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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP Patricia Laundry Mollo Vieira Da totalidade à força do lugar: O pensamento de Milton Santos, à luz da Semiótica de Peirce Doutorado em Comunicação e Semiótica SÃO PAULO 2019

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP

Patricia Laundry Mollo Vieira

Da totalidade à força do lugar: O pensamento de Milton Santos, à luz da Semiótica de Peirce

Doutorado em Comunicação e Semiótica

SÃO PAULO

2019

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Patricia Laundry Mollo Vieira

Da totalidade à força do lugar: O pensamento de Milton Santos, à luz da Semiótica de Peirce

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutora em Comunicação e Semiótica, na área de concentração Signo e Significação nos Processos Comunicacionais, sob a orientação da Professora Doutora Maria Lúcia Santaella Braga.

SÃO PAULO

2019

Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou

parcial desta Tese de Doutorado por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos.

Assinatura:

Data:

e-mail: [email protected]

Banca examinadora:

________________________________ ________________________________ ________________________________ ________________________________ ________________________________

Para Ademaro Mollo e Renausto Amanajas

Agradecimentos

À Lucia Santaella pela orientação e caminhadas em Perdizes; Ao Ivo Ibri, pela experiência de primeiridade em Mahler.

RESUMO

VIEIRA, Patricia. Da totalidade à força do lugar: o pensamento de Milton Santos, à luz da Semiótica de Peirce. 2019. 154 p. Tese (Doutorado em Comunicação e Semiótica) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2019.

O tema desta tese é a análise do pensamento do geógrafo Milton Santos (1926-2001), a partir da semiótica do norte-americano Charles Sanders Peirce (1839-1914). Propomo-nos, neste trabalho, aplicar o protótipo da semiose genuína, desenvolvido a partir de Parmentier (1948- ), para acompanhar a expansão do pensamento de Milton Santos sobre um conjunto de obras selecionadas, a partir da década de 70. Defendemos a hipótese de que o método presente na obra A natureza do espaço: técnica, tempo, razão e emoção (1996) possibilitou a internalização das categorias de análise presentes em O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo (1978) e em Por uma geografia nova (1978), em padrões relacionais triádicos que permitiram Milton Santos supor o espaço sob um sistema geral de regras no intuito de prever o curso futuro de sua conduta. Supomos que, além de sugerir o protótipo da semiose como método para análise do pensamento geográfico, a tese contribui em evidenciar a logicidade do pensamento de Milton Santos na busca de operacionalidade e coerência do método, que marcou uma trajetória de pesquisa vinculada à permanente atenção à atualidade e ao desejo de ofertar uma geografia capaz de restituir ao homem o espaço solidariamente habitado.

Palavras-chave: Milton Santos, Espaço, Lugar, Semiose, Semiótica Aplicada, Peirce.

ABSTRACT

VIEIRA, Patricia. Da totalidade à força do lugar: o pensamento de Milton Santos, à luz da Semiótica de Peirce. 2019. 154 p. Tese (Doutorado em Comunicação e Semiótica) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2019.

The theme of this thesis is the analysis of the thought of the geographer Milton Santos (1926-2001), from the semiotics of the North American Charles Sanders Peirce (1839-1914). We propose, in this work, to apply the prototype of genuine semiosis, developed from Parmentier (1948-), to accompany the expansion of Milton Santos's thinking about a set of selected works, beginning in the 70's. We defend the hypothesis of which the method present in the work The nature of space. Technique, time, reason and emotion (1996) made possible the internalization of the categories of analysis present in The work of the geographer in the third world (1978) and For a new geography (1978) in triadic relational patterns that allowed him to assume space under a general system of rules in order to predict the future course of his conduct. We suppose that, in addition to suggesting the prototype of semiosis as a method for analysis of geographic thought, the thesis contributes to highlight the logic of Milton Santos' thinking in the search for operationality and coherence of the method, which marked a trajectory of research linked to the permanent attention to the present and the desire to offer a geography capable of restoring to man the solidarily inhabited space.

Keywords: Milton Santos, Space, Place, Semiosis, Applied Semiotics, Peirce.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Mônada, díada e tríada 25

Figura 2 - Semiose genuína 29

Figura 3 - Díadas na geografia 61

Figura 4 - Tríada mecanismos 63

Figura 5 - Tríada paisagem derivada 64

Figura 6 - Tríada rugosidades 65

Figura 7 - Semiose do espaço dos países subdesenvolvidos 67

Figura 8 - Díadas na interdisciplinaridade 84

Figura 9 - Díadas na geografia 85

Figura 10 - Tríada rugosidades, em Por uma geografia nova 86

Figura 11 -Tríada formas-conteúdo 87

Figura 12 -Tríada formação social 88

Figura 13 - Semiose do espaço, em Por uma geografia nova 89

Figura 14 - Distribuição global da pobreza 102

Figura 15 - Tríada técnica 116

Figura 16 - Semiose: espaço, técnica e lugar 118

Figura 17 - Semiose: técnica, evento e lugar 119

Figura 18 - Semiose: realidade em movimento, evento e lugar 121

Figura 19 - Diádas e tríadas em O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo 124

Figura 20 - Tríadas em Por uma geografia nova 125

Figura 21 - Internalização modo de produção e relações verticais e horizontais 127

Figura 22 - Tríada técnica, totalidade e meio técnico-científico-informacional 129

Figura 23 - Tríada evento, totalidade/totalização, meio técnico-científico-informacional 132

Figura 24 - Tríada evento, rugosidades e formas-conteúdo 135

Figura 25 - Tríada evento, intencionalidade e meio técnico-científico-informacional 136

Figura 26 - Tríada evento, divisão do trabalho e totalidade/totalização em combinação com a tríada evento, formas-conteúdo e rugosidades 138

Figura 27 - Tríada evento, lugar e escala do acontecer 140

Figura 28 - Tríada evento, lugar e acontecer solidário 141

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 10

PARTE I – A SEMIOSE

Capítulo 1. Semiótica na estrutura filosófica de Peirce 20

Capítulo 2. Semiose como processo lógico da lei da mente 26

Capítulo 3. As ciências normativas de Peirce 39

PARTE II – A GEOGRAFIA URBANA DOS PAÍSES SUBDESENVOLVIDOS

Capítulo 4. Contextualização a partir das ciências normativas 43

Capítulo 5. Categorias de análise, temporalidade e método 48

Capítulo 6. Semiose da geografia urbana dos países subdesenvolvidos 57

PARTE III – RENOVAÇÃO DA GEOGRAFIA, O ESPAÇO HUMANO

Capítulo 7. Contextualização a partir das ciências normativas 71

Capítulo 8. Categorias de análise, temporalidade e método 75

Capítulo 9. Semiose do espaço humano como formação social 83

PARTE IV– A FORÇA DO LUGAR E A ESCOLHA DO FUTURO

Capítulo 10. Contextualização a partir das ciências normativas 95

Capítulo 11. Semiose da natureza do espaço 104

Capítulo 12. Internalização das categorias de Milton Santos na semiose do espaço 123

CONCLUSÃO 146

REFERÊNCIAS 151

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Introdução

O tema desta tese é a análise do pensamento do geógrafo Milton Santos

(1926-2001) nas obras O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo (1978), Por uma geografia

nova, da crítica da geografia a uma geografia crítica (1978) e A natureza do espaço: técnica 1

e tempo, razão e emoção (1996) , à luz da semiótica do norte-americano Charles Sanders 2

Peirce (1839-1914). A investigação tem origem na pesquisa realizada em 2014, quando

analisamos o pensamento de Milton Santos na obra A natureza do espaço, a partir da

semiótica de Peirce. Questões suscitadas pelos resultados da pesquisa anterior, que em tudo

devem à adoção da leitura semiótica peirciana como método, nos moveram para a pesquisa

atual.

A semiótica de Peirce, também conhecida como lógica, está inserida em um

sistema filosófico cuja sustentação é dada pelas categorias universais extraídas da

fenomenologia. A fenomenologia é a ciência que tem por objetivo inventariar as

características do phaneron, no escrutínio de modos gerais de ser que permeiam a experiência,

esta concebida por Peirce como o resultado cognitivo de nossas vidas.

No topo da estrutura está a matemática, ciência fundamental que independe de

todas as outras. A filosofia sucede a matemática e é dividida em três ramos: fenomenologia,

ciências normativas e metafísica. Após a filosofia vêm as ciências especiais ou ideoscópicas

seguidas pelas ciências da revisão e ciências práticas.

A lógica ou semiótica é o terceiro ramo das ciências normativas, sendo o primeiro,

a estética e o segundo, a ética. Por sua vez, a semiótica está dividida em três ramos: gramática

especulativa, uma teoria geral da natureza da representação que estuda quais as condições

necessárias para que um signo seja um signo, bem como a ação do signo pelos processos de

semiose; lógica crítica, ciência formal que estuda a veracidade de quaisquer representações,

pela referência que a representação mantém com seu objeto, sendo uma teoria unificada dos

tipos de raciocínio ou argumento que são utilizados por uma inteligência científica; e a

retórica especulativa, ou metodêutica, ciência da interpretação que estuda como o

Passaremos a nos referir à obra Por uma geografia nova, da crítica da geografia a uma geografia crítica, por Por uma 1

geografia nova. Passaremos a nos referir à obra A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção, por A natureza do espaço.2

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conhecimento é transmitido e os procedimentos necessários para se empreender uma

investigação científica.

Como em todo o edifício filosófico de Peirce, os ramos da semiótica mantêm uma

hierarquia entre si, de maneira que a metodêutica tem sua sustentação na lógica crítica, pois

sendo uma teoria do método científico, depende da lógica que estuda o pensamento e o

raciocínio. A lógica crítica, por sua vez, tem seu alicerce no primeiro ramo da semiótica, a

gramática especulativa, porque todo pensamento e raciocínio se dão em signos.

A obra A natureza do espaço é sinalizada por Grimm (2011) como o ápice do 3

amadurecimento intelectual de Milton Santos, período marcado pela globalização ao longo da

década de 1990. Grimm (2011) identifica períodos na trajetória epistemológica de Milton

Santos divididos em grandes temas, a partir de três eixos de análise: centralidade da técnica,

diálogos com a economia política e a busca pela cidadania como práxis.

De 1965 a 1971, Milton Santos desenvolve o diálogo interdisciplinar com a

economia política, que Grimm (2011) associa ao tema “estudos sobre as especificidades da

urbanização no Terceiro Mundo”, período representado pelos livros O trabalho do geógrafo

no Terceiro Mundo e Les villes du Tiers Monde (1971). O trabalho do geógrafo no Terceiro

Mundo foi escrito em 1968 e publicado em Paris em 1971, sob o título Le métier de

géographe em pays sous-développé, posteriormente traduzido e publicado no Brasil em 1978.

O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo é a primeira obra analisada na presente pesquisa.

Nosso posicionamento é de que a obra marca o início do pensamento intelectual de Milton

Santos na construção de sua própria epistemologia, tendo o espaço por objeto de estudo:

essa contestação (a geografia francesa e aos seus mestres) vai se manifestar de maneira mais coerente em 1968, com o meu livro Le Métier du Geographe, cujo título é inspirado em Marc Bloch, que escreveu Le Métier du Historien. Eu achava tão ruim, tão terrível o que os colegas do departamento de geografia faziam, que decidi escrever aquele livro. Creio que é esse livro que me abre os caminhos que eu até hoje busco trilhar. Ali estão, talvez, os problemas que eu fui pouco a pouco desenvolvendo. (SANTOS, 2002, p. 28, grifo nosso).

Em distinção ao trabalho de Elias (2002) e de Gonçalves (2002) que identificam a

obra Por uma geografia nova como o primeiro estudo teórico-metodológico de Milton

Santos, compartilhamos o posicionamento de Tavares e Silva (2011) que situam a obra O

trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo como de cunho teório-metodológico e o pontuam

Milton Santos recebeu em 2017 o prêmio Jabuti com A natureza do Espaço: técnica e tempo, razão e emoção (1996) na 3

categoria melhor livro de Ciências Humanas.

