações de um homem e de uma mulher, e ela me assegurou que não doía depois da primeira vez e mesmo a primeira não era tão ruim se o homem fosse gentil e experiente. Pode ser que precise praticar, Merrik, pelo menos para essa primeira vez.

— Ainda está dolorida?— Sim.— Não vou praticar com você até que esteja completamente curada e me

peça. E pare com seus insultos. São insultos, sim, envolvidos em palavras suaves.— Eu lhe disse que a noite passada seria a única vez. Pena não ter ficado

sabendo se seria agradável ou não...— Então, por que está me olhando, como uma criança olhando para fatias de

maçã com mel? Meu corpo de homem é assim, reage quando uma mulher olha, mesmo que seja você. Não há nada que eu possa fazer para impedir. Não que eu queira me enterrar em você outra vez, os deuses sabem que não quero.

Merrik calou-se. Falava coisas sem sentido, mentindo para si mesmo, e para Laren. Ouviu-a respirar calmamente, imersa no sono. Teve vontade de estrangulá-la. Céus, praticar! Ele sabia muito bem agradar as mulheres, seu pai providenciara isso, tivera aulas com a maravilhosa Gunnor que o tomara na mão, literalmente! Não era sua culpa que o desejo o forçasse a se apossar de Laren antes que fosse prudente. Claro que não.

Todos acordaram na manhã seguinte com a chuva caindo. Os ânimos logo se incendiaram com a inativi-dade forçada. Mesmo os animais estavam inquietos. E foi Cleve quem sugeriu a Merrik que Laren continuasse a história. Assim, pouco antes do meio-dia, quando todos se calaram, Laren começou:

...Rolf vagueou até os confins da floresta, e nenhum animal selvagem apareceu para enfrentá-lo. Havia coelhos e gatos-do-mato, mas nada maior que uma raposa. Então, chegou a uma pequena campina, a mais bela que já vira, coberta de flores de todas as cores. Parado ali, julgou que o juízo o tinha abandonado, pois ele nascera ali, sempre caçara naquela floresta e nunca estivera naquele lugar. De súbito, do lado oposto da campina, ele avistou uma bela criatura. Parecia um cavalinho, farejando o ar da manhã, agitando a cauda branca. Rolf percebeu que o animal não tinha medo dele.

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O cavalo sacudiu a cabeça, como se o convidasse a chegar mais perto. Ao se aproximar, Rolf notou que não era um cavalo nem qualquer outra espécie de bicho que ele conhecesse. Estava diante dele agora, e viu que o animal tinha um chifre que saía do meio da testa. E o chifre era de ouro.

Estendeu a mão devagar. O animal relinchou e depois esticou a bela cabeça branca e pousou o focinho na palma de Rolf.

— Quem é você? — indagou.

Para sua absoluta surpresa, a criatura respondeu, baixinho:— Sou um unicórnio, Rolf, mas sou também algo mais. Você está muito fraco

de vaguear pela floresta. Volte para sua casa e amanhã retorne aqui. — O unicórnio virou-se, empinou as patas traseiras, sacudiu a crina branca e galopou para as profundezas da floresta. Rolf podia jurar que ouviu a voz lhe dizendo: — Não se esqueça de suas armas amanhã, pois é perigoso na floresta.

Aturdido, voltou para sua casa. Seus irmãos ficaram aliviados ao vê-lo, e ele se viu contando sobre o unicórnio, descrevendo a criatura e falando do belo chifre de ouro, dizendo que conversara com ele e que o animal lhe pedira para voltar no dia seguinte. Não era curioso? O que pensavam da criatura? Perguntou aos irmãos o que fariam.

Ragnor achou que o irmão perdera o juízo e sonhara com a estranha criatura. Mas indagou:

— Você disse que o chifre era de ouro?— Sim — respondeu Rolf. — Era de puro ouro, se meus olhos não me

enganaram.Os irmãos caíram em silêncio, mergulhados em seus pensamentos.Laren fez uma pausa, e então sorriu para Olaf Thoragasson.— Se fosse Rolf, meu senhor, o que faria a respeito do unicórnio?Thoragasson socou as coxas com os punhos fortes.— Ora, eu mataria a criatura e cortaria seu chifre de ouro. Venderia ao mais

rico príncipe do mundo e me tornaria tão rico quanto ele.Depois que os aplausos cessaram, Laren virou-se para Erik.— E o que faria, meu senhor?—Eu levaria a criatura até minha casa e a trataria tão gentilmente como se

tratasse uma mulher. Conquistaria sua confiança. Tinha de ter um parceiro, e eu procuraria esse parceiro. Colocaria os dois juntos. Claro que gerariam uma prole, e eu conseguiria mais criaturas de chifres de ouro. Assim, ficaria mais rico que Olaf Thoragasson.

As palmas encheram a sala. Finalmente, Laren voltou-se para Merrik.— E o senhor, meu amo? O que faria? Merrik deu de ombros:— Voltaria à campina e veria o que a criatura mágica tinha para me dizer.— Um homem de estratégia! — Thoragasson exclamou, sacudindo a cabeça

em aprovação. — Continue, moça. Conte o que aconteceu.Desta vez, Rolf não quis tomar uma atitude apressada. Já agira assim, e

perdera um amigo e um escravo de grande talento e, suspeitava, algo de sua honra. No dia seguinte, voltou para a campina. Pensou em como encontraria a criatura, e de repente, o unicórnio estava do outro lado da campina, esperando calmamente que ele se aproximasse. Deixou-o afagar sua cabeça e alisar o chifre de ouro.

— Este chifre é de ouro puro? — Rolf indagou.— Sim, do mais puro ouro. Por que pergunta?— Meus irmãos me deram um conselho. Disseram para matá-lo e roubar seu

chifre de ouro ou capturá-lo junto com seu parceiro, e ficar com vocês e suas

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crias.— O que você quer fazer, Rolf?—Quero conversar e saber quem e o que você é. Nunca vi uma criatura assim

antes.—Sou mágico — disse o unicórnio. — Mas sou algo mais também. Sou seu ex-

escravo, aquele que você transpassou com sua espada.Assombrado, Rolf olhou para a criatura. Sacou a espada, pois tinha certeza

de que o animal tentaria matá-lo. Voltara para se vingar. Ficou parado, espada na mão, e o unicórnio não fez nada, não se afastou nem tentou se proteger. Rolf ergueu a espada e então, abaixou-a, lentamente.

— Não posso fazer isso. Quando o matei antes, senti tanto horror de mim mesmo que vim para a floresta a fim de morrer. Mas você me encontrou e quero me redimir por ter lhe tirado a vida. Se escolher me matar, não moverei um dedo contra você.

O unicórnio sacudiu a cabeça, o chifre dourado a reluzir ao sol. Então, de repente, desvaneceu-se em luz e sombra, até que Rolf percebeu que podia ver através do corpo diáfano da criatura. Aterrorizou-se. Caiu de joelhos, à espera da morte. Contudo, conforme o unicórnio ia desaparecendo, algo surgia e ganhava substância. Era o escravo que ele matara. O homem lhe estendeu a mão e disse:

— Os deuses nos concederam outra chance. Venha comigo, Rolfe viajaremos juntos de volta à minha família.

Os dois irmãos de Rolf nunca mais o viram. Acreditaram que o unicórnio o havia matado. Confiara no animal e olhem só o que acontecera.

Foi então que surgiu em Vestfold, um velho bardo, sem dentes, enrugado e de pernas tortas. Todos duvidaram que ele tivesse algo a contar que valesse a pena, mas quando ele abriu a boca, o povo sucumbiu à sua mágica. Ele falou de um homem chamado Rolf, o vi-king; um homem forte, corajoso, esplêndido de corpo e de feições, além de muito sábio. Todos os reverenciaram ao saber por ele que Rolf fora posto aprova e aprendera o verdadeiro sentido da honra e da dignidade.

Seus irmãos quiseram inquirir o velho bardo. Mas ao procurá-lo, os guardas dos portões da paliçada, disseram que o homem se fora com o nascer do sol, como se houvesse se fundido ao brilho da luz até desaparecer. Os irmãos se entreolharam. Daquele dia em diante, nenhum deles mencionou o nome de Rolf outra vez nem a estranha aparição do velho bardo.

Laren sorriu para Merrik sem se dar conta. Ele a fitou, e depois olhou para Taby que estava bem acordado em seu colo, encarando a irmã com uma ruga na testa.

—Laren — disse o menino —, eu me lembro do unicórnio.Ela o fitou.— E porque eu já lhe contei histórias sobre criaturas mágicas. Vá brincar com

ela, querido.Laren ia afastar-se, mas Olaf Thoragasson a deteve.—Você nos puxou para dentro de sua história. Isso é bom. Nenhum escaldo

fez isso antes. Falarei com Merrik, quero comprá-la.Antes que ela pudesse dizer alguma coisa, o velho saiu, esfregando as mãos.Ao ouvir aquilo, Letta franziu a testa e virou-se para Laren.— Parou de chover. Merrik e eu vamos dar um passeio até o fiorde. Acho que

deixarei que ele me beije. Assim ele saberá o que é beijar uma virgem inocente.— Ah, então vai deixá-lo praticar com você, Letta? A garota girou nos

calcanhares, a palma da mãoaberta, acertando a face de Laren, que cambaleou com o impacto do golpe.

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Não satisfeita, Letta a agrediu de novo, desta vez jogando-a no chão.Laren saltou de pé e no instante seguinte, estava sobre Letta. Torceu as

trancas grossas nas mãos, até a garota gritar de dor.—Escute, sua bruxa malcriada. Nunca mais vai me bater de novo. Se ousar,

eu arrancarei seus belos dentes brancos, um a um.Deu um empurrão em Letta, que caiu nos braços de Merrik. Ao perceber

quem a abraçava, a garota explodiu em lágrimas e virou-se, comprimindo-se a ele, soluçando em seu peito.

Merrik viu as marcas da mão de Letta na face de Laren, a raiva nos olhos dela, e percebeu o instante em que ela se deu conta do que fizera.

Olaf Thoragasson investiu como um touro enraivecido naquela direção. Erik esfregou as mãos de contentamento. Merrik empurrou Letta para o irmão mais novo, e agarrou Laren pelo braço, puxando-a.

— Ela é minha escrava — disse. — Eu a punirei.— E que castigo será, irmão? Imagino que seja severo.—Quando ela ficar mais forte, eu a açoitarei. Agora, ela não sobreviveria.

Laren irá cozinhar pelos próximos três dias. Sarla, fará com que ela obedeça a você quando eu não estiver presente?

Sarla sacudiu o punho, e sorriu.— Claro, Merrik, eu a acertarei com o caldeirão se ela não cozinhar de boa

vontade.— Nada de insolências, Sarla! — Erik avermelhou de raiva, e rumou na

direção da esposa, a mão direita em punho.—Não foi insolência, irmão — Merrik interveio, puxando Laren consigo ao

interceptar o caminho de Erik. — Ela estava apenas brincando, nada mais.— Isso não é da sua conta. — Erik desviou-se do irmão e esbofeteou Sarla

com a palma aberta.—Aprenda a guardar a língua no futuro. — Então, virou-se para Merrik. —Veja como se deve tratar uma esposa.

As mãos de Merrik se fecharam em punhos. Na sala, ouviu-se apenas o suspiro de Sarla, com as lágrimas escorrendo pelo rosto, todos com medo de dizer uma palavra.

Então, Letta gritou:— Ela disse que iria arrancar todos os meus dentes! Um a um! Bata nela,

Merrik, ela merece.Merrik controlou a risada que lhe subiu pela garganta, e também a fúria com

a atitude de Erik. Uma fúria impotente, pois não poderia destratar o irmão em sua própria casa. Naquele momento, se deu conta de que teria de ir embora, encontrar um novo lar onde ele fosse o senhor. Virou-se para Letta e disse:

— Ela só quis assustá-la. Acalme-se.Virou-se para encarar os outros homens; Deglin, que parecia desapontado

por ele não chicotear Laren no poste, naquele instante; o velho Firren, cavoucava o braço da cadeira, os olhos fixos na tarefa; e por fim, Cleve, que estava branco com o esforço para se manter imóvel. Taby, graças aos deuses, assim como as outras crianças, brincava, sem ter visto nada. Os homens de Thoragasson pareciam hesitantes, desviando os olhos de Letta. Sarla estava de cabeça baixa, sentindo-se humilhada com a atitude do marido.

Emendou depressa:— Até que seja hora de Laren suar no fogão, eu a levarei para os campos, e

ela trabalhará lá.Sem mais uma palavra, arrastou-a para fora da casa. O chão ainda estava

molhado, mas o sol já havia secado as poças de lama. Laren enterrou os calcanhares no barro.

— Pare de me arrastar! Merrik virou-se e sorriu.

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—Bela representação. — Soltou-a. — Siga-me, e ande depressa. — Ela o acompanhou a passos rápidos. — Arrancar todos os dentes dela, um a um. Gostei. E uma ameaça e tanto.

— Achei que fosse — Laren resmungou, emparelhando com ele. — Odeio Erik. Ele é um brutamontes sem consciência. Bateu em Sarla, Merrik, bateu só para provar que era mais forte, que ela não era nada. Sinto muito que seja seu irmão, mas eu o detesto. Ele é um tirano e um animal.

—Tenho de admitir que Erik mudou — Merrik murmurou, com um suspiro de desgosto.

— Fiquei aliviada que você não o agredisse depois que ele bateu em Sarla.— Eu bem que queria. Mas não seria prudente. Não tenho voz ativa na casa

dele, e devo me lembrar disso.— Não quero ficar aqui.— Eu estava pensando nisso também.— Sinto muito por ter quase arrancado os cabelos daquela cabeça tola —

Laren disse, com relutância. — Mas Letta me enraiveceu e perdi a cabeça.—Imaginei que depois de dois anos de castigo e punição, você tivesse

aprendido a manter a língua atrás dos dentes.— Era para já ter acontecido.— Mas não aconteceu. Eu me lembro claramente de suas costas depois que

Thrasco a surrou pela falta de prudência.— É um defeito que provavelmente me matará.— O que Letta lhe disse?— Que iria passear com você e talvez o deixasse beijá-la para você saber

como era beijar uma virgem inocente.— Ah, sei... E o que você respondeu para que ela a esbofeteasse?— Sugeri que ela deixasse você praticar nela. Isso a enfureceu.Merrik riu.— Você caçoou dela de propósito. — Olhou para os abetos na montanha. —

Nunca ouvi falar de um unicórnio antes.— São criaturas míticas, mágicas.— Com chifres de puro ouro na testa?— Sim.Ele calou-se por um instante.—Sua história me interessou. Por acaso era um teste?— Era. — Laren o encarou com franqueza. — Sei que não venderá Taby de

volta para mim, não importa a quantidade de prata que eu tenha.— Fico contente que compreenda que eu nunca o deixarei ir embora.—E como será quando se casar com Letta? Ela odiará Taby só porque ele é

meu irmão.— Não se preocupe com isso.Laren não disse mais nada. Quando chegaram ao campo de centeio, onde

outros já trabalhavam, Merrik apontou para as aves que voavam ao alto.— Seu trabalho será manter as aves longe da colheita.Laren olhou para Merrik, vendo-o inclinar-se e esticar o corpo forte, o suor a

brilhar na pele com o sol da tarde. Sentiu uma pontada de desejo, e soube então que era ele que ela queria. Mas se conteve. Tinha de manter distância.

Ele a dispensou no meio da tarde para comer. O vento tinha levado a chuva que caíra durante toda a manhã para o Norte. O sol voltara a brilhar.

Laren, pela primeira vez em dois anos, teve consciência de que havia algo mais importante para ela do que pão quente e saciar a fome. A passos rápidos,

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seguiu pela trilha que levava ao cume de um penhasco debruçado sobre o fiorde. Estivera olhando para aquela montanha nos últimos dias, desejando muito subir até lá para poder apreciar a magnífica paisagem. Sentiu o calor do sol em sua pele. Não queria ficar longe do campo. Não queria ficar longe de Merrik. Lembrou-se dele sorrindo, tirando suas roupas, acariciando-a, penetrando-a, dando-lhe prazer até que a machucara, não por culpa dele, mas de seu corpo, desacostumado a um homem. Queria que ele a possuísse outra vez, queria muito. Era mais forte agora, aquele desejo. Sentiu o pulso acelerar-se de um modo assustador e excitante. Seria uma tola caso se entregasse com prazer a Merrik.

À trilha era íngreme, estreita, com sulcos profundos e pedras soltas. Sua respiração tornou-se ofegante. Olhou para o topo, não tão distante agora, manteve o olhar fixo até chegar lá, arquejante. Finalmente conseguira.

Caminhou até a beirada. A vista era mais espetacular do que ela imaginara. O fiorde se estendia em múltiplas curvas, o azul profundo a se perder de vista. O lado oposto, coberto de abetos onde a mão do homem não tocara, pairava a centenas de metros acima da água. Laren virou para o outro lado, e olhou para Malverne, com seu terreno todo cultivado. A paliçada de madeira parecia um círculo quase perfeito daquele ponto de vista; as construções sólidas, rodeavam a casa-grande de forma retangular. No fundo do terreno, ficava o cemitério e o templo. Ela sabia que Merrik visitara várias vezes o túmulo dos pais, sempre retornando acabrunhado, a cabeça e os ombros caídos. Sabia o que ele sentia. Ainda não tinha contado a ele sobre seus pais, também já mortos, porque ele certamente iria querer saber quem eram eles, mas em breve teria de falar sobre isso. Merrik tinha razão quanto à história ser um teste. Agora, confiava nele, tinha de confiar.

Sentou-se, não muito longe da beirada do penhasco, e recostou-se a uma pedra. Pensou em Merrik, e imaginou quantos casais de namorados tinham subido até aquele local no passado. Muitos, pensou, e seus olhos se fecharam.

— Vi quando você subiu até aqui. Esperei para ver se meu irmão viria atrás de você, mas ele não veio. Então, eu a segui.

Sonolenta, Laren ouviu a voz, de longe, uma voz carinhosa, cheia de satisfação.

— Ninguém mais viu você ou eu subindo até aqui. Este local é chamado de Raven's Peak. No passado ele foi usado como ponto de observação contra ataques inimigos. Hoje é o lugar dos amantes, e você está aqui, Laren.

Havia exultação e prazer naquela voz, o tipo de prazer que um homem encontraria ao descobrir que surpreendera uma mulher sozinha, desatenta; uma mulher que ele poderia tomar. Laren sentiu o coração acelerar-se.

— Sei que está acordada, Laren. Pensei que tivesse vindo aqui para encontrar um homem, mas você está sozinha. Merrik não a quis no meio do dia?

Laren abriu os olhos e deparou-se com Erik. Era difícil ver-lhe o rosto porque o sol estava bem atrás dele. Se não o conhecesse, teria julgado que ele era um deus, dourado e radiante, enorme. Devagar, ela se levantou e recostou-se à pedra.

—Está tarde. Tenho de voltar ao campo. Merrik está me esperando.— Por que veio aqui?— Ouvi dizer que o pico tinha a mais linda vista de suas terras. Quis ver por

mim mesma.—Como eu disse, homens e mulheres vêm aqui para copular.— Eu só vim olhar.— E eu para ter você. Sabia que eu a seguiria se você desse um jeito de se

afastar de Merrik, não é? Era isso que você queria?— Não, Erik. Preciso ir agora. — Ela tentou esquivar-se, mas não foi rápida o

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bastante. Erik agarrou-a pelo braço.—Ainda está muito magra. Meus dedos podem enlaçar seu braço. Não tente

fugir de mim. Não gosto disso.Ela se virou para encará-lo. A beleza do rosto era mascarada pela luxúria.

Lembrou-se da noite, longo tempo atrás, em que fizera de tolo um homem que a agarrara, fingindo desmaiar. No entanto, não teria sucesso com o mesmo truque, não com Erik.

—Não quero nada com você. Pertenço a Merrik. Por que quer aborrecer seu irmão? Não o ama? Não existe honra entre vocês?

Ele estreitou os olhos, os dedos segurando-a com firmeza.—Escute bem, sua vadiazinha, sou o senhor de Malverne, sou o dono de tudo

que você vê daqui. Antes eu era apenas um filho governado pelos pais. Agora é diferente.

Antes, eu não batia em Sarla, pois meus pais a defendiam. Agora, ela me obedece e anda sempre perto de mim.

— Erik, não sou sua esposa. Sou uma inútil. Você disse que estou muito magra. É verdade. Por favor... não me machuque.

Ele sorriu e puxou-a contra o corpo. Laren percebeu que não teria chance. Não queria ser violentada. Não suportaria.

Munindo-se de coragem, jogou a cabeça para trás e encarou-o.— Não faça isso, ou irá se arrepender.No momento em que as palavras saíram de sua boca, Laren percebeu que

cometera um erro.Erik esbofeteou-a como fizera com a esposa. Laren reprimiu o grito na

garganta. Não daria a ele o prazer de vê-la gritar.— Agora, chega! — ele exclamou.Beijou-a com rudeza, sua boca a esmagar a dela, os dentes cortando seu

lábio inferior. Uma das mãos apertou-lhe o seio direito, apalpando-o furiosamente, machucando-a. A outra mão puxava sua túnica, mas o tecido era forte. Ele recuou, levou ambas as mãos ao decote do vestido, e puxou.

Laren ouviu o ruído do pano se rasgando ao mesmo tempo em que erguia o joelho direto na virilha de Erik. Ao sentir que ele afrouxava o aperto de espanto, ela conseguiu livrar-se. Saiu correndo pela trilha estreita. Ouviu-o berrar lá de cima e soltar um gemido, mas não se virou. Estava apavorada. A qualquer momento sentiria aquele hálito quente em seu rosto, as mãos brutais a agredi-la. Depois, seria estuprada e morta.

Continuou correndo, mas tropeçou numa pedra e caiu, batendo a cabeça. Uma explosão de branco a cercou, e ela não viu mais nada.

Laren não soube dizer quanto tempo se passara quando acordou, devagar, a cabeça girando, os olhos desfocados. Sacudiu a cabeça, e sentiu um calombo do lado da orelha esquerda. A dor espalhou-se por trás de seu pescoço. Então, de súbito, recordou-se do que acontecera. Agarrou-se à beirada da pedra e ergueu-se, tentando manter o equilíbrio e controlar as batidas do coração.

Erik não estava à vista. Será que ela perdera a consciência apenas por um instante? Será que ele ainda estava de joelhos segurando a virilha?

O medo a transpassou, clareando-lhe os pensamentos. Apavorada, não esperou mais, e desceu a trilha sem parar, tropeçando aqui e ali, até chegar ao sopé do penhasco e se recostar a um abeto para recuperar o fôlego. Seu coração batia descompassado, o lado do corpo doía, as costas, quase curadas, latejavam.

— Por todos os deuses, onde esteve? Merrik correu em sua direção.— Pensei que tivesse sido atacada por um animal selvagem ou caído na água

e se afogado.— Queria ver a vista do cume e...

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— O que houve com seu vestido? Quem fez isso? Merrik agarrou-a pelos braços como o irmão fizera,mas afrouxou os dedos no mesmo instante. Laren arquejava, o rosto estava sem cor e a pulsação acelerada.

—Quem fez isso com você? — Viu-a encolher-se, levar a mão para o coração. — Diga o que aconteceu — falou, com mais calma.

— Eu caí, caí e desmaiei por algum tempo. Estou bem agora, Merrik. — Mas, conforme falava, Laren olhava, por sobre o ombro, para a trilha.

— E ao cair rasgou o vestido? Por todos os deuses, quem fez isso com você!—Quero voltar para a casa-grande. Por favor, Merrik!O medo de Laren era palpável.— Nenhum de nós vai a lugar algum até que você me conte o que aconteceu.Ela começou a tremer e a falar sem muita coerência:— Ele está lá, eu sei... Rasgou meu vestido, mas não fez nada mais, nada,

juro... Eu o machuquei... dei-lhe uma joelhada e o ouvi gritar atrás de mim, gemendo... Ele vai descer e me verá com você, e ele me levará embora... vocês brigarão, e eu não posso suportar isso, não irmão contra irmão!

— Quanto tempo ficou inconsciente?— Não sei! Por favor, Merrik, solte-me, não deixe que ele me veja!— Você me deixou para voltar para casa faz uma hora. Fiquei preocupado e

comecei a procurá-la.— Uma hora? Oh, não, não pode ser...

De repente, Laren sentiu os dedos de Merrik se apertarem em torno de seus braços. Virou-se e viu Oleg caminhando na direção deles, com o velho Firren logo atrás.

— Fique aqui. Não saia deste local. Entendeu?— Por quê? Aonde vai?Merrik praguejou e agarrou-a pela mão, puxando-a.—Venha. Oleg, Firren. Precisamos ver se Erik está bem.Eles o encontraram esparramado no alto do pico, de cara no chão, a perna

direita pendurada pela beira do penhasco. O verso da cabeça estava esmagado. Erik estava morto. Na mão direita, segurava um pedaço de lã. Merrik reconheceu-o.

Fora Erik que rasgara o vestido de Laren.— Ah, escrava, você o matou e agora vai morrer! Rirei de satisfação quando

o último suspiro deixar seu corpo miserável.Laren adormecera numa escuridão assustadora depois do chá que Sarla lhe

dera. E, agora, a voz de Letta, soava cheia de alegria maldosa. Mesmo assim, era melhor que aquelas sombras que pareciam lhe sugar a vida.

— Sim, você vai pagar, vagabunda. Erik tinha o direito de tomá-la. E você o matou. Agora, Merrik terá de matá-la, é seu dever vingar o irmão.

— Eu não matei Erik.— Mentirosa. Ninguém mais foi visto na trilha. Só você e Erik. Os homens

estão discutindo neste instante o que fazer com você.— Não matei Erik! — Laren exclamou, ouvindo o som oco da própria voz,

sabendo que ninguém acreditaria nela, ninguém.— Você dormiu por um longo tempo. Sarla achou que seria melhor para você,

aquela vaca estúpida. Não queria que os homens a matassem. A idiota não se deu conta de que além de perder o homem que a castigava pela insolência, também perdeu Malverne. Agora, tudo aqui pertence a Merrik, e a ninguém mais, até onde a vista alcança. E quando nos casarmos, eu serei a senhora daqui. Mandarei a tola embora daqui.

— Tenho certeza de que Merrik não deixará que Sarla saia de Malverne.

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— Ele há de querer me fazer feliz e fará o que eu quiser.— O que está fazendo aqui, Letta?A silhueta recortada de Merrik desenhou-se na abertura da porta.—Oh, é você... Sarla pediu que eu a acordasse. É estranho que a viúva de

Erik tenha tanta consideração com a escrava que matou seu marido.Letta endireitou-se e caminhou para perto de Merrik. Parou diante dele, e

tocou-lhe o braço.— Sinto muito, Merrik. Primeiro, seus pais, e agora esta escrava estúpida

matou seu irmão. Compreendo o que está sentindo. Também perdi minha irmã mais velha faz dois anos. E uma coisa dolorosa.

— Vá ficar com seu pai, Letta — ele ordenou. Ela sorriu, bateu-lhe de leve no braço e afastou-se. Merrik aproximou-se da cama e gentilmente olhou para Laren.

— Acabou — disse. — Meu irmão se foi. Visualizou o irmão carregado pela trilha, com ele próprio a fitar sua cabeça ensangüentada conforme o segurava pelos ombros. As mulheres o limparam e o vestiram nos melhores trajes. O corpo não fora levado para a casa-grande e sim carregado para o cemitério e colocado com cuidado na cova funda cavada ao lado da sepultura do pai. A espada, o machado e a faca favorita de Erik foram enterrados com ele, assim como os braceletes e as roupas preferidas.

O próprio Merrik conduzira as preces aos deuses, Implorando para que elos aceitassem a passagem de Erik Haraldsson pela ponte do arco-íris a caminho do céu, para recompensá-lo por toda a eternidade, e o abençoassem em sua jornada final. Conforme falava, vira a cabeça ensangüentada do irmão. Tivera de fechar os olhos.

Todos falavam da provável culpa da escrava. Mas ele era o senhor de Malverne agora. Era seu julgamento que contava, suas ordens que regulavam tudo, de nenhum outro.

Encarou-a.— Eu não o matei, Merrik. Chutei-o na virilha e corri até tropeçar, cair e

desmaiar. Por favor, acredite em mim.Erik aproximou-se ainda mais e olhou fixamente nos olhos de Laren.—Posso imaginá-la deitada de costas, Erik em cima de você, puxando seu

vestido, querendo despi-la e se apossar de você. Posso vê-la tentando se defender desesperadamente, pegando uma pedra e acertando-Ihe a cabeça. Saiba, que não a culpo por isso, Laren. Você foi tola em subir sozinha até o pico.

E, agora, meu irmão está morto porque a luxúria o impeliu a violentar a mulher errada.

— O que pretende fazer comigo?—Não sei ainda. Todos acreditam que você seja a culpada.— Eu não o matei! Juro!— Como escrava, por matar um homem da posição de Erik, sua morte

deveria ser longa e dolorosa. Seria eu quem deveria torturá-la até a morte. — Os olhos ainda estavam fixos nela.

