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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Gilbert Isidore Lévy A matriz do poder totalitário: Reflexões sobre a Alemanha nacional-socialista DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS São Paulo 2008

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Gilbert Isidore Lévy

A matriz do poder totalitário:

Reflexões sobre a Alemanha nacional-socialista

DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

São Paulo

2008

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Gilbert Isidore Lévy

A matriz do poder totalitário:

Reflexões sobre a Alemanha nacional-socialista

DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Tese apresentada à Banca Examinadora

como exigência parcial para obtenção do

título de Doutor em Ciências Sociais, pela

Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo, sob a orientação da Profª. Doutora

Caterina Koltai.

São Paulo

2008

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Banca Examinadora

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A meu pai, A Cecília, pelas inúmeras noites roubadas, Aos meus mestres, em particular a Prof. Caterina Koltai.

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“Das Recht hat kein Dasein für sich, sein Wesen vielmehr ist das leben der Menschen selbst, von einer besonderen Seite angesehen”.

“O Direito não tem em si uma existência própria; a sua essência é bem mais a vida dos homens em si, considerada sob um ângulo particular”.

Friedrich Carl von Savigny (1779-1861)

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RESUMO

Esta pesquisa compreende duas partes: a matriz e as manifestações do

poder totalitário. A matriz é analisada no seu aspecto cultural, social e político,

focalizando a experiência totalitária da Alemanha nacional-socialista. A matriz

cultural evidencia a Revolução conservadora e a influência da cultura niilista, a partir

dos estudos de Louis Dupeux e de Léo Strauss. A matriz social tem como base o

trabalho de George Mosse sobre o impacto social da 1ª Guerra Mundial, que

denomina a brutalização da sociedade alemã. A matriz política procura desvelar a

essência do poder totalitário. Ela se baseia nas observações de três grandes

autores: Claude Lefort, que aponta que a raiz do totalitarismo está nas ambigüidades

e imperfeições da própria democracia, com o conceito de indeterminação

democrática. Aléxis de Tocqueville com a tirania da maioria, expressão que

caracteriza uma situação política na qual não existe contrapeso para limitar os

excessos do poder, nem proteção para garantir os direitos naturais da minoria; e,

finalmente, Giorgio Agamben, que a partir de um estudo da relação dialética entre o

poder soberano e a vida nua, aponta o perigo decorrente de uma concepção vitalista

da política, denominada por Foucault de biopolítica, quando a mesma almeja o

desenvolvimento do potencial vital de uma nação.

Dos três aspectos estudados, é na matriz política que se encontram as explicações

mais conclusivas para o surgimento do totalitarismo. A indeterminação democrática

e a politização da vida são dois temas que destacamos nesta matriz, devido à

relevância das explicações de Lefort e de Agamben, como fatores preponderantes

no desencadeamento da dinâmica totalitária. Na segunda parte, procura-se

demonstrar como essa dinâmica se expressou na Alemanha, durante o regime

nacional-socialista. Para tanto, foram pontuadas as seguintes manifestações do

poder totalitário: Identidade-völkische, Estado total, Mobilização total e Guerra total,

para finalizar com um retrato do mal totalitário.

Palavras-chave: Alemanha; Biopolítica; Imperfeições da democracia; Poder

totalitário; Nacional-socialismo; Revolução-conservadora; Tirania da maioria.

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ABSTRACT This research encompasses two parts: a matrix and the manifestations of the

totalitarian Power. The matrix is analyzed on its cultural, social and political aspects,

focusing on the National Socialist German totalitarian experience. The cultural matrix

puts into evidence a Conservative Revolucionary movement and the influence of the

nihilist culture on national Socialist speech, from the studies of Louis Dupeux and of

Léo Strauss. The social matrix is based on the work developed by George Mosse

regarding the social impact of the 1st World War on the civilian society, on which he

denominates the brutalization of the German society. The political matrix seeks to

unveil the essence of the totalitarian Power. It is based on the observations of three

important authors: Claude Lefort, who points out that the roots of the totalitarianism

are in the ambiguities and imperfections of the democracy itself, with the concept of

democratic indetermination. Aléxis de Tocqueville, with the tyranny of the majority,

an expression that configures a political situation in which there is no counterweight

to limit the excesses of power, nor protection to grant the natural rights of the

minority, and, finally, Giorgio Agamben, starting from a study of the dialectical relation

between the sovereign Power and the bare life, points to the danger coming from the

vitalist political conception, denominated biopolitics by Foucault, when the same

seeks the development of the vital potential of a nation. From the three aspects

studied, in the political matrix the more conclusive explanations for the emergence of

the totalitarianism is found. The democratic indetermination and the life´s politization

are two subjects that stand out in this matrix, due to the relevance of the explanations

from Lefort and Agamben, as the preponderant factors on the emergence of

totalitarian dynamics. In the second part, the purpose is to demonstrate how this dynamic was expressed in

Germany, during the National Socialist regime. For that, the following manifestations

of the totalitarian power were outlined: völkische identity, Total State, Total

Mobilization and Total war, illuminated by the observations from Bernard Bruneteau,

to end with a picture of the totalitarian evil.

Key words: Germany, Biopolitics; Imperfections from the democracy; Totalitarian

Power, National-socialism; Conservative-revolution; Tyranny from the Majority.

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SUMÁRIO Introdução................................................................................................................ 10

1. A matriz do totalitarismo

1.1. A matriz cultural....................................................................................... 19

1.1.1. A Revolução conservadora..................................................................... 19

1.1.2. Niilismo e Política.................................................................................... 29

1.2. A matriz social......................................................................................... 32

1.2.1. Uma sociedade brutalizada..................................................................... 32

1.3. A matriz política....................................................................................... 37

1.3.1. A indeterminação democrática................................................................ 37

1.3.2. A tirania da maioria................................................................................. 52

1.3.3. A igualdade bifronte................................................................................ 56

1.3.4. A democracia totalitária........................................................................... 66

1.3.5. A politização da vida............................................................................... 71

2. As manifestações do totalitarismo

2.1 A identidade völkische............................................................................. 95

2.1.1 O anti-semitismo völkisch........................................................................ 97

2.2. A Guerra total.......................................................................................... 99

2.2.1 Uma sociedade mobilizada...................................................................... 99

2.2.2 Guerra total e era tecnicista..................................................................... 107

2.2.3 Uma sociedade alinhada.......................................................................... 110

2.2.4 O indivíduo performático em uma sociedade mecanizada....................... 111

2.2.5 Genealogia da Guerra total....................................................................... 114

2.3. O perigo totalitário..................................................................................... 117

2.3.1. Prelúdio de um genocídio: os massacres esquecidos da conquista

Colonial.....................................................................................................

123

2.3.2. O imaginário do darwinismo social........................................................... 126

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2.4. A banalidade do mal................................................................................. 129

2.4.1. Eichmann ou a personalidade de um conformista................................... 129

2.4.2. A ética da obediência e o significado da responsabilidade...................... 132

2.4.3. A banalização do mal............................................................................... 138

2.4.4. A produção social do mal ou a Tecnologia da destruição........................ 140

2.4.5. A desumanidade como produto da distância social.................................. 141

2.4.6. A conduta desumana como produto da ação seqüencial......................... 144

2.4.7. A desumanidade e a responsabilidade flutuante...................................... 147

2.4.8. A despersonalização da vítima................................................................. 147

Conclusão.................................................................................................................. 150

Bibliografia................................................................................................................ 159

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INTRODUÇÃO Pode parecer algo pretensioso escrever sobre um assunto que foi objeto de

uma literatura tão extensa, tão prolixa e tão pesquisada. Este estudo tem como

principal aspiração contribuir para a compreensão do fenômeno totalitário ocorrido

na Alemanha nacional-socialista - buscando a essência da matriz totalitária - mas

não encerra o tema amplamente estudado por escritores renomados.

O que originou esta pesquisa - embora tal motivação esteja à margem deste

estudo - foi a tentativa de esclarecer uma página de uma história familiar, das muitas

que foram escritas neste contexto, e que permaneceu durante muito tempo obscura.

Resgatar a memória de um soldado francês, de origem judaica, capturado em

combate, durante a Batalha de França, em 1940, e levado para um campo de

prisioneiros destinado exclusivamente a soldados judeus e soviéticos, perto da então

cidade de Königsberg (ex-Prússia Oriental, hoje anexada à Rússia com o nome de

Kaliningrad), onde permaneceu preso até 1945. Esse soldado, pai do autor deste

trabalho, foi um dos poucos sobreviventes desse campo onde a maioria dos

detentos perecera de “morte natural assistida” pelo frio, fome e trabalho escravo.

Convém lembrar que no front leste cerca de 3,2 milhões de prisioneiros de guerra

soviéticos encontraram a morte nestas condições.

O tema do presente estudo consiste na reflexão sobre a matriz do

totalitarismo alemão nos seus aspectos cultural, social e político. O caminho

percorrido por esta pesquisa, essencialmente bibliográfica, começou com o estudo

da matriz totalitária, trilhou os meandros do labirinto totalitário para identificar os

fatores desencadeantes da dinâmica manifestada na Alemanha nacional-socialista.

O desafio maior desta investigação foi tentar compreender como um regime eleito

democraticamente, referendado em várias ocasiões, com ampla maioria, herdeiro de

uma das culturas mais desenvolvidas da Europa, pôde ter aderido a tal aventura. E,

sobretudo, procurar desvendar o que tornou o mal totalitário, um símbolo do mal da

modernidade.

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Susam Neiman1 propõe uma interessante análise comparativa do mal. Esse

problema pode ser explicado em termos teológicos ou seculares, mas ele é

fundamentalmente um problema sobre a inteligibilidade do mundo como um todo.

Segundo a autora, enquanto o século XVIII tem empregado a palavra Lisboa, hoje

se costuma usar a palavra Auschwitz. Não é preciso mais do que o nome de um

lugar para significar o colapso de confiança mais básica no mundo, dos fundamentos

que possibilitam a civilização. Enquanto Lisboa evocava desastres naturais fora do

alcance da ação humana, Auschwitz, por sua vez, representa o mal na sua versão

moderna, isto é, atos absolutamente daninhos que não deixam espaço para

justificativa nem para explicação.

Dois acontecimentos não poderiam parecer mais diferentes. Se existe um

problema do mal gerado por Lisboa, ele só pode interessar o homem da fé: como

pode Deus permitir uma ordem natural que causa sofrimento inocente? Do outro

lado, a questão do mal causada por Auschwitz parece inteiramente distinta: como

podem os seres humanos comportar-se de maneira que violam inteiramente tanto as

normas éticas quanto as da razão?

Assim, uma distinção nítida entre mal natural e mal moral permite dividir

claramente a responsabilidade: a de Deus e a dos homens. As concepções

modernas do mal foram desenvolvidas em uma tentativa de parar de culpar Deus

pelo estado do mundo e de assumirmos sozinhos a responsabilidade por ele.

Quanto mais a responsabilidade pelo mal era deixada para o ser humano, menos

digna a espécie humana parecia assumi-lo.

O problema do mal começou tentando entender as intenções de Deus. Agora

parece que não podemos dar sentido a nossas próprias intenções. Se Auschwitz nos

deixa mais impotentes do que Lisboa é porque nossos recursos conceituais parecem

esgotados. Depois de Lisboa, só restou recolher pedaços estilhaçados de uma visão

do mundo e decidir viver corajosamente, assumindo a responsabilidade por um

mundo desencantado.

1 O mal no pensamento moderno, 2003

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Antes de Lisboa, os males dividiam-se em questões de natureza, metafísica

ou moralidade. Depois de Lisboa, a palavra mal ficou restrita àquilo que antes era

chamado de mal moral. Doravante o mal moderno se tornou um atributo da vontade

humana. O Iluminismo foi antes de tudo a marca de uma nova era, a coragem de

pensar o mudo por si mesmo; é também a coragem de assumir responsabilidade

pelo mundo no qual se é lançado. Separar radicalmente o que épocas anteriores

chamavam de males naturais dos males morais faz, portanto, parte do significado da

modernidade. Se podemos dizer que Auschwitz marcou seu fim é pela maneira

como ele imprimiu a sua marca de terror. Com ele, ficamos sem direção.

Ironicamente, parece que “Deus voltou à História pela porta do terror”.

Segundo Susan Neiman, duas perspectivas podem ser identificadas desde o

início do Iluminismo até os dias de hoje, independentemente do tipo do mal em

questão: uma delas, “a de Rousseau a Arendt, insiste em que a moralidade exige

que tornemos o mal inteligível. A outra, de Voltaire a Jean Améry, insiste em que a

moralidade exige que não o façamos (...). Comparar Lisboa a Auschwitz pode

parecer não equivocado, mas sim monstruoso, pois corre-se o risco quer de ver o

segundo como um desastre mais ou menos natural, desculpando assim os seus

arquitetos, quer de comparar o Criador a criminoso da pior espécie“ (2003, p.20).

Comparar as mudanças conceituais trazidas por Auschwitz com aquelas

criadas por Lisboa deveria ajudar-nos a responder a seguinte pergunta: será que

essas mudanças podem ser resumidas dizendo que a humanidade perdeu a fé no

mundo em Lisboa, e a fé em si mesma em Auschwitz? Auschwitz foi

conceitualmente devastador porque revelou uma possibilidade na natureza humana

que esperávamos não ver. Pois o desenvolvimento da cultura na Alemanha deveria

ter conduzido não a uma forma de barbárie altamente desenvolvida, mas a um

progresso de uma civilização genuína.

Convém ressaltar que essa observação não se restringe só a Alemanha. Para

David Rousset2, “a existência dos campos é um aviso (...) seria uma duplicidade, e

uma duplicidade criminosa, fingir que é impossível para outras nações tentar um

experimento semelhante porque isso seria contrário à sua natureza. A Alemanha

2 A World apart, 1951.

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interpretou, com originalidade digna de sua história, a crise que levou à criação do

mundo do campo de concentração” (ROUSSET apud NEIMAN, 2003, p.280-281).

A afirmação de que Auschwitz representa uma forma de mal radicalmente

nova persiste, apesar de todas as dificuldades para dotá-la de razões. Sugere que a

fé acrítica na capacidade da humanidade de determinar o próprio destino foi

destroçada com a Guerra. O que pareceu ter sido destruído antes de tudo, foi a

possibilidade de reação intelectual em si. O pensamento parou, pois as ferramentas

da civilização pareciam tão impotentes para lidar com aquele acontecimento quanto

o foram para evitá-lo. “Se Lisboa marcou o instante de reconhecimento de que a

teodicéia tradicional era inútil, Auschwitz assinalou o reconhecimento de que

nenhum substituto era melhor do que ela” (NEIMAN, 2003, p.308).

É importante destacar, no entanto, que a questão religiosa não é interna, mas

externa ao humanismo. A questão da religião está fora do humanismo. Ela se

resume numa pergunta e não a uma resposta.

Esta pesquisa foi essencialmente baseada em análises de várias obras, de

diferentes épocas, descritas por pesquisadores das áreas de ciência social, história,

política e filosofia, porém, em nenhum momento, no estudo do obscuro caso do

soldado que originou este trabalho. Para tanto, foram utilizados recursos de

paráfrases e intertextualidade, com intuito de provocar um diálogo textual

esclarecedor entre os autores, incluindo o autor desta pesquisa, que ao longo do

texto procurou fazer as devidas análises e interpretações.

Uma primeira hipótese, com o conceito de igualdade extremada, foi levantada

na banca de qualificação, para explicar a matriz do poder totalitário. Com efeito, de

acordo com o cientista político Giovanni Sartori, uma das principais componentes da

democracia, a igualdade, tal como o mito do deus Janus tem um aspecto bifronte.

Ela pode significar um ideal de justiça – direitos iguais para todos, que foi o lema

principal da Revolução Francesa. E também pode se manifestar em termos mais

temíveis de identidade – identidade igual para poucos no sentido völkisch (racial) da

palavra. Tem-se assim uma deriva totalitária da democracia que foi analisa por

Jacob Talmon: uma deriva à esquerda, com o exemplo do terror jacobino; uma

deriva à direita, com o da Alemanha nacional-socialista.

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Uma segunda hipótese é defendida nesse trabalho para oferecer uma

explicação mais abrangente para o surgimento do regime totalitário: a própria

democracia, com as suas imperfeições, pode se tornar uma terrível alavanca para o

totalitarismo Essa hipótese será baseada em três conceitos principais, na

indeterminação democrática, apontada por Claude Lefort; na tirania da maioria,

explicada por Aléxis de Tocqueville e na politização da vida, estudada por Giorgio

Agamben. A nosso ver, estes três autores talvez sejam os que melhor respondam às

exigências do problema formulado.

Plano do trabalho

Este presente estudo está dividido em duas partes. Na primeira, busca-se

descobrir a matriz do totalitarismo, a partir do estudo de seu aspecto cultural, social

e político. Na segunda, trata-se de compreender a face do totalitarismo alemão,

através das suas manifestações durante o regime nacional-socialista.

A matriz cultural, a partir dos trabalhos de Louis Dupeux sobre a Revolução

conservadora, focaliza duas principais correntes: a pessimista (kulturpessimismus) e

a racista (völkische). Com os estudos de Léo Strauss, será analisado o vínculo

estreito entre niilismo e política que marcou a intelectualidade alemã durante a

República de Weimar. A matriz social estuda o impacto social da 1ª Grande Guerra,

que George Mosse denomina brutalização da sociedade alemã. E, a matriz política,

que procura demonstrar que o totalitarismo pode surgir das ambigüidades, dos vícios

e das imperfeições da democracia.

Destacamos alguns grandes autores para esclarecer este aspecto da matriz

política. Em primeiro lugar, Claude Lefort que analisou a indeterminação

democrática; em segundo, Alexis de Tocqueville que prenunciou a tirania da maioria.

Depois, Giovanni Sartori que denunciou o perigo da igualdade quando ela se torna

extremada, em termos de identidade – identidade igual somente para poucos no

sentido racial (völkisch) da palavra.

Em seguida, Jacob Talmon, que analisou duas derivas totalitárias da

democracia: uma à esquerda, com a da Revolução Francesa, e outra à direita com a

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Revolução Nacional-Socialista. E finalmente, Giorgio Agamben que focalizou na

deriva totalitária de direita, uma perspectiva vitalista da política, com o tema da “vida

nua”, encerrando assim o estudo da matriz política do poder totalitário.

Na segunda parte deste estudo salientam-se algumas manifestações do

totalitarismo alemão, com temas que abrangem a identidade racial (völkische), o

Estado total, a Mobilização Total e a Guerra total, finalizando com um retrato do mal

totalitário, à luz de uma nova leitura do tema da banalidade do mal.

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“Existem dois tipos de labirintos, aquele onde o homem se perde e aquele que tem um só caminho...”.

(Frontal da Igreja de Sainte Foy, na França)

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1. A MATRIZ DO TOTALITARISMO

Uma das raízes de labyrinthos deriva da raiz grega lábrys, machado de corte

duplo inventado por Dédalo. O machado que corta em dois lugares é associado aos

caminhos que se dividem no labirinto. O labirinto torna-se assim o símbolo da divisão

do bem com o mal, do espiritual com o temporal; ele é o ponto nodal que bloqueia

todas as saídas, aquele que separa as forças profanas das sagradas, as forças

terrestres das celestiais, o caminho da servidão do da liberdade. Existe outra

interpretação do termo labirinto, da raiz laborintrus, com labor significando trabalho,

no sentido de esforço.

O sufixo inthos, tem o sentido de jogos, designando os jogos da caverna. Um

elo distante poderia então existir com a legendária caverna de Platão, símbolo da

luta das sombras com a luz, do profano com o sagrado, das trevas com o divino.

O labirinto desenhado no chão de muitas igrejas antigas era uma metáfora da

vida humana, com todas as suas provações, dificuldades e descaminhos, sendo o

centro dele um símbolo de esperança de redenção, sob a forma da Jerusalém

sagrada. Atravessar este labirinto fazia parte dos ritos de iniciação. Simbolizava a

descoberta do centro espiritual oculto, o caminho da ascensão das trevas para a luz.

A exemplo do frontal da Igreja de Sainte Foy, na França, onde há a seguinte

inscrição: “existem dois tipos de labirintos, aquele onde o homem se perde e aquele

que tem um só caminho...”.

No labirinto do primeiro tipo o caminhante deve traçar o seu itinerário e munir-

se do fio de Ariadne: ele não deve cortar as suas raízes, sob pena de morte. O

percurso é inelutavelmente repleto de obstáculos e a meta se define no transcorrer

do caminho. O transeunte é aquele que se torna, no sentido do dasein, do devir. Ao

ingressar nos becos sem saída, é importante que ele não esqueça que se trata

apenas de caminhos e, ao constatar o seu erro, é preciso voltar atrás e explorar

outros rumos. O labirinto onde o homem se perde é o nome que se dá à escola da

liberdade.

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No decorrer do tempo, o dédalo intrincado foi se simplificando para dar lugar a

um labirinto com algumas saídas e finalmente chegar a um labirinto de um só

caminho. Neste, existe uma só saída na vida, a da salvação. O labirinto do mundo

totalitário é aquele que exorta o homem a se deixar conduzir, para um caminho onde

possivelmente não haverá outra saída a não ser a própria morte. Este labirinto

costuma ser perfeitamente balizado: existe um só caminho, sempre reto, o da pureza

que percorre todo o seu trajeto. O passageiro deve confiar no caminho traçado por

outro e, se desconfiar de alguém, será apenas dele mesmo.

A história da primeira metade do século XX assemelha-se aos preparativos de

um confronto direto entre dois tipos de caminho rumo à salvação, um modelo político

democrático e um modelo totalitário. O rumo adotado pela Alemanha nacional-

socialista foi o modelo totalitário, o qual será estudado em sua matriz cultural, social

e política.

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1.1. A MATRIZ CULTURAL

Os trabalhos de Louis Dupeux3 foram decisivos para a compreensão da

matriz cultural desse movimento qualificado de pré-fascismo alemão, que surgiu

após a 1ª Grande Guerra e que antecede a ideologia nacional-socialista.

1.1.1. A Revolução Conservadora

Segundo o autor, a “Revolução conservadora” alemã representou a base da

contra-ideologia dominante na época da República de Weimar, um excepcional

laboratório de idéias sobre a questão da modernidade e do “desencantamento do

mundo”, onde os nazistas encontraram uma importante fonte de inspiração.

Analisando essa revolução, também chamada por Dupeux de nebulosa de

extrema direita, o autor destaca duas grandes correntes de pensamento: a

“pessimista” (kulturpessimismus) e a “racista” (völkische), que compartilham o

mesmo ódio pela República de Weimar e pelos valores humanistas e liberais do

iluminismo. Entretanto, divergem quanto ao estilo e a tática a serem adotadas, e

sobre o “rosto” dessa Alemanha regenerada com a qual elas tanto sonhavam.

Contudo, embora a Revolução conservadora tenha preparado, em certa medida, o

nazismo, ela não pode ser assimilada a ele. Ela se distingue pela diversidade das

muitas correntes que se vinculam a ela.

Segundo Dupeux, os três grandes representantes dessa Revolução, Ernst

Yünger, Carl Schmit e Ernst Niekisch, não compartilham, em absoluto, da mesma

visão de mundo (weltanschauung). Assim, para o herói de guerra Jünger, o aspecto

mais importante era o de mobilização total de inspiração prussiana; já para o ex-líder

social-democrata Niekisch, o modelo era o de mobilização geral, porém de

inspiração comunista, à luz da experiência da Rússia stalinista; e para o jurista

Schmitt, o enfoque principal era o de amigo/inimigo e a rejeição do Estado liberal.

3 La Révolution conservatrice allemande sous la République de Weimar, 1992.

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Dupeux sublinha, também, a considerável produção intelectual dos

neoconservadores: mais de 500 periódicos, cerca de 400 organizações, desde

formações paramilitares até ligas, sem considerar os inúmeros círculos que exerciam

grande influência sobre uma direita tradicionalista, como por exemplo, o Clube dos

Cavalheiros (Herrenklub).

Outro grande mestre a pensar na Revolução conservadora, segundo ele, foi

Oswald Spengler. Embora em primeira instância apresentado como o “profeta do

declínio”, Spengler defende uma concepção orgânica da história. Para ele, à

semelhança de Roma, que herdou a cultura grega, cabia à Alemanha a missão de

assegurar a sobrevivência do Ocidente. Para tanto, sonhava com um Imperium

germanicum, que somente poderia ser instaurado sob a condição de reconciliar

operários e nacionalistas conservadores.

Como a própria denominação indica, a Revolução conservadora constitui uma

síntese paradoxal. Ela é conservadora, uma vez que deplora e critica o declínio da

civilização ocidental e os efeitos perversos de uma modernidade cega. E, ao mesmo

tempo é revolucionária, uma vez que, longe de pregar um retorno às antigas

tradições, as suas críticas têm um aspecto radicalmente inovador: sua luta é

antiburguesa, antidemocrática e antiliberal.

Apesar da grande diversidade de pensamento dessa nebulosa, o historiador

Dupeux foca seus estudos nas duas grandes correntes que, como já foi dito,

possuem a mesma raiz ideológica, sentem o mesmo ódio pela democracia e pelos

valores liberais, mas divergem quanto ao estilo que a Alemanha deveria adotar.

Para o autor, a Revolução conservadora, como produto dessas duas correntes, é

fundamental para uma boa compreensão da matriz cultural do nacional-socialismo.

Sendo assim, de um lado está a corrente do “pessimismo cultural”, inspirada

pela sua crença no declínio irreversível da Alemanha. Essa corrente fazia uma

oposição aberta à Revolução Industrial, à técnica, ao crescimento da grande cidade,

à sociedade de massas e, por fim, à dissolução da ordem social e dos valores

tradicionais. De outro, a corrente “otimista” ou “voluntarista”, favorável à grande

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indústria, à técnica, à razão instrumental, enfim a uma organização racional da

sociedade.

Na segunda corrente, a “Völkische Revolution”, embora de maneira diferente,

havia a mesma visão ideológica do mundo e a mesma rejeição do Iluminismo

(aufklarüng). Assim, para Ernst Yünger4, um representante da corrente nacionalista

völkisch o progresso do Iluminismo não significa progressão, mesmo quando este

reveste a máscara da Razão. Ele rejeita toda forma de abstração e de generalização

para focalizar o singular e o particular. O autor afirma que é preciso se libertar de

toda abstração ideológica para alcançar de maneira concreta a dimensão

existencial. À noção de progresso, ele contrapõe o conceito de mobilização total,

situação onde “todas as existências transformam-se em energia e todos os meios de

comunicações aceleram-se em benefício da mobilidade, do movimento” (op. cit. p.

106). A uma visão finalista do progresso comandada pela perspectiva de um mundo

melhor, ele opõe a fé, a potência e a audácia daqueles que se “abrem para o

infinito”.

O autor fez uma interessante distinção ente o nacionalista völkisch e o

conservador. Segundo ele, numa época onde tudo se tornou movimento o lugar do

conservador se tornou inseguro. É a razão pela qual ele ama a tradição e se apega

nela,. O conservador procura se apoiar num Estado instituído para deter o

movimento e cristalizar assim a organização social. Ele costuma acompanhar o seu

tempo a passo lento. Em contrapartida, o espírito revolucionário antecipa e apressa

os acontecimentos. O revolucionário inteligente reconhece no Estado um

instrumento de potência e triunfará inelutavelmente dos conservadores, uma vez que

ele representa a verdadeira convergência do organismo com a organização.

Nesse contexto, a mobilização não é progressão ou progresso, mas sim a involução

da viagem, o eterno retorno do mesmo.

Os völkisch se preocupavam menos com a Nação ou o Estado e mais com o

Povo (Volk), um povo que eles tentavam restaurar na sua pureza genuína, com

temas exaltando a nudez nórdica, o paganismo germânico e a terra. Sob a influência

4 L’État universel suivi de La mobilisation totale, 1990.

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de Houston Chamberlain e das teorias neodarwinistas, eles se destacaram pela sua

obsessão racista e anti-semita que os conduziu aos mesmos intentos de sempre:

pureza racial, exclusão dos doentes mentais, proibição de casamentos mistos e,

finalmente, eliminação dos judeus da vida nacional.

1.1.1.1. A Revolução conservadora e as elites intelectuais

Representante da corrente pessimista, o escritor berlinense Arthur Moeller

Van den Bruck5 foi outra figura de destaque dessa onda ideológica. Embora

classificado de “escritor decadente”, Bruck passa a simbolizar, após a 1ª Grande

Guerra, a contracultura de uma direita convencida da necessidade de “derrubar” as

construções intelectuais que destruíam a Alemanha, desde o Iluminismo. A sua

doutrina chamada de imperialismo social se apresenta confusa, reacionária,

conservadora e, ao mesmo tempo, revolucionária, socialista, proletária, com o

sentido de direito dos povos jovens. Nela, todo um jargão vitalista e voluntarista é

colocado a serviço de uma ideologia que prega a expansão, com o uso da dialética:

é preciso aprender a conviver com as próprias contradições.

Em 1916, Bruck publica um ensaio6 no qual tece elogios às virtudes romanas

da Prússia, celebrando a essência desse país como Vontade de Estado. É nesta

época que ele começa a afirmar o seu nacionalismo, não no sentido de um

pangermanismo com o qual ele não tinha a menor afinidade, mas no sentido de

certa solidariedade com uma cultura com a qual ele se sentia herdeiro. Combateu a

corrente völkische com veemência. Ele censurava os teóricos que confundiam raça e

povo e acusava os defensores da raça ariana de diluir, num conceito impreciso, as

caracteristícas da nação alemã, estabelecendo uma nítida distinção, entre raças

biológicas e raças do espírito.

Aos olhos de Bruck, o exemplo prussiano era uma testemunha de que, nas

sociedades modernas, a história levava a melhor sobre a raça e a cultura, sobre o

5 Das dritte reich, 1922. 6 Der preussiche stil (O modelo prussiano), 1916.

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estado natural. Para ele, toda a nação alemã, herdeira do país do meio (a mutterland

germânica), devia adotar o modelo prussiano, no seu aspecto cultural.

Após a Revolução de novembro de 1918, Bruck se torna o líder de um círculo

de escritores e jornalistas hostis ao comunismo e, ao mesmo tempo, ao liberalismo e

ao nacionalismo. Esse círculo denominado juni-klub (clube de junho) se torna o pólo

da corrente representativa dos jungkonservativen (jovens conservadores) da

Revolução conservadora.

O clube era freqüentado tanto pelos nacionalistas alemães quanto pelos

democratas católicos do centro (zentrum), pelos social-democratas e até pelos

comunistas. Os dirigentes do juni-klub não se colocavam na posição de adversários

do princípio da República de Weimar ou da democracia, procurando antes de tudo

descobrir o melhor caminho para a democracia alemã, isto é, uma democracia de

acordo com a tradição do País, com ênfase sobre os princípios e não sobre as

instituições. Bruck definia esse modelo de ‘democracia nacionalizada’, uma vez que

enfatizava a participação de um povo no seu destino.

Em 1919, Bruck publica sua grande obra7, iniciada durante a 1ª Grande

Guerra, na qual ele procura demonstrar que a guerra foi o produto do ressentimento

de povos velhos em relação aos povos jovens (Alemanha e Rússia), dos quais eles

invejavam a vitalidade. O autor acreditava que a salvação de uma Alemanha

proletarizada não podia advir de um compromisso com as potências ocidentais (tais

como a França), nem de uma imitação subserviente do modelo liberal inglês, mas de

uma aliança com as forças novas e puras do Leste europeu, cujos interesses

geopolíticos correspondiam aos da Alemanha. Aos seus olhos, a Rússia eterna

acabaria por derrotar uma teoria marxista importada. Influente entre os

junkonservativen, Bruck se opõe à corrente nacional-revolucionária, cuja ideologia

soldadesca era alimentada pela experiência do front.

Os nazistas se apropriaram muito das idéias de Bruck e utilizaram o título do

seu livro Das Dritte Reich (que significa o Terceiro Reich), publicado em 1923, como

7 Das recht der jungen völker, 1919.

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slogan político. Pronunciando-se sobre uma terceira via entre capitalismo liberal e

marxismo, Bruck denomina essa ‘democracia nacionalizada’ de Terceiro Reich –

definindo-a como uma idéia de síntese, de resolução das contradições. Os novos

rumos, para ele, impeliam para o III Reich, uma vez que a Alemanha, país do meio,

tinha como vocação constituir uma terceira força no centro do continente, uma ponte

entre o Leste e o Oeste da Europa.

Embora para Dupeux, a base da militância völkische fosse mais popular, isso

não significava que eles aceitavam as regras do jogo democrático. Nesse movimento

prevalecia um oportunismo dos mais cínicos e mais brutais para a conquista do

poder, um poder que devia ser chefiado por um líder carismático, único capaz de

expressar a vontade profunda da comunidade do Povo (volksgemeinschaft). Graças

aos trabalhos pioneiros de Dupeux, os historiadores contemporâneos dão hoje um

maior destaque a esse fermento intelectual e a esse potencial de violência que

encobria uma república, cujas estruturas jurídicas ainda não estavam consolidadas,

como berço da matriz cultural do nacional-socialismo.

Para Stefan Breuer8, o sintagma Revolução conservadora apresentou cinco

grupos principais: os populistas (völkisch), os jovens conservadores

(jungkonservative), os coligados (bündische), os nacional-revolucionários e o

movimento camponês (landvolk bewegung).

O “núcleo duro” era constituído, por um lado, pelos jungkonservativen (Max

Boehme, Ernst Forsthoff, Arthur Moeller Van Den Bruck, Carl Schmitt, Oswald

Spengler) e, por outro lado, pelos nacional-revolucionários Helmut Franke, Ernst e

Friedrich Yünger, Ernst Niekisch. Para Breuer, todos eles se opõem às idéias do

iluminismo e do liberalismo e representavam antes de tudo um conjunto de tentativas

de redefinição da identidade alemã, um leque de movimentos de pesquisa numa

perspectiva ‘modernista’. Todos os seus representantes são compenetrados de

voluntarismo e de certo “estetismo”, atitudes típicas da modernidade no sentido

histórico do termo. Segundo Breuer, o que caracterizava a mentalidade da época

8 Anatomie der Konservativen Revolution, 1995.

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era uma combinação de visão apocalíptica do mundo, de uso da violência e de

espírito comunitário masculino (männerbund).

Segundo Breuer, o novo clima intelectual do século XIX não conseguiu

produzir uma ideologia tão sistemática e abrangente quanto à do marxismo, mas

conseguiu esboçar uma literatura “oriunda de uma realidade transformada pelas

massas pós-liberais, legitimada por elas, cujo conteúdo é de uma força explosiva

que não se pode desprezar” (BREUER, apud WEISSMANN, 19939).

Qualificado de “sintagma paradoxal” por Gilbert Merlio (2003, p.123-141)10, o

único ponto em comum entre essas correntes da direita alemã dos anos 1920 foi o

de ter criado um novo nacionalismo, uma espécie de fundamentalismo nacional, cujo

objetivo era menos o de preservar os valores colocados em perigo pelo declínio da

modernidade, do que resgatar, “reencontrar ou criar valores que mereciam ser

conservados”.

Diferentemente de Dupeux, que focaliza a divergência das correntes, Merlio

acredita que os autores dessa constelação revolucionário-conservadora,

compartilhavam o mesmo diagnóstico de um vazio intelectual da modernidade, que

tem acelerado o declínio do ocidente e da Alemanha em particular; e uma mesma

grande esperança: a da emergência de novas elites, que pudessem regenerar a

Alemanha e a Europa inteira.

Outra característica notável dessa Revolução conservadora, segundo Merlio,

foi a influência de Nietzsche que impregnou todas as idéias dos seus protagonistas e

contribuiu para a formação da base cultural, ou seja, para a busca do homem novo

capaz de superar o niilismo moderno e de regenerar a Alemanha. Como observou

Nikolaï Berdaїev11, existia uma aspiração comum a todos esses pensadores

dissidentes, “en rupture de ban com a direita tradicional: uma sede de um mundo

9 Y a-t-il eu une Révolution conservatrice, 1993. 10 Y a-t-il une Révolution conservatrice sous La République de Weimar? in: Revue Francaise d'Histoire des Idées Politiques, 17. 2003. 11 L'idée russe: problèmes essentiels de la pensée russe au XIXème et au début du XXème siècle, 1970.

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integral, onde poderia haver uma fusão total da teoria com a vida e com a

necessidade de crer”.

Para o historiador israelense, Zeev Sternhell12, surgem no final do século XIX,

em decorrência da crise da democracia liberal e do marxismo, movimentos

potencialmente revolucionários, que não eram “nem de direita, nem de esquerda” e

que devem ser considerados como “a manifestação de uma mudança radical, com

todas as características de uma crise de civilização”.

Segundo o autor, apesar de não ser tão coerente nem tão sistemática quanto

a sua rival marxista, um conjunto de idéias-chave caracteriza essa Revolução

conservadora: antimaterialismo, antiindividualismo e concepções voluntaristas de um

mundo que exige a regenerescência total da sociedade, ou seja, uma concepção

redentora, ‘agonal’, isto é antagônica da política que fez desse movimento uma

ideologia dominante na República de Weimar. Para Sternhell, a crise vigente na

época, bem como o curto tempo da sua vigência não permitiu uma homogeneização

do seu conteúdo doutrinal, mas o seu impacto intelectual, embora múltiplo,

diferenciado e heterogêneo, foi decisivo para o advento do regime nacional-

socialista.

1.1.1.2. Cultura niilista (kulturpessimismus) e Revolução conservadora

A Revolução conservadora perpetua e, ao mesmo tempo, rompe com o

pensamento tradicionalista alemão impregnado da idéia de decadência e de

declínio. Assim, para Theodor Fritsch13, outro representante da corrente nacional-

racista (völkische), não existe solução para os problemas relacionados com a

decadência dos povos: “A humanidade atual está em declínio manifesto. Enquanto o

desenvolvimento natural da vida imprime um impulso para o alto, infelizmente nada

12 Naissance de l’idéologie fasciste, Fayard, 1989. 13 Antisemiten-katechismus, 1887.

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de tal podemos perceber na realidade do homem. Longe de nos elevarmos, nós

afundamos” (FRITSCH, apud LUCCHINI, 2008, p.2).

Diferentemente da cultura niilista, os revolucionários conservadores não se

sentem presos em um século odiado. Eles aceitam o desafio da sua época,

afirmando que são os únicos que podem encontrar uma solução para os problemas

do mundo moderno. É precisamente nessa vontade de estar presente no mundo e

nessa rejeição da idéia de decadência que a Revolução conservadora se distingue

da cultura niilista (kulturpessimismus). Os neoconservadores se identificam

expressivamente com a modernidade por meio de múltiplas denominações de

realismo, dinamismo, ativismo e, sobretudo, de afirmação, regeneração e

ressurreição, ostentando um otimismo diferente daquele do Iluminismo. A exemplo

de Nietzsche que havia profetizado uma era de “monstruosa reflexão sobre si”, a sua

reflexão se coloca antes de tudo sob o signo da afirmação (bejahung) e não da

negação.