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como o início do projeto teórico miltoniano. Os elementos constituintes de O trabalho do

geógrafo no Terceiro Mundo serão aprofundados em obras subsequentes, culminando com a

escrita da obra A natureza do espaço:

entendemos que O Trabalho do Geógrafo é uma obra seminal para a construção e compreensão do pensamento miltoniano, uma vez que muitas das formulações teóricas elaboradas por Milton Santos deitam aí suas raízes mais profundas. Acreditamos que essa obra é o primeiro esboço sistematizado do autor no sentido de formular uma teoria da geografia. (TAVARES e SILVA, 2011, p. 141).

A publicação de Por uma geografia nova (1978), conforme Grimm (2010), indica

o período marcado pelo retorno de Milton Santos ao Brasil e sua participação no movimento

da geografia crítica. Caracteriza a obra o aprofundamento das reflexões críticas à geografia e

o desenvolvimento de categorias como formas-conteúdo e rugosidades.

A chegada de Milton Santos ao Brasil foi marcada também pelo que temos denominado de uma política de difusão das idéias. Em 1978, foram quatro os livros publicados de sua autoria. Destes, o que possui maior destaque nos debates sobre a epistemologia da disciplina foi Por uma geografia nova. Da crítica da geografia a uma Geografia Crítica que, junto ao livro O espaço fora do lugar, de Armando Corrêa da Silva, têm um papel decisivo no movimento da geografia crítica no Brasil. (GRIMM, 2011, p. 146).

Grimm (2011) identifica saltos epistemológicos na trajetória de Milton Santos e

aponta rupturas, como o afastamento gradual da geografia regional clássica; além de

continuidades, como a constante presença da categoria técnica, inicialmente inspirada pela

geografia vidaliana de cunho descritivo, e que veio a ocupar papel central na trajetória de

Milton Santos, ao ser incorporada no território e associada à categoria da totalidade. Nosso

posicionamento é que a noção de técnica presente na geografia regional clássica sofreu uma

mudança qualificativa de significado, quando Milton Santos a posiciona, em A natureza do

espaço, como a categoria que ocupa o papel de mediação, no sentido semiótico do termo , 4

entre o sistema de objetos e o sistema de ação.

Em A natureza do espaço, Milton Santos conceitua o espaço como o conjunto

indissociável dos sistemas de objetos e dos sistemas de ação e apresenta um método composto

de categorias de análise, quinze externas e treze internas ao espaço; uma construção teórica

destinada a descrever e explicar a realidade em movimento, expressão do espaço na

atualidade.

Sentido que desenvolveremos no capítulo 2.4

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Como categorias externas ao espaço temos: a técnica, a ação, os objetos, a norma

e os eventos, a universalidade e a particularidade, a totalidade e a totalização, a

temporalização e a temporalidade, a idealização e a objetivação, os símbolos e a ideologia. E

como categorias internas: a paisagem, a configuração territorial, a divisão territorial do

trabalho, o espaço produzido ou produtivo, as rugosidades e as formas-conteúdo, os recortes

espaciais, a tecnoesfera e a psicoesfera, a racionalidade do espaço, o conteúdo geográfico do

cotidiano, a ordem mundial e a ordem local.

Um dos objetivos da investigação anterior que importam para a tese foi analisar

como as categorias analíticas externas e internas ao espaço conceituado como conjunto

indissociável de sistema de ação e sistema de objetos foram aplicadas à realidade em

movimento. É dizer, diante de um conceito que se pretende ontológico, por quais meios

metodológicos Milton Santos conferiu às vinte oito categorias de análise o potencial de

coerência e operacionalidade para descrever e explicar a realidade, sob o prisma geográfico?

Um dos procedimentos da pesquisa à época foi aplicar às categorias miltonianas

as classificações do signo derivadas das três principais tricomias de Peirce, dentre elas, a que

trata do potencial da forma expressiva do signo em apontar ou indicar a realidade, gerando um

efeito de interpretação. Identificando as categorias de Milton Santos e classificando-as a partir

das tricomias de Peirce, foi possível situar as categorias do espaço nas posições lógico-

formais do signo e observar o movimento da semiose do espaço, a partir da alternância das

posições lógico-formais na cadeia da semiose . 5

Para os objetivos daquela investigação, estabelecemos intencionalmente o ponto

de início e término da semiose analisada, sabendo que o intervalo selecionado está situado

temporalmente no fluxo de várias semioses de Milton Santos, sem início e término definidos,

considerando a antecedência tanto de obras e produções acadêmicas como de artigos, de

palestras, de aulas, etc.; quanto das discussões posteriores à escritura da obra.

Uma das características da análise semiótica é que ela implica o pesquisador que

dela se utiliza, ele próprio ocupando uma das posições lógico-formais do signo, na medida em

que seu pensamento, em forma de interpretações, entra na semiose.

Estar na semiose não implica, contudo, invalidar a investigação pretendida. A

experiência, segundo Peirce, além de moldar nossas condutas, atua como um fator corretivo

Semiose é ação do signo, conceito que será explorado no capítulo 2.5

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do pensamento quando desdobrada no fluxo do tempo. Ademais, a doutrina do falibilismo em

Peirce estatui que o conhecimento é continuidade e evolução, o que confere um caráter

autocorretivo e aberto à investigação científica.

Cada investigador individual, por mais sistemático e rigoroso que possa ser seu pensamento, é essencialmente falível. Daí Peirce ter batizado sua teoria de Falibilismo. Isso nos dá uma ideia de sua concepção da ciência e Filosofia como processos que amadurecem gradualmente, produtos da mente coletiva que obedecem a leis de desenvolvimento interno, ao mesmo tempo que respondem a eventos externos (novas ideias, novas experiências, novas observações), e que dependem, inclusive, do modo de vida, lugar e tempo nos quais o investigador vive. (SANTAELLA, 1983, p. 5).

Quando do alargamento de nossa análise para obras anteriores de Milton Santos,

necessário à compreensão da teoria geográfica presente em A natureza do espaço, observamos

a incidência de temas vinculados às categorias que compõem o conjunto das vinte e oito

categorias de análise articuladas no método apresentado em A natureza do espaço. Tais temas

aparecem em grupos que caracterizam temáticas distintas em períodos do pensamento de

Milton Santos, marcadamente presentes nas três obras selecionadas como corpus da pesquisa,

a partir da publicação da obra O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo (1978), o que nos

mobiliza à presente investigação, guiados pela seguinte hipótese: o método presente na obra A

natureza do espaço (1996) possibilitou a internalização das categorias de análise presentes

nas duas obras anteriores, em padrões relacionais triádicos que permitiram Milton Santos

supor o espaço sob um sistema geral de regras no intuito de prever o curso futuro de sua

conduta.

Faremos uma análise semiótica do pensamento de Milton Santos acompanhando a

escritura das três obras, à luz da semiótica de Peirce, utilizando como método a aplicação do

protótipo da semiose com base em Parmentier (1985) e, de forma complementar, a

classificação dos signos. Para tratar dos padrões triádicos que estabelecem entre si as

categorias do espaço em Milton Santos, utilizaremos as mônadas, díadas e tríadas, elementos

lógicos, com base na lógica das relações em Peirce.

Abordaremos a trajetória intelectual presente nas três obras selecionadas de

Milton Santos pelos parâmetros da semiótica, no contexto das ciências normativas.

Consideramos que o raciocínio deliberado de Milton Santos, na busca pela operacionalidade e

coerência do método ou das categorias de análise acerca do espaço, é uma semiose cuja

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continuidade e expansão são marcadas pelos propósitos de seu pensamento. Propósitos

guiados pela busca daquilo que é admirável em si mesmo, conforme a ética peirciana.

A busca do ideal em Milton Santos pode ser representada pelo seu desejo em

ofertar à geografia uma construção teórica que incluísse a possibilidade real de um espaço

capaz de restituir aos homens a sua própria humanidade, um espaço solidariamente habitado.

Partimos do pressuposto de que para Milton Santos cabia à geografia, assim como

às demais ciências sociais, a prerrogativa da construção de um conhecimento científico que

alcançasse o mundo da possibilidade para a construção voluntária da história:

New 'scientific' knowledge points to the realm of the possible, whereas its concrete embodiment depends more on economic, cultural and political circumstances. As the future is not unique but has to be chosen, the social sciences should take the lead in the voluntary construction of history, by expanding their philosophical frame of reference to include the postulate that the teleological concerns are not an obstacle to the faithful transcription of phenomena. (SANTOS, 1984, p. 663). 67

Pelos parâmetros das ciências normativas de Peirce, abordamos a trajetória

intelectual de Milton Santos para as três obras selecionadas, a partir da compreensão de que

seus interesses temáticos, as nuances diferenciais nas conceituações de categorias próprias à

geografia, as propostas de conceituações sobre o espaço geográfico e o aperfeiçoamento do

método, todos foram esforços de raciocínio deliberados de um pensador que se apropriou da

geografia como uma ciência da história do presente, ponto de partida para a análise científica

necessária para a prospecção do espaço no futuro.

Esse posicionamento, não implica em desconsiderar as mudanças conceituais e as

preferências temáticas de Milton Santos, mas pretende conferir uma análise semiótica que

trace a continuidade e a coerência de seu raciocínio, tendo por linha os fins e os ideais do seu

pensamento.

“Geography in the late twentieth century: new roles for a threatened discipline” foi publicado no International Social 6

Science Journal, vol. XXXVI, no 4, Unesco, 1984, p. 657-672. Artigo publicado também em português na Revista Geonordeste (1984) e na na Revista Brasileira de Tecnologia, vol. 15, no 5, setembro/outubro, CNPq, Brasília, 1984, p. 13-21com o título "A geografia e a nova dimensão do planeta”. O mesmo texto corresponde ainda aos capítulos 1 e 2 do livro Metamorfoses do espaço habitado (1988).Os novos conhecimentos científicos apontam para o reino do possível, enquanto sua realização concreta pertence mais ao 7

domínio das condições econômicas, culturais e políticas. Como o Futuro não é único, mas deve ser escolhido, são as ciências sociais que se tornam as ciências de base para uma construção voluntária da história, a partir da expansão da sua base filosó-fica a fim de incluir o postulado de que as preocupações teleológicas não são obstáculo para a transcrição fiel dos fenômenos. (tradução nossa).

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Em A natureza do espaço, ao tratar do espaço como um conjunto indissociável do

sistema de objetos e o sistema de ação, Milton Santos cita o geógrafo do início do século Jean

Brunhes que, ao definir a geografia, o fez a partir de aproximações sucessivas:

O que há de original nessa démarche é que o leitor acompanha o processo de pensamento do autor, as etapas consecutivas do aperfeiçoamento de sua construção intelectual e o resultado final, que é a sua definição de geografia. Tentemos, aqui, o mesmo exercício, não mais em relação à geografia, mas quanto ao espaço geográfico. (SANTOS, 1996, p. 61).

Nosso propósito é traçar um exercício de aproximação em torno das três obras que

marcam as análises críticas que Milton Santos empreendeu à geografia na expansão de seu

pensamento como intelectual: O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo (1978); Por uma

geografia nova (1978) e A natureza do espaço (1996). Essas obras foram agrupadas em três

temas: i) a geografia urbana dos países subdesenvolvidos; ii) a renovação da geografia, o

espaço humano e iii) a força do lugar e a escolha do futuro.

Espelhando os objetivos, a tese será dividida em quatro partes, assim divididas:

A primeira parte Semiose tem o objetivo de apresentar o funcionamento triádico

da semiose genuína como protótipo da lei da mente, a partir das posições lógico-formais do

signo, bem como sua relação com as categorias universais de Peirce, categorias tomadas

como de relação e de modalidade, sinalizando as correspondências das categorias para a

classificação dos signos e as operações de generalização e hipostatização internalizadas no

modo de ser da semiose genuína, como apresentação do método da tese.