— O que fará?—Não sei. Só sei que não posso permitir que a irmã de Taby morra. Eu nunca

me perdoaria.O alívio, estranhamente mesclado à dor, invadiu-a. Mas era apenas a irmã de

Taby?— Você não acredita em mim, Merrik?— E por que eu deveria? Você nunca me disse nada a seu respeito desde que

a resgatei em Kiev...Lá fora, um grito de homem se fez ouvir. Merrik disse com rispidez:— Fique aqui!

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Ele saiu do quarto no mesmo instante, com Laren atrás, segurando o vestido rasgado.

Dois dos homens de Erik seguravam Cleve, enquanto um terceiro o surrava. Era Deglin quem gritava para que matassem o miserável escravo.

Merrik agarrou o pulso de um deles e o puxou, jogando-o ao chão. Chutou o outro com força.

— Solte-o!Os dois olharam para Merrik, mas não o conheciam tão bem como conheciam

o irmão. Sua voz era baixa, muito controlada. E um deles disse, ao torcer o braço de Cleve quase a ponto de quebrá-lo:

— Ele veio com a moça, senhor. Arrancaremos a verdade dele, pois certamente ela lhe contou sobre a morte de Erik, talvez até a tenha ajudado.

O outro acertou um murro na barriga de Cleve. Merrik investiu contra o homem e o segurou pelo pescoço.

— Solte-o, ou o matarei!O sujeito gritou para os outros:— Venham, me ajudem! E justiça!Merrik apertou o pescoço do homem, fazendo-o cair de joelhos e depois

tombar, inconsciente.— Alguém mais quer fazer mal a este homem?— Ele é um escravo! — Olaf Thoragasson exclamou, a voz mais branda, pois

presenciara a raiva e a violência de Merrik. — Nada mais que um escravo. Os homens têm razão, é provável que ele saiba a verdade. Deixe que o arrebentem. Ninguém se importa.

— Creio que Cleve se importa, e muito. — Merri virou-se para o escravo. — Você está bem?

— Meu braço dói, mas ele não o quebrou. Agradeço, meu senhor.— Ele é um escravo! — Deglin berrou.— Não, não é! — esbravejou Merrik. Encarou-os, olhando para cada um. —

Agora, ele é um homem livre. Todos prestem atenção às minhas palavras, Cleve é um homem livre.

— Ah — Thoragasson disse com escárnio. — Se ele é livre, faça-o pagar a taxa pelas terras, o Danegeld, pela morte de Erik. Se não tiver o Danegeld, então deve morrer, e por sua mão.

— Esperem! — Era Deglin outra vez. — Ela matou Erik, não este pagão medonho. Peguem-na! Ela que morra, a escrava. Foi ela quem matou Erik. Todos sabem disso!

— Ali está ela, pergunte a ela, pergunte a ela! — gritaram os outros.Laren estava imóvel, muda. Merrik sabia que ela possuía a prata e algumas

jóias que ganhara contando as histórias, mas por certo não era o suficiente para o Danegeld, não o bastante para ela e Cleve. Cleve olhou para Merrik, e disse, em voz alta e forte:

— Meu senhor, Deglin tem razão. Eu matei Erik, não Laren. Ele a machucou e ela fugiu. Eu o ataquei com uma pedra. Sou o responsável.

— Não! — Laren agarrou-o pelos braços, sacudindo-o. — Não minta, Cleve, não por mim! Eu não o matei, e nem você.

Virou-se para todos os outros, homens e mulheres, a encará-la, a fúria em alguns rostos, a incerteza em outros. Viu Sarla diante do fogão, mexendo um ensopado.

— Claro que foi ele que o matou, não foi nenhum outro. — Desta vez, era um dos homens de Erik. — Ele era muito admirado, um homem corajoso, um homem honrado.

— Sim, sim!

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De repente, Sarla berrou:— Silêncio, todos vocês! — Caminhou devagar em meio ao aglomerado de

pessoas e chegou até onde estava Merrik. — Não permitirei que Cleve e Laren sejam acusados. Eu matei Erik! Eu, sozinha. Ele me agrediu muitas vezes desde que os pais morreram, desde que se tornou o senhor aqui, e eu o odiava. O maldito seguiu Laren até o pico para estuprá-la. Todos sabem como ele a cobiçava embora ela pertencesse a seu irmão. Ele não se importava. A lascíyia o governava. Ela lutou com ele e conseguiu fugir. Eu a vi correr para longe. Então o golpeei até matá-lo. Eles não têm nada a ver com isso.

Houve um pandemônio.Merrik olhou para o seio de Laren, para os vergões arroxeados e amarelados,

para os contornos borrados dos dedos de Erik onde ele esmagara a carne frágil com toda a força. Tomou-o na palma. Laren sentiu o calor, o poder de Merrik, e entendeu que o desejava mais do que nunca, mesmo agora, quando havia tanto sofrimento e dor entre os dois. Queria beijá-lo, saborear o gosto de Merrik, experimentar outra vez as sensações maravilhosas que ele lhe dera uma vez, tanto tempo atrás. Mas ficou paralisada diante dele, imóvel. Merrik sentiu apenas a rigidez de Laren, a cautela. Tirou a mão e afastou-se.

—Seu vestido está perdido. Pedirei a Sarla que lhe dê outro. — Calou-se por um momento.

— Seu seio dói?— Não, não muito.— Você está mentindo. A carne de uma mulher é muito sensível. Sinto muito

que meu irmão tenha feito isso a você. Mas ele está morto e isso é um castigo maior do que ele merecia.

— Eu não o matei, Merrik. Nem Cleve, nem Sarla. Estão tentando me proteger.

— Cubra-se — ele murmurou, e Laren viu o desejo, a necessidade em seu olhar. Por ela, ou por qualquer mulher em seu lugar?

Puxou o pano pelo ombro e empinou o queixo.— Por quê? Não quer que Taby saiba que você está olhando para a irmã

dele? Ou você olha para mim porque não há outra mulher que lhe pertença?— Eu não pensei em Taby. — Merrik foi até a cama e sentou-se. Olhou para o

tapete no chão. —Você realmente pertence a mim, Laren? Quando a penetrei, quando rompi sua virgindade, não pensei em você como irmã de Taby. Seus seios são lindos. Eu tinha esquecido.

—Muitas mulheres têm seios bonitos. Sem dúvida, Letta também tem.— Não me importo com os seios dela. Quero Letta e toda a sua família fora

de Malverne. — Calou-se e sorriu para as mãos entrelaçadas. — Agora, sou o senhor aqui.

Creio que direi para irem embora. Não gosto da atitude possessiva de Letta e da interferência do pai. Não gosto dos preconceitos deles. — Levantou-se. — E estranho. Eu não queria Malverne. Se Erik tivesse um filho, eu guardaria Malverne para ele com minha vida. Não posso dar Malverne a Kenna, embora o menino seja inteligente e corajoso. Ele é um bastardo e ninguém o apoiaria. Situação maldita.

— Eu não matei Erik. Merrik suspirou.— Acredito em você. E quanto a Cleve? Se visse que Erik iria violentá-la, não

acha que ele poderia atacá-lo?— Poderia, mas não atacou. Se Cleve o tivesse matado, teria descido

correndo por aquela mesma trilha. Teria me visto inconsciente. Saberia que eu seria acusada.

Com um sorriso, Merrik levantou a cabeça.—Pela mesma razão, Sarla não poderia ter feito isso também. O que nos

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deixa com um mistério, e não gosto de mistérios. Principalmente desse mistério que a cerca, essa sua maldita falta de confiança em mim, embora eu tenha passado em seu teste... Sim, aquela sua história foi um teste para ver se você poderia confiar em mim. Quanto a Erik, apesar de seus defeitos, apesar do preconceito e arrogância crescentes, era meu irmão, e devo vingá-lo. Compreende isso, não é, Laren?

— Sim, Merrik, compreendo a vingança.Ele levantou-se e caminhou até Laren. Apenas fitou-a, sem tocá-la.— Você fez uma extraordinária confusão em minha vida. — Como se não pudesse evitar, ergueu-lhe o queixo com a ponta do dedo e

encarou-a. — Fique aqui. Mandarei Sarla trazer-lhe roupas.— O que vai fazer?— Falarei com todo o meu povo. Falarei de lealdade e mostrarei a inocência

de Cleve e de Sarla. Já estão desconfiados, acreditando que eles confessaram apenas para salvá-la. Isso deixará você na mira, Laren, só você. Falarei com eles, não tenho escolha.

Deixou-a parada ali, o rosto pálido, imaginando se ele seria forçado a matá-la.

Quando Laren entrou na sala, com o vestido de Sarla a pender solto e disforme pelo corpo, apenas as mulheres estavam lá. Umas doze, trabalhando, defumando arenque trazido do fiorde, fiando no grande tear no canto da casa, amassando pão na gamela enorme. Tantas coisas a serem feitas, todos os dias, tarefas caseiras corriqueiras, e Laren percebeu que queria fazer parte disso. Aproximou-se do fogão, de Sarla, e agradeceu pelo vestido.

Sarla a examinou de cima a baixo e esboçou um sorriso enviesado.—Você está muito estranha, Laren. Magra demais. Venha, coma um pouco de

mingau.— Depois de comer, quero cozinhar.— Sente-se bem?—Gostaria que você não tivesse me dado aquela droga, pois meus sonhos

foram sombras ruins em meio à escuridão.—Eu só queria que ficasse a salvo. Agora, todos estão enxergando além do

óbvio. Merrik é esperto de conversa.— Você não foi esperta, Sarla, nem você nem Cleve. Foram idiotas.— Eu não podia ficar parada diante do fogão mexendo um caldeirão de

ensopado enquanto todos acusavam você e Cleve de assassinar Erik.— É muito corajosa.— Não, sou mais fraca do que você pode imaginar. Cleve é quem é forte. — Calou-se.— ViuTaby?—Está lá fora com as outras crianças. Acho que Kenna o está ensinando a

lutar. — Sarla suspirou. — Sinto muito por Kenna. E por Caylis. Ela e Megot não têm

nada agora. Não é justo. Eu não tinha me dado conta até esta manhã que Merrik é o senhor de Malverne agora. Letta está muito contente. Insinuou que meu tempo aqui acabou. Tive vontade de esbofeteá-la.

— Não se preocupe. Merrik disse que vai mandar os Thoragasson embora. Talvez hoje.

Sarla ergueu os olhos, e viu que Letta se aproximava.—Pelo ar presunçoso de Letta, não creio que Merrik tenha dito a eles para

irem embora.Laren sabia que perderia o controle se continuasse ali. Afastou-se depressa,

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até que ouviu Letta chamar:— Pare, escrava! Quero falar com você. Laren suspirou, e virou-se.— O que quer agora, Letta?—Meu pai está com Merrik neste instante, elesEstão barganhando seu preço de compra. Ele quer você, pois acha que tem

algum valor como escaldo, porém ter uma assassina em sua casa o preocupa. Receia que possa zangar-se com ele e matá-lo. Laren limitou-se a encará-la.

—Que bobagem, Letta — Sarla a repreendeu. — Segure a língua. É uma hóspede aqui, nada mais. Pare de se pavonear, menina. E deixe de atormentar Laren.

— Atormentá-la! Ah! Ela tem o couro mais grosso que aquele porco que você estava esfolando.

— Você é muito infantil, Letta — Laren revidou. - É muito simplória em sua maldade. Talvez melhore quando ganhar mais alguns anos. — Letta ia retrucar, mas Laren emendou, num tom cheio de intenções: — Lembre-se de seus dentes, Letta. Um a um.

A garota empalideceu, girou nos calcanhares, e saiu da casa.Cleve aproximou-se, ainda meneando a cabeça.—Esperei até ela ir embora. Laren, Merrik está fazendo uma reunião para

discutir o assassinato de Erik. A maioria ainda acredita em sua culpa, mas agora pelo menos estão discutindo o assunto.

Ouviram um grito do lado de fora da casa-grande, seguido de berros e discussões acaloradas. Seguiu-se um silêncio absoluto. Aos poucos, as conversas voltaram. Então, a voz de Merrik elevou-se entre as outras, as palavras incompreensíveis.

— O que foi? — perguntou Sarla, e correu para a porta. Oleg apareceu na entrada. Procurou Laren com os olhos.

—É melhor vir agora, Laren. Merrik chegou a uma decisão, e todos irão cumpri-la.

Merrik observou-a aproximar-se, com Oleg de um lado, Sarla do outro. Esperou que ela ficasse diante dele e então, disse:

— Você virá comigo agora. — Tomou-a pela mão e levou-a embora.Laren ouviu as vozes, algumas evidentemente zangadas, outras apenas

questionadoras. Então, Oleg falou:— É certo e justo. Merrik é o senhor de Malverne agora. Teremos de dar

ouvidos ao que ele deseja.Desceram em silêncio pela trilha do fiorde. Merrik apontou o píer. Seguiram

até o fim e sentaram-se um ao lado do outro, os pés pendurados na beirada.— Ouça, Laren, você tem duas escolhas — ele disse, por fim, sem fitá-la. — Casar-se comigo e ficar aqui em Malverne... — Encarou-a, então. — Por

que parece tão surpresa? Ser minha esposa a desagrada tanto? Ora, pode escolher a segunda opção. Providenciarei para que seja devolvida à sua família. Taby ficará comigo. Eu o estou adotando como filho.

— Não!Merrik a pegara absolutamente de surpresa.— Não, o quê?— Não posso me casar com você.— Não pode ou não quer?— Não posso.—Já é casada? Não, claro que não. Era virgem quando a tomei. Ah, estou

muito abaixo de você para pensar em mim como esposo.— Não, isso nunca. — Ela saltou de pé e o encarou.- Você não pode ficar com Taby.

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— Posso e pretendo fazê-lo. — Merrik levantou-se também. Segurou-a pelo braço. — Vai se casar comigo ou não?

—Não posso me casar com você porque estou prometida a Askhold, herdeiro de Rognvald, rei de Danelaw.

Merrik saltou para trás como se ela o tivesse agredido. Algo violento o agitou por dentro, algo que ele não compreendeu, mas aceitou. Acreditou nela, abafou a fúria que o remoia e disse, com calma:

— Ah, a verdade, finalmente. Conte-me o resto.— Taby é um príncipe. Ele e eu fomos raptados de meu quarto, dois anos

atrás, e vendidos num mercado de escravos na Terra do Reno.— Quem é seu pai?— Nosso pai, Hallad, está morto. Taby é o segundo na linha de sucessão

depois de nosso tio. — Ela respirou fundo. — Nosso tio é Rollo, declarado primeiro duque pelo rei dos francos, Carlos, o Simples, que lhe concedeu a Normandia para que defendesse a França contra as incursões de outros vikings.

Desta vez, Merrik sentiu-se como se tivesse sido escoiceado por um cavalo.— O famoso Rollo... — ele murmurou, mais para si mesmo. — Fui criado com

as histórias sobre o corajoso Rollo. Ele é realmente seu tio?—Sim, meu pai era seu irmão mais velho. Rollo foi casado com uma moça da

família real de Espanha, que lhe deu seis filhos, três meninos. Apenas o segundo, Guilherme Longsword, está vivo. Taby é o segundo em sucessão depois de Guilherme. Hallad, meu pai, teve quatro filhos, três meninas e um menino, Taby.

Minha mãe morreu quando Taby tinha apenas um ano de idade. Nossas irmãs, da primeira esposa de meu pai, são muito mais velhas. Desposaram homens de alta posição social e todas vivem em Rouen no palácio de meu tio. Alguém nos traiu. Ambas as nossas irmãs, ou uma delas, ou seus maridos. Não sei quem. Guilherme Longsword estava fora da Normandia na época de nosso rapto. Confio em Guilherme. Ele não faria mal nem a Taby nem a mim. Compreende a importância de Taby no esquema. Ele também tem uma esposa, porém ela não lhe deu filhos ainda, e estão casados há cinco anos. Pelo menos, era assim quando fomos seqüestrados. Talvez agora ele tenha um herdeiro, talvez agora Taby não seja tão importante.

—Pelo menos, eles não os mataram no mesmo instante.— Por isso eu creio que deve ser coisa de uma de minhas irmãs, ou dos

maridos. Pouparia suas consciências se Taby e eu fôssemos vendidos como escravos, não mortos de imediato.

Merrik olhou para trás, para Malverne.— A vida não é o que um homem espera que seja. Acho que é melhor assim.

Meus pais foram vítimas da peste, meu irmão está morto, e o assassino ainda é desconhecido, e, agora, a criança que quero como meu filho está na linha de sucessão do grande Rollo. — Calou-se por um momento, olhando para os pés. — Fui ao mercado de escravos em Kiev para encontrar uma escrava para minha mãe. Em vez disso, encontrei você e Taby. Agora, fico sabendo que é sobrinha de Rollo. Estou impressionado. Pelo menos meu po\o se convencerá de que você não poderia ter matado Erik.

Sou sangue é muito nobre, para que manchasse as mãos com um homem como meu irmão.

—Quer dizer que você vai me devolver para a Normandia? Com Taby?Merrik olhou para ela com um ar impenetrável. Finalmente, disse, sem

qualquer emoção na voz:— Se for o seu desejo.Viu-a remexer os dedos nos sapatos velhos de Sarla.— Ah, então não quer casar comigo agora.

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— Eu não disse isso.— Então, o que quer, Merrik?Ele pegou a mão esquerda de Laren e colocou a palma sobre seu peito,

pousando a mão sobre a dela.—Não devolverei Taby a seu tio Rollo até descobrir quem os traiu. O perigo

ainda está lá. Devolvê-los agora resultaria na morte de vocês dois desta vez, não duvide. Não assumirei esse risco.

— Talvez, mesmo assim, eu deva voltar. Tenho que descobrir o que aconteceu. Tio Rollo punirá minhas irmãs, se forem as responsáveis. Se a culpa for dos maridos, eles serão mortos. Taby precisa voltar. Meu tio tem de educá-lo, ensiná-lo, tal como fez com Guilherme.

—Eu não esperava isso — Merrik murmurou. — Não esperava que você fosse filha de um estalajadeiro, contudo. Só não imaginei que fosse da realeza. Imagino que seu príncipe tenha se casado com outra agora. Como ele é?

—Nunca o encontrei, mas ouvi minhas irmãs conversando. Tinha cinco filhas, e a esposa morrera. Queria uma jovem para casar-se, para ter filhos homens. Tio Rollo e o rei negociaram a aliança.

—Esse príncipe não haveria de querer você se soubesse que não é mais virgem. É como são as coisas. E você sabia disso antes de se oferecer a mim.

— Eu o desejava, e não queria pensar num futuro que não tinha mais substância do que aquelas nuvens ao longe. Queria saber como era essa união entre um homem e uma mulher. Você é um belo homem, e queria que você me mostrasse como era.

— Você é franca e isso me agrada. Posso compreender por que se recusou a me falar sobre você e seu irmão. Havia muito a arriscar. Você é como o escravo que foi capturado por Rolf, o viking, em sua história. Manterei minha palavra sempre, Laren. Confia totalmente em mim agora?

— Sei que devo confiar, mas tenho medo, Merrik. Ele ficou olhando para a mão de Laren na sua.

Então, acariciou-lhe o braço com a outra.— Quer que eu descubra se esse príncipe Askhold ainda precisa de uma

esposa?Ela ergueu-se na ponta dos pés e beijou-o nos lábios. Merrik ficou tão

surpreso que não se moveu, nem correspondeu. Laren sorriu.— Eu gostaria que ele estivesse bem casado, com mais filhos do que poderia

contar. — Suspirou.—Ah, não pode haver nada mais maravilhoso que beijá-lo, Merrik.— Então, vai se casar comigo?— Sim.— E se eu quiser manter Taby comigo, como seu filho?Ele a estava testando, mas tinha o direito. Ela também o testara. Agora, só

poderia haver a verdade entre os dois, nada mais.— Devo devolver os direitos de nascimento a de. Taby precisa ser treinado

por Rollo para ser o futuro regente da Normandia, para ser o herdeiro, se algo acontecer a Guilherme. Você sabe muito bem, tal como eu, que a morte está sobre nosso ombro a cada instante, todo dia. O futuro da Normandia é importante. Quanto a mim, o que eu escolher não tem qualquer importância.

— Tem, para mim. — Merrik beijou-a, erguendo-a até que os pés dela ficassem acima do píer. Beijou-a até que ela estivesse louca de desejo, até que se arqueasse contra ele, aconchegando-se ainda mais.

— Promete — ele murmurou, rindo, contra os lábios de Laren — que assim que tiver carne nos ossos, não vai ficar gorda demais?

Ela beijou-o na boca, no nariz, na face, seus dedos entrelaçados na nuca

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dele.— Juro — prometeu, entre os beijos. — Já que sou uma cozinheira tão boa,

promete que sua barriga não vai cair sobre seu cinto?— Juro. Agora, não se preocupe com Taby. Tudo ficará bem, prometo a você.Merrik era como seu tio. Um homem forte e inteligente; um homem honrado,

de confiança; um homem para abraçar em todos os sentidos. Recordava-se do pai, Hallad, do mesmo jeito, embora tivesse assassinado sua mãe e fugido. Laren vacilou diante da lembrança, como sempre fazia.

—Não se preocupe com o fato de meu povo não aceitá-la. Encontraremos quem matou meu irmão e tudo ficará bem.

Laren acreditou.— Você é sobrinha do duque Rollo — ele murmurou, meneando a cabeça de

surpresa, ao dizer isso de novo. — E agora serei uma esposa — Laren disse, com um suspiro de alívio. — Será uma esposa excelente, apesar de seu sangue ilustre. Você era

desagradável, Laren, quando sobrinha de Rollo? Era mimada e caprichosa?Ela socou-lhe o braço e em seguida acariciou o ponto em que o acertara.—Não, eu passava todo o meu tempo com Taby. Sempre tive de fazer as

vezes de mãe para ele. — Continuará a ser meu bardo? — Estou cheia de novas histórias, todas sobre você, meu amo, e seu corpo

esplêndido e seus belos olhos azuis... Ele tapou-lhe a boca. — Sua boca de bardo está cuspindo asneiras. Merrik sentiu o beijo de Laren

na palma. Tirou a mão.— Pare de me olhar desse jeito — disse, com doçura. — Fale-me de seu pai,

em vez disso.— E difícil falar de coisas sérias sabendo que Letta queria me estripar com

uma faca. O pai dela ainda não acredita que eu seja sobrinha de Rollo. O que ele lhe disse quando você contou quem eu era?

— Ele riu, sacudindo a pança, e enxugou os olhos. Disse que eu inventava histórias inacreditáveis.

— E ele acredita em você agora?—Deve acreditar. Não vou desposá-la dentro de dois dias?Merrik tomou-lhe a mão, e estudou os seus dedos, as unhas curtas e

rombudas, a pele avermelhada. Mãos de escrava, acostumada a um trabalho duro c infindável, as mãos de sua esposa. Em dois dias. Virou-se e endereçou um sorriso caloroso para Sarla, que parecia hesitante em se aproximar.

— Venha, Sarla, e diga a minha noiva que você beberá hidromel conosco em nossa festa de casamento. Ela está com medo que Letta tente estripá-la antes de ir embora.

—Beberei e dançarei, Laren, pois estou contente. Ficaria contente do mesmo jeito se você não fosse sobrinha de Rollo. Só não tenho certeza de como me comportar perto de você.

Laren passou os braços em torno da nova amiga.— Você é como uma irmã para mim. Foi gentil comigo desde o momento em

que cheguei aqui. Esta é a sua casa. Por favor, ainda sou a mesma pessoa.Merrik avistou Taby, esfregando os olhinhos e bocejando. O menino também

o viu, e sorriu, um sorriso sonolento, e o fez sentir-se como um rei, não como um simples duque.

— Taby, venha — chamou, agachando-se e abrindo os braços.A criança correu para ele, e passou os bracinhos em torno de seu pescoço.

Merrik esfregou o nariz na face do menino, acariciando-o.

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—Devolveremos Taby a tio Rollo—Laren disse a Sarla, observando a cena. — Isso vai doer muito para Merrik, já dói agora, só de pensar em se separar do menino.

— Sim, mas você terá seus próprios filhos. Laren ficou rígida. Então, abriu um sorriso largo.

— Não tinha pensado nisso.Sarla a cutucou.— Talvez seja hora de dar toda a atenção a este assunto. — Então, sussurrou. — Oh, não. Aí vem Letta.A garota parou em frente a Laren. — Então, você venceu... Assim que Merrik

soube que você era sobrinha do duque Rollo, tinha de ficar com você.— Não, ele me pediu para desposá-lo antes que eu contasse quem era.— Mentira. Todos sabem que é por causa de sua família que ele mudou de

idéia, deixou de pensar em vingança pela morte do irmão e quis uma aliança mais poderosa do que com os Thoragasson. Ele não tem honra. Eu não o quero mais. Livra-se das obrigações muito facilmente. Não é um homem para se confiar ou se seguir.

— Não vou permitir que diga essas coisas sobre Merrik.— E verdade! Ele é um perjuro e não existe coisa mais vil.— Eu teria mantido a calma se você me insultasse. Mas você lança seu

veneno contra Merrik e isso eu não posso tolerar. Ele nunca concordou em se casar com você. Nunca quebrou o juramento. — Laren levou as mãos para o pescoço de Letta, e chacoalhou-a. — Basta. Seu pai aceitou a decisão de Merrik. Você aceitará também e manterá a boca fechada. Compreende, Letta?

Laren sentiu as mãos fortes se fecharem em torno de seus pulsos, afastando gentilmente seus dedos do pescoço de Letta. Ela, porém, não a soltou.

— Você me defende bem — disse Merrik, a seu ouvido. — Solte-a. Ela precisa supervisionar os preparativos para a partida, pela manhã.

Laren sentia a raiva ferver em suas veias.— Você nunca mais falará de Merrik outra vez, está me ouvindo? Eu a

matarei se ousar insultá-lo dessa maneira.Letta concordou, a fúria abafada por causa da garganta dolorida. Laren então

percebeu a expressão de Merrik, a boca apertada, mas também o ar de riso em seus olhos. Teve vontade de matar a ambos.

—Diga que entende de novo, maldição, pois não vou soltá-la até que concorde.

— Sacudiu-a de novo.Letta, por fim aquiesceu com a cabeça, os olhos toldados de raiva. Laren

afrouxou lentamente a pressão dos dedos. As marcas ficariam no pescoço branco da jovem, ela viu com satisfação.

Capítulo V

Não serei seu guardião, mas serei seu irmão, assim como Laren é sua irmã. Isso nos liga ainda mais.

Taby olhou de Laren para Merrik.— Por que parece tão triste então? Merrik quis sorrir, mas não conseguiu.—Haverá mudanças, Taby. Você sabe que é um príncipe, não sabe?O menino concordou com a cabeça. De repente, pareceu assustado.— Não quero ser um príncipe, Merrik. Só quero ser eu mesmo e seu

irmãozinho.— Às vezes — Merrik disse, pausadamente —, existem circunstâncias que

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não podemos mudar. Você é um príncipe, Taby. E se tornará o herdeiro do duque da Normandia, o ilustre Rollo. Lembra-se dele? — O menino meneou a cabeça em negativa. — Não? Bem,é provável que o reconheça quando o vir novamente. Se não o reconhecer, não terá importância, pois vai aprender a amá-lo e respeitá-lo. Laren diz que ele passava horas com você antes que fossem seqüestrados.

— Não gosto desse Rollo.— Taby, um dia você será um homem, e um homem muito importante,

mesmo que não se torne o duque da Normandia. Quando esse dia chegar, eu me curvarei diante de você e lhe beijarei a mão. Se você não gostar de algo que eu faça, poderá me fazer comer com os porcos. O que pensa disso?

— Eu conheço você, Merrik. Sei que me ama, mas nunca iria se curvar diante de mim ou de alguém.

Merrik correu os dedos pelos cabelos de Taby, de um rico tom avermelhado. Era uma bela criança e se tornaria um belo homem. Uma pontada de dor o assaltou. Mesmo assim, era justo que o menino ocupasse seu lugar, que se tornasse o homem que estava destinado a ser.

—Fique tranqüilo que essa mudança não acontecerá por enquanto. Primeiro, sua irmã se casará comigo e depois iremos ver seu tio Rollo. Talvez eu conheça seu primo, Guilherme Longsword. Laren diz que confia nele e que ele é um homem honrado. Quantos anos ele tem, Laren?

—Guilherme tem vinte e cinco anos, sua idade, Merrik.— E está casado há cinco anos?— Herdeiros são importantes.— Não me lembro dele, Laren — Taby resmungou. — Nem desse Rollo

também. Não quero ir com ele, Merrik. Se ele não gostar de você vai espetar a espada em seu estômago?

—Creio que não. Por que faria isso se eu estou indo para contar que nosso garoto está vivo e bem? Taby calou-se. Olhou para Laren e sorriu.