No que tange à modernidade, para eles, a sociedade tradicional estava

desmoronando com a “secularização”, a industrialização, o individualismo e o

surgimento de novas classes sócio-econômicas. Nos tempos do Kaiser, essa

evolução havia sido objeto de uma crítica feroz por parte da corrente pessimista

(kulturpessimisten) que apontava a noção de decadência, e da corrente racista, que

denunciava a degenerescência da Alemanha. Eugene Diesel se declarava defensor

da verdadeira cultura alemã frente aos progressos devastadores de uma pretensa

civilização acusada de ter esquecido o sentido trágico da vida: “que o futuro se

enquadre ou não ao padrão das culturas passadas, isso nos é indiferente. O nosso

orgulho, a nossa alegria é de poder viver uma era que faça explodir qualquer

comparação com as épocas anteriores”(DIESEL apud LUCCHINI, 2008, p.2).

1.1.1.3. Os fundamentos intelectuais da Revolução conservadora

Para Dupeux, a Revolução conservadora nega a existência a força

unificadora da razão e recusa a universalidade dos valores humanos. Ela contempla

apenas entidades históricas, raciais e orgânicas, conceitos totalmente alheios ao

individualismo e ao racionalismo. Segundo o autor, existe nela uma rejeição da

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abstração e da generalização, para focalizar o singular e o particular. Para alcançar

de maneira concreta a dimensão existencial é preciso se libertar de toda abstração

ideológica. A ênfase é sobre a vida em oposição à concepção racionalista do

progresso. Essa concepção “vitalista” da realidade privilegia o desenvolvimento, o

movimento, que são, por sua vez, associados à noção-chave de revezamento

(ablösung), de despertar e de regeneração.

A visão de mundo (weltanschauung) não está baseada num passado

estacionário, cristalizado. Em diferença ao romantismo político, esse movimento não

se detém sobre o passado. Embora tenha um conhecimento intuitivo das suas raízes

profundas, ele procura conhecer o presente, buscando, segundo a expressão de

Yünger “uma fusão do passado e do futuro num presente ardente” (YÜNGER, apud

LUCCHINI, 2008, p.2).

Existe um anseio por compreender sua época e, sobretudo, por superá-la

(überwinden). A sua concepção da história não é racionalista; ela é contrária a uma

concepção progressista do mundo que apresenta um desenvolvimento linear

ascendente, para eles, a história, se desenrola num movimento cíclico ou pendular,

submetida às leis do destino, embora destacando o papel dos grandes homens. A

história é marcada pela permanência ou, ao menos, pelo eterno retorno dos valores

fundamentais. O neoconservadorismo não se limita em compreender a história,

deseja antes de tudo “fazer história”. O medo do desconhecido, inerente ao

Conservadorismo tradicional desaparece aqui para ceder lugar a um

Conservadorismo revolucionário.

Para o historiador alemão Ernst Nolte, houve convergências doutrinais entre

a Revolução conservadora e a Revolução nacional-socialista em dois pontos: com

relação à crítica da civilização e com relação à hostilidade ao marxismo e ao

liberalismo. A principal distinção entre elas é de intensidade: enquanto a primeira

representa uma “solução minimalista, a segunda seria uma “solução maximalista”.

No entanto, segundo o autor, enquanto o movimento de Hitler tem uma vontade de

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lutar contra a Rússia bolchevista, a Revolução conservadora caracteriza-se por um

conflito de gerações (NOLTE, apud WEISSMANN, 1993,14 p.4).

1.1.1.4. A concepção do Estado

Apesar de favorecer o surgimento de uma nova aristocracia social, a

Revolução conservadora deseja um Estado radicalmente novo que possa integrar

todas as classes sociais e estruturar as massas. A corrente neoconservadora é

moderna pelo seu desejo sincero de mobilidade social.

É preciso distinguir duas concepções neoconservadoras do Estado, ambas se

reclamando da modernidade, mas com perspectivas diferentes. A primeira focaliza

mais a vida, enquanto a outra enfatiza a técnica. Assim, a corrente dos jovens

conservadores é a de um Estado autoritário, que tem por objetivo a despolitização

das massas. Em contrapartida, para a corrente nacionalista que tem Yünger como

principal representante, o Estado totalitário, longe de despolitizar as massas, deve

procurar mobilizar todo o seu potencial vital.

1.1.2. Niilismo e política

O nacional-socialismo apoderou-se de certos conceitos da Revolução

conservadora, em especial as idéias de “terceira via” de Bruck. As idéias völkisch

marcam de certa forma a transformação da Revolução conservadora em neo-

nacionalismo ou, mais precisamente, em nacional-socialismo. Do mesmo modo,

esse regime procurou se apoderar de alguns conceitos da cultura niilista

(külturpessimismus), para idealizar um projeto totalitário moderno; seu ideário

caracteriza-se pela idéia de decadência no sentido de degenerescência, pela

vontade de restauração da raça, do povo, do germanismo e do “direito alemão em

dispor de seu próprio destino”. Nesse contexto, a sua ideologia encontra-se em

algum lugar entre a cultura niilista e a Revolução conservadora. No entanto, convém

14 Nolte, apud Karlheinz Weissmann in: “Y a-t-il eu une Révolution conservatrice?”, 1993.

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observar que à diferença da Revolução conservadora, o conceito central da

ideologia nacional-socialista é a raça.

Em 1941, numa conferência sobre Niilismo e Política, na Universidade de

Nova Iorque, Léo Strauss fez as seguintes perguntas: o que é niilismo? E em qual

medida ele é um fenômeno tipicamente alemão? Para ele, é somente com o recurso

da fenomenologia que se pode compreender esse niilismo que se tornou a matriz

cultural do Nacional-socialismo. Para o autor, que foi aluno de Heidegger, o

Nacional-socialismo não foi a expressão mais proeminente, mais destacada do

niilismo alemão, mas a sua forma mais aviltada, tacanha, vulgar e vergonhosa. O

niilismo tem raízes mais profundas do que os discursos de propaganda de Hitler.

Desse modo, não foi a cultura alemã que era portadora de idéias nazistas. Ao

contrário, é o regime nacional-socialista que se apoderou da cultura alemã para

colocá-la a serviço de um ideal de expansão e de dominação. Strauss explica que o

niilismo não está motivado por uma vontade de autodestruição, nem também por um

desejo insano de destruição total. A destruição a qual pretende é a da civilização

moderna, percebida de maneira confusa como imoral, porque advoga pela felicidade

material e não pelo sacrifício. O que o niilismo alemão execra na civilização

moderna não é o progresso tecnológico, mas as grandes lutas de cunho universal

em prol do “progresso moral”, do alívio do sofrimento do homem, da proteção dos

direitos humanos, da felicidade para a maioria dos indivíduos. Segundo Strauss, o

niilismo tem neste sentido o caráter de um “protesto moral” contra uma sociedade

aberta a tudo e a qualquer coisa, e que acaba provocando, em decorrência dessa

abertura, a devassidão, a corrupção e a degenerescência. A representação da

sociedade aberta, para o niilismo, é de um lugar onde se encontra, de fato, todas as

irresponsabilidades, de um espaço de convergência em busca do prazer, do lucro, e

onde se exerce um poder irresponsável. Esse protesto parte da convicção profunda

de que o cosmopolitismo é inerente à civilização moderna ou, de forma mais precisa,

de que a constituição de uma sociedade aberta a todas as aspirações da civilização

moderna é inconciliável com as exigências de uma vida moral, feitas de dedicação,

de dever e de sacrifício em prol da comunidade. Esse protesto se desdobra de uma

celebração das vantagens da sociedade fechada, a única que possa garantir a

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integridade, a retidão e a probidade sobre as quais repousa uma vida

autenticamente moral.

De acordo com Strauss15, é somente no quadro de uma sociedade fechada

que se pode preservar, em razão da sua própria clausura, o estado de tensão que

desperta a nobreza e os valores de uma vida autenticamente moral. Ciente de que a

sobrevivência depende de sua moralidade, diz ele, uma sociedade dessa natureza

tem o sentido do dever e do sacrifício. A respeitabilidade a qual pretende a

sociedade fechada é simétrica ao grau de clausura que ela consegue manter. Em

contraposição, virando as costas aos valores heróicos e incapazes de alcançar o

‘sublime’, a sociedade aberta somente pode levar à sua desagregação, ao seu

próprio declínio.

A intensidade do protesto niilista contra a civilização moderna, observa

Strauss, basicamente não tem nada a ver com o ardor belicista, com o amor à

guerra ou com o nacionalismo. Tem mais a ver com uma concepção do Estado

soberano, como sendo o melhor protetor de uma sociedade fechada no sentido

indicado. Tal convicção guiada pela paixão da ética é de natureza soberanista uma

vez que atribui ao Estado a função de guardião da clausura, no sentido de defensor

da moral ameaçada. De acordo com Strauss, essa convicção não está desprovida

de certa razão ou de certa nobreza, lembrando que ela já foi a de Glauco na

República de Platão, quando esse último estigmatizava a Cidade dos porcos.

Esse desejo de destruição, inerente ao niilismo alemão, pode parecer

incompreensível à primeira vista, uma vez que não é acompanhado de uma clara

visão do que pode vir a substituí-lo. De modo geral, Strauss incrimina as emoções

do pós-guerra, o clima deletério no qual a Alemanha se encontrava nos anos 1920.

Ninguém estava satisfeito com a situação do mundo pós-guerra. A democracia

liberal de Weimar parecia incapaz de enfrentar as dificuldades às quais a Alemanha

estava confrontada. Ao desespero do presente, se agregava uma falta de esperança

sobre futuro, de inspiração comunista, anarquista, pacifista, um futuro sem

alternativa, percebido como o fim da humanidade, como a era do último homem.

15 Nihilisme et politique, rivages, 2001; in: collection bibliothèques rivages.

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O niilismo alemão rejeita a visão de um futuro que desemboca no

desaparecimento do Estado, numa sociedade sem classes, na abolição de toda

forma de exploração do homem pelo homem e de toda injustiça, no surgimento de

uma era de paz derradeira, na qual cada um encontraria seu pequeno prazer, um

mundo onde nenhum grande coração continuaria batendo e nenhuma grande alma

continuaria se manifestando. Ele rejeita a visão de um mundo sem sacrifício, que

desconhece ‘o suor, as lágrimas e o sangue’.

Segundo Strauss, tal representação do futuro impregnou a mente de

inúmeros alemães, muito inteligentes e muito honestos, embora muito jovens.

Carentes de transcendência, de esperança, uma grande parte da juventude dos

anos 1920 se vê incapaz de articular outra opção que um não categórico. Esse não

por sua vez, irá se tornar uma condição prévia a toda ação reivindicativa, até da

própria ação destruidora.

1.2. A MATRIZ SOCIAL

1.2.1. Uma sociedade brutalizada

A 1ª Guerra Mundial alcança um grau de violência sem precedentes e

apresenta um salto qualitativo rumo à Guerra total. Desde o seu início, a guerra

coloca o problema da destruição total do inimigo. O combate não é apenas levado

até a sua intensidade máxima, com o uso massivo da tecnologia (materialschlacht)

ou com a intensificação sem limite da violência direta, mas o alcance da luta é

igualmente estendido contra as populações civis com o intuito de aniquilar a sua

vontade de resistência.

Digno de destaque, o termo “matadouro” no vocabulário dos combatentes

designa uma nova forma de guerra na qual o potencial do fogo, a duração e o teatro

ilimitado das operações levam a uma desumanização total da guerra. Assiste-se a

uma banalização da guerra, marcada pela hecatombe e pelo horror indescritível,

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pelo desaparecimento de milhões de homens nos campos de batalhas dos anos

1914–1918, com mais da metade dos soldados mortos sem ter recebido sequer uma

sepultura. A guerra provoca certa indiferença em relação à morte dos próximos,

mas, sobretudo, a dos outros.

A aceitação da idéia da morte em massa é indissociável da dessacralização súbita

da vida humana. Na Guerra total, escreve Sofsky16 :

A morte não é apenas um meio para alcançar um objetivo político ou econômico. Ela é per si o objetivo da guerra. Os desejos, as representações mais intensas do imaginário, são dirigidos para o aniquilamento do inimigo (...). Pensar a guerra, não significa nada mais que pensar a sociedade a partir da sua destruição potencial, do seu ponto zero, da morte do social (SOFSKY apud BRUNETEAU, 2004, p.39).

A partir da afirmação de que a responsabilidade pela deflagração da guerra e

do seu desenrolar bárbaro é um produto da cultura do inimigo, efetua-se uma

distinção maniqueísta entre aqueles que combatem do lado do bem, do humano, e

todos aqueles que se encontram do lado mal, do desumano, até do inumano,

personificado pelo inimigo, própria encarnação do mal que deve ser repelido. Nesse

sentido, observa Bruneteau17, a guerra pode ser lida em termos de luta racial, com

um único objetivo: a destruição da raça adversa.

Para Bruneteau, o período de des-civilização marcado pela guerra 1914-1918

anuncia as próximas des-civilizações totalitárias que viriam a seguir. A nova

dinâmica da violência terá um reinício em 1939, “com a destruição da fina camada

da civilização dos costumes e com a revelação, à luz do dia, do império do instinto”

(BRUNETEAU, 2004, p.42).

Segundo o historiador israelense Omer Bartov, o mesmo mecanismo

esquizofrênico que permitiu a sobrevivência de inúmeros soldados durante a 1ª

Guerra Mundial, criou uma predisposição mental que levou os seus filhos a 16 L’ère de l’épouvante, 2002. 17 Le siècle des génocides, 2004

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participar, sem emoção, dos assassinatos em massa praticados durante a 2ª Guerra

Mundial. O ponto decisivo ocorreu quando “a oposição que existia - em tempo de

guerra - entre a morte do amigo e a do inimigo foi estendida - em tempo de paz - no

campo da batalha política”. Os comportamentos violentos e as manifestações de

ódio do tempo de guerra vão prosseguir, só que desta vez no âmbito da sociedade

civil, culminando com “a brutalização da vida política, e acentuando ainda mais o

menosprezo pelo caráter sagrado da vida” (MOSSE apud BRUNETEAU, 2004,

p.42).

Segundo Mosse, as sociedades européias, traumatizadas de maneira

duradoura pelo horror das trincheiras, tiveram dificuldades em esquecer-se da

guerra, mais particularmente na Alemanha, num fenômeno de “brutalização” das

sociedades européias. Após o regresso da paz, os antigos combatentes

conservaram a nostalgia dos tempos da solidariedade fraterna que prevalecia entre

os homens do front, matriz de socialização dos soldados. A “experiência interior da

guerra”, segundo a expressão de Mosse, é exaltada como pedra de toque da

virilidade e do espírito combativo. A retórica e a ética política serão impregnadas de

uma agressividade até então desconhecida. Ela irá imprimir a atividade política de

um caráter belicista, tanto pelo discurso inflamado, quanto pelas ações violentas

como os combates de rua entre comunistas e nazistas, a criação de tropas de

choque no seio dos partidos, os Stosstruppen (Tropas de assalto), as SA (Sturm

Abteilungen; Seções de Assalto), e finalmente a SS (Schutzstaffel; Esquadrão de

proteção).

A partir da 1ª Guerra Mundial, o combatente se tornou uma mera peça

mecânica. O advento da era tecnicista descrita por Yünger terá amplas repercussões

no período entre as duas Grandes Guerras. A própria guerra não vai apenas afetar

as relações humanas com a ‘mecanização’ dos indivíduos. Ela vai também afetar os

tempos de paz com as concepções e os ideais herdados do conflito. Após o término

dos combates, toda a cultura da guerra vai doravante influenciar a sociedade civil

alemã.

O “ideal militar” é em toda parte presente, como revelam a profusão de

insígnias, de estandarte e de uniformes, nas encenações grandiosas do

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führerprinzip. Hitler, nostálgico e prisioneiro daquilo que Mosse denomina o “mito da

grande guerra” aspira a uma “sociedade de combatentes”. Mosse ainda observa que

todas as sociedades brutalizadas pela cultura da 1ª Guerra imprimiram um caráter

violento à atividade militante, o que vai representar uma das manifestações mais

características da Europa pós-1918. Esta nova realidade pode ser ilustrada pela

utilização de um vocabulário guerreiro, no qual se faz menção do aniquilamento total

do adversário, um adversário interior agora considerado inimigo.

A partir da distinção amigo/inimigo, como novo paradigma da atividade

política, Schmitt efetua uma inversão na fórmula de Clausevitz. Doravante, a política

penetra o campo de ação bélica, tornando-se de fato a continuação da lógica direta

inerente à guerra. Ora, assimilar a atividade política a uma guerra significa a termo,

recusar a parte da humanidade no adversário. Dentro do clima de traumatismo

coletivo provocado pela derrota, a idealização da vivência de um front purificado e

estetizado, se transforma em fermento ideológico. Esta situação transformaria o

soldado em arauto de uma nação a reconstituir, de um novo Reich a edificar, com

base no espírito da “comunidade das trincheiras”, o que representava uma visão

radicalmente oposta ao parlamentarismo e aos seus compromissos.

Em conseqüência de um amplo consenso, segundo o qual a Alemanha havia

sido derrotada, sem ter perdido uma só batalha decisiva contra os aliados, a

ideologia sublimada da vivência do front (fronterlebnis) se manifesta de modo

agressivo pela busca da figura do traidor encontrado numa retaguarda que havia

supostamente falido. Nos dias seguintes à derrota, encontra-se no Judeu a figura do

traidor, em decorrência da ação das organizações anti-semitas que proliferam na

Alemanha, sob o impulso da liga pangermanista. Segundo Mosse, esse anti-

semitismo é o sintoma do processo de brutalização provocado pela primeira grande

guerra.

Para muitos alemães - e para Hitler em primeiro lugar - embora as

hostilidades tivessem terminado em 1918, a guerra ainda não havia sido concluída.

O campo de batalha simplesmente havia sido transferido para o front interior. Pela

ação da mobilização total, tratava-se de travar uma revanche contra os traidores,

principalmente o “traidor” judeu-bolchevique, estigmatizado como o novo “inimigo

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total” da Alemanha, ao lado do “burguês liberal” que o havia deixado se difundir no

seio da Nação. François Furet resumiu essa situação da seguinte maneira:

Filhos da guerra, bolchevismo e fascismo, receberam dela o que eles têm de elementares; ambos aplicaram na política a experiência adquirida nas trincheiras: o hábito da violência, a simplicidade das paixões extremadas, a submissão do indivíduo ao grupo e, por fim, a amargura dos sacrifícios inúteis ou traídos (FURET apud BRUNETEAU, 2004, p. 44).

Segundo Bruneteau, os anos pós-guerra constituem um verdadeiro

“laboratório experimental” da violência. Com a militarização e a brutalização geral

dos comportamentos sociais e das práticas políticas, fora apagada a fronteira entre a

esfera civil e a esfera militar, entre a guerra e a política, entre o inimigo exterior e o

inimigo interior, entre as violências de guerra de um lado, as violências sociais e as

violências políticas, do outro. “Numa perspectiva evolucionista, uma sociedade

liberal em putrefação é condenada, de maneira impiedosa, a ceder o lugar à visão

idílica da pureza, representada por uma Comunidade völkische em ascensão”

(op.cit., p.45).

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1.3. A MATRIZ POLÍTICA

A matriz política procura desvelar a essência do poder totalitário. Nela, Claude

Lefort revela que o totalitarismo nasce das ambigüidades, dos vícios e das

imperfeições da própria democracia.

1.3.1. A indeterminação democrática

Lefort procura compreender, à maneira de Tocqueville, o que faz da

democracia moderna uma forma de regime político e de sociedade que torna efetiva

a liberdade, ao mesmo tempo em que aponta os seus problemas. É por oposição ao

totalitarismo que o autor se propõe a compreender a essência da democracia. Falar

do poder totalitário, portanto, é falar sobre o papel da liberdade. Porém, para revelar

o pleno sentido da liberdade é preciso revelar a importância do seu papel na

experiência democrática. E para explicar o papel da liberdade no regime

democrático é necessário comparar a experiência deste regime com a de outras

formas de governo, em particular a monarquia absolutista e o regime totalitário.

Segundo Lefort, é somente à luz das proibições que imperavam nesses dois últimos

regimes que a importância da liberdade no regime democrático aparece com

clareza.

Para compreender essa diferença, explica Lefort, é preciso adotar uma

concepção política da sociedade. Isso significa compreender o vínculo estreito que

existe entre um determinado poder e uma determinada configuração de relações

sociais. O que pressupõe entender a maneira pela qual uma sociedade se diferencia

da outra, os elementos que constituem a sua ordem interna e finalmente a relação

da sociedade com o resto do mundo. Para isso, é preciso descobrir o que assegura

a coesão e a unidade social, a natureza do alicerce que sustenta o conjunto do

edifício social, isto é, descobrir a matriz da sociedade, o que permite fazer dela uma

sociedade de fato.

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De acordo com Lefort, avaliar o sentido da liberdade é começar por relembrar,

antes de tudo, que todas as liberdades fundamentais – a livre movimentação, a

liberdade de opinião, de expressão, de associação, de reunião etc. – nem sempre

existiram no passado. A ausência de liberdade que imperava, pode ser ilustrada

pelos laços de dependência pessoal que ligava a vida do camponês ao seu amo, ou

pela condenação daqueles que se atreviam a disseminar idéias heréticas contra a

Igreja ou a questionar a autoridade absoluta do monarca. Na sociedade totalitária, a

ausência de liberdade se traduz pelo controle permanente exercido pelo poder sobre

os súditos, de tal modo a manter as suas ações em conformidade com o discurso

ideológico. Essa ausência de liberdade é revelada pela existência de campos onde

são encarcerados todos aqueles suspeitos de desvio ou passíveis de representar

uma ameaça para a comunidade.

Mas todas essa considerações não bastam para o autor. Para todos aqueles

que, como ele, prezam a democracia, o problema essencial é compreender a matriz

da liberdade. Perguntar por que a liberdade costuma reger as relações entre os

homens nas sociedades democráticas, enquanto, por outro lado, o poder de

dominação sempre reinou na sociedade medieval, e a opressão sempre imperou no

regime totalitário. A pergunta decisiva à qual todo o pensamento de Lefort procura

dar uma resposta é: de onde surge a liberdade política e qual a natureza da mutação

política que permitiu instaurar a liberdade do regime democrático?

A importância desse questionamento não é meramente acadêmica, para o

autor. Ela é eminentemente prática, uma vez que com a descoberta da matriz da

liberdade nas relações sociais, também poderão ser descobertas as condições de

sua conservação e, sobretudo, a natureza das ameaças que pairam sobre ela.

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1.3.1.1. A sociedade como ordenamento (mise-en-forme) da coexistência

humana

Ao efetuar uma breve comparação da sociedade democrática com a rival

totalitária, Lefort descobre que elas não diferem apenas pela forma de seu governo

respectivo, mas, sobretudo, “pelo ordenamento (mise-en-forme) da coexistência

humana” (1986, p.256), do relacionamento social, e conclui que cada uma delas

apresenta um ordenamento específico. O que mais interessa ao autor é poder

descobrir a singularidade de cada uma dessas configurações sociais. Para ele, na

raiz de toda configuração social, não existe nada além da sociedade per si. É a

própria sociedade que se coloca em sentido e o importante é procurar descobrir o

conteúdo desse sentido. Uma sociedade, para Lefort, nada mais é que um

determinado ordenamento de significados ou, para emprestar a expressão do autor,

um “espaço de inteligibilidade” (op.cit., p.20). Desse modo, pertencer à mesma

sociedade significa compartilhar um conjunto de valores e de referências que

possam dar um sentido à sua própria vida, e onde é possível se orientar no mundo.

Toda análise social que permita descrever certo número de fatos, analisar as

relações que existem entre eles e até mesmo elaborar um modelo que reproduz o

conjunto dessas interações, parte da suposição de que os fatos que o analista tenta

identificar existem per si. Contudo, é essa hipótese que entra em conflito com o

espaço de inteligibilidade. O que faz a estranheza do estrangeiro, explica Lefort, é o

fato de ele ter um comportamento ininteligível para nós, uma vez que não podemos

entender as marcas de referência com as quais ele se orienta no mundo.

Para Lefort, uma sociedade nada tem de objetivo: “Os fatos falam para nós

em razão de uma elaboração, cujos princípios não são dados pela experiência

natural ou pela experiência científica” (op. cit., p.20). Em outros termos, não existem

fatos em si. Eles existem apenas para nós, uma vez que dependem de um sistema

de representação dentro do qual eles recebem um significado. Esse sistema de

representação que comanda o ordenamento (mise-en-forme) do espaço social, bem

como o acesso ao mundo de cada um dos seus elementos, é chamado pelo autor de

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simbólico. À luz do que precede, o autor conclui que o espaço social surge somente

no processo de mise-en-forme do mundo pela sua matriz simbólica.

Compreender uma sociedade significa então perceber o seu dispositivo

simbólico, poder esclarecer o jogo de oposições “em virtude das quais as

representações sociais são identificadas e articuladas uma em relação às outras”

(1979, p.290). Significa compreender a matriz dos princípios que regem a

diferenciação e a articulação do espaço social em um grande número de estatutos,

papéis, lugares, e que comandam ao mesmo tempo “as marcas de referência em

virtude das quais a experiência da coexistência se ordena” (1986, p.257). A essência

do social resulta da experiência da sociedade. Compreender essa experiência nada

mais é do que descobrir o conjunto de valores e de significados que comanda a

relação da sociedade consigo própria e com o resto do mundo.

1.3.1.2. O lugar do poder como pólo simbólico

Contudo, a discussão sobre o sentido da sociedade deixou de lado a pergunta

de onde partiu a investigação sobre a origem da formação da sociedade? Qual a

natureza do vínculo que sustenta o edifício social na sua totalidade e que assegura a

coesão desse espaço de inteligibilidade?

Para Lefort, também o poder é, antes de tudo, um pólo simbólico, o lugar pelo

qual e dentro do qual a sociedade instaura a sua unidade e encontra os valores em

função dos quais ela se diferencia e se articula. Isso significa que o lugar do poder é,

por excelência, o lugar do simbólico e, como tal, ele é constitutivo da sociedade.

Sem ele, a sociedade permaneceria invisível a ela mesma, ela não poderia conhecer

a sua própria unidade nem as suas divisões internas. Sem ele, a sociedade não

poderia existir:

A presença desse lugar implica em uma determinação e uma figuração singular do espaço social, de suas divisões internas e de seus vínculos, principalmente das classes; e também das dimensões simbólicas segundo as quais esse espaço se ordena;

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quer dizer, se diferencia e se relaciona consigo mesmo – entendo por isso dimensões políticas (na acepção particular do termo), econômicas, jurídicas e culturais. Ora, eis o que deveria constituir o objeto da análise (LEFORT, 1987, p.98).

1.3.1.3. Democracia, monarquia e totalitarismo

A questão da liberdade pública se resume, para Lefort, a um esforço para

decifrar as condições de um devir da liberdade. E como a experiência dos regimes

monárquicos, totalitários e democráticos tem demonstrado que apenas esse último

conhece a liberdade política, a questão principal é tentar descobrir qual a fonte da

liberdade e, sobretudo, como conseguir a sua conservação.

Em outras palavras, Lefort faz a seguinte reflexão: se é verdade que com o

advento da sociedade democrática tem-se a instauração da liberdade política e, se é

verdade que com o totalitarismo (que surge dos escombros de uma democracia em

crise), tem-se a ruína dos Direitos do Homem, então significa que o questionamento

sobre a origem e o potencial da liberdade se confunde com a busca das condições

favoráveis ao advento da democracia e da sua conservação. Nessa perspectiva,

pergunta ele, o que caracterizaria o lugar do poder democrático? E qual o sentido da

mutação em favor do qual ele aparece?

Ao comparar a democracia com os regimes monárquico e totalitário, a maior

originalidade desse regime democrático reside no seu caráter de inapropriação, que

Lefort chama de “poder vazio”, uma vez que o exercício do poder democrático, a

exemplo do jogo de baralho, é submetido a uma redistribuição permanente das

cartas do poder. Em contraste, o poder do líder totalitário e do monarca é

incontestável, ‘com cartas marcadas’. Desse modo, Lefort não hesita em afirmar que

a liberdade política só pode ser preservada enquanto existir a proibição de se

apropriar do poder no sentido de confisco pelos depositários da autoridade pública.

Apenas a autoridade do poder para um exercício limitado do poder pode ser

conquistada, e não o poder em si, a posse do poder, isto é, enquanto o lugar do

poder permanecer vazio, inocupável. Essa afirmação suscita duas indagações de

Lefort: em primeiro lugar, por que existe um vínculo tão estreito entre a liberdade

pública e a inapropriação do poder? Em segundo lugar, como explicar a transição do

poder incorporado na pessoa do Rei ao poder de ninguém?

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No que diz respeito à primeira pergunta, a impossibilidade de se apossar do

poder é indissociável do reconhecimento da legitimidade da competição política.

Pois, se um grande número de candidatos não pudesse competir para conquistar o

poder, isso significaria que as eleições seriam falsas. Neste caso, as eleições seriam

apenas uma máscara, ou seja, os novos detentores do poder ganhariam somente

uma legitimidade aparente, um verniz democrático atribuído pelo veredicto popular.

Para ser efetiva, uma redistribuição periódica das cartas do poder pressupõe

uma abertura efetiva da competição política para todos aqueles que julguem ter o

direito ao seu exercício e que estejam dispostos a defender a sua respectiva causa

ante àqueles que foram convocados a escolhê-los. Por outro lado, a legitimidade de

uma competição política pressupõe também legitimar a existência do conflito, ou

pelo menos da sua expressão. Com efeito, se os postulantes ao poder não tivessem

a liberdade de defender as suas convicções, quaisquer que fossem, isso significaria

que existiria, em algum lugar, um outro poder guardião da ordem, “guardião da doxa”

segundo Lefort, ao qual todos devem obedecer.

Aos olhos do autor, a liberdade não é um simples atributo natural do homem

que as sociedades do passado procuraram abafar. A liberdade caracteriza, ao

contrário, o tipo de vínculo que une os indivíduos num espaço social determinado e

a partir do qual o poder deve ser regularmente redefinido. De maneira ainda mais

precisa, acrescenta o autor, a liberdade é inseparável do questionamento da ordem

estabelecida. A legitimidade do debate sobre uma determinada ordem estabelecida

é o que distingue uma sociedade democrática de todas as outras formas de

sociedade.

Na sociedade medieval a ordem monárquica era considerada intocável,

portanto era uma violação expressar publicamente quaisquer dúvidas sobre a

legitimidade do poder absoluto do rei. Uma comparação com a ordem totalitária não

é menos esclarecedora. Neste regime, a exemplo da ordem monárquica, o poder

não deve ser o objeto de uma competição política aberta. Nele, não pode haver um

espaço para um debate político que possa ser subtraído do seu controle. Desse

modo, o caráter irremovível do chefe carismático significa que, literalmente, o führer

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é a sociedade, ou seja, a sociedade constitui um corpo orgânico no qual o rei

simboliza a cabeça. Essa representação significa que a sociedade não possui

nenhuma exterioridade em relação ao poder. A sociedade constitui de algum modo,

a extensão do poder.

No que tange à segunda pergunta, a transição do poder incorporado ao poder

de ninguém, o regime totalitário constitui uma exata inversão do modelo

democrático. Enquanto neste, a alternância regular do poder marca a separação do

poder com a sociedade, possibilitando assim a autonomia do espaço social em

relação aos depositários do poder, no primeiro, em contraste, a identificação total do

poder com a sociedade tem por efeito que, em direito, a sociedade não goza de

nenhuma autonomia, ela significa apenas um mero “espaço privado”. Juridicamente,

não existe nada que aconteça na sociedade que não diz respeito ao Poder. E para

caracterizar a situação da liberdade pública sob esse regime basta apenas dizer

que, por via-de-regra, nenhum tipo de comunicação, nenhuma forma de expressão

do pensamento e da opinião pode escapar ao controle do Poder.

O fato totalitário se define, segundo Lefort, pela “consubstancialidade do

Estado e da sociedade civil”. Interpretando Soljenitsyne e Orwell, Lefort observa que

o totalitarismo se constitui a partir da negação da divisão social, a qual se afirma no

fantasma de um Povo-Uno, de um Partido-Nós, de “um indivíduo em que se realiza

fantasticamente a unidade de uma sociedade puramente humana (...) como se não

houvesse nada em torno dele, como se ele tivesse absorvido a substância da

sociedade, como se, ego absoluto, pudesse se dilatar de maneira infinita sem

encontrar nenhuma resistência nas coisas”.

A ideologia totalitária, que nega toda singularidade, contém um apelo à

unidade que é preciso impor pelo terror. É nessa negação da diversidade - e,

portanto da singularidade - que entra em cena os falsos processos nos quais os

acusados servem “a forjar adversários imaginários, cujo aniquilamento demonstraria

que o Partido é todo poderoso, o Povo-Uno, a sociedade de direto indivisível”. O

partido único traduz essa redução da sociedade a uma única ideologia ou até a um

único homem. Hitler encarnou assim a utopia coletiva de uma Sociedade-Una se

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realizando no Uno, concentrando em suas únicas mãos, toda a potência, a vontade

e o saber.

Em vez do fantasma totalitário, a sociedade democrática corresponderia a

uma vontade de unificar uma sociedade sem abolir as suas divisões, pois longe de

enfraquecê-la, os conflitos alimentam a vida comum. Tal é o paradoxo da

democracia: uma encenação política, dentro da qual se produz uma competição que

deixa transparecer a divisão, sendo essa mesma divisão constitutiva da própria

unidade social. Lefort condena a pretensão totalitária de estabelecer uma sociedade

sem classe, ou homogênea sob o aspecto racial, onde todos os indivíduos seriam

idênticos, e ainda sublinha assim a dimensão conflitante de toda democracia. O

regime democrático é marcado pelo selo da indeterminação, pela ausência de

certeza, e ele se situa, neste aspecto, numa perspectiva de história aberta: a

democracia caracteriza-se como a sociedade histórica por excelência, sociedade

que, em essência, acolhe e preserva a indeterminação, em contraste notável com o

totalitarismo que, se edificando sob o signo da criação de um homem novo, é

organizado, na realidade, precisamente em oposição a essa indeterminação.

Segundo Lefort, essa indeterminação democrática é caracterizada por um processo

de desincorporação dos indivíduos.

No regime monárquico, o poder estava concentrado na autoridade do Rei,

verdadeiro mediador entre os homens e o mundo divino. De acordo com Ernst

Kantorowicz18, o antigo regime era composto por um número limitado de pequenos

corpos que procuravam dar aos indivíduos as suas marcas de identificação. E esses

pequenos corpos eram organizados no seio de um grande corpo fictício no qual o

corpo do Rei fornecia a réplica, a substância e a garantia de sua integridade.

Ao contrário desse desejo do Uno, de totalidade, que se manifesta nos

regimes monárquico e totalitário, o lugar do poder no regime democrático é vazio,

desencarnado, uma vez que os governantes exercem o poder sem incorporá-lo e

18 Os dois corpos do rei: um estudo sobre teologia política medieval, 1998.

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sem se apossar dele. O poder - e não a autoridade do poder, nem o seu exercício -

se torna assim um pólo simbólico que “manifesta uma exterioridade da sociedade

com ela mesma”. A razão pela qual o poder se torna um lugar vazio decorre dele

nascer das divisões internas da sociedade, do social enquanto dividido.

No entanto, existe um perigo que pesa sobre toda sociedade democrática,

decorrente dos seus conflitos internos: a tentação de superar as divergências que a

sociedade carrega em seu seio. O perigo de surgir um indivíduo que encarne a

totalidade e a unidade social, prometendo acabar definitivamente com as divisões e

os conflitos sociais. Nesse sentido, segundo Lefort, o totalitarismo pode nascer da

própria democracia e da vontade de superar os seus conflitos.

Segundo Lefort, existe um vínculo estreito entre dois aspectos: o poder vazio

(inapropriável) e o espaço público de comunicação, independente do poder. Esse

vínculo não significa que um dos elementos seja o fator causal do outro, mas indica

que ambos são interdependentes. Pois, para que o poder seja inapropriável é

preciso que haja um espaço público que escape a seu controle e, reciprocamente,

para que tal espaço possa ser constituído, é necessário que o lugar do poder esteja

vazio. Se a indeterminação do poder é indissociável da estrutura das relações

sociais, convém responder a duas perguntas, segundo o autor. De onde surgiu esse

modelo de sociedade caracterizado por esses dois aspectos? E sobre a questão do

surgimento do totalitarismo a partir da própria democracia, de que maneira se

instaura um espaço de inteligibilidade onde o poder se identifica com a sociedade,

negando-lhe assim qualquer autonomia?

1.3.1.4. A democracia como sociedade indeterminada

Segundo Lefort, descobrir o surgimento da democracia significa desvendar a

natureza da mutação que comandou a transição da monarquia absolutista para a

democracia. Explicar essa mutação pressupõe, por sua vez, esclarecer o

fundamento de ambas, isto é, examinar em primeiro lugar o que desapareceu com a

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queda da ordem monárquica, e descobrir, em seguida, a base sobre a qual

repousava o poder incontestável do monarca, como representação de uma ordem

política e social, até então tida como imutável. Sendo assim, Lefort começa

esclarecendo que o principal fundamento da ordem monárquica é o de ser uma

sociedade comandada por um poder transcendental, ou pelo menos por uma

instância superior (justiça, razão) cujas imperfeições da sociedade humana não

podiam afetar. Sobre a ação de tal poder a ordem terrestre era considerada

imutável.

O monarca era o verdadeiro mediador entre a origem do social e os homens,

e gozava de um poder que ninguém ousava contestar. Com a queda do poder

monárquico, desmorona a crença em uma base transcendental do social. Esse

desaparecimento assinala que a sociedade não aceita mais que a ordem que a

regula seja previamente definida em algum lugar, no Ser: “a sociedade não se

concebe mais como sendo fundada pelo Ser”, explica o autor. Na sociedade que

passa a substituir a monarquia há, portanto, uma recusa de uma determinação

natural ou sobrenatural da ordem humana. “Prevalece a convicção de que não existe

nada no Ser que possa levar uma sociedade a tomar uma forma predeterminada”.