Para tal, o primeiro capítulo Semiótica na estrutura filosófica de Peirce situa a

semiótica no edifício filosófico de Peirce explicando: i) a precedência da fenomenologia; ii) a

relação da semiótica com a metafísica e a iii) apresentação da matemática, disciplina da qual

os princípios da lógica ou semiótica são extraídos, incluída a apresentação das operações de

generalização, hipostatização realística das relações e lógica das relações.

O segundo capítulo Semiose como processo lógico da lei da mente apresenta a

equivalência entre semiose e mente; conceitua o signo e o modo de funcionamento de uma

semiose genuína, define o símbolo e sua correspondência na categoria da terceiridade, a partir

da operação de prescindibilidade das categorias universais peircianas.

O terceiro capítulo da primeira parte As ciências normativas de Peirce apresenta

a articulação entre as ciências normativas e o pragmaticismo, com base nos estudos de

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Santaella (2000a). É o capítulo que trata dos fundamentos das análises empreendidas nos

capítulos denominados Contextualização a partir das ciências normativas, que iniciam a

segunda e a terceira parte.

A segunda parte denominada A geografia urbana nos países subdesenvolvidos

terá como objetivo analisar semioticamente o período marcado pela publicação da obra O

trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo. Inicialmente são identificados os fins e ideal do

pensamento de Milton Santos à época, tarefa realizada no primeiro capítulo denominado

Contextualização a partir das ciências normativas. No capítulo Categorias de análise,

temporalidade e método, definiremos o tratamento epistemológico dado por Milton Santos

ao tema da geografia urbana nos países subdesenvolvidos, com base na análise da obra O

trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo. Por fim, aplicaremos a semiose para o pensamento

de Milton Santos no terceiro capítulo intitulado Semiose da geografia urbana dos países

subdesenvolvidos.

Na terceira parte denominada Renovação da geografia, o espaço humano,

seguiremos os mesmos objetivos da segunda parte, adequados ao período tratado. O objetivo

será analisar o período marcado pela publicação da obra Por uma geografia nova,

identificando os fins e o ideal do pensamento de Milton Santos à época, tarefa a ser realizada

no primeiro capítulo denominado Contextualização a partir das ciências normativas,

identificando as categorias espaciais, a temporalidade e o método no capítulo Categorias de

análise, temporalidade e método, com base na análise da obra Por uma geografia nova. Por

fim, aplicaremos a semiose para o pensamento de Milton Santos no terceiro capítulo

intitulado Semiose do espaço humano como formação social.

A quarta parte denominada A força do lugar e a escolha do futuro tem por

primeiro capítulo Contextualização a partir das ciências normativas para a análise do

período marcado pela publicação da obra A natureza do espaço, identificando os fins e o ideal

do pensamento de Milton Santos à época, seguido do segundo capítulo denominado Semiose

da natureza do espaço em que apresentamos a semiose da natureza do espaço e os principais

resultados da pesquisa precedente, base para o desenvolvimento do capítulo seguinte. No

segundo capítulo, Internalização das categorias de Milton Santos na semiose do espaço,

avaliaremos o pensamento de Milton Santos, a partir das categorias universais de Peirce e

cotejaremos as categorias espaciais entre as três obras, a partir da semiótica peirciana, para a

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verificação da hipótese apresentada. Do segundo capítulo, podemos apenas

afirmar que sua realização dependerá do andamento da análise semiótica até o ponto da

investigação, uma vez que está diretamente relacionada com a confirmação ou refutação da

tese, dependente da observação criteriosa dos resultados a serem alcançados. Assumimos que

nossa própria semiose, ao se desdobrar no fluxo do tempo, se configurará como fator

corretivo do nosso pensamento.

I

A SEMIOSE

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Capítulo 1. Semiótica na estrutura filosófica de Peirce

O edifício filosófico peirciano tem por base uma matriz composta por categorias

elementares e universais. As categorias foram extraídas da fenomenologia, a partir do

inventário das aparências do phaneron ou fenômeno como aquilo que se apresenta tal como 8

se mostra a uma consciência, tendo ou não correspondência com o real, na busca por

qualidades notáveis e posterior generalização de suas características:

What I term phaneroscopy is that study which, supported by the direct observation of phanerons and generalizing its observations, signalizes several very broad classes of phanerons; describes the features of each; shows that although they are so inextricably mixed together that no one can be isolated, yet it is manifest that their characters are quite disparate; then proves, beyond question, that a certain very short list comprises all of these broadest categories of phanerons there are; and finally proceeds to the laborious and difficult task of enumerating the principal subdivisions of those categories. (CP 1.286). 9

Assim como Kant, Peirce sustenta a validade objetiva do conhecimento. Contudo,

em Kant, as categorias são dadas a priori, em Peirce as categorias são fundadas a partir da

experiência:

Kant oferece-nos a visão errônea de que as idéias se apresentam separadamente e são, posteriormente, juntadas pela mente. Esta é a doutrina segundo a qual uma síntese mental precede toda a análise. O que na verdade acontece é que se apresenta algo que, em si mesmo, não tem partes mas que, não obstante, é analisado pela mente, isto é, o fato de ter ele partes consiste no fato de a mente, posteriormente, reconhecer essas partes. Aquelas idéias parciais não estão, realmente, na primeira idéia, em si mesma, apesar de serem dela extraídas. [...] Quando, tendo-as assim separado, pensamos sobre elas, somos conduzidos, a despeito de nós mesmos, de um pensamento para outro, e nisto reside a primeira síntese real. Uma síntese anterior a isso é uma ficção. (PEIRCE, 2012, p. 17).

Peirce chegou à generalização das categorias depois de muitos anos de trabalho,

cuja início em 1867, no texto Sobre uma nova lista de categorias (CP 1.545-59). As

categorias são ditas universais, uma vez que valem para toda experiência, e são elementares

porque reúnem a totalidade do mundo em sua diversidade, em formas lógicas e abstratas:

Phaneroscopy is the description of the phaneron; and by the phaneron mean the collective total of all that is in any way or 8

in any sense present to the mind, quite regardless of whether it corresponds to any real thing or not. CP 1.284 (Faneroscopia é a descrição do fenômeno; e fenômeno significa o coletivo total de tudo o que de alguma maneira ou sentido está presente à mente, tendo ou não correspondência com o real. (tradução nossa) O que eu denomino de faneroscopia, é o estudo que, baseado na observação direta dos fenômenos e generalizando suas 9

observações, sinaliza várias classes muito amplas de fenômenos, descreve as características de cada; mostra que, embora estejam tão inextricavelmente misturados que nenhum pode ser isolado, ainda assim é evidente que seus caracteres são bas-tante díspares; prova então, inquestionavelmente, que uma determinada lista muito curta compreende todas essas categorias mais amplas de fenômenos; e finalmente prossegue para a laboriosa e difícil tarefa de enumerar as principais subdivisões dessas categorias. (tradução nossa)

�21

Analiso a experiência e nela encontro três elementos. Denomino-os Categorias. Pudesse eu transmiti-las ao leitor do modo tão vívido, claro e racional como se me apresentam! (PEIRCE, 2002, p. 22-23).

A primeiridade é o elemento monádico da experiência, uma qualidade de

sentimento que existe em sua imediaticidade, nela mesma e sem referência a nenhum outro.

A secundidade é o elemento diádico da experiência, cuja manifestação tem caráter singular e

acidental e seu registro se faz por meio da resistência entre existentes, no aqui e agora. A

terceiridade é o elemento triádico da experiência que faz a mediação entre um primeiro e um

segundo e exige o passar do tempo se relacionando ao sentido de aprendizagem ou aquisição

de hábitos . 10

A base triádica e os modos de combinação das categorias universais são

fundamentos lógicos que espelham tríades próprias a cada ramo ou doutrina no edifício

filosófico de Peirce. Segundo Houser, “se na fundação de um sistema arquitetônico de

pensamento se encontra uma tríade, é de se esperar que ela encarne nos estágios

subsequentes”.

But firstness, secondness, and thirdness make up only one of the many triads of conceptions that run through Peirce's writings. Frequently cited mathematical triads are one, two three; first, second, third; and, in the logic (mathematics) of relations, monad, dyad, triad. Besides firstness, secondness, and thirdness we find in phenomenology feeling, reaction, thought. Among the triadic classifications in normative logic (semeiotic) we find sign, object, interpretant; tone, token, type; icon, index, symbol; term, proposition, argument; and abduction, induction, deduction. And in metaphysics we find possibility, actuality, destiny; chance, law, habit, and mind, matter, evolution . (HOUSER, 1989, p.5). 11

Terceiridade, no sentido da categoria, é o mesmo que mediação, cf. CP 7.52710

Mas primeiridade, segundidade e terceiridade compõem apenas uma das muitas tríades de concepções que correm através 11

dos escritos de Peirce. As tríades matemáticas frequentemente citadas são uma, duas três; primeiro segundo terceiro; e, na lógica (matemática) das relações, mônada, díade, tríade. Além da primeiridade, secundidade e terceiridade, encontramos na fenomenologia o sentimento, a reação. Entre as classificações triádicas na lógica normativa (semiótica) encontramos signo, objeto, interpretante; tone, token, type; ícone, índice, símbolo; termo, proposição, argumento; e abdução, indução, dedução. E na metafísica encontramos a possibilidade, a realidade, o destino; acaso, lei, hábito e mente, matéria, evolução.

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Como ciência que objetiva isolar o modo geral dos aspectos particulares que

incidem em toda a experiência , a fenomenologia fica restrita ao mundo como aparência. O 12

questionamento de como deve ser o mundo para que apareça desse modo cabe à metafísica,

ciência que tem por responsabilidade encontrar as classes gerais do mundo objetivo, isolando-

as das incidências singulares e contingenciais:

Como ciência das aparências, a Fenomenologia nada afirma sobre o que é nem sobre o que deve ser, prescindindo, por isso, de uma Lógica que valide seus argumentos; ela apenas constata e classifica aquilo que está de modo ubíquo diante de toda consciência. (IBRI, 1992, p.42).

A lógica ou semiótica como ciência formal dos tipos de raciocínios, extrai seus

fundamentos da fenomenologia, partindo dos fenômenos que ficam à disposição da

observação deliberada. Será da lógica a responsabilidade em delimitar quais as formas

corretas de raciocínio sob as quais o pensamento auto-controlado acessará a verdade, esta

entendida enquanto um princípio normativo.

A semiótica ao investigar as formas corretas ou ideais de raciocínio fornece os

fundamentos para a metafísica, ciência que investiga os modos de ser do mundo objetivo. Por

serem as categorias universais extraídas da experiência, ou seja, não serem dadas a priori,

Peirce foi capaz de desenvolver um conceito de pensamento como uma noção geral no sentido

metafísico:

Logic is a branch of philosophy. That is to say it is an experiential, or positive science, but a science which rests on no special observations, made by special observational means, but on phenomena which lie open to the observation of every man, every day and hour. There are two main branches of philosophy, Logic, or the philosophy of thought, and Metaphysics, or the philosophy of being.‑ (CP 7.526). 13

Following Peirce's tolerant approach, I conceive of experience in a broad sense as the mental effect of living (4.172) “The 12

sum of ideas which have been irresistibly borne in upon us, overwhelming all free-play of thought, by the tenor of our lives”(7.437). As Peirce once wrote, Experience is the course of life and The World is that which experience inculcates (1.426). Even though Peirce conceived of experience as a cognitive or mental product, it is important to understand that he, along with the other classical pragmatists, understood experience to always involve an interaction between a conscious being and the world–between an experiencer and the experienced. (HOUSER, 1989, p.2) Seguindo a abordagem tolerante de Peirce, eu concebo a experiência num sentido amplo como o efeito mental da vida (4.172). “A soma de idéias que foram irresistivelmente trazidas sobre nós, esmagando todo o jogo livre do pensamento, pelo teor de nossas vidas. ”(CP 7.437). Como Peirce escreveu certa vez, Experiência é o curso da vida e o Mundo é aquilo que a experiência incute (CP 1.426). Embora Peirce tenha concebido a experiência como um produto cognitivo ou mental, é importante entender que ele, junto com os outros pragmatistas clássicos, entendeu que a experiência sempre envolve uma interação entre um ser consciente e o mundo - entre um experimentador e o experienciado. (tradução nossa).