— Você gosta de Merrik, Laren? Tanto quanto gosta de mim?— Oh, sim, Taby. — Ela não hesitou nem por um instante, mas não olhou

para Merrik.— Então, está bem — Taby murmurou, e escapou dos braços de Merrik. Não

olhou para trás, e correu até onde Kenna e os outros meninos brincavam.— É verdade, Laren?Ela continuou a não encará-lo.— Sim, Merrik. É como eu disse a Taby.— Vai dizer isso olhando nos meus olhos?— Não.— Por que não?— Isso lhe dará poder sobre mim. Merrik sorriu.— Já tenho poder suficiente sobre você. Não preciso de mais.— Você zurra como um bode, Merrik, e sorri descaradamente ao fazer isso.

Vou ajudar Sarla. Vamos nos casar esta tarde, não se esqueça.—Bodes não zurram, só burros. É isso que acha que sou, Laren?— Não, você é um homem, Merrik.— Então, por que está tentando segurar o riso com a mão na boca? Não diga

mais nada, mulher, pense em hoje à noite, pois eu a tomarei de novo. Sinto falta de abraçá-la ao dormir, Laren.

— É justo e certo que sinta falta de mim. E é certo e justo que não pratique com Caylis ou Megot. Quero que se deite na cama e pense em mim. Só em mim.

—Não posso nem pensar em Caylis ou Megot?— Merrik caiu na risada. Fitou-a, e riu mais ainda. Depois, saiu da casa,

meneando a cabeça.

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A cerimônia foi breve e segundo a tradição viking. Todos os homens se postaram ao lado e atrás de Merrik, as mulheres ao lado e atrás de Laren. O vestido de Laren era de um belo linho cor de açafrão feito com os bulbos dos crocos de outono, presente das mulheres de Malverne. Duas delas sabiam como tingir lã e linho com perfeição, e providenciaram todas as roupas coloridas. Laren nunca vira cores tão vividas, mesmo na corte de seu tio Rollo. Na cabeça, linha uma grinalda tecida com margaridas brancas, e seus cabelos pareciam ainda mais vermelhos sob o sol da tarde, e já chegavam quase aos ombros.

Taby ficou ao lado do noivo. Estava radiante. Não parecia mais tão magro. E só de olhar para ele Laren quis chorar e rir de alívio e alegria.

Merrik fitou-a e sorriu. Estendeu-lhe a outra mão e Laren a tomou. Então, ele olhou para todos.

—Tivemos muita tristeza em Malverne, com o passamento de Harald e Tora, e a morte violenta de Erik, meu irmão. E muita mudança também. Sei que é difícil para vocês me aceitarem como senhor de Malverne. Espero que, com o tempo, isso se torne mais fácil. Hoje, eu tomo esta mulher como minha esposa. Ela é sobrinha do grande Rollo, mas sua vida é aqui, agora, comigo, com todos vocês.

Fez uma pausa, e tomou as duas mãos de Laren.—Laren, filha de Hallad e sobrinha de Rollo da Normandia, neste dia, diante

de nossos deuses, eu a tomo como minha esposa. Rezo a Freya para que nos conceda vida longa e muitos filhos. Rezo a Odin Pai-de-Todos para que mantenha a honra e a boa-fé entre nós. Tudo que tenho agora é seu também. Serei seu marido em todas as estações e estarei com você até que o último suspiro deixe meu corpo.

Laren passara horas preparando o que dizer. Não contara a ninguém que era cristã, pois Rollo concordara em aceitar a fé quando fizera o tratado com o rei Carlos, e assim sendo, pensara no que uma viking diria. Estava nervosa, a boca seca. Tinha receio de envergonhar Merrik, pois embora soubesse os nomes da maioria dos deuses vikings, não tinha certeza de quais eram os mais importantes num casamento. Olhou para ele, e Merrik sorriu-lhe, dizendo baixinho:

— Jure que me mandará para o chiqueiro dos porcos se eu ousar olhar para outra mulher.

Laren riu, e disse:

— Juro mantê-lo perto de mim, Merrik, senhor de Malverne. Juro defendê-lo com palavras e atitudes, e estar com você nos dias sombrios assim como naqueles de alegria. Isso eu prometo diante de todo nosso povo e diante de nossos deuses.

— Saiu-se bem — ele murmurou. — Ergueu-a na ponta dos pés e beijou-a na boca. Soltou-a, então, exclamou: — Vamos festejar!

Uma dúzia de mesas longas fora arrumada do lado de fora, cada uma com travessas de assado de porco-do-mato, bacalhau assado, arenque cozido no vapor com amoras, salmão com folhas de bordo, pão de centeio e pão ázimo, repolhos, ervilhas, maçãs fatiadas, cebolas tostadas. Havia barricas de hidrornel e cerveja de cevada, e até o vinho tinto da Terra do lieno. Sarla sorriu contente, sabendo que supervisionara tudo.

Laren olhou para todos ao redor, para as mesas magníficas de comida, e finalmente para o marido. Abaixou a cabeça e começou a chorar de emoção.

Merrik riu e puxou-a contra o peito.— E demais, não é? Nosso povo é bom. Este é seu lar agora.Ela soluçou e ergueu a cabeça, enxugando os olhos com o dorso das mãos.Merrik virou-se na direção dos convidados.

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— Vamos brindar ao noivo e à noiva!— Vamos, vamos!O pôr-do-sol se aproximava. A festa de casamento, que começara horas

antes, perdera seu início respeitável e inspirador. Reinava alegria, pensou Laren, alegria demais, ao observar Merrik e Oleg interromperem outra briga. Os vikings, Merrik comentara, gostavam de comemorações ruidosas.

Laren comeu um pedaço de queijo de cabra. Era picante, até ácido, e bebeu depressa uns goles de cerveja morna. Sentiu uma onda de tontura e olhou para a caneca vazia. Sarla serviu-lhe outra caneca de cerveja.

—Merrik disse que eu deveria ficar sóbria, que era quase uma lei, pois seremos responsáveis para que ninguém quebre a cabeça.

— Ficarei vigilante por você — disse Sarla.— E eu também — retrucou Cleve, atrás de Sarla. Por um momento, Laren

viu-os como um só.Meneou a cabeça, pois estavam tão perto um do outro que pareciam se

fundir. Perguntou, de repente:— Quando irão se casar? — Viu-os se espantarem, depois se entreolharem

consternados. Bebeu um pouco mais de cerveja. — Cleve me salvou. É um homem excelente.

— Eu sei — murmurou Sarla. — Por favor, Laren, você não deve falar nisso. O assassino de Erik ainda está muito próximo de nós. Tenho medo.

Cleve segurou-a pelo braço e apertou-o gentilmente.— Calma, Sarla, descobriremos quem matou Erik e depois estaremos livres.

Pelo menos ninguém pensa mais que foi Laren, não com seu sangue real. Calma, querida, calma.

Mas, então, quem havia matado Erik? Laren bebeu sua cerveja, e olhou a seu redor, reparando nos homens e mulheres que gritavam, contando piadas sem sentido, beijando-se e acariciando-se, alheios ao mundo ao redor.

Sentiu um hálito quente ao ouvido.— Pensei ter dito que era seu dever manter o juízo. Ela virou a cabeça, viu-se

a centímetros da face deMerrik, e sorriu.— Receio ter bebido muita cerveja, Merrik.— Vou me deitar com uma esposa embriagada?—Oh, céus, é melhor eu parar. — Ela ergueu a caneca e entornou o resto da

cerveja.Merrik riu e berrou.— Vejam a influência de vocês. Minha esposa mal consegue manter-se ereta.

O que devo fazer?—Diga a ela que conte uma história! — gritou Oleg. — Vai lhe clarear a

mente.— Sim, uma história, uma história!— Bem, Laren, é capaz?—Uma história... — ela balbuciou. Levantou-se, subiu no banco e depois

sobre a mesa. — Atentem pura mim — gritou. — Uma história, vocês querem, uma história

terão!— Ela vai cair e quebrar a perna!—Melhor do que quebrar a língua. Quero ouvir nuas histórias, muitas

histórias!Laren bateu o pé e quase escorregou da mesa ao pisar num pedaço de bolo

de aveia. Merrik estava lá para firmá-la, e segurou-a pelos joelhos.— Continue, eu a peguei agora.

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Ela tentou fazer uma pose digna, falhou e então começou, com uma risadinha:

— Vou lhes contar sobre Fromm e Cardle, que se casaram com duas irmãs de uma família real, Helga e Ferlain...

Enquanto Fromm era grosseiro e mau, Cardle era um homem que vivia para aprender; um homem não realmente deste mundo. Helga logo compreendeu que seu noivo, Fromm, seria facilmente conduzido por ela, embora fosse mesquinho e insignificante. Disse a Ferlain para avaliar a força do noivo, Cardle, e assim fez Ferlain. E descobriu que não havia muita força a ser medida. Então, as duas se encontraram na torre da fortaleza do rei e compararam o que tinham descoberto. Resolveram que através dos maridos se apossariam do reino. Teriam de se livrar do herdeiro do rei, mas ele estava fora da cidade. Havia, porém, o meio-irmão, chamado Ninian, e era o próximo na linha de sucessão.

Começariam por se livrarem de Ninian. Contudo, o pequeno Ninian tinha um amigo mágico.

Laren parou, franziu a testa e então exigiu:— Mais cerveja para o escaldo, por favor, marido. Meu raciocínio está quase

seco como um pergaminho sem palavras.Merrik deu-lhe uma caneca cheia de cerveja, e depois a segurou pelas pernas

para mantê-la firme.—O que aconteceu — Oleg berrou. — Vamos, Laren, conte logo, antes que

sua imaginação levante, vôo e mergulhe no esquecimento.— Quem era o amigo mágico de Ninian?O amigo mágico de Ninian era um guerreiro viking que aparecia só quando o

menino estava em perigo. Era tão inteligente, tão selvagem e destemido como um berserker. Usava apele de urso como um berserker, mas não uivava ou gritava aos deuses ao se defrontar com um inimigo. Não. O guerreiro viking era silencioso como um. espírito. Certa vez, quando Ninian se perdera da babá na floresta perto da fortaleza do rei, um lobo o atacara. O guerreiro viking surgiu como se da fumaça de uma fogueira, jogou Ninian num galho de árvore e se voltou para enfrentar o lobo em pleno salto. Após transpassar a fera com a espada, disse ao menino:

— Você pode ser o rei um dia. Fui mandado para mantê-lo em segurança. Desça, agora, e volte para a fortaleza.

Colocou Ninian de volta no chão e então sumiu entre o verde das árvores. Num momento estava ali e, no próximo, simplesmente desaparecera. O garoto ficou parado, sem entender.

Uma dúzia de soldados irrompeu pela pequena clareira. Viram o lobo morto, o menino parado sobre ele e ficaram atônitos.

E assim, a lenda começou, a lenda de Ninian, o sobrinho do rei que, ainda pequeno, matara um lobo. Que o lobo tivesse sido morto por uma espada foi esquecido. O rei maravilhou-se diante daquele pequeno ser. O menino tentou contar à babá sobre o guerreiro Viking, mas ela não acreditou que um espírito pudesse matar o lobo. Preferia que Ninian fosse o ser mágico, i> ser especial, aquele escolhido pelos deuses para suceder ao rei.

As irmãs resolveram que matariam o menino. Não a creditavam que ele matara o lobo, pois Helga tinha poderes e observava Ninian, e nada vira nele de especial. Assim, convenceram-se de que um homem aparecera, vira o garoto em perigo, matara o lobo e fora embora depressa antes da chegada dos soldados.

Helga lançou um sortilégio em seu quarto da torre. Chamou os demônios do fogo e do gelo e das areias do deserto. Ordenou que usassem seus poderes para se livraram da criança. O demônio do fogo apareceu e disse:

— Não posso matar o menino. Ele está sob a proteção da espada de alguém

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muito mais poderoso que eu. Deixe-o em paz.Helga o amaldiçoou e mandou-o de volta ao mundo inferior. Convocou o

demônio do gelo. E ele disse:— Não posso matar o menino. Um poder maior que meu o guarda. Deixe-o

em paz.Helga chamou em seguida o demônio das areias do deserto, que disse:— Você é uma tola, mulher, em evocar os demônios covardes do fogo e do

gelo antes de me convocar. Você quer matar o menino. Eu o matarei e me alegrarei com isso. Então, você terá um débito comigo.

O demônio desapareceu num redemoinho de fumaça preta. Helga regozijou-se e contou à irmã e, depois, aos maridos. E esperaram.

Um dia, Ninian foi dado como desaparecido. O rei e todos os soldados não conseguiam encontrá-lo.

Todos na região procuravam por ele, mas Ninian sumira sem deixar rastros.Laren olhou para Merrik e disse:— Vou passar mal. — Saltou da mesa, confiante de que ele a pegaria e

depois saiu correndo pelas portas da paliçada e se meteu entre o mato ao redor da trilha.

— Espero que ela não ponha fora a história junto com as tripas — comentou Barta. — Ou não tingirei outro vestido para ela.

— E eu — disse Merrik, olhando pelos portões da paliçada. — Imagino se minha noiva irá se lembrar do guerreiro viking ou de mim pela manhã.

—Com todo aquele sangue real — disse o velho Firren, e cuspiu. — Claro que ela vai se recuperar depressa da cerveja.

E Laren recuperou-se. Era quase meia-noite quando Merrik, convencido de que ela estava em seu juízo perfeito outra vez, tomou-lhe a mão e ajudou-a a levantar-se do banco. Então, disse a seu povo, quase todos muito embriagados:

—A noite está clara. Fiquem aqui se quiserem e continuem bebendo. Levarei minha esposa para a cama.

Ouviram-se conselhos, todos muito específicos, todos acompanhados de risos. Merrik pensou que Laren se sentira constrangida até que entraram no quarto, e ela lhe disse: Espero que tenha anotado tudo, Merrik. Sim — ele retrucou, e puxou-a contra o peito. - Acho — ela murmurou, encostando a testa em seu ombro — que ainda estou com medo. Tudo isso é muito novo para mim, Merrik, apesar do que vi nos últimos dois anos.

— Eu sei, querida, mas isso não tem importância agora. Importante somos nós.

— Sorriu e enfiou os dedos pelos cabelos da esposa, soltando os fios emaranhados.

Confie em mim — disse. — Apenas confie em mim. Inclinou-se e beijou-a, devagar, como se não houvesse nada mais que quisesse fazer.

— A noite é longa diante de nós — murmurou.Na manhã seguinte, Laren parou ao lado de Sarla, que mexia o mingau.

Poucos homens estavam de pé. As mulheres, mais estóicas, ocupavam-se de suas tarefas com mais lentidão do que o habitual. As crianças, nada bobas, falavam baixinho dentro da casa.

— Que festa maravilhosa — disse Sarla. — Quero ouvir o resto da história hoje à noite. E você... está com uma aparência linda. Parece muito feliz, muito contente.

Laren não disse nada. Olhava para a entrada da casa. Merrik estava parado no umbral, o sol brilhante da manhã a recortá-lo na soleira da porta. Parecia um deus dourado com os cabelos molhados do banho.

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Laren sentiu o impacto daquela forte presença puxando-a, atraindo-a, e se viu na noite anterior, de mãos dadas com Merrik, suas pernas entre as dele, os seios apertados aos pêlos macios daquele peito forte. A imagem era levemente borrada em sua mente, mas a sensação, intensa.

Merrik caminhou em sua direção, as passadas de um homem que sabia ser o senhor da mulher que era sua e apenas sua. Uma mulher que ele agora conhecia, uma mulher a quem estudou, pensativo, mesmo sorrindo.

Laren viu um outro sorriso na mente, luminoso como o céu de verão. Lembrou-se que Merrik erguera a cabeça e a vira arquejante, os seios arfando, conforme ela tentava acalmar-se, e então percebera o imenso prazer que lhe dera com sua boca, e ficara feliz por que ela cedera, confiara nele. Agora, ele a queria mais, queria enterrar-se dentro dela, e Laren o queria também, bem fundo, para que se tornasse parte dela, se fundissem até que se tornassem inseparáveis.

O sorriso havia sumido quando ele lhe erguera as pernas e as abrira, colocando-se entre elas, olhando para sua intimidade, tocando-a, e ela sentira a própria umidade escorregadia nos dedos dele, vira seus olhos se fecharem por um breve instante enquanto ele a sentia, deixando os dedos ali por um longo momento, apenas sentindo. Depois, se enterrara dentro dela, e Laren estremecera com a força das sensações. Queria mais e mais, e Merrik estava lá, sobre ela, dando enquanto tomava, sempre lá, sem a deixar mesmo naquela fração de segundo em que seu próprio prazer o envolvera, e ele jogara a cabeça para trás e gritara, liberando sua semente. Laren o abraçara com força, deliciando-se com o prazer, agradecida de que Merrik a tivesse encontrado e que fosse o homem que era.

Não se deu conta de que fitava o marido, sem se mexer, os lábios entreabertos, os olhos maravilhados, até que Merrik parou diante dela, e ergueu-lhe o queixo na palma.

— E apenas o começo — disse, inclinando-se e beijando-lhe a boca. — Só o começo.

— Você sempre será assim comigo?—Sim, contanto que você esteja comigo também. - Ele a beijou de novo, de

leve, a língua a traçar o contorno dos lábios. — Devia ter levado você para a casa de banho comigo.

Da próxima vez, levarei. Eu a porei no colo com você me olhando e vou erguê-la para que possa me tomar dentro de você. Acho que vai gostar.

Os seios de Laren latejaram. Ela fitou-o, tudo que sentia, flagrante em seus olhos; e ele imaginou se merecia tamanha sorte.

— Você se saiu bem a noite passada, minha esposa. Agradou-me profundamente.

Tocou-lhe os seios de leve, precisava, não havia escolha, e então, recuou depressa. Respirou fundo. Oleg estava ali, a poucos passos de distância, esperando.

— Quando estiver pronto, Merrik, conversaremos com nosso povo. Não deveríamos esperar mais, pois as lembranças ficam borradas, e as pessoas esquecem.

—Está bem. — E beijou Laren mais uma vez e afastou-se.—Estão interrogando todos para ver onde estavam quando Erik foi morto —

disse Sarla.Laren não disse uma palavra, pensando que a pessoa que agredira Erik com

a pedra não iria simplesmente admitir a culpa quando confrontado. Decerto inventaria uma história razoável.

Olhou para o marido, que se afastava, ainda sentindo o calor e a doçura de

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Merrik em sua boca, a sensação a lhe percorrer o corpo. De repente, sentiu um arrepio, e um medo profundo do desconhecido que passara por ela na trilha, olhando-a no chão, sabendo que seria acusada. E, então, de súbito, percebeu que não estava completamente inconsciente quando aquele homem passara. Vira-o inclinar-se, encará-la, e depois se erguer, sorrindo. O sorriso voltou-lhe à mente com clareza. Se pelo menos se recordasse do rosto... Ah, mas pelo menos sabia que era um homem.

Tinha de contar a Merrik.De quem era o sorriso?...O príncipe Ninian sumira sem deixar rastros. O rei caiu prostrado na cama,

recusando-se a comer ou beber. Não conseguira manter o menino a salvo e não merecia viver. Ninian representava o futuro e esse futuro estava arruinado, e a culpa era sua.

No terceiro dia, estava fraco e não se importava com mais nada. De repente, viu uma sombra na parede e ficou boquiaberto de admiração e medo quando a sombra aumentou cada vez mais, até finalmente transformar-se num homem. Era um guerreiro viking, com uma enorme espada na mão, vestido numa pele rústica de urso, um elmo dourado na cabeça, os olhos de um belo azul faiscante.

— Pare com essas lamentações — disse o guerreiro. — É o rei. Deve agir como um rei. Senão, suas filhas tomarão o poder após sua morte. O marido de Helga, Fromm, tomará o seu lugar.

A magia de Helga é mais forte que a de Ferlain. Ferlain e o marido, Cardle, morrerão envenenados. Levante-se e assuma seus deveres. Comece a beber e reponha suas forças. Lave-se e se vista. Seja outra vez o homem que deve ser.

— Mas, Ninian, meu belo garoto, e quanto a ele?...— Irei procurá-lo agora. Quando retornar com ele, providenciarei que suas

filhas e os maridos recebam o castigo merecido.— Ninian não está morto?O guerreiro meneou a cabeça, o elmo dourado refletindo a luz da vela.— Quem é você? Como sabe essas coisas? O guerreiro viking exclamou:—Levante-se e prepare-se para receber Ninian! Ocupe-se de suas filhas e dos

maridos. Fique atento a Helga. Ela convocou os demônios para matar Ninian. Tentará matá-lo também.

O rei saltou da cama. Sentiu-se jovem e incrivelmente forte, os dias de prostração esquecidos. Quis tocar o guerreiro, mas quando se aproximou, o viking desvaneceu no ar até se transformar num fio de pura seda e depois nada além de uma leve sombra e, em seguida, nada mais.

O rei ficou paralisado de pavor. Então, por que era o rei, indômito e decidido, chamou seus criados. Depois de saciar a fome e a sede, banhar-se e vestir-se com apuro, voltou a seus aposentos para esperar o retorno de Ninian e do guerreiro viking.

Não teve de esperar muito. Num momento estava sozinho, esperançoso, e, no seguinte, lá estava Ninian, sujo como um moleque da vila, porém saudável como no dia em que sumira. Tinha as roupas rasgadas, os joelhos arranhados, mas sorria. O rei caiu de joelhos e puxou o menino entre os braços.

— Onde esteve? O que lhe aconteceu?— Visitei o mundo inferior sob as areias do deserto, bem longe daqui, levado

pelo demônio, que me afirmou que eu ficaria com ele para sempre, que me tornaria seu herdeiro. E eu lhe disse que não permaneceria lá, que meu lugar era aqui, com o senhor, aqui, com todo o nosso povo, onde eu era necessário. Insisti que ele deveria me devolver ou o guerreiro viking apareceria e o enfrentaria. Ele riu. Riu às gargalhadas e, de repente, engasgou-se.

Seu rosto ficou azulado e ele levou a mão à garganta. Então, o guerreiro

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viking surgiu do nada, ergueu-lhe a cabeça e o engasgo passou. Ao ver que o demônio recuperara o fôlego, o guerreiro lhe disse que o que ele fizera ia contra todas as regras. Disse que tinha a concordância de todos os demônios superiores, seus irmãos, e que ele seria forçado a permanecer no mundo inferior durante mil anos como castigo. O demônio das areias do deserto implorou e pediu ao guerreiro viking que o poupasse, mas ele meneou a cabeça. Ergueu a espada e o demônio acovardou-se e fugiu, e nos deixou sozinhos. O guerreiro estendeu a mão e me apertou ao peito e, de repente, eu estava aqui, meu soberano, com o senhor.

Depois disso, o rei chamou seus servos e ordenou que banhassem e vestissem o menino com todo o garbo. Chamou então suas filhas e os maridos. Helga e Ferlain julgaram que tinham sido chamadas para o leito de morte do pai. Qual não foi a surpresa e a profunda consternação quando o viram, forte e esplêndido, sentado no trono. Os maridos, Fromrn e Cardle, inclinaram-se diante do sogro, e comentaram que ele parecia gozar de excelente saúde, ao contrário do que tinham ouvido.

O rei limitou-se a sorrir e mandou que se sentassem num banco junto à parede. Então, chamou:

— Helga, venha cá.Ela se aproximou, obrigando-se a sorrir, pois tinha certeza que nem tudo

estava perdido, que o pai estava resignado com a morte de Ninian. E imaginou se ele os chamara ali para anunciar que, em razão disso, Fromm seria o herdeiro da coroa. Aproximou-se, e fez uma mesura.

—Estamos muito tristes com o desaparecimento de Ninian, pai. Rezamos para que o senhor não ficasse muito abalado. Chamou-nos para proclamar que nossos maridos são agora seus herdeiros?

— Oh, não. Convoquei-os para dar as boas-vindas a seu primo. — Fez um gesto, e Ninian saiu detrás das cortinas atrás do trono.

— É um demônio! Um feiticeiro! — Helga berrou.— Não — murmurou o rei. — Você é que é o demônio e a feiticeira, sua irmã.

Deste momento em diante, não são mais minhas filhas. Seus maridos não são mais meus genros. Estão banidos do reino a partir de hoje. Vão, e sejam amaldiçoados, todos vocês!

Helga sentiu a fúria invadi-la. Ergueu os braços para o céu e bradou:— Demônios, venham a mim agora! Acabem com o homem e o menino!

Matem-nos!Nenhum demônio apareceu, mas o guerreiro viking surgiu do nada,

resplandecente como se o sol brilhasse às suas costas. Helga gritou e deu um passo para trás. O guerreiro ergueu a espada ao alto.

—Você é má, Helga; Ferlain é fraca; e vocês, maridos imprestáveis, dão pena. O que eu deveria fazer a vocês?

Laren calou-se e baixou os olhos para o chão. Reinava um silêncio absoluto ao seu redor. Então, ela olhou para Merrik.

— Se fosse o guerreiro viking, o que faria, Merrik?— Mataria Helga e baniria os outros três.— Concorda, Oleg?— Claro, transpassava a bruxa com a espada!— Sim! Sim!Todas as mulheres bradaram que matariam Helga. Laren esperou até que

todos se aquietassem.O guerreiro não transpassou Helga com a espada. Caminhou até ela, fitou-a e

disse palavras estranhas, num tom suave e doce, que pareceu ao rei uma bênção. Então, ergueu a espada sobre a cabeça de Helga e a manteve ali. Helga

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não se mexeu, não disse uma palavra. Era como se tivesse se transformado em pedra. No instante seguinte, começou a se desvanecer, a se tornar mais e mais tênue até que nada restasse a não ser um bracelete de ouro maciço que caiu ao chão com um baque sonoro. Ninguém disse uma palavra, nem o marido, Fromm.

O rei ordenou aos outros que fossem embora e assim eles fizeram, gratos por não terem desaparecido como Helga. O guerreiro viking aproximou-se do rei e de Ninian.

—Ganhei minha liberdade agora. Voltarei para você, Ninian, mas como homem. Eu a defenderei, mas será com a vida de um mortal e com a força de um mortal. Espere por mim, Ninian, pois voltarei.

— Com essas palavras, o guerreiro viking, tal como Helga, diluiu-se em nada.Laren ergueu a mão e exclamou, por fim:— Acabou.— Mas o guerreiro viking voltou, como prometeu? Laren sorriu para Merrik.— Voltará, e será o protetor de Ninian.Quando Merrik ergueu a manta de lã e deitou-se ao lado de Laren, indagou:— Elas se chamam realmente Helga e Ferlain?— Sim.— Presumo que o guerreiro viking seja eu.— Sim, é você.— Você acha mesmo que é Helga quem está por trás de seu seqüestro?—Não sei. Sua aversão por Taby e por mim era a mais evidente. Os maridos

não são tão estúpidos como eu os pintei, nem tão inocentes. Fromm é um homem enorme, feio e mau. Cardle é covarde e choraminga quando não consegue as coisas do jeito que quer. Dois homens não poderiam ser mais diferentes um do outro.

— Eu os verei, não é?— Nós os veremos juntos, Merrik. Ele ficou em silêncio por um instante.— Não, você ficará aqui em Malverne. Esse lugar é de sua responsabilidade

agora. Além disso, quero manter tanto Taby como você em segurança. Foi meu juramento.

—Não, eu preciso ir com você. Você não conhece essa gente, eu conheço. Eu poderia protegê-lo. Sugiro deixarmos Taby aqui.

— Você deve me obedecer, Laren. É minha esposa agora. E eu não preciso de sua proteção.

— Homem teimoso — ela resmungou. E antes que Merrik pudesse responder, Laren debruçou-se e segurou o rosto do marido entre as duas mãos. Beijou-o com ardor até que Merrik abriu os lábios, e ela insinuou a língua para dentro, de encontro à sua, sentindo o calor e a suavidade do contato.

— Você quer me seduzir.— Claro que quero. Adoro seu gosto, Merrik. Ele sorriu.—Não vai me fazer mudar de idéia, Laren, não importa o que faça.— Estou fazendo isto por mim mesma — ela sussurrou, e se deitou em cima

dele, os cabelos como um véu erótico a lhe esconder a face.Merrik gemeu. Tirou a combinação de Laren pela cabeça, e sentiu o peso

suave daquele corpo esguio sobre o seu, os seios se comprimindo em seu peito, as pernas prendendo as suas, seu sexo rijo apertado contra aquela pele macia. E ela o beijava por todo o rosto, a língua tocava de leve suas orelhas, os dedos deslizavam por sua face. Então, começou a se mover enquanto o beijava, e Merrik a segurou pelos quadris e trouxe-a de encontro a seu membro rijo. Gemeu, e ela abafou o som com um beijo, abrindo as pernas para recebê-lo.

As mãos de Merrik estavam por toda a parte do corpo de Laren agora, enterrando-se nos cabelos, puxando-a pelas costas para poder beijá-la nos seios.

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Rolou por cima dela, erguendo a cabeça a fim de recuperar o fôlego. Seu peito arfava, e ele estremeceu com a vontade de se enterrar dentro dela, porém controlou-se. Gentilmente ergueu-lhe as pernas e baixou a boca até aquele ninho quente, os dedos a se fecharem na pele sedosa das nádegas, sabendo vagamente que a deixaria roxa, mas sem se importar, pois Laren se arqueava, gemendo, choramingando, chamando seu nome, e o desejo naquela voz o fazia sentir coisas que nunca soubera que existiam.