Em outras palavras, a sociedade democrática é indeterminada, na sua

essência. Tal indeterminação se traduz pela constituição de um espaço público no

qual cada um possa defender suas idéias sobre uma ordem social justa. Isso

implica no reconhecimento da legitimidade do debate e do conflito. Desse modo, a

unidade da democracia é inseparável do reconhecimento das suas divisões.

A nova configuração das relações sociais, que surge com o regime

democrático, parte da crença de que a ordem social não tem fundamento per si, que

ela é, portanto, indeterminada. Doravante desprovida de qualquer fundamento, a

constituição da ordem social resulta de um debate permanente. A democracia

permanente é indissociável de uma dinâmica da liberdade que marca esse regime

com uma indeterminação constitutiva. A democracia, afirma Lefort, é o regime pelo

qual a questão da sua ordem se torna objeto de discussões incessantes. O debate

tem como conseqüência a constituição de um espaço público de discussão, “sem

precondição, nem avalista”, acrescenta o autor, e como principal resultado, uma

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redistribuição periódica das cartas do poder. Na ausência desses dois elementos, o

debate seria inevitavelmente viciado e um conflito não deixaria de surgir entre o

caráter indeterminado desse regime político e a pretensão do governo instituído de

se arrogar o poder em benefício próprio.

A impossibilidade de se apropriar do poder e o debate permanentemente

aberto, sem condição prévia, sugerem que o poder não tem uma identidade definida

e, desse modo, nenhuma representação pode lhe corresponder. É por causa da

ausência dessa identidade, afirma Lefort, que o poder se torna inapropriável. “A

negação da realidade substancial do poder corresponde à negação da realidade

substancial da sociedade” (LEFORT, 1981, p.156). Sociedade e poder são

doravante indeterminados.

Em síntese, a competição política implica numa redistribuição periódica das

cartas do poder, que por sua vez é inseparável da encenação (mise-en-scène) de

um conflito e do reconhecimento da sua legitimidade. Defender a idéia de um poder

vazio, inapropriável, tem como principal conseqüência a instauração de um espaço

público no qual as relações entre os homens são subtraídas à autoridade do poder.

Todavia, em período de crise, com a exacerbação dos conflitos que opõem os

homens entre si, alguns podem ser levados a conclusão de que o regime

democrático nada mais significa do que a destruição pura e simples da coesão social

e que é precisamente nele que se encontra a fonte de todos os problemas.

Incapazes de perceber a unidade da democracia, observa Lefort, os homens

passam a confundir “coesão social” com “união orgânica do corpo social” e a

acreditar que somente com a restauração dessa última haverá salvação.

Trata-se de situações-limite que podem conduzir a um investimento fantástico

nas representações que sinalizam uma identidade e uma unidade sociais

reencontradas. É precisamente a partir daí que começa a aventura totalitária,

observa o autor. Ou seja, quando predomina o sentimento de que a democracia não

representa nada mais do que a destruição do vínculo social, tornando-se assim a

fonte de todos os problemas sociais, os indivíduos estão maduros para abraçar um

projeto de restauração de uma Sociedade–Una, afinada consigo mesma e que

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possa acabar com os conflitos decorrentes do “egoísmo exacerbado” da sociedade

democrática. A representação de uma Sociedade–Una marca uma ruptura radical

com o modelo democrático, uma vez que acaba com a divisão social, com o lugar

vazio do poder e finalmente, com a luta incessante pelo poder.

Em outros termos, a aventura totalitária é baseada sobre “um modelo de

sociedade livre de conflitos” e, deste modo, livre do problema da indeterminação. Ela

se baseia na recusa do reconhecimento de que a divisão social é o resultado

inelutável da sociedade como tal. Contudo, afirma Lefort, o sucesso de tal

empreitada somente pode desembocar no terror comprovados pelo imenso aparato

policial do regime totalitário, nas deportações em massa, nos campos e finalmente

na morte.

Para Lefort, as raízes do totalitarismo se encontram precisamente na própria

democracia, quando desaparece a base transcendental do social. Nessa situação,

prevalece a afirmação de uma ordem humana autônoma, pura criação do homem.

Muito mais do que isso, a democracia marca o advento de homens independentes e

iguais. Ninguém ocupa mais a posição de mediador. Doravante, todos são

habilitados a se pronunciar sobre a forma que deve revestir uma ordem social

legitima. A democracia inaugura assim uma dinâmica social na qual um maior

número de indivíduos se pronuncia sobre as questões de interesse geral. No

entanto, tal dinâmica se torna incompatível com a conservação de uma sociedade

unificada. Pois, deixado a ele mesmo, o debate que nasce de homens livres e iguais

em direito só pode provocar divergências e finalmente resultar em conflitos.

Como explicar, indaga o autor, o vínculo estreito entre esse projeto de união

orgânica do corpo social e esse terror generalizado? Por que razão essa união

orgânica que o regime totalitário pretende instaurar, implica invariavelmente num

regime policial infinitamente mais impiedoso do que o do regime monárquico? Todo

esforço para instaurar um corpo social coeso reside precisamente no desejo de

superar a divisão social, uma vez que as oposições que dela decorrem são

percebidas como a raiz da decomposição da sociedade democrática.

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A principal conseqüência disso é que, para que a Sociedade–Una seja

conservada, a dinâmica interna do processo democrático deve ser quebrada com a

proibição do livre-debate. Mais precisamente, o regime totalitário interpreta toda

manifestação heterodoxa como uma agressão, até mesmo como uma conspiração

fomentada contra a unidade do povo. E, para que a proibição de toda dissidência

seja levada a sério ela persegue, de maneira implacável, todos aqueles de quem

suspeita representar uma ameaça à sua unidade. Para Lefort, a figura moderna do

Uno somente pode ser mantida pelo terror. Desse modo, o totalitarismo se torna um

regime de servidão, pois para perdurar, o Poder deve transformar a sociedade no

“seu espaço privado”. O Poder deve tomar posse da sociedade, fusionar com ela:

Poder e Sociedade devem se tornar Uno. Contudo, se é verdade que a Sociedade–

Una se conjuga inevitavelmente com o terror, convém descobrir o que leva os

homens a querer esse regime.

Para Lefort, a gênese do totalitarismo pode ser compreendida apenas a partir

das ambigüidades da própria democracia. Isso significa que na essência da

democracia, como já foi exposto, “existe uma indeterminação, isto é, uma

insuperável incerteza” (op.cit. p.29). Esta indeterminação expressa-se tanto no plano

coletivo, quanto no individual. O que caracteriza o regime democrático é a ausência

de uma identidade bem definida. A representação que o poder oferece hoje, para

toda a sociedade, pode muito bem desaparecer amanhã. Assim, o indivíduo da

sociedade democrática não tem um papel ou uma identidade social predeterminada.

De maneira incessante o indivíduo deve descobrir o que tem de fazer e o que tem de

ser, isto é, agir em defesa de sua própria legitimação, compreendendo o significado

de sua existência.

A experiência da autonomia democrática significa, ao mesmo tempo, uma

incerteza insuperável quanto à própria finalidade do indivíduo e quanto à da

sociedade. Para Lefort, “o indivíduo é condenado a ser trabalhado pela incerteza”

(LEFORT, 1986, p.214). Processo este que pode tornar-se angustiante e despertar

um medo da mudança ou uma aspiração para um retorno aos verdadeiros valores

ancestrais, valores esses sobre os quais foi edificada uma sociedade imutável, hoje

ameaçada pelo perigo.

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Essa breve comparação entre a democracia, monarquia e totalitarismo, pode

levar a acreditar que não há nada de muito original nas idéias de Lefort. Afinal de

contas, pergunta Hugues Poltier19, toda a sua proposta se resume a dizer, em

termos complicados o que já se sabe, isto é, que a democracia é um regime de

liberdade, a monarquia é um regime absolutista e o totalitarismo é um regime de

servidão. John Stuart Mill20 já defendia a idéia de uma ordem política que garantisse

as liberdades de consciência, de religião, de expressão e de acesso ao

conhecimento. Para este representante da escola utilitarista inglesa, a liberdade é

imprescindível para a felicidade e a busca da verdade.

A originalidade de sua obra está em ter identificado o conceito de

‘indeterminação democrática’ para elucidar o enigma do surgimento do totalitarismo.

Todavia as concepções de Lefort e de Mill estejam próximas no que tange à defesa

da liberdade, elas divergem quando se trata de explicar as raízes da liberdade e da

opressão. Enquanto que para o liberalismo, a liberdade tem a sua raiz na natureza

humana, a mesma nasce, para Lefort, a partir do desmoronamento de uma ordem

social fundada sobre uma base transcendental. Além do mais, na sua análise do

totalitarismo, o liberalismo revela-se limitado. Na melhor das hipóteses, as

explicações que ele oferece, se restringem a vontade despótica de um tirano ou a

necessidade de superar a desordem decorrente de reivindicações explosivas.

Embora o liberalismo perceba que o totalitarismo constitui uma tentativa de solução

para algo de negativo, nunca consegue discernir o que torna o totalitarismo atrativo.

Desse modo, segundo Poltier, a maior contribuição de Lefort em relação à tradição

liberal é a de ir além de uma mera denúncia da opressão totalitária e de procurar

revelar a sua matriz, o seu mecanismo, bem como a sua dinâmica de

funcionamento.

O sentido da mutação que provoca o desmoronamento da sociedade

democrática e o advento simultâneo do totalitarismo se encontra nesse labirinto

inextricável onde os indivíduos são impelidos por uma “sociedade inapreensível”,

segundo a expressão de Lefort (1981, p.180), uma sociedade sempre em busca de

uma saída, de uma definição. Em período de crise, esses mesmos indivíduos podem

19 La pensée du politique de Claude Lefort, une pensée de la liberté, 1993. 20 Da liberdade, 1859.

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ser levados a acreditar que tudo à sua volta está desmoronando. Abalados pela

perda de sua identidade e pelas antigas certezas, sem poder orientar-se no mundo,

a tentação cresce para abraçar a utopia de uma Sociedade–Una, apresentada como

a solução dos problemas políticos e sociais de seu tempo. Para Lefort, essa

aspiração de restaurar a coesão de uma comunidade, de um corpo social orgânico

unido em torno do mesmo desígnio e senhor de seu próprio destino, só pode ser

compreendida à luz do desejo de superar esse “vazio” que a destruição do poder

“cavou na substância da comunidade” (LEFORT, 1986, p.39).

Homens que passaram pela experiência dupla de desintegração das antigas

certezas e da própria identidade se tornam vulneráveis “à tentação das certezas

reencontradas” (op.cit., p.275), da imagem sedutora de um mundo ordeiro onde cada

um ocuparia um lugar designado. O totalitarismo está arraigado na experiência de

desamparo ante o vazio que se encontra no âmago da democracia. Há nele a

presença do medo provocado pela dissolução das marcas da certeza, um medo da

indeterminação, do desconhecido. É com relação a esse medo que responde essa

necessidade premente de preencher esse vazio da substância comunitária,

procurando dar a ela uma identidade e uma representação bem definida.

Em suma, o totalitarismo é uma tentativa desesperada e contraditória de

eliminar a incerteza que se encontra no centro da experiência política moderna. É

desesperada porque nenhum decreto pode restabelecer as crenças que

fundamentavam o antigo regime. E é contraditória porque a autonomia do social é

indissociável da condição de indivíduos autônomos e iguais e o reconhecimento

dessa independência é, por sua vez, inseparável da aceitação da legitimidade do

conflito. Intrinsecamente contraditória, a tentativa moderna de restaurar o Uno pode

levar ao pesadelo totalitário.

Na visão de Lefort, não basta afirmar para explicar o destino da liberdade, que

a representação do Povo–Uno é inseparável do terror. É preciso ir além e desvelar

que precisamente no âmago da democracia - e em razão das suas próprias

contradições – é onde nasce a tentação do Uno totalitário. “De nada adianta ignorar

a atração do Uno, pois ele é constitutivo do nosso modo de existência política”

(LEFORT, 1983, p.84). Defender a liberdade é logo inseparável de uma crítica à

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tentação do Uno. Eis aí a missão da filosofia política: desvendar o vínculo essencial

que une a liberdade à divisão social e à indeterminação política, e relembrar que a

defesa da liberdade exige que os homens estejam preparados para resistir ao

fantasma do Uno.

1.3.2. A tirania da maioria

O que significam minoria e maioria? Na prática da democracia, Aristóteles

(apud SARTORI, 1994, p.112) já observava que a justiça democrática havia se

tornado de fato, “a aplicação de uma igualdade numérica, não de uma igualdade

proporcional” (A definição de Aristóteles registra o fato de que, na pólis, o ideal de

igualdade havia se transformado rapidamente na tirania aritmética, analisada por

Tocqueville. Do seu lado, Tocqueville observou que há um gosto “degenerado” pela

igualdade “que leva o fraco a arrastar o forte para o seu nível”. Simmel (ibidem) faz a

observação complementar: para muitos, disse ele, igualdade significa pura e

simplesmente “igualdade com relação a seu superior”.

Seria esta questão somente numérica? A maioria pode ser constituída por

pessoas detentoras de certo poder, que o utilizam em benefício próprio. Ela é

também o conjunto de pessoas que decidem sobre os costumes e a concepção do

mundo a ser adotada. Em todo caso, a maioria é sempre ‘retriz’ dos costumes. Em

uma democracia ela pode ser igualmente legisladora e até executora das leis,

dispondo, assim, de um poder considerável que inexiste em outro regime político.

Será que a maioria não poderia ser tentada a abusar desse poder? Qual o

significado da maioria democrática? O que significa a tirania da maioria?

Dois grandes escritores, Alexis de Tocqueville21 e Henri Bergson22,

analisaram os limites éticos do poder da maioria, sendo para esse último, no

contexto de dois tipos de sociedade, a sociedade aberta e a fechada. Para ele,

existe a moral fechada - que corresponde à sociedade fechada (constituída por toda

sociedade particular) e a moral aberta – da sociedade aberta (que se abre para toda

21 Da democracia na América, 1848. 22 Les deux sources de la morale et de la religion, 1932.

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a humanidade). Ambos os autores estão de acordo sobre a distinção dos dois tipos

de moral: uma que se restringe aos limites de uma sociedade na qual se aplica e

outra que é de toda humanidade.

Se Tocqueville (1981, p.297-298) não fala explicitamente dos dois tipos de

moral, ele as menciona, porém, de forma indireta quando observa que se um dia a

moral estritamente social viesse a desaparecer, somente ficaria então a moral

humana, que contempla a humanidade na sua totalidade: “Mas a própria maioria não

é toda poderosa. Acima dela, no mundo moral, encontram-se a humanidade, a

justiça e a razão e no mudo político (encontram-se apenas) os direitos adquiridos”.

De acordo com as interpretações de Bergson, tal trecho pressupõe um eventual

conflito entre as duas morais e indica como pode ser solucionado: “pela vitória da

moral aberta voltada para a humanidade inteira”, o que traz um valor que a fechada

não possui. Assim, a moral fechada, também denominada por Bergson de moral

social tem como principal objetivo assegurar a conservação da ordem social. Ela

costuma reservar certos direitos apenas a uma classe particular da sociedade, e os

proibir a outras, permitindo a conservação de certos privilégios para a maioria e,

dessa maneira, mantém a perenidade da ordem social.

Tocqueville por seu lado, já perguntava: em que situação se exerce a tirania

da maioria? Será que se trata de um produto de uma sociedade fechada ou de uma

sociedade aberta? Será que a moral da maioria deve ter, por principal alicerce, uma

sociedade específica ou a humanidade inteira? De fato, Tocqueville não explica o

que seria uma moral humanista. Para isso, é preciso recorrer a Bergson que

desenvolve as mesmas idéias em As duas fontes da moral e da religião, onde o

filósofo francês nos apresenta os dois tipos de sociedade, a fechada e a aberta, as

quais estão vinculadas respectivamente à moral fechada e a moral aberta.

A respeito da sociedade fechada, Bergson (1932, p.25) observa que “a cada

momento ela tem, por essência, a inclusão de certos indivíduos e a exclusão de

outros”. A exclusão de certos indivíduos, isto é, a exclusão de certas minorias,

constitui, portanto, a base da sociedade fechada. Em uma democracia a maioria

costuma se congregar, o que pode vir a ameaçar as minorias de exclusão. E

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Bergson precisa o significado da moral fechada, ou o que foi denominado

anteriormente de moral social: “Nossas obrigações sociais visam à coesão social:

quer queira, quer não, elas nos imprimem um comportamento semelhante ao da

disciplina ante o perigo do inimigo” (op.cit, p. 27).

Temos assim duas concepções do mundo: a que corresponde a um

nacionalismo fechado, própria da Europa central do século XIX, e a de um

nacionalismo liberal oriundo do Iluminismo, própria da Europa ocidental. De acordo

com Tocqueville, a moral social visa a manutenção da ordem social, com a

conservação das suas estruturas e hierarquia. Mas Bergson vai mais longe: ele fala

de guerra, e pode-se pensar tanto em guerra interior quanto exterior. Nessa

sociedade, a procura da paz só se faz entre semelhantes, entre aqueles que se

reconhecem como iguais a si. O autor destaca o papel central da violência na lógica

de funcionamento da sociedade fechada, quando ela se baseia na exclusão. Desse

modo, a sociedade fechada e a sua moral se constroem sobre a violência e a

exclusão. Mas a questão fundamental para o autor é: a tirania da maioria se

desenvolve numa sociedade fechada ou numa sociedade aberta?

Para responder a questão é preciso de uma definição prévia sobre a tirania da

maioria, que se encontra em Tocqueville (op.cit., p.31): “o que significa, portanto,

uma maioria tomada coletivamente senão um indivíduo que tem opiniões e

interesses contrários a outro indivíduo que se denomina minoria?”. E Bérgson de

acrescentar: não se trata de mero número, quer seja pequeno ou grande. A maioria

e a minoria não se distinguem pelo número, mas pela diferença de opiniões e

interesses. “Diferença”, eis a palavra-chave, segundo o autor. A minoria se

caracteriza pela sua diversidade. Em contrapartida, a maioria é inteiramente

atravessada pela noção de identidade. Encontra-se ali uma maioria de indivíduos

que pretendem ser semelhantes e que se apóiam nessa mesma maioria para fazer

prevalecer uma vontade, que pode ser a de exclusão. Contra a minoria, é sempre

possível exercer certa violência que pode tomar várias expressões. Ela pode se

manifestar quer pela recusa de conceder a certos indivíduos o conjunto de seus

direitos, quer pela situação de desigualdade, com a manifestação de certo

menosprezo a determinados indivíduos, por causa de sua diferença. Tal diferença

evidencia a identidade que une a maioria.

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Nessa perspectiva, parece existir no texto de Tocqueville uma oposição entre

a identidade fundadora da maioria e a diferença que estigmatiza potencialmente ou

realmente as minorias. Segundo ele, a maioria dispõe do conjunto de poderes, como

retriz dos costumes e legisladora das leis que pode também executar. O autor insiste

neste aspecto:

Não existe monarca tão absoluto que pudesse reunir em sua mão todas as forças da sociedade e vencer todas as resistências, como poderia fazê-lo uma maioria revestida do direito de elaborar as leis e executá-las. Aliás, um rei possui apenas um poder material que age sobre as ações e não seria capaz de alcançar as vontades; mas a maioria é dotada de uma força material e moral que age tanto sobre a vontade, quanto sobre as ações, e que impede ao mesmo tempo o ato e o desejo de praticá-lo (TOCQUEVILLE, 1977, p.196).

Assim, é a própria tirania da maioria que é fundadora - no seio da democracia

chamada de sociedade aberta - de uma sociedade fechada onde reina o poder, sem

qualquer restrição, da maioria. Se a verdade encontra-se no maior número, isso

significa que a maioria tem sempre razão. Podemos ter ali a semente de toda

clausura, que toma apoio sobre uma ilusão: a crença de considerar malvado,

monstruoso ou perigoso aquele que é “diferente” da maioria a qual pertence. Neste

ponto, partindo do critério da igualdade, conclui-se a semelhança e afasta-se a

diferença, em um regime que se torna o “reino da simplificação”.

Nessa perspectiva, pode-se dizer que entre maioria e minoria na Alemanha

houve choques de cultura, visões de mundo antagônicas (weltanngschauung) e

confronto entre dois conceitos radicalmente diferentes de moral: uma moral social

fechada para uma maioria em ascensão, centrada numa genuína identidade

völkische, de um lado, e uma moral aberta para uma grande parte da

intelectualidade judaica do outro, de caráter universal, messiânico, inspirada pela

doutrina marxista. Tal a tentativa de Rosa Luxemburgo de tomar o poder, por meio

de uma rebelião em Berlim ou a experiência frustrada de instaurar uma República

dos Conselhos (ou República de Sovietes) em Munique na Bavária, por Gustav

Landauer, revolucionário alemão de origem judaica, que será fuzilado em 1919.

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Esse choque de culturas culminará numa luta implacável entre duas ideologias no

front leste: o nacional-socialismo e o judeu-bolchevismo.

1.3.3. A igualdade bifronte

De acordo com Giovanni Sartori, a igualdade tem um duplo sentido, o de

identidade e de justiça. Essas duas concepções são difíceis de separar, assim como

dois lados opostos de um mesmo corpo. A igualdade pode ser associada,

simultaneamente, tanto à identidade, quanto à justiça. Ela pode significar um ideal

de justiça – direitos iguais para todos, que foi o lema principal da Revolução

Francesa. E também pode se manifestar em termos mais temíveis de identidade –

identidade igual para poucos no sentido völkisch (racial) da palavra. A melhor

maneira de confirmar que o conceito é constitutivamente bifronte, como no mito de

Janus, sugere o autor, “é examinar como a igualdade relaciona-se com a liberdade –

pois a igualdade pode ser o melhor complemento da liberdade, ou o seu pior

inimigo”.

Segundo o autor, a relação entre igualdade e liberdade é uma relação de

amor e ódio, dependendo se queremos uma igualdade que se harmonize com a

diversidade ou uma igualdade que veja desigualdade em qualquer diversidade. E,

certamente, quanto mais a igualdade equivale a ser idêntico, tanto mais uma

igualdade assim concebida alimenta a aversão pela diversidade, pela diferença, pela

auto-afirmação e pela primazia e, assim, em última análise, pela liberdade.

Afirma-se, muitas vezes, que enquanto a liberdade vigora em favor dos

poucos, da mesma forma a igualdade atua como uma força dos muitos (no sentido

de favorecer a força do número). Há, no entanto, uma diferença crucial entre os dois

casos: com os instrumentos da liberdade, nem os poucos nem os muitos têm pleno

êxito em oprimir uns aos outros, ao passo que, em nome da igualdade e com seus

instrumentos, tanto os muitos quanto os poucos podem acabar escravizados.

Para Sartori, a liberdade é o elemento constituinte indispensável da

democracia liberal, mas ela não é - de forma alguma - o elemento constituinte da

democracia em si. Tocqueville identificava intimamente a democracia com a

igualdade e foi levado a enfatizar as implicações não-liberais da democracia.

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Comparecendo à Assembléia Constituinte, Tocqueville declarou: “a democracia e o

socialismo estão ligados por uma palavra apenas, igualdade, mas devemos mostrar

a diferença: a democracia deseja a igualdade na liberdade, ao passo que o

socialismo deseja a igualdade na pobreza e na escravidão”. Na sua visão, a

igualdade - inimiga da liberdade - devia ser procurada no socialismo, ao passo que a

igualdade - em harmonia com a liberdade - devia ser procurada na democracia anti-

socialista, na democracia que aceita o liberalismo. Convém lembrar que o socialismo

na época de Tocqueville tinha uma implicação mais política que econômica e

pretendia ser uma declaração de guerra contra o liberalismo, com a afirmação

drástica da prioridade do Estado sobre o indivíduo.

O aspecto essencial do liberalismo é o da liberdade externa. Trata da

liberdade política, da liberdade para o cidadão em relação à opressão do Estado.

Em verdade, o liberalismo foi aceito no continente e apresentou seus melhores

resultados depois de aprender a lição da democracia jacobina que o precedeu. É

com referência à tradição francesa que Talmon (1952, p.44) enfatiza que a

diversidade dos pontos de vista e interesses estava longe de ser considerada

essencial pelos criadores da democracia do século XVIII. “Seus postulados originais

eram unidade e unanimidade. A afirmação do princípio da diversidade veio depois,

quando as implicações totalitárias do princípio de homogeneidade foram

demonstradas pela ditadura jacobina”. A relação básica entre liberalismo e

democracia, em geral, é traduzida como uma relação entre liberdade e igualdade.

Assim, para separar o liberalismo da democracia, afirma Sartori, podemos dizer que

o liberalismo reivindica a liberdade, e a democracia, igualdade. Inversamente, para

uni-los, dizemos que é tarefa dos sistemas liberal-democráticos combinarem

liberdade e igualdade.

Croce (apud SARTORI, 1994, p.167) oferece uma definição concisa do

espírito liberal em sua forma mais pura ao observar que para “o liberalismo, que

nasceu e continua intrinsecamente antiigualitário, a liberdade (...) é a forma de

promover e produzir não a democracia, mas a aristocracia”. Segundo o autor, a

observação de Croce foi dirigida contra a democracia porque, entre outras coisas,

ele a identificava com a filosofia do Iluminismo. No entanto, em 1936, Croce efetuou

uma avaliação mais equilibrada:

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O liberalismo é tanto amigo quanto inimigo da democracia. Um amigo porque sua classe política é uma classe aberta (...) que se resolve num governo que, por sua própria atividade, ensina aos governados como governar. Mas é um inimigo da democracia quando os últimos tendem a substituir a qualidade pelo número e pela quantidade porque sabem que, ao fazer isso, a democracia prepara o caminho para a demagogia e, sem o desejar, para as ditaduras e tiranias, destruindo a si mesma (op.cit., p.183).

Em última análise, para Sartori, a igualdade tem uma tendência horizontal, ao

passo que a liberdade tem um impulso vertical. A igualdade deseja integrar e

sintonizar. A liberdade é auto-afirmativa e perturbadora. A democracia preocupa-se

com a coesão social e a uniformidade distributiva, o liberalismo valoriza a

proeminência e a espontaneidade. A democracia tem pouca afinidade com o

pluralismo, ao contrário do liberalismo.

Mas, talvez a diferença fundamental seja a de que o liberalismo gira em torno

do indivíduo, e a democracia em torno da sociedade. Segundo Sartori, Ruggiero23

percebeu claramente a inversão que ocorre nas duas perspectivas ao observar que

a democracia acaba por colocar de ponta-cabeça “a relação original que a

mentalidade liberal estabeleceu entre o indivíduo e a sociedade: não é a cooperação

espontânea das energias individuais que cria o caráter e o valor do todo, mas é o

todo que determina e dá forma a seu elemento”, o que se tornou o principal lema da

Revolução Francesa. Walter Lippmann (apud SARTORI, p.168) esclarece esse

ponto de forma mais incisiva ainda: “na disciplina de uma sociedade livre é a

inviolabilidade de todos os indivíduos que determina as obrigações sociais (...), é

aqui, na natureza do homem, entre aqueles que o respeitariam como uma pessoa

autônoma e aqueles que o degradariam a um instrumento vivo, que a questão se

resolve”.

23 Ruggerio (apud SARTORI, 1994, p.167) escreve: “é fato que a aplicação rígida e pouco inteligente do princípio da igualdade tende a mutilar os esforços e benefícios da liberdade, que necessariamente tomam a direção da diferenciação e da desigualdade, e a disseminar, junto com outras qualidades medíocres, também o amor pela mediocridade”.

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1.3.3.1. Igualdades pré-democráticas e democráticas

Isonomia, isegoria e parresia (igualdades gregas de associação, voto e voz

equivalentes às liberdades de reunião e de expressão) são igualdades muito mais

intimamente relacionadas à liberdade liberal e à proteção constitucional do que às

antigas práticas democráticas. Igualdade perante a lei – isonomia – reside no

princípio de que todo homem é igual a qualquer outro em sua dignidade e valor

intrínseco. Assim como a liberdade deriva da luta para se alcançar determinadas

liberdades, a igualdade também se define, historicamente, como o repúdio a certas

diferenças. Igualdade e democracia coincidem apenas no sentido de que o ideal

igualitário pode ser elevado à posição de símbolo por excelência da idéia

democrática. Isso significa que a demanda por igualdade atinge sua maior força e

amplitude no interior de um sistema democrático, mas não significa que não existem

igualdades fora da democracia ou que todas as igualdades são conquistas

democráticas.

Por outro lado, liberdade quer dizer, quando existe de maneira significativa,

liberdade igual, a mesma liberdade para todos. Desta forma, as liberdades também

são manifestações de igualdade. Mas qual é então, a contribuição especificamente

democrática à noção de igualdade? Durante a Revolução Francesa, uma declaração

da Convenção de 29 de maio de 1793, Artigo 2, expressa de maneira muito concisa:

“Igualdade consiste em todos terem os mesmos direitos”. A preocupação suprema

dos revolucionários franceses era: direitos iguais e leis iguais.

1.3.3.2. Liberdade e igualdade

Para Sartori, a liberdade não equaliza em si as oportunidades, e essa ilusão

do liberalismo já foi abandonada. Assim como a liberdade política (liberdade “em

relação à”) é uma condição preliminar e permanente de todos os poderes da

liberdade (liberdades “para”), exatamente pelas mesmas razões, é também a

condição preliminar e permanente para todos os poderes da igualdade. Privar os

iguais da liberdade de “ter voz” significa torná-los iguais em sua falta de voz e nos

abusos que sofrem. (SARTORI, 1994, p. 134).

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Quando a igualdade realiza a liberdade? E qual é o tipo de igualdade inimiga

da liberdade?, indaga o autor. Ao responder, acabamos voltando à natureza da

igualdade bifronte (como Janus), isto é, a igualdade concebida como uniformidade

(no sentido de identidade) ou como justiça. Quando “igual” significa “mesmo”, então

a liberdade constitui, no mínimo, uma perturbação. Se buscarmos gleichschaltung,

mesmice ou uniformidade, devemos ter aversão por diversidade: e, se temos

aversão pela diversidade, não podemos apreciar a liberdade – exceto sendo

flagrantemente incoerentes. Inversamente, acrescenta o autor, aquele que busca a

liberdade, perceberá a igualdade como expansão de seu princípio e, mais

exatamente, como a encarnação dos direitos da liberdade. Sua fórmula não é

“oportunidades desiguais para se tornar igual”, mas “oportunidades iguais para se

tornar desigual”. Para aquele que busca a liberdade, há tanta injustiça em impor

uniformidade àquilo que é diferente, quanto em aceitar desigualdades hereditárias.

Equalizar “todos em tudo” é criar uma situação tão perigosa quanto a que

aceita desigualdade em tudo. No plano dos princípios, a igualdade somente se

combina com a liberdade quando aquela perde seu vínculo com a uniformidade –

com ser o mesmo, ou com ser transformado no mesmo. Assim, o Gerechtestaat, o

Estado Justo que estabelece a justiça, destrói as leis iguais e a igualdade perante a

lei. Rousseau, sem dúvida, afirmaria que ao longo desse caminho o governo das leis

volta a ser um governo dos homens, arbitrário e instável. Quando um Estado se

torna o todo poderoso, não há qualquer garantia de que venha a ser um Estado

benevolente, um Estado que gera igualdade. Ao contrário, é extremamente provável

que não venha a sê-lo. Nesse caso, nossas igualdades desaparecerão com nossas

liberdades.

No que tange a primeira pergunta, a igualdade é uma forma de liberdade no

sentido de ser uma condição da liberdade. E dizer que uma coisa é condição de

outra não é dizer que são a mesma coisa. Partindo da premissa que a igualdade é

uma condição da liberdade, não se pode concluir que, por nos tornarmos iguais,

tornamo-nos, por isso mesmo, livres. Isso depende, sobretudo, do tipo de senhor

que nos tornou iguais.

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Assim, uma sociedade política ditatorial pode impor a participação (todos são

obrigados a votar) e, simultaneamente, negar a liberdade de participação (ninguém

pode votar numa alternativa). É claro que a participação igual não significa

participação livre. A igualdade é de forma alguma, uma condição necessária da

liberdade. “Assim a tese de que a igualdade, e em particular a igualdade econômica,

é a verdadeira liberdade ou até a única liberdade verdadeira, só acrescenta o erro

de uma Igualdade total mítica ao erro de uma Liberdade total única. E a combinação

de dois erros de tal magnitude é sinistra”. Resta, então, a igualdade como uma

condição facilitadora da liberdade. No início da Revolução Francesa, Marat escreveu

a Desmoulins: “Para que serve a liberdade política para os que não têm pão? Ela só

tem valor para os teóricos e para os políticos ambiciosos”. Segunto Sartori, a

pergunta era sensata, mas o curso da revolução mostraria que a resposta foi

totalmente inadequada. Uma liberdade muito irreal é o resultado colhido por aqueles

que reivindicam igualdade, confundindo-a com liberdade. Uma pessoa com fome

pode muito bem chamar o pão de liberdade. No entanto, essa é apenas - e apenas

no curto prazo - uma forma de reivindicar comida. “No curto prazo porque nos

sistemas não-liberais o problema não é resolvido com mais pão, mas com a

eliminação de direito de exigi-lo. Reiteremos firmemente este ponto: ”quem

equalizará os equalizadores” não é uma questão de igualdade – é uma questão de

liberdade” (SARTORI, 1994, p.138-139).

1.3.3.3. Liberalismo e democracia

A relação entre o liberalismo e a democracia também deve ser considerada

em um aspecto mais objetivo: aqui a principal distinção é que o liberalismo é,

sobretudo, a técnica de limitar o poder do Estado, enquanto a democracia é a

inserção do poder popular. Enquanto o liberal se preocupa com a “forma” do Estado,

o democrata está basicamente interessado no “conteúdo das normas” que emanam

dele. O liberal tem uma compreensão melhor do método de criação da ordem social

e é um dos que cuidam da “democracia procedimental”. O democrata é um tanto

indiferente ao método, preocupa-se, principalmente, com os resultados e a

substância, e procura mais exercer o poder do que controlá-lo.

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Em síntese, a interação entre o componente liberal e o componente

democrático em nossos sistemas pode ser descrita da seguinte forma: o primeiro

preocupa-se basicamente com a escravidão política, com a iniciativa individual e

com a forma do Estado. O segundo é particularmente sensível ao bem-estar, à

igualdade e à coesão social. Estamos assim diante de dois modelos de democracia:

uma democracia dentro do liberalismo e uma democracia sem liberalismo.

1.3.3.4. Democracia dentro do liberalismo

Tocqueville (apud SARTORI, p.170) resume o processo da seguinte forma:

“Nossos antepassados tendiam sempre a fazer um uso impróprio da noção de que

os direitos privados devem ser respeitados e nós, por outro lado, tendemos

naturalmente a exagerar a idéia de que o interesse de um indivíduo privado deve

sempre ceder ao interesse de muitos”. O primeiro ponto, segundo Sartori, é que o

crescimento do componente democrático da democracia liberal requer cada vez

mais que levemos em conta o perigo oposto. Uma segunda consideração é que se a

democracia moderna é um depois em relação ao liberalismo, isso não implica que

supere ou ultrapasse o liberalismo, ou que o liberalismo seja menos importante.

Para o autor, a democracia é a consumação, mas não o substituto do

liberalismo. Embora o liberalismo seja um instrumento da democracia, a democracia

em si não é um veículo do liberalismo. A fórmula da democracia liberal é igualdade

através da liberdade, por meio da liberdade, não liberdade por meio da igualdade.

Nessa perspectiva, como Dahl e Lindblom observam:

O Estado-nação só pode fornecer o quadro de referência dentro do qual a boa vida é possível; não pode desempenhar as funções dos pequenos grupos (...). Quanto tento fazê-lo, o Estado-nação só pode fornecer, ou um substituto mais pobre das funções do pequeno grupo, ou uma distorção grotesca delas (DAHL, LINDBLOM, apud, SARTORI, 1994, vol.2, p.172).

Partindo da liberdade estamos livres para chegar à igualdade, mas partindo

da igualdade, não estamos livres para reaver a liberdade. O itinerário não é

reversível. “Até hoje, ninguém mostrou de forma plausível como invertê-lo”, afirma

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Sartori. “É uma previsão óbvia dizer que a democracia acabará por sucumbir outra

vez, caso nos voltemos para a finalidade de uma igualdade maior, em detrimento

dos meios que nos permitem reivindicá-la” (SARTORI, 1994, p.173).

1.3.3.5. Democracia sem liberalismo

Para Sartori, a tese dos oponentes da democracia liberal é, em essência,

simples: a democracia liberal não é a verdadeira democracia, é apenas um

simulacro burguês de uma democracia capitalista. Assim, a democracia autêntica

espera por nós, do outro lado do liberalismo e de suas liberdades enganosas e

repressivas. Não importa com que insistências usem a palavra liberdade para

significar igualdade, persiste o fato de estarmos confundindo coisas diferentes.

Quando temos em mente o problema da igualdade referimo-nos a uma “condição da

liberdade”, enquanto, noutro caso, quando pensamos em liberdade, não nos

referimos mais a uma condição, mas à “liberdade em si”.

Em primeiro lugar, a igualdade não pode ser identificada como liberdade, não

somente porque é apenas uma condição da liberdade, como também porque esse

vínculo entre as duas é apenas contingente. Em segundo lugar, quando

recomendamos a rejeição das liberdades e direitos político-jurídicos afirmando que

são insignificantes ou falsos, o que rejeitamos de fato é um exercício do poder

legalmente disciplinado e limitado. “E qual liberdade maior - vulgo liberdade real –

pode derivar daí é um segredo realmente bem guardado”. Não há nenhuma

plausibilidade na tese de que a liberdade real se segue à conquista da igualdade

material, isto é, da equalização econômica. Como se pode afirmar que a igualdade

das posses ou da falta de posses significa liberdade real, indaga Sartori?

Aqueles que defendem esse ponto de vista se esquecem, evidentemente, de

que o poder do homem sobre o homem não é - ou não é apenas - um aspecto

corpóreo ligado à propriedade. O poder é mais fundamentalmente um fenômeno

relacional.

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1.3.3.6. Democracia, poder e incompetência

Se existe problema fundamental que o liberalismo - e, em sua esteira, a

democracia liberal - realmente solucione, é o problema de domesticar o poder

político. Com a era tecnológica, a ameaça do poder sobre o conjunto da sociedade

aumenta de forma assustadora. Qual é a posição democrática em relação ao

problema do poder? Qual é a solução liberal-democrática ao problema do poder?