A lógica é um ramo da filosofia. Isso quer dizer que é uma ciência experiencial, ou positiva, mas uma ciência que não se 13

baseia em observações especiais, feitas por meios especiais de observação, mas em fenômenos que se abrem à observação de todo homem, todo dia e hora. Existem dois ramos principais da filosofia, a lógica, ou a filosofia do pensamento, e a metafísica, ou a filosofia do ser. (tradução nossa).

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Neste contexto, afastam-se as noções etnocêntrica e nominalista do pensamento,

uma vez que as leis da natureza não são extraídas ou deduzidas da razão humana; ao

contrário, a habilidade de raciocinar do humano tem seu modo de funcionamento análogo às

formas de mente encontradas no mundo orgânico e inorgânico, todos sujeitos à lei da mente

como um modo geral de ser do universo que na terminologia semiótica é equivalente à

semiose. Nesse sentido, cabe às ciências normativas investigar a concepção ideal de mente

“derivada da análise da tendência da razão humana na busca pela verdade como um ideal

normativo”:

His method was instead to develop an ideal conception of mind, derived from an analysis of what is implicit in the tendency toward truth in human life. Since truth is the controlling ideal [160] of all science (possibly apart from pure math), as well as of many pursuits not ordinarily regarded as scientific, its analysis is not the job of any special science but rather of philosophy. (RANSDELL, 1997, p. 1). 14

A matemática, que figura no topo da estrutura filosófica, é definida em Peirce

como o estudo do que é verdadeiro em um estado hipotético de coisas . Como independe de 15

todas as outras ciências, ela tem correspondência na categoria da primeiridade.

Tomemos um exemplo dado por Peirce (NEM: IV, 297) para ilustrar o porquê da

matemática figurar no topo da filosofia peirciana, prescindindo de todas as outras ciências.

Um profissional de determinada área, como um engenheiro ou um corretor de

seguros, se confronta com uma situação não usual que envolva relações complexas entre fatos

pertinentes à sua área de atuação, à primeira vista insolúveis e demanda a um matemático que

avalie a natureza dessas relações que se apresentam.

A primeira tarefa do matemático é substituir o intricado conjunto de fatos por uma

situação hipotética que contenha um sistema comparativamente ordenado de relações que

possa aderir às premissas dadas, momento em que o matemático estabelece suas hipóteses.

Feito isso, ele prossegue para mostrar que as relações explicitamente confirmadas na hipótese

envolvem, como parte de qualquer situação hipotética em que são incorporadas, outras

relações não explicitamente aparentes no início da análise.

Seu método era, ao contrário, desenvolver uma concepção ideal da mente, derivada de uma análise do que está implícito na 14

tendência à verdade na vida humana. Como a verdade é o ideal controlador [160] de toda a ciência (possivelmente separada da matemática pura), bem como de muitas atividades que não são normalmente consideradas científicas, sua análise não é tarefa de nenhuma ciência especial, mas sim de filosofia. (tradução nossa).

Mathematics is the study of what is true of hypothetical states of things. CP 4.233 (matemática é o estudo do que ee 15verdade em um estado hipotético de coisas. (tradução nossa).

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O matemático não necessita e, na verdade, descarta as circunstâncias factuais que

envolvem o problema, ele apenas lida com a essência das hipóteses e não se detém em nada

além dos diagramas que ele mesmo constrói, pela habilidade de generalizar a factualidade,

abstraindo-a em estruturas relacionais ou formas de relação. O interesse do matemático se

direciona para as formas de relações hipoteticamente estabelecidas, a partir das quais ele

derivará suas conclusões. Nisso reside a justificativa para a matemática figurar no topo da

estrutura filosófica de Peirce, tendo correspondência na categoria da primeiridade.

A lógica extrai seus fundamentos da fenomenologia, mas seus princípios foram

deduzidos da matemática, a partir da generalização, da hipostatização realística das relações e

da lógica das relações que serão apresentadas na sequência.

Além da habilidade de generalização que traz para um grau máximo de abstração

as formas de relação livres de quaisquer questões circunstanciais, é da matemática também

habilidade denominada de hipostatização realística das relações, no momento em que

abstraídas as relações, o matemático intui outras relações não explicitamente aparentes no

início da análise, introduzindo-as para a relação diagramática ou icônica. Segundo Peirce:

As realidades compelem-nos a colocar algumas coisas num relacionamento estrito, e outras num relacionamento não tão estrito, de um modo altamente complicado e ininteligível para o próprio sentido: mas é a habilidade da mente que apanha todas essas sugestões de sentido, acrescenta muita coisa a elas, torna-as precisas e as exibe numa forma inteligível nas intuições do espaço e do tempo. Intuição é a consideração do abstrato numa forma concreta, através da hipostatização realística das relações; esse é o único método de pensamento válido. (…) Muito superficial é a noção, que predomina, segundo a qual isto é algo a ser evitado. Seria possível dizer, da mesma forma, que o raciocínio deve ser evitado porque tem levado a elaboração de tantos erros; isso estaria na mesma linha filistina de pensamento, e tão de acordo com o espírito do nominalismo que me surpreendo por alguém não levá-lo adiante. O preceito verdadeiro não é abster-se da hipostatização, mas sim realizá-la inteligentemente. (PEIRCE, 2012, p. 17).

Ainda no universo da matemática que provê à semiótica seus princípios,

sinalizamos a lógica das relações que estatui que existem apenas três tipos fundamentais de

relação, com base em três elementos: mônadas, díadas e tríadas. Ao se combinar tríadas é

possível obter relações de quaisquer ordens maiores do que uma tríada, denominadas

políadas. Em operação reversa, é possível reduzir políadas em tríadas, contudo, não é possível

reduzir a tríade em díadas, nem díadas em mônadas, operação conhecida como tese da

irredutibilidade de Peirce. Assim, relações monádicas, relações diádicas e relações triádicas

são categorias fundamentais de relação:

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Um estudo completo da lógica dos relativos confirma as conclusões que havia obtido antes. Mostra que os termos lógicos são mônadas, díadas ou políadas, e estas

últimas não introduzem quaisquer elementos radicalmente diferentes daqueles que são encontrados nas tríadas. Portanto, divido todos objetos dentro de mônadas, díadas ou tríadas. (CP 1.293)

Figura 1 - Mônada, díada e tríada

Fonte: Elaboração nossa, com base em Peirce.

Na figura 1, são apresentadas a mônada por um traço, a díada por dois traços

postos em relação e a tríada como uma bifurcação que serve de modelo para as combinações

triádicas. A vantagem da aplicabilidade desse modo de leitura é expor graficamente a relação

estabelecida entre quaisquer termos lógicos, o que faremos para as relações que Milton Santos

estabelece entre as categorias do espaço nas obras analisadas na pesquisa.

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Capítulo 2. Semiose como processo lógico da lei da mente

A semiótica ocupa o coração da filosofia peirciana, porque é dela a prerrogativa

de investigação do signo e da semiose. Essa centralidade se localiza na correspondência que o

signo mantém com o conceito de pensamento e que a semiose mantém, como expansão ou

ação do signo, com o significado de mente em Peirce.

Alguns apontamentos prévios que sinalizam as relações que envolvem a semiótica

ou lógica e as doutrinas de Peirce são necessários, considerando que o método da tese tem

sustentação na semiótica peirciana. São apontamentos preliminares que não têm a intenção de

aprofundamento do tema e se prestam apenas para apresentar a semiose como um processo

lógico e abstrato que espelha o conceito de mente em Peirce.

Tais equivalências entre mente/semiose e pensamento/signo permitem pontos de

intersecção entre a semiótica e os outros ramos e doutrinas peircianas que são fundamentais

para qualquer investigação científica baseada em análises semióticas. Relações que não

podem passar desapercebidas pelo semioticista para que sua análise não fique empobrecida e

restrita à aplicação da classificação dos signos.

Segundo Ransdell (1997), Peirce desenvolveu um modelo geral de concepção de

mente que pode ser traduzido para o contexto da terminologia semiótica que se pretende

neutra para o tema que se aplica:

In other words, the mentalistic terminology is dispensable, in any case, and it is in fact dispensed with when the term 'mind' is replaced by the term 'semiosis', the term 'thought' by such terms as 'sign', 'interpretant', 'symbol', and so on. Nevertheless, I believe that anyone who wishes to explore the potentialities in Peirce's semiotic should understand that it is originally conceived by Peirce as an explication of the concept of mind . (RANSDELL, 1997, p.2). 16

O conceito de mente tem um significado muito próprio na filosofia de Peirce, é

uma lei que explica o modo de ser do universo como um todo.

The universe is to become a more and more perfect mirror of that system of ideas which would result from the indefinitely continued action of objective logic. The universe is, as it were, an awaking Mind. Now just as we say this man has such and

Em outras palavras, a terminologia mentalista é dispensável, em qualquer caso, e é de fato dispensada quando o termo 16

'mente' é substituído pelo termo 'semiose', o termo 'pensamento' por termos tais como 'signo', ' interpretante ',' símbolo 'e assim por diante. Não obstante, acredito que qualquer um que deseje explorar as potencialidades na semiótica de Peirce deve entender que ela é originalmente concebida por Peirce como uma explicação do conceito de mente. (tradução nossa).

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such a character, not because of any ideas he has this minute present, but because under suitable circumstances such ideas are bound to be evolved by him . (NEM: 17

IV, 26).

A razão humana e as leis que regem os mundos orgânico e inorgânico são

análogas à lei da mente como modo de ser de um geral, em oposição ao coletivo de

incidências contingenciais e individuais. Segundo Santaella, “o universo da mente coincide

com o universo da matéria, não no sentido da imagem especular ou paralelismo cérebro-

mente, mas no sentido da matéria existir como uma forma mental de tipo especial”. (1992, p.

46).

Por outro ângulo, a lei da mente é um geral que tende para a expansão e para o

crescimento. Pressupõe a continuidade dada pela permanência que é própria à noção de

passagem do tempo, segundo Peirce “Um dos aspectos mais marcantes da lei da mente é o

fato dela fazer do tempo uma direção definida de fluxo do passado para o futuro” CP 6.127.

Contudo, para que cresça, a lei da mente também supõem o movimento e heterogeneidade, no

sentido de criatividade. São dimensões cuja investigação cabe à doutrina do sinequismo, que

postula a continuidade como lei da mente, “(...) uma idéia somente pode ser afetada por outra

havendo uma contínua conexão entre elas.” CP 6.158 e ao tiquismo, que complementa o

sinequismo, ao fazer da possibilidade ou acaso algo da ordem do real.

Outro aspecto pouco explorado pelos semioticistas e filósofos de Peirce, à

exceção de estudos como os de Santaella, é a relação entre as ciências normativas e a doutrina

do pragmaticismo, que também se ancora nos conceitos peircianos da lei da mente e do

pensamento. A lei da mente, no fluxo de sua continuidade e movimento criativo, segue em

direção à verdade como um princípio regulador normativo, um ideal situado em um futuro

que tem como resultado prático, o aumento da razoabilidade concreta do mundo. Ora, cabe à

doutrina do pragmaticismo a investigação dos resultados coletivos dos fins do pensamento e

cabe às ciências normativas, incluída a semiótica, a investigação do ideal, dos fins e das

formas corretas de pensamento. Trataremos dessa relação no capítulo 4, na delimitação do

início da semiose a ser analisada na presente investigação.