Pousou a mão suavemente sobre os lábios de Laren quando os gritos escaparam de sua garganta, deixando-a com a liberdade de berrar se quisesse, mas sem que os outros a pudessem ouvir.

Conforme a acariciava com a língua, ela o agarrou pelos ombros, puxando-o para cima. Merrik ficou de joelhos. Guiou o membro para dentro dela e fechou os olhos diante da sensação das carnes estreitas a comprimi-lo com força.

— Merrik... — ela murmurou, e puxou-o pelas costas para que a penetrasse mais fundo.

Merrik investiu e recuou, de novo e mais uma vez até que tremia com a força do desejo, gemendo, os braços rígidos a sustentá-lo, enquanto Laren murmurava seu nome sem parar, aceitando-o, tomando-o por inteiro.

Explodiram juntos, num gozo alucinante que os fez gritar ao mesmo tempo.Caíram extenuados, a perna direita de Laren sobre o abdômen de Merrik, a

face contra seu coração, os cabelos úmidos a se espalharem por seu ombro. Ele beijou-lhe o topo da cabeça, apertando-a entre os braços.

— Você me dá paixão — disse. — Adorei ver seu rosto quando chegou ao prazer.

Ela deslizou o joelho pelo abdômen suado até lhe cobrir a virilha.— Pare, ou eu a tomarei de novo. Deve estar dolorida, Laren.Ela virou a cabeça e beijou-o no peito.

— Foi um homem que atacou Erik — disse. Merrik ficou rígido. Laren ergueu-se no cotovelo,

acariciando-lhe os cabelos do peito.— Como sabe disso?— Lembrei-me de que ele parou sobre mim, sorrindo triunfante. Eu não

estava completamente inconsciente. Ele ficou lá, sem dizer nada, apenas sorrindo. Não tentou me ajudar, não fez nada, a não ser sorrir. Não consigo me lembrar das feições, mas sei que ele estava contente que eu fosse acusada de matar Erik e que ninguém suspeitasse dele. Não posso ter certeza de que seja o assassino de Erik, mas parece provável, não acha?

Merrik praguejou baixinho.— Oleg e eu descobrimos pouca coisa hoje conversando com cada um de

nosso pessoal. Mas, depois do que me disse, creio que esse homem seguiu-a pela trilha. Talvez quisesse matá-la, mas quando Erik apareceu, ele esperou para ver o que aconteceria. Quando você conseguiu fugir, ele atacou meu irmão. E quando viu você inconsciente na trilha, percebeu que vencera. Você seria acusada.

— Existe apenas uma pessoa que faria isso.— Sim, mas precisamos ter certeza, muita certeza.Deglin engoliu a cerveja e enxugou a boca com a mão.— Está quente aqui — disse, ao se servir de mais uma caneca da barrica ao

lado. Olhou as três mulheres que lavavam roupa na tina embaixo de um carvalho. — Sim, tão quente como ela, a cadela.

— Está falando de quem? — Oleg perguntou, olhando para as mulheres.— Daquela cadela, Laren. Eu lhe digo, Oleg, ela enfeitiçou Merrik, depois se

prostituiu com ele. Fingiu que era quente, tão quente como esse maldito sol que

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queima minha pele.Oleg continuou de cabeça baixa, bebericando a cerveja. Não queria que

Deglin visse sua raiva crescente. Queria mantê-lo falando. Deglin já bebera meia dúzia de canecas da cerveja forte. E começara a falar de Laren.

—Ela é uma vadia e devia morrer — continuou, a voz amarga. — Olhe o que ela fez a Erik, e todos a absolveram só porque ela alega ser sobrinha de Rollo! Pelos deuses, é loucura acreditar nela. É provável que o menino não seja irmão coisa nenhuma, mas sim filho dela. Não passam de um bastardo e de uma escrava.

— Não acredita que seja sobrinha de Rollo? Deglin cuspiu no chão.—Ela é uma mentirosa, e Merrik se comprovou um homem fraco, facilmente

manipulável, não aquele que eu acreditava que fosse. Falhou para com todos nós tomando aquela víbora por esposa. Vou embora. Devia ter ido com os Thoragasson.

Oleg teve vontade de dizer que todos sabiam que Thoragasson dissera que, se não pudesse ter Laren, não queria o antigo bardo.

— Erik estava louco de desejo por ela. E claro que a seguiu pela trilha até o pico. Se ela o atacasse, seria para defender-se, não seria?

Deglin ficou sério.— Ela é uma escrava. Erik poderia estuprá-la até ficar esfolado. Era seu

direito.—Isso não importa, pois Merrik acredita que Laren não matou Erik; e a

maioria do pessoal acredita nela.— Ah! Ela o matou porque sabia que Erik nunca poria Sarla de lado, e ela não

tinha outra escolha a não ser matar o homem que era o senhor de Malverne e estava no caminho de Merrik. Sim, ela queria Malverne e agora tem.

— Mas ela estava inconsciente. Desmaiou ao bater a cabeça numa pedra. Eu mesmo vi o calombo do lado da cabeça.

—Sim, mas isso foi depois de ter matado Erik. Saiu correndo, em pânico e sem prestar atenção ao caminho, para fugir do crime.

—Fico imaginando — Oleg murmurou, olhando para o resto de cerveja no fundo do copo —, se talvez Erik não foi atacado para que Laren fosse acusada disso, se não era ela o objeto do ódio, não Erik. O que acha?

Ao dizer isso, Oleg olhou diretamente para os olhos de Deglin. E viu que ele parecia pela primeira vez agitado e pálido; mortalmente pálido.

— Alguns não simpatizam com ela, não confiam nela — Oleg continuou. — Você, Deglin, a odeia mais que todos. Ela tomou o que era seu, o destituiu aquilo que lhe pertencia. Não abusou de você? Não fez Merrik queimá-lo quando ela caiu por acidente dentro do fogo?

—Sim — Deglin esbravejou, socando os punhos nas coxas magras. — Ela fez isso. Eu quis proteger Merrik com meu silêncio, mas vou contar

tudo agora. É hora de a bruxa ter a punição merecida, o castigo pelo crime. Chega de proteger essa família, não devo nada a ninguém. — Endireitou os ombros. — Eu a vi atacar Erik. Depois, fugiu, caiu, bateu a cabeça e desmaiou, porém matou Erik, antes disso. Juro, eu vi acontecer. Não foi para se proteger dele. Quando Erik estava saciado e tranqüilo, ela o golpeou na cabeça e o matou. Sim, eu vi tudo, posso jurar.

Naquele momento, Laren apareceu, o rosto pálido.— Por que está mentindo, Deglin?—Sua cadela! — Deglin berrou, e saltou de pé. — Você arruinou tudo. Eu

tinha prestígio e respeito até que Merrik a encontrasse. Você roubou tudo que era meu, tudo! Você matou Erik, eu vi, golpeou-o com aquela pedra, quando ele ainda estava em cima de você, o sexo entre suas pernas, a razão ainda afogada

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na luxúria. Sim, você o matou depois de se prostituir com ele assim como faz com o irmão. Você o matou porque queria Malverne. Vai matar Merrik também?

Laren apenas o fitou, aturdida com tamanho ódio. Deglin avançou sobre ela, as mãos esticadas, os dedos curvados para enforcá-la.

Oleg levantou-se, jogando a caneca no chão. Agarrou Deglin pelo pescoço, erguendo-o devagar enquanto o homem o arranhava para libertar-se.

— Ia estrangular Laren, sua cobra chorosa? Você matou Erik porque queria que Laren fosse acusada. Ela se lembrou de você parado sobre ela, e estava sorrindo triunfante, pois acabara de matar Erik. Seu ciúme e sua maldade distorceram sua mente.

Soltou-o, e viu Deglin cair no chão, arquejante, sem ar, as mãos esfregando o pescoço. Ergueu o pé para chutá-lo, mas Merrik surgiu.

— Não, Oleg, basta!Deglin ergueu os olhos e se deparou com Merrik. Sentiu o peso da armadilha,

sentiu tudo que conhecera, desmoronar a seu redor. Tentou falar, defender-se, mas sua garganta se fechou e ele só conseguiu emitir chorosos gemidos. A dor trouxe lágrima a seus olhos.

— Ele merece morrer, Merrik.—Sim, Oleg, merece. Matou meu irmão por um motivo tão fútil que beira a

insanidade. Leve-o para a cabana do ferreiro e mande Snorri acorrentá-lo perto da fornalha. Que asse com o próprio suor.

— Não! Não matei Erik. Sim, é verdade que encontrei Laren caída inconsciente na trilha, e fiquei contente. Eu sabia que Erik estava morto. Ela o matou. Sei que matou!

Laren observou quando Oleg arrastou Deglin para longe, e o escaldo ainda esfregava o pescoço machucado, ainda tentava falar.

— Acabou.—Sim, e agora eu lhe pergunto, minha esposa e meu escaldo, o que devo

fazer com Deglin?Laren ficou em silêncio, olhando para os campos de cevada.— Não posso entender. Por que ele simplesmente não me matou?— Porque eu teria lhe arrancado a carne das costas sem fazer uma única

pergunta. Matando Erik, você seria acusada e ele ainda ganharia o que queria. Poderia sentar e rir de todos nós, vendo-nos realizar aquilo que ele tinha imaginado.

— Sinto muito sobre Erik.— Eu também. Mas agora temos o culpado. Mandei uma mensagem para

meu outro irmão, Rorik, na ilha de Hawkfell. Ele e a esposa, Mirana, virão para cá, não duvido. Responda-me, Laren. O que eu devo fazer com Deglin?

— Talvez devesse mandá-lo para meu tio Rollo — ela disse, pausadamente. — Que ele aplique a justiça e o castigo.

—Rollo certamente o mandará ser esquartejado por quatro cavalos ou o irá pendurar de cabeça para baixo junto a um lobo. Seu tio não é conhecido pela clemência ou misericórdia.

— Não, não é, particularmente com aqueles que tentam fazer mal a quem ele ama. Nenhum viking é conhecido pela clemência. Acho que o levaria para o fundo da floresta, lhe ofereceria uma faca e o abandonaria. Ele se orgulha de sua inteligência. Que se salve, se puder.

— Talvez se salvasse. E isso ofenderia os deuses e todo o meu povo.— Tem razão. — Laren suspirou e calou-se, pensativa. — Ele não confessou

ter matado Erik. Não há dúvidas em sua mente?— Nenhuma.Todos em Malverne concordaram que Deglin era culpado. Tinham ouvido o

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bardo falar mal de Laren, ouvido sua amargura, seu ódio por ela ter se apossado de sua posição. Ninguém concordou que fosse levado para a Normandia, queriam matá-lo o mais rápido possível. Ficou decidido que Merrik empunharia a faca, era seu direito.

Deglin seria executado no alvorecer da manhã seguinte.A manhã estava fria, as nuvens baixas. Todos se postaram num círculo,

esperando que Deglin fosse trazido para fora. Mas quando Merrik, Snorri, o ferreiro, e Oleg, entraram na cabana, Deglin estava morto. Alcançara a bancada, pegara um dos velhos punhais de Merrik, que estava ali para ser consertado, e o enterrara no coração.

— Pelos deuses! — Snorri exclamou, enfurecido. — Eu devia ter ficado aqui na cabana a noite passada! Mas não quis ouvir a choradeira. E agora, o homem está morto pelas próprias mãos.

Deglin não merecia um funeral viking. Merrik mandou que levassem o corpo para o fundo da floresta. Depois, limpou o sangue do punhal arrancado do peito de Deglin, fitou-o em silêncio e depois o estendeu a Snorri.

Uma semana depois, Rorik, o irmão mais velho de Merrik, chegara a Malverne.

Laren ria e tentava evitar que o cão lambesse sua face, empurrando o animal, sem sucesso.

— Não fique parado aí — ela gritou. — Me ajude!— Kerzog! Fora! Fora!Kerzog saltou sobre Merrik, quase o derrubando de joelhos.— Vejo que Kerzog ainda admira uma bela mulher e se lembra de como meu

irmãozinho enchia de carne seu prato — Rorik disse, rindo.—Kerzog é tão amoroso quanto meu marido, e muito mais forte — brincou

Mirana.— Se bem entendi — disse Rorik, para Laren —,você é um escaldo. Coisa

incomum. Tanto minha espo-.1 como eu estamos ansiosos para ouvir uma história.

— E nossos filhos também. — Mirana apontou os ;Garotinhos idênticos, de cabelos pretos como os da mãe, ' olhos azuis como os do pai. Eram lindos. Olhavam para Taby, os três se rodeando, cautelosos mas interes-.sados. — Em poucos minutos, estarão rolando no chão, lutando e gritando — ela disse, com ar de riso.

Mirana tinha razão. Os garotos eram os melhores amigos em questão de dez minutos. Rorik e Merrik conversavam em voz baixa, e Laren percebeu que falavam de Erik. Viu-os saírem da casa-grande e soube que iriam até o cemitério, ao túmulo do irmão e dos pais também.

—Que confusão. — Mirana meneou a cabeça. — Sinto muito que tenha passado por tamanho dissabor. E você é sobrinha do famoso Rollo da Normandia!

— Sim, mas ela tem apenas três vestidos, Mirana — Sarla caçoou, com uma risada. — Ileria está tecendo como uma louca para que a senhora de Malverne não nos envergonhe. Nenhum de nós quer que ela volte à Normandia sem estar impecável. Conseguiu fazer Merrik mudar de idéia, Laren?

—Ele acredita que é mais seguro se me deixar aqui. Mas não se preocupe, isso é muito importante para ele continuar confuso assim.

As mulheres riram. Kerzog latiu e correu para Mirana, que gritou e se escondeu atrás de Laren. O cão derrubou as duas, latindo e sacudindo o rabo com tal força que poderia quebrar um braço.

Quando Rorik e Merrik voltaram para a casa, silenciosos e imersos em seus pensamentos, nas próprias lembranças, foram recebidos com gargalhadas. A vida mais uma vez superara a morte e toda a sua dor.

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A casa transbordava de gente. A noite, quando todos se recolhiam, e ela se preparava para dormir, sentiu um puxão na saia e olhou para baixo. Era Taby, esfregando os olhinhos de sono.

Ajoelhou-se e abraçou-o.— Estava dormindo, Taby. Teve um sonho mau?—Como Merrik pode ser meu guerreiro viking, se ele me deixar aqui em

Malverne? Não sou bobo, Laren. Sei que esse outro lugar é muito longe daqui.Taby sentiu as lágrimas queimarem seus olhos. Criara um herói para o

menino e, agora, como não vivia na história do bardo mas no mundo real, esse herói o deixaria, e ela também. Não conseguiu se controlar.

— Não quero ficar longe de você nem de Merrik — Taby resmungou. — Não me importo de ser um príncipe.

Merrik que a tudo ouvia, aproximou-se e agachou ao lado de Laren, afagando o braço da criança. Taby fitou-o, os olhinhos ainda sonolentos, e Merrik sentiu as entranhas se retorcerem. Respirou fundo e murmurou, com doçura:

— Taby, lembre-se do que eu lhe disse. Há coisas que nenhum de nós pode mudar. Não posso permitir que você seja outra coisa que não aquilo que está destinado a ser. E possível que algum dia você seja o duque da Normandia. Não há escolha.

O menino se encolheu, fugindo dos braços de Laren.— Detesto você, detesto os dois! Só querem se livrar de mim! — Virou-se e

saiu correndo para o quarto das crianças.Laren ia segui-lo, Merrik, porém, a segurou.—Deixe-o. Ele precisa perceber que existem deveres, responsabilidades

infindáveis que governam cada um de nós.— Os dois últimos anos foram muito difíceis para Taby. Ele tem medo do

desconhecido.— E a irmã também. Iremos vê-lo daqui a pouco.Zarparam para a Normandia na lua crescente, quatorze dias mais tarde.

Cleve ficara encarrregado dos homens e da defesa de Malverne. Sarla ficou tomando conta da casa e de Taby que ainda estava emburrado por não ter participado as viagem.

— Uma história, Laren, uma história!— Isso mesmo, moça — gritou Roran. — Você fica sentada aí sem fazer nada,

sonhando com esse patife sorridente, Merrik, enquanto nós quebramos as costas nos remos.

O vento aumentara, e os homens descansavam. Todos cravaram os olhos em Laren, que sorriu.

— Contarei uma história verdadeira. Prestem atenção. O tenente do duque Rollo, Weland, contou a todos que Carlos III, o rei dos francos, ordenou a meu tio que se apresentasse em Paris para jurar lealdade a ele. Carlos mandou que Rollo se ajoelhasse diante dele e beijasse seus pés em sinal de humildade. Meu tio realmente ajoelhou-se com toda a solenidade, mas não beijou o pé do rei. Em vez disso, agarrou-o pelo sapato e puxou-o para o alto, fazendo o rei tombar do trono e aterrissar de costas no chão.

Merrik e seus homens explodiram em risadas.— E o que fez o rei? — perguntou o velho Firren, para em seguida cuspir na

amurada do escaler.— Seus homens o levantaram e contiveram a respiração. Estavam

apavorados de que o rei os mandasse matar Rollo. Não eram estúpidos, e sabiam que muitos não sobreviveriam a uma competição de pura força. O rei Carlos ficou parado, limpando o belo manto de lã púrpura, e olhando para Rollo. Os homens

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se remexeram, o medo aumentando. Então, para alegria de todos, o rei sorriu, jogou a cabeça para trás e caiu na risada. Disse que estava contente com a insolência de Rollo porque isso comprovava que o soberano vi-king controlaria quaisquer malfeitores que ousassem descer o Sena para saquear as cidades. Ele é chamado Carlos, o Simples. Deu todas as terras ao noroeste da França a Rollo em troca de proteção. Não houve mais incursões de seriedade em cinco anos. Todos os dinamarqueses e noruegueses respeitam e temem meu tio, pois ele tem homens muito bem treinados e também está construindo fortificações e guarnecendo-as de soldados. Os francos sob a tutela de Carlos vivem em paz pela primeira vez em muitos e muitos anos.

Oleg cofiou a barba de quatro dias.—Ouvi dizer que seu tio recusou-se a ir a Paris para jurar lealdade. Que

mandou uma mensagem ao rei franco dizendo que não reconhecia senhor algum, que todos eram iguais. Depois, cuspiu na mensagem e esfregou o dedão nela.

— Se meu tio fez isso, eu não sei. Parece coisa dele. É implacável e arrogante; não tem medo de homem algum. Foi a Paris, tenho certeza. Além disso, eu nunca soube que Weland mentisse. Otta, o ministro de meu tio, conta a mesma história. — Laren calou-se por um instante e depois emendou: — Talvez Rollo encarasse com certa cautela o rei Alfredo, dos saxões, tempos atrás. Mas Alfredo morreu faz quase duas décadas, portanto não há ninguém para perturbar o sono de Rollo, nem mesmo os parentes, os condes de Orkney, que ocasionalmente ameaçam destruí-lo se ele não lhes der um pouco de seus vastos domínios. Sim, os condes de Orkney são um bando de gente malvada, sórdida.

— Então, é verdade que Rollo descende dos Orkney?—É verdade, sim. Tio Rollo contou-me uma vez, faz muito tempo, que eles

eram um clã selvagem.— Como selvagem? — Roran indagou.—Tão selvagem que até urinavam dentro de suas casas.Laren deliciou-se com o riso dos homens, e virou-se para a brisa do sul que

vinha de bombordo. Estavam em águas calmas, de um azul profundo, ao longo da costa, mantendo a terra à vista. Chegariam ao rio Sena ao cair da noite, se o vento se mantivesse e a chuva continuasse ao norte.

—A doação de terra a Rollo e o fazer dela um ducado... isso é o caçador furtivo transformado em guarda-caça — disse Merrik, ao pegar o remo e começar a puxá-lo. Os outros homens o acompanharam. — Carlos III não tem nada de simples. Deu a seu tio o que ele já ocupava. E um homem inteligente.

— Você faz parecer que meu tio era uma criança inocente a ser conduzida pelo nariz.

—Bem... desculpe-me por falar assim do santo Rollo — Merrik disse com uma risada.

— Ele é um guerreiro a se temer e se respeitar. Mas queria a permanência e assegurou-a. Sim, ele se poupou de problemas e conseguiu o que queria para seu povo e seus herdeiros. Se alguém quiser cultivar a terra e se estabelecer, não faz sentido guerrear com os vizinhos. Mas, fale mais sobre esse Otta e o outro, Weland.

—Otta sempre esteve ao lado de meu tio desde que Rollo foi proscrito da Noruega pelo rei Harald. É mais jovem que meu tio e muito esperto. Weland, o tenente, cresceu junto com meu tio. Lutaram juntos, casaram na mesma época, e suas esposas morreram quase ao mesmo tempo. São muito próximos.

Os homens começaram a falar de outros assuntos, e Laren sentou-se ao lado do velho Firren, que segurava o leme com firmeza. Logo, adormeceu. Quando acordou, Merrik estava a seu lado.

— Estamos chegando ao Sena. Continuaremos descendo o rio e

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acamparemos nos arredores de Rouen. Quero todos nós limpos e bem-arrumados quando chegarmos ao palácio de seu tio.

Laren pensou nos três vestidos novos que Ileria tecera e depois costurara para ela. Eram do linho mais macio e delicado, e estavam enrolados no baú de Merrik. Sim, ela também queria se apresentar diante de todos em suas melhores condições.

Weland, o primeiro-tenente do duque Rollo, um homem que fora seu braço-direito desde que eram garotos, tão forte que poderia arrancar um carvalho novo do chão, entrou sorrindo como uma hiena.

— Tenho uma grande surpresa para o senhor, uma surpresa muito grande.O príncipe Rollo, como era chamado pelo povo, embora fosse um duque

sagrado pelo rei francês, era mais alto que qualquer carvalho novo que Weland pudesse arrancar do chão. Cravou os olhos sombrios no amigo e perguntou:

— O que é desta vez, Weland? Vai me trazer uma núbia para aquecer meus velhos ossos? Quem sabe uma poção mágica para acabar com a dor tormentosa em minhas juntas? Um garanhão alto o suficiente para que meus pés não se arrastem no chão?

— Não, senhor, eu lhe trago um presente muito superior a qualquer peso em prata. Laren está de volta.

Rollo encarou-o, muito sério.— Está brincando — disse, por fim. — Ela e Taby estão mortos, há longo

tempo. Eu o perdôo por muitas coisas, Weland, mas isto é demais. Está tripudiando sobre mim.

Weland meneou a cabeça, ainda sorrindo como um bobo, e ordenou aos guardas:

— Tragam-nos.Rollo viu entrar apenas a moça esguia com gloriosos cabelos ruivos, quase

chegando aos ombros, do jeito que ele sempre gostara que ela usasse quando era mais nova. Detestava quando os trançava porque a bela cor, do tom exato dos cabelos de seu irmão mais velho, Hallad, perdia o viço. Estava muito magra, percebeu quando ela chegou mais perto, mas tornara-se uma beleza e, mais que isso, havia mais vida nos olhos, e mais sombras. Havia também a alegria e a confiança que faltavam àquela menina de antes. Estava vestida lindamente com um vestido de um linho azul macio, amarrado na cintura. Usava broches de prata finamente cinzelados e braceletes também de prata. Aquela criatura graciosa estava ali a sua frente, viva, com um homem caminhando ao lado.

Disse-lhe o nome baixinho, e dizê-lo pareceu torná-la ainda mais real, muito real. Levantou-se.

— Laren!O grito reverberou pelo aposento. Laren riu alto e correu ao encontro dele.

Rollo a ergueu nos braços, tirando-a do chão, abraçando-a e rindo com ela agora.—Pelos deuses, está mais alta! — ele exclamou, e beijou-a nas faces,

apertando-a até que ela gemeu com a pressão.— Estou em casa, tio. Ah, o senhor continua ainda muito belo. Os dois anos

são como nada para o senhor, milorde. Não tem os cabelos grisalhos de Weland. E estou contente que não tenha ficado mais alto, graças aos deuses.

Ele pousou-a no chão, segurando-lhe a mão, e a afastou um pouco para vê-la melhor.

— Você é a mesma e, no entanto, mudou mais do que posso imaginar.— Sim, é verdade.De repente, os olhos de Rollo se toldaram e Laren percebeu que o tio

pensava em Taby, mas tinha medo de saber que o menino estava morto. Por isso,

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ela emendou, depressa:— Milorde, Taby está bem, com saúde e a salvo.—Ah, graças aos deuses. — Rollo ergueu a voz para o céu. — Farei sacrifícios

a todos os deuses, mesmo ao deus cristão. Procuramos em toda parte por você e por Taby. Seu primo Guilherme liderou dezenas de homens pelo interior do país, indo até Paris. Não havia rastro algum de vocês. Diga-me, Laren, o que aconteceu.

— Contarei, milorde. Primeiro, irá conhecer o homem que nos salvou, Taby e eu, o homem que é agora meu marido. Ele é o senhor de Malverne, uma próspera propriedade em Vestfold, e seu nome é Merrik Haraldsson.

Merrik aproximou-se lentamente do poderoso Rollo, o homem de quem ouvira histórias inacreditáveis a vida inteira. Agora, aquele homem fazia parte de sua família. Tinha um porte real, embora os anos colocassem uns poucos fios brancos nos cabelos negros e traçassem linhas na testa. Mas os olhos, negros como a meia-noite, eram brilhantes de sagacidade e inteligência e, para surpresa de Merrik, de humor. Tinha todos os dentes e o queixo era firme e teimoso. Um homem a levar em conta.

—Senhor — disse ao parar em frente a Rollo. Não iria se inclinar. Um viking não se inclina perante nenhum homem.

— Você salvou Laren e Taby.—Sim. Eu estava em Kiev e encontrei ambos no mercado de escravos de

Khagan-Rus.— Mercado de escravos?!Laren pousou a mão de leve no braço do tio.— É uma história longa, milorde. Resumindo, Taby e eu fomos seqüestrados

de minha cama dois anos atrás e vendidos como escravos ao sul de Piedmont. Vivemos assim desde então.

Rollo apenas a encarou, assombrado.— Dispensei os guardas, senhor — Weland quebrou o imenso silêncio. —

Laren desejava que apenas o senhor e eu soubéssemos que ela retornava. E Otta, é claro. Só Haakin sabe, além de nós. Ele está cuidando dos homens de Merrik. Vai dizer que são seus visitantes da Noruega, nada mais. Há um traidor aqui, mi-lorde. Devemos dar os passos necessários antes que saibam que Laren e o príncipe Taby estão de volta para nós.

— Onde está Taby? — Rollo indagou, finalmente.—Está em minhas terras, Malverne, que fica a meio dia de viagem de

Kaupang para o interior — disse Merrik. — Está seguro e bem guardado.—Ah, e quando soubermos quem os raptou e os vendeu como escravos,

então você trará Taby de volta para mim?— Sim, meu senhor, mas não até que isso aconteça. Amo o menino. Não

correrei o risco de que lhe façam mal outra vez. Eu pediria que ninguém, salvo o senhor e Weland, saiba que Taby está vivo. Não quero me arriscar a colocá-lo em perigo, por mais improvável que isso seja.

—Concordo. Contudo, ele deve voltar para mim, pois meu único filho, Guilherme, ainda não tem herdeiros. Taby é importante para mim, importante para a Normandia.

— Esta é a única razão de eu estar aqui, senhor. Rollo olhou para o viking mais atentamente agora. —Você é marido de Laren — disse. — Quis casar-se com ela antes ou depois que ela lhe contou quem era? Merrik não se ofendeu.

—Antes, senhor. Contudo, não me importo com esse príncipe de Danelaw. Ela é minha agora, a senhora de Malverne.

Rollo continuou a estudar o homem que salvara sua sobrinha e Taby. Devia a ele muito mais do que aquele homem poderia imaginar, assim como seu filho,

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Guilherme. Era vital continuar a linha de sucessão, e isso agora estava assegurado. Merrik Haraldsson era um homem grande e robusto, explodindo de juventude e boa saúde. Possuía uma bela aparência que as mulheres certamente admiravam, e, sem dúvida, Laren também admirava. Ah, avaliaria aquele sujeito de perto antes de resolver se manteria Laren a seu lado ou permitiria que continuasse com aquele casamento.

Virou-se para Weland.—Por enquanto, Laren ficará com Merrik. Ele a guardará melhor do que

qualquer de nossos homens, porém mantenha gente perto do quarto de dormir, apesar disso. — Então, esfregou a mão na testa.—Ah, por que dei ouvidos àquelas mulheres malditas? Elas me disseram que tinham ouvido falar de complôs e homens perversos que me queriam morto, para destruir finalmente minha dinastia. Sempre há complôs, sempre há homens perversos, principalmente aquele odioso bando dos Orkney e, assim, acreditei nelas. Mantive Guilherme em segurança, mas falhei com você e Taby. Por todos os deuses, a língua de Helga é mais sorrateira do que a de uma cobra, e os modos de Ferlain são tão inocentes como os de uma freira dos cristãos. Vou matar aquelas vadias.

—Precisamos ter provas, milorde — disse Laren. — Não posso ter certeza, embora pareça muito provável. Como o senhor disse, há sempre homens perversos, mesmos os francos que devem sua aliança ao rei Carlos.