Duas visões opostas são defendidas: a primeira visão é que as democracias

continentais – em particular a da Alemanha - deram continuidade, do ponto de vista

histórico, à obra das monarquias absolutas, agindo como poderes equalizadores

supremos que destruíram todos os poderes intermediários. A democracia, segundo

esta visão, significou uma concentração assustadora de poder do Estado, pois os

centros de poder – outrora intermediados entre os cidadãos e o Estado, foram

desmantelados. “Tudo quanto restou é uma planície de súditos que podem ser

facilmente dominados pela única montanha existente” (SARTORI, 1994, p.223).

Enquanto alguns autores vêem com apreensão o desaparecimento de todos

os contra-poderes autônomos, outros denunciam as democracias atuais por tolerar

sob o disfarce da igualdade formal, o crescimento do poder do Estado, o qual pode

ser mais forte que a própria tirania. Por outro lado, o referente da palavra povo não é

o referente da palavra Estado. Podemos falar do Estado democrático como o

“Estado do povo” para indicar que agora existe uma ponte ligando as duas margens

– mas uma ponte não substitui as margens, ela as pressupõe: “Por mais que

brinquemos com a frase: o povo é o Estado, o Estado não é o povo, mas apenas

algumas pessoas em altos cargos e, na verdade, situadas acima do povo. O fato é

que o poder que pertence materialmente ao Estado não pertence ao povo e que

quanto mais esse poder passa para o Estado, tanto menos fica com o povo” (op.cit.,

p.225)

A questão que vem à tona é: o que os de fora (o povo) podem fazer com os

de dentro do Estado? Nem sempre podemos nos transformar todos em pessoas de

dentro. Portanto, o melhor que podemos fazer do lado de fora é reduzir o poder dos

de dentro, e a forma mais segura de fazer isso é difundir o poder. Se quisermos

democracia, teremos de nos contentar com o que ela nos dá. Se, ao contrário,

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quisermos uma “sociedade racional”, preconcebida e bem planejada, teremos de

recorrer aos especialistas e confiar neles. E um mundo de especialistas é aceitável

em relação aos meios, mas não aos fins.

1.3.3.7. Democracia e demofilia

Citando Russell, segundo o qual enquanto a definição ocidental de

democracia é a que consiste na “regra da maioria”, a visão do regime totalitário é a

que consiste nos “interesses da maioria”. Com a democracia prevalece o poder do

povo, enquanto o outro proporciona benefícios ao povo. O que pensar dessa

alternativa, indaga Sartori? O tirano grego já governava (assim o dizia) no interesse

do populacho. O despotismo esclarecido - quando esclarecido - governou realmente

no interesse dos governados.

Desde Platão ouvimos falar incessantemente sobre governar para, em nome

e, em benefício dos governados, mas este é, invariavelmente, o argumento em favor

do autocrata. Não o governo do povo, uma vez que o povo não sabe o bastante para

reconhecer seu verdadeiro interesse, mas o governo sobre o povo, apesar do povo,

no interesse do povo. A objeção à fórmula de Russel está nessa regra invariável da

vida e da política: jamais interesse algum está protegido se a parte interessada não

pode decidir por si e defender seu interesse. As garantias baseadas na vontade

discricionária dos outros são enganosas e não há garantia enquanto a promessa de

fornecê-la estiver confiada à discrição de outros. Já Aristóteles dizia: “o interesse dos

pobres (ou da maioria) é afirmado quando os pobres (a maioria) mesmos os podem

afirmá-lo”.

Stuart Mill (op.cit, p.281-282) acrescentou a seguinte observação: “os direitos

e interesses de toda e qualquer pessoa só estão a salvo de serem desrespeitados

quando a própria pessoa interessada é capaz de defendê-los e está habitualmente

disposta a defendê-los (...). Os seres humanos só estão a salvo do infortúnio nas

mãos dos outros quando têm o poder de se protegerem a si mesmos, e se protegem

(de fato)”.

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1.3.4. A democracia totalitária

1.3.4.1 A boa sociedade de Rousseau

De um modo geral, à primeira vista, a realização de uma determinada

igualdade é motivada apenas pela razão, e com a alegação de que os homens

nascem iguais. No momento em que separamos o sentido moral do sentido físico de

igualdade, percebemos que a verdade é exatamente o oposto: afirmamos que é

justo promover certas igualdades precisamente para compensar o fato de que os

homens nascem ou podem nascer diferentes. “É exatamente porque a força das

circunstâncias tende a destruir a igualdade que a força da legislação sempre deve

tender a mantê-la”, observou Rousseau (apud SARTORI, 1994, p.250).

Rousseau apresentou o problema de sua cidade ideal: “encontrar uma forma

de associação que defenda e proteja todos os seus membros, e onde o indivíduo,

embora em uníssono com todos os outros, obedeça somente a si mesmo e continue

livre como antes” (ibidem). Os conceitos de defesa, proteção, indivíduo, obediência

a si mesmo e liberdade – são os conceitos básicos da concepção liberal da vida. Os

dois objetivos principais, objeto de toda legislação são: liberdade e igualdade. E,

para Rousseau, o segundo objetivo era uma implicação do primeiro: devemos

buscar a igualdade, dizia ele, porque a liberdade não pode existir sem ela. “Não há

sombra de evidência que sustente a afirmação de que Rousseau, através de sua

noção de Vontade Geral, transformou em critério da democracia a realização dos

fins, estabelecendo assim uma alternativa, uma interpretação de democracia que

não é liberal-democrática” (ibidem).

Talmon24 atribui a Rousseau a paternidade da democracia totalitária, mas

esta foi uma conseqüência involuntária e, na verdade, o resultado de um padrão

perfeccionista mais geral. Sempre que Rousseau é apresentado como um teórico da

democracia não-liberal, o que é apresentado de fato são as lacunas de sua teoria. E

24 Les origines de la démocratie totalitaire, 1966.

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para fazer justiça a Rousseau, convém acrescentar que seus supostos erros são,

com freqüência, erros de seus intérpretes. A conclusão de Talmon é a seguinte:

A democracia totalitária logo evoluiu para uma forma de coerção e centralização, não por rejeitar os valores do individualismo liberal do século XVIII, mas por ter tido originalmente uma atitude ‘perfeccionista’ demais em relação a eles (...). O homem não devia apenas ser liberado das restrições. Todas as tradições existentes, as instituições estabelecidas e os arranjos sociais deviam ser derrubados e refeitos, com o único propósito de assegurar ao homem a totalidade de seus direitos e liberdades, e liberá-lo de toda dependência (TALMON, 1966, p.291).

Uma sociedade sem classes implica que todos compartilhem as mesmas

opiniões (homogeneidade), portanto, é o unipartidarismo, isto é, o monopólio do

partido único que expressa a verdadeira democracia. O autor observa ainda que um

regime totalitário sempre reflete o ideal de um mundo monocromático, retornando

àquela antiga posição “de que a variedade é incompatível com a autoridade, que só

a unanimidade, e não discórdia, pode ser a base do Estado” (op.cit, p. 273).

Talmon procura demonstrar como a própria democracia pode alcançar um

resultado diametralmente oposto às suas premissas. Através do pensamento de

Rousseau, de Saint Just, do governo exaltado dos jacobinos, da conspiração de

inspiração comunista de Babeuf, o autor desvenda o conceito de democracia

totalitária. Segundo ele “existe uma oposição radical entre o pensamento

democrático e liberal, de estilo individualista e o pensamento democrático totalitário,

de inspiração coletivista”. Em contraste com o modelo parlamentar de estilo

britânico, Rousseau, Marx, Michelet e Rosa Luxemburgo buscaram uma redenção

universal para o homem, quer seja através de uma “República una e universal”, quer

seja através da “Nação da classe proletária”. Talmon observa que a principal

diferença apresentada pelas duas escolas de pensamento democrático (liberal e

totalitária), ao termo de sua evolução, não reside no valor atribuído ao papel da

liberdade, e sim na interpretação do papel da política.

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1.3.4.2. Democracia liberal e democracia totalitária

Assim, para a escola liberal, a arte da política é apenas uma questão de

aproximações sucessivas, e considera os sistemas políticos como meros inventos

práticos, nascidos da engenhosidade e da espontaneidade humanas. Para ela, a

livre iniciativa individual deve ficar fora do alcance da ação do Estado. Em contraste,

a escola totalitária parte do postulado que existe uma verdade política única e

exclusiva. Ela pressupõe uma ordem natural predeterminada, harmoniosa e perfeita,

em direção à qual os homens aspiram, irresistivelmente, e desejam alcançar. Nesse

sentido, pode ser definido de messianismo político. Ela reconhece apenas um nível

único de existência social: o nível político, que busca expandir ao conjunto da vida

social.

As idéias políticas da democracia totalitária não constituem uma série de

preceitos pragmáticos, nem um conjunto de medidas aplicáveis a um aspecto

específico da vida do homem: elas fazem corpo com uma filosofia coerente e que

tudo abrange. A ação política visa uma organização total da sociedade. O objetivo

final é reinar de maneira integral e exclusiva sobre todos os campos da vida

humana. Ambas as escolas afirmam, porém, o valor supremo da liberdade. Mas

enquanto a escola liberal afirma que a essência da liberdade se encontra na livre

iniciativa e na ausência de opressão, a democracia totalitária só concebe a liberdade

através da realização de um ideal coletivo e absoluto.

Para os defensores da democracia liberal, o objetivo final não tem o mesmo

caráter absoluto. Ele é concebido antes em termos negativos de ausência de

coerção e considera nefasto o uso da força para a realização de uma sociedade

harmoniosa. Em contrapartida, a democracia totalitária tem um ideal messiânico e

um caráter de urgência, que só pode resultar da ação política direta.

O problema da democracia totalitária, segundo Talmon, reside na sua

concepção paradoxal da liberdade: ela defende que o ideal de liberdade pode ser

compartilhado com um modelo político exclusivo, aspirando a um nível elevado de

justiça e bem-estar social. A democracia totalitária acredita que está ao alcance da

razão e da vontade de realizar as aspirações do homem e conseguir a satisfação

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completa das suas necessidades. Para isso, todas as forças da Nação devem ser

mobilizadas a serviço desse objetivo absoluto.

Para ela, as dificuldades encontradas para a realização desse objetivo só

poderão ser superadas quando se começar a pensar no homem, “não mais tal como

ele é, mas tal como ele deve se tornar, de acordo com os ideais que ele proclama”.

Caso os homens se afastem desse ideal absoluto, deve-se obrigá-los a se adequar

a ele, com o uso da intimidação, da força ou do terror, se forem necessários, o que

não significa para ele violar os princípios democráticos: quando as condições se

tornarem favoráveis, o conflito entre a livre iniciativa individual e o dever do cidadão

desaparecerá, e com a sua eliminação, a necessidade do uso da coerção.

A questão é naturalmente “saber se a coerção terá desaparecido após todos

os protagonistas terem aprendido a conviver em harmonia - ou após todos os

adversários deste regime terem sido eliminados”, ironiza o autor (TALMON, 1966.

p.13).

1.3.4.3 Democracia totalitária de esquerda e de direita

A democracia ‘totalitária’ de esquerda enfatiza o homem, afirma Talmon. O

seu objetivo final da democracia totalitária é a razão, o homem e a sua redenção. Em

contrapartida, as “escolas totalitárias de direita” focalizam uma entidade coletiva: o

povo, o estado, a nação ou a raça. A primeira corrente permanece essencialmente

individualista, atomística e racionalista, mesmo quando eleva a classe e os partidos

ao nível de princípios absolutos. É a razão pela qual as ideologias totalitárias de

esquerda revelam sempre um aspecto messiânico de alcance universal, aspecto que

não se encontra no totalitarismo de direita. Pois a razão tem uma força unificadora

com a pressuposição de que a humanidade é uma totalidade de indivíduos racionais.

Em contrapartida, a corrente de direita nega a existência de tal unidade e

recusa a universalidade dos valores humanos. Ela contempla apenas entidades

históricas, raciais e orgânicas, conceitos totalmente alheios ao individualismo e ao

racionalismo. Ela visa um modo de existência no qual as aspirações do homem,

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podem ser despertadas num espaço geográfico bem delimitado, mobilizadas e

realizadas de maneira completa, a partir da emoção da massa e do culto aos heróis.

Essa corrente oferece o exemplo de uma sociedade mobilizada, cuja raiz encontra-

se na experiência da guerra moderna.

Outra diferença relevante apresentada pelos dois modelos de totalitarismo

encontra-se nas suas concepções diametralmente opostas em relação à natureza

humana. A democracia totalitária de esquerda afirma que a bondade e a perfeição

são inerentes à natureza humana. A de direita afirma que o homem é fraco e

corrompido. Ambas pregam a necessidade do uso da coerção e da violência. A

corrente de direita considera o uso permanente da força como meio de manter a

ordem nos homens indisciplinados. E para combater as inclinações naturais do

homem, procura ensiná-los a se comportar de maneira exemplar, com o culto do

sacrifício. . Em contraste, na democracia totalitária de esquerda o uso da força só se

justifica como um meio de acelerar a “marcha do homem em direção à perfeição e a

uma sociedade harmoniosa”.

Para Talmon, é legítimo falar de democracia somente no que diz respeito ao

totalitarismo de esquerda, termo que não pode ser aplicado ao totalitarismo de

direita, embora a distinção não faça diferença quanto aos resultados.

Independentemente das suas premissas iniciais, os partidos e os regimes totalitários

de esquerda e de direita tendem invariavelmente a se transformar em “máquinas a

governar que carecem de alma, e que só rendem aos princípios originais

homenagens falsas”, acrescenta o autor (TALMON, 1966, p.18).

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1.3.5. A POLITIZACAO DA VIDA

1.3.5.1. Do direito de morte ao poder sobre a vida

Segundo Foucault, um dos principais atributos do poder de soberania na

época feudal era o direito de vida e de morte. Esse direito somente era exercido com

relação ao direito de morte, uma vez que o soberano podia matar os seus súditos,

ou fazê-los morrer em guerra. A natureza, a dinâmica intrínseca a esse tipo de poder

consistia em fazer morrer. O soberano só aplicava seu direito sobre a vida,

exercendo seu direito de matar ou deixando de exercê-lo. Ele marcava assim seu

poder sobre a vida pela morte que tinha condições de exigir. O direito formulado

como de vida e de morte era de fato, o direito de causar a morte ou de deixar viver.

A natureza desse direito era, antes de tudo, o de apreensão com base no direito ao

confisco: eram prerrogativas do soberano as apreensões de bens, corpos, tempo e

vida. Esse direito culminava com o privilégio de se apoderar da vida para suprimi-la.

Entretanto, nos interstícios desse ‘magno poder de morte’, o soberano simplesmente

deixava viver.

A partir da época clássica, surge um tipo completamente novo de direito: o de

fazer viver e de deixar morrer. Com ele, há uma transição do direito sobre a morte

para a regulamentação sobre a vida, abrindo o horizonte para as disciplinas e as

biopolíticas. Tal é a configuração que adquirem as redes de poder nas sociedades

industriais, numa dinâmica que Foucault consagrou com o nome de biopoder: um

tipo de poder cujo objetivo é produzir forças, fazê-las crescer, ordená-las e canalizá-

las, em vez de barrá-las ou destruí-las. De acordo com essa perspectiva, ele

comenta: O confisco não é mais sua forma principal, mas somente uma

peça entre outras com funções de incentivo, de reforço, de controle, de vigilância, de majoração das forças que lhe são submetidas (...). Com isso, o direito de morte tenderá a se deslocar ou, pelo menos, a se apoiar nas exigências de um poder que gere a vida e a se ordene em função de seus reclamos (FOUCAULT, 1994, p.128) 25.

25 A vontade de saber, 1994.

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O velho direito de causar a morte ou de deixar viver vai ser substituído assim

por um poder de causar a vida ou devolver à morte. Agora, é sobre a vida e ao longo

de todo o seu desenrolar que o poder estabelece seus pontos de fixação, a morte

sendo o limiar, o momento mais secreto, mais privado da existência. Numa

perspectiva de genealogia do poder delineada por Foucault, a morte que se

fundamentava no direito, por parte do soberano de se defender ou de pedir que o

defendessem, vai aparecer daqui em diante como o simples reverso do direito do

povo soberano em garantir sua própria vida, mantê-la ou desenvolvê-la. Essa

reversão vai se efetuar em dois níveis:

No nível externo, as guerras não se travam mais em nome do soberano a ser

defendido, mas em nome da existência de todos. Populações inteiras são levadas à

destruição mútua em nome da necessidade de viver. Por outro lado, a guerra passa

a ter como objetivo tanto o fortalecimento da própria raça, com a eliminação da raça

adversa, como a regeneração da própria raça, uma vez que “quanto mais

numerosos forem os que morrem entre nós, mais pura será a raça a que

pertencemos”, escreve o autor. Nesse contexto, a guerra tradicional – com as suas

batalhas, invasões, pilhagens, vitórias e derrotas vão ser substituídas pela guerra

pela vida. Não haverá mais batalha no sentido bélico, mas luta no sentido ‘biológico’:

diferenciação das espécies, seleção natural do mais forte e manutenção das raças

mais adaptadas. Nesse contexto, a luta biológica vai se sobrepor à antiga luta bélica.

No nível interno, o direito de viver não é mais, para Foucault, esse

sustentáculo inacessível que só emerge de tempos em tempos, no acaso da morte e

da sua fatalidade: cai, em parte, no campo de controle do saber e da intervenção do

poder. Do outro lado, o velho direito de morte, símbolo do poder soberano é agora

recoberto pela administração dos corpos e pela gestão calculada da vida. Nesse

contexto, o Estado soberano passa a desempenhar o papel de protetor da

integridade da vida e da pureza da raça contra o perigo biológico que pode vir a

ameaçá-las. Convém examinar a natureza dessa nova função do poder, com base

na distinção entre pureza e impureza efetuada por Zygmunt Bauman26.

26 O mal-estar na pós-modernidade, 1998.

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1.3.5.2. O sonho da pureza

Para Bauman, não há meio de se pensar sobre a pureza sem ter uma

imagem prévia da ordem, sem “atribuir às coisas seus lugares justos e

convenientes”. A pureza é um ideal, uma visão da ordem – isto é, de uma situação

em que cada coisa se acha em seu devido lugar e em nenhum outro. “O oposto da

pureza – o sujo, o imundo, os agentes poluidores – são coisas fora do lugar”. Não

são as características intrínsecas das coisas que as transformam em sujas, observa

ele, mas tão somente sua localização e, mais precisamente, sua localização na

ordem de coisas idealizadas pelos que procuram a pureza.

Segundo o autor (BAUMAN, 1998, p.14) as coisas que são sujas num

contexto podem tornar-se puras exatamente por serem colocadas num outro lugar, e

vice-versa. Ele cita dois exemplos simples, o do sapato e o da omelete. Sapatos

magnificamente lustrados e brilhantes, diz o autor, tornam-se sujos quando

colocados na mesa de refeições. Restituídos ao monte de sapatos, porém, eles

recuperam a prístina pureza. Uma omelete, uma obra de arte culinária que dá água

na boca quando no prato do jantar, torna-se uma mancha nojenta quando

derramada sobre o travesseiro.

Nesse quadro, relembrando as observações de Cynthia Ozick (op. cit., p.13),

a Solução final alemã era uma solução estética, “era uma tarefa de preparar um

texto, era o dedo do artista eliminando uma mancha, ela simplesmente aniquilava o

que era considerado não harmonioso”. Era uma simples questão de poluição

marcada pela presença de pessoas que não se ajustavam, que estavam fora do

lugar, que “estragavam o quadro, e quanto ao mais, ofendiam o senso esteticamente

agradável e moralmente tranqüilizador da harmonia”.

A sujeira é essencialmente desordem. Não há nenhuma sujeira que seja

absoluta. Ela existe apenas ao olhar do observador. A sujeira transgride a ordem.

Eliminá-la não é um movimento negativo, mas um esforço positivo para organizar o

ambiente. Assim, varrer o assoalho, estigmatizar os traidores ou expulsar os

estranhos parece provir do mesmo motivo de preservação da ordem. É por isso que

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a chegada de um estranho tem um impacto de um terremoto: “o estranho despedaça

a rocha sobre a qual repousa a ‘segurança’ da vida ordinária”.

Se a sujeira é um elemento que desafia o propósito dos esforços de organização, e a sujeira automática, autolocomotora e autocondutora é um elemento que desafia a própria possibilidade de esforços eficientes, então o estranho é a verdadeira síntese desta última. Não é de surpreender que as pessoas do lugar, em todas as partes e em todos os tempos, em seus frenéticos esforços de separar, confinar, exilar ou destruir os estranhos, comparassem os objetos das suas diligências aos animais nocivos e às bactérias. Não é de se surpreender, tampouco, que comparassem o significado de sua ação a rotinas higiênicas; combateram os estranhos, convencidos de que protegiam a saúde contra os portadores de doença. É isso o que as pessoas do lugar fizeram em toda parte e em todos os tempos (BAUMAN, 1998, p.19).

O mundo retratado nas utopias acrescenta Bauman, idealiza um mundo

transparente – em que nada de obscuro ou impenetrável se coloca no caminho do

olhar – um mundo em que nada estrague a harmonia, nada “fora do lugar, um

mundo sem sujeira, um mundo sem estranhos”. Nesse quadro, “a sociedade alemã

tentava incorporar um idílio desprovido de toda fealdade, intocada pelo caos e pela

sujeira”, observa o cineasta Peter Cohen27.

O que era totalitário nas ideologias totalitárias era mais do que algo além da

abrangência da ordem que elas prometiam: a determinação de não deixar nada ao

acaso, a simplicidade das prescrições de limpeza e a meticulosidade com que elas

atacaram a tarefa de remover qualquer coisa que colidisse com o postulado de

pureza. “As ideologias totalitárias foram notáveis pela propensão a condensar o

difuso, localizar o indefinível, transformar o incontrolável em algo a seu alcance, e

por assim dizer, à distância de uma bala” (BAUMAN, 1998, p.22).

O nazismo e o comunismo primaram por impelir a tendência totalitária a seu

paroxismo – o primeiro, condensando a complexidade do problema da “pureza” em

sua forma “étnica” de pureza da raça, o segundo, em sua versão “evolucionista” de

pureza da classe. No contexto atual, talvez a forma de “impureza” mais execrável

27 A arquitetura da destruição, 1992.

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não se encontre mais nos revolucionários do passado, mas nos “estranhos” de hoje

que desrespeitam a lei ou “a fazem com suas próprias mãos”, tais como os países

do “Eixo do mal” e os grupos de ação “terrorista”.

1.3.5.3. Os estranhos e a visão da ordem

De acordo com Levi-Strauss, todas as sociedades produzem estranhos e é à

sua visão da ordem que os estranhos não se ajustam. Construir a ordem torna-se,

neste caso, uma guerra de atrito empreendida contra os estranhos e o diferente.

Segundo o autor, nessa guerra, duas estratégias alternativas foram implementadas:

a) Uma estratégia antropofágica: aniquilar os estranhos devorando-os,

absorvendo-os dentro do ‘ban’ (âmbito do soberano) e depois, “metabolicamente,

transformando-os num tecido indistinguível do que já havia”. É a estratégia da

‘assimilação’: tornar a diferença semelhante; abafar as distinções culturais ou

lingüísticas; proibir todas as tradições e lealdades, exceto àquelas destinadas a

alimentar a conformidade com a ordem nova, que tudo abarca; promover e reforçar

uma medida, e só uma, para a conformidade.

b) Uma estratégia antropoêmica: vomitar os estranhos, expulsá-los fora dos

limites do ‘ban’, dos limites do mundo ordeiro e impedi-los de toda comunicação com

os do lado de dentro. É a estratégia do ‘banimento’, da exclusão ou da concentração

dos estranhos dentro das paredes visíveis dos guetos: purificar, expulsá-los, para

além das fronteiras do território administrado ou administrável, ou, quando nenhuma

das duas medidas for factível, destruir fisicamente os estranhos.

Na ideologia nacionalista e racista, os estranhos são apresentados como fora

do alcance do reparo. Não se pode livrá-los de seus defeitos, somente pode-se

deixá-los livre deles próprios, acabados, com suas inatas e eternas esquisitices e

seus males. No regime totalitário, sob a égide do estado moderno, a aniquilação

cultural e física dos estranhos costumava ser descrita como uma forma de

destruição criativa, “demolindo, mas construindo ao mesmo tempo, mutilando, mas

corrigindo”, escreve Bauman.

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O que faz certas pessoas “estranhas” e, por isso, irritantes, enervantes,

desconcertantes e, sob outros aspectos “um problema”, é sua tendência a

obscurecer e “eclipsar” as linhas de fronteira que devem ser claramente vistas. Um

retrato psicológico interessante do “viscoso”, esboçado a seguir, por Sartre, nos

ajuda a compreender a repulsão natural provocada pela presença dos “estranhos”:

O viscoso é dócil ou assim parece. Só no próprio momento em que acredito que o possuo, eis que, por uma inversão curiosa, ele me possui (...). Se um objeto que seguro nas mãos é sólido, posso soltá-lo quando quiser; sua inércia simboliza, para mim, o meu poder total (...). Mas aqui está o viscoso invertendo os termos: meu ego é subitamente comprometido, abro as mãos, quero desfazer-me do viscoso e ele se cola em mim, me puxa, me chupa (...). Já não sou o senhor (...). O visgo é como um líquido visto num pesadelo, em que todas as suas propriedades são animadas por uma espécie de vida, e volta-se contra mim(...). Se mergulhar na água, se afunda nela, se me deixo submerso nela, não experimento nenhum mal estar, pois não tenho qualquer medo de seja lá como eu possa nela dissolver-me; continuo um sólido em sua liquidez. Se me deixo submergir no viscoso, sinto que vou perder-me nele (...). Tocar o viscoso é arriscar-se a ser dissolvido na viscosidade (SARTRE28 apud BAUMAN, 1998, p. 39).

A estranheza, como a viscosidade, significa a perda de liberdade, ou o medo

de que a liberdade esteja ameaçada e possa perder-se. O estranho é odioso e

temido, como o é o viscoso, e pelos mesmos motivos. A acuidade da estranheza e a

intensidade de seu ressentimento crescem com a correspondente falta de poder e

diminuem com o correspondente aumento de liberdade. É de se esperar que quanto

menos as pessoas controlam e possam controlar as suas vidas, bem como suas

identidades, mais verão as outras como viscosas e mais freneticamente tentarão

desprender-se dos estranhos que elas experimentam como uma “envolvente,

sufocante, absorvente e informe substância”:

Os estranhos são pessoas que você paga pelos serviços que elas prestam - e pelo direito de terminar com os serviços delas logo que já não tragam prazer”. Em nenhum momento, realmente, diz ele, os estranhos comprometem a liberdade do consumidor de seus serviços. O tumulto e o clamor chegam, não haja nenhum engano, de outras áreas da cidade, que os consumidores, em busca de prazer jamais visitam, deixam viver em paz. Essas áreas são habitadas por pessoas incapazes de escolher com quem elas se encontram e por quanto tempo, ou de pagar para ter suas escolhas respeitadas. Pessoas sem poder, experimentando o mundo como uma armadilha, não como um parque de diversões;

28 L’être et le néant, 1943.

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encarceradas num território de que não há nenhuma saída para elas, mas, em que outras podem entrar e sair a vontade (...).

E ainda segue o autor: Se os primeiros se deleitam com uma porção de convivas e se orgulham de suas mentes abertas e suas portas abertas, os últimos rangem os dentes ao pensar na pureza perdida (...). Nem é necessária muita habilidade na navegação para fazer as velas nacionalistas colherem o vento que sopra do ódio racista; para alistar, com o mesmo sinal, os ‘sem poder’ a serviço dos ávidos de poder. O que precisa é tão-somente lembrar-lhes a viscosidade dos estranhos (BAUMAN, 1998, p.41-43).

Segundo Foucault, a principal função do racismo é de fragmentar, efetuar um

corte no seio do processo biológico a que se dirige o novo poder, um corte essencial

entre o que deve viver e o que deve morrer. O racismo tem um papel central no

poder sobre a vida. Com ele, o inimigo que se trata de eliminar não é mais o

adversário no sentido tradicional do termo, mas o inimigo interno, isto é, o perigo

interno em relação à população e para a população:

No contínuo biológico da espécie humana, o aparecimento das raças, a distinção das raças, a hierarquia das raças, a qualificação de certas raças como boas e de outras, ao contrário, como inferiores, tudo isso vai ser uma maneira de fragmentar esse campo do biológico; uma maneira de defasar, no interior da população, uns grupos em relação aos outros. Em resumo, de estabelecer uma cesura que será do tipo biológico no interior de um domínio considerado como sendo precisamente um domínio biológico (FOUCAULT, 1999, p.304).

Outra função importante do racismo é a de permitir o fortalecimento da própria

espécie, com a eliminação do perigo biológico. Eliminar a vida, o imperativo da

morte, só se torna aceitável na medida em que possibilita não mais a tradicional

vitória sobre o adversário político, mas a eliminação do perigo biológico e, como

conseqüência desta, o fortalecimento da própria espécie ou raça. Como observa

Foucault (op. cit., p.306), “o racismo, é a condição de ‘aceitabilidade’ de tirar a vida

numa sociedade de normalização”.

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De maneira semelhante “a necessidade de se preservar a diversidade das

culturas num mundo ameaçado pela monotonia e pela uniformidade”, apontada por

Claude Lévi-Strauss29, pode ser reformulada, à luz do racismo, como sendo a

necessidade de se preservar a uniformidade e a “pureza da cultura” num mundo

ameaçado pela diversidade (no sentido negativo de promiscuidade). Na

contraposição “carrasco-vítima”, “civilização-cultura”, talvez não seja por um mero

acaso que o genocídio tenha ocorrido justamente num dos países mais “civilizados”

da Europa e que tenha escolhido precisamente como principal vítima o povo que

talvez representasse um dos mais altos níveis de cultura dessa época!

Outro aspecto a ser observado com o poder totalitário, segundo Foucault, diz

respeito à própria transformação do racismo. Não é mais um racismo externo,

utilizado como instrumento de luta que um grupo exerce contra outro, mas sim um

racismo de Estado, um racismo interno que uma sociedade vai exercer sobre ela

mesma, sobre os seus próprios elementos. Nesse quadro, o Estado vai

desempenhar uma função de protetor da pureza da raça, contra os elementos

heterogêneos - tais como os estrangeiros que se infiltram ou os “transviados” como

subproduto dessa sociedade – que introduzem em seu corpo elementos nocivos que

é preciso expulsar por razões de ordem política e biológica, ao mesmo tempo.

Com o Estado, a idéia (interna) de “pureza da raça” vai se sobrepor à idéia

(externa) de “luta de raças”. O objetivo do Estado é a formação de um conjunto

integrado, “biologicamente monístico”, segundo a expressão de Foucault, no qual a

política e a biologia atuam de modo complementar: o “político” exerce o “poder de

vida e de morte” enquanto o “biológico” estabelece os “critérios” de vida e de morte.

Nesse sentido, não é papel da política dizer ao homem quais são os seus direitos ou

quais poderiam vir a ser, mas da biologia em fixar a norma que deve estabelecer "o

que pode viver" e “o que pode morrer”.

Talvez convenha aqui fazer uma distinção entre as concepções de norma e

de lei. A norma estabelece os critérios de “um sistema de valores”, dentro do qual

somente as categorias de “vida com valor” e de “vida sem valor” se tornam

29 Raça e história, 1973.

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relevantes. Com relação à “vida sem valor”, a vida deixa de ser um “conceito ético”,

que orienta as expectativas e os legítimos desejos do indivíduo, para se tornar um

“conceito biopolítico”, no qual está em questão a “vida nua” da zoé sobre a qual se

baseia o poder soberano. A norma pressupõe que não haja nenhum sistema ético

que oriente o aparelho judiciário da sociedade: basta a própria existência daqueles

que não se enquadram nos padrões estabelecidos por ela, para definir a

culpabilidade. Ao contrário da lei, a norma não especifica “o que precisa fazer ou

não fazer”, mas sim “o que precisa ser ou não ser”. A norma define os critérios de

culpabilidade em função de existir de tal ou tal maneira, “de ser isso antes que

aquilo”: o Judeu é culpado na qualidade de Judeu na Alemanha nacional-socialista,

o Kulak de Kulak na Rússia stalinista.

Em contrapartida, a lei sempre se refere ao gládio, acrescenta o autor. A lei

não pode deixar de ser armada e sua arma por excelência é a morte. Aos que a

transgridem, ela responde com esta ameaça absoluta. Em contraste, um poder que

tem a tarefa de se encarregar da vida terá necessidade de mecanismos contínuos,

reguladores e corretivos. Já não se trata de pôr a morte em ação no campo da

soberania, mas de distribuir os vivos em um domínio de valor e de utilidade.

Segundo Foucault, “um poder dessa natureza tem de qualificar, medir, avaliar,

hierarquizar mais do que se manifestar em seu fausto mortífero”. E continua:

Um poder dessa natureza não tem que traçar a linha que separa os súditos obedientes dos inimigos do soberano; opera distribuições em torno da norma. Não quero dizer que a lei se apague ou que as instituições de justiça tendam a desaparecer, mas que a lei funciona cada vez mais num conjunto de aparelhos (médicos, administrativos) cujas funções são, sobretudo, reguladoras. Uma sociedade reguladora é o efeito histórico de uma tecnologia de poder centrada na vida (FOUCAULT, 2007, p.135).

De maneira semelhante, o direito do súdito não pode mais se enunciar como

“direito de terem direitos”, mas, “direito de se manter vivo”, em oposição a todos

aqueles pelos quais esse direito foi negado, quer sejam aqueles que “se fazem

morrer” (judeus e ciganos, sob o nazismo) ou aqueles que "se deixam morrer" (como

os danados da terra da modernidade, doentes da AIDS, povo Tibetano ou os povos

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famintos da África, em cuja morte lenta, o mundo passivamente contempla). De

acordo com Foucault:

Não é de se estranhar que nas sociedades baseadas nas normas, o poder teve tanta necessidade do auxílio das ciências biológicas e sociais para regular o seu próprio poder e definir o que entra no âmbito da norma e o que fica fora. Que essa ciência tem acompanhado e apoiado o advento do racismo de Estado no século XIX somente pode reforçar a hipótese da existência de um saber-poder biopolítico que se constituiu quando os estados estabeleceram como objetivo principal a gestão da vida dos homens e das populações, com os seus objetivos temíveis observados durante o século XX (FOUCAULT, 1999, p.191).

Se o genocídio se torna hoje o sonho dos poderes modernos, não é em razão

de um eventual regresso ao velho direito de matar, mas precisamente porque o

poder se situa e se exerce doravante, no nível da vida, da espécie, da raça e dos

fenômenos maciços de população. Foucault (2007, p.125) denomina “biopolítica” o

crescente envolvimento da vida natural do homem nos mecanismos e nos cálculos

do poder. Ao final de seu livro “Vontade de Saber”, ele resume o processo através

do qual, a vida se torna a aposta em jogo na política, com uma fórmula exemplar. “O

homem, durante milênios, permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivo e,

além disso, capaz de existência política; o homem moderno é um animal, em cuja

política, sua vida de ser vivo está em questão”. Já no século XIX, Friedrich von

Savigny notava: “o Direito não tem em si, uma existência própria; a sua essência é

bem a vida dos homens, considerada sob um ângulo particular”.

Desta forma, tal como uma espada de Damoclès, haverá sobre a vida nua

sempre o risco da fixação de um limiar, além do qual a vida cessa de ter valor

jurídico e pode ser eliminada por “redenção” ou “misericórdia” - sem que se cometa

homicídio (gnadentod). A exemplo da eutanásia, que o poder nacional-socialista

tentou legitimar, como sendo uma vida que não merecia ser vivida (ou viver) em

oposição com a vida digna de ser vivida (ou viver).

Após o término das hostilidades da 1ª Guerra Mundial, com os tratados de

paz e com as novas configurações territoriais e os abalos revolucionários que se

sucederam, surge na cena européia a presença maciça de refugiados e apátridas.

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Inesperadamente eram revelados a todos os sofrimentos de um número crescente

de comunidades humanas, para as quais as regras do mundo haviam perdido, de

súbito, a validade. Arendt antecipou, no problema dos refugiados, o declínio do

Estado-Nação e o fim do homem. Sem governo para representá-los e protegê-los,

homens passavam a encarnar uma “vida nua”, segundo a expressão de Agamben

“uma vida desprovida de qualquer valor político, uma vida rejeitada às margens do

Estado”.

1.3.5.4. O Poder soberano e a Vida nua

De acordo com Agamben, uma das características principais do poder, na

forma totalitária, é a necessidade de redefinir continuamente, a vida natural, o limiar

que articula e separa o que está dentro e o que está fora da “Ordem natural”. Essa

vida natural (zoé), enquanto no antigo regime era politicamente indiferente e como

fruto da criação pertencia a Deus, no mundo clássico se torna claramente distinta da

vida política (bíos) e passa a ocupar o primeiro plano na estrutura do Estado,

constituindo, assim, o terreno fundamental de sua legitimidade e soberania.

O autor utiliza o termo ‘sacer’ para indicar uma vida absolutamente ‘matável’,

objeto de uma violência que excede tanto a esfera do direito quanto à do sacrifício,

do profano e a do religioso. Segundo ele, ‘Sacer esto’ não é uma fórmula de

maldição religiosa que sanciona o caráter augusto e abjeto de algo, mas ao

contrário, a formulação política original da imposição do vínculo soberano.

Agamben esclarece ainda o seu conceito de Sacer através da observação de

um eminente jurista do regime nacional-socialista, Karl Binding (apud AGAMBEN,

2002, p.144), o qual escrevia em 1920, num panfleto a favor “da autorização do

aniquilamento da vida indigna de ser vivida” que não havia nenhuma razão, nem

jurídica, nem social, nem religiosa para não autorizar a morte “destes homens que

não são mais do que a espantosa imagem ao avesso da autêntica humanidade”. A

decisão sobre o valor, ou sobre a ausência de valor da vida como tal, encontrava a

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sua primeira formulação jurídica. Se a eutanásia se presta a uma dura

“matabilidade”, explica Agamben:

É porque nela um homem encontra-se na situação de dever separar, em um outro homem, a zoé da bíos e de isolar nele algo como uma vida nua, uma vida ´matável´. Mas na perspectiva da biopolítica moderna ela se coloca, sobretudo, na intersecção entre a decisão soberana sobre a vida matável e a tarefa assumida de zelar pelo corpo biológico da nação” (AGAMBEN, 2002, p.149).

Com a eutanásia, a vida nua, determinada em termos biológicos e de

eugenia, se torna o local de uma decisão incessante do poder soberano sobre o

valor, ou a ausência de valor da vida, e onde a biopolítica converte-se

continuamente em tanatopolítica.