O universo é tornar-se um espelho cada vez mais perfeito desse sistema de idéias que resultaria da ação indefinidamente 17

continuada da lógica objetiva. O universo é, por assim dizer, uma Mente que está despertando. Agora, assim como dizemos, este homem tem tal e tal caráter, não por causa de qualquer idéia que tenha neste minuto presente, mas porque sob circuns-tâncias adequadas tais idéias estão fadadas a ser desenvolvidas por ele (…) (tradução nossa).

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Por fim, todos esses pontos iniciais de intersecção têm por base a lógica triádica

estabelecida pelas categorias fenomenológicas de Peirce, primeiridade, secundidade e

terceiridade, que aparecem nas diferentes doutrinas com denominações próprias, como por

exemplo, na cosmologia (acaso, lei e mudança de hábito), na matemática (primeiro, segundo e

terceiro; um, dois e três); na lógica das relações (mônada, díada e tríada), nas ciências

normativas (lógica, ética e estética) e assim por diante. Contudo, é da semiótica a relação mais

íntima com a terceira categoria, legitimada pela assertiva de Peirce de que o signo é a ideia

filosófica mais geral e mais simples da terceiridade.

Essas dimensões que envolvem o conceito de pensamento e de mente abrem

possibilidades de análises semióticas cujo ponto de partida está nas estruturas lógico-formais

do signo e da semiose, com extensões ilimitadas de aplicação:

And of course Peirce draws upon his vast knowledge and magisterial grasp of the Western philosophical tradition, as well as his extensive experience as a scientist, to develop a theoretical explication of this controlling ideal. The basic model of truth-seeking which Peirce develops is then to have application to whatever subject-matter it is found to have application, and Peirce's belief was that if one understood it well enough to know how to apply it one would find it to have extensive application indeed . (RANSDELL, 1997, p.1) 18

Tudo que tem o poder de funcionar como uma forma expressiva para dizer de algo

que não é ele mesmo – e, muito importante, só é capaz disso apenas porque um terceiro assim

o reconhece, gerando novas interpretações – é signo para Peirce. O tudo significa qualquer

coisa (possível, existente ou geral) que tenha potencial para ocupar lugar em um processo

lógico que estabelece uma relação triádica.

Em uma definição mais detalhada, o signo é qualquer coisa de qualquer espécie (uma palavra, um livro, uma biblioteca, um grito, uma pintura, um museu, uma pessoa, uma mancha de tinta, um vídeo, etc.) que representa uma outra coisa, chamada de objeto do signo, e que produz um efeito interpretativo em uma mente real ou potencial, efeito esse que é chamado de interpretante do signo. (SANTAELLA, 2012, p. 8).

O signo em Peirce é composto de três posições lógico-formais: representamen

(R), objeto (O) e interpretante (I):

E, claro, Peirce baseia-se em seu vasto conhecimento e compreensão magistral da tradição filosófica ocidental, bem como 18

em sua ampla experiência como cientista, para desenvolver uma explicação teórica desse ideal controlador. O modelo básico de busca da verdade que Peirce desenvolve é, então, ter aplicação em qualquer assunto que tenha aplicação, e a crença de Peirce era que, se alguém o entendesse bem o suficiente para saber como aplicá-lo, saberá, de fato que ele tem uma ampla aplicação. (tradução nossa).

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A Sign, or Representamen, is a First which stands in such a genuine triadic relation to a Second, called its Object, as to be capable of determining a Third, called its Interpretant, to assume the same triadic relation to its object in which it stands itself to the same Object . (CP 2.274). 19

A representação significa estar em um modo lógico de relação, nessa medida, as

posições lógico-formais do signo, representamen, objeto e interpretante não podem ser

tomadas como entidades semiótica distintas; ao contrário, são dimensões de um mesmo

funcionamento da semiose, cuja expansão ocorre a partir de sua alternância, à medida que um

pensamento se desdobra em outro, em uma sequência de signos.

Figura 2 - Semiose Genuína: O1 - objeto dinâmico; R1 - representamen; O2 - objeto

imediato; I1 - interpretante; R2 - representam 2; I2 - interpretante 2

Fonte: Elaboração nossa, com base em Parmentier (1985).

A figura 2 representa a estrutura e o movimento da semiose, a partir das posições

lógico-formais nomeadas na legenda que a corresponde. Na lógica formal ou semiótica, a

conceituação da realidade corresponde à compreensão total de um objeto: nomeado de objeto

Um Signo, ou Representamen, é um Primeiro que está em tal relação triádica genuína com um Segundo, chamado seu 19

Objeto, como sendo capaz de determinar um Terceiro, chamado seu Interpretativo, para assumir a mesma relação triádica com seu objeto no qual ele se posiciona para o mesmo objeto. (tradução nossa).

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dinâmico (objeto 1 da figura 2) que encerra em si a determinação de ser interpretado. Nesse

sentido, ele se força à representação:

for the real is that which insists upon forcing its way to recognition as something other than the mind's creation. The real is active; we acknowledge it, in calling it the actual. (This word is due to Aristotle's use of {energeia}, action, to mean existence, as opposed to a mere germinal state.) (CP 1.325). 20

Em Peirce, signo e mediação são sinônimos, porque todo conhecimento é mediado, não sendo

possível acessar diretamente a realidade. Assim, o que a forma expressiva do signo

(representamen) traz para a semiose é determinado aspecto da realidade (objeto 2 da figura 2),

pelo efeito de interpretação que ele está apto a produzir (interpretante). São interpretações em

cadeia que retornam em direção ao objeto. Por isso, Peirce denominou a segunda posição

lógica do signo de objeto imediato, para distinguí-lo do objeto dinâmico.

Namely, we have to distinguish the Immediate Object, which is the Object as the Sign itself represents it, and whose Being is thus dependent upon the Representation of it in the Sign, from the Dynamical Object, which is the Reality which by some means contrives to determine the Sign to its Representation. (CP 4.536). 21

Segundo Parmentier (1985), o conhecimento ocorre segundo um sistema regido

por dois vetores: o de determinação (sinalizado pela seta que com orientação da esquerda para

a direita na figura 2), que parte do objeto, e um vetor de representação (sinalizado pela seta

que com orientação da direita para a esquerda na figura 2), que reage a essa determinação a

partir de regressões de representações direcionadas a interpretar o que se mostra ao

conhecimento.

As categorias estão presentes em todos os fenômenos, uma delas podendo estar de

forma mais proeminente do que a outra. Podemos separá-las destacando uma categoria,

enquanto se desconsidera outra, por prescindibilidade. 22

Mas a prescindibilidade não é um processo recíproco. Em termos categóricos, é

possível supor um primeiro sem um segundo, mas não um segundo sem um primeiro, assim

[...] porque o real é aquilo que insiste em forçar seu caminho para o reconhecimento como algo diferente da criação da 20

mente. […] O real está ativo; nós reconhecemos isso, chamando-o de real. (Esta palavra é devida ao uso de {energeia} de Aristóteles, ação, para significar existência, em oposição a um mero estado germinal.) (tradução nossa).

Nomeadamente, temos que distinguir o Objeto Imediato, que é o Objeto como o próprio Signo representa, e cujo Ser é, 21

portanto, dependente da Representação do mesmo no Signo, do Objeto Dinâmico, que é a Realidade que de alguma forma consegue determinar o Signo para a sua Representação.

The terms "precision"†P1 and "abstraction," which were formerly applied to every kind of separation, are now limited, not 22merely to mental separation, but to that which arises from attention to one element and neglect of the other. CP 1.549 Os termos "precisão" † P1 e "abstração", que antes eram aplicados a todo tipo de separação, são agora limitados não apenas à separação mental, mas àquilo que surge da atenção a um elemento e à negligência do outro. (tradução nossa).

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como é possível supor um segundo sem um terceiro, mas não um terceiro sem um segundo e

sem um primeiro. A primeiridade é a única categoria que pode prescindir de todas as outras; a

secundidade pode prescindir da terceiridade, mas não da primeiridade; e finalmente, a

terceiridade não pode prescindir nem da secundidade nem da primeiridade.

This distinction arises from the circumstance that where you have a triplet you have three pairs; and where you have a pair, you have two units. Thus, Secondness is an essential part of Thirdness though not of Firstness, and Firstness is an essential element of both Secondness and Thirdness. Hence there is such a thing as the Firstness of Secondness and such a thing as the Firstness of Thirdness; and there is such a thing as the Secondness of Thirdness. But there is no Secondness of pure Firstness and no Thirdness of pure Firstness or Secondness. (CP 1.530). 23

As combinações entre as categorias expressam desde formas genuínas a formas

degeneradas de signo, que nos capacitam a uma aproximação qualificada da teoria geral dos

signos e suas classificações. Trabalharemos a relação das categorias com a tricomia mais

trabalhada por Peirce: i) a relação do signo consigo mesmo, quando for uma qualidade, um

existente concreto ou uma lei geral; ii) conforme a relação do signo em si (representamen)

com o objeto, se tem caráter em si mesmo, se com ele mantém uma relação existencial ou se

mantém uma relação de associação de ideias com um interpretante; e iii) conforme o

interpretante representá-lo como possibilidade, fato ou razão:

In regard to the Interpretant we have equally to distinguish, in the first place, the Immediate Interpretant, which is the Interpretant as it is revealed in the right understanding of the Sign itself, and is ordinarily called the meaning of the sign; while in the second place, we have to take note of the Dynamical Interpretant which is the actual effect which the Sign, as a Sign, really determines. Finally there is what I provisionally term the Final Interpretant, which refers to the manner in which the Sign tends to represent itself to be related to its Object. (...) Of the ten divisions of signs which have seemed to me to call for my special study, six turn on the characters of an Interpretant and three on the characters of the Object.[…] Thus the division into Icons, Indices, and Symbols depends upon the different possible relations of a Sign to its Dynamical Object. […] Only one division is concerned with the nature of the Sign itself, and this I now proceed to state. (CP 4.536). 24

Essa distinção surge da circunstância de que, quando você tem um trio, você tem três pares; e onde você tem um par, você 23

tem duas unidades. Assim, a segundidade é uma parte essencial da terceiridade, embora não da primeiridade, e a primeiridade é um elemento essencial da segundidade e da terceiridade. Portanto, existe algo como a primeiridade da segundidade e uma coisa tal como a primeiridade da terceiridade; e existe algo como a segundidade da terceiridade. Mas não há segundidade de pura pimeiridade nem terceiridade de pura primeiridade ou segundidade. (tradução nossa).

No que diz respeito ao Interpretante, temos igualmente de distinguir, em primeiro lugar, o Interpretante Imediato, que é o 24

Interpretante, como é revelado no entendimento correto do próprio Signo, e é ordinariamente chamado de significado do signo; enquanto em segundo lugar, temos que tomar nota do Interpretativo Dinâmico, que é o efeito real que o Signo, como Signo, realmente determina. Finalmente, há o que provisoriamente denomino o Interpretante Final, que se refere à maneira pela qual o Signo tende a se representar como estando relacionado ao seu Objeto. (...) Das dez divisões de signos que me pareciam exigir meu estudo especial, seis voltam-se para os caracteres de um Interpretante e três para os caracteres do Obje-to. [...] Assim, a divisão em Ícones, Índices e Símbolos depende das diferentes relações possíveis de um signo para seu objeto dinâmico. […] Apenas uma divisão está preocupada com a natureza do próprio Signo, e isso eu agora procedo a declarar.