— Mais que provável. Falarei com Otta sobre isso, mas não contaremos nada de Taby, não importa que ele mereça saber. Não sei onde ele está. Weland, onde está Otta?

— Ah... na privada, senhor. Estará aqui logo.— Otta e sua barriga maldita! — exclamou Rollo. — Está sempre

incomodando, sempre o obrigando a ir à privada. Bem, Merrik, deixe-me dizer que eu estava prestes a me decidir que um dos maridos de minhas sobrinhas me sucederia se algo acontecesse a Guilherme. Bem, não sou nenhum ancião de barba grisalha ainda. Poderia esperar outro par ou outra vintena de anos. A esposa de Guilherme está prenhe. Rezamos ao deus dos cristãos por um menino vivo. Se acontecer de aparecer uma menina, então veremos...

Merrik o interrompeu com gentileza.— E se eles se cansarem de esperar e envenenarem o senhor, ou Guilherme?— Sim — concordou Weland, as sobrancelhas se enrugando. — E provável

que façam isso, você tem razão, Merrik Haraldsson. Otta vive eternamente preocupado que Rollo e Guilherme sejam envenenados. Muitas vezes prova a comida antes de deixar que ele coma.

—Sim — o duque admitiu, com uma risada. — Depois, corre para a privada como se tivesse realmente comido veneno.

Merrik sorriu, mas logo ficou sério.— O que quer fazer, senhor?Rollo sorriu cheio de raiva e determinação. Merrik viu nele a imensa força de

vontade e a infindável ambição que haviam feito de Rollo um homem acima dos homens, que o conduziram a mais batalhas a que alguém poderia sobreviver.

Capítulo VI

Rollo manteve-a por perto, as mãos apoiadas nos ombros de Laren.Vez ou outra tocava a face da sobrinha maravilhado de como ela se tornara uma mulher. Como pudera suportar, como sobrevivera, conseguindo manter a si e a Taby vivos? Jantavam nos aposentos privativos de Rollo, uma refeição suntuosa que

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fez até Merrik suspirar de satisfação. Nem Otta nem Weland estavam presentes.—Laren é uma boa cozinheira, senhor, mas não sei se poderia superar isto.— O cervo está mais que delicioso — Laren elogiou.—Não, meu marido, receio que minhas habilidades não excedam o que já

provou feito por mim.O tio a encarou, abismado.—Minha sobrinha, uma escrava... — murmurou.— E quase mais do que posso compreender. Há entendimento em seu olhar,

Laren, e tristeza, porém mais que isso, também vejo a felicidade trazida por este homem.

O homem a que ele se referia sorriu.— Tenho tentado, senhor, agradá-la. Sabe que ela é um escaldo?Rollo olhou para a sobrinha com espanto.—Sim — completou Laren. — Estava em meu plano ganhar dinheiro contando

minhas histórias e assim comprar a liberdade de Taby e a minha de Merrik. Contudo, não tinha idéia que como eu iria retornar mesmo que ficássemos livres. E havia Cleve, claro. Ele tinha de vir conosco.

— Conte-me tudo — pediu Rollo.Nas palavras de Laren, a história foi ganhando vida, pois ela se tornara uma

narradora fascinante. Quando falou da velha senhora provando as cebolas assadas em folhas de bordo com ervilhas, Merrik quase pôde sentir o gosto na boca. Mas, ao falar de Thrasco, resumiu os fatos. Merrik a interrompeu. Queria que Rollo compreendesse o horror que Laren suportara.

— Ele pensou que ela fosse um garoto, senhor. Ia dá-la à irmã de Khagan-Rus, Evta, uma mulher que gostava de garotos. Laren estava desesperada para voltar para perto de Taby e dirigiu-se a ele com insolência. Ele a surrou com selvageria. Felizmente, não descobriu que era uma moça.

—Mas você me salvou, Merrik — ela emendou, vendo a vermelhidão subir pelo rosto do tio, as linhas das veias saltarem no pescoço.

— Não, apenas a resgatei. Ela já se libertara. É de sua semente, senhor, jamais desistiria.

Rollo riu, graças aos deuses, finalmente riu, Laren pensou.—E uma mulher para se levar em consideração- Merrik disse quando Rollo se acalmou. Laren não olhou para o marido. Será

que ele realmente acreditava em todas aquelas coisas maravilhosas que dizia sobre ela ao tio? Nunca lhe dissera nada.

Ferlain passeava de um lado para outro na frente da irmã, Helga, mas Helga não prestou atenção. Misturava uma poção e as medidas tinham de ser precisas.

— Quem são aqueles vikings? — Ferlain indagou, pela terceira vez. — Há também uma moça com eles, mas ninguém sabe quem é. Você precisa fazer alguma coisa. Pergunte a sua miserável poção fumacenta! Olhe nessa sua tigela de prata!

Helga terminou suas medições. Só então olhou para a irmã. Depois, baixou os olhos e começou a mexer lentamente a mistura.

— Posso entender por que seu marido a evita tanto, Ferlain — disse, numa voz suave.

— Tudo que você sabe fazer é guinchar e choramingar, sem motivo. É cansativo. Sente-se e mantenha a língua dentro da boca. Preciso terminar isto, ou estaremos arruinadas.

Ferlain sentou-se. Estavam no quarto de Helga na torre, onde os criados eram proibidos de entrar. Ninguém tinha acesso ao quarto, com exceção de Ferlain, nem mesmo o marido de Helga, Fromm. Ele tinha medo das poções

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mágicas da esposa, era a única coisa que impedia o brutamontes odioso de erguer a mão para ela.

Que poção seria aquela? Talvez para Rollo, o maldito velho que continuava a existir eternamente. Por que simplesmente não morria? Tinha cinqüenta e cinco anos, e parecia saudável como uma fuinha, dentes fortes, cabeça coberta de cabelos pretos, costas retas.

Ferlain olhou a irmã mais velha, e percebeu que parecia muito mais jovem do que ela própria. Não havia rugas em sua face, a pele era macia e flexível. Os cabelos, fartos, de um castanho-claro quase loiro. E a cintura não engrossara com o passar dos anos. Tinha quase trinta e cinco anos, e Ferlain, vinte e cinco, mas parecia velha o bastante para ser esposa de Rollo, não sua sobrinha.

Ferlain levantou-se e começou a andar novamente. Ah, como era difícil ficar sem fazer nada, agora que estava tão gorda. Todos aqueles bebês que carregara no ventre, todos mortos, deixando apenas um corpo pesado que a tornara tão feia.

— Terminou, Helga? — perguntou, aflita.— Sim, terminei.Helga endireitou-se, pegou a poção e bebeu-a toda, enxugando a boca com o

dorso da mão. Um espasmo de repugnância distorceu-lhe as feições, mas apenas por um momento. Então, levou os dedos ao pescoço, ao queixo e finalmente à pele delicada sob os olhos.

— Então, Ferlain — disse, calmamente —, temos estranhos aqui, em visita, e Rollo e aquele tolo do Weland não dizem a ninguém quem são eles. Por que isso a incomoda?

— Sei que é ela.— Ela? Quem?— Laren. Não finja que não sabe de quem eu estou falando!— Laren — Helga repetiu baixinho. — Estranho.. Acha realmente que ela

possa ter sobrevivido e voltado?'Mas Taby não estava com ela, pelo menos você não falou nada sobre uma

criança. Teria seis anos agora, v você sabe como as crianças são frágeis. Uma lufada de vento e,puf, a criança adoece e morre. Se for realmente Laren, por que você se importa?

— Eu a detesto, Helga! Você se acha tão esperta e tão acima de todos nós. Eu a detesto! Se for Laren, ela está de volta para causar mais problemas para nós.

Helga sorriu.— Acalme-se. Você está parecendo ainda mais gorda, Ferlain. Deve livrar-se

de todos aqueles doces que mantém perto da cama. E Cardle está muito magro, o pobre homem. Seu peito parece que está grudado aos ossos.

—Maldita seja, Helga, eu carreguei oito bebês! Uma mulher ganha carne quando carrega um bebê.Mas Helga não estava interessada.

— Espero mesmo que seja Laren, nossa meia-irmã há tanto tempo perdida. Que criança curiosa ela era, sempre correndo até que Taby nasceu e ela então se tornou uma mãezinha para ele, muito mais do que a própria mãe, a cadela infiel. Imagino qual será a aparência dela agora. Tem dezoito anos, ou perto disso.

— Não vai fazer nada?— Claro que farei alguma coisa. Temos que esperar para saber se essa moça

desconhecida é mesmo Laren. Depois, veremos.Laren usava o vestido de linho cor de açafrão, e uma fita da mesma cor

trançava-se aos cabelos artisticamente puxados para trás e enrolados atrás das orelhas. Nos pulsos, dois braceletes, ambos dados a ela naquela manhã, por Rollo.

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Parecia uma princesa, Merrik pensou, e sentiu uma pontada aguda no ventre. Era como se pertencesse àquele lugar. Havia uma nova confiança em seu andar, no jeito como falava. Pela primeira vez desde que a levara de Kiev, ele sentiu-se menor. E detestou-se por isso.

— Você dormiu profundamente a noite passada.—Eu mesmo não esperava. Ficamos no meu antigo quarto de dormir. Os

homens levaram Taby e eu daquela mesma cama. Nada mudou.Ficou em silêncio, e apenas os dedos fechando e abrindo na mão de Merrik,

indicavam que ela estava nervosa. Esperavam atrás do trono de Rollo, numa pequena alcova escondida do imenso hall externo por uma longa cortina vermelha.

Podiam ouvir as vozes de homens e mulheres, cheias de curiosidade, de perguntas, de especulações.

—Nunca antes eu tinha visto tanta riqueza — Merrik murmurou. E novamente sentiu aquela curiosa sensação de inferioridade.

Laren concordou, distraída.Imobilizaram-se quando a voz de Rollo ressoou, e um imediato e instantâneo

silêncio reinou no salão.— Pedi que viessem aqui para anunciar o retorno de minha sobrinha Laren,

filha de meu irmão mais velho, Hallad de Eldjarn.Instalou-se um pandemônio e, então, a cortina escarlate foi puxada. Laren e

Merrik deram um passo à frente para se postarem ao lado de Rollo.— É Laren, olhe para aqueles cabelos ruivos!— Não, é uma moça que se parece com Laren, não é ela. Laren está morta

faz tempo. Quem quer que a tenha levado a matou.— Sim, foi o conde de Orkney, o canalha malvado, que levou Taby também.Rollo ergueu a mão.— Minha sobrinha. Seja bem-vinda. Laren olhou para o enorme grupo

reunido.—Estou em casa outra vez. Vejo você aí, Mimeric, ainda toca o alaúde como

um anjo dos cristãos? E você, Dorsun, ainda atira flechas tão longe como antes? Lembro-me que cortou a asa de um pássaro, quatro anos atrás, em pleno vôo. Ah, e Edell, você ganhou carnes, meu velho amigo. Recordo-me que você gostava muito de pão com mel que as cozinheiras lhe davam quando ninguém estava olhando. Bastava sorrir para elas.

Fez uma pausa. Merrik observou as fisionomias das pessoas passarem da incredulidade para a incerteza e espanto absoluto. O burburinho cresceu e então explodiram em gritos de reconhecimento.

Rollo permitiu o alvoroço por alguns instantes. Depois, levantou a mão, e o salão caiu em silêncio outra vez.

— Meu sobrinho Taby não está aqui. Era apenas um bebê quando foi seqüestrado, e todos sabem que um bebê, mesmo cuidado e protegido, nem sempre consegue sobreviver. Mas não lamentem. Já passamos por muito sofrimento. — Virou-se para Merrik, e puxou-o para frente. — Este é o marido de Laren, Merrik Haraldsson da Noruega, primo do rei Harald, o Loiro. Pedi que viesse e assumisse seu lugar. Eis o homem que governará, se meu filho Guilherme Longsword morrer antes de ter um herdeiro. Bem-vindo, Merrik Haraldsson!

Aquilo fora dito sem rodeios, sem preocupações, sem nenhuma explicação ou justificativa, apenas proclamado naquela voz profunda. Até mesmo Laren conteve a respiração, e sabia o que o tio iria fazer. O choque era visível em cada face no imenso salão.

— Ótimo — disse Merrik, com alívio. — Agora sou eu a ameaça, não você.

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— Não gosto disso — Laren retrucou, não pela primeira vez desde a noite anterior, quando Merrik expusera o plano a Rollo.

— Farei o papel de herói valente e mostrarei tanta impiedade quanto estão acostumados a ver em Rollo. Talvez seu tio venha a me admirar muito e me peça para governar ao lado dele e depois ao lado de Guilherme. O que acha?

— Acho que está louco.— Louco, eu? Não acredita que eu possa ser herdeiro da Normandia para a

satisfação de todos? Não acha que eu seja habilidoso o bastante para convencer todo o povo a acreditar em mim?

— Sim, sei que pode. É por isso que está louco.— Essa loucura passará a nossos filhos, você acha? Laren o encarou por um

momento, tudo mais esquecido.— Não sei sobre essas coisas — murmurou.— Não teve seu ciclo de mulher desde a primeira vez que estive com você.Ela empalideceu. Cambaleou, os olhos arregalados cravados no rosto do

marido, e murmurou:— Não estou me sentindo bem.De um salto, Merrik pegou-a e ergueu-a nos braços. Um burburinho correu o

salão, e Rollo, preocupado até a medula, esbravejou:— Pelos deuses, o que há de errado com ela?— Apenas desmaiou, senhor — Merrik disse, com calma. — Não está doente.

Carrega meu herdeiro. — Ergueu-a bem alto nos braços, e sua voz ecoou, forte e profunda, no imenso salão. — Sim, ela carrega o filho que pode bem governar a Normandia algum dia.

Helga virou-se para a irmã, com um sorriso largo no rosto, e resmungou:— Talvez não carregue por muito tempo. Talvez seja como você, Ferlain, e

tenha o útero doente. — Suspirou. — Laren tem os cabelos de nosso pai.— Uma mulher não deveria ter cabelos dessa cor, é pecado.— Ora, nosso pai era lindo com seus cabelos ruivos. Pena que matou aquela

sua esposa infiel e fugiu. Mas será que a matou mesmo? Ela morreu tão depressa, você sabe, e não havia sinais de violência. Pena nosso pai ter acreditado que seria acusado e tenha desaparecido. Mas pena mesmo é que aquela cadela desse à luz Laren e Taby antes de sucumbir.

Ferlain sentiu o frio da sepultura, um frio tão profundo que lhe entorpeceu o corpo e a mente. Pensou em seus oito bebês mortos, cada um deles nada além de ossinhos espalhados agora. Olhou para a irmã, que falava com o marido.

—Então, meu marido, o que você pensa desse Merrik Haraldsson?Fromm estufou o peito e disse:— E evidente que é esperto. Tirou vantagem dos anos avançados de Rollo,

mostrando a seu tio apenas o que o velho quer enxergar, dizendo apenas o que ele quer ouvir, fazendo...

— Eu sei, eu sei... — Helga não se incomodou em esconder a irritação. —Acho-o um belo homem. Usa a juventude de um modo esplêndido, não usa?

— Não me venha com essa sua malevolência suave, Helga.—Promm virou-se para o cunhado. — Cardle, quero conversar com você assim que Rollo nos dispensar.

Helga soltou uma risada. Pelos deuses, por que o marido haveria de querer conversar com aquele miserável idiota? Pedir conselhos de como matar Merrik? Ou Laren?

Enquanto Rollo continuava enaltecendo as qualidades de caráter do viking, Merrik carregara Laren, ainda inconsciente para trás das cortinas além do trono. E Helga não conseguiu concentrar-se no que o tio dizia, nem nas perguntas colocadas pelas famílias de alta estirpe. A visão do viking enchia-lhe a mente. Um

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belo homem.Ela não era uma bela mulher?A esposa não estava grávida, desmaiando à toa e provavelmente vomitando

as tripas na frente dele? Além do mais, Laren estava muito magra, mal parecendo uma mulher. Claro que nenhum homem se deitaria de boa vontade com um palito daqueles. Claro que ela não tinha a habilidade de agradar um homem tal como aquele Merrik Haraldsson.

Por que, Helga pensou, Rollo não contara o que acontecera a Laren? Ela queria saber como Merrik a conhecera. Teria matado Taby assim que soubera quem era, imaginando que poderia tomar o lugar do menino como herdeiro da Normandia?

Olhou novamente para Rollo, vendo-o como um homem, não como apenas seu tio. Ainda era belo, mais forte e teimoso que um porco, porém estava velho, os anos a pesarem nos ombros largos. E ela imaginou vagamente o que faria.

Merrik segurava a cabeça de Laren enquanto ela vomitava na bacia. Estava trêmula com o esforço, a pele úmida e fria. Comera pouco naquela manhã porque se sentia muito nervosa, e agora estava arquejante e sacudida pelas contrações, mas não havia nada no estômago para pôr para fora.

— Eu não devia ter dito nada — Merrik murmurou, ao lhe afastar os cabelos suados da face.

— Você estava se sentindo bem em sua ignorância.Deu-lhe uma caneca de cerveja. Ela enxaguou a boca, gemeu e apertou o

estômago de novo e, depois, vomitou.— Não gosto disso. Você fez isso comigo.— Sim, é o dever de um homem — ele murmurou, sorrindo. — Venha.Ajudou Laren a ficar de pé e depois a tomou nos braços. Carregou-a até a

cama e deitou-a com cuidado. Ajeitou o belo vestido que Ileria lhe fizera, para não amassá-lo. Sentou-se ao lado, desejando ter ficado de boca fechada. Contudo, como poderia imaginar que saber de repente que estava carregando um bebê a deixasse adoentada? Era incompreensível, e ela ficara branca como um fantasma e desmaiara na frente de toda aquela gente.

Se tivesse planejado, não poderia ter se saído melhor.Laren abriu os olhos quando ele a cobriu com uma manta de lã.— Não gosto de você nesse instante, Merrik. Ele inclinou-se e beijou-lhe o

nariz.— Como sabe tanto sobre bebês e essas coisas?— Quando um homem toma uma mulher durante semanas sem parar, ou ela

está exausta para dizer "não" a ele, ou grávida de um filho seu.Ela deu-lhe um soco no braço. Merrik segurou-a pelo pulso, abriu a mão e

beijou a palma.— Obrigado, Laren, por meu filho.— É meu filho.— E minha semente e sem minha semente não haveria filho algum.—Eu pego a semente e lhe dou vida. Sem mim, não haveria um filho.— Você tem razão — ele murmurou, sorrindo.— Está dizendo isso porque eu estou me sentindo um farrapo.— Sim, fique boa logo para que eu possa discutir com você e não sentir

culpa.Laren sentou-se na cama.— Sinto-me bem agora. Não é estranho? — Calou-se, atenta às reações do

corpo. —Sim, é verdade, não há mais tontura, nenhum mal-estar. Minha barriga está... feliz!

Merrik abraçou-a.

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— Tudo ficará bem, você verá. Confie em mim.— Não gosto disso — ela murmurou, de novo. — Você está em perigo agora,

Merrik.—Pode protestar quando não estiver de joelhos com a cara num balde.Laren riu, e isso deixou Merrik profundamente aliviado. Ele a beijava quando

Rollo entrou o quarto.— Ela está bem?Laren olhou por sobre o ombro de Merrik.—Estou ótima, tio. Sinto muito por perturbar o seu anúncio.—Não, nada disso, estou mais que satisfeito. — Calou-se por um instante. — Suas meias-irmãs disseram que estão preocupadas com você. Ah! Querem

vê-la para lhe dar as boas-vindas.— Muito gentil da parte delas — disse Laren. — Eu as verei em breve.—Sim — emendou Merrik. — Quero conhecê-las também.Helga olhou ao redor do pequeno quarto de dormir de Laren, o mesmo de

antigamente. Esperava que tivesse pesadelos. Era o fim da tarde, e Laren vomitara de novo. Pobre Laren, parecia perto da morte. Tão perto... Carregar um bebê era uma coisa perigosa, todos sabiam disso.

— Laren, é você realmente. Mesmo vendo você no salão eu não pude ter certeza, pois estava tão ansiosa e não confiava em meus olhos. Está adorável, minha cara. Bem-vinda ao lar.

— Obrigada, Helga. Aí está você, Ferlain. Olá, irmã. Ferlain não conseguiu sequer esboçar um sorriso. Diferentemente de Helga, viu uma moça esguia, de magníficos cabelos ruivos, e uma compleição que só a juventude às vezes concedia, de brilhantes olhos cinza-azulados, e dentes ainda mais brancos. Detestou a visão. Sentiu-se muito velha, e era a meia-irmã de Laren, não a maldita mãe. O pensamento a amargurou.

— Senti sua falta, Laren— disse com um leve tremor na voz. — “Pena que Taby tenha morrido” para que você pudesse sobreviver.

Merrik arqueou a sobrancelha.—Você parece pensar que Laren deixou Taby numa cova em algum lugar

para ter uma chance melhor de seguir em frente.— Eu? Claro que não quis dizer uma coisa dessas. Helga, eu não disse isso,

disse?Helga deu uma risadinha e aproximou-se de Merrik. Era alto, aquele viking, e

tinha um cheiro delicioso, um cheiro másculo que era único, um cheiro almiscarado que a fazia desejar tocar-lhe a boca com a ponta dos dedos, os ombros, os pêlos da virilha.

— Não, Ferlain — murmurou, distraída. — Você ama Laren como eu. E ela não mataria Taby para salvar-se, claro.

Laren olhou para as duas. Estranho, mas Helga parecia mais jovem do que era, dois anos atrás. E Ferlain parecia mais velha, com vincos ao redor da boca, fios grisalhos nos cabelos. E gorda, muito gorda.

— Merrik, poderia, por favor, servir um pouco de vinho suave a Ferlain e Helga?

Ele dirigiu-se à mesinha que ficava perto da porta. Serviu o vinho em cálices de marfim e os ofereceu a cada uma das mulheres. Então, sentiu o calor da pele de Helga quando ela pegou o cálice de sua mão, e havia aquele mesmo ardor em seus olhos, olhos escuros, profundos e misteriosos.

— Onde estão seus maridos? — perguntou, e cravou os olhos nela, sem desviá-los mesmo quando se postou ao lado de Laren.

Helga esboçou um longo e lento sorriso, inclinando ligeiramente a cabeça como se lhe fizesse um sinal de aceitação.

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—Então, Laren, está grávida de Merrik. Parece que é tão fértil como sua pobre mãe. Que pena que ela morreu tão cedo, logo depois que Taby nasceu.

Laren não conseguia recordar-se do rosto da mãe, mas, estranho, lembrava-se dela cantando, a voz firme, forte e desafinada. E seu pai a estrangulara, todos tinham visto as marcas dos dedos no pescoço dela.

— Tio Rollo falou que todos acreditam que foi alguém do sangue dos Orkney o responsável pelo nosso seqüestro. O que acha, Helga?

—O que acho — Helga disse pausadamente, enquanto bebia o vinho, os olhos cravados em Merrik — é que, seja quem for, teve alguma piedade. Afinal, você sobreviveu, Laren.

—Nunca pensei nisso como um ato de piedade. Achei que o responsável queria que tanto Taby como eu morrêssemos lentamente, sofrêssemos, por que motivo eu não sei.

— Pois eu sempre acreditei que foi seu pai que voltou para levar você e Taby para longe — opinou Ferlain. — Ele sabia que seria condenado à morte se ficasse aqui depois do assassinato de sua mãe e, assim, raptou-os.

— Nosso pai — Laren disse, categoricamente. — E não posso crer que você tenha pensado nisso, muito menos dito uma coisa assim.

— Imagino o que aconteceu a ele — Helga murmurou. — Era um belo homem, um bom pai até que se casou com sua mãe. Mas basta, isso ficou no passado. Você está em casa agora, e trouxe o homem que será um dos herdeiros de Rollo. Imagino o que o rei Carlos dos francos pensará disso. Um estrangeiro tornar-se um possível herdeiro do ducado da Normandia...

—Prestarei reverência ao rei — disse Merrik. E ele abençoará nossa união, não duvido.

— Esfregou as mãos e havia um prazer ostensivo em seus olhos, uma cobiça sem disfarces, apenas por uma fração de segundo, nada mais.

Helga não o perdera de vista.—Ferlain e eu vamos deixá-la em paz agora, Laren. Jantaremos juntos esta

noite, se você não estiver vomitando de novo.Laren observou as duas saírem do quarto em silêncio. Então, inclinou a

cabeça para trás e fechou os olhos.— Foi muito convincente, Merrik.—Sim — ele disse, e riu. — Helga se julga irresistível e eu mostrei não apenas

meu interesse por ela, mas também minha ganância sem limites. Agora, vamos esperar para ver.

— Helga é esperta, lembre-se. Tome cuidado.Aquela noite, depois de um banquete que durou até altas horas da noite,

Merrik saiu para o pátio, pois um garoto de recados lhe entregara um recado de Oleg. Seguiu até um corredor em arco e chamou:

— Oleg, sou eu, Merrik. O que há?Não houve resposta, nada, só vozes à distância. Merrik sorriu para as

sombras imóVeis que o rodeavam, dispondo-se a esperar. Parecia relaxado, despreocupado, talvez um pouco bêbado, mas não estava. Começou a assobiar.

Ao perceber o ataque, jogou-se ao chão e rolou. Levantou-se, saltando para trás. Havia dois deles, homens fortes, vestidos em peles de urso, os rostos cobertos pela barba espessa. Ambos portavam punhais curvos como os que ele vira em Kiev, usados pelos árabes, afiados, reluzentes.

Merrik sacou a própria faca e começou a jogar a arma da mão direita para a esquerda, num ritmo constante. Tinha as pernas plantadas no chão com firmeza, separadas. Sorriu.

Os dois se separaram, mais silenciosos que lobos esfaimados no meio do inverno, acuando a presa.

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Merrik riu e provocou:—Vamos, vamos, seus molengas, mostrem suas habilidades, se é que têm

alguma. Parecem selvagens para mim, nada mais que escravos soltos por esta noite com a incumbência de me matar. Você, aí à esquerda, hesitante como uma virgem na noite de casamento, o que vai fazer, hein? Tocar o alaúde para seu amigo aqui declamar uma história? Seu covarde, venha, pare de dançar!

O homem urrou e investiu sobre Merrik, o outro logo atrás. Merrik acertou a base do pescoço do primeiro com o dorso da mão, depois o virou de lado e enterrou a faca em seu peito. O homem caiu sem emitir um som sequer.

O outro já estava quase sobre ele, e era mais esperto, mais cauteloso.— Vou esfregar suas tripas na terra — guinchou o bandido, o punhal em riste.Merrik deu dois passos para o lado, gingando, e investiu. O homem saltou

para trás, a ponta da faca de Merrik abrindo um corte na pele de urso.— Não vai me cortar, seu bastardo. Vou lhe arrancar as tripas da barriga e

triturá-las no chão por cortar minha pele.Merrik não gostou da imagem. Esgueirou-se de lado até ficar de pé atrás do

corpo caído do outro sujeito. Chutou-lhe as costelas até conseguir empurrá-lo para a frente. Depois, cuspiu no corpo.

Foi o suficiente. O homem rugiu, berrando pragas contra Merrik, e a fúria o fez perder o senso apenas por um instante. Quando a faca de Merrik subiu de baixo para cima, ele murchou o peito, quase dobrando o corpo, rodopiou numa volta completa e girou o punhal num rápido arco, acertando o braço de Merrik.

Merrik sentiu o frio repentino da carne rasgada, depois o abençoado entorpecimento. O homem o acertara, mas ele usaria o ferimento a seu favor. Deixou escapar um gemido de dor e cambaleou, de cabeça baixa, agarrando o corte com a outra mão.

O homem investiu, punhal em riste. Ao sentir o cheiro rançoso do bandido, Merrik acertou-o com o braço ensangüentado na face, cegando-o momentaneamente com o sangue espesso. Então, passou o braço bom por seu pescoço, e o fez se virar, comprimindo o pomo-de-adão até que o sujeito mal conseguia respirar.

— Quem é seu amo?— Não tenho amo.Merrik tocou a ponta da faca no pescoço do bandido e comprimiu-a de leve.— Diga — insistiu.— É Rollo, o grande Rollo. Quer você morto. Merrik ficou tão espantado que

afrouxou o aperto.O homem aproveitou-se disso, arrojou-se para a frente, cambaleando e então

correu para as sombras. Merrik deixou-o ir. Ficou parado, apertando o braço ao peito, ofegante. Gostaria de caçá-lo, mas duvidava que o alcançasse. E agora seu braço não estava mais entorpecido. Parecia em fogo. Rasgou a ponta da túnica e a enrolou em torno da ferida aberta.

Oleg andava impaciente pela extensão do quarto, quando ele entrou.— Pelos deuses, você está sangrando! Eu devia ter ido com você até essa

armadilha, droga!— Onde está Laren?— Não se preocupe. Ela está com Rollo, contando uma história.— Ótimo. Vá buscar o velho Firren e diga que traga agulha e linha.Logo depois, o velho Firren entrou no quarto. Parecia aborrecido.—O que você fez? Cortou-se, Oleg me disse, aquele mentiroso. Deixe-me ver.