1.3.5.5. A “exceptio” soberana

A morte da “vida nua” não era vista como transgressão. Agamben diz que a

eutanásia impune abre uma esfera do agir humano que não é do sacrum facere,

nem da ação profana, e que ele trata aqui de tentar compreender: “Nós já

encontramos uma esfera-limite do agir humano, que se mantém unicamente em uma

relação de exceção. Esta esfera é a da decisão soberana, que suspende a lei no

estado de exceção e assim aplica nele a vida nua (...). Segundo ele: “restituído ao

seu lugar próprio, além tanto do direito penal quanto do sacrifício, o “homo sacer”

representaria a figura originária da vida presa no “ban soberano” e conservaria a

memória da exclusão originária através da qual se constituiu a dimensão política”

(op. cit., p.90).

Convém abrir um parêntese sobre a noção de “ban soberano”. Esta palavra

encontra a sua origem, de acordo com Jean Luc Nancy, tanto no antigo termo

germânico “ban”, assim como na expressão francesa “mise au ban” que designa

tanto a exclusão da comunidade (“ban-lieue”), quanto o comando e a insígnia (“ban-

nière”) do soberano. O “ban” marca a linha divisória entre aquele que está sob a

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proteção da ban-deira soberana - e, portanto assimilável, conforme a estratégia

antropofágica descrita por Durkheim, e aquele que deve ser excluído, ban-ido,

rejeitado, de acordo com a alternativa antropoêmica. O “ban” é propriamente “a

força” simultaneamente atrativa (ban-deira) e repulsiva (ban-imento) que vincula os

dois pólos da exceção soberana: a vida nua (homo sacer) e o poder; a zoé (vida

natural) e o soberano.

A relação de “ban” é, portanto, uma relação de exceção. Aquele que foi

banido não é simplesmente posto fora da lei e abandonado por ela, mas é também

aquele cuja vida é exposta e colocada em risco, no limiar em que vida e exceção se

confundem. Nos limites extremos desse novo ordenamento, “soberano” e “homo

sacer” apresentam duas figuras simétricas, que têm a mesma estrutura e são

correlacionadas. Soberano é aquele em relação ao qual todos os homens são

potencialmente homines sacri. Já, homo sacer é aquele em relação ao qual todos os

homens agem como soberanos. O objeto da soberania passa a ser a vida nua do

homo sacer, exposta, sem mediação, ao exercício biológico de uma força de

correção, de encarceramento (enfermement) e de morte.

Em síntese, a vida nua, (zoé) é originariamente a vida presa no ban soberano

e, de forma simétrica, a produção da vida nua é a principal atribuição do poder

soberano. Agamben escreve que Soberana é a esfera do poder na qual se pode

matar sem cometer homicídio e sem celebrar um sacrifício e sacra, isto é, “matável e

insacrificável” é a vida que foi capturada nessa esfera. O autor ressalta, por outro

lado, que o termo “sacer” não contém nem contradição (santo e maldito), nem

ambivalência de conteúdo (forças religiosas fastas e nefastas). O termo “sacer”

indica, antes de tudo, uma vida absolutamente “matável”, objeto de uma violência

que excede tanto a esfera do direito quanto a do sacrifício, do profano e a do

religioso. “Sacer esto” não é uma fórmula de maldição religiosa que sanciona o

caráter augusto e abjeto de algo, mas ao contrário, a formulação política original da

imposição do vínculo soberano.

Talvez convenha frisar que os termos “nefasto” e “vida matável” não são

desconexos, como parece indicar Agamben, mas bem correlacionados. A nosso ver

é precisamente porque o homo sacer é declarado nefasto e excluído da ‘sacratio’,

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que se tornam possíveis a sua captura e sucessiva morte, na esfera do ban

soberano.

1.3.5.6. O campo como paradigma do Poder biopolítico

Nesse quadro, surge para Agamben, o campo como a outra face da relação

de exceção zoé-soberano, na qual se exerce o poder soberano. É o espaço que se

abre quando o estado de exceção se torna a regra, bem como o regulador oculto da

inscrição da vida no ordenamento político. O campo constitui o paradigma que

marca, de forma decisiva, a realidade biopolítica da modernidade.

“O campo é também o sinal da impossibilidade do sistema de funcionar sem

transformar-se em uma máquina letal (...)”, explica ele. “A um ordenamento sem

localização (o estado de exceção, no qual a lei é suspensa) corresponde agora uma

localização sem ordenamento (o campo como espaço permanente da exceção)” (op.

cit., p.182). Em outras palavras, o campo constitui um espaço de exceção onde a lei

é integralmente suspensa, onde fato e direito se confundem sem resíduos, e onde,

de acordo com a expressão de Arendt, “tudo é possível”:

Quem entrava no campo movia-se em uma zona de indistinção entre externo e interno, exceção e regra, lícito e ilícito, na qual os próprios conceitos de direito subjetivo e de proteção jurídica não faziam mais sentido; além disso, se era um Hebreu, ele já tinha sido privado, pelas leis de Nuremberg, dos seus direitos de cidadão e posteriormente, no momento de ‘solução final’, completamente desnacionalizado. Na medida em que os seus habitantes foram despojados de todo estatuto político e reduzidos integralmente a vida nua, o campo torna-se também o mais absoluto espaço biopolítico que jamais tenha sido realizado, no qual o poder não tem diante de si senão a pura vida sem qualquer mediação (AGAMBEN, 2002, p.177-178).

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O campo se configura no espaço “cinzento” onde o “homo sacer” torna-se

uma vida absolutamente matável, objeto de uma violência que excede tanto a esfera

do direito, quanto a do sacrifício, do profano e a do divino. O campo de extermínio

do regime totalitário funcionou como um autêntico laboratório onde a vida era

introduzida num “processo contínuo de morte”. É somente no campo que essa

experiência foi possível. Como afirma Rousset30, o campo não foi apenas “a

sociedade mais totalitária jamais realizada”, mas também o modelo social perfeito

para o domínio total do poder soberano. Um poder total conseguido sem exceção

sobre todos os homens, em todos os aspectos de suas vidas.

Os campos foram muito bem-sucedidos na tarefa à qual se destinavam: não

apenas à fabricação de cadáveres, mas à destruição prévia das almas. Muitos

descreveram os Musselmänner (prisioneiros cujas forças de vontade estavam tão

completamente destruídas que mesmo antes de morrerem, não estavam mais entre

os vivos) como o produto essencial de Auschwitz. Alguns sobreviventes concluíram

que qualquer resquício de humanidade que havia permanecido depois de Auschwitz

o foi não por meio do campo, mas apesar dele. Desde a longa viagem em condições

que mal se adequavam ao transporte de animais à substituição dos nomes dos

prisioneiros por números, até a eliminação dos corpos, sem vestígios de dignidade

que lhes é normalmente atribuída, tudo era direcionado para a erradicação da

humanidade.

Em certo sentido, o que o poder totalitário visava não era apenas a mudança

do mundo exterior, nem a revolução social, mas, antes de tudo, a transformação da

própria natureza humana. Não obstante, observa Arendt, a história prova que a

natureza humana não pode ser transformada, apenas destruída. Para Antelme31, no

fundo do ser humano haverá sempre a necessidade de ser reconhecido:

Os heróis que nós conhecemos da história ou da literatura que

tenham gritado o amor, a solidão, a angústia do ser ou do não-ser, a vingança, que se tenham erguido contra a injustiça, a humilhação, nós não acreditamos que jamais tenham sido levados a expressar como única e ultima reivindicação, um sentimento último de pertença à espécie humana (ANTELME, 1947, p.11)

30 Les jours de notre mort, 1947 31 L’espèce humaine, 1947

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No campo experimentou-se a destruição absolutamente fria e sistemática de

homens, com o objetivo de eliminar qualquer vestígio de dignidade humana, bem

como de transformar o homem qualificado (bíos) em mera vida nua (zoé), reduzida

ao silêncio dos refugiados, dos deportados e dos banidos. Tal destruição se tornou

possível, segundo as observações de Arendt, porque os Direitos do Homem foram

apenas filosoficamente formulados, mas nunca estabelecidos; apenas proclamados,

mas nunca politicamente garantidos; perdendo, em sua forma tradicional, toda a

validade. A destituição dos direitos de um homem, a morte prévia da sua cidadania,

é a condição imprescindível para que ele seja inteiramente dominado.

Segundo Arendt (2000, p.167), “o deserdado, marcado da estrela amarela,

não pode mais ter acesso à vida humana, para isso precisa de uma âncora, uma

cidadania, um sentimento de pertencer a um mundo protetor que lhe sirva de pátria”.

Desse modo, o primeiro passo no caminho do domínio total foi o de cassar a pessoa

jurídica do homem (bíos). Isso foi conseguido quando certas categorias de pessoas

foram excluídas da proteção da lei e declaradas ”fora-da-lei”. Além do mais, uma das

poucas regras às quais os nazistas se ativeram constantemente no curso da

Solução final, era a de que somente depois de terem sido completamente

desnacionalizados (até da cidadania residual que lhes cabia após as leis de

Nuremberg), os Hebreus podiam ser enviados aos campos de extermínio.

Como observa Mommsen (MOMMSEN Apud BAUMAN, 1998, p.219),

“somente depois que um acúmulo de legislação discriminatória empurrou os judeus

da Alemanha a um papel de párias sociais, completamente privados de qualquer

comunicação social regular com a maioria da população, foi que a deportação e o

extermínio puderam ser levados a efeito sem abalar a estrutura social do regime”.

O segundo passo decisivo consistia em destruir o caráter moral do homem,

transformá-lo em “animal que não se queixa” e lhe negar até a condição de mártir.

“Quantos aqui ainda acreditam que um protesto tenha mesmo algum valor

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histórico?”, lançou certa vez um oficial nazista, observação esta que foi registrada

por David Rousset32.

“Os campos de concentração tornaram anônima a própria morte e, tornando

impossível saber se um prisioneiro estava vivo ou morto, roubaram até da morte o

desfecho de uma vida realizada”. Em certo sentido, roubaram a própria morte do

indivíduo, provando que, doravante, nada – nem a morte – lhe pertencia e que ele

não pertencia a ninguém. “A morte apenas selava o fato de que ele jamais havia

existido” (ARENDT, 2000, p.502).

A destruição da individualidade, com a tentativa, quase sempre bem

sucedida, de domar os homens e torná-los supérfluos, constituía o último passo.

Nesse mundo de seres agonizantes e de criminosos sem crime, os homens

descobrem que são supérfluos, através de um modo de vida no qual o castigo nada

tem a ver com o crime, em que a exploração é praticada sem lucro, em que o

trabalho é realizado sem proveito e em que a “insensatez é soberana”.

Embora os homens fossem “supérfluos”, a lógica da destruição era

implacável. Arendt (op. cit. p.508) observou: “Se os presos são insetos daninhos, é

lógico que sejam exterminados por meio de gás venenoso; se forem degenerados,

não se deve permitir que contaminem a população; se têm almas escravas, ninguém

deve perder tempo tentando reeducá-los”. Vistos através do prisma da ideologia, os

campos parecem até ser lógicos demais, conclui. Essa violência intrínseca ao

totalitarismo não advém apenas do desejo do poder, nem do amor à expansão,

prossegue a autora, mas apenas por motivos ideológicos, “para tornar o mundo

coerente, para provar que a ideologia estava certa”.

Com relação ao uso do termo holocausto para designar o genocídio do povo

Judeu é absolutamente necessário, observa Agamben, que se compreenda a

natureza verdadeira do crime totalitário. O crime não foi um sacrifício, não há nos

seus enunciados nenhuma invocação a um suposto sacrifício, mas apenas uma

referência às medidas de saneamento e de higiene racial.

32 Les jours de notre mort, 1947.

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De acordo com o autor (2002, p.121), “o querer restituir ao extermínio dos

judeus uma aura sacrificial, através do termo holocausto, é uma irresponsável

cegueira historiográfica. O Hebreu sob o nazismo é o referente negativo privilegiado

da nova soberania biopolítica e, como tal, um caso flagrante de homo sacer, no

sentido de vida matável e insacrificável. O assassinato não constitui, portanto,

nenhuma execução capital, nenhum sacrifício, mas apenas a realização de uma

mera ‘matabilidade’ que seria inerente à condição de Hebreu como tal (...) A verdade

difícil de ser aceita, diz Agamben, é que os Hebreus não foram exterminados no

curso de um louco e gigantesco holocausto, mas, literalmente, como Hitler havia

anunciado, ‘como piolhos’, ou seja, como vida nua (...). A dimensão na qual o

extermínio teve lugar não é nem a da religião, nem a do direito, mas a da

biopolítica”.

É a razão pela qual alguns preferem utilizar a palavra Shoah para designar o

genocídio. Shoah tem sua origem no Livro dos Profetas, nas palavras hebraicas

Seouh Arim que significam: “e as cidades se tornaram vazias (dos seus habitantes)”,

com Seouh no sentido de vazio, de desolação, sentimento de solidão do homem que

o sistema totalitário fez questão de desenraizar, privando todo um povo de seu solo,

de sua terra, os transformando em párias. Arendt também utilizou a palavra

“lonelineless” para descrever o que chama “a mais desesperadora experiência do

homem”.

Se o holocausto não foi um sacrifício, convém perguntar quem então foi digno

de sacrifício, da sacratio? Inúmeras vezes, o destino do povo alemão, tal o cavaleiro

de Dürer, tem mostrado o lado mais sublime ou mais sombrio do homem, um destino

“sem medo ou concessões, num curso reto entre a morte e o demônio” (WEBER33,

1982, p.41). A nosso ver, somente um povo que tinha o sentimento de estar

envolvido em algo histórico, único, numa visão gloriosa de ”‘Crepúsculo dos Deuses”

podia se tornar digno do sacrifício aos deuses. Somente uma nova raça de senhores

cavalgando, ao som de Walkiria, numa cruzada pela purificação do mundo.

33 Ensaios de sociologia, 1982

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Em contraste, o povo Judeu, só podia se assemelhar à figura do homo sacer,

descrita por Agamben. Inúmeras vezes, a história tem mostrado que a este povo foi

negado o direito de viver livremente, integrado no seio dos povos que o acolheu, de

acordo com a perspectiva antropofágica de Durkheim.

Ainda hoje é negado à parte remanescente desse povo que escolheu viver no

seu país ancestral o direito de viver uma existência livre num Estado soberano.

Nesse contexto, talvez convenha perguntar em que lugar encontrar ainda uma

esperança de viver? Será que talvez somente lhe restasse assumir a condição de

eterno “judeu errante”, de “perpétuo estranho” no seio do país que o adota, de pária

contumaz que lhe foi tradicionalmente atribuído? Aguardando talvez a próxima

sentença pronunciada por uma nova exceção soberana que o declare Sacer, fora do

alcance de qualquer reparo, à mercê de uma provável expulsão para fora dos limites

do ban de um “mundo ordeiro”?

1.3.5.7. Política, ou seja, “o dar forma” à vida de um Povo

Segundo Reiter34 (apud Agamben, p.152), a principal novidade do nacional-

socialismo consistiu no fato do patrimônio vivente da nação passar ao primeiro plano

- nos interesses e nos cálculos do Reich - e tornar-se a base de uma nova política,

que começou, antes de tudo, estabelecendo “o balanço dos valores vivos de um

povo” e se propôs a assumir “os cuidados do corpo biológico da nação”.

“A revolução nacional-socialista, escreve o autor, deseja fazer apelo às forças

que tendem à exclusão dos fatores de degeneração biológica e à manutenção da

saúde hereditária do povo. Ela almeja fortificar a saúde do conjunto do povo e

eliminar as influências que prejudicam o desenvolvimento biológico da nação”

(AGAMBEN, 2002, p.154).

Esta nova política encontra legitimidade na assunção de uma suposta missão

biopolítica do Estado, de acordo com a concepção do “vir-a-ser” (dasein), na qual

34 Vershuer, O, État et santé, Cahiers de l’institut allemand, Paris, 1942.

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vida e política se identificavam com a idéia de “dar forma à vida de um povo”. Para

Reiter, “a herança biológica é certamente um destino: mostremos então saber serem

os senhores deste destino, enquanto consideramos a herança biológica como a

missão que nos foi atribuída e que devemos cumprir”. (op. cit., p.155). Nesse

quadro, a assunção do biológico, da procriação, da hereditariedade e da doença nos

processos biológicos, bem como o controle dos seus “acasos” se torna um dos

objetivos mais imediatos do regime.

De acordo com a genealogia do poder analisada por Foucault, nas

sociedades de soberania, o sangue aflorava como o objetivo predileto dos

dispositivos de poder. Os duelos, a esgrima, as batalhas campais, a importância de

se ter certo sangue ou a de se derramar sangue: todos esses fatores revelavam a

potência vital do sangue naquele período. Atualmente, em contraposição à noção de

sangue, toda uma mística ligada aos genes está emergindo, e parece disposta a

converter esses componentes moleculares humanos nos novos protagonistas do

novo biopoder. Assim como o sangue nas sociedades feudais e o sexo no mundo

industrial, hoje são os genes que determinam a essência da vida, “o que você é”.

Nesse sentido, as instituições que comandam hoje a produção de corpos e

almas individuais e a intervenção no substrato biológico das populações se

apresentam como capazes não apenas de regularizar os processos, de polir e evitar

contingências, mas também de alterar as próprias essências orgânicas: mexer nos

códigos da vida, re-programar os destinos biológicos dos indivíduos e das espécies.

Convém agora examinar os novos rumos a serem tomados pela máxima de

face dupla do ‘biopoder’: “fazer morrer e deixar morrer”.

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1.3.5.8. Rumos da Biopolítica do futuro

De acordo com Paula Sibilia35, em contraste com a antiga visão holística

própria das ciências humanas os saberes afinam seu foco no corpo humano:

Os saberes próprios à tecnociência mais recente afinam seu foco para concentrá-lo no substrato micromolecular do corpo humano: toda a causalidade é circunscrita à programação genética; conseqüentemente, a terapêutica deve apontar para a correção dos erros pontuais inscritos no código genético dos pacientes. Alterar a programação para corrigir os erros, eis o novo procedimento de cura das doenças (SIBILIA, 2002, p.186),

Assim no caso específico de crianças condenadas a viver em ambiente

“esterilizado” devido a um problema de déficit imunológico muito grave, a terapia

genética constitui uma imensa esperança uma vez que se trata de “fazer viver aquilo

que não devia viver”: temos aqui aparentemente, um exemplo de “biopolítica

positiva”.

É possível ir ainda mais longe: se a propensão para uma doença reside em

uma característica geneticamente hereditária, por que não realizar uma intervenção

embrionária, que permita eliminar essa propensão nas gerações presentes e futuras

que possam dela padecer? Tal é a proposta das terapias genéticas de linha

“germinal” que prometem diferir de todos os dispositivos médicos do passado,

graças a seu potencial para alterar a espécie humana, afetando não apenas o

indivíduo em tratamento, mas toda a sua descendência.

O exemplo das terapias genéticas, e mais geralmente a idéia das

manipulações genéticas ilustram a marcha de uma sociedade em direção a um

modelo do homem do futuro, “purificado” de toda forma de patologia, um modelo de

homem não mais previsível, mas “programado” desde a sua própria fecundação.

Nesse quadro, observa-se uma evolução em dois níveis: no tocante ao

“homem-corpo”, com o objetivo confessado da biopolítica do futuro de derrotar o

“acaso biológico” e, com ela a própria monstruosidade, convém perguntar se não 35 O homem pós-orgânico, 2002.

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surge no horizonte político, uma nova forma de eugenia, consistindo menos em

deixar ou fazer morrer os indivíduos irredutíveis a uma norma, do que intervir no

processo natural para que o “vir-a-ser”, o dasein, seja conforme ao que a sociedade

define como normal. Os novos saberes privatizados e descentralizados oferecem no

mercado a promessa de dominar o imprevisível, exacerbando assim uma das

qualidades originais da produção biopolítica: controlar, eventualmente modificar a

probabilidade dos eventos biológicos, em todo caso, compensar seus efeitos.

Talvez estejamos em presença de uma nova versão da velha distinção entre

o que é “digno de viver” e o que não é, e cujo critério não seria mais o sangue (ius

sanguinis), nem o território (ius soli), nem mesmo o sexo, mas a “vida sã”, sadia.

Com a biopolítica moderna, podemos vislumbrar uma transformação gradativa das

antigas comunidades de sangue e de destino em comunidades de homens “vivendo”

(no gerúndio e não adjetivado), observa Philippe Hauser36.

Quanto ao “homem-espécie”, podemos afirmar que, com o progresso das

ciências biomédicas, o novo ideal de “otimização da vida sã” vem reformular o

ordenamento das fronteiras nacionais - que outrora opunha entre si comunidades de

sangue e de território - para doravante contemplar comunidades que o

desenvolvimento do capitalismo colocou na posição de povos sãos, saudáveis e

desse modo, “vencedores”.

Segundo Hauser, a intervenção que a OTAN fez no Kósovo talvez tenha tido

o seguinte significado:

Não de impor ao último baluarte comunista e nacionalista da Europa as condições da lógica do liberalismo mundial, nem de mostrar quem é o senhor da nova Ordem mundial – como se os nacionalistas pan-eslavos podiam ainda ignorá-lo – mas de relembrar que o mito do sangue e da raça pura não faz mais parte da ordem dos ‘possíveis’ políticos dos povos ricos, os quais definem doravante as fronteiras de inclusão das áreas geográficas, em função de ‘critérios’ de preservação da vida, que deve ser incluída, a todo custo e por todos os meios, à comunidade dos povos ‘vivendo’ (2003, p.8).

36 Biopolitique du futur, 2003.

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Surge, nesse contexto, uma nova divisão do mundo que não se ajusta mais à

tradicional classificação entre povos ricos e pobres, povos desenvolvidos e

subdesenvolvidos, “norte e sul”, mas que obedece à nova distinção entre “povo

vivendo” e “povo morrendo”. De um lado, os “povos vivendo” cada vez melhor, cada

vez mais intensamente, em comunidades que afastam cada vez mais longe o dia da

morte, fazendo dela um assunto cada vez mais privado, tornando, com o auxílio da

tecnologia cada vez mais aperfeiçoada, também mais rígidas as condições de

acesso à “normalidade”.

Por outro lado, os “povos morrendo”, para os quais a morte constitui ainda um

assunto de ordem pública, continuam sendo tratados com meios precários inclusive

em suas epidemias endêmicas e em doenças como a AIDS que os assolam,

enquanto no Ocidente, em contraste, cuida-se de pacientes terminais com terapia

intensiva sofisticada e cara. Nesse quadro, compreende-se o novo interesse das

nações ricas em erguer, entre os “povos vivos” e os “povos morrendo”, não mais a

“muralha de antigamente”, mas sim um “cordão de isolamento sanitário”, a fim de

proteger a vida daqueles que precisam “fazer viver”, longe de qualquer possível

‘contágio’.

De acordo com a visão de Nietzsche, é da natureza do poder proceder a uma

seleção rigorosa entre aquilo que é vigoroso e ascendente e aquilo que é fraco e

decadente. Se admitirmos que os ideais de vida e de saúde se constroem a partir do

contraste entre as imagens de vida e de morte, de saúde e de doença, então se

compreende porque é crucial, para os “povos vivendo”, delimitar e “cercar” o espaço

onde vive confinada a metade da humanidade e no interior do qual a morte ronda e

ameaça.

Por fim, convém mencionar os dispositivos de controle, descritos por

Foucault37, que são voltados para a direção da vigilância das populações e da sua

movimentação. Esses dispositivos, hoje constituídos pelo controle dos fluxos

migratórios nas fronteiras dos blocos geográficos ricos e pela expulsão, com os

“charters da vergonha”, daqueles que não são “decifráveis” pela norma aceita,

37 Vigiar e punir, 2002.

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delineiam doravante uma nova linha divisória do mundo, onde a presença daquele

que “não pode viver aqui”, daquele portanto que é “condenado” a viver lá onde

eventualmente “não se pode mais viver”, assinala a necessidade de ressurgimento

do antigo “campo” com uma nova configuração: excêntrico, invisível, composto pelo

resíduo daqueles que não podem ser incluídos no espaço das comunidades de

“homens vivendo”.

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2. AS MANIFESTAÇÕES DO TOTALITARISMO

2.1. A IDENTIDADE VÖLKISCHE

Faye38 (1972, p.156) efetuou um interessante estudo genealógico da palavra völkische. Segundo o autor, Völkische corresponde à germanização do adjetivo

nacional. A justaposição dos dois epítetos heimatlich–völkisch “designa aquilo que é

ligado, em substância, ao país natal e ao seu povo”. Fichte foi um dos primeiros

autores a utilizar o termo em seus primeiros “Discursos à Nação Alemã”. Com ele,

alemão (deutsch), passará a ter o sentido de völkisch, como sendo algo de original,

genuíno, autônomo.

Entre deutsch e völkisch estabelece-se, para Faye, uma relação em dois

níveis: um estritamente horizontal, já que etimologicamente um dos termos

corresponde à tradução literal do outro; e um de natureza vertical, uma vez que as

duas palavras têm o mesmo denominador comum, o mesmo “gerador” comum: o

povo alemão. Citando o Grimms Deutsches Wörtekbuch, Faye escreve que no

decorrer das lutas partidárias, a palavra völkische se torna uma palavra de ordem,

uma palavra de luta e expressa “uma relação de antagonismo entre o mesmo e o

outro, entre o idêntico e o diferente”.

O homem völkisch é um alemão genuíno, absolutamente idêntico a si próprio,

e oposto a tudo que representa a sua negação, o não-völkisch, isto é, aquele que lhe

é intrinsecamente diferente, o forasteiro, o estrangeiro. Com Chamberlain, observa

Faye, o termo passa a ser utilizado em oposição a judeu e se torna a palavra de

ordem cultural e política dos anti-semitas. Associado ao ódio de raça, o termo

constitui a base da profissão de fé política do nacional-socialismo. No decorrer das

lutas políticas, acentua-se assim a oposição de caráter racial aos judeus. O protesto

do homem völkisch é o protesto de uma raça germânica ante a intrusão de uma tribo

estrangeira.

38 Les langages totalitaires, 1972.

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Na Divina Comédia que chamamos História, o judaísmo significa o princípio do mal, aquele que é contra, o oposto, o rival, o adversário que deseja extirpar a alma do mundo (...). A liderança da Judentum pertence ao organismo da humanidade, assim como certas bactérias pertencem ao corpo humano. No entanto, a presença dessas bactérias - que são um mal necessário -, quando excede a medida tolerável, pode consumir espiritualmente o povo que as carrega’’ (LAMBERT; ECKART apud FAYE, 1972, p.169).

Faye cita Fritsch para quem no começo dos tempos veio o princípio do mal

sob a forma da degenerescência (entartung). A sua causa principal vem da

miscigenação das raças (rassenvermischung). Nas sociedades antigas, o Estado

tinha a tarefa de eliminar da sua órbita, os elementos nefastos. Todos os impérios da

antiguidade, o Egito, a Pérsia, a Índia, tiveram o seu regime de castas, mas o mérito

da Índia, segundo Fritsch, foi o de ter instaurado o regime de sem casta, dos párias,

dos maculados, o regime do tschandala, constituído pelos criminosos, leprosos,

pelos portadores de doença contagiosa.

As medidas de discriminação contra os forasteiros podem parecer duras,

observa Fritsch, mas era o preço a pagar para a expansão dos povos e a

preservação das raças. Desde então, para Fritsch (op.cit., p.176-177), a questão

judaica se confunde com a questão do tschandala. O povo Judeu, essa

“miscigenação vergonhosa”, se tornou uma raça nova, uma raça dos sem raça, uma

entartung, uma degenerescência da humanidade desumanizada. O pretenso

progresso da civilização constitui em realidade um verdadeiro declínio (verfall), uma

vez que “estimula a fraqueza e a miscigenação com aqueles que já foram de todos

os tempos, miscigenados” (FRISCH apud FAYE, 1972, p.176-177).

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2.1.1. O anti-semitismo völkisch

Ao comparar o conteúdo do discurso dos partidos anti-semitas dos anos 1880

com o do Partido Nacional-Socialista, meio-século depois, Faye observa uma

transformação notável da linguagem, com a substituição da palavra negativa

antisemitich pela palavra völkische, termo positivo por excelência, no ideário do

nacionalismo alemão. “Não se trata mais de incriminar um Povo supostamente

amaldiçoado em sua dispersão. É preciso antes de tudo exaltar o Povo (ariano) para

o qual o ‘Eu’ de Fichte pretende se expandir em toda a sua dimensão biológica”.

(FAYE, 1972, p.194).

Enquanto o movimento anti-semita não passava de um simples movimento de

defesa, de um mero ressentimento, o movimento völkisch significa um despertar

(erwachen). Historicamente, acresenta o autor, o movimento de defesa cobriu o

período do II Reich de Bismarck e o outro, o do despertar, estendeu-se num período

posterior que vai até o III Reich. O völkisch torna-se assim a contrapartida positiva

do anti-semitismo que o antecede e que foi a sua primeira versão negativa.

Enquanto o movimento de defesa anti-semita apresenta um aspecto negativo,

o despertar völkisch corresponde a um movimento de afirmação positiva. Segundo o

autor, a afirmação de uma identidade völkische substituiu o discurso do

ressentimento. Com ela, há uma inversão total de papéis: não é mais o alemão que

é anti-semita, mas é a vez do judeu de ser antivölkisch. Judeu se torna sinônimo de

antivölkisch. De acordo com Faye, essa transformação ocorreu em 1918, ano que

marcou uma verdadeira transvaloração do negativo para o positivo, da reivindicação

para a afirmação, do ressentimento para o despertar.

Os conceitos de classe e de religião passam a assumir um aspecto retrógrado

e devem ser apagados de vez: doravante só é reconhecido como fonte única da

existência alemã, o conceito de etnia (völkstum), de raça (rasse) e de comunidade

de sangue. O ponto de referência da nova identidade völkisch passa a ser a

comunidade de sangue. Assim, nas palavras de Fritsch, as forças em conflito,

durante a Revolta de 1918 foram, de um lado, aquelas que constroem a ”unidade do

povo alemão” (volksgemeinschaft) e, do outro, a idéia doentia de luta de classes. O

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judeu encarna o inimigo interior, o poder dissolvente que procura destruir

sistematicamente a unidade do povo no seu princípio völkisch.

A partir de Mein Kampf dá-se maior ênfase ao Povo (volk) – no sentido

völkisch-rassisch - de preferência ao Estado (staat). A principal missão do Estado

völkisch é a de preservar os elementos raciais originais em oposição ao tradicional

papel do Estado democrático, como representante do povo soberano. “No Estado, a

luta de classes é substituída pela luta de raças”, observou também Rauschning

(apud FAYE, 1972, p.344).

“O golpe mais forte que tem abalado a humanidade é o advento do

cristianismo”, declarou Hitler (apud FAYE, 1972, p.194), no seu terceiro dia de

campanha na Rússia. Na sua visão, “o bolchevismo é a criança ilegítima do

cristianismo, ambos são invenções do judeu”.

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2.2. A GUERRA TOTAL

A idéia de Estado total de um tipo inédito surgiu na literatura do início do

século XX, com Wells39, London40 e Belloc41. Logo depois, a partir da mobilização

para a Guerra 1914, nasce a idéia de Estado total. Durkheim42 por seu lado, procura

explicar o adversário teutônico a partir do triunfo de uma concepção do Estado

caracterizado pela noção de potência. Em 1930, Schmitt expõe a sua concepção do

Estado total, a partir da experiência da 1ª Guerra Mundial: “Todo Estado é impelido a

se apossar dos meios de potência de que ele precisa para (exercer) sua soberania

política” (SCHMITT apud CHAPOUTOT, 2005).

Não obstante foi com Yünger, herói de guerra e um dos idealizadores da

Revolução conservadora na Alemanha, que novas perspectivas políticas foram

abertas com a união do velho espírito guerreiro e da modernidade tecnológica. Em

seu livro Der Arbeiter, em 1932, ele esboça uma futura “democracia do trabalhador a

partir de uma vontade de ditadura total (que) se materializa numa nova ordem, como

vontade de mobilização total”. Segundo Yünger, “a nova ‘comunidade de trabalho’

derivada da economia de guerra deve substituir a ‘totalidade humana’ nascida sob

as ‘tempestades de aço’ sofridas nas trincheiras”.

2.2.1. Uma sociedade mobilizada

Cinco séculos antes de Cristo, Sun Tsu já observava: “a prontidão é a

essência da guerra”. As noções de Mobilização total e de Estado total estão

vinculadas. Foram idealizadas pelos mentores da “Revolução conservadora” na

Alemanha, e serão implementadas durante a fase totalitária. Não é de se

surpreender, portanto, que muitos intelectuais tenham aderido a “Revolução”

nacional-socialista. Schmitt se torna jurista oficial do regime, Forsthoff aplaude a

vinda de um novo regime político, Jünger e Ludendorff saúdam o renascimento 39 O adormecido acordado, 1900. 40 O salto de ferro, 1909. 41 O Estado servil, 1911. 42 L’Allemagne au-dessus de tout

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nacional alemão. O Estado totalitário deverá cumprir as esperanças dos

idealizadores do Estado total.

O regime nacional-socialista pretende organizar uma sociedade sem classes,

uma comunidade nacional orgânica, unida em volta da bandeira com a cruz gamada

do partido único, tornado partido-estado. O Estado nacional-socialista preenche os

critérios quantitativos e qualificativos definidos por Schmitt. Quantitativamente, a

esfera de competência do Estado se estende em toda parte, do berço ao túmulo.

Qualitativamente, o Estado é totalmente uno e forte, voltado para o objetivo último

da guerra.

O Estado em direção ao qual seus idealizadores aspiram é um Estado capaz

de conduzir com êxito o que Yünger chamava de Mobilização total, a totale

mobilmachung, isto é, “a exploração total de toda a energia potencial” de um povo,

empenhado na guerra como um só exército:

A potência é a força organizada, a união do órgão com a força. O universo é repleto de forças que procuram um órgão para se tornar potencia. Os ventos, as águas são forças: aplicados ao moinho ou a bomba hidráulica que constituem os seus órgãos, eles se tornam potências. Essa distinção entre a força e a potência assemelha-se à solução do problema da soberania no corpo político. O povo é a força, o governo, o seu órgão e a reunião dos dois formam a potência política. Quando o órgão é destruído e que as forças permanecem [vivas], não resta nada mais do que convulsão, delírio ou furor. E se é o povo que se separou do seu órgão, isto é, de seu governo, começa a revolução (YÜNGER, 1990, p.75).

Com a mobilização, é possível conectar toda a rede complexa da divisão do

trabalho da vida moderna “nessa linha de alta tensão” (op. cit. p.109) constituída

pela atividade militar. Ao lado dos exércitos que se enfrentam num campo de

batalha, surgem exércitos de um gênero novo: “o exército encarregado das

comunicações, o que tem a responsabilidade do abastecimento, o que se encarrega

da indústria do equipamento – o exército do trabalho em geral”. A Mobilização total

tem a forma de um dirigismo econômico, de um planejamento industrial centralizado,

à imagem dos planos qüinqüenais soviéticos. Os poderosos programas de

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equipamentos industriais, a uso militar, dos últimos anos da guerra, transformaram

os países beligerantes “em gigantescas linhas de montagem, produzindo exércitos

que serão enviados, de maneira incessante para o front, onde um processo de

dispêndio sangrento desempenha o papel de mercado” (CHAPOUTOT, 2005).

Com a mobilização e a potência, o Estado não somente atinge a sua maior extensão territorial, mas adquire uma nova função: dar a primazia aos problemas de segurança. Não é apenas a extensão territorial que se torna relevante (...). Com a grande importância atribuída pelo Estado ao problema da Segurança, doravante é essa última que delineia a sua forma e o seu destino (YÜNGER, 1990, p.92).

A esse respeito, Virilio43 observa que na sociedade antiga, em que

predominavam as estratégias econômicas e política, o exercito era uma defesa

nacional. Sua tarefa consistia em proteger fronteiras ou expandi-las combatendo o

inimigo. Em contrapartida, na sociedade moderna onde predominam os problemas

de segurança, as forças armadas voltam-se contra as suas próprias populações,

para exigir os recursos necessários para a guerra total e para controlar a sociedade.

Podemos distinguir dois sistemas: o sistema de defesa contra um inimigo, e o sistema de segurança contra uma ameaça (...). A defesa e o inimigo construíram territórios, temporalidades de todo tipo (...). Inversamente, a segurança e as ameaças desmantelam territórios (...). As cidades serão evacuadas, uma diáspora provocada, os territórios desmantelados. É desregulagem (...) e não só de territórios. Em nome da segurança, em nome da proteção, tudo é desfeito, desregulado: relações econômicas, relações sociais, relações sexuais, relações de dinheiro e poder (VIRILIO, 1984, p.100).

No entanto, a Mobilização total não se restringe apenas ao campo econômico;

investe igualmente na esfera do direito civil e do direito constitucional para criar um

novo tipo de contrato social no qual o cidadão é provido de direitos apenas

compatíveis com a defesa do país. Desta forma, o Estado militariza a vida civil,

submetendo-a a uma organização e a uma disciplina que anunciam a mobilização e

a Guerra total, que serão teorizadas por Schmitt e Forsthoff. Para Forsthoff, jurista e

professor de direito público, membro do Partido nacional-socialista, o Estado total é

a antítese diametral do Estado liberal, do Estado de Direito e do sistema partidário

encarnados pela República de Weimar, que o autor execra:

43 Guerra pura. A militarização do cotidiano, 1984.

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O Estado total é o oposto do Estado liberal (...). O Estado liberal é corroído pela luta entre os interesses particulares, pela luta dos partidos: ele é vazio de conteúdo, minimalista e o seu poder é anulado pela sua fragmentação em decorrências das garantias jurídicas determinadas por leis que servem a interesses particulares. Em oposição, o Estado total organiza e estrutura uma comunidade total, unida, que supera as tensões antagônicas. A totalidade do poder político deve cristalizar-se no Estado total (FORSTHOFF apud CHAPOUTOT, 2005).

Para Forsthoff e Schmitt, o Estado total é o estado por excelência, “aquele

que reconcilia a Comunidade Nacional consigo mesma, promove o interesse geral e

dirige a Nação inteiramente voltada para um destino comum e contra um inimigo

comum”. Schmitt deplora a divisão estéril e feroz inerente aos partidos políticos, que

se enfrentam, bloco contra bloco, corroendo por dentro o Estado e o processo de

decisão política. Ele observa ainda que os partidos políticos têm uma vocação

totalitária pelo caráter radical, intolerante de suas ideologias, assim como pela sua

dimensão social.