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Em relação ao signo em si mesmo (representamen), existem três propriedades

formais que capacitam algo a funcionar como signo: ser uma qualidade, estar como existência

entre existentes ou ter caráter convencional de generalização ou lei. Na primeira tricomia, o

signo, segundo ele mesmo, tem três classificações:

I. quali-signo (de qualidade, primeiridade);

II. sin-signo (de singular existente, secundidade);

III. e legi-signo (de lei ou convenção, terceiridade).

A segunda classificação é dada a partir da segunda posição lógica – o objeto

(secundidade) –, que trata da maneira como o signo se refere ao objeto dinâmico. O signo

produz o efeito de interpretação (interpretante) a partir da relação que ele mantém com seu

objeto dinâmico, expressa no objeto imediato do signo. O quali-signo sugere o objeto ao

interpretante por meio de uma qualidade, por semelhança ou imitação porque possui

caracteres próprios que se assemelham com o objeto e, no entanto, são dele independentes.

O signo por primeiridade, porque compartilha com o objeto uma similaridade, é

chamado de ícone, mas tanto o signo quanto o objeto são independentes de um e de outro. Por

isso, a relação põe em evidência a primeiridade, porque o signo em si e o objeto são o que

são, independentes de qualquer outra coisa; cada qual completo nele mesmo, mas

compartilhando de uma qualidade:

An Icon is a sign which refers to the Object that it denotes merely by virtue of characters of its own, and which it possesses, just the same, whether any such Object actually exists or not. It is true that unless there really is such an Object, the Icon does not act as a sign; but this has nothing to do with its character as a sign. Anything whatever, be it quality, existent individual, or law, is an Icon of anything, in so far as it is like that thing and used as a sign of it. (CP 2.247). 25

O segundo tipo de signo é o índice, que mantém com o objeto uma relação

diádica, contextual e existencial. Ele não denota pela mera semelhança, mas pela sua efetiva

modificação por força do objeto. O índice é a instância da secundidade porque, ao estabelecer

uma relação de um primeiro com um segundo a partir de uma modificação, registra o existir

no tempo e no espaço. Aqui, o poder do signo em estar para o objeto à mente se dá a partir de

uma modificação que o objeto provoca no signo.

Um ícone é um signo que se refere ao objeto que ele denota meramente em virtude de seus próprios caracteres, e que ele 25

possui, exatamente o mesmo, existindo ou não um objeto desse tipo. É verdade que a menos que realmente exista tal Objeto, o Ícone não age como um signo; mas isso não tem nada a ver com seu caráter como signo. Qualquer coisa, seja a qualidade, o indivíduo existente, ou a lei, é um ícone de qualquer coisa, na medida em que é como aquela coisa e é usada como um signo dela. (tradução nossa).

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Nesse sentido, eles não são independentes entre si; um existe porque o outro

influencia em sua existência e é exatamente por isso que o signo é capaz de dizer do objeto. A

relação do índice com o objeto é estabelecida na contiguidade espaço-temporal da atualidade

que, produzindo significado para uma mente, instaura uma relação diádica ou existencial, que

pode ser de causa e efeito, de ação ou reação, de contraste, dúvida:

An Index is a sign which refers to the Object that it denotes by virtue of being really affected by that Object. It cannot, therefore, be a Qualisign, because qualities are whatever they are independently of anything else. In so far as the Index is affected by the Object, it necessarily has some Quality in common with the Object, and it is in respect to these that it refers to the Object. It does, therefore, involve a sort of Icon, although an Icon of a peculiar kind; and it is not the mere resemblance of its Object, even in these respects which makes it a sign, but it is the actual modification of it by the Object. (CP 2.248). 26

O terceiro tipo de signo é o símbolo que tem o poder de denotar por força de lei, o

que significa dizer que o signo e o objeto estão relacionados somente porque o interpretante

assim os relaciona. Ele é um signo por terceiridade, porque inclui e ultrapassa o âmbito da

qualidade e da existência. O signo enquanto símbolo se coloca em relação ao objeto para o

interpretante, não por semelhança, nem por modificação, mas em mediação pura, porque o

interpretante assim o determina. Todas as concepções derivadas da abstração são símbolos.

A Symbol is a sign which refers to the Object that it denotes by virtue of a law, usually an association of general ideas, which operates to cause the Symbol to be interpreted as referring to that Object. It is thus itself a general type or law, that is, is a Legisign. As such it acts through a Replica. Not only is it general itself, but the Object to which it refers is of a general nature. Now that which is general has its being in the instances which it will determine. There must, therefore, be existent instances of what the Symbol denotes, although we must here understand by “existent”, existent in the possibly imaginary universe to which the Symbol refers. The Symbol will indirectly, through the association or other law, be affected by those instances; and thus the Symbol will involve a sort of Index, although an Index of a peculiar kind. (CP 2.249). 27

Um índice é um sinal que se refere ao objeto que denota em virtude de ser realmente afetado por esse objeto. Não pode, 26

portanto, ser um Qualisign, porque as qualidades são o que elas são independentemente de qualquer outra coisa. Na medida em que o Índice é afetado pelo Objeto, ele necessariamente tem alguma Qualidade em comum com o Objeto, e é em relação a elas que ele se refere ao Objeto. Envolve, portanto, uma espécie de ícone, embora seja um ícone de tipo peculiar; e não é a mera semelhança de seu Objeto, os aspectos que o tornam um signo, mas é a modificação real dele pelo Objeto. (tradução nossa).

Um Símbolo é um signo que se refere ao Objeto que denota em virtude de uma lei, geralmente uma associação de idéias 27

gerais, que opera para fazer com que o Símbolo seja interpretado como referindo-se àquele Objeto. É assim um tipo ou lei geral, isto é, é um Legisigno. Como tal, atua através de uma réplica. Não é apenas ele geral, mas o Objeto a que se refere é de natureza geral. Agora, o que é geral tem seu ser nas instâncias que ele determinará. Deve haver, portanto, exemplos existentes do que o símbolo denota, embora devamos aqui entender por “existente”, existente no universo possivelmente imaginário ao qual o símbolo se refere. O símbolo indiretamente, através da associação ou outra lei, será afetado por essas instâncias; e assim o símbolo envolverá uma espécie de índice, embora um índice de um tipo peculiar. (tradução nossa).

�34

A terceira tricomia relaciona-se à forma com que o signo é interpretado pela

terceira posição lógica do signo (terceiridade), o interpretante. Diferente do objeto que é

diádico (objeto imediato e objeto dinâmico), o interpretante é triádico, tem três classificações:

I. “Interpretante imediato”: é o potencial interpretativo, antes mesmo

de ser interpretado.

II. “Interpretante dinâmico”: refere-se ao efeito produzido pelo signo

em um intérprete individual ou coletivo, cujos efeitos podem ser:

(a) Emocional, quando está em primeiridade e seu efeito é uma

qualidade de sentimento;

(b) Energético, quando está em secundidade e seu efeito é um

gasto de energia, uma ação a uma reação, etc.;

(c) Lógico, quando está terceiridade e seu efeito é suscitar uma

associação de idéias.

III. “Interpretante final” (em si): refere-se ao ideal de alcançar

representações últimas, levadas ao limite final na compreensão total do objeto.

Podem ser:

(a) Rema, quando para seu interpretante o signo for uma

possibilidade qualitativa, como uma hipótese;

(b) Dicente, quando para seu interpretante o signo representar o

objeto em relação a uma existência real;

(c) Argumento, quando para seu interpretante o signo representar

o objeto em seu caráter de signo.

O modo de ser da estrutura do símbolo como representativo da terceiridade

apresenta um sistema de inclusão que institui com o índice e como o ícone, análogo ao

processo de prescindibilidade das categorias quando tratadas como categorias de relação e

modalidade. Relembrando que a primeiridade é a única categoria que pode prescindir de todas

as outras; a secundidade pode prescindir da terceiridade, mas não da primeiridade; e

finalmente, a terceiridade não pode prescindir nem da secundidade nem da primeiridade.

Segundo Nöth:

Portanto, a tricotomia peirceana do ícone, do índice e do símbolo é um sistema de inclusão. Símbolos incluem signos indiciais, uma vez que nenhuma ideia pode ser formada sem “instâncias existentes do que o Símbolo

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denota”, isto é, sem índices do símbolo (CP 2.249, 1903). Índices incluem ícones, pois “na medida em que o Índice é afetado pelo Objeto, ele necessariamente tem alguma Qualidade em comum com o Objeto” (CP 2.248, 1903). A palavra “bicicleta” evoca a imagem mental (e portanto um ícone) do veículo que designa, mas isso também direciona nossa mente aos veículos específicos que conhecemos na realidade (índices). Índices incluem ícones, como o exemplo da foto. Somente o ícone não inclui qualquer outro tipo de signo. Tendo em vista que os ícones evidenciam as qualidades de seus objetos, Peirce conclui que “uma grande propriedade diferencial do ícone é que, pela observação direta deste, outras verdades sobre o seu objeto podem ser descobertas, além daquelas que são suficientes para determinar sua construção” (CP 2.279). Os ícones são, portanto, o único tipo de signo a partir do qual podemos derivar novas ideias sobre a natureza de seus objetos. (NÖTH, 2013, p.11)

As posições lógico-formais – representamen, objeto e interpretante – por

compartilharem da mesma natureza geral de símbolos são partícipes do funcionamento de

uma semiose triádica que tende para o crescimento e auto-geração:

Dessa forma, o modelo peirceano do conhecimento é triádico, sendo o signo o termo mediador, o meio para o conhecimento. E na tríade genuína, o objeto do signo não se confunde com uma coisa física ou uma causa material de uma sensação vinda do exterior, mas ele é também, de natureza sígnica, de modo que, do lado do objeto, estamos diante de uma regressão infinita dos signos. Mas, na medida em que o signo produz (em progressão também infinita) interpretantes e neles se desenvolve a fim de melhor revelar a relação de representação que ele mantém com o objeto, então, em última instância, o objeto do signo significa “escopo”, “propósito”, objetivo. Nesse sentido, é o objeto (realidade ou verdade) que funciona como causa final (infinitamente remota, aproximável, mas inatingível) na teleonomia do conhecimento. Assim, o que é chamado de regressão infinita do signo ou conhecimento é concebido por Peirce como uma progressão infinita em direção do real e da verdade. (SANTAELLA, 2008, p. 95).

O potencial de expansão da semiose genuína ocorre pelas séries infinitas que

seguem os vetores de determinação e de interpretação, resultando que não há um objeto

último ou um interpretante definitivo:

In insisting that the representamen and the interpretant are both signs representing the same object, although to different degrees of specificity, and that the object of the sign determines not just that first sign but, mediately, a second interpreting sign, Peirce implies two things about the sign relation. First, the sign relation is constituted by the interlocking of a vector of representation pointing from the sign and interpretant toward the object and a vector of determination pointing from the object toward both sign and interpretant. Second, one semiotic moment in which the sign elements are in a genuine triadic relation requires an infinite series of similar

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moments; in other words, the sign relation is a process. (PARMENTIER, 1994, p. 25) 28

Not only is there no ultimate object which could be represented in some symbol and not itself a representation, but there is no ultimate interpretant. Peirce clearly recognizes the almost incredible ramification of this theory: symbols are essentially alive. Not in the sense of having breath and locomotion but in the sense of having an evolving, growing, developing nature. (PARMENTIER, 1994, p.10). 29

Por um lado, o grau de generalidade do conceito de signo e semiose autoriza o

semioticista a utilizar o modo de funcionamento do signo e da semiose como um modo geral e

abstrato de ser, que pode ser aplicado a qualquer forma de pensamento que se movimente.

Aplicar a semiótica é situar nas posições lógicas do signo aquilo que se quer estudar para

compreender o processo interpretativo ou semiose daquele estudo específico. Foi o que

fizemos na pesquisa anterior ao aplicar a semiose ao pensamento de Milton Santos para

avaliar a teoria geográfica presente em A natureza do espaço. Por outro lado, uma semiose

genuína permite ao semioticista localizar duas operações imprescindíveis para que a semiose

se expanda: a generalização e a hipostatização, princípios da semiótica derivados da

matemática, internalizados no modo de ser da estrutura da semiose que utilizaremos para a

análise das semioses em Milton Santos.