— Examinou o braço, beliscou a carne, ignorando a palidez de Merrik. — A faca era muito afiada, o corte foi preciso e limpo. Está doendo?

— Vou matá-lo, velho, se não calar a boca e acabar logo com isso.

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Laren entrou, bocejando, quando o velho Firren já examinava a longa fileira de pontos. Ao olhar para o marido deitado de costas, o braço estendido, e para os trapos cheios de sangue no chão, arregalou os olhos.

— A coisa não é tão ruim, moça — Firren disse, tranqüilo. — Não se preocupe com seu marido. Merrik vai sobreviver, é um sujeito rijo.

Ela tocou na palma da mão do marido. Estava fria e seca. Então, virou-se para o velho Firren.

—Deixe Oleg de guarda na porta. Leve embora todo esse sangue.—Sim, senhora — resmungou o velho, e cuspiu com cuidado na água

ensangüentada da bacia. Sorriu para Merrik e saiu do quarto.— Você foi atacado, não foi? Pedirei a Helga que lhe dê uma poção para você

não adoecer. Talvez ela tenha algo para a dor também.Merrik fechou os olhos, sem dizer nada, e Laren saiu do quarto.Acordou com Helga sentada a seu lado, a fitá-lo, os olhos ardentes.— Fiz uma poção para você. Tome, deixe-me ajudá-lo. Ele bebeu a poção

devagar. Tinha um gosto doce, o que o surpreendeu.— Daqui a pouco não vai sentir mais dor.— Onde está Laren?— Está com Rollo. Ele parece não querer que ela fique longe de suas vistas, o

velho idiota. Ainda tem dor?Ele meneou a cabeça.— O que me deu?— Ah, um pouco de manjericão doce, uni pouco de água de cevada, cicuta...Merrik respirou fundo, e Helga emendou com calma:— Só uma pitada. Mal suficiente para matar uma mosca, mas não um homem

como você, Merrik. Ah, e um torrão de mel para adoçar.— Não sinto dor agora — ele murmurou, surpreso.— Ótimo. — Helga debruçou-se sobre ele. Beijou-o, a boca macia, os seios

suaves e quentes.Merrik sentiu a língua de Helga avançar por entre seus lábios e deixou que

entrasse. Precisava fazê-lo. Ergueu o braço bom e puxou-a para mais perto, comprimindo aqueles seios fartos contra o peito.

O homem dissera que Rollo o queria morto. Por que Rollo haveria de querê-lo morto? Era mentira, por certo. Sim, mentira, e Merrik estava de volta à estaca zero. Precisava de Helga para descobrir o que estava acontecendo. Mas quando aquela mão macia desceu por seu abdômen para tocá-lo, ele a impediu.

—Não, minha esposa pode aparecer. Precisa me deixar agora, Helga. Haverá outra hora.

Ela sorriu, beijou-o de leve mais uma vez, e levantou-se.— Ficará bem, lorde Merrik. Quem quer que tenha tentado matá-lo não foi

bom o suficiente.De repente, Merrik viu a frieza nos olhos de Helga, onde houvera tanto ardor

momentos antes. Ela afastou-se, dizendo por sobre o ombro.— E tarde. Voltarei para vê-lo de manhã.O dia já estava quase amanhecendo quando Weland bateu no antigo quarto

de dormir de Laren. Merrik ainda estava acordado, pensando. Não conseguira dormir. Laren estava adormecida contra seu ombro nu. Tomando cuidado para não acordá-la, levantou-se para abrir a porta, e ficou surpreso.

— Milorde — Weland disse, baixinho. — Fromm, o marido de Helga. Está morto.

O dia acabara de nascer. Rollo ainda estava em sua imensa cama, entre as peles de rena da Noruega, da raposa dourada de Danelaw, e do arminho branco da Bulgária. Bocejou ruidosamente, esfregando os olhos.

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Weland apressou-se a dizer.—Fromm estava a pé em Rouen com alguns de seus amigos beberrões. Sinto

muito, senhor, mas ele está morto. Houve uma briga...—Sempre há brigas. — Rollo esfregou as juntas inchadas dos dedos.Suspirou. Então, Fromm estava morto. Quem se importaria? Helga por certo

que não. Fora um genro mesquinho, envaidecendo-se e se pavoneando porque era parente do grande Rollo da Normandia. Não dera filhos a Helga, mas talvez não fosse sua culpa.

— Como aconteceu?— Não se sabe como ele foi morto, esfaqueado na garganta. Recomendo que

seja enterrado esta manhã — disse Otta. — Não queremos o espírito dele pairando por aqui. Seria um fantasma maligno.

Rollo sorriu com ironia.— Esquece que é cristão agora, Otta? Otta empalideceu, e levou a mão à

barriga.— Enterraremos Fromm pela manhã — disse Rollo. — Weland, quero que

interrogue todos os homens que participaram da briga.Calou-se quando Merrik e Laren entraram no aposento.—Senhor — Merrik começou. — Viemos o mais depressa possível. Weland nos

contou sobre a morte de Fromm.Rollo olhou para o braço de Merrik, enfaixado com tiras de linho.—Acho isso muito estranho. Não acha, Otta? Tanto Merrik como Fromm foram

atacados. Você teve sorte, meu rapaz.— Não, ele simplesmente é um lutador melhor, tio.— Você é mulher dele e é natural que acredite nisso, pelo menos agora, no

começo.Laren ficou espantada. Rollo parecia velho naquela manhã, menor, enterrado

na cama. A pele estava cheia de vincos, as veias saltavam no pescoço acima do camisolão de dormir que usava. Os cabelos estavam emaranhados, fazendo-o parecer ridículo. Falava e agia como um velho irritadiço.

— O que vai fazer, tio? — perguntou.— Enterrar o danado e encontrar outro marido para Helga. O homem que a

tomar ficará mais rico do que é agora. Quem sabe, talvez ele plante um filho naquele ventre.

Olhou para todos, ainda irritado.—Saiam agora, todos vocês, menos Laren. Quero que você me conte o resto

da história.Laren sorriu.— Está bem, tio, eu lhe contarei.Laren ergueu a cabeça devagar, olhou para a bacia, e sentiu o ventre

contrair-se e se retorcer novamente. Sentou-se na beira da cama e tentou relaxar. As ânsias continuaram. Procurou respirar pela boca, lentamente. Ajudou.

Sua velha ama, Risa, entrou no quarto, encarou-a sem dizer nada e levou embora a bacia suja, deixando outra no lugar.

Laren adormeceu. Quando acordou, o quarto estava imerso em sombras e, de repente, era um palco de violência, de pavor outra vez, como fora dois anos atrás.

Ela se ergueu nos cotovelos, chamando baixinho:— Tem alguém aí? Merrik?Só havia silêncio e pareceu crescer e, com ele, as sombras, a escuridão

sufocante. Assustada, engoliu em seco, a garganta dolorida. Então, ouviu, no canto do quarto, um som de animal ferido, um farfalhar, suave, abafado, e que estava próximo.

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Laren olhou para a porta. Parecia muito distante aquela soleira, a única rota de fuga daquele quarto, e do que estava ali dentro. Quando algo lhe tocou o ombro, ela gritou.

—O que houve, Laren? — Ferlain perguntou. — Por que está tremendo tanto? Você me assustou.

Ferlain pegou a lamparina e segurou o pavio perto de um carvão no pequeno braseiro ao lada da cama. Logo, uma pequena chama se erguia e a claridade banhava a beira da cama.

— Agora você pode me ver, não há mais problema, não é?— Acho que acordei e me lembrei daquela noite horrível de dois anos atrás,

quando os homens entraram e levaram Taby e eu.— Deve ter sido horrível. Helga tem razão. Foi um ato de piedade vocês não

serem mortos. Bem, Taby morreu, mas você não. Está segura, e gravidade filho daquele viking, e tudo será seu, se sobreviver ao parto, quero dizer. Se o bebê sobreviver. Os meus todos morreram...

— Ferlain olhou para os carvões no braseiro e depois para a meia-irmã.— Foi você que contratou os homens para nos levar daqui, Ferlain?— Eu? Por que eu faria uma coisa dessas?Ferlain riu, uma risada feliz, mas não era engraçada aquela risada. Laren

desejou desesperadamente que Merrik aparecesse, ou Risa, ou alguém.— Não sei. Onde estão todos?— Laren, eu queria conversar com você, avisá-la. — Ferlain inclinou-se, os

dedos grossos fechando-se no braço de Laren. — E Rollo o seu inimigo. Está velho e amargo, e detesta todos nós, inclusive você, inclusive aquele seu marido viking. Detestava Taby mais que todos porque era filho da semente de Hallad e não da dele. Sim, Rollo odiava o próprio irmão. Não sabia que ele andava com sua mãe? Hallad descobriu que ela, a cadela infiel, queria ser a duquesa da Normandia. Queria seu pai morto. Queria Rollo. Nosso pai a matou? Parece muito provável, não é?

Nosso pai fugiu, desapareceu. Mas tome cuidado com Rollo. É louco e ficou mais louco depois que ela morreu e nosso pai sumiu. Sim, Laren, você deveria ir embora também.

Laren encarou-a, sentindo as entranhas se revirarem, e correu para a bacia. Ouviu Ferlain rindo às suas costas enquanto vomitava e se contorcia em ânsias.

Fromm foi enterrado com muitos de seus pertences preferidos num túmulo profundo numa colina de onde se avistava o rio Sena. Seu velho escravo também morto, foi colocado ao seu lado, com uma cruz rústica de madeira nas mãos, um símbolo do deus cristão.

—Acabou — disse Rollo, e afastou-se do monte de terra, onde não havia um marco, nem adorno, como era o costume viking. Quando a grama cobrisse o local de novo, nenhum estranho saberia que acobertava um corpo e riquezas. Haveria uma lápide, mas perto do palácio, onde o povo a veria e saberia de todos os bons ofícios de Fromm e sua coragem.

Rollo olhou para Helga e Ferlain e, depois, para Laren, parada ao lado de Merrik.

— Sonhei com Hallad a noite passada. Sonhei que ele tinha voltado e que estava zangado comigo. Não envelhecera, mas continuava tão jovem e forte como o homem que foi. Ah, as mulheres adoravam Hallad, todas elas, mesmo...

Rollo olhou para os dedos e começou a esfregar as juntas. Weland aproximou-se.

— Senhor, é hora de voltar ao palácio — disse. — Há um homem, um ferreiro, que pediu para vê-lo. Parece que sabe algo a respeito de Fromm e da briga. Interroguei os outros homens e ninguém admitiu nada.

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Rollo aquiesceu com a cabeça e acompanhou seu tenente. Então, disse, por sobre o ombro:

— Minha doce Laren, você e Merrik jantarão comigo, só vocês dois. Quero conversar com seu marido sobre o rei Carlos e seus astutos ministros, porcos todos eles, assim me disse Guilherme. Merrik precisa saber de tudo antes de partir para Paris para conhecer Guilherme e o rei franco. Otta sabe muito sobre eles, pois passou bastante tempo na corte de Carlos.

Merrik sorriu para a esposa.— Como se sente, querida?Ela entrelaçou os dedos aos dele.— Seu filho está dormindo, graças aos deuses.—Falei com Helga. Ela disse que essa indisposição não irá durar mais que

algumas semanas. Disse que quanto mais enjoada você ficar, mais os sinais indicam que dará à luz um menino. Mas eu não me importo, Laren. Só quero você sorrindo outra vez, ou gritando. Assim, poderei discutir com você sem preocupação ou culpa, e você, me insultar e berrar.

—Eu gostaria, pois você está ficando muito acomodado, muito confiante em sua opinião enquanto eu fico ocupada vomitando. — Ela cutucou-o no braço. — Existem outras coisas de que sinto falta também, milorde.

Os olhos de Merrik se toldaram, e Laren viu o desejo, a necessidade neles. Por um instante, fingiu que Merrik era seu, apenas seu, que a amava. Sim, ela o queria desesperadamente.

Não muito tempo depois, já no quarto, Merrik carregou-a no colo até a cama, deitou-a com cuidado e soltou os broches que lhe prendiam a túnica aos ombros. Despiu-a, sem dizer nada, fitando-a enquanto a desnudava, olhando para os dedos onde tocavam a pele nua. Quando lhe acariciou os seios, Laren arqueou-se contra a palma.

— Seus mamilos estão maiores e mais escuros — ele murmurou, e sugou um deles suavemente para dentro da boca. A língua, quente e áspera, correu sobre a carne sensível, fazendo-a arquejar de prazer.

Laren segurou-lhe a face entre as mãos e o puxou, mas Merrik ergueu a cabeça, a encará-la, a boca molhada, os olhos mais azuis do que nunca. Era belo, aquele homem que era seu, pelo menos quando a desejava.

— Dê-me sua boca, Merrik.Ele deu. Beijou-a e acariciou-a até que ele julgou que morreria com a delícia

das sensações, mas não morreu, é claro. Seu corpo fervilhava de vida e de desejo, e ela sabia que muito mais viria até chegar ao êxtase final, ao clímax que a arrebataria, borrando tudo que era real e o que não era, deixando apenas os dois, juntos, num só.

Instigou-o com as mãos, separando as coxas, arqueando-se, dizendo-lhe o nome repetidas vezes, mas Merrik apenas sorriu, e não a tomou. Deitou-se de costas e ergueu-a. Então, penetrou-a devagar, muito lentamente, segurando-a ao alto enquanto se movia. E quando não podia mais se controlar, seu corpo explodiu de prazer.

Laren desabou sobre ele, ofegante, o prazer a inundá-la, a fazê-la querer muito mais. Merrik pensou em seu filho dentro dela, e conteve a respiração na garganta. Estremeceu, tenso, sem acreditar na intensidade das sensações que o dominavam. Gritou, os quadris arqueando-se para cima, a musculatura contraindo-se, e Laren o recebeu ainda mais profundamente, acariciando-lhe a face conforme o alívio o sacudia.

Caiu de lado. Sabia que aquele sortilégio nunca terminaria entre os dois. E ficou contente.

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Foi então, na luz tênue do entardecer, que sua visão clareou, e ele viu Helga parada no limiar das sombras, fitando-o, os lábios entreabertos, os olhos ávidos de desejo.

Merrik imobilizou-se como uma rocha, tamanho o seu choque. Lentamente, meneou a cabeça para ela, Helga virou-se, depois de olhar para eles uma última vez, e desapareceu de vista. Ele sentiu o coração disparar, não da violência de seu alívio, mas com a fúria absoluta que o dominava. Helga os observara, vira quando ele colocara Laren sobre ele, quando a penetrara lentamente, vira Laren gritar de prazer enquanto ele a acariciava, vira quando o sangue subira por seu pescoço e suas faces ao atingir o ápice do gozo. Queria matar aquela cadela.

— Merrik? Está todo rígido. O que há de errado? Ele obrigou-se a relaxar, os músculos dos braços se afrouxaram. Laren o montou outra vez, pousou-lhe as mãos nos quadris, e sorriu, um sorriso cheio de satisfação.

— Agora sei como se sente quando está em cima de mim, aquele que decide quando fazer o quê e por quanto tempo.

— Acredita mesmo nisso, querida?Conforme falava, Merrik acariciou-lhe as pernas, subindo até tocar o ponto de

junção, pois continuava ainda dentro daquele ninho quente. Sentiu a umidade de Laren e da própria semente, e fechou os olhos por um instante, diante da profunda e inexplicável alegria que a sensação lhe trouxe. Então, tocou-a outra vez, e Laren contorceu-se, puxando o fôlego.

Ele riu.— Ainda acha que é você que está no controle? Laren não disse nada.

Inclinou-se para a frente, estendendo as mãos em seu peito. Beijou-o na boca, depois no queixo. Endireitou o corpo, sentindo-o intumescer dentro de si outra vez, e sorriu. Ergueu o quadril lentamente. Então, desceu ainda mais devagar.

Os olhos de Merrik quase se fecharam, e ele gemeu, as mãos se fecharam nos quadris de Laren conforme ela o cavalgava. Deixou que ela fizesse o que desejava, quase o soltando para depois descer sobre ele de novo, cobrindo-o e acariciando-o, beijando-o até que ele se viu enterrado bem fundo outra vez, e ambos chegaram ao clímax juntos, em contrações fulminantes. Merrik abraçou-a, sentindo o suor porejar na pele macia, e tentou esquecer por um momento que Helga estivera ali, observando nas sombras.

Merrik sentou-se com Otta e Rollo nos aposentos privativos do duque, separados do grande salão. Ele e Laren tinham jantado com Rollo, e depois o tio ordenara que Laren o esperasse no quarto. Agora, Otta contava a Merrik sobre a corte do rei Carlos.

Merrik ouviu, atento, tudo que Otta dissera.—Existem facções na corte, e fico imaginando como o rei as controla — Otta

disse, a raiva evidente em sua voz.—Não imagine, Otta. — Rollo riu. — O rei age como um estúpido, é simples

assim. Olha vagamente de um conjunto de opiniões para outro, sorri e concorda, tão vazio como uma casa-grande na noite do solstício de verão. Acho que você entende o que eu quero dizer.

— Sei que ele é estúpido, e isso não é uma farsa, senhor. Às vezes ele tem sorte, é tudo, apenas sorte.

Rollo olhou para Otta, surpreso que ele se atrevesse a desdizê-lo. Então, meneou a cabeça, fez uni ar entediado e levantou-se.

— Vou deixá-los juntos agora. Quero que Laren continue a história do poderoso rei dinamarquês, Gorm, e como ele perdeu a vida tentando conquistar a imortalidade como um deus. Otta observou Rollo sair do aposento, e pareceu preocupado. Merrik não disse nada, mas refletiu. Será que Rollo realmente não tinha interesse no assunto? Estaria com as faculdades mentais prejudicadas?

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Seria verdade o que o homem dissera, e Rollo o contratara para matá-lo?Não, não poderia, não iria acreditar naquilo. Não fazia sentido. E quanto a

Fromm? Fora mesmo um acidente? Merrik duvidava. Havia muitas correntes estranhas fluindo por ali, emoções ocultas e depois soltas, muitas coisas que ele não entendia nem conseguia imaginar. Recostou-se à cadeira, e ouviu Otta falar num tom monótono sobre um rei que ele nunca tivera o mínimo interesse em conhecer. E o pior, não estava nem perto de descobrir quem era responsável pelo seqüestro de Taby e de Laren. Seu braço ferido começou a latejar.

Merrik empurrou devagar e abriu a porta estreita do quarto de Helga na torre, e olhou para dentro. Era um aposento estranho, de formato octogonal, e odores pungentes permeavam o ar. Ela estava de pé ao lado de uma longa bancada cheia de tigelas e frascos. Ergueu os olhos e sorriu.

— Esperei que viesse me procurar.—Ouvi dizer que você não permitia nenhum homem aqui em seu quarto da

torre. Contudo, não julguei que proibisse minha entrada. — Merrik calou-se diante do sorriso malicioso de Helga. — Você espionou Laren e eu, e não gosto disso. Por que agiu assim? Helga deu de ombros.

— Nunca tomo um homem antes de saber se ele é capaz de satisfazer minhas necessidades. Você é, Merrik Haraldsson, realmente é.

— Teve muitos homens antes de Fromm ser morto?—Fromm — ela murmurou, e depois repetiu o nome do marido morto mais

uma vez. — Fromm. Fomos casados por muitos anos. Ele queria desespe-radamente um filho, e eu também, pois eu via meu filho como herdeiro de Rollo depois de Guilherme. Mas meu ventre nunca vicejou. Rollo e Fromm culpavam minhas poções por isso, mas não é verdade. Então, quando desisti, engravidei. A pobre Ferlain tinha dado à luz o quinto de seus oito bebês mortos. Os deuses sabem que eu temia por meu filho também, mas ele se remexia forte dentro de mim, meu lindo filho, e mesmo assim eu fiquei calada e não contei a ninguém. Tinha medo.

— O que aconteceu?— O bebê deixou o meu corpo cedo demais. Eu estava colhendo ervas e

raízes na floresta ao norte de Rouen quando as dores começaram. E o sangue... nunca imaginei que houvesse tanto sangue. Enterrei os restinhos de meu pobre bebê lá, no fundo da floresta.

— Por que está me contando isso, Helga?—Eu sempre quis contar a alguém. — Desviou os olhos dele, olhando para o

vazio. — Foi depois disso que comecei a fazer poções para aprimorar minha beleza,

para trazer a juventude de volta à minha carne. Quero tomá-lo como amante, Merrik Haraldsson. Você é forte, admiro seu corpo másculo. Além disso, muitos homens não se importam com o prazer de uma mulher. Você se importa, vi o que fez com Laren, e ela... ela nem percebe que você é diferente da maioria dos homens. Não aprecia o que você lhe dá. Eu o quero. O que me diz?

— Não sei por que eu concordaria. Sou um dos herdeiros de Rollo, e seria perigoso para mim, trair minha esposa e a sobrinha predileta do duque, enterrando-me em seu ventre, por mais macio e branco que seja.

— Por outro lado — Helga falou, com um sorriso, ao colocar um cálice esguio sobre a bancada —, é possível que eu lhe dê mais prazer do que um homem sonha, que lhe diga até quem foi o responsável pelo rapto de Laren, dois anos atrás.

Merrik fitou-a por um longo tempo, e disse, por fim:— Eu poderia pegar esse pescoço branco entre minhas mãos e espremer até

que me diga quem são os responsáveis.

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— Realmente, poderia — ela murmurou. Merrik caminhou lentamente na direção de Helga.

Ela sorriu e puxou o decote alto do vestido, desnudando o pescoço.— Venha — disse. — Mate-me.— Milorde! Não! — Otta gritou, da soleira da porta — Não a machuque!Merrik virou-se devagar para encarar o ministro de Rollo.— Você se move sorrateiramente, Otta — disse. — Estava esperando do lado

de fora? Por um sinal? Quem sabe esperava me encontrar em cima dela, hein?—Zomba de mim, viking — Otta retrucou, e entrou no quarto a passos lentos.

— Não sou um espião. Não sabia que estava aqui com Helga. Eu apenas queria vê-la.

Helga alisou o decote do vestido. E Merrik olhou de um para outro.—Quer tomar o lugar de Fromm? Eu pensaria nisso com cuidado, se fosse

você, Otta.—Eu penso em tudo com cuidado, lorde Merrik. Por isso, sou ministro de

Rollo.Com um sorriso, Merrik saiu do quarto da torre. Desceu a escada de madeira

até o pátio. Continuou a caminhar, pensando no que Laren lhe dissera, de como Ferlain entrara silenciosamente em seu quarto, quase a matando de susto, dizendo que fora Rollo quem mandara seqüestrá-la. Que ele os odiava, que desejava a mãe de Laren, Nirea... Tudo parecia por demais fantasioso. Não fazia sentido. E Ferlain parecera louca, pelo que Laren contara. E Helga? Se deitasse com ela, será que ela revelaria quem fora o responsável pelo rapto? Meneou a cabeça, ergueu os olhos e viu Weland destacar-se de três homens que lutavam num trecho de terreno coberto de palha.

—Ei, milorde Merrik! Tenho uma mensagem de Rollo. Ele foi visitar um velho que tem uma fazenda ao norte do Sena, cinco léguas daqui. Quer que o senhor e Laren se juntem a ele lá.

— Por quê?Weland pareceu perdido por um instante.—O velho previu a ascensão de Rollo à posição que ocupa, muitos e muitos

anos atrás, me disseram. É um tipo de mago. Rollo quer que o senhor e Laren o encontrem lá, para o velho examinar seu futuro. Diz que é para o bem do povo, pois quando ele morrer, se o senhor for o sucessor, não haverá desafios desconhecidos.

— Compreendo. — Merrik não acreditou na história nem por um instante. Weland estava mentindo. Será que Rollo o mandara mentir? Ou o duque estava louco e velho demais para saber o que fazia? Parecera magnificente quando o conhecera, o Rollo das lendas, mas agora, estava mudado.

— Já falou com Laren?— Ela o espera nos estábulos. Vários de meus homens vão levá-lo à fazenda

do velho. Eu tenho de ficar aqui. Vocês voltarão ao palácio com Rollo.— Está bem — concordou Merrik. Gostaria de estar com sua espada. Tinha

duas facas, porém. Pegaria outra arma com um dos soldados. Não gostaria de levar Laren, mas como evitar? — Mande os soldados até aqui, e vamos.

Não tivera a chance de falar com Laren, de convencê-la a se fingir de indisposta e ficar ali, a salvo. Mas estaria mesmo a salvo? Suspirou. Só queria juntar a esposa, reunir seus homens e ir embora daquele lugar maldito. Queria ir para casa. Queria manter Taby em Malverne e esquecer de Rollo e se distanciar de todos os segredos mesquinhos que fermentavam ali.

Então, percebeu que Taby pertencia àquele lugar que poderia ser seu, toda aquela imensa e rica terra. E o ducado se tornaria ainda mais poderoso no futuro,

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e seus duques disputariam com os reis francos o controle de mais terras, ele sabia disso. Tinha de resolver aquele mistério e depressa.

Os soldados chegaram para levá-lo até Laren.Então, ele avistou Oleg e o velho Firren. Sorriu e berrou:— Lembra como Erik gosta de lutar? Quando voltar para casa, diga a ele que

irei visitá-lo em breve e esfregarei seu nariz na terra. Diga isso, Oleg. Diga que vai precisar de seis homens dos mais fortes para ajudá-lo, se quiser me derrubar.

— Claro, Merrik — Oleg resmungou, estudando a expressão do amigo. — Pode deixar que direi.

O velho Firren cuspiu no chão. Merrik fez uma ligeira saudação, e virou-se para acompanhar os quatro soldados até os estábulos.

Laren respirou fundo, sentindo o cheiro das moitas de teixo, das margaridas silvestres e o odor pungente do Sena. A estrada estava esburacada pela chuva, mas o céu agora estava sem nuvens, tão azul como os olhos de Merrik.

— Devíamos ter trazido um presente para esse velho amigo de tio Rollo.Rognvald, o segundo em comando de Weland, resmungou, por sobre o

ombro:—Devemos nos preocupar com malfeitores e assaltantes que se escondem

nesses bosques, senhora. Vejo que o senhor porta uma espada, lorde Merrik — Rognvald emendou, olhando para a arma de um jeito que desagradou Merrik.

—Um de seus soldados viu que eu precisava de uma. Como você diz, há muitos malfeitores por aqui. É bom estar preparado.

Rognvald concordou, e esporeou o cavalo para conversar com os dois homens que seguiam adiante. Pouco depois, virou-se para trás.

—Olhe lá, lorde Merrik! O mosteiro de Santa Catarina, que Rollo foi obrigado a construir a duas léguas daqui, no alto de um promontório. A vista é espetacular.

— Monges me fazem querer ir no mesmo instante para a casa de banho. Seu fedor me enoja.

Rognvald caiu na risada.—É verdade. Os mendigos nunca tomam banho e estão sempre se cocando

por causa da sujeira, dos piolhos e da maldita lã grosseira.Continuaram a viagem por outra hora, sem qualquer incidente. No alto de

uma pequena colina, uma cabana apareceu, a fumaça saía pelo teto numa fina esteira azulada. Em frente à choça, havia apenas um cavalo. O cavaleiro não estava à vista.

— Não vejo o cavalo de tio Rollo, Rognvald. Onde está Njaal? — disse Laren. Virou-se para Merrik. — Njaal é um bicho enorme, com uns dezessete palmos de altura. E o único que carrega meu tio sem que ele arraste os pés pelo chão.

Rognvald inspecionou os arredores com ar preocupado. Então, soltou um suspiro de alívio.

—Lá está o garanhão, debaixo daquele carvalho. Sim, é Njaal.— E mesmo — concordou Laren. — Venha, Merrik, vamos conhecer esse

mago. — Saltou da montaria sem ajuda e correu para a entrada da cabana.Merrik desmontou e entregou as rédeas a um dos soldados e, depois, seguiu

a esposa para dentro da casa. Estava escuro lá dentro. Pestanejou. Era um lugar horrível, e fedia, o ar rançoso de comida velha, corpos sem banho, e animais amontoados. Viu um velho sentado junto a um fogo de chão no centro do cômodo. Tinha uma longa barba branca e usava um belo manto, surpreendentemente limpo. Ergueu os olhos quando Merrik entrou.

— E o marido dela? — o homem perguntou.— Sim, sou Merrik Haraldsson de Malverne.— Em Vestfold — o velho murmurou, e remexeu as brasas no fogo com um

pedaço de lenha. — E uma linda terra, Vestfold. — O velho não olhou para Laren,

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que estava do lado oposto, parecendo fascinada, fitando-o sem dizer uma palavra. Merrik deu outro passo, mas o velho ergueu a mão. — Não, fique aí, viking, ou vai perturbar as brasas. As labaredas, lambendo os brotos que joguei ao fogo, me mostram coisas.

— Diga-me, onde está Rollo? — indagou Merrik.— Nadando no rio. Eu lhe dei um creme para as juntas, e disse que o tirasse

com água.— Diga-me agora quem é você.— Eu? — O velho ergueu os olhos escuros e encarou Merrik. — Ah! —

exclamou, e riu, ura som rouco. — Você não confia em mim. Não o culpo, viking. Olhe para sua esposa. Ela também não confia em mim, porém é mais sutil. Observa tudo com cautela e não duvido que carregue um punhal nas dobras do vestido.