Não temos hoje na Alemanha um Estado total, mas uma pluralidade de partidos, onde cada um procura alcançar a totalidade. Estes partidos que pretendem oferecer tudo ao mesmo tempo - ideologia, sociabilidade e comunitarismo -, são partidos totais. Como eles são numerosos e se opõem frontalmente, cada qual desqualificando a proposta do outro, a coexistência de várias estruturas totais desses gêneros, que dominam o Estado por meio do Parlamento, se torna a causa da destruição do Estado e da Sociedade, em decorrência de interesses partidários antagônicos (SCHMITT apud CHAPOUTOT, 2007).

De acordo com Schmitt, paradoxalmente - e de maneira perversa - o Estado

pluralista deixa manifestar os objetivos monopolistas de cada um desses partidos

totais, os quais ambicionam o monopólio político e acabam assim por enfraquecer a

ação do Estado. O advento do Estado total só pode ser desejável uma vez que ele é

a única forma de realizar plenamente o conceito de Estado soberano e poderoso. As

forças que o promovem são inelutáveis, em razão do progresso técnico que provê o

Estado de instrumentos de dominação inéditos.

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A reviravolta para o Estado total é puramente quantitativa e não qualitativa.

Um Estado verdadeiramente total é um Estado forte, que “não deixa surgir dentro

dele nenhuma força que possa lhe ser hostil, que o entrave ou que o divida”. (op.

cit.). Os textos de Jünger, Schmitt e Forsthoff, sobre as noções de Mobilização total

e de Estado total, em sinergia com o pensamento fascista italiano, irão alimentar a

reflexão de Ludendorff sobre a noção de Guerra total.

Em 1916, Erich Ludendorff elabora o Plano Hinderburg para o Alto Comando

alemao, no qual todos os recursos, todas as forças vivas da Nação deveriam ser

orientadas para o esforço de guerra, organizado por um planejamento militar

coerente e centralizado. Após a derrota, Ludendorff expõe suas reflexões em um

livro publicado em 1936 e intitulado precisamente Der Totale Krieg. Segundo ele, a

1ª Guerra Mundial marcou a passagem de uma guerra tradicional, uma guerra de

gabinetes, limitada no seu alcance e nos seus objetivos, para uma Guerra total.

conceito de Guerra total, entretanto, foi associado ao nazismo bem antes da história

do III Reich.

Clausewitz44 (apud CHAPOUTOT, 2007) operou uma distinção entre guerra

absoluta e guerra de gabinetes. A guerra absoluta era uma expressão para designar

o último estágio de um conflito no qual os beligerantes colocam todos os seus meios

em ação, não apenas para vencer, mas para aniquilar o inimigo. É essa noção de

guerra absoluta, de Guerra total que foi retomada pelo Alto Comando alemão

durante a 1ª Guerra Mundial. Em contrapartida, na guerra de gabinetes, o principal

objetivo era de exercer uma coerção sobre outro Estado, de tal modo a conduzi-lo a

rendição completa. De acordo com a fórmula consagrada de Clausewitz, a guerra de

gabinetes constitui “uma continuação da política por outros meios”; prolongamento

da ação política, a guerra conserva dela a frieza calculada e o alcance limitado. No

entanto, para Ludendorff, a definição de Clausewitz da guerra já é obsoleta, uma vez

44 Karl von Clausewitz, Vom Kriege, trad. fr. De la guerre, 1815.

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que indica somente um envolvimento limitado, com um objetivo preciso e bem

definido, circunscrito à única esfera militar.

Na guerra de gabinetes, a guerra era, antes de tudo, assunto de ministros e

de soldados. Ela se desenrolava num espaço restrito, em acordo com os tradicionais

códigos da arte bélica e do direito consuetudinário da guerra, que regulavam os

conflitos entre fidalgos havia séculos. No entanto, Clausewitz, que foi

contemporâneo da Revolução Francesa, do alistamento em massa de voluntários,

do recrutamento e do serviço militar obrigatório, já havia percebido os sinais de

mutação na essência da guerra: uma “escalada para os extremos” que devia

conduzir a guerra até a sua “forma absoluta”. Uma forma absoluta que devia se

tornar uma enteléquia, uma força propulsora da própria guerra.

Mas, para Ludendorff (apud CHAPOUTOT, 2007), Clausewitz não foi muito

além. Ele não percebeu que a guerra é assunto de todo um povo. A guerra é a “luta

do povo pela sua vida”. Ela compromete o povo por inteiro e tem como aposta a

sobrevivência do povo inteiro. Doravante é o povo que é diretamente implicado, é

ele que é visado pelo inimigo: “embora a Revolução Francesa já houvesse envolvido

forças populares de outra natureza, a guerra ainda não tinha alcançado, para utilizar

a expressão de Clausewitz, “a sua forma abstrata absoluta”. Essa forma de guerra

absoluta, segundo Ludendorff, será realizada pela 1ª Guerra Mundial: “nessa guerra

era difícil distinguir onde começava a força armada no sentido literal e onde parava a

do povo; povo e exército formavam um só; pela primeira vez, o mundo estava

assistindo, a uma guerra dos povos, no pleno sentido da palavra” (op. cit.).

Neste contexto, desaparece a distinção entre civis e militares. A linha divisória

tradicional que os separava, emaranha-se, apaga-se. O civil se torna combatente

noutro front desta vez, o da retaguarda, graças a uma atividade produtiva e logística

que apóia e abastece a atividade da frente de batalha. Como observa Yünger: “No

decorrer da 1ª Guerra Mundial, não havia uma só atividade que não fosse uma

produção destinada, pelo menos indiretamente, à economia de guerra, quer seja a

de uma empregada doméstica trabalhando na sua máquina de costurar”. Como

combatente, o civil se torna, ao mesmo tempo, alvo e vítima do ataque do inimigo

que o alveja como poderia visar qualquer objetivo militar.

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Para Ludendorff (apud CHAPOUTOT, 2007), a prática da Guerra total se

ampliou sob as ações do serviço militar obrigatório e do recrutamento, que

associaram grupos cada vez maiores ao feito guerreiro. Foi a Revolução Francesa

que promoveu a Nação em armas, um exército composto de cidadãos-soldados à

imagem das “hóplitas” atenienses. Em Valmy, o “Viva a Nação”, vitoriosamente

oposto ao exército profissional do Rei da Prússia, marca uma dupla revolução

política e militar que se desenvolve sob a ação do progresso técnico: a propaganda

e a aviação propiciaram um raio de ação balística e psicológica, que ampliou

consideravelmente o teatro de operações da guerra. Contrariamente aos conflitos

clássicos - a guerra política dos gabinetes -, a Guerra total não visa apenas o

exército, mas igualmente os povos. Ela os associa como alvos e como combatentes.

Esta constitui uma nova realidade à qual é preciso se conformar.

A “nova guerra” não é apenas total pelo tamanho das forças que ela mobiliza,

mas também pelo investimento material e psicológico que ela implica. Quando dois

povos entram em confronto, quando dois povos colocam em risco a sua própria

existência e lutam pela sua sobrevivência, o envolvimento de cada deles deve ser

total. Ludendorff havia observado a respeito da também chamada guerra perdida de

1914-1918: “Se quiséssemos vencê-los, cada um de nós devia ter dado até o seu

último sopro, no sentido literal da palavra, até a última gota de seu suor e de seu

sangue”. E profetiza: “A próxima guerra exigirá do povo, algo de totalmente diferente:

a disponibilidade absoluta, total de suas forças espirituais, físicas e materiais”. A

nova guerra acrescenta ele, irá exigir o que faltou à Alemanha em 1914: um Estado

e um governo capaz de mobilizar a totalidade das forças espirituais e materiais da

Nação, a fim de direcioná-las para o combate total. Nessa perspectiva, pode-se

observar com Virilio: “logística é o procedimento segundo o qual o potencial de uma

nação é transferido para as suas forças armadas, tanto em tempos de paz como de

guerra” (apud VIRILIO, 1984, p.25).

Aos olhos de Ludendorff, os preparativos para uma Guerra total somente

poderão ser bem sucedidos mediante uma Política total, o que requer um regime e

um governo político determinados a comandar e preparar o povo para tal combate. A

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política total consagra assim a inclusão do campo militar no espaço e no tempo civil

da paz. O Estado deve estar voltado para a guerra e deve preparar o povo para ela:

“a política total deve se preparar, já em tempo de paz, para apoiar essa luta vital que

ocorrerá no tempo de guerra”, escreve o autor.

O advento moderno da Guerra total inverte, portanto, o vínculo tradicional

entre política e guerra. Enquanto a guerra de gabinete só deixava cicatrizes

superficiais no corpo do povo, a Guerra total coloca em risco nada menos que a sua

própria existência. Cai a perspectiva tradicional de Clausewitz, segundo a qual a

guerra é um prolongamento da ação política por outros meios e que o exército é

apenas uma ferramenta acionada pelo poder político. Em contrapartida, cresce a

perspectiva de Ludendorff que percebe que a nova guerra exige que “as togas

rendam-se às armas”, que o poder político se subordine à força militar e vê que a

eventualidade da deflagração de uma Guerra total pode se tornar uma ameaça à

própria sobrevivência do povo.

O caráter radical da luta - e do perigo - atribui uma prioridade à esfera militar,

a única capaz de adequar os corpos e os espíritos da nação ao combate total: “a

guerra e a política concorrem para a preservação dos povos, mas a guerra

permanece como a expressão suprema da vontade de vida da raça (...). É a razão

pela qual o político deve servir à guerra”, diz Ludendorff (op. cit.), invertendo, assim,

a célebre expressão de Clausewitz, de que não é mais a guerra que deve estar a

serviço do político: é o político que deverá estar a serviço da guerra. Convém

observar, a esse respeito, uma diferença de natureza essencial entre o imperialismo

britânico e o seu rival pangermanista: enquanto no primeiro as baionetas

costumavam ficar a serviço do império da lei, no segundo caso, são as leis foram

colocadas a serviço das baionetas.

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2.2.2. Guerra total e Era tecnicista

A cena de como tudo isso começou é bem conhecida, no dia 18 de fevereiro

de 1943, no palácio de esportes de Berlim. Duas semanas antes, o Feld-Marchal von

Paulus havia capitulado em Stalingrado. Pela primeira vez, a Wehrmacht havia sido

derrotada numa batalha decisiva. Naquela noite, o reichskulturminister e gauleiter de

Berlim Joseph Goebbels, pronuncia o discurso para reanimar o ardor belicista do

povo alemão. O ambiente estava na máxima exaltação. E chegou ao êxtase no

momento em que Goebbels lançou ao auditório, a famosa pergunta: “Vocês querem

a Guerra total?” E o auditório respondeu um “sim” ardoroso, o que veio a ser um dos

mais furiosos momentos de transe organizado pelo regime! Esta cena ilustra um dos

momentos mais impressionantes da aventura nazista. O discurso de Goebbels

anuncia uma radicalização da violência nazista, sob a dupla forma de terror político

no interior da Alemanha e de enfurecimento da violência no exterior.

“O Reich nazista deve se tornar a última muralha da civilização européia

contra a onda asiática que ameaça arrastar tudo: a estepe arremessou-se sobre o

nosso nobre continente, com uma ferocidade que supera qualquer imaginação

humana ou lembrança histórica (...). Contra ela, o exército alemão deve constituir,

com a ajuda de seus aliados, a única muralha digna deste nome” (GOEBBELS apud

CHAPOUTOT, 2003). O discurso de Goebbels só faz reiterar uma das constantes da

retórica belicista nazista desde o início da guerra. O ataque ao Leste é preventivo,

profilático.

Do ponto de vista geopolítico e racial, os nazistas acreditam estar

ameaçados, cercados, entre um bolchevismo judaico ao Leste e um judaísmo

capitalista ao Oeste. Neste contexto, a guerra é apresentada como um meio de

quebrar o cerco. Para despertar no seu auditório o sentimento de estar sitiado e

desencadear uma reação fanática, Goebbels lança um violento ataque contra a

URSS, projetando nela uma imagem simétrica, mas invertida da do III Reich: “atrás

das divisões blindadas soviéticas que se lançaram sobre nós, já podemos vislumbrar

os comandos judaicos encarregados de nos eliminar. Atrás deles, o terror avança”

(op. cit.). Goebbels projeta na URSS uma imagem fiel das práticas nazistas: os

pretensos comandos judaicos, produto da imaginação delirante de um orador com

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falta de argumentos, constituem a imagem invertida dos einsatzgruppen da SS, bem

reais e comprovados.

Segue uma curiosa metáfora, a de divisões de robôs motorizados que

arrasariam todo o continente europeu, não fosse a resistência alemã. A aterrorizante

caricatura que Goebbels oferece sobre a URSS tem “a máquina” como ponto central.

A comparação mecanicista utilizada constitui um argumento polêmico,

propagandístico, que será utilizado contra a União Soviética.

A URSS comunista é uma “máquina” que oprime e esmaga; uma “máquina”

cega que mata em benefício do inimigo judeu, uma máquina que fabrica robôs

lançados aos milhões contra a civilização européia. A imagem da “máquina” evoca

um artefato frio e coercitivo. Em contrapartida, ao regime nazista atribui-se outra

representação, a de um organismo harmonioso (volkskörper) que justifica a

presença do Estado total como imperativo natural. A luta contra os elementos

estrangeiros ao corpo da nação (volksfremde), ao corpo natural da raça, é baseada

numa retórica “biologista”, invocando as leis da natureza que desenvolve anticorpos

contra os micróbios e os parasitas.

Invariavelmente, os judeus são objetos de denúncia que partem de metáforas

profiláticas ou bacteriológicas: a peste judaica que representa uma ameaça contra a

integridade do corpo alemão. Não é de surpreender a preferência pela utilização de

símbolos organicistas, por parte de um regime que fundamentou toda sua ideologia

sobre um “biologismo bélico-racista”. Metáfora organicista contra metáfora

mecanicista: a segunda visa a desqualificar o inimigo, denunciando tudo que ele tem

de artificial e coercitivo, enquanto a primeira exalta o potencial vital do corpo natural

da nação, da raça e o imperativo natural da luta impiedosa pela vida.

No entanto, aos olhos de muitos analistas, foi com o regime nazista - e não

com o seu rival soviético - que pôde ser observado o triunfo da máquina e da política

mecanicista. Com efeito, do ponto de vista militar, os nazistas têm-se aproveitado

das vantagens do progresso técnico. Fiéis ao princípio napoleônico, segundo o qual

a força de um exército é o produto da sua massa pela sua velocidade, os

estrategistas nazistas idealizaram uma Wehrmacht com o peso do aço e a rapidez

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do blindado motorizado. O esforço de rearmamento alemão caracterizou-se por

uma mecanização acentuada que se tornou a base estratégica da guerra-

relâmpago.

Como observa Virilio: “nós temos de politizar a velocidade, seja a velocidade

metabólica (do ser vivo), seja a velocidade tecnológica. Temos de politizar a ambas,

porque nós somos ambas: somos movidos e nós locomovemos (..). Velocidade é

violência. O exemplo mais óbvio é o meu punho (...). Posso transformar este punho

na carícia mais delicada. Mas, se arremessar em alta velocidade, posso fazer o nariz

sangrar. Você pode ver facilmente que o que faz toda a diferença é a distribuição da

massa no espaço” (VIRILIO, 1984, p. 37 e 39).

Na guerra antiga, a defesa não consistia em acelerar, mas em retardar o

avanço das tropas, continua o autor. A preparação para a guerra era a muralha, o

baluarte, a fortaleza. No oposto, a blitzkrieg visa penetrar a frente inimiga a partir de

um choque violento e decisivo, impossível de ser contido. A velocidade das forças

blindadas motorizadas, combinada com a força de ataque da Luftwaffe, possibilitava,

graças a um movimento rápido e brutal, a abertura de uma brecha por onde podia

precipitar-se o resto da tropa. Os nazistas zelaram pela motorização eficiente de

suas tropas e pela fluidez do espaço, desembaraçado de qualquer obstáculo, para

permitir os avanços rápidos. Tal como a construção de auto-estradas do Reich, que

teve como objetivo essencialmente estratégico e militar, o de “aproximar os

isócronos com a condensação dos espaços-tempo” (CHAPOUTOT, 2003).

Segundo Christian Dubois45, nessa comunidade holística, que é a

comunidade nacional (völksgemeinschaft), cada indivíduo é considerado como uma

mola, e deve obrar para o trabalho do grande todo. Num Estado total que se

assemelha a uma grande máquina, o indivíduo não é senhor do dispositivo. Ao

contrário, ele é apenas um elemento do dispositivo, uma simples peça do dispositivo

que ele acredita dominar. Assim, a dominação técnica é o sinal de uma impotência

fundamental, de uma impropriedade fundamental de toda dominação, na qual o

homem se embrenha numa figura de inversão do domínio em escravidão. O que é

45 Heidegger: Introdução a uma leitura.

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perigoso na técnica é simplesmente que respondendo o seu apelo, sem dele ser

consciente, o homem é reduzido a um mero elemento disponível, uma peça como

qualquer uma dentre do maquinário geral.

Jünger, por sua vez, já notava que as restrições às liberdades individuais

visam “eliminar tudo o que não era essencial ao mecanismo de funcionamento do

Estado”. A máquina do Estado total “converte toda existência em energia” para

alimentar os sispositivos imprescindíveis ao seu próprio movimento: a concentração

dos poderes, a Mobilização total e, por fim, a própria guerra. A imagem do Estado,

identificada a uma máquina, tem impregnado todo o discurso nazista, retomando

assim o discurso político e jurídico prussiano que utilizava, desde o século XVIII, as

noções de staatsapparat, de staatsmaschinerie, para projetar a imagem de uma

máquina de Estado racional.

2.2.3. Uma Sociedade ‘alinhada’ O regime nacional-socialista, certa vez utilizou outras expressões que ilustram

uma visão mecanicista do Estado: assim, o conceito de Sociedade alinhada

(gleichschaltung), que significa literalmente “colocar na mesma velocidade”,

sincronizar, e que muitas vezes foi traduzido como endireitar, adestrar ou alinhar.

Gleichschaltung é um termo emprestado do vocabulário eletro-técnico: schalten

significa engatar uma marcha ou acionar um aparelho. Desse modo, gleichschlten

significa coordenar, harmonizar, regular na mesma cadência, no mesmo ritmo,

regular um mecanismo. Acionar em suma, uma máquina e, neste caso, a máquina

do Estado total, do Estado-partido, do Estado-sociedade. Na prática, a

gleichschaltung significou o endireitamento dos sindicatos, dos partidos, dos länder,

das Associações de Veteranos de Guerra, que deveriam atuar de maneira

cadenciada, num movimento harmônico, em boa ordem. O discurso de Goebbels dá

uma grande ênfase a essa noção:

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O que entendemos pela gleichschaltung (...) não é nada mais que uma transformação radical do Estado e de todos os partidos, de todas as comunidades de interesses, de todas as associações, para transformá-los num grande todo. É um passo decisivo em direção ao Estado total que poderá existir no futuro, somente através da unidade num só partido, de uma só convicção, de um só povo. Todas as outras forças devem ser subordinadas a esse Estado ou, antes, ser varridas sem piedade; pois esta Revolução desconhece os compromissos; os compromissos são os assuntos do parlamentarismo (GOEBBELS apud CHAPOUTOT, 2005).

Nesse Estado total, o indivíduo só tem lugar e existe apenas na condição de

mola propulsora. Só tem valor na medida em que contribua para o bom

funcionamento do conjunto, em que desempenhe o seu papel, a sua função.

2.2.4. O indivíduo performático em uma sociedade mecanizada

O valor que o indivíduo tem para uma sociedade ‘alinhada’ é estimado em

função da sua capacidade contributiva (leistungsfähigkeit), isto é, da sua aptidão em

cumprir com êxito um leistung, uma tarefa em prol da comunidade e do Estado. O

conceito de leistung é muito significativo na retórica nazista. Etwas leisten significa

efetuar, produzir, realizar algo: é um indicador normativo utilizado para avaliar a vida

do homem em prol da comunidade a qual pertence, uma vida submetida ao cálculo

custo/benefício. Um indivíduo só é aceito, incentivado, promovido e alimentado na

medida em que possa trabalhar para o seu Estado e para a sua raça, enquanto a

sua capacidade contributiva (leistung) exceder generosamente aquilo que a

comunidade vai lhe retribuir.

Desse modo, quando a vida de um indivíduo representa uma perda líquida

para a comunidade (leistungsunfähig), a pessoa é declarada “indigna de viver”

(lebensunwert). Uma vida indigna de ser vivida (lebensunwertes leben) será então

interrompida pela morte como a dos doentes mentais, submetidos a uma ação de

eutanásia no quadro da “operação T4”. Um indivíduo leistungsunfähig se torna um

ônus para a comunidade, um peso morto que atrasa a marcha da máquina, da raça

e do Estado. “Ele deve ser virado de bordo, como uma máquina defeituosa que tem

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dificuldade para adquirir altitude ou ganhar velocidade”. (CHAPOUTOT, 2005, p.9-

10)

A situação de um indivíduo que representa uma “perda líquida”

(leistungsunfähigkeit) para a Comunidade determinará de maneira inelutável a sua

sentença de morte; em contrapartida, a capacidade contributiva dos indivíduos

saudáveis (leistungsfähigkeit) deve ser incentivada e promovida, notadamente pela

prática do esporte, de uma alimentação saudável, da higiene e, sobretudo, pela

preservação da pureza racial. A prática do esporte (köperliche ertüchtigung) deve

tornar o corpo harmonioso e forte, mas também duro e resistente, como o aço, “esse

aço da máquina e do homem transformado em máquina de aço, símbolo manifesto

de força e de obediência”. (CHAPOUTOT, 2005, p.9-10)

Essa máquina individual deve exercer uma atividade produtiva, produzir

leistung, o que significa também “produzir filhos”. A procriação se torna um

imperativo político que é incentivado pelo Estado e pela propaganda. É preciso

produzir braços para a indústria e para a guerra. Segundo Chapoutot, a expressão

utilizada pela propaganda nazista é: “produzir crianças” (kinder zeugen) do mesmo

modo que numa fábrica, uma máquina produz (erzeugt) mercadorias (erzeugnisse).

O indivíduo é considerado pelos nazistas como “um material humano”

(menschenmaterial), uma matéria-prima que deve ser aperfeiçoada, esculpida,

construída. O “material humano” nazista é, antes de tudo, um material racial que o

esporte e a higiene devem modelar. Esse material selecionado deve ser “colocado

em forma” e aperfeiçoado tanto pela eliminação dos fracos, dos débeis mentais e

dos alógenos, quanto pela absorção dos ‘iguais’, dos semelhantes mais vigorosos.

Como observou Yünger, o Estado total - que mobiliza toda a população, as

almas e as energias para a Guerra total - lembra o funcionamento preciso de uma

“turbina alimentada com o sangue humano”, imagem assustadora de uma Estado-

máquina que injeta sangue e corpos de homens numa máquina de guerra, num

contexto de “guerra mecanizada de uma era tecnicista”. O advento da era tecnicista

descrita por ele teve repercussões no período entre as duas Grandes Guerras.

Como foi citado no capítulo da matriz social (Cap. 1.2), foi a partir da 1ª Guerra

Mundial, que o combatente se tornou uma mera peça mecânica. A mecanização

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desses indivíduos contagiou as relações humanas e abriu caminho para que a

cultura da guerra influenciasse a sociedade civil alemã. De acordo com Mosse, as

sociedades européias ficaram traumatizadas com o horror das trincheiras por um

longo período. Muitas tiveram dificuldades em esquecer-se da guerra, como foi o

caso da Alemanha, num fenômeno de “brutalização das sociedades européias”.

De acordo com Mosse, a retórica e a ética política foram impregnadas por

uma agressividade que imprimiu na atividade política civil um aspecto belicista, tanto

pelo discurso inflamado, quanto pelas ações violentas. Existe uma filiação direta

entre o ideal nazista do soldado político e uma tradição militar prussiana que tem

sido o modelo de todos os exércitos da Europa. A esse respeito, o autor lembra a

observação perspicaz de Mirabeau, durante o seu semi-exílio em Berlim, em 1788:

“A Prússia não é um Estado que possui um exército; é um exército que ocupa um

Estado” (CHAPOUTOT, 2003).

O Estado total que extingue a separação entre o Estado e a Sociedade -

talvez indique esse momento no qual a sociedade se militariza com muita

intensidade, onde o Estado, voltado para a Guerra total organiza resolutamente a

Mobilização total da sociedade. Nesse sentido, o totalitarismo nacional-socialista foi

a manifestação de uma vontade de “mecanizar o homem e a sociedade”, sob a ação

de um Estado total.

Em resumo, o III Reich ambicionou se tornar uma sociedade alinhada

(gleichgschaltet), regida pela capacidade contributiva (leistungsprinzip) e pelo

sacrifício do seu material humano (menschenmaterial), aspirando a se tornar uma

máquina total que regula toda a atividade mecânica e planejada de ‘cidadões-

autômatos’.

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2.2.5. Genealogia da Guerra total Um decreto do führer de 25 de julho de 1944 proclama a Guerra total:

O aparelho de Estado deve ser inspecionado e reavaliado no seu conjunto, de tal modo a se obter uma liberação máxima de forças para o exército e a produção, uma organização mais racional dos serviços públicos, uma redução das tarefas não diretamente úteis à guerra graças a simplificação e a melhoria dos processos (HITLER, 1944, apud CHAPOUTOT, 2005).

Toda uma organização racional será mobilizada para melhorar o

desempenho da máquina estatal. Goebbels (apud CHAPOUTOT, 2005) anuncia

medidas de terror cada vez mais duras: “Tudo que serve ao povo, tudo que o

mantém, tudo que endurece e desenvolve a sua força de combate e de trabalho é

bom e indispensável para a guerra”, diz ele. “Tudo que se opõe a esse objetivo deve

ser erradicado (...). Hoje, o mais radical é apenas bastante radical, e o mais total é

apenas bastante total para nos levar à vitória, a uma vitória total”.

O conteúdo da propaganda nazista visa uma mobilização mecânica das

energias e da violência. O regime nacional-socialista deseja abertamente a guerra,

Hitler tem explicitamente afirmado tal intenção em Mein Kampf. Essa guerra será

primeiramente contra o Oeste, para saldar as contas com o inimigo hereditário, a

França. Contudo, a frente no Ocidente é secundária para ele, apesar da importância

e da popularidade que lhe traria. A verdadeira guerra é a racial e colonial ao Leste.

Ansioso de atribuir à raça nórdico-germânica, novas áreas de expansão, Hitler

ambiciona conquistar um espaço vital ao Leste, e andar assim nos rastros dos

cavaleiros teutônicos, que outrora, na época do “drang nach Osten” medieval, já

haviam iniciado a colonização da Polônia e da Rússia.

No entanto, tal luta não deverá se assemelhar a nenhuma outra. A raça

nórdica deverá ser libertada da ameaça judaica e da horda de “sub-homens” eslavos

que a mesma emprega: essa guerra será uma Guerra total, uma guerra de

extermínio, como ele mesmo expõe aos seus generais em 31 de março de 1941. No

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dia 15 de junho do mesmo ano, Himmler, o reichsführer da SS apresenta a primeira

versão de Plano Leste (General Plan Ost), projeto de remodelagem do espaço

territorial europeu, sob o critério racial. Com esse Plano, ele prevê o

desaparecimento, no médio prazo, de cerca de 31 milhões de eslavos, para liberar

as terras assim ofertadas à colonização germânica: três milhões de alemães

reichsdeutch deverão ser implantados na frente pioneira do Leste. A deportação, a

esterilização dos eslavos e o extermínio dos seus mandantes judeus deveriam

possibilitar a expansão do espaço vital da raça alemã.

A guerra no front Leste vai se tornar um verdadeiro massacre, um combate

implacável e exterminador. A Wehrmacht não respeita nenhuma convenção de

guerra. Ela não prevê nem alojamento e nem abastecimento para os prisioneiros de

guerra soviéticos. Amontoados em recintos a céu aberto, os prisioneiros morrem de

inanição, de fome, de calor e de frio. Deportados, na Alemanha para fazer tornar a

máquina de guerra industrial, eles são mal alimentados e submetidos a um

tratamento desumano, sem comparação com o tratamento reservado aos

trabalhadores forçados ocidentais, franceses, belgas ou italianos. De cinco milhões

de prisioneiros de guerra soviéticos, 3,2 milhões morreram entre 1941 e 1945.

Por outro lado, divisões inteiras de Waffen-SS foram especialmente criadas

para desempenhar na arte da guerra o que o Estado de exceção representava para

o direito. Excuindo-se o juramento de fidelidade ao chefe supremo, os SS não

estavam vinculados a nenhuma norma, qualquer que fosse. As violações

deliberadas do direito de guerra e dos direitos humanos pelo regime nazista

provocaram um nível de violência de tal ordem, que qualquer retorno se tornou

impossível; a única saída possível para a guerra sendo doravante a derrota total e a

capitulação sem condição. Em quatro anos de guerra, o regime violou todas as

convenções e os acordos tácitos do direito de guerra, notadamente com a quebra do

tabu do massacre de populações civis.

A SS organiza meticulosamente o extermínio dos judeus soviéticos. Himmler

e Heydrich criam quatro unidades especiais, os grupos de intervenção

(einsatzgruppen), compostos por recrutas da polícia alemã e por soldados da

Waffen-SS comandados por generais da SS. Os quatro einsatzgruppen A, B, C e D

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devem “varrer” o território soviético ocupado, seguindo os rastros da retaguarda da

Wehrmacht. Sua missão é de liquidar os altos funcionários comunistas de origem

judaica e em seguida, a partir do outono de 1941, do extermínio sistemático de

populações judaicas. Até 1944, os três mil homens das einsatzgruppen fizeram mais

de um milhão de vítimas. Esse extermínio itinerante é realizado de maneira

rudimentar, através de execução na margem de valas comuns, de maneira

selvagem, enquanto organiza-se o aniquilamento industrial em massa, em campos

de extermínio. Era necessário relembrar esses fatos para restituir o contexto da

proclamação da Guerra total em 1943.

O confronto com a URSS é apresentado pelos nazistas como o episódio final

de uma “gigantomaquia” racial na seqüência daquelas que têm percorrido a história

há séculos. Um combate de titãs que opõe a raça ariana a seu inimigo judeu com os

seus seguidores, recrutados numa “subumanidade asiática”. O bolchevismo torna-se

o inimigo total que procura a destruição do Reich, tal como outrora o cristianismo-

judaico com o desmoronamento do Império Romano do Norte. O anúncio da derrota

em Stalingrado constitui um choque de mau presságio. O Reich reage então pela

proclamação da Guerra total, nas palavras de seu ministro da propaganda,

Goebbels. No dia 25 de julho de 1944. Goebbels será então nomeado

Generalbevollmächtigter zum totalen kriegseinsatz, Comissário geral plenipotenciário

para o envolvimento na Guerra total.

Desde o início, o Estado nacional-socialista tem sido totalmente voltado para

o objetivo último de confronto racial e de expansão do espaço vital (liebensraum) no

Leste. O “alinhamento” (gleichschaltung) dos anos 1933-1934 parece ter sido o

prelúdio da Mobilização total, que teve início dez anos mais tarde, em fevereiro de

1943. O Estado-máquina vai apertar cada vez mais os parafusos. Todos os serviços

de polícia e de repressão (SS, SD, Gestapo) são doravante centralizados e

reunificados no Ofício Central pela Segurança do Reich (RSHA), cuja direção é

atribuída a Heinrich Himmler, chefe da SS. Seu braço direito, Reinhardt Heydrich

estabelece como consigna “reprimir sem piedade toda manifestação contra a

unidade e a vontade de combate do povo alemão”. A coesão do povo alemão, a

solidariedade das diferentes molas da máquina, não pode sofrer nenhum

abrandamento. A engrenagem da violência se radicaliza. A máquina do terror será

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acionada contra a população alemã, no âmbito interno e contra os inimigos do

Reich, no exterior.

2.3. O PERIGO TOTALITÁRIO

Genocídio é um termo cunhado pelo professor norte-americano de direito

internacional, Raphael Lemkin46, a partir da palavra grega genos (raça, povo) e do

sufixo latim cídio (de caedere – matar). O que diferencia etnocídio de genocídio

pergunta o autor? Etnocídio significa todo projeto ou ação que conduz à destruição

da cultura de um grupo, à erradicação de sua etnicidade ou identidade étnica.

Genocídio é constituído de uma multiplicidade de ações, visando a destruição das

bases de sobrevivência de um grupo enquanto grupo.

Para Lemkin (apud BRUNETEAU, p.8), o etnocídio visa a aniquilação cultural

de um povo, sendo a morte a conseqüência e não o instrumento do objetivo

perseguido. Em contrapartida, o genocídio perpetrado pelo III Reich teve como

objetivo a destruição física completa de um povo, o que marca assim um regresso às

barbáries do passado, como àquelas ocorridas na Antiguidade e na Idade Média. Do

seu lado, Pieter Drost47, professor de direito holandês, estudou as noções de

humanicídio e de genocídio. O autor (apud BRUNETEAU, 2004, p.12) defende a

reintrodução de um critério político para o genocídio que ele define como a

“destruição física premeditada de seres humanos em razão de pertencer a uma

coletividade humana qualquer”. Temos assim uma definição ao mesmo tempo

restritiva (somente a aniquilação física é privilegiada) e aberta (com um grupo-alvo

não diferenciado).

Helen Fein48 tem elaborado uma abordagem sociológica do tema fazendo

prevalecer uma tipologia do genocídio. Com efeito, a autora faz distinção entre

genocídio de desenvolvimento (destruir grupos que fazem obstáculo a um projeto

econômico), genocídio despótico (eliminação de uma oposição real ou potencial) e

genocídio ideológico (destruição de um grupo apresentado como inimigo absoluto).

Segundo ela, o genocídio é um ”assassinato calculado” perpetrado contra um grupo, 46 Genocide, American Scholar, 15, 1946. 47 O Crime de Estado, 1959. 48 Accounting for Genocide, 1992.

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em parte ou na sua totalidade, por um governo, uma elite, uma equipe ou uma

multidão representativa.

Leo Kuper49 apresenta a seguinte definição: “Os genocídios cometidos contra

os grupos raciais, étnicos ou religiosos ocorrem sempre em decorrência de conflitos,

a partir de considerações ideológicas e políticas” (apud BRUNETEAU, 2004, p.13).

Neste caso, é a motivação criminal daquele que perpetra o crime que deve ser

levada em conta, quer em se tratando de genocídios interiores (contra povos

autóctones ou grupos-reféns - o holocausto pertencendo a essa categoria), quer em

se tratando de genocídios cometidos durante um conflito internacional.

Yehudah Bauer (apud BRUNETEAU, 2004, p.14), fundador da revista

Holocaust and Genocide Studies, tem proposto outra definição do genocídio,

excluindo a destruição dos judeus da Europa dessa definição, pelas suas

características genuínas. Neste caso, o autor distingue um primeiro tipo de

criminalidade, o genocídio propriamente dito, que pretende realizar o massacre

seletivo das elites em geral – com objetivo de desnacionalização ou de escravização

- e um segundo tipo, o holocausto, que procura planejar “uma aniquilação física, por

motivos ideológicos ou pseudo-religiosos, de todos os membros de um grupo

nacional, étnico ou racial”

Para Bauer o holocausto seria uma forma extrema de genocídio, não tanto

pelo sofrimento suportado pelos judeus, mas pela combinação de três elementos,

nunca reunidos por completo, nos outros genocídios: a intencionalidade meramente

ideológica - e de forma alguma pragmática - dos nazistas; o alcance potencial de

caráter universal da Solução final, com a perseguição dos judeus em todos os

lugares; e, por fim, a procura de um extermínio total - a exceção sendo excluída para

os membros de um determinado grupo, em razão da sua essência biológica.

É esse extremismo, acrescenta o autor, que faz do holocausto um

acontecimento sem precedentes na história e, portanto, único, justificando assim

49 Genocide, 1981.

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uma categoria analítica específica para ele. Nesse caso, é o quadro das diferenças

que leva vantagem.

Para Bruneteau, declarar que o genocídio judeu é único na sua dimensão de

catástrofe metafísica, desafiando, portanto, qualquer comparação, tem por único

resultado, obscurecer atos concebidos, perpetrados e aprovados por alguns países

europeus do século XX. O autor critica do mesmo modo o historiador americano

Norman Finkelstein (apud BRUNETEAU, 2004, p.20), que numa tese contestável

pelo seu aspecto sistemático, tem afirmado que o holocausto é único sob a

perspectiva de interesses políticos e materiais, por parte de organizações e

intelectuais pró-sionistas acusados de explorar o sofrimento de judeus, denunciando

assim uma espécie de shoah business.

Outros autores como Eric Markusen50 (apud BRUNETEAU, 2004, p.16) têm

avançado o conceito de democídio, no qual a própria guerra é definida como um

crime de massa contra grupos opostos, ordenado pelos governos dos países

beligerantes. Neste contexto, considera os bombardeios estratégicos, durante a

Guerra total do século XX, como um massacre maciço de populações sem defesa,

provocado por uma mentalidade genocídica.

Coube aos pesquisadores Frank Chalk, Kurt Jonassohn51 e Israel Charny

adotar uma posição intermediária, ao mesmo tempo restritiva e inclusiva: “o

genocídio é uma forma de massacre de massa unilateral pelo qual um Estado ou

outra autoridade planeja destruir um grupo, sendo esse grupo e os seus membros

previamente definidos por aquele que perpetra o crime” (op. cit.). Assim, temos uma

definição simples, precisa e flexível. A vantagem dessa definição é que ela elimina

as outras violências atípicas - do tempo de guerra ou de insurreição - e focaliza nos

Estados ordenadores (totalitários ou não), ou nas autoridades iniciadoras (centrais

ou locais), a intenção de destruir. Neste caso, uma análise comparativa poderá

então focalizar o ponto nodal em comum (a intenção de prejudicar a um grupo) e as

diferenças essenciais, quer sejam na motivação ideológica (eliminar toda oposição a

50 The holocaust and strategic bombing, Genocide and total warin the 20th century, 1995. 51 The history and sociology of genocide. Analyses and case studies, 1990.

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um projeto considerado vital ou eliminar um inimigo percebido como mortal), quer

sejam na execução mortífera do crime (destruição total ou parcial).

Israel Charny52, do seu lado, propõe uma abordagem comparativa a partir dos

seguintes critérios: a definição do grupo-alvo, o grau de intencionalidade, o perfil dos

executores e as formas de realização.

Na definição do grupo-alvo focaliza-se a racionalidade intrínseca do aparelho

ideológico. É o poder político que vai definir as vítimas no contexto de um terror

unilateral. Esse poder de definição costuma ser quase absoluto. Todos os critérios

são válidos para caracterizar as vítimas: políticos, sociais, religiosos, ideológicos.