O potencial de crescimento e auto-desenvolvimento dos símbolos é uma

característica da semiose genuína. Esta, ao se expandir no desenrolar do tempo, estreita a

distância entre a representação e a realidade. A realidade determina a dinâmica triádica da

semiose genuína, do objeto para o interpretante, por meio do representamen. O interpretante,

por seu lado, se aproxima da realidade, a partir da leitura que faz da relação entre a forma

expressiva e o objeto. Mas aquele termo lógico que ocupa a posição de representamen,

quando em uma semiose genuína, atua em sua plenitude como medium, em nível de

generalidade. Falar em signo de terceiridade é o mesmo que falar em mediação, diz Peirce

“All my notions are too narrow. Instead of “sign', ought I not to say Medium?” (MS 339):

Ao insistir que o representamen e o interpretante são ambos signos representando o mesmo objeto, embora a diferentes 28

graus de especificidade, e que o objeto do signo determina não apenas aquele primeiro signo, mas mediatamente, um segundo signo interpretativo, Peirce implica duas coisas sobre a relação de sinal. Primeiro, a relação de signos é constituída pelo entrelaçamento de um vetor de representação apontando do signo e do interpretante para o objeto e um vetor de determinação apontando do objeto em direção ao signo e ao interpretante. Segundo, um momento semiótico em que os elementos de signos estão em uma relação triádica genuína requer uma série infinita de momentos similares; em outras palavras, a relação de signos é um processo. (tradução nossa).

Não só não existe um objeto final que possa ser representado em algum símbolo e não em si mesmo uma representação, 29

mas não há um interpretante final. Peirce reconhece claramente a ramificação quase incrível dessa teoria: os símbolos estão essencialmente vivos. Não no sentido de ter respiração e locomoção, mas no sentido de ter uma natureza em evolução, crescente e em desenvolvimento.

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Namely, a sign is something, A, which brings something, B, its interpretant sign determined or created by it, into the same sort of correspondence with something, C, its object, as that in which itself stands to C. I t is from this definition, together with a definition of “formal”, that I deduce mathematically the principles of logic. 30

(NEM 4, p 20-21)

Parmentier (1985), ao tratar das consequências para a semiose da incorporação da

lógica dos relativos na filosofia peirciana, sugere uma expansão do papel do signo de “ estar

para” para “ estar entre”. O potencial do signo em colocar elementos em relação triádica,

funcionado como medium, é o que potencializa a operação da generalização. O símbolo é a

expressão mais adequada para tratar do processo de generalização, porque a relação triádica

estabelecida pelo símbolo entre símbolos, é feita por meio de uma convenção. Ao mesmo

tempo, a semiose que a tríada engendra é determinada pela realidade:

Peirce feels that this potential for growth or self-development in symbols is the central way in which reality and representation resemble each other, since both natural laws and logical conventions govern, respectively, the actions of objects and the course of ideas in reasoning, in essentially the same triadic manner. 31

(PARMENTIER, 1985, p.10).

O matemático é capaz de fazer a generalização porque a semiose, na qual seu

pensamento está incluído, cresce em símbolos em busca de tríadas, se afastando da

factualidade e trabalhando com hipóteses. Por outro lado, a semiose tem sua expansão

garantida por ser triádica e porque o vetor de determinação, que parte da realidade, constrange

o interpretante a interpretar na mesma medida da relação estabelecida entre o representamen e

o objeto. Assim, a aproximação à verdade é garantida pelo vetor de determinação e pela

operação de generalização da semiose genuína. Mas, para que ela não se cristalize em hábito,

é necessário também que novas relações que a princípio não estavam disponíveis à

interpretação sejam incluídas na semiose, e esse é o papel do interpretante por meio da

hipostatização realística das relações na aproximação tendencial à verdade como algo situado

no futuro.

Por um lado, aproximar as díadas e tríadas da atuação do signo na semiose é uma

vantagem de método para esta pesquisa. As tríadas nos possibilitam visualizar o modo com o

Especificamente, um signo é algo, A, que traz algo, B, seu signo interpretante determinado ou criado por ele, no mesmo 30

tipo de correspondência com algo, C, seu objeto, como aquele em que ele próprio "está para”. A partir dessa definição, juntamente com uma definição de “formal”, deduzo matematicamente os princípios da lógica.

Peirce entendeu que esse potencial de crescimento ou autodesenvolvimento de símbolos é o modo fundamental pela qual a 31

realidade e a representação se assemelham, já que tanto as leis naturais quanto as convenções lógicas governam, respectivamente, as ações dos objetos e o curso das idéias no raciocínio. essencialmente pela mesma maneira triádica.

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qual Milton Santos colocou as categorias do espaço em relação, internalizando-as no método

de sua teoria geográfica. Por outro lado, a semiose nos possibilita visualizar o movimento das

categorias do espaço em articulação pela alternância das posições lógico-formais. Contudo,

para conferir o que Milton Santos chama o caráter “surpresivo ” do espaço, é necessário 32

considerar a hipostatização. Como analisar na semiose do espaço aquela capacidade do

matemático de incluir relações que inicialmente não se apresentavam no problema observado?

Parmentier (1985) localiza a hipostatização no vetor de interpretação. O

interpretante forma uma concepção, resultado da interpretação que faz da relação estabelecida

entre o representamen e o objeto, em um nível metassemiótico que o capacita a representar o

objeto da mesma forma que o interpetante que o antecede fez, mas com um nível maior de

profundidade:

It is this third symbolic mode of relation between representamen and object that causes the asymmetry between determination and representation, since the first vector passes through the representamen to the interprétant at the same level of semiosis, while the second vector introduces a metasemiotic level at which the interpretant represents its object only by virtue of having formed a conception of the relation between the initial representation and the object. The power of the interpretant to create this new entity is called by Peirce "hypostatic abstraction," since it involves taking a quality or predicate as an abstract subject.

(PARMENTIER, 1985, p.28). 33

O ganho de método possível pela utilização da lógica das relações (mônadas,

díadas, tríadas), da prescindibilidade das categorias peircianas e da semiose, está em alcançar

o objetivo de nossa pesquisa: analisar a habilidade do pensamento de Milton Santos em

estabelecer lógicas triádicas da combinação entre suas categorias, internalizando-as em A

natureza do espaço. Tais categorias atuam em uma semiose onde a hipostatização se faz

presente, para sinalizar o caráter surpresivo do espaço. Imaginamos ser esta a direção que

seguiu seu pensamento deliberado em busca da verdade como algo situado no futuro, desde a

escrita de O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo.

Termo utilizado por Milton Santos no documentário de Tendler (2006), que passamos a incorporar no trabalho.32

É este terceiro modo simbólico de relação entre representamen e objeto que causa a assimetria entre determinação e 33

representação, uma vez que o primeiro vetor passa por meio do representamen para o interpretante no mesmo nível de semiose, enquanto o segundo vetor introduz um nível metassemiótico em que o o interpretante representa seu objeto apenas em virtude de ter formado uma concepção da relação entre a representação inicial e o objeto.O poder do interpretante de criar essa nova entidade é chamado por Peirce de "abstração hipostática", já que envolve tomar uma qualidade ou um predicado como um assunto abstrato. (tradução nossa).

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Capítulo 3. As ciências normativas de Peirce

A semiótica peirciana, como uma das ciências normativas, contribui como método

de investigação da trajetória epistemológica de Milton Santos ao estabelecer o conceito de

mente e de pensamento como um modo geral de ser, independente de individuais, e que se

relaciona à tendência da razão humana em seguir em direção à verdade como um princípio

normativo. As investigações do ideal, dos fins e das formas corretas de raciocínio que

constituem uma investigação científica na busca pela verdade como um princípio normativo

cabem às ciências normativas de Peirce.

Para compreender a relevância do tema no contexto da sua filosofia e no contexto

da tese, ressaltamos a análise de Santaella (2000a) que aponta a interrelação da segunda

versão do pragmatismo de Peirce com as ciências normativas, elucidando um tema pouco

explorado pelos semioticistas e que contribui para traçar o caminho epistemológico de Milton

Santos.

O pragmaticismo de Peirce é a doutrina ou método que investiga o significado de

conceitos intelectuais. A máxima do pragmaticismo, revisado por Peirce em 1903, está na

investigação do significado dos conceitos, julgado em termos dos resultados coletivos futuros,

a serem alcançados em um curso prolongado de ação. Tais resultados são materializados

como frutos da finalidade última do pensamento, de uma racionalidade controlada que

idealmente move um intelectual, em uma comunidade de intelectuais, em direção ao aumento

da razoabilidade concreta do mundo.

Ainda segundo Santaella (2000a), as ciências normativas se relacionam com o

pragmaticismo, na medida em que investigam as situações ideais e necessárias para que o

curso do pensamento de uma investigação deliberada entre no fluxo coletivo, contínuo e

dinâmico da elaboração de ideias gerais.

O ideal, o propósito e o raciocínio com atividade intelectual auto-controlada são,

todos, escolhas deliberadas do pesquisador. Milton Santos assim se posiciona em relação à

sua própria:

Tais posições intelectuais correspondem, paralelamente, a uma evolução teórica e ideológica. Esta não foi o resultado de leituras, mas de uma práxis individual que se exerceu em diversos países. O fato de haver presenciado como diversas formas de

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ação social e política levam a resultados e perspectivas diferentes convenceu-nos da impropriedade de teorias como as que criticamos neste volume. Tais teorias, postas sem recato maior ao serviço exclusivo do capital e sobretudo do capital internacional, mostraram-se indiferentes à sorte da grande maioria das coletividades nacionais do Terceiro Mundo. Por isso, e urgentemente, estão a reclamar que se imaginem alternativas válidas, fundadas na especificidade de nossos países e preocupadas em atribuir a maioria das populações interessadas aqueles bens, serviços e valores que restituam a cada homem a possibilidade de viver dignamente. (SANTOS, 1979, p. 11).

O que é experimentado por si mesmo, em seu próprio valor em ser admirável, age

como força condutora dos princípios e fins da atividade autocrítica e deliberada da razão

humana. O ideal estético é identificado em Peirce com o crescimento da razoabilidade

concreta:

Uma vez que a razão é a única qualidade livremente desenvolvida através da atividade humana do autocontrole, em outras palavras, estando na autocrítica a essência da racionalidade, Peirce identificou o ideal estético, fim último do pragmatismo, com o crescimento da razoabilidade concreta. Não a razoabilidade abstrata, perdida na neblina do ideal, nem a razoabilidade estática que, como tudo que é estático, termina em opressão, mas a razoabilidade concreta em crescimento, em processo, em devir. A única coisa que é desejável sem necessidade de qualquer explicação é apresentar idéias e coisas razoáveis. Isso quer dizer que somos responsáveis pelo alargamento e realização da razoabilidade concreta; é através de nossos atos, feitos e pensamentos encarnados que ela vai se concretizando rumo a um final em aberto cujo destino não podemos saber de antemão. (SANTAELLA, 2000a, p. 98-99).

O distanciamento gradual de Milton Santos da geografia regional clássica e a

ruptura com teorias de planejamento e desenvolvimento regional alinhadas à teoria econômica

neoclássica foram marcados pela compreensão de Milton Santos de que tais teorias estavam a

serviço da difusão do capital, suportadas por uma ideia base de que os países

subdesenvolvidos chegariam em um futuro às condições ideais dos desenvolvidos, caso

seguissem prescrições estabelecidas.

A nova ciência espacial deveria, portanto, basear suas reflexões numa ciência econômica a-espacial. Foi assim que chegou ao paradoxo de uma ciência regional desprovida da natureza e do homem. Seja ela chamada de análise regional, de ciência regional, de economia espacial, de geografia ou de urbanismo, o capitalismo dela se beneficia. (SANTOS, 1979, p. 20).