— Tem razão — Laren disse, com frieza. Levantou a mão e mostrou um punhal de lâmina fina e longa que transpassaria facilmente o peito do homem, saindo do outro lado. O cabo era de marfim trabalhado. Merrik nunca o vira antes. — Não vai fazer mal a meu marido. Se tentar, eu o matarei.

—Ela também carrega um filho — o velho disse, parecendo não se importar muito com a ameaça. — Sim, um punhal por fora e um filho por dentro. Tornou-se uma moça corajosa, Laren, e leal. Rollo me contou que Taby está vivo. Era uma linda criança, gorda e sorridente... Eu o amava profundamente. Ele sempre estendia os bracinhos para mim. Mas tudo mudou, e fui obrigado a fugir. Foi idéia de Rollo que eu me tornasse o que vê agora.

Merrik percebeu de repente que Laren empalidecera, e abraçou-a pela cintura.

— E o senhor, não é? — Laren perguntou, hesitante.— O que quer dizer, querida? — Merrik olhou dela para o velho.—Ele é meu pai — ela murmurou, afastou-se do marido, e contornou o fogo

de chão para parar na frente do velho, que se levantara.— Sim, filha, sou eu.Laren deixou escapar um soluço e atirou-se nos braços do pai.— Quando o senhor desapareceu, eu mal pude suportar. Primeiro, mamãe,

depois, o senhor.— Eu sei, eu sei... — Hallad abraçou-a com força, afagando-lhe os cabelos.

Olhou para Merrik por sobre a cabeça de Laren. — Eu tinha de vê-la, e vê-lo também, Merrik Haraldsson. Você desconfiou de mim, e ela também. Por quê?

—Porque não sabemos ainda quem foi o responsável pelo seqüestro de Laren e Taby. Pensamos que isto fosse um ardil para nos afastar do palácio e da segurança relativa. Sabe que Fromm foi assassinado? Que eu fui atacado?

Uma voz profunda respondeu de um canto escuro da cabana.— Eu contei a ele.Rollo adiantou-se até parar diante deles, muito sério. Não parecia mais um

velho irritadiço, os cabelos emaranhados caindo pelos ombros. Parecia-se mais com o Rollo da lenda, forte e resoluto, um homem a temer e um homem em quem confiar, aquele que tinham encontrado na chegada.

—Sim, estou aqui, Merrik, e isto não é uma armadilha a menos que outros tenham agido em benefício próprio e armado alguma cilada. Hallad queria conhecê-lo e ver a filha outra vez. Eu disse a ele que em breve, com sua ajuda, descobriremos quem matou Nirea. Hallad foi acusado da morte e eu não podia permitir que fosse condenado. Dois anos atrás, pouco antes do seqüestro de você e Taby, ele se tornou o velho mago que mora aqui, e que supostamente me dá conselhos e faz profecias. Esta cabana abominável fede, é um buraco nojento, eu sei, mas Hallad só a usa para desencorajar qualquer um que tente roubá-lo. Mora

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no mosteiro de Santa Catarina, vocês passaram por ele a caminho daqui. Quando está lá, é um monge cristão. Tem funcionado bem essa nossa farsa.

Deixe que sua filha o veja, Hallad. Providenciarei que os homens fiquem longe daqui.

Hallad afastou Laren de lado. Puxou a peruca branca e a barba hirsuta. Os brilhantes cabelos ruivos estriados de fios grisalhos apareceram. Era um belo homem, e Merrik ficou feliz que ele não estivesse morto.

Merrik virou-se para o duque.— Isto se torna cada vez mais intricado, senhor. Meus homens vão chegar em

breve, com Oleg à frente. Acreditei realmente que fosse um subterfúgio, que quem fosse o responsável por me atacar, e matar Fromm, tentaria matar todos nós desta vez.

Rollo riu e esfregou as mãos acima das chamas.— Vão galopar sobre nós como uma horda de vi-kings invasores, ou se

esconderão entre as árvores esperando um sinal?— Vão esperar um sinal.—Ótimo. Meus homens estarão lá fora também, bem escondidos. Há apenas

um cavalo à vista, todos os outros estão no bosque. Vamos tomar um pouco de hidromel agora.

— E esperar? — disse Laren.— As sementes foram plantadas e molhadas. Agora, é esperar que germinem

— Merrik concluiu.—Sim, Merrik Haraldsson, eu sou um grande líder. Minha mente e meu corpo

forjaram esta terra. Acha que eu não a protegeria e àqueles que amo com toda a sagacidade que tenho?

— Tem certeza de que nosso vilão vai se mostrar hoje?—Contei a várias pessoas da presença de Hallad aqui, de como ele fingia ser

um homem santo, e de minha visita a ele hoje. Disse também que ele tinha me enviado um recado afirmando que havia descoberto quem tinha matado Nirea e seqüestrado Laren e Taby.

— Inclusive para Weland e Otta?Rollo concordou, com um lampejo de dor nos olhos escuros.—Sim — murmurou, depois de um momento —, hoje conheceremos o nosso

inimigo.— Finalmente... — Hallad murmurou, esfuziante. — Finalmente!Helga cavalgava ao lado de Otta e sua guarnição de homens bem armados.

Ele lhe contara que o pai ainda estava vivo e queria que ela o visse com os próprios olhos. Helga não acreditara nele, mas Otta era um homem que ela estava considerando como um novo marido e, assim sendo, não o fustigara com a língua. Faria isso e riria dele depois que se casassem.

Quando chegaram perto da choça, ela torceu o nariz.— Está dizendo que meu pai vive ali? Que bobagem, Otta. Meu pai jamais

sujaria os dedos, muito menos viveria numa cabana imunda como essa. É impossível.

— Eu soube disso pelo próprio Rollo. Ele me contou esta manhã. Quer vê-lo ou não?

—Oh, claro que sim, mas faça com que ele saia. Não quero me sujar.De repente, sem aviso, Otta agarrou-a pelo braço e arrancou-a do lombo da

égua, jogando-a no chão. Helga caiu esparramada, ofegante de susto.—Cadela pérfida! — ele exclamou, e desmontou, parando sobre ela. Quando

Helga tentou levantar-se, ele chutou-lhe as costelas. Ela gritou e caiu de costas. — Fique aí, no chão, de boca fechada. Pelos deuses, por fim você está calada. E impotente, Helga, ainda mais impotente que Fromm, tão bêbado que mal

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conseguiu revidar um golpe. Faz tempo que eu gostaria de matá-la. Todos vocês, esta maldita família inteira.

Ela o encarou e depois olhou ao redor.— Muita gente esteve aqui, hoje, inclusive seu tioRollo, mas já foram embora, e o único que ficou é seu pai, um assassino, que

finalmente será levado diante do povo para ser julgado por seu crime.— Tio Rollo não deixará que façam mal a meu pai, se ele estiver lá dentro da

cabana, como você diz.— Eu sei que está — Otta afirmou. — Rollo o escondeu aqui. Ele não me

contou, mas como está velho e gagá, deixou escapar que Hallad está aqui. Os dois morrerão em breve, muito em breve. Este é o início da derrocada. Depois de acabar com Rollo, viajarei para Paris e matarei aquele seu filho miserável. Pedi que Carlos o fizesse, mas o imbecil falhou. Eu mesmo cuidarei disso. Tenho certeza de que o rei dos francos me fará o segundo duque da Normandia. Carlos sabe que posso proteger esta terra dos vikings assaltantes melhor do que aquele velho senil, melhor que qualquer um de sua prole.

Foi então que uma voz firme e determinada se fez ouvir— Otta, não posso dizer que estou muito surpreso. Aliás, não é surpresa

nenhuma que você tenha sido tão estúpido a ponto de contar a Helga, assim como a todos esses homens, quais são os seus planos e porque agiu como agiu.

Quanto mais gente souber o que você pensa e planeja, mais provável será seu fracasso. Você não é um líder, Otta. Não é nada além de um idiota. Nunca assumirá meu lugar.

Assim dizendo, Rollo surgiu, orgulhoso e imponente, parecendo tão forte como um guerreiro, usando uma bela pele de urso como aquela que envergava na juventude. Os cabelos estavam amarrados para trás com uma tira de couro, não mais caindo emaranhados pela face e os ombros. Parecia um homem diferente.

Parecia, Merrik observou com alívio, um homem que poderia ensinar a um menino como se tornar um líder entre os homens. Sim, Taby estaria seguro com ele e com o pai, Hallad.

Otta foi tomado por um breve instante de choque. Sem tirar os olhos do homem à sua frente, sacou a espada e gritou:

— Seu bastardo! Você me enganou, mentiu para mim! Matem-no! — berrou a seus homens

— Matem todos!Os soldados empunharam as espadas, prontos para cumprir as ordens de

Otta, mas não tiveram chance. Foram rodeados de repente por uma horda que surgiu da floresta. Otta pareceu congelar-se no lugar, mudo como uma tumba, olhando para Rollo com um ódio profundo.

— Senhor — disse Merrik, adiantando-se. — Ele pagou para que eu fosse morto. E meu direito desafiá-lo.

Helga levantou-se do chão e disse, hesitante:— Pa-papai? É o senhor realmente?...— Sim, filha, sou eu. Venha cá.Ela correu para Hallad, enlaçando-o pelo pescoço.— O senhor não mudou — murmurou. — O vermelho dos cabelos ainda é tão

brilhante como antes. Oh, senti tanto a sua falta, papai...—Faz apenas três anos, Helga — disse Hallad. — Também senti saudades de

você, filha, mas seu tio me disse que você se tornou uma espécie de feiticeira, tecendo enigmas e mistérios a ouvidos crédulos, misturando poções e fazendo com que as pessoas a temessem. Gostou de assombrar a pobre Laren, não é? Foi você quem ordenou o seqüestro dela e Taby?

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Tentou fazer-se de importante, Helga, e só causou sofrimento. Não estou contente com você.

— É verdade, papai, fiz tudo isso e me envergonho de meus atos. Mas não havia nada mais que eu pudesse fazer. Fromm certamente teria me matado se não tivesse medo de mim. Aprendi que, para sobreviver, é preciso ter poder sobre as pessoas. Por isso, usei minha magia. — Encarou o pai. — Como sabe de tudo isso?

— Seu tio me contou, quem mais?— Mas ele... — Helga meneou a cabeça, compreendendo que fora estúpida

em não enxergar a verdade.— Afaste-se de seus homens, Otta! — Rollo ordenou. — Acabou para você!Otta não se moveu. Olhou para Rollo, sem acreditar ainda que ele não era o

velho tolo que vira pela manhã; olhou para Merrik, vendo a fúria nos olhos do rapaz e sabendo que se enfrentasse Rollo, o viking o estriparia como um peixe. E por último, olhou para Hallad, vivo, tal como Rollo afirmara. Julgara que a mente do velho estava totalmente arruinada. Helga estava abraçada ao pai, tinha o vestido todo sujo, e ele sabia que a tinha machucado. Isso o alegrou por um breve instante.

Ele não queria morrer. Era um homem com um nobre e promissor destino a esperá-lo. Fora paciente... extremamente paciente, a barriga cada vez mais dolorosa com o passar dos anos..Porém, ele se agüentara. O rei Carlos assegurara que seu destino se cumpriria. Olhou para Laren, odiando-a. Pelo menos o pirralho, Taby, estava morto. Se ela não tivesse voltado, se não tivesse se casado com o guerreiro viking...

— Deixe-me lhe dizer mais uma coisa, Otta — Rollo disse. — Taby está vivo. Merrik o salvou. Claro, foi Laren quem o protegeu com a própria vida durante dois anos. Sim, Taby está vivo, e servirá a Guilherme com lealdade e honradez. E se o destino decretar, então Taby se tornará o segundo duque da Normandia. Você perdeu, Otta, perdeu tudo. Sua desonra me enoja. Providenciarei para que sua morte seja mais dolorosa que a dor que causou a todos nós.

Otta começou a tremer.— Cadela! — gritou para Laren. Sacou a espada, ergueu-a acima da cabeça,

e uivando como um louco, saltou no lombo do cavalo, chutou-lhe os flancos e investiu contra ela.

Capítulo VII

No último instante, Otta jogou o garanhão em cima de Rollo. Havia fúria e ódio em seus olhos, e Merrik percebeu, naqueles poucos instantes, que ele aceitaria a própria morte se pudesse matar Rollo.

No mesmo instante, empurrou Rollo para o chão, protegendo com o corpo. Tinha a espada em riste.

Otta gritava na língua dos francos investindo contra ele, o garanhão empinando, relinchando assustado, as patas rasgando o ar.

De repente, seus berros se transformaram num gargarejar rouco e obsceno. Ele deixou cair a espada aos pés de Merrik e levou as mãos à garganta. Um punhal fino e longo estava enterrado até o cabo em seu pescoço, a ponta ensangüentada saindo pela nuca.

Ele olhou de Merrik para Rollo, que se levantara e se colocara entre o irmão e o maldito viking, e depois para Laren, que o encarava, pálida, a mão ainda levantada.

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— Você me matou, sua vadia — murmurou,o sangue fazendo sua voz borbulhar. — Não passa de uma vagabunda e me matou. Eu devia tê-la estrangulado dois anos atrás e jogado seu corpo na floresta para os animais o devorarem. Devia ter matado você e aquele maldito pirralho.

—Devia, mas não o fez — ela respondeu, e não disse mais nada. Ficou postada ali, vendo Otta, desesperado, tentar arrancar o punhal da garganta, a pele acinzentar-se, o sangue sair em golfadas da boca, e escorrer grosso e espesso pelo pescoço. Otta escorregou do cavalo, morto antes que o corpo tombasse no chão.

Rollo olhou para o cadáver sem qualquer emoção.— Fico contente que não seja Weland o traidor. Eu não suportaria tamanha

decepção. Sim, estou muito aliviado. — Então, sorriu para Laren. — Sua mira foi perfeita, querida. E evidente que eu a ensinei bem.

—Você?—Hallad disse, e adiantou-se.—Ela era apenas uma coisinha miúda quando comecei a ensiná-la.

— Preste atenção, pois eu sou Rollo, o primeiro duque da Normandia, e nunca me engano ao lembrar das coisas. Eu a ensinei e ensinarei Taby também. Você não passa de um velho tolo de barba grisalha. O que suas mãos trêmulas sabem de atirar um punhal?

—Ah! Preste atenção, Rollo. Tive de viver com aqueles monges e me fingir de santo, mas agora chega. Eu é que ensinarei meu filho como fiz com minha filha.

Laren olhou para Merrik, e meneou a cabeça diante dos dois homens que trocavam insultos.

—Deixe que eles discutam — Merrik murmurou, rindo. Olhou para Otta, esparramado no chão. — Admito que foi um belo lance. Acho que fui eu que a ensinei.

Laren riu, fitando-o com todo o amor que sentia. Merrik apenas encarou-a, sem dizer uma palavra.

—Estou contente de que não tenha me traído, Helga — Laren disse, voltando-se para a meia-irmã.

— E feliz que não tenha tentado matar Merrik. Helga fez um gesto distraído de cabeça e então caminhou até onde estava o corpo de Otta. Olhou-o, a boca retorcida pela fúria. De repente, chutou-o nas costelas com tanta força que por certo deve ter quebrado algumas. Se estivesse vivo, Otta berraria de dor.

— Sim, Helga — Rollo concordou, afastando-se do irmão. — Você é inocente e isso me deixa satisfeito também, pois pensei que fosse culpada. Você não tem sido uma mulher de fácil convivência. Contei apenas a Weland e Otta a respeito de Hallad e o lugar onde estava. Mas sabia que o culpado não tinha agido sozinho. Sabia que você ou Ferlain tinham de estar trabalhando com o traidor.

— Não fui eu, tio Rollo.— Eu sei — disse Hallad. — Não foi você, Helga.Ferlain se remexia, inquieta, na poltrona da saleta de seus aposentos, as

mãos cerradas dos lados, enquanto o marido, Cardle, passeava à sua frente, dissertando sobre Carlos Magno. Ela pareceu ter sido resgatada do inferno quando Weland e dois de seus homens entraram no quarto.

— Não podem levá-la! — Cardle exclamou, agitado.— O que estão fazendo aqui? Como, o tio quer vê-la? Não pode ser agora.

Estou falando de meus estudos sobre o grande Carlos Magno, um homem de coragem e de visão. Isso não pode esperar?

Weland olhou para o estudioso cuja semente gerara oito bebês mortos. O que tinha entre as pernas era sua única conexão com o mundo.

— Você a verá mais tarde, Cardle. Rollo deseja vê-la agora — disse, calmamente.

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— Ele sabe — Ferlain resmungou, para si mesma.— Sim, Ferlain, ele sabe.—Sabe o quê? — Cardle indagou, confuso. — O que está acontecendo,

Ferlain?— Continue com seu estudo, Cardle. Voltarei logo. Ferlain calou-se, ergueu a

cabeça e endireitou osombros. Saiu ao lado de Weland.— Eu poderia ordenar que você fosse morta agora, Ferlain, mas quero ouvir o

que tem a dizer. Quero saber por que me traiu. Você é meu sangue e, no entanto, me enganou, enganou a todos nós, com Otta. Não se dê ao trabalho de mentir, pois sabemos de tudo.

Ferlain jogou a cabeça para trás e disse em voz alta:—O senhor seria o próximo, tio Rollo. Tornou-se um idiota, um velho senil que

não merece governar esta terra poderosa. — Fez uma pausa, e franziu a testa. — Mas o que está acontecendo aqui? O senhor está mudado... não passava de um demente pela manhã. Eu vi, e percebi que sua hora estava chegando, pois o senhor nem sabia o que dizia. Otta me assegurou que era verdade, assegurou que agora era a hora de agir, de nos livrarmos de todos vocês. Sim, esperei até vê-lo resmungar e dizer bobagens e, no entanto, aí está o senhor, saudável e rijo e agindo como um homem outra vez.

Rollo limitou-se a sorrir. Além dele, estavam ali apenas Merrik e Laren, à direita, e Weland, à esquerda.

—Foi um ardil, Ferlain — ele disse, por fim. — Nada mais que um ardil.— Onde está Otta?— Está morto. Ele queria me matar, e você sabia disso, não sabia?— Sim, sabia. Otta me disse que o senhor tinha lhe contado uma história

sobre meu pai estar vivo. Ele não acreditou, claro. E eu ainda não acredito. Meu pai matou aquela cadela vagabunda, Nirea. E está morto há muito tempo, pois é bem mais velho que o senhor, tio.

—Sim, é verdade que sou velho, filha, mas ainda respiro. Ainda ando e ainda posso raciocinar.

Ao ouvir tais palavras, Ferlain conteve a respiração, mas não ousou se mover. Não demonstrou medo nem satisfação com a súbita presença de Hallad. Ficou parada, olhando para o pai que caminhava em sua direção.

— Eu não matei Nirea e você sabe disso. Ela era uma criatura meiga, não a mulher infiel que você criou em sua própria mente.

Ferlain deu de ombros.— Então, foi Helga. Ela odiava Nirea e se vangloriou comigo, dizendo que

enterraria um punhal na garganta dela. Não se importava que o senhor fosse acusado. Odiava-o, porque o senhor continuava tendo filhos. Nenhuma de nós queria isso, mas o senhor não dava ouvidos a ninguém.

— Helga é uma tola, mas não matou Nirea também.— Você me disse que tio Rollo estava apaixonado por Nirea. — Laren olhou

para Helga. — Disse que ele estava louco de ciúmes, que...— Cale a boca, sua estúpida!Laren olhou com espanto para a meia-irmã. Nunca Ferlain erguera a voz,

nunca destilara tanto veneno.— Pelos deuses, fui uma tola. Deveria ter mandado meus homens matarem

você e aquele pirralho que nosso pai teve com Nirea. Otta queria acabar com vocês, mas eu não permiti. Mandei que os vendessem no mercado de escravos ao sul. Ah, eu queria que sofressem como eu sofri, e que conhecessem a dor, a fome, a desesperança. Por todos os deuses, ele tinha razão.

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—Nós sofremos realmente, Ferlain — Laren retrucou, mas Ferlain não a ouviu, continuou falando, falando, os olhos vagos.

—Eles me contaram que não ganharam muito com a venda, mas com o que acrescentei, os malditos se saíram bem... Otta os matou, pois não confiou que ficassem calados... e nunca devolveu meu dinheiro...

— Por quê, Ferlain, por quê?Hallad queria saber, e havia uma súplica em sua voz, tanta tristeza que Laren

mal conseguiu suportar.Ferlain continuou calada por um longo tempo, sorrindo, provocando-os com

aquele silêncio.— Eu não fiz nada — disse, de repente. — Tudo foi obra de Otta. Sou

inocente. Sou como Helga, tentando me fazer de importante e dizendo meias-verdades. Sou um bardo mais habilidoso que Laren. Sim, sou inocente, e isso é tudo que tenho a dizer.

— Você é tão inocente como uma víbora, e tão mortal quanto ela — Rollo esbravejou. — Por que matou Fromm? Por que mandou homens atrás de Merrik? Por quê, Ferlain? Você sempre conseguiu tudo que queria de mim. Seus bebês, era uma verdadeira tragédia cada vez que um nascia para não viver, mas essas coisas acontecem. As mulheres não se transformam em monstros por causa dos filhos mortos.

— Todos morreram — Ferlain disse com voz calma, olhando além de Rollo, para as espessas cortinas escarlates atrás do trono. — Mortos em meu ventre. Nenhum único choro eu ouvi quando cada um deles apontou... —Voltou a encarar o tio. — Pensei que fosse culpa de Cardle, e levei Fromm para minha cama, e ele foi o pai dos últimos três, que morreram também. Meu corpo os matou. Apodreceram em meu ventre até que os expulsei para fora. A dor, tio, a dor teria dobrado o mais forte dos homens, mas eu queria um bebê vivo, queria desesperadamente, pois esse bebê o sucederia. Rezei para ouvir um choro de vida, para ver braços e pernas se mexendo, olhos que pudessem fitar algo além da morte, e suportei a dor e me obriguei a tentar sempre mais uma vez.

— Ah, Ferlain, eu sinto muito — Hallad murmurou compadecido. — Eu não tinha idéia...

—Sabe por que eu matei aquele miserável brutamontes, o Fromm? Ele ameaçou contar que tinha se deitado comigo. Mesmo agora, depois de dois anos, ele ameaçou contar. O idiota ficou com ciúmes quando descobriu que eu tinha levado Otta para minha cama. Mas foi ele mesmo quem me disse, depois que o último bebê morreu, que eu estava gorda e feia, e que ele não me queria mais. Por que haveria de se importar com o que eu fizesse? Acho que tinha medo que eu achasse Otta mais do meu agrado do que ele. Mas Otta não gerou nem mesmo um filho morto. Só ficava segurando aquela barriga enorme, gemendo de dor. Ou, talvez seja minha culpa e não de Otta, talvez eu esteja velha para receber um filho em meu ventre. Com ar angustiado, Hallad aproximou-se da filha. Ela o encarou, e a expressão aturdida desapareceu de sua face, dando lugar a uma máscara retorcida de tamanho ódio que Hallad recuou.

— Fique longe de mim! — ela berrou. — Seu bastardo, por que não morreu? Você matou minha mãe com sua lascívia e depois se casou com aquela cadela muito mais nova que eu, e deixou que ela desse à luz Laren e depois Taby. Sim, o herdeiro sonhado, tão perfeito, tão querido por todos, principalmente por tio Rollo, que o ensinaria e o faria um de seus sucessores. Eu matei Nirea, pois haveria mais bebês, mais garotinhos, e eu tinha de impedi-la, tinha e consegui.

—Você só tem ódio e amargura dentro de você, Ferlain — Hallad murmurou, pesaroso.

— Nirea nunca lhe fez nada. Tentou ser amiga de vocês, era tão meiga e

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inocente... E você a matou. O que deu a ela? Foi veneno?... Só pode ter sido. Fui acusado de estrangulá-la, pois havia marcas de dedos em seu pescoço branco. Mas eu nunca a maltratei, jamais a machucaria, embora tivéssemos discutido aquele dia, e algumas pessoas ouviram. Você se aproveitou da oportunidade, e por certo apertou seus dedos no pescoço dela depois que ela já estava morta. Todos me julgaram culpado, todos. Tive de fugir para impedir que Rollo se visse obrigado a me mandar executar.

Mas saiba, Ferlain, Rollo jamais acreditou em minha culpa. Escondeu-me e, então, eu me tornei o velho sábio dois anos atrás. Sobrevivi. Sinto muito por você, Ferlain, porém eu a mataria se Laren e Taby estivessem mortos. Graças aos deuses eles sobreviveram. Pelo menos você os poupou, embora suas razões fossem tão execráveis. O que tem a dizer?

— Eu lhe digo, seu velho lascivo, que se não tivesse sido acusado de matar a cadela, então teria desposado outra moça em questão de semanas, mais nova ainda que Nirea. E a nova mulher lhe daria mais meninos, não é assim? Sempre se vangloriou de sua virilidade. Sempre teve tudo que desejou... e eu nunca tive nada...

— Você não tem nada agora — Rollo interveio. — Perdeu tudo, Ferlain.— Ainda tenho Cardle.— Sim, ele é um homem inofensivo, fiel. Nunca soube que você se deitou

com Fromm, soube? Ou com Otta?— Ele não saberia de coisa alguma se eu não lhe contasse — ela retrucou,

num tom cheio de desprezo. — O senhor me casou com aquele imbecil. Ele nunca se deitou comigo a menos que eu tomasse aquele membro imprestável na boca e o deixasse do tamanho de um homem. Tinha de enterrá-lo dentro de mim, tio, pois ele ficava me olhando, a mente no passado, pensando em todos aqueles miseráveis romanos ou naquele idiota, Carlos Magno. Pelo menos Fromm e Otta eram homens, com apetites de homens e o conhecimento de homens. Eu queria que o senhor morresse, tio Rollo, mas o senhor não morrerá. Continuará para sempre, eu sei.

Ferlain dobrou os joelhos e lentamente se sentou nas pernas, os braços em torno do corpo, a se balançar para a frente e para trás.

— Por que tentou matar Merrik? — Rollo indagou, a voz estranhamente suave. — Ele não lhe fez nada, absolutamente nada.

— Ele seria outro maldito herdeiro. Já que eu não consegui pôr um filho no mundo, não admiti a possibilidade de que ele pudesse governar, e o filho depois dele.

—Ele jamais governaria, Ferlain. Taby está vivo e a salvo na Noruega, em Vestfold, na fazenda de Merrik.

Ferlain saltou de pé.— Não! Não pode ser. Está mentindo!— Taby está vivo. Merrik encontrou Laren e Taby no mercado de escravos em

Kiev. Eu gostaria de ter tido um filho como Merrik, pois ele é honrado acima de tudo. Guilherme, porém, também é, e será Guilherme, meu filho, que me sucederá. Taby estará ao lado dele, leal e corajoso como virá a ser.

Ferlain não disse mais uma palavra. Limitou-se a olhar para Rollo e depois para Laren e Merrik. Não olhou para o pai.

— Weland — disse o duque. — Leve-a de volta ao quarto. Poste dois soldados à porta. Decidiremos o que fazer com ela.

Foi Helga quem entrou no quarto de dormir de Laren, quando amanhecia.— Venha depressa — disse, sacudindo o ombro de Merrik. — Venha.Rollo e Hallad estavam ao pé da cama, cabeças baixas, ambos silenciosos, no

quarto de Ferlain. Deitada com um travesseiro macio sob a cabeça, um manto

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todo bordado a cobri-la, arrumado por mãos amorosas sobre o corpo, Ferlain jazia ali, morta. Seus cabelos estavam trançados caprichosamente, os braços ao lado do corpo, as palmas para cima.

—Cardle sumiu — Rollo disse a Merrik e Laren. — Ela está morta faz tempo.— Como morreu? — indagou Laren.— Não sei — Rollo retrucou. — Não há sangue, as feições não mostram

sofrimento, nem luta. Helga veio visitá-la e a encontrou. Os guardas disseram que ela não tentou sair do quarto, só Cardle, no começo da noite. Não havia razão para impedi-lo.

— Enterre-a — Hallad ordenou, de repente. — Que ela fique em paz. Enterre-a agora, de manhã.

Rollo aquiesceu lentamente.— E quanto a Cardle? — indagou Helga. — Ele a matou, foi ele. O que vai

fazer, tio Rollo?—Eu lhe direi em breve — o duque retrucou. — Eu lhe direi em breve.

Taby estava sentado no banco ao lado de Cleve, atando um nó sob a orientação do amigo quando, de repente, houve uma comoção do lado de fora da casa. O menino ergueu a cabeça.

— É Laren?— Vamos ver — disse Cleve, e o tomou pela mão.Não pôde contê-lo, porém. Taby livrou-se e saiu correndo com Kenna e os

outros meninos pelos portões da paliçada, e pela trilha que descia pelo fiorde.Ao ver Merrik, berrou com todo o volume da voz, e atirou-se aos braços dele.

Merrik, rindo, pegou-o e jogou-o no ar, para depois tomá-lo nos braços e apertá-lo com força contra o peito.