Nessa definição, os conceitos de nação e de raça são os que mais exercem

um efeito de mobilização, pela sua força em destacar as diferenças. No cerne do

discurso genocídico, encontra-se uma ameaça representada pelo grupo-alvo. O

grupo é apontado como o inimigo absoluto e, para isso, deve ser previamente

naturalizado, retirando-lhe toda a sua humanidade, e desse modo animalizado.

Assim, o genocídio seria, para Eric Weitz (apud BRUNETEAU, 2004, p.21), uma

resposta última a um perigo supostamente mortal para o projeto daquele que o

perpetra, até para a sua própria existência.

Cabe aqui um parêntese. Segundo Alberte Le Doyen53, o discurso racista

deriva de uma perversão da representação de Si em função do outro. Existem duas

grandes tendências que se constituíram no imaginário social em relação à diferença

e cujas expressões, muito variadas, fundamentam a base ideológica do racismo das

identidades coletivas ou nacionais. Essas duas tendências são denominadas pela

autora de “diferencialismo” e de “universalismo”. De um lado, o imaginário social está

baseado na sobrevivência, na continuidade de si, sobre a idéia de uma linhagem

comum concebida como unidade orgânica. Considerada o Si como único, essa

tendência seria a base de uma visão do mundo “diferencialista”, que pode

desembocar sobre um retorno sobre si mesmo e sobre o medo do estrangeiro, uma

vez que este ameaça a identidade do grupo.

52 Le livre noir de l’humanité. Encyclopédie mondiale des génocides, 2001. 53 Le racisme. Des définitions aux solutions: um même paradoxe, 1998.

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De acordo com Le Doyen, quando a tendência diferencialista deriva sobre

uma concepção de Si, como valor absoluto ou como referente supremo de um Nós,

passa a excluir todo contato que ameaçaria a pureza do Si. Desta forma, os

indivíduos que se reclamam dela, podem reivindicar uma necessidade de rejeitar o

Outro. O racismo völkisch constitui um sistema de representação veiculado por um

discurso que justifica desigualdades decorrentes de uma relação de dominação.

Para o dominante (nesse caso o racista fundamentalmente anti-igualitarista e anti-

universalista) trata-se de assegurar a não-transgressão da diferença real ou

imaginaria. É a razão pela qual o racista transforma o diferente em “raça”, de tal

modo a cristalizar as diferenças, a torná-las inassimiláveis, permanentes, com

discurso biológico ou genético. Tal definição anula o indivíduo como pessoa para

conservar apenas a essência da raça, da cultura com a qual ele se confunde.

Por fim, só lhe resta estabelecer uma escala hierárquica entre as diferentes

raças, declarando-se raça superior e qualificando de raça ‘inferior’ as outras. A

justificativa dessa forma de racismo ‘diferencialista’ é de que as raças sendo

inscritas na ordem natural do mundo concebido como absoluto, como entidades

permanentes e hierarquicamente desiguais, a sua miscigenação só pode levar à

decadência, perigo que pode ser evitado com a separação das raças. A guerra

racial foi um conceito acoplado a essa lógica do racismo que culminou no genocídio.

Historicamente, a teoria do complô assim que a definição de um bode-expiatório

racialmente distinto tem justificado muitas perseguições.

Para o racista ‘diferencialista’, a perda de identidade é inconcebível e

inaceitável. A sua lógica da rejeição do Outro se articula num pretenso perigo de

‘degenerescência de Si decorrente do contato com o Outro. É a preservação do Si, a

permanência do Si cujo valor supremo é a pureza ou a superioridade racial, que

justifica a exclusão do Outro. Na base do ‘Direito à diferença’, o discurso racista

pode ser formulado em discurso credível, em termos de preservação de Si, isto é de

obrigação de preservar a identidade. Basta afirmar que se trata do dever de ser Si,

de permanecer Si, na sua identidade völkisch, para justificar tal exclusão.

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O segundo critério proposto por Charny - o grau de intencionalidade- constitui

uma variável também decisiva, na medida em que é a intenção que marca a

diferença entre o genocídio e o massacre em tempo de guerra ou de insurreição,

casos onde prevalecem uma violência pura, destruidora, cega, ainda que esta última

possa tomar de modo pontual as formas de genocídio. Planejado ou profetizado, o

genocídio deixa geralmente rastros documentados onde a decisão explícita

(codificada a maior parte das vezes) ou implícita pode ser encontrada, qualquer que

seja a vontade de apagá-lo no momento do crime.

Definição e intenção nos levam ao perfil dos executores. A elite do terror é

constituída de homens ordinários, com um perfil bem definido, o de ser

perfeitamente adequado ao universo social e cultural produtor de fantasmas

mortíferos. O estudo dos executores, não pode ser separado do estudo dos

testemunhos, dos vizinhos, tais como os países do Eixo, cuja implicação,

passividade e silêncio tornaram o genocídio tecnicamente possível., observa o autor.

Por fim, acrescenta Charny, apesar de seu caráter mórbido, uma análise

minuciosa das formas concretas da sua realização não pode ser desprezada. Tais

formas podem ser sistemática ou esporádica, total ou seletiva, moderna ou

rudimentar. Os métodos do genocídio são, com efeito, muito variados. Ao se

observar o genocídio mais estudado e o mais bem conhecido, o extermínio os

judeus da Europa, verifica-se que esse reúne todas as variantes possíveis do terror:

deportação, fome, frio, esgotamento pelo trabalho forçado, execução por bala,

marchas da morte e asfixia pelo uso do gás. As formas em que o genocídio é

organizado devem ser analisadas, ainda que as mesmas fossem brandas ou até

improvisadas acrescenta Charny. A deportação, a quarentena e a redução à fome

de toda uma área, as execuções em massa são impensáveis sem uma organização

prévia; nesse sentido, as formas de realização de um genocídio diferem das

violências espontâneas e menos assimétricas do estado de guerra.

As quatro variáveis propostas por Charny adquirem seu pleno sentido no

quadro de uma concepção abrangente do genocídio, visto como um processo de

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aniquilamento progressivo de um grupo ou de um povo específico. Nessa

perspectiva, a análise dinâmica do genocídio, apresentada pela primeira vez por

Kuper e atualizada por Jacques Sémelin54 (apud BRUNETEAU, 2004, p.22), tem a

vantagem de levar em conta uma primeira fase de incubação (genocidal priming), a

partir de vetores sociais, ideológicos e culturais, seguidos de uma fase de

aceleração (genocidal activation) na qual se destacam o papel central das iniciativas

do poder assim como a importância do contexto no qual ocorreu o genocídio.

2.3.1. Prelúdio de um genocídio: os massacres esquecidos da conquista

colonial

Como exemplo de protogenocídio, Alison Palmer55 lembra o episódio da

quase aniquilação da tribo dos Hereros, na Namíbia, país do Sudoeste africano,

pelas tropas coloniais alemãs no período entre 1904-1906. Durante a operação

lançada pelo General von Trotha – o qual oito anos antes, já havia reprimido

brutalmente uma primeira insurreição, a dos Wahele, na África Oriental - a

população indígena dos Hereros passou de 80 mil para 16 mil pessoas, sendo os

sobreviventes reagrupados em campos, na maioria dos casos, mulheres, crianças e

idosos; estes últimos, doentes e muito enfraquecidos, morreram numa proporção de

45%. Palmer, que efetuou uma análise comparativa deste episódio dramático com

os genocídios contemporâneos, destacou três aspectos inquietantes:

Em primeiro lugar, uma política de exclusão jurídica e econômica do ‘grupo-

vítima’. Assim, desde o início da ocupação do Sudoeste africano, em 1884, foi

instaurada uma política de discriminação e de segregação racial, que culminou com

o confinamento dos Hereros em reservas tribais. Esses se vêem excluídos das

prerrogativas oferecidas pelo direito colonial alemão, doravante exclusivamente

reservado aos colonos, ao mesmo tempo eles não podem fazer prevalecer os seus

54 Du massacre au processus génocidaire, Revue internationale des sciences sociales, número 74, Dez. 2002; Éléments pour une grammaire du massacre, Le débat, mar. 2003. 55 Colonial and modern genocide: explanation and categories, 1998.

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direitos consuetudinários, uma vez que são necessárias sete testemunhas africanas

para se igualar a de um branco, o que legaliza todos os abusos e atos criminais.

A proclamação oficial em dois de outubro de 1904 finalizava um processo, de

exclusão dos indígenas do amparo da lei, com o banimento do Herero do estatuto de

Sujeito do Império Alemão. Palmer verifica uma ação concomitante entre a privação

progressiva dos Hereros dos seus recursos naturais e a sua colocação no ban

jurídico. A partir desta data, não existe mais proteção jurídica para uma população

que passa a constituir doravante um obstáculo ao regime de exploração econômica

do território colonizado. A ocupação das terras indígenas para promover o

desenvolvimento de uma atividade pastoral extensiva levou à expulsão dos Hereros

das suas terras ancestrais, quando não conduziu pura e simplesmente ao confisco

do seu rebanho.

Tal situação provocou uma revolta, em 1904, que tomou por alvo algumas

centenas de fazendeiros alemães do território. Foi a última manifestação de

sobrevivência de um grupo ameaçado na sua própria existência. Segundo Palmer, a

guerra lançada pelo governo alemão contra os insurgentes deixa transparecer um

segundo aspecto inquietante: uma intenção manifesta de extermínio. Com efeito, a

expedição seguida de repressão visou, para além do seu caráter punitivo, impedir

qualquer reocupação das terras por parte dos indígenas. Após a derrota militar dos

Hereros, foram tomadas medidas de deportação dos indígenas, sendo os Hereros

abandonados em pleno deserto do Omeheke.

A busca de uma “solução definitiva para a questão dos Hereros” se torna

manifesta, como atesta a declaração do Chefe do Estado Maior em Berlim, Von

Schlieffen (apud BRUNETEAU, 2004, p.28), o qual anuncia sem rodeios: “o árido

deserto Omeheke finalizará o trabalho que o Exercício alemão iniciou: o extermínio

da nação Herero”. Muitos indígenas serão deportados, e a grande maioria deles

morrerá de sede. Como se não bastasse, um cordão de isolamento ‘sanitário’ foi

montado pelas tropas alemãs, com 250 km de extensão, e mantido durante mais de

um ano na fronteira do território com o deserto, com o objetivo de impedir todo

retorno dos Hereros no seu território ancestral. O aniquilamento foi levado ao termo,

prosseguindo até depois que a colonização não corresse perigo nenhum, e isso a

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despeito dos protestos dos fazendeiros alemães, os quais embora favoráveis a um

castigo exemplar, não desejavam o desaparecimento de uma mão-de-obra útil e

barata para a construção do habitat e das infra-estruturas necessárias à colonização.

O terceiro aspecto destacado por Palmer é que, embora as considerações

práticas – a terra e o seu regime de exploração – na percepção dos Hereros como

ameaça fossem anteriores, um discurso de natureza ideológica na Alemanha deu

prosseguimento ao episódio. Naquele país, inúmeras vozes nacionalistas

declaravam os Hereros inimigos da Nação alemã e se aproveitaram da repressão

para desencadear uma cruzada germânica contra o que chamavam de barbárie.

Julgadas preguiçosas, e em todo caso inferiores do ponto de vista racial, as

populações indígenas do Sudoeste africano passaram simplesmente a constituir “um

obstáculo para o progresso”. (BRUNETEAU, 2004, p.28). Todos aqueles que se

recusavam a uma submissão incondicional ao poder branco “não mais deviam ter

direito à existência”. Um Decreto Imperial de 26 de dezembro de 1905 institui

legalmente o confisco de todas as terras indígenas sob a alegação cínica do fato de

que “sem rebanhos, os Hereros não tinham mais necessidade de terras”.

Para Palmer, o processo de aniquilamento progressivo dos Hereros obedeceu

à seguinte seqüência: dispositivos de exclusão, desumanização do grupo-vítima;

caráter premeditado do extermínio, planejamento e realização pelo Poder central da

Solução final que levará à destruição física quase total da nação Herero. Com estas

características, acrescenta o autor, a guerra dos Hereros tem algo de

protogenocídico e abre novas perspectivas para um futuro próximo.

Por outro lado, Michael Mann56 observa que: “se a maioria dos massacres da

era colonial não se enquadra direta e estritamente na categoria do genocídio, a

indiferença com a qual eles ocorreram é inseparável de uma ideologia que tinha um

alcance universal”. Ele não hesita em afirmar que os genocídios coloniais constituem

a face oculta da modernidade liberal e democrática. Segundo o autor, foi a partir do

momento em que os estados ocidentais anunciam que toda autoridade legítima deve

ser fundamentada sobre o Povo Soberano, sob a reserva de limitar essa prerrogativa

aos únicos Europeus dos países de ultramar, que os partidários do sistema colonial

56 The dark side of democracy: the modern tradition of ethnic and political cleansing, New left Review, maio de 1999.

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têm inevitavelmente desenvolvido uma teoria do Povo com os atributos de raça

superior. Esse movimento foi possibilitado pela banalização das teorias social-

darwinistas vigentes na época.

2.3.2. O imaginário do darwinismo social Para Pichot57, a expansão colonial oferece múltiplos exemplos de seleção

natural das civilizações mais fortes. Para ele, são os exemplos de declínio até de

desaparecimento de povos autóctones que têm servido de modelo para uma teoria

da luta pela vida: a partir de 1850, a extinção, isto é, o extermínio de povos julgados

inaptos passa a ser considerado como fruto do progresso, citando o fundador da

influente Anthropolical Society, o médico Robert Knox que confessa ter descoberto a

“verdade da raça” e fala abertamente de “guerra de extermínio” em vez de “seleção

natural”. Segundo Pichot, é sem nenhuma emoção que os adeptos da eugenia

assistem ao desaparecimento dos povos que “caíram em desgraça”, sendo estes

numerosos nos países abertos à colonização intensiva.

Considerado um dos fundadores da sociologia moderna, o professor austríaco

Ludwig Gumplowicz58, contrariamente aos discípulos de Darwin, diz que o que está

em jogo na história humana não é apenas a mera sobrevivência do mais apto, mas a

dominação e a exploração da raça mais fraca pela mais forte, processo que está na

base de toda civilização. Segundo ele, “todas as guerras tiveram a mesma meta, não

importa qual o objetivo visado e alcançado: utilizar-se do inimigo como de um meio

para satisfazer as suas próprias necessidades”. (apud BRUNETAU, 2004, p.33). As

suas idéias se tornaram uma verdadeira vulgata científica onde aparece todo um

conjunto de teorias que explicam as leis naturais que têm regulado o mundo:

Seleção natural, de Darwin; Eugenia, de Galton; Distribuição hierárquica das raças,

de Haeckel; e, finalmente, a sua própria contribuição com a Luta das raças. Para

Gumplowicz, as raças são o fundamento de todos os processos sociais, sendo a luta

que as opõem considerada o motor da história. O seu social-darwinismo se conjuga,

aliás, com a luta de classes de inspiração marxista: “A história é uma sucessão de

lutas sombrias, nas quais o ódio racial, o massacre em massa e as tentativas de

dominação pela violência asseguram certa coerência” (op. cit.).

57 La société pure. De Darwin à Hitler, 2000. 58 La lutte des races, 1883.

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Não é de se surpreender que trechos inteiros de seu livro se encontrem em

Mein Kampf, cujo autor, convém lembrar, era cidadão austríaco, observador

rancoroso do cosmopolitismo vienense do final do século XIX, admirador do sistema

colonial inglês e, por fim, grande leitor de Karl May, escritor alemão que exaltava a

conquista sangrenta do Far West americano.

No quadro de uma luta desigual pela vida, os autóctones são declarados

fósseis vivos, com um nível de evolução inferior dentro da classificação zoológica

das espécies e, portanto, condenados a ceder o lugar às formas superiores

representadas pelos colonos, considerados a ponta avançada da civilização. Não é

necessário destacar uma literatura como a de Gobineau59 para encontrar a origem

de certas derivas abomináveis do racismo. Melhor insistir sobre uma ”banalização

científica” do racismo pelos representantes mais ilustres da biologia e da sociologia,

que reivindicam uma “naturalização da sociedade e da história”, isto é, a sua

submissão às supostas “leis imperiosas da natureza”.

Em 1868, o alemão Haeckel efetuou uma classificação das raças humanas

estabelecendo uma hierarquia entre elas numa perspectiva evolucionista,

começando pelas raças negras embaixo da escala, para alcançar a raça Indo-

germânica, no topo. A sua doutrina foi um verdadeiro laboratório para o

desenvolvimento de uma biopolítica moderna, vulgata social-darwinista no seio do

pensamento nacionalista alemão, e cuja influência foi devida a dois autores

importantes na ideologia imperialista britânica: Alexandre Tille e Houston

Chamberlain. O primeiro tem associado o darwinismo, a uma deformação da moral

de Nietzsche do “além do homem”; enquanto o segundo, inglês convertido ao

pangermanismo e genro do próprio Wagner, tem atribuído aos únicos germanos a

missão de conduzir a obra civilizadora do mundo.

Para Bruneteau, não se pode perder de vista que um dos fundadores da

geopolítica moderna, Friedrich Ratzel, tem feito da luta pela vida uma luta pelo

próprio espaço. Após ter viajado pela América do Norte ele havia testemunhado a

59 Ensaio sobre a desigualdade da raça humana, 1853.

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luta sangrenta dos índios e dos brancos pela posse das terras, um acontecimento ao

qual ele costuma se referir para tornar legítima a conquista do espaço vital pelos

povos mais fortes. Neste contexto, um novo direito internacional passa a consagrar o

direito da raça mais forte de aniquilar a raça mais fraca. Formulado de maneira

abrangente, esse direito podia ser aplicado, tanto aos povos indígenas de Países

ultramarinos, quanto as populações da Europa, consideradas pouco evoluídas. Essa

concepção passou a integrar sem dificuldade, a ideologia pangermanista, que

considerava os povos eslavos ”inferiores” e “inúteis” no quadro de um grande projeto

de remodelagem do “espaço europeu ”.

Por isso, não é de se estranhar que o darwinismo-völkisch impregnasse cada

vez mais a sociedade alemã, a ponto de mudar a percepção do papel da guerra,

doravante exaltada como um mero meio de eliminar as nações imperfeitas e fracas.

Thomas Lindemann60 (apud BRUNETEAU, 2004, p.35-36) acredita que essa visão

do mundo (weltanschauung) que apresenta a guerra como “o único tribunal

eqüitativo da história” na grande missão de seleção dos povos, tem contribuído por

tornar os dirigentes alemães da 1ª Guerra mundial, receptivos ao mito do

“determinismo guerreiro”.

Com as contribuições de Woltmann e de seu contemporâneo Ploetz, a

antropologia política aplicada, se orienta na busca dos instrumentos para que a

sociedade possa produzir uma raça germano-nórdica sempre mais ‘nobre’

eliminando por via de conseqüência as raças ordinárias. O leque de instrumentos

sugeridos para alcançar essa meta era do mais variado: emigração, expulsão,

proibição de casamento misto e de procriação e, por fim, extermínio ‘direto’.

Esse ideário inspirou o modelo de solução adotado por Hitler durante a sua

guerra no front Leste, a partir do verão de 1941, quando retomou todos os aspectos

das guerras de extermínios coloniais e imperialistas do século anterior. Políticas de

conquista do espaço vital, medidas deliberadas de redução à fome de populações

inteiras e eliminação das “raças inferiores” foram executadas em nome do caráter

implacável e imprescindível das leis naturais. “O que as Índias foram para a

60 Les doctrines darwiniennes et la guerre de 1914, 2001.

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Inglaterra, o espaço (vital) no Leste (europeu) o será para nós”, declara Hitler (apud

BRUNETAU, 2004, p.36), em 10 de agosto de 1941. No entanto, uma diferença

notável impede de assimilar diretamente a conquista colonial britânica ao

imperialismo nazista. Enzo Traverso61 que analisou a genealogia européia da

violência nazista sublinha, a esse respeito, que enquanto a “naturalização” da

história efetuada pelos discípulos de Darwin obedecia exclusivamente a fatores

geopolíticos e econômicos, no caso de Hitler, ao contrário, a ideologia racial é o

motor exclusivo da guerra.

2.4. A BANALIDADE DO MAL

2.4.1. Eichmann ou a personalidade de um conformista

Para tentar descobrir o que tornou o genocídio possível, é preciso

compreender também a personalidade de pelo menos um dos seus principais

protagonistas. Confrontado com a pessoa do réu, a autora rende-se às evidências.

Apesar dos esforços da acusação para torná-lo diabólico, ele aparece com um ser

profundamente medíocre, ordinário, comum. No homem que o procurador Gideon

Hausner denunciava como uma fera, ela descobre um funcionário ordinário, mais

próximo dos personagens de Courteline do que de Shakespeare. Para a autora, não

se trata de um herói, nem de um fanático, nem de um doente, nem tampouco de um

paranóico. O problema, contudo não é que o criminal nazista fosse particularmente

brutal ou desprovido de coração – mas justamente que, de modo geral, não o fosse.

Eichmann não dá margem a nenhum comentário particular, não desperta

curiosidade, nem o desejo de compreendê-lo; não é enigmático, não é atraente, nem

repulsivo. É fundamentalmente insignificante, banal, pois no regime totalitário, o

conformismo, a normalidade constitui a principal qualidade da identificação

völkische. Como observa Primo Levi: “os monstros existem, mas são muito pouco

61 La violence nazie. Une généalogie européenne, 2002.

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numerosos para serem perigosos, os que são mais perigosos são os homens

comuns” (LEVI apud TODOROV, 1995, p.139).

Durante o julgamento de Eichmann em Jerusalém, Hannah Arendt acusou

tanto a defesa quanto a acusação de ceder ao hegelianismo, já que ambas estavam

inclinadas a colocar a história, mais do que Eichmann, em julgamento. O réu

aparece para Arendt, como um típico representante da banalidade do mal, a serviço

de uma atividade exercida de maneira aplicada e eficiente, com uma ausência

notável de capacidade de pensar e de questionar o sentido das suas próprias ações.

Os seus atos são os de um cidadão respeitador da lei, que cumpre fielmente o seu

dever. Ele não só obedece à ordens, ele também obedece à Lei. O mundo do

personagem encontra na obediência a sua idéia de dever e de virtude; na lealdade e

na submissão ao chefe os seus principais valores éticos.

A característica mais notável dos seus crimes é que eles ocorreram dentro de

uma ordem legal. Como observou Arendt (2000, p.299): “Esse era um tipo novo de

criminoso, efetivamente hostis generis humani, que comete seus crimes em

circunstâncias que tornam praticamente impossível para ele saber ou sentir que está

agindo de modo errado”. Durante o julgamento de Eichmann, suas expressões e sua

linguagem, são o espelho de uma burocracia alemã, “camuflando a realidade para

permitir a todos de se abstrair dela”, comenta a autora. Ela relata ainda que outra

característica marcante do réu é a sua recusa em confrontar “os atos com o seu

sentido”.

Para nos ajudar a compreender o personagem, Dejours (1999, p.114) nos

oferece uma explicação psicológica interessante da conduta de Eichmann, que o

autor qualifica de “retraimento da consciência intersubjetiva”. Esta expressão

designa a barreira intransponível que o réu estabeleceu entre as duas partes do seu

mundo psíquico: “numa das partes, existe um mundo intersubjetivo, imediatamente

adjacente, próximo e concêntrico; na outra parte, um mundo dos outros seres

humanos, ao qual ele não está instrumentalmente ligado por nenhuma relação

concreta referente ou identificável”.

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No primeiro mundo psíquico, que Dejours (1999, p.115) define “mundo

proximal”, Eichmann apresenta-se sensível ao outro. Já no “mundo distal”, tudo lhe é

indiferenciado, somente prevalece nele a racionalidade instrumental. Neste mundo,

não existe sensibilidade, nem empatia, nem capacidade de identificação para com

outrem. No “mundo distal”, Eichmannn não tem nenhum compromisso, nenhuma

responsabilidade. “Desse cesura estabelecida entre os dois mundos, pode-se inferir

que, fundamentalmente, Eichmann não tem consciência moral stricto sensu, ou seja,

nenhuma capacidade de julgamento.” Falta a este homem a própria noção de

‘consciência moral universal’. Para Dejours, essa carência de consciência moral

costuma se encontrar na personalidade do “normopata”, do indivíduo conformista,

‘totalmente’ integrado à sua realidade social. Em resumo, segundo o autor,

Eichmann é um normopata, e é essa normopatia que Arendt designou pela

expressão de “banalidade do mal”.

A “faculdade de pensar”, no caso de Eichmann, é suspensa apenas no setor

psíquico diretamente relacionado com a adversidade alheia, que Dejours designa de

“ausência de pensar setorial”. Em compensação, essa “faculdade de pensar”

continua sendo exercida normalmente em todos os outros aspectos da sua vida

privada, no qual Eichmann revelou ser “um pai exemplar”.

Dejours conclui com a seguinte definição da normopatia:

São personalidades que se caracterizam por sua extrema normalidade no sentido de conformismo com as normas do comportamento social. Pouco imaginativos e pouco criativos, eles costumam ser perfeitamente adaptados a uma sociedade na qual se movimentam com desembaraço, sem serem perturbados pela culpa, a que são imunes, nem pela compaixão, que não lhes concerne (DEJOURS, 1999, p.115).

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2.4.2. A ética da obediência e o significado da responsabilidade

A principal das grandes questões em jogo no julgamento de Eichmann era o pressuposto, corrente em todos os sistemas legais modernos, de que a intenção de fazer algo errado é necessária para se cometer um crime. Nada, talvez, foi motivo de maior orgulho para a jurisprudência civilizada do que o fato de levar o fator subjetivo. Se essa intenção está ausente, se, por quaisquer razões, mesmo as de insanidade moral, a capacidade de distinguir entre certo e errado está prejudicada, sentimos que nenhum crime foi cometido (ARENDT apud NEIMAN, 2003, p.299).

No mal contemporâneo, as intenções dos indivíduos raramente

correspondem à magnitude do mal que os indivíduos são capazes de causar. “O

que conta não é o que pavimenta o caminho, mas sim a questão de saber se ele

conduz ao inferno” (NEIMAN, 2003, p.302). Foi justamente a crença de que ações

más requerem intenções más que permitiu aos regimes totalitários convencer as

pessoas a passar por cima de objeções morais que, de outro modo, poderiam ter

funcionado.

Esforços maciços de propaganda destinavam-se a convencer as pessoas

de que as ações criminosas das quais elas participavam eram guiadas por

motivos aceitáveis, nobres até. A exortação de Himmler às tropas SS em Posen é

apenas o mais famoso exemplo de propaganda que funcionou, invertendo,

pervertendo valores morais. Ele proclamou que era a própria dificuldade de

superar sua relutância normal em atirar em mulheres e crianças que revelava a

natureza sublime e significativa da empreitada histórica na qual as tropas estavam

envolvidas. Ao se acreditar que o crime é requerido pela lealdade a valores mais

altos, é muito mais fácil viver com ele.

O uso Mais claro da racionalidade instrumental foi equivalente ao mais

claro desafio ao raciocínio moral. A natureza ignora distinções entre medo de

culpa e todo tipo de inocência; os criminosos desprezam-nas de forma ativa. Os

seus objetivos eram produzir o que a moralidade tenta evitar: medo e morte.

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Como a maioria dos oficiais nazistas, Eichmann sentia pouca culpa. Esse

sentimento (ou sua ausência) era subjetivo. Inspecionando sua consciência, ele

não descobriu nada pior do que o desejo normal de progredir e mesmo o

admirável desejo de cumprir obrigações que algumas vezes iam contra seus

próprios sentimentos pessoais. “A culpa e a inocência, acrescenta a autora

(NEIMAN, 2003, p.303), dependem dessas verdades muito simples. Quando a

noção de intenção está atrelada a uma noção de potencial, a distinção entre mal

real e mal potencial torna-se ainda mais obscura”. Assim, argumentou Arendt, o

tribunal deveria ter dito a Eichmann: “Estamos preocupados apenas com o que o

senhor fez e não com a possível natureza não criminosa de sua vida interior e de

seus motivos nem com as potencialidades criminosas das pessoas a sua volta”

(op. cit.).

Os argumentos avançados por Adolf Eichmann, relatados por Arendt62 para

livrá-lo de qualquer sentimento de culpa, são justamente aqueles mesmos que

apontam o peso da sua responsabilidade no genocídio, como a sua obediência

cadavérica à lei, como ele mesmo a chamou, e a substituição do imperativo de

Kant pelo imperativo categórico do III Reich: “age de tal forma que o führer, se

soubesse da sua atitude, a aprove”. Entre as justificativas às suas ações, está a

desculpa de que “nunca se encontrou ninguém, ninguém sequer que fosse contra

a Solução final”. A terminologia utilizada para designar os poucos judeus

húngaros, poupados do extermínio foi: “o melhor material biológico”. A sua defesa

antes do veredicto final, quando se declara vítima das circunstâncias foi: “minha

culpa reside na minha obediência, no meu respeito à disciplina e nas minhas

obrigações militares, em tempo de guerra, no meu juramento de fidelidade”

(Todorov, 1995, p.212). Como justificar a obediência cega, a conduta implacável

frente ao mal, o pensamento instrumental que não deixa mais nenhum espaço

para os seres humanos?

Será que Eichmann foi somente um simples burocrata, um banal

funcionário, uma mera engrenagem da máquina administrativa de destruição, um

62 Eichmann em Jerusalém, 2000.

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homem que cumpre de maneira obediente às ordens que lhe foram atribuídas,

como ele tentou fazer acreditar durante o seu julgamento? Ou ao contrário, um

fanático convicto, um idealista implacável a serviço de um grande projeto de

extermínio?

Alguns autores como Yehuda Bauer, acreditam mais na segunda hipótese.

Embora Eichmann perceba que ele se afastou um pouco da norma, interpretou

sua obediência de maneira positiva: “Eu era idealista”, afirma ele. Aos seus olhos,

o idealista “não era simplesmente um homem que acreditava numa ‘idéia’ ou

alguém que não roubava nem aceitava subornos (..). Um ‘idealista” era um

homem que vivia para a sua idéia (...) e que, por essa idéia, estaria disposto a

sacrificar tudo e, principalmente, todos (...). O idealista perfeito, como todo

mundo, tinha evidentemente seus sentimentos e emoções pessoais, mas jamais

permitiria que interferissem em suas ações se entrassem em conflito com sua

‘idéia’” (ARENDT, 2000, p.54).

Em suma, Eichmann era um homem que preferia as idéias aos seres

humano, e o que afetava a cabeça deste homem - que havia se transformado em

assassino - era provavelmente a idéia de estar envolvido em algo histórico, único,

numa visão gloriosa do Crepúsculo dos Deuses.

Há um dilema, no caso de Eichmann, observa H.Arendt, o dilema do

idealismo e da obediência combinados com o crime. No entanto, ao aceitar de

julgar e condenar a morte um homem pela simples razão que ele obedeceu a

ordens legais, então temos que concordar com as suas implicações: existem

situações nas quais se podem cometer crimes obedecendo à lei. Afirmar que a

raiz dos crimes totalitários não está no indivíduo, mas no regime político que ele

serviu com lealdade, não significa que o indivíduo esteja isento de toda ou

qualquer forma de responsabilidade. É preciso restabelecer o vínculo rompido

pelo regime totalitário, acrescenta Arendt, entre o indivíduo e o Estado, entre o

homem e seu crime e, ao tratar das implicações das ações de um homem com a

máquina de destruição, sublinhar que o serviço prestado ao Estado não exonera

um funcionário do Estado de sua responsabilidade de homem.

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A autora pondera que temos a responsabilidade moral de resistir ao crime

de Estado, isto é, à “socialização do mal”. O mal não é todo poderoso, podemos

resistir a ele e o testemunho dos poucos que resistiram revela que a questão do

mal se resume, afinal de contas, a uma simples questão de escolha. Talvez

convenha notar as dificuldades de mobilização dessa capacidade de resistência,

ao observar que, contrariamente aos resistentes franceses que lutavam contra os

inimigos de seu país, os da Alemanha deviam trair o seu próprio país para

obedecer à sua própria consciência.

No entanto, no entender da escritora (ARENDT, 2000, p.318), o que se

deve exigir nesses julgamentos, em que os réus cometeram crimes considerados

legais, é que “os seres humanos sejam capazes de diferenciar o certo do errado,

mesmo quando tudo o que têm para guiá-los seja apenas seu próprio juízo que,

além do mais, pode estar inteiramente em conflito com o que eles devem

considerar como opinião unânime de todos à sua volta”. Se existem situações

onde crimes podem ser cometidos obedecendo à lei, para a autora, é preciso ir

além da “culpabilidade legal” e avaliar a responsabilidade moral do homem. O

indivíduo é responsável moralmente pelos seus atos, quaisquer que sejam as

pressões que sofra, caso contrário, renunciam a sua filiação à espécie humana. E

citando Dostoievski: “Somos todos responsáveis por todos, por todos os homens

perante todos, e eu mais que os outros”.

Assim, a responsabilidade moral significa a capacidade de resistir e de se

opor ao crime de Estado, ao processo de “socialização do mal”, tendo em vista

que a autoridade e a responsabilidade pelas ações dos indivíduos devem ser

exclusivamente guiadas pelo próprio juízo da pessoa humana. A lição dos crimes

de Eichmann está em afirmar que os que aplicam as leis são em certas

circunstâncias, mais perigosos do que os que as infringem.

Camus usou a peste para representar o mal em geral. Em uma carta a

Gershom Scholem, Arendt escreveu que o mal podia ser comparado a um fungo:

como ele, “o mal não possui nem profundidade, nem nenhuma dimensão

demoníaca. Pode crescer demais e destruir o mundo inteiro justamente por se

espalhar com um fungo por sua superfície” (ARENDT apud NEIMAN, 2003,

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p.329). A metáfora é uma tentativa de desarmar o elemento conceitualmente

ameaçador do mal contemporâneo. Embora a guerra bacteriológica possa destruir

a humanidade, não são as bactérias que podem questionar o valor da vida.

Assim, a metáfora do fungo assinala que o mal pode ser compreendido; ela

indicando também que o mal é um objeto desprovido de qualquer intenção.

Se existe uma chave para compreender a ética de Camus, ela se encontra

na idéia de que o ódio ao Criador não deve se atrever a se transformar em ódio

pela Criação. Para Arendt, nem os crimes de guerra alemães por si só, nem a

possível cumplicidade judaica neles estavam em jogo. O que estava sendo

acusada era a própria Criação. Em um mundo que havia produzido os campos da

morte, o impossível tornava-se realidade. Isso não era uma metáfora. O próprio

mundo, portanto, não podia mais ser aceito como o fora no passado. Para

Neiman, Eichmann em Jerusalém é uma defesa não de Adolf Eichmann, mas sim

de um mundo que o continha. Ao longo de toda a sua obra, Arendt buscou uma

fórmula capaz de substituir a teodicéia. Como pode a própria vida ser justificada

sem justificar os males que a questionam?

Arendt está convencida de que o mal só poderia ser superado caso reconhecêssemos que ele nos ultrapassa de maneiras diminutas. Grandes tentações são mais fáceis de reconhecer, portanto mais fáceis de resistir, pois a resistência vem em termos heróicos. Os perigos contemporâneos começam com passos insidiosos. Uma vez dados, esses passos conduzem a conseqüências tão vastas, que seria difícil tê-los previsto. A afirmação do que o mal é banal não diz respeito à magnitude, mas sim à proporção: se crimes tão grandes podem resultar de causas tão pequenas, pode haver esperança de superá-las (NEIMAN, 2003, p.330).

Chamar o mal de banal é fazer retórica moral, é uma maneira de desarmar

o poder que torna o fruto proibido. Relembrando a historia de Anton Schmidt,

soldado alemão que sacrificou a vida para ajudar partidários judeus, a autora

acrescenta:

[A] lição de tais histórias é simples e pode ser compreendida por todos. Politicamente falando, consiste no fato de que, sob condições de terror, a maioria das pessoas vai obedecer, mas algumas pessoas não vão, assim como a lição dos países em que a Solução Final foi

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proposta é que isso poderia ter acontecido na maioria dos lugares, mas não aconteceu em todos os lugares. Humanamente falando, nada mais é exigido e nada mais pode ser razoavelmente pedido para que este planeta continue a ser um lugar propício para a habitação humana (ARENDT apud NEIMAN, 2003, p.331).

Chamar o mal de banal é oferecer não uma definição dele, mas sim uma

teodicéia. As origens do mal não são misteriosas nem profundas, mas estão

inteiramente a nosso alcance. Sendo assim, elas não infectam o mundo com uma

profundidade capaz de nos fazer perder as esperanças no mundo em si. Como

um fungo, podem devastar a realidade destruindo sua superfície. Suas raízes,

entretanto, são rasas o bastante para poder serem arrancadas. Nisso o projeto de

Arendt é herdeiro daquele de Rousseau. Ao fornecer uma estrutura que mostra

como os maiores crimes podem ser perpetrados por homens ordinários, a autora

argumentou que o mal não é uma ameaça à razão em si. Crimes como os de

Eichmann dependem, isso sim, do descaso, da recusa de usar apropriadamente a

razão.

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2.4.3. A banalização do mal

A responsabilidade do genocídio não se encontra somente na personalidade

perversa de Eichmann, mas, sobretudo no sistema totalitário que a tornou perversa.

“Os russos, os alemães e todos aqueles que realizam crimes inauditos não são

seres humanos diferentes dos outros; é o regime político no qual vivem que o é”,

observa Todorov (1995, p.142).

“Em certas situações, um inimigo não é só aquele que mata, mas também

aquele que permanece indiferente. Não ajudar e matar são a mesma coisa”,

comenta Todorov (1995, p.271). Para Dejours, Eichmann pode ser um homem

banal, mas nem por isso pode-se compreender a participação maciça de todo um

povo ao nazismo, com um percentual de cerca de 80% de adesão da população

alemã daquela época. Para ele, a personalidade individual tem pouca relevância

diante da conduta da ação coletiva. Para que o mal se realize, não basta a ação de

alguns, é preciso também que a grande maioria fique de lado, indiferente. É somente

na banalidade da conduta ordinária de massa que transcende as singularidades, que

podemos encontrar um sentido ao genocídio.