Laren observou a cena, viu quando Merrik fechou os olhos e enterrou a face nos cabelos do menino. A amargura já familiar a inundou conforme os observava. Então, Taby ergueu a cabeça, beijou a face de Merrik, num beijo estalado que o fez soltar uma risada. Só então, viu a irmã.

— Laren! — gritou.Foi a vez de ela ser enlaçada pelo pescoço pelos bracinhos de Taby, e de

receber os beijos molhados da criança.— Você parece um cachorrinho, Taby — ela murmurou, tentando conter as

lágrimas. — Pare de se remexer. Logo vai lamber meu rosto como aquele bicho enorme, Kerzog.

O menino riu.— Tenho uma coisa para lhe contar. — Ela o pôs no chão. — Nosso pai está vivo. Hallad veio conosco para cá.Taby ficou imóvel, os olhos cheios de cautela.—Não, não, Laren. Não me lembro de meu pai. Merrik é meu pai.— Oh, não, querido, Merrik é seu irmão. Aqui está seu pai e meu pai também.Hallad adiantou-se, olhando para o garotinho que o encarava com suspeita.— Está com quase seis anos agora, Taby — Hallad disse.Ele não via o filho desde que era pouco mais que um bebê. Agora, um

garotinho forte se postava à sua frente, um menino muito parecido com ele quando era criança.

Taby recuou e parou ao se chocar contra as pernas de Merrik. Ele pousou a mão no ombro do menino e apertou-o gentilmente. Acocorou-se e olhou para o garotinho. Todo o amor que sentia por ele, faiscando em seus olhos azuis.

— Seu pai está vivo e eu o trouxe de volta comigo. O que aconteceu a ele é melhor que qualquer história que Laren possa inventar. Ele lhe contará tudo o que viu quando você voltar com ele para a Normandia. Vamos, Taby,

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cumprimente seu pai.Hallad viu a dor nos olhos de Merrik quando colocou a mãozinha de Taby na

sua.— Este é seu pai. Dê-lhe as boas-vindas.— Seja bem-vindo a Malverne, senhor.—Ele é uma coisinha teimosa e leal até o tutano dos ossos — Merrik disse,

com uma risada. — Venha, Hallad, vamos entrar e tomar um pouco da ótima cerveja de Sarla. — Levantou Taby, colocou-o nos ombros, e subiu a trilha pelos campos ceifados até a casa-grande.

No fim da noite, depois do jantar, quando se sentaram lado a lado, Laren percebeu que era difícil para Hallad ficar indiferente àquela cena. Observou a tentativa do pai em se mostrar impassível, com um sorriso nos lábios, enquanto o filho se curvava numa bola contra o peito de Merrik, profundamente adormecido, o punho agarrado à túnica de seu marido.

— Eles se amam muito — disse ao pai. — O sentimento que os une tornou-se cada vez mais profundo.

—Tiveram muita sorte, os dois — Hallad murmurou. — A mulher, Sarla, é bonita e muito gentil. Disseram-me que foi casada com o irmão de Merrik, o antigo senhor desta fazenda, é isso?

Laren concordou.—Ele foi assassinado. O antigo escaldo, Deglin, o matou e tentou pôr a culpa

em mim. Muita gente acreditou, pois Erik queria se deitar comigo. Eu não gostava dele, era cruel com a esposa e arrogante com todos, mas morrer porque Deglin me desejava longe daqui, é algo horrível.

— O que será de Sarla?Laren limitou-se a sorrir, e tomou um gole de hidromel.— Posso ser alguns anos mais velho que ela—Hallad resmungou, encarando a

filha —, mas não estou morto. Ainda sou um homem interessante, entende?— Sim, pai, entendo muito bem.Fazia tempo que Merrik não via Laren tão alegre. Ficou encantado, e disse

isso a ela à noite, quando finalmente se acomodaram na cama.— Se eu o encantei então devo ser uma feiticeira.— Sim, minha feiticeira, foi um dia longo o de hoje — ele emendou, beijando-

lhe o lóbulo da orelha.Laren encolheu-se, com um arrepio de prazer.— Estamos em casa, Merrik. Como estou feliz por estar em casa por fim. E

viva.— Seu pai ficou me fazendo perguntas sobre Sarla, qual a situação da família

dela, o que eu planejava fazer. Eu lhe disse que ela poderia fazer o que bem quisesse, que era bem-vinda em Malverne sempre, se desejasse ficar.

Laren ergueu-se nos cotovelos e o fitou.—Meu pai está atraído por ela. Acha que Sarla gostaria de se casar com meu

pai? Viver com ele no palácio de tio Rollo? Ser uma grande dama? — Laren aninhou-se no peito do marido.

— Não sei. Você me disse que ela e Cleve estavam se apaixonando.—Sim, eu disse, mas agora não sei. — Respirou fundo, esquecida de Cleve e

Sarla. — Gosto de sua mão aqui, Merrik.— Gosta... E onde mais você gosta da minha mão?—Meu pai estava aqui com você, não estava, Sarla? Sabe para onde ele foi?Sarla sorriu, continuando a mexer o cozido de carneiro com repolho e

ervilhas.— Sim, estava aqui e me fez rir. Ele é um homem muito valente, Laren. Acho

que está lá fora, conversando com Merrik.

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Ou talvez tentando conquistar a afeição de Taby. Acho que devo acrescentar um pouco de mirtilo amassado?

Laren concordou e saiu da casa. Passou pela casa de banho. Merrik, Hallad e Taby estavam todos lá dentro, ela podia ouvir os berros e as risadas. Sorriu. Quando saíram, molhados e bem esfregados, Taby estava nos braços do pai. Laren olhou depressa para o marido. E, para seu profundo alívio, ele sorria, sem mágoa nos olhos, sem sinal de tristeza.

— Laren — ele chamou.Ela correu na direção dele, enlaçando-o pelo pescoço. Merrik riu e a abraçou.

Continuou a apertá-la até que Hallad e Taby estavam longe.— Taby está começando a aceitá-lo — disse. — É como deve ser. Sim, tudo

ficará bem. Você e eu iremos a Rouen e o visitaremos. Agora, querida, preciso ver Cleve, para me inteirar do que aconteceu em Malverne enquanto estávamos fora. Também quero saber o que ele deseja fazer, agora que é um homem livre.

—Lembre-se que tio Rollo nos disse que Cleve era bem-vindo à Normandia. Que gostaria de recompensá-lo.

— Direi a ele.Devagar e sem vontade, ela o soltou. Laren ficou parada, vendo-o caminhar

em passadas largas para os campos, os cabelos claros a faiscar sob o sol.Merrik encontrou Cleve cortando lenha.— Essa pilha de lenha vai durar uma semana no inverno — disse. — Vim

agradecê-lo por cuidar de tudo aqui em Malverne.— Nada de mais aconteceu — disse Cleve, largando o machado e seguindo

até onde Merrik estava, debaixo de um carvalho tão velho como o fiorde. — A colheita está armazenada em segurança, as cabras, as vacas e as crianças engordando, e Taby aprendeu a montar o pônei, Ebel. Sua fazenda é um ótimo lugar, Merrik. Você foi abençoado com terra fértil e suficiente para suas necessidades.

—Sei disso — retrucou Merrik. — Mas também sei que nunca foi destinada a ser minha. Era de Erik, Sinto-me estranho aqui. Taby sentiu falta de mim e de Laren?

—Claro, mas esqueceu logo no lombo de Ebel. — Cleve riu e socou o braço de Merrik. Encolheu-se no mesmo instante, o terror do antigo escravo nos olhos.

— Não, meu amigo. Você é livre. Na verdade, vim perguntar se gostaria de voltar à Normandia com Taby e Hallad. O próprio Rollo quer recompensá-lo. O que quer que deseje será seu. Seja qual for a vida que escolher, ele providenciará que a obtenha. Você é um bom homem, um homem a se admirar e seguir. Você teria uma bela vida lá, Cleve.

— Pensarei nisso, Merrik. Obrigado.— Diga-me, o que pensa de Hallad?—É um bom sujeito, apesar da riqueza do sangue. Também tem sorte. O

irmão acreditou nele e o protegeu por três anos. E agora está de volta ao que sempre conheceu, e tem o filho e a filha também. Sim, um homem de sorte.

— É verdade. No entanto, não é mais jovem, forte e cheio de saúde e vigor. Está velho. Se gerar um filho, é provável que morra antes que a criança chegue à juventude.

—Talvez — murmurou Cleve, estranhamente quieto. — A vida é sempre incerta, não é?

— Olhou com ar distante para os picos da montanha do lado oposto ao fiorde.Merrik começou a empilhar a lenha cortada.— Conte-me o que fez na minha ausência. Quantas brigas houve, quantos

homens estão rosnando um para o outro.Dois dias depois, no fim da tarde, Laren estava sentada em frente à casa,

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enchendo um fuso com o fio da roca. Assim que o fiasse num tecido, seria de um azul suave, tal como a cor dos olhos de Merrik, Já podia vê-lo com a túnica que ia fazer para ele. Começou a cantarolar baixinho, os sons tão familiares ao redor que ela mal prestava atenção a nada. Nada, até que ouviu Taby berrando a plenos pulmões. Preocupada, derrubou a roca ao saltar de pé.

O menino se aproximou correndo, branco como um fantasma, as pernas sujas e sangrando dos cortes feitos pelo mato.

— Laren! Onde está Merrik? Laren?...Ela o alcançou correndo, se pôs de joelhos na frente do irmãozinho e o

agarrou nos braços.— O que aconteceu, Taby? O que você fez?Ele estava ofegante e, por um momento, não conseguiu falar. Laren o

apertou ao peito, a angústia de Taby a contaminá-la, e sentiu o coração disparar tão loucamente como o dele.

— Diga-me — murmurou, sacudindo-o, aflita. — O que aconteceu?—É Cleve — Taby conseguiu balbuciar. — Ele vai morrer, precisamos andar

depressa. Uma corda. Depressa! — Livrou-se dos braços dela e voltou correndo para o

morro, gritando por sobre o ombro. — Depressa!Merrik que havia ido pescar, apontou nos portões da paliçada, com uma fiada

de arexijues, o velho Firren logo atrás.— Venha depressa — Laren berrou. — Aconteceu alguma coisa com Cleve!

Traga uma corda!Merrik chamou Oleg e uma dúzia de outros homens. Logo, corriam atrás de

Taby. Alcançaram o menino em pouco tempo. Merrik o pegou no colo.— Calma, garoto, calma, diga para onde temos de ir.Taby soluçava de medo no momento em que começaram a subir pela trilha

do pico até o cume onde Erik fora assassinado.— Lá na beirada. — Apontou o menino, mal conseguindo articular as

palavras.Merrik o compreendeu, contudo. Pousou o garoto no chão e correu para a

borda do penhasco. Viu Cleve uns quatro metros abaixo, o corpo preso a um arbusto que nascera entre as fendas das rochas, inconsciente.

— Por todos os deuses, ele caiu. Oleg desenrolou depressa a corda.—Vou buscá-lo. — Merrik passou a corda pela cintura. Oleg segurou-o pelo

braço.—Escute, aquele mato não parece muito forte e você é muito grande, Merrik.

É melhor Eller ir.Merrik concordou, com relutância, e gritou:— Depressa, Eller, depressa.Oleg e Roran seguraram a corda enquanto desciam Eller pela face escarpada

do penhasco.— Pode me dizer o que aconteceu? — Laren ajoelhou-se e beijou o rostinho

sujo de Taby, afagando-lhe as costas. — Como Cleve caiu?De repente, Taby inteiriçou-se em seus braços, e abaixou a cabeça, o lábio

inferior tremendo.— Eu... não sei... —o menino balbuciou, e enterrou o rosto no pescoço de

Laren, chorando convulsivamente.Merrik ficou confuso. Meneou a cabeça, franzindo a testa, olhando intrigado

para o garoto. Então, voltou à beira do penhasco. Eller se equilibrava precariamente e passava a corda em torno da cintura de Cleve.

Era um trabalho lento, agonizante. Eller se agarrava ao arbusto raquítico, sabendo que, se cedesse, ele despencaria por uns cem metros sobre as rochas,

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mas trabalhava com dedos firmes e calmos. Finalmente, acabou. Foi Merrik que agarrou Cleve por baixo dos braços e puxou-o pela borda do penhasco.

— Depressa — disse. — Jogue a corda de novo para Eller antes que ele urine nas calças e passe vergonha.

Laren correu para o lado de Cleve. Havia sangue no lado da cabeça, sobre a têmpora direita. Ele ainda estava vivo, graças aos deuses, respirava.

— Acha que ele tropeçou e caiu?— perguntou.— Não sei — Merrik respondeu. — O que estava fazendo aqui sozinho? O que

Taby estava fazendo aqui?Ergueu Cleve nos braços, e tomou, a longa trilha de volta à casa-grande.Cleve continuou inconsciente até tarde da noite. Então, começou a gritar

numa língaa estranha, e depois a implorar para alguém não abandoná-lo, pedindo, suplicando, até Laren quase sufocar de angústia. Forçou algumas colheradas de caldo pela garganta do amigo, enquanto Sarla banhava-lhe o rosto com água fria para evitar a febre.

Conversas, especulações, vozes alteradas, todos se recordavam de que o lugar era o mesmo em que Erik fora encontrado morto. Tinham acreditado que o assassino era Deglin. Quem poderia ter atacado Cleve e o jogado pela borda? E quanto a Taby? O que o garoto vira? O menino, no entanto, não dizia nada, nem mesmo para Merrik.

Naquela noite, Laren e Sarla se revezaram à beira da cama de Cleve. Taby recusou-se a deixá-lo, grudando-se a ele. Hallad tentou convencê-lo, mas o menino teimou em ficar ali e continuar calado. Não disse nada nem saiu do lado de Cleve.

—Ele vai acordar, sei que vai — Laren disse a Sarla, que estava muito pálida. — Vá dormir, eu ficarei com ele.

—Não, é você que está exausta. Além disso, está grávida, e eu não. Vá descansar, Laren, eu ficarei com Cleve.

Laren fitou os olhos sombrios de Sarla e concordou hesitante. Tomou o ombro do irmão, meio adormecido.

— Venha, querido, vamos para nossas camas agora. Se quiser, pode dormir comigo e com Merrik. Taby ficou alerta na mesma hora. Olhou de Laren para Sarla.

— Não, Laren, quero ficar aqui, com Cleve.Ela começou a puxá-lo da cama, mas o olhar do menino a faz parar.— Está bem, mas fique quieto. Ele está muito mal.— Eu sei.O menino aconchegou-se outra vez ao lado de Cleve, a mãozinha sobre o

coração do amigo.— Sarla vai ficar doente — Hallad resmungou. — Está muito pálida e com

olheiras. Está muito quieta e introvertida. Nada disso é culpa dela. Não compreendo por que está tão abalada com o acidente. Fale com ela, Laren.

— Pai, creio que ela e Cleve se tornaram íntimos antes que eu e Merrik fôssemos para a Normandia. Hallad encarou a filha e, então, levou uma caneca de cerveja à boca e bebeu um longo gole.

—Posso estar enganada, pois quando voltamos, eles pareciam distantes. Não sei. Ele é um bom homem, papai, e esteve comigo em Kiev. Tentou me salvar com o risco da própria vida.

—Esse homem nada mais é que um escravo, ou pelo menos se acostumou a ser. Sarla é tão maravilhosa que sente pena dele, nada mais, como sentiria por qualquer um aqui em Malverne. Talvez, se ele se recuperar, volte conosco à Normandia.

— Conosco?

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—Quero dizer com Taby e comigo — Hallad resmungou, mas Laren não confiou naquele tom de voz. Soava falso, com uma pitada de sarcasmo.

— Laren!Ela se virou e viu o marido se aproximando com expressão séria. Tinha uma

pedra na mão. Quando a mostrou, Laren viu o sangue seco.—Cleve não caiu por acidente. Alguém o atingiu na cabeça com esta pedra e

o empurrou pela borda. Eis a prova.— Tal como Deglin fez com Erik. — Laren estremeceu. — Não gosto disso,

Merrik. Isso quer dizer que existe outra pessoa agindo aqui, já que Deglin está morto.

— Também não gosto. Eu tinha de saber se Cleve tinha perdido o equilíbrio. Oleg, Roran e eu. Procuramos e encontramos. A pedra estava no mato descendo a trilha. Desta vez, quem atacou Cleve queria que acreditássemos que fora um acidente.

Pela primeira vez em muitos dias, Laren saiu correndo da casa-grande e vomitou. E não por causa do bebê que tinha no ventre, mas por medo. Estava apavorada.

Taby estava mudado, completamente mudado. Não parecia mais o garoto feliz de antes. Em apenas um dia, perdera o brilho da saúde. Recusava-se a sair de perto de Cleve. Estava calado, emburrado, cauteloso com todos que falavam com ele. Evitava até mesmo Merrik.

Por fim, Merrik o pegou nos braços e o carregou para fora da casa, enquanto o menino esperneava e gritava. Não disse uma palavra até que estavam longe da paliçada. Só então colocou Taby no chão e o fez sentar-se numa enorme pedra arredondada.

— Quando eu tinha sua idade, eu vinha aqui para pensar. Se meu pai me batia por algum malfeito, ou se eu tinha magoado alguém, e também quando estava inseguro de alguma coisa. Ficava aqui até passar a ansiedade. E um bom lugar, Taby.

Não disse mais nada, simplesmente segurou a mão do menino, para que ele não fugisse correndo.

—Seu pai está aborrecido por que você o evita—disse, por fim, sem olhar para o menino, apenas falando calmamente,

enquanto olhava para o fiorde.— Ele acreditou que você estava morto por dois longos anos. Depois, o

reencontra, e agora você o evita. Isso é muito estranho e eu não consigo compreender. Sei que você se sente mais próximo de mim do que de qualquer outra pessoa. — Fez uma pausa e murmurou, depois de algum tempo. — Pensei muito, e creio que você viu quem bateu em Cleve com a pedra. E viu quem o empurrou pela borda do penhasco. É por isso que se recusa a sair de perto dele, porque tem medo que o homem apareça e tente matá-lo. Você é um menino corajoso, Taby. Eu o amo profundamente e quero ajudá-lo. Mas você tem de me contar a verdade, pois não imagino quem tenha feito isso. Será que poderia ser o mesmo homem que matou Erik? Será que Deglin era inocente?

— Não foi um homem.Merrik sobressaltou-se diante da voz balbuciante de medo e horror, mas não

disse nada.— Ela disse que mataria Laren se eu falasse alguma coisa. Disse que Laren

era uma tola e não merecia ser a senhora de Malverne. Disse que a vida não foi justa com ela até meu pai chegar. Disse que era por isso que tinha de tomar uma atitude e depois que matasse Laren, mataria você. Eu não podia dizer nada, Merrik, não podia.

Estava tudo tão claro agora, tão absolutamente claro.

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— Sarla — Merrik murmurou, quase sem fôlego. Taby estremeceu e agarrou-se a ele.

— Ela vai matar Laren. Vai matar Cleve, ele está indefeso, Merrik. Ele não recuperou o juízo. Preciso voltar. Preciso tomar conta de Laren.

— Sim, você vai voltar e eu tomarei conta de Cleve também. Vamos, Taby. Temos de andar depressa.

— Estou com medo, Merrik.— Pois eu não estou. Você fez a coisa certa, garoto.Agora, é a rainha vez. Vou deixá-lo com seu pai. Fique calmo. Logo eu e

Laren viremos buscá-lo.Ao entrar na casa e se aproximar do pequeno quarto onde estava Cleve,

Merrik ouviu o grito alegre de Laren.— Ele acordou, Sarla! Graças aos deuses, Cleve finalmente acordou. Agora

poderemos saber o que aconteceu.Merrik afastou lentamente a cortina de pele de urso da porta. Laren estava

debruçada sobre Cleve, com um sorriso na face. Sarla, logo atrás dela, pegou e ergueu uma pesada lamparina de óleo do chão.

— Nem pense nisso, Sarla — ele disse ao entrar no quarto. — Ponha a lamparina no lugar.

Sarla fez meia-volta e o encarou.— Merrik — disse. — Você entendeu mal.— Cleve vai ficar bom, Merrik! — Laren exclamou, animada. Alheia ao que

estava acontecendo. —Venha falar com ele. Vamos saber o que aconteceu.— Eu sei o que aconteceu, Laren. Mas Sarla vai nos contar tudo, não vai,

cunhada?Laren endireitou-se devagar. Estudou as feições descoradas de Sarla, os

olhos baços. Sarla meneou a cabeça, repetindo:— Você não entende, Merrik. Não é o que está pensando. Cleve... foi um

acidente, eu juro.—Você, Sarla? — Laren murmurou, incrédula.— Você atacou Cleve?Sarla não disse nada, apenas meneou a cabeça.— Por quê? Não compreendo. Ele a amava. Eu vi nos olhos dele antes de

partirmos para a Normandia. E você parecia gostar dele também, não é? — Laren calou-se. Olhou para o marido e então murmurou:

— Erik? Foi ela também?—Sim — Merrik respondeu. — E suponho que o matou porque ele a estava

traindo, desta vez com você. Acho que o matou também porque queria Cleve.—Eu salvei Laren da desonra. Eu a salvei, você tem de me desculpar.—Não se faça de heroína, Sarla, pois a verdade não se encaixa com você. Por

que tentou matar Cleve?A voz de Cleve soou fraca e cheia de tristeza.— Diga, Sarla, diga a verdade, ou eu direi...—Oh, Cleve, você voltou à consciência, já consegue falar...Laren virou-se e se debruçou sobre ele, para protegê-lo.—Cale a boca, idiota! Você é um mentiroso! — Sarla gritou.— Não se preocupe comigo, Laren — Cleve disse, com dificuldade. — Ela não

vai me atacar de novo. — Olhou para Merrik. — Ela carrega o meu filho no ventre, Merrik, e íamos nos casar quando vocês voltassem. Só que você trouxe Hallad junto, e ele olhou para a meiga e gentil Sarla, e a desejou. Ela, pensando em toda a riqueza e poder, nas jóias e escravos que teria, quis se casar com ele. O que eu sou? Nada para ela, agora. Contudo, ela precisava convencer Hallad que era dele o filho que ela carrega. Levou-me ao pico e disse que queria conversar. Contou-

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me seus planos. Eu disse que não a trairia, jurei que a amava, mas que não desistiria de meu filho, um filho que outro homem pensaria que era seu. Ela me atacou. — Olhou para Sarla.—Você perdeu sua beleza, Sarla. Estranho, mas é verdade. Sua beleza era sua meiguice, sua gentileza, mas agora você está mostrando ao mundo como era por dentro. Lembro-me quando proclamou diante de todos que havia matado Erik, mas ninguém acreditou. Todos julgaram que estava protegendo Laren, protegendo a mim.

Merrik encarou a mulher que conhecera por tanto tempo, de quem fora tão próximo e que juraria diante dos próprios deuses que era pura, honesta, boa. Agora, ele a via com outros olhos.

— Você matou Erik também?— Não direi mais nada.— Sempre pensei por que Deglin não tinha fugido, como tinha encontrado

aquela faca... O ferreiro aceitou que a faca estivesse na cabana para ser consertada. Mas não estava. Você a pegou e matou Deglin. Não deixou nada ao acaso, Sarla, nada.

Sarla endireitou, e sua voz soou firme e orgulhosa.—Quero voltar para a fazenda de meus pais. Quero ir embora. Este homem

está mentindo, o ciúme o desvairou. E uma criatura patética com essa face marcada. Como uma mulher amaria um homem tão feio, um homem que nada mais é que um escravo? Eu o rejeitei e agora ele quer me destruir.

— Você terá meu filho e então poderá ir embora. — Cleve ergueu-se sobre um cotovelo. — O que me diz, Merrik?

— Não é seu filho! — Sarla esbravejou.—É de Erik! Se for um menino, será o herdeiro de Malverne!

Cleve meneou a cabeça.— Sinto muito, Sarla, mas o filho é meu. Posso jurar que seu ciclo de mulher

ocorreu depois da morte de Erik.— Mentiroso!— Ele não mente, e você sabe, Sarla. Chega de fingir. — Merrik ficou calado

por alguns instantes. E então, disse: — Estou feliz que tenha sobrevivido, Cleve. E sinto muito por tudo isso.

Dois dias depois do solstício do inverno, a nevasca assolou a região. Dentro da casa-grande, o ar estava quente, pesado de fumaça, o cheiro de carne de cervo fervendo permeava o ambiente, somando-se ao odor acre de duas cabras e duas vacas. Felizmente os cavalos estavam a salvo da tempestade nos estábulos, cheio de feno empilhado nas baias, para eles.

Laren ergueu os olhos da costura vendo que Merrik ainda conversava com o mensageiro de Rollo. A túnica que tecera estava quase pronta, e ele ficaria esplêndido nela, naquele tom de azul mais escuro que seus belos olhos. Seria a terceira que costurava para ele, em variadas nuances de azul.

A criança moveu-se de repente em seu ventre. Com um sorriso, ela deslizou a mão sobre a barriga dilatada.

Merrik aproximou-se e ajoelhou-se a seu lado.— Vi você dar um pulo. Meu filho se mexeu? — indagou, acariciando-lhe o

ventre.—Deu um chute — ela murmurou, rindo. — O mensageiro disse mais alguma

coisa?— Cardle está na corte do rei de Wessex. Rollo resolveu não mandar matá-lo.

Disse que depois de todos aqueles anos com Ferlain, o homenzinho merecia pensar em seus reis saxões e em seus gregos em paz.

— Isso é muito bom.

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— Além disso, Carlos mandou uma mensagem a seu tio dizendo que planejava propagar as grandes proezas de Rollo pela Britânia. Talvez seja uma das razões de Rollo resolver deixá-lo vivo. Quanto a seu pai, casou-se com uma moça de sua idade, filha de um dos súditos do rei Carlos. Sim, você tem razão, posso ver em seus olhos. A esposa, sua madrasta, já está grávida.

Merrik olhou para Sarla. Assim que ela desse à luz o filho, ele a mandaria de volta à fazenda dos pais. Merrik não dissera nada a ninguém sobre o que ela fizera, pois se um dos homens de Erik soubesse, Sarla estaria morta. Assim, todos a tratavam como sempre, até mesmo Cleve. Mas era o filho que ele protegia, e Sarla sabia disso. Todos cogitavam por que os dois não se casavam, já que ela estava grávida de Cleve, mas passaram a acreditar que ela não queria porque Cleve, afinal, fora um escravo.

Laren, alheia aos pensamentos do marido, riu com a notícia.—Meu pai... — Meneou a cabeça. — Ele fez de novo... Qual é o nome de

minha nova madrasta?— Bartha, um nome feio, mas o mensageiro disse que ela é muito bonita.— Espero que Taby goste dela.— Ele a ignora, e Rollo acha isso muito engraçado. Nosso garoto cresce a

olhos vistos e suas habilidades também. Helga casou-se com Weland, e está menos malvada. O que acha disso?

— Acho que piquei meu dedo, Merrik. Você está brincando, não é? Inventando histórias.

— É verdade, eu juro. Vamos nos recolher?Ela o fitou com um sorriso que o deixou duro no mesmo instante.— A noite está apenas começando, Merrik. Restou-lhe alguma energia depois

de um dia tão longo?— Já que meu desejo por você é quase tão grande quanto meu amor, creio

que posso agradá-la até que você me peça para parar.Laren abaixou a cabeça e alisou o tecido que tecera com tanto carinho para o

marido.— Você me ama?Merrik tomou-lhe o queixo na palma da mão e ergueu a cabeça de Laren.

Fitou-a por um longo instante. Então, inclinou-se e beijou-a na boca.— Sim — disse, contra seus lábios. — Eu te amo muito mais do que você

pode imaginar. Sou seu marido, como pode duvidar disso?— Você nunca me disse nada.— Eu sei, e foi difícil dizer, mas sinto isso, Laren, faz muito tempo.—Taby... — ela murmurou. — Sempre foi Taby que você amou.— E sempre amarei, mas ele é uma criança, meu irmão, não a mulher que

ficará ao meu lado até que ambos sejamos pó e cinzas. Você é essa mulher, e eu te amo como um homem ama uma mulher, como meu pai amou minha mãe. Eu a encontrei e sei que você estava destinada a mim. — Sorriu ao beijá-la de novo. — Esta conversa está muito séria. Vamos para a cama, para que eu possa abraçá-la e nos tornarmos um só. Quero ouvir você dizer que me ama.

E importante para um homem ouvir isso da esposa. Sempre.—O que sinto por você é tão forte que eu tinha medo de que você não

quisesse ouvir.—Estava enganada. Diga, vamos, diga que me ama outra vez.— Eu te amo, Merrik Haraldsson, mas... — Laren calou-se, e abriu um sorriso

largo. — Preciso terminar sua túnica antes de ir me deitar com você.Merrik olhou para o traje ao lado de Laren, pegou-o e jogou-o para Oleg.— Pegue uma agulha e termine esta túnica azul. Minha mulher só escolhe

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uma cor para mim.Oleg olhou espantado para a túnica, abriu a boca, mas não disse nada,

enquanto Merrik carregava a esposa no colo, em meio às gargalhadas de seu povo.