Neste contexto, Dejours complementa o retrato da banalidade do mal relatado

por Arendt. Ele identifica, na maioria da população da Alemanha daquela época, as

três características da normopatia de Eichmann: indiferença para com o mundo

distal e colaboração com o mal tanto por omissão quanto por ação; suspensão da

faculdade de pensar que é substituída pelos estereótipos dominantes (clichês,

lugares-comuns, códigos de expressão padronizadas e convencionais) e ausência

de faculdade de julgar e de vontade de agir coletivamente contra a injustiça. Essa

“esquizofrenia social” é interpretada pelo autor como um meio de defesa:

Em um regime totalitário, a esquizofrenia social, a separação da vida em seções impermeáveis, é um meio de defesa para quem ainda guarda alguns princípios morais: só me comporto de forma submissa e indigna em tal fração de minha existência; em outras que considero essenciais mantenho-me como pessoa respeitável. Sem essa separação, não poderia funcionar normalmente; é graças a essa

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defesa, que o mal se torna possível, até mesmo fácil e, nesse sentido, ela é de fato um vício quotidiano (Dejours, 1999, p.193).

Essa configuração psicológica bastante peculiar - porção do mundo que é

negada pelo sujeito e na qual está suspensa a faculdade de pensar – é, por sua vez,

ocupada pelos estereótipos. Quando há suspensão da capacidade de pensar e de

julgar, o sujeito substitui o pensamento pessoal por um conjunto de estereótipos,

fórmulas feitas, de lugares-comuns que propiciam um estado de tolerância ao mal.

Segundo a observação perspicaz de H. Arendt (2000, p.167), com a banalização, o

mal perde, “a qualidade pela qual a maior parte das pessoas o reconhece – a

qualidade de tentação”..

Para Dejours, é a banalização - e não a banalidade do mal – que é

responsável pelo processo capaz de criar um estado de tolerância ao mal e de

atenuar os problemas de consciência moral, ante o sofrimento infligido a outrem.

Dejours (1999, p.110) apresenta uma definição do conceito de banalização do mal,

como sendo “o processo graças ao qual um comportamento excepcional,

habitualmente reprimido pela ação e o comportamento da maioria pode erigir-se em

norma de conduta ou mesmo em valor”. E ressalta ainda que a banalização

pressuponha a criação de condições favoráveis, como o terror, a ameaça de

exclusão social, para poder obter o consentimento e a cooperação de todas as

condutas. A esse respeito, Primo Levi (Apud Dejours, 1999, p.125) já escrevia: “a

pressão que um Estado totalitário moderno pode exercer sobre o indivíduo é

espantosa. Suas três principais armas são: a propaganda direta ou camuflada pela

educação, a barreira imposta ao pluralismo das informações e o terror”.

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2.4.4. A produção social do mal ou a Tecnologia da destruição

Na opinião de Herbert Kelman63·, inibições morais contra atrocidades

violentas tendem a ser corroídas, se satisfeitas três condições: “a violência é

autorizada por práticas governadas por normas e especificação precisa de papéis;

as vítimas da violência são desumanizadas por definições e doutrinações

ideológicas; o caráter moral da ação é invisível ou propositadamente coberto”.

“A descoberta mais assustadora trazida pelo holocausto e acerca dos seus

executores não foi a probabilidade de que isso pudesse acontecer a nós, mas a

idéia de que nós poderíamos perpetrá-lo”, afirma Bauman (1998, p.179). A maioria

das conclusões decorrentes das experiências de Milgram pode ser vista como

variações de um tema central: a crueldade não costuma ser cometida por indivíduos

cruéis, mas por homens e mulheres comuns tentando desempenhar bem suas

tarefas ordinárias. Para ele, a crueldade se relaciona apenas secundariamente às

características individuais dos que a cometem, mas de maneira muito forte à relação

de autoridade e subordinação, de poder e obediência.

Em outras palavras, a crueldade é de origem social e não fruto do caráter do

indivíduo. O indivíduo tende a ser cruel se colocado num contexto que enfraquece

as pressões morais e justifica a desumanidade, dando-lhe um caráter legítimo. John

Steiner cunhou a esse respeito o conceito de “efeito adormecido” para designar a

capacidade normalmente apagada, mas por vezes despertada, de ser cruel. Embora

Dejours tenha introduzido o conceito de banalização do mal, ele não revelou os seus

mecanismos. Isso caberá a Stanley Milgram, a partir de experiências clínicas, a

demonstração do processo de “produção social do mal”. Para ajudar a compreender

os mecanismos desencadeadores de atos desumanos, Bauman relata as principais

conclusões dos trabalhos de Milgram, que serão apresentadas a seguir:

63 Violence without Moral Restraint: Reflections on the dehumanization of Victims and Victimizers, Journal of Social issues, vol.29, no.4, p.29-61, 1973.

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2.4.5. A desumanidade como produto da distância social

Para Milgram, recursos a processos estruturais que conduzem ao mal

lembram-nos de nossos papéis como partes de sistemas em que a divisão do

trabalho e a simples distância ocultem a responsabilidade individual. A

responsabilidade moral é silenciada quando se oculta a proximidade da vítima.

Segundo o autor, existe uma razão inversa entre a disposição para a crueldade e a

proximidade da vítima:

Dentre elas [as ‘pílulas de entorpecimento moral’ que a burocracia e a tecnologia modernas colocavam a disposição] destacavam-se a natural invisibilidade das relações causais num sistema complexo de interação e o ‘distanciamento’ dos resultados repugnantes ou moralmente repulsivos da ação a ponto de torná-los invisíveis ao ator (BAUMAN, 1998, p.46).

O silenciamento do apelo moral e a suspensão das inibições morais são

alcançados precisamente quando se tornam “remotas e mal visíveis” os alvos

autênticos da ação. “Inextricavelmente atada à proximidade humana, a moralidade

parece conformar-se à lei da perspectiva ótica. Parece grande e espessa quando

perto do olho. Com o aumento da distância, a responsabilidade pelo outro encolhe e

as dimensões morais do objeto se embaçam, até que ambas atingem o ponto de

desaparecimento e somem da vista”, explica Milgram (op. cit., p.222-223).

Em outros termos, “longe dos olhos, longe do coração”, tal o ditado popular

francês. Psicologicamente, a razão pela qual a separação da vítima torna a

crueldade mais fácil é simples: o executor é poupado do sofrimento de testemunhar

o resultado de seus atos. Aqueles que realizavam o trabalho cotidiano nos campos

da morte criavam um abismo entre si mesmos e o resto da humanidade. Algumas

das descrições deles feitas sugerem uma ausência de alma que aqueles que matam

a distâncias maiores de suas vítimas não precisam compartilhar. Assim, tomando

como exemplo os einsatzgruppen, Bauman comenta:

As vítimas recolhidas eram colocadas diante de metralhadoras e fuziladas sem rodeios. Apesar dos esforços para manter as armas o mais longe possível dos fossos nos quais os mortos deviam cair, era

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difícil demais para os atiradores passar por alto a relação entre atirar e matar. Foi por isso que os administradores do genocídio acharam o método primitivo e ineficiente, além de perigoso para a moral dos executores. Foram então procuradas outras técnicas de assassinato de forma a separar visualmente assassinos e vítimas (BAUMAN, 1998, p.46).

As câmaras de gás foram inventadas para poupar as vítimas formas de morte

agonizantes – e, aos assassinos, visões que pudessem atormentar suas

consciências. Para muitos, é uma mistura perversa de industrialização fortalecida

por uma alegação de humanidade – dar uma morte misericordiosa – que tornava o

campo da morte aterrorizante. A busca por técnicas de assassinato que separassem

visualmente assassinos e vítimas teve êxito e levou a invenção das primeiras

câmaras de gás itinerantes e depois as fixas. Estas - as mais perfeitas que os

nazistas tiveram tempo de inventar - reduziram o papel do matador, segundo

Bauman, ao de “funcionário sanitário que devia esvaziar um saco de desinfetantes

químicos, por uma abertura no teto de um prédio cujo interior não o estimulavam a

visitar” (ibidem.).

O procedimento de destruição que levou ao gradual silenciamento das

inibições morais e ao desencadeamento do processo de destruição em massa

obedeceu à seguinte seqüência: definição, expropriação, deportação e

concentração, exploração pelo trabalho e extermínio. Se tentarmos agora descobrir

o fio condutor dessa seqüência para a Solução final, verificamos que os sucessivos

estágios obedecem à lógica da “expulsão do reino do dever moral” ou “do universo

das obrigações morais”, de acordo com a definição de Helen Fein (apud BAUMAN,

p.221).

Para tornar invisível a humanidade das vítimas, era preciso apenas retirá-las

do universo das obrigações morais. Assim, a Solução final não poderia ser levada a

termo enquanto os judeus não fossem removidos do horizonte da vida cotidiana dos

alemães; cortados da rede de relacionamentos pessoais, transformados, na prática,

em exemplares de uma categoria, de um estereótipo, ou seja, enquanto não

deixassem de ser aqueles “outros” aos quais se estende normalmente a

responsabilidade moral.

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Cada um dos passos tornava racional a escolha do estágio seguinte na rota

da destruição. “Quanto mais a seqüência se afastava do ponto original do ato da

definição, mais se guiava por considerações técnico-racionais, e tanto menos tinha

que levar em conta inibições morais. (...). As passagens entre os estágios tinham um

extraordinário aspecto em comum. Todas aumentavam a distância física e mental

entre as vítimas-alvo e o restante da população (...). Ficava mais fácil cometer atos

imorais com cada centímetro a mais de distância social”. Paul Virilio (1984, p.86-87), apresenta uma interessante análise comparativa

sobre a função tradicional do Estado, como poder que se exibe e como poder que se

esconde na sua versão moderna. No primeiro caso, “é a gravitas, a pompa e

circunstância, a solenidade do poder em representação. Agora, ao contrário, o

Estado moderno absorve técnicas da máquina de guerra nômade, o segredo do

guerreiro que tira vantagem do efeito-surpresa, (...) que usa a dissimulação, a

camuflagem para vencer”.

Enquanto as sociedades antigas eram sociedades de encarceramento, de

aprisionamento no sentido de Foucault, acrescenta o autor, as sociedades modernas

promovem outro tipo de repressão, o desaparecimento. Os corpos precisam

desaparecer do olhar da imprensa e da opinião publica. O campo se torna assim o

lugar constituído para manter as pessoas fora de suas relações tradicionais, ou fazê-

las desaparecer, em caso de extermínio.

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2.4.6. A conduta desumana como produto da ação seqüencial Para Milgram (apud BAUMAN, p.186), pode suceder uma conduta desumana

quando, no decorrer de uma ação seqüencial, o ator se torna preso de suas próprias

ações passadas. “Suaves e imperceptíveis passagens entre os estágios atraem o

ator para uma armadilha. O ator entra num círculo vicioso, uma vez que se torna

para ele impossível abandonar a sua conduta, sem rever, avaliar e eventualmente

reprovar os seus atos anteriores”. Milgram chama essa armadilha de “paradoxo da

ação seqüencial”.

Por outro lado, o uso da violência é mais eficiente e menos dispendioso

quando os meios são submetidos a critérios instrumentais e racionais que permitem

dissociá-los da avaliação moral dos fins. Como observa Bauman (1998, p.48) , “o

processo civilizador é, entre outras coisas, um processo de despojar a avaliação

moral do uso e exibição da violência e emancipar os anseios de racionalidade da

interferência de normas éticas e inibições morais”. Essa dissociação resulta, de

modo geral, de dois processos paralelos, ambos intrínsecos ao modelo burocrático

de ação: o primeiro consiste na minuciosa divisão funcional do trabalho e o segundo

na substituição da responsabilidade moral pela responsabilidade técnica.

A minuciosa divisão do trabalho consiste na mera extensão da cadeia de atos

que intermediam a iniciativa e seus efeitos palpáveis. Com ela, a maioria dos

envolvidos é liberada de significado e de exames morais. Os indivíduos são ainda

sujeitos a avaliação, mas por critérios técnicos e não morais. Assim, os problemas

morais passam a ser problemas técnicos que pedem melhor e mais racional

planejamento, e não exame de consciência. Como explica Todorov:

Essa compartimentação da própria ação e a especialização burocrática decorrente funda a ausência de sentimento de responsabilidade, que caracteriza os executantes da Solução final, assim como todos os outros agentes do Estado totalitário. Em uma das extremidades da cadeia há, digamos Heydrich: seu sono não é perturbado pelos milhões de judeus que morrem; ele nunca vê rosto sofredor, ele manipula cifras inodoras. Em seguida, vem, por exemplo, o policial francês; sua tarefa é muito limitada: recebe as crianças judias e dirige-as em seguida por um campo de reagrupamento, onde os alemães passam a ocupar-se delas; quanto

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a ele, não mata ninguém, não vai além da execução de uma rotina: receber, expedir. Segue o autor: A partir daí, Eichmann entra em cena: seu trabalho, puramente técnico, consiste em assegurar que um trem parte de Drancy, no dia 15, e chegue a Auschwitz no dia 22. Onde está o crime? Em seguida, Hoess (o comandante de Auschwitz) intervém: dá ordens para que se esvaziem os trens e para que se encaminhem as crianças para as câmaras de gás. Por fim, o derradeiro elo: um grupo de prisioneiros, o comando especial empurra as vítimas para as câmaras de gás e aciona o mecanismo de injeção letal; esse grupo é o único a matar com suas próprias mãos; mas, nesse caso, com toda evidencia, trata-se de vítimas e não de carrascos. De acordo com o pensamento do autor: Nenhum dos elementos da cadeia tem sentimento de responsabilidade pelo que faz: a compartimentação do trabalho suspendeu a consciência moral. A situação só é ligeiramente diferente nas duas extremidades da cadeia: alguém deve tomar a decisão – para tanto, basta uma única pessoa: um Hitler e o destino de milhões de seres humanos é selado; tal pessoa, nunca entra em contato com os cadáveres. E alguém deve desferir o golpe de misericórdia – até o fim de seus dias (que, aliás, pode estar muito próximo), tal pessoa (a vítima) perderá a paz interior, mas nem por isso poderá ser considerada verdadeiramente culpada (TODOROV,1995, p.191).

Talvez convenha observar que o mal não é apenas o contrário do bem, mas

também o seu inimigo. O verdadeiro mal tem por objetivo destruir as próprias

distinções morais. Uma maneira de fazer isso é transformar as vítimas em

cúmplices. Os dilemas decorrentes da cooperação dos Conselhos judaicos o

comprovam. Embora seus objetivos fossem salvar vidas e reduzir o sofrimento,

graças aos meios muito limitados de que dispunham, suas ações bem-intencionadas

ajudaram os nazistas a assassinar judeus com uma eficiência e uma perfeição que,

de outro modo, a Solução Final não teria tido. A capacidade nazista de implicar as

vítimas ou aqueles que de outro modo permaneceriam observadores inocentes foi o

aspecto mais maléfico do regime nacional-socialista. Os nazistas forçaram todos, de

observadores passivos a vítimas, a participar na vasta rede de destruição. A

capacidade de implicar as vítimas ou aqueles que de outro modo permaneceriam

observadores inocentes é o aspecto mais aterrador do regime nacional-socialista.

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Condenar a vítima a participar da mecânica do assassinato era uma maneira de

destruir a própria moralidade.

No que tange a responsabilidade moral, acrescenta Bauman, o sistema

burocrático não advoga contra as normas morais, mas “as utiliza, ou melhor, as

reutiliza”, com um duplo efeito: a “moralização da tecnologia e a recusa do

significado moral de todas as questões não técnicas”. Nesse processo, a

responsabilidade pessoal se dissolve na autoridade fria e impessoal do

conhecimento técnico. Bauman analisa essa sutil passagem da responsabilidade

ética para a responsabilidade técnica, nesses termos:

É a tecnologia da ação e não da sua substância que é submetida à avaliação como boa ou má, própria ou imprópria, certa ou errada (...). A responsabilidade técnica difere da responsabilidade moral pelo fato de esquecer que a ação é um meio para alcançar, algo para além dela mesma. Como as conexões exteriores da ação são efetivamente removidas do campo visual, o próprio ato burocrático se torna um fim em si mesmo, desembaraçado de preocupações morais. Quando desembaraçado de tais preocupações, o ato pode ser julgado em termos racionais, inequívocos (BAUMAN, 1998, p.125 e 188).

A desumanização começa no ponto em que os objetos visados pela operação

burocrática são reduzidos a um conjunto de medidas técnicas. É o que podemos

definir de racionalidade do mal. Assim, para os administradores de ferrovias, a única

formulação significativa do seu objeto se reduz em termos de toneladas por

quilômetro. Mandam os soldados atirarem em alvos, que caem quando são

atingidos. Eichmann não tinha contato com seres humanos ou arame farpado, só

lidava com carga.

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2.4.7. A desumanidade e a responsabilidade flutuante A responsabilidade flutuante é a situação na qual cada um e todos os

membros da organização estão convencidos de que estão sob as ordens de outra

pessoa, mas as pessoas apontadas pelas outras como responsáveis já passaram o

bastão para um terceiro. A organização como um todo passa a funcionar como uma

corrente, para eliminar toda a responsabilidade.

A perpetração coletiva de atos cruéis fica bem mais fácil, escreve Bauman

(1998, p.191): quando “a responsabilidade é essencialmente inatribuível, enquanto

cada participante desses atos está convencido de que ela compete a alguma

autoridade específica. A responsabilidade flutuante, móvel, é a própria condição dos

atos imorais ou ilegítimos”. Desse modo, Eichmann levou à morte milhões de

pessoas, ocupando-se do pequeno elo de uma longa cadeia, e encarando sua tarefa

como um problema puramente técnico, um mero problema de logística de

transportes.

2.4.8. A despersonalização da vítima “A coisa mais cruel da crueldade, escreve Janine Bauman (apud

BAUMAN, 1998, p.237), é que ela desumaniza suas vítimas antes de destruí-las. E

o mais duro das lutas é continuar humano em condições inumanas”. Para Todorov64,

a despersonalização é um meio de transformar os indivíduos em componentes de

um projeto que os transcende. É o processo que conduz à submissão dócil das

vítimas reduzindo-as à mera peça de uma imensa máquina que as leva a abdicar do

exercício do julgamento e da própria vontade. A transformação das “pessoas em

não-pessoas, em seres animados, mas não humanos”, requer uma série de técnicas

de despersonalização destinadas a esquecer a humanidade do outro.

64 Em face do extremo, 1995.

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Na sua grande maioria, os funcionários que administravam os campos eram

burocratas, funcionários zelosos e disciplinados, encarnação da simples “banalidade

do mal”. Tanto Eichmann, quanto Hoess ou Speer eram verdadeiros tecnocratas que

tinham em comum o triunfo do pensamento instrumental. Como observa Hilberg

(2003, p.1024): “deve-se ter em mente que a maioria dos participantes do genocídio

não atirou em crianças, nem despejou gás em câmara de gás (...). A maioria dos

burocratas compôs memorandos, redigiu planos, falou ao telefone e participou de

conferências. Podiam destruir todo um povo sentado em suas escrivaninhas”.

Assim, para Hoess, comandante de Auschwitz, só interessava o desempenho

da sua ‘fábrica’, ele não questionava o produto final. Quanto à Speer, o seu principal

problema consistia em produzir o máximo de armas e da melhor qualidade. A

preocupação era somente com a sua “produção”, e não com a sua utilização, nem

com a mão-de-obra escrava. Toda consideração humanitária era eliminada, com a

tradicional distinção entre consciência privada e dever público. “Dou-me conta de

que a visão do sofrimento dos homens teve uma influência sobre os meus

sentimentos, mas não sobre minha conduta. No plano afetivo, não tive senão

reações marcadas de sentimentalismo; no nível das decisões, ao contrário, os

princípios de finalidade racional continuavam a me dominar”, escreveu Speer (apud

TODOROV, 1995, p.217).

Esse quadro frio de morte instrumentalizada precisa de uma linguagem

apropriada, cuidadosamente codificada, técnica e impessoal, à altura de um crime

perpetrado, sine ira et studio, metodicamente, com a satisfação do trabalho bem

cumprido. O objeto das operações burocráticas passa a ser expresso em termos

puramente técnicos, eticamente neutros. Assim, segundo as “regras de linguagem

politicamente corretas”, o genocídio se torna o endlössung ou Solução final; as

operações de matança por gás de “tratamentos especiais”; as câmaras de gás de

“instalações especiais”; os detentos encarregados da matança de

sonderkommandos ou comandos especiais; e o assassinato, pela expressão

“cumprimento de uma morte misericordiosa”. Para os SS encarregados da liquidação

em massa:

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O judeu se tornou apenas uma figura de museu, um figuren algo para olhar com curiosidade, um fantástico animal fóssil com uma estrela amarela no peito, uma testemunha de tempos idos, mas não pertencentes ao [tempo] presente. Algo que deveríamos viajar para bem longe, se quiséssemos ver (KERSHAW apud BAUMAN, 1998, p.219).

Por outro lado, a linguagem da moralidade adquire um novo vocabulário,

repleto de conceitos como dever, lealdade - como a divisa dos SS: “A minha honra é

a minha lealdade” -, disciplina, todos apontando para os superiores como supremo

objeto de preocupação moral. Bauman observa que “essa linguagem codificada, ao

mesmo tempo em que disfarçava o crime, revela um dos seus aspectos mais

notáveis: a sua dimensão burocrática, elo indispensável entre a violência rotinizada

e a morte instrumentalizada”.

Por fim, Milgram revelou que a disposição de agir contra a própria consciência

é função da exposição a uma fonte clara, inequívoca e monolítica de autoridade.

Segundo ele, “só quando se tem uma autoridade que opera num campo livre, sem

nenhuma pressão contrária, além dos protestos da vítima, é que se consegue a

resposta mais pura à autoridade”. No contexto do genocídio, essa fonte clara de

autoridade era o regime totalitário nacional-socialista, personificado pelo führer, o

qual teve o cuidado de destruir desde o início, todo vestígio de pluralismo político

para deslanchar o seu funesto projeto.

Hannah Arendt (apud BAUMAN, 1998, p.194) observa que a recíproca

também é verdadeira: o pluralismo político constitui o melhor antídoto contra

pessoas moralmente anormais e “a voz da consciência individual é mais bem ouvida

no tumulto da discórdia política e social.”

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CONCLUSÃO

A experiência democrática da República de Weimar foi uma das matrizes do

totalitarismo na Alemanha nacional-socialista. Se muitos fatores contribuíram para a

manifestação do surto totalitária na Alemanha nacional-socialista, a sua origem tem

se sua base principal nas ambigüidades e nas imperfeições da democracia, como

tentou demonstrar neste trabalho.

A pesquisa começou com o estudo da matriz totalitária e trilhou os meandros

do labirinto totalitário para identificar os fatores desencadeantes da dinâmica

totalitária tal como se manifestou na Alemanha. O desafio maior da pesquisa foi

tentar compreender como um regime eleito democraticamente, referendado em

várias ocasiões, com ampla maioria, herdeiro de uma das culturas mais

desenvolvidas da Europa, pôde ter aderido a tal projeto.

O estudo da matriz totalitária abordou três grandes aspectos: cultural, social e

político. Dos três aspectos estudados foi justamente na matriz política que

encontramos as explicações mais convincentes para o surgimento do totalitarismo.

Todavia, vale salientar que a indeterminação democrática e a politização da vida são

dois temas reveladores e interessantes, devido ao alcance das explicações de Lefort

e Agamben.

No que tange a matriz cultural, a “Revolução conservadora” representou um

excepcional laboratório de idéias sobre a temática da modernidade e do

“desencantamento do mundo”, na qual o regime nacional-socialista encontrou uma

importante fonte de inspiração. Graças aos trabalhos pioneiros de Louis Dupeux, os

historiadores contemporâneos dão um maior destaque a esse fermento intelectual e

a esse potencial de violência que encobria uma sociedade cujas estruturas jurídicas

ainda não estavam consolidadas e que formou o discurso ideológico do nacional-

socialismo.

Já na matriz social destaca-se a brutalização da sociedade. Para G. Mosse, o

período de descivilização marcado pela guerra 1914-1918 anunciou as brutalizações

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totalitárias dos períodos subseqüentes. Após o término dos combates, toda a cultura

da guerra influenciaria a sociedade civil alemã. O “ideal militar” era presente em toda

parte. Hitler, nostálgico e prisioneiro daquilo que Mosse denominou o “mito da

grande guerra” aspirou a uma “sociedade de combatentes”. Após 1918, o campo de

batalha havia se transferido para o front interior, no seio da sociedade civil.

O advento da era tecnicista, anunciada por Yünger, teve amplas repercussões

no período entre as duas Grandes Guerras, tornando o combatente uma mera peça

mecânica. A mecanização dos indivíduos e das relações humanas não se limitou à

própria guerra, mas afetou os tempos de paz com as concepções e os ideais

herdados do conflito.

No que tange a essência da matriz política do poder totalitário, alguns

autores foram destacados. Em primeiro lugar, Claude Lefort, para quem o

totalitarismo é uma tentativa desesperada e contraditória de anular a incerteza

indissociável da experiência democrática moderna, e de procurar no quadro protetor

uma sociedade fechada, a defesa dos valores e das antigas certezas que sempre

tem regulado a vida comunitária.

A maior contribuição de Lefort foi a de ter ido além de uma mera denúncia da

opressão totalitária, e ter procurado revelar a sua matriz, bem como o seu

mecanismo. A originalidade da sua obra está em ter contribuído para elucidar o

enigma do surgimento do totalitarismo. Para Lefort, a gênese do totalitarismo pode

ser compreendida somente a partir das ambigüidades da própria democracia. Isso

significa que na essência da democracia, como já foi exposto, existe uma

indeterminação, isto é, uma insuperável incerteza.

A indeterminação democrática é apontada pelo autor como sendo a principal

ambigüidade da democracia que tem servido de alavanca para a aventura totalitária.

Lefort não hesita em afirmar que a liberdade política só pode ser preservada

enquanto existir a proibição de se apropriar do poder (no sentido de posse ou de

confisco) pelos depositários da autoridade pública, enquanto permanecer vazio,

inocupável o lugar do poder.

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Apenas a autoridade do poder para um exercício limitado do poder pode ser

conquistada, e não o poder em si, a posse do poder. A impossibilidade de se

apossar do poder é indissociável do reconhecimento da legitimidade da competição

política. Para ser efetiva, uma redistribuição periódica das cartas do poder

pressupõe uma abertura efetiva da competição política para todos aqueles que

julguem ter o direito ao seu exercício.

Por outro lado, a legitimidade de uma competição política pressupõe também

legitimar a existência do conflito, ou pelo menos da sua expressão. Com efeito, se os

postulantes ao poder não tivessem a liberdade de defender as suas convicções,

quaisquer que fossem, isso significaria que existiria, em algum lugar, um outro

poder, um verdadeiro poder, guardião da doxa, a qual todos devem subscrever.

Defender a idéia de um poder vazio, inapropriável tem como principal conseqüência

a instauração de um espaço público num âmbito onde as relações entre os homens

são subtraídas à autoridade do poder.

Para Lefort, as raízes do totalitarismo se encontram precisamente na própria

democracia, quando desaparece a base transcendental do social. O regime

totalitário constitui uma exata inversão do modelo democrático. Enquanto neste, a

alternância regular do poder marca a separação do poder com a sociedade,

possibilitando assim a autonomia do espaço social em relação aos depositários do

poder, naquele, em contraste, a identificação total do poder com a sociedade tem

por efeito que em direito, a sociedade não goza de nenhuma autonomia, que ela

representa para ele apenas um mero espaço privado. Juridicamente, não existe

nada que aconteça na sociedade que não diz respeito ao Poder. E para caracterizö-

de-regra, nenhum tipo de comunicação, nenhuma forma de expressão do

pensamento e da opinião, pode fugir ao controle do poder.

Em vez do fantasma totalitário, a sociedade democrática corresponderia a

uma vontade de unificar uma sociedade sem abolir as suas divisões, pois longe de

enfraquecê-la, os conflitos alimentam a vida comum. Tal é o paradoxo da

democracia: uma encenação política, dentro da qual se produz uma competição que

deixa transparecer a divisão, sendo essa mesma divisão constitutiva da própria

unidade social. Lefort condena a pretensão totalitária de estabelecer uma sociedade

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sem classe, ou homogênea sob o aspecto racial (völkisch), a qual todos os

indivíduos seriam idênticos, sublinhando assim a natureza conflitante de toda

democracia.

O regime democrático é marcado pelo selo da indeterminação, pela ausência

de certeza, e ele se situa nesse aspecto numa perspectiva de história aberta: a

democracia caracteriza-se assim como ‘a’ sociedade histórica por excelência,

sociedade que, na sua forma acolhe e preserva a indeterminação, em contraste

notável com o totalitarismo que, se revelando sob o signo da criação de um homem

novo, se edifica na realidade contra essa indeterminação.

A democracia implica numa redistribuição periódica das “cartas do poder” e a

constituição de um espaço público de discussão, “sem precondição, nem avalista”,

acrescenta o autor. Na ausência desses dois elementos, o debate seria

inevitavelmente viciado e um conflito não deixaria de surgir entre o caráter

indeterminado desse regime político e a pretensão do poder instituído de arrogar-se

o poder em benefício próprio.

A sociedade democrática é indeterminada, na sua essência. Essa

indeterminação se traduz por sua vez, pela constituição de um espaço público onde

todos podem defender suas idéias sobre uma ordem social justa. Isso implica o

reconhecimento da legitimidade do debate e do conflito. Desse modo, a unidade da

democracia é inseparável do reconhecimento das suas divisões.

Quando predomina o sentimento de que a democracia não representa nada

mais do que a destruição da coesão social e, a exemplo da República de Weimar,

ela se torna não a solução, mas a principal causa da desordem social, os indivíduos

podem ser levados a abraçar um projeto de restauração de uma Sociedade–Una,

afinada consigo mesma e que possa acabar com todos os conflitos decorrentes da

divisão social. A representação de uma Sociedade–Una marca uma ruptura radical

com o modelo democrático, uma vez que almeja acabar, com o lugar vazio do poder,

com a luta incessante pelo poder e finalmente com os conflitos sociais.

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O sentido da mutação que provoca o desmoronamento da sociedade

democrática e o advento simultâneo do totalitarismo se encontra nesse labirinto

inextricável onde os indivíduos são impelidos por uma sociedade inapreensível

segundo a expressão de Lefort, uma sociedade sempre em busca de uma saída, de

uma definição às suas contradições e às suas divisões. Em outros termos, a

aventura totalitária é baseada sobre um modelo de sociedade livre de conflitos e,

desse modo, livre do problema da indeterminação. Ela se fundamenta na recusa do

reconhecimento de que a divisão social é o resultado inelutável da sociedade como

tal.

Para Lefort, essa aspiração totalitária de restaurar a coesão social, num corpo

social orgânico unido em torno do mesmo desígnio e senhor de seu próprio destino,

só pode ser compreendido à luz do desejo de superar esse vazio que a destruição

do poder tradicional cavou na substância da própria comunidade. O totalitarismo é

uma tentativa desesperada e contraditória de anular a incerteza indissociável da

experiência democrática moderna, e de procurar, no quadro protetor uma sociedade

fechada, preservar os valores e as antigas certezas que sempre regularam a vida

comunitária.

Na visão de Lefort, para explicar o destino da liberdade, não basta afirmar que

a representação do Povo – Uno é inseparável do terror. É preciso ir além e desvelar

que é precisamente no âmago da democracia e em razão das suas próprias

contradições, que nasce a tentação do Uno totalitário. Defender a liberdade é

inseparável de uma crítica à tentação do Uno. Tal seria a missão da filosofia política:

relembrar que a defesa da democracia e das liberdades exige que os homens

estejam preparados a resistir ao fantasma do Uno.

Com as ambigüidades decorrentes da indeterminação democrática, devemos

a Tocqueville o grande mérito de ter apontado um outro perigo para o regime

democrático: a tirania da maioria que decorre do exercício do poder. Para

Tocqueville, o risco existe quando uma maioria de indivíduos que pretendem ser

iguais se apóia nessa mesma maioria para fazer prevalecer uma vontade, que pode

ser a de exclusão de todos aqueles que ela julga diferentes.

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A tirania da maioria pode ser exercida contra a minoria. No exemplo do

regime nacional-socialista, ela pode declarar a vida de certos grupos minoritários

como indigna de ser vivida e desse modo rejeitá-la da comunidade, a mercê de uma

decisão arbitrária do Poder soberano. Contra as minorias, é sempre possível exercer

uma certa violência, que pode tomar várias expressões: ela pode se manifestar quer

pela recusa de conceder a certos indivíduos o conjunto de seus direitos, quer pela

desigualdade, quer pela manifestação de certo menosprezo a determinados

indivíduos, por causa de sua diferença. A maioria pode também adotar uma

dimensão agonal do exercício do poder, onde passa a existir uma oposição

fundamental entre o idêntico fundador da maioria e o diferente característico das

minorias. A tirania da maioria é uma situação onde a maioria possui todos os direitos

e todos os instrumentos do poder, e onde as minorias, que se opõe a ela, correm o

risco de se encontrar na incapacidade de fazer prevalecer os seus direitos, inclusive

os direitos à vida. Desse modo, a democracia, quando existe o exercício da tirania

da maioria, pode revelar outra de suas imperfeições: um regime em que reina o

poder, sem qualquer restrição, e que pode vir a se tornar uma ameaça à vida das

minorias.

Existe um terceiro perigo no exercício do poder democrático, quando este

focaliza a vida dos indivíduos, ou mais precisamente o potencial vital de uma

comunidade, que Foucault denominou de “biopolítica”. Perigo que aparece com o

crescente envolvimento da vida natural do homem nos mecanismos e nos cálculos

do poder. Nesse contexto, o poder nacional-socialista tentou legitimar a eutanásia

com a justificativa que havia vidas sem valor “que não mereciam ser vividas”

(lebensunwert) em oposição à “vida digna de ser vivida”.

O objeto do Estado soberano, segundo um dos maiores estudioso do biopoder

da atualidade, Giorgio Agamben, passa a ser a vida nua do homo sacer, exposta,

sem mediação, ao exercício biológico de uma força de correção, de encarceramento

e de morte. O campo surge como a outra face da relação de exceção: Vida nua

versus Poder Soberano, onde se exerce esse poder. É o espaço que se abre

quando o estado de exceção se torna tanto a regra quanto “o regulador oculto da

inscrição da vida no ordenamento político”. Para Agamben, o campo constitui o

paradigma que marca de forma decisiva, a realidade biopolítica moderna. O campo

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constitui então um espaço de exceção onde a lei é integralmente suspensa, onde

realidade e direito se confundem sem resíduos, e onde “tudo é possível”. O

campo não foi apenas “a sociedade a mais totalitária jamais realizada”, como

apontou Rousset, mas também o modelo social perfeito para o domínio total do

poder soberano. Um poder total, conseguido sem exceção, sobre todos os homens,

em todos os aspectos das suas vidas.

Para o biopoder, existe sempre a tentação de transformar não apenas o

mundo exterior, mas a própria natureza humana. Uma figura representa essa vida

nua, a figura do homo sacer descrita por Agamben, uma vida a mercê de uma

provável expulsão para fora dos limites do ban de um mundo ordeiro.

A revolução nacional-socialista desejou fazer apelo às forças que tendem a

exclusão dos fatores de degeneração biológica e à manutenção da saúde hereditária

do povo. Ela almejou fortalecer a saúde do conjunto da nacao e eliminar as

influências que prejudicam o seu desenvolvimento biológico. Esta nova política

encontra sua legitimidade na assunção de uma suposta missão biopolítica do

Estado, de acordo com a concepção do “vir-a-ser” (dasein), na qual vida e política se

identificavam com a idéia de “dar forma à vida de um povo”. O indivíduo só tem lugar

e valor na medida em que contribui para o bom funcionamento da Comunidade

orgânica, em que desempenha de maneira satisfatória o seu papel, a sua função.

Para o regime nacional-socialista, o valor do indivíduo é estimado em função

da sua capacidade contributiva (leistungsfähigkeit), isto é, da sua aptidão em cumprir

com êxito um leistung, uma tarefa em prol da comunidade e do Estado. Um indivíduo

só aceito, incentivado, promovido, alimentado na medida em que possa trabalhar

para o seu Estado e para a sua raça, quando a sua capacidade contributiva

(leistung) e o seu ‘sacrifício’ excedem generosamente aquilo que a comunidade vai

lhe retribuir. Do contrário, quando a vida de um indivíduo representa uma perda

líquida para a comunidade (leistungsunfähig), a pessoa é declarada indigna de viver

(lebensunwert). Uma vida indigna de ser vivida (lebensunwertes leben) será então

interrompida pela morte como a dos doentes mentais, submetidos a uma ação de

eutanásia no quadro da Operação T4 ou de judeus. Um indivíduo leistungsunfähig

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se torna um ônus para a comunidade, um peso morto que atrasa a marcha da raça e

do Estado.

Essa máquina individual deve produzir, exercendo uma atividade produtiva

(produzir leistung), o que significa também produzir filhos. A procriação se torna um

imperativo político que é incentivado pelo Estado e pela propaganda. É imperativo

produzir braços para a indústria e para a guerra. A expressão utilizada pela

propaganda nazista é: produzir crianças (kinder zeugen) do mesmo modo que numa

fábrica, uma máquina produz (erzeugt) mercadorias (erzeugnisse).

No regime nacional-socialista, o indivíduo era considerado como um material

humano (menschenmaterial), uma matéria-prima a trabalhar, a aperfeiçoar, a

esculpir, a construir. Seguindo o modelo tradicional prussiano, o III Reich ambicionou

se tornar uma sociedade alinhada (gleichgschaltet), regida pela capacidade

contributiva (leistungsprinzip) do seu material humano (menschenmaterial)”;

aspirando a se “tornar uma máquina regulando toda a atividade mecânica e

planejada de cidadões-autômatos”.

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Ao se abordar esta etapa do trabalho, foi possível resgatar a memória

daquele obscuro soldado cuja vida motivou a realização deste trabalho. Levado para

um campo de prisioneiros, destinado exclusivamente a soldados judeus e soviéticos,

permaneceu preso até 1945. Após a sua liberação, quase não falou sobre o tema,

mas deixou registrado em cartas póstumas que “havia decidido viver” e que a “sua

maior façanha foi de ter voltado vivo de lá”, de um mundo ‘alinhado’ (gleischaltung)

que havia decretado a sua vida indigna de ser vivida (lebensunwert). Condenado ao

trabalho forçado, este homem trabalhou além de suas forças para ‘ser útil’ segundo

os conceitos de leistung e, com isso, receber a recompensa da alimentação que lhe

dera forças para sobreviver.

Apesar deste relato não ter sido o foco do trabalho, vale lembrar que a sua

experiência de guerra sempre esteve presente durante toda esta pesquisa. Assim

como seu ensinamento de que se deve odiar e rechaçar apenas o ódio e não as

pessoas, sejam elas pertencentes à maioria ou às minorias.

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