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Segundo Grimm (2001), a origem desse redirecionamento se deu a partir da

década de 1960, com a criação do Laboratório de Geomorfologia e Estudos Regionais em

Salvador, Bahia:

A partir da década de 1960, devido aos diálogos com a geografia aplicada – promovidos principalmente pelo convívio com seu orientador de doutorado Jean Tricart –, a noção clássica de região fortemente presente nas monografias regionais começa a ser revista. Nesse momento, Milton Santos passou a dedicar-se mais aos esforços de regionalização para a análise da organização espacial visando, em alguns casos, uma efetiva intervenção nesta. Nesse contexto, a criação do Laboratório de Geomorfologia e Estudos Regionais (1959) em Salvador (BA) e as pesquisas ali realizadas representaram um primeiro questionamento sobre o conceito de região e o papel da geografia regional nos moldes clássicos. (GRIMM, 2011, p.33).

Tais análises críticas são sistematizadas na obra O trabalho do geógrafo no

Terceiro Mundo, ponto de início de nossa análise semiótica.

Compreender a trajetória intelectual de Milton Santos pelos parâmetros das

ciências normativas, implica em considerar que o raciocínio deliberado do geógrafo na busca

pela operacionalidade e coerência do método ou das categorias de análise acerca do espaço é

uma semiose cuja continuidade e expansão são marcadas pelos propósitos de seu pensamento

guiados pela busca daquilo que é admirável em si mesmo, localizado no futuro.

A verdade como princípio normativo é viva e dinâmica assim como o é a busca de

um intelectual, dentro de uma comunidade de intelectuais. Caracterizaremos os fins do

pensamento de Milton Santos, à medida em que avançarmos nos períodos demarcados para as

análises semiótica da presente pesquisa.

II

A GEOGRAFIA URBANA NOS PAÍSES SUBDESENVOLVIDOS

�43

Capítulo 4. Contextualização a partir das ciências normativas

No presente capítulo, trataremos dos ideais e fins do pensamento de Milton Santos

que justificam seu raciocínio deliberado expresso na obra O trabalho do geógrafo no Terceiro

Mundo. Durante a análise, tanto os conceitos próprios à geografia quanto sua história serão

tratados, a partir da perspectiva do próprio Milton Santos, a fim de acompanhar as nuances e

variações de seu pensamento.

O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo foi escrito originalmente em francês

sob o título Le metier de géographe en pays sous-développé, cuja redação foi finalizada na

Universidade de Bordeaux, em 1968. A obra revisa elementos centrais da epistemologia

geográfica, como objeto de estudo, métodos e interdisciplinaridade; elementos que serão

objetos da atenção cuidadosa e de um amadurecimento gradual no caminho epistemológico de

Milton Santos.

O pesquisador entra na semiose da pesquisa que ele engendra e a análise da obra

O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo é feita com a leitura prévia das obras Por uma

geografia nova e A natureza do espaço, com acesso ao pensamento de um geógrafo já

amadurecido e seguro da própria trajetória como intelectual.

Tal posição privilegiada nos permite avaliar posteriormente o valor da obra O

trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo, nos avanços teóricos que registra e enquanto

testemunho da coragem de um intelectual que inicia um esforço auto-controlado de um

pensamento em seu início, a partir do imperativo marcado pelo propósito de contribuir de

forma prospectiva para a análise geográfica da realidade dos países subdesenvolvidos.

É preciso considerar o grau de desafio que Milton Santos se impôs para

compreender a cautela de sua atitude em decidir publicar o livro após três anos de incertezas

acerca de sua aceitação. A relutância inicial de Milton Santos em muito se deve aos

questionamentos presentes na obra direcionados a conceitos sedimentados na geografia,

objetos de revisão e de nova conceituação que ele empreende no livro. São análises críticas à

teoria geográfica que terão seu ápice de sistematização em Por uma geografia nova.

Retomando as palavras de Milton Santos:

(…) essa contestação (a geografia francesa e aos seus mestres) vai se manifestar de maneira mais coerente em 1968, com o meu livro Le Métier du Geographe, cujo título é inspirado em Marc Bloch, que escreveu Le Métier du Historien. Eu achava

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tão ruim, tão terrível o que os colegas do departamento de geografia faziam, que decidi escrever aquele livro. Ele ficou na gaveta, porque eu oscilava entre achar que estava bom e que estava ruim, mas acabou sendo publicado. (SANTOS, 2002, p. 28, grifo nosso).

Para contextualizar esse período a partir das ciências normativas de Peirce,

buscaremos fundamentos no livro Economia espacial, publicado em 1978. A obra reúne

artigos datados entre os períodos de 1970 a 1977, posteriores a O trabalho do geógrafo no

Terceiro Mundo que consubstanciam um conjunto de críticas de Milton Santos às teorias

vigentes sobre os temas espaço e planejamento urbano.

A coletânea registra os argumentos com os quais Milton Santos rompe

vigorosamente com teorias como as do polos de desenvolvimento, difusão de inovações,

teorias do polo e periferia, lugares centrais: conjunto de teorias de urbanização e planejamento

baseadas na economia neoclássica, todas sob uma a premissa da imposição de um modelo

ideal traçado a partir do caminho percorrido pelos países desenvolvidos, como projeção de

desenvolvimento para os países do Terceiro Mundo.

A nota explicativa que antecede os artigos detém mais do que um valor histórico,

ela permite a análise semiótica porque é um registro da própria interpretação de Milton Santos

sobre os motivos que o levaram a romper com teorias sedimentadas e redirecionar seu esforço

intelectual para novas teorizações, o que nos permite acompanhar o pensamento de um

intelectual do porte de Milton Santos , no exato momento em que pensa acerca do próprio 34

pensamento.

Ele inicia a nota explicativa falando direto ao leitor “o leitor tem o direito de saber

por que um autor decidiu reunir em volumes ensaios escritos em datas diferentes e sem a

intenção de produzir um livro” (SANTOS, 1979, p.9). De forma dialógica, antecipando uma

possível resposta, Milton Santos sinaliza que uma solução seria responder que os estudos

estão justificados porque tratam de temas afins caracterizando um conjunto, “solução mais

frequente, às vezes beirando o utilitarismo”. (SANTOS, 1979, p.9).

A produção intelectual de Milton Santos está materializada em aproximadamente quarenta livros e trezentos artigos que 34refletem uma trajetória marcada pela prática docente e de pesquisa em países diversos. Em 1964, em razão da ditadura brasileira, Milton Santos deixa a atividade docente na Universidade Federal da Bahia e se afasta do país, lecionando em universidades da Europa, África, América do Sul e do Norte. Primeiro geógrafo latino-americano a receber, em 1994, o mais alto prêmio internacional em geografia, Vautrin Lund, Milton Santos foi por vinte vezes agraciado com o título de Doutor honoris causa por Universidades do Brasil, da América Latina e da Europa.

�45

Se a intenção de Milton Santos fosse apenas apresentar os artigos a tarefa estaria

cumprida, mas a nota se presta a dar uma verdadeira explicação dos motivos que o levaram a

romper epistemologicamente com as teorias em questão.

para a compreensão dos caminhos do autor, às vezes é bom que este mesmo dê uma interpretação autêntica, que explique seu apego a um tema geral e, também, o que na sua própria trajetória representam tomadas de posição separadas no tempo. Estas, às vezes se distinguem pelas concepções de um conjunto ou detalhe, às vezes se separam frontalmente de outros esforços de interpretação tentados pelo mesmo estudioso em um período anterior. (SANTOS, 1979, p.9, grifo nosso).

Se os artigos que sucedem a nota possuem uma densidade teórica que atestam o

vigor do pensamento de Milton Santos na argumentação científica, a nota explicativa centra-

se nos propósitos e nos fins da atividade intelectual. Mais do que explicativa, a nota é um

testemunho de um tomada de posição a partir do entendimento de Milton Santos do que cabe

ao intelectual na produção de conhecimento. Passa pela práxis e pela reflexão crítica da lógica

interna a cada teoria, mas à frente de tudo, como uma flecha lançada no futuro está, em si

mesmo, o ideal que move o propósito do pensamento científico e que exige o posicionamento

intelectual.

O ideal e os propósitos do pensamento são os elementos que conferem o

sentimento e o desejo necessários a cada pesquisador para a laboriosa e auto-controlada tarefa

de encontrar a melhor forma de raciocinar em busca pela verdade, aqui entendida como viva e

situada em um futuro a ser alcançado no tempo. São pensamentos pelos quais o intelectual

opta mirando um resultado coletivo futuro, ainda que consciente do preço pago pela liberdade

de um pensamento autônomo:

fomos pouco a pouco amadurecendo a crítica às teorias cuja aplicação, sob o selo do prestígio internacional, eram, às vezes sem contestação, aplicadas aqui e ali. Isto, sem dúvida, nos custou dissabores. Como todo mundo sabe, posições desse tipo não facilitam a vida do pesquisador, pois levantam contra ele as iras conjugadas e muito bem orquestradas dos que detêm os instrumentos de produção e difusão do saber e tratam, por todos os meios, de barrar o caminho do insolente. (SANTOS, 1979, p. 11).

É com esse olhar que analisaremos as prudências e contenções da primeira crítica

empreendida por Milton Santos à ciência geográfica que constitui O trabalho do geógrafo no

Terceiro Mundo. Uma publicação, à época, mal vista por geógrafos franceses mais arraigados

�46

às tradições geográficas e que, no entanto, contou com o apoio de outros geógrafos como

Bernard Kayser (1926-2001) , em Toulouse. 35

A verdade é que as preocupações teóricas do ensino foram também uma alavanca eficaz na crítica de teorias que, em um primeiro tempo, julgávamos hostis aos interesses dos países subdesenvolvidos e mais recentemente nos apareceram como instrumento privilegiado da difusão do capital, tanto para agravar o subdesenvolvimento como para (…) assegurar a expansão da pobreza. (SANTOS, 1979, p. 11).

O ideal, o propósito e o raciocínio como atividade intelectual auto-controlada são

escolhas deliberadas do pesquisador. A experiência no curso da vida de Milton Santos como

pesquisador e docente se impôs como fator de chamamento irrecusável para a escolha do

caminho intelectual que ele percorreria como geógrafo.

Nesse sentido, o redirecionamento de Milton Santos tem seu início na observação

deliberada das consequências práticas da aplicação de teorias geográficas apoiadas na

economia neoclássica para os países do Terceiro Mundo e da experiência da sua prática

docente e de pesquisa, o que colocou em jogo o questionamento de quais fins seu próprio

pensamento estava deliberadamente preparado para adotar.

As consequências práticas da aplicação de teorias geográficas apoiadas na

economia neoclássica para os países do Terceiro Mundo foram presenciadas por Milton

Santos quando vivendo em países estrangeiros a partir de 1964:

Afastado do país em razão da nova ordem política vigente a partir de 1964, deu seguimento, no exterior, à carreira universitária que já se desdobrara em seu país, primeiro na Universidade Católica da Bahia (1954-60) e, mais tarde, na Universidade da Bahia (1961-64). Assim, na França, lecionou em Tolosa (1964-67), Bordéus (1967-68), Paris (na Sorbone, entre 1968 e 1971). Foi professor nos dois anos seguintes na Universidade de Toronto (Canadá). Conheceu extensa e intensivamente o universo capitalista ocupando cargos em instituições universitárias na Universidade de Dar-es-Salaam (na Tanzânia…) e na Universidade de Columbia (Nova York, como professor de geografia e Planejamento Urbano. Lecionou ainda no Instituto de Estudos de Desenvolvimento Econômico e Social (Paris, a partir de 1967) e trabalhou como pesquisador para o Departamento de Estudos Urbanos e Planejamento do Massachusetts Institute of Technology (1971-72). Na América Latina, Milton Santos foi consultor junto à Escola de geografia da Universidade dos Andes (em Mérida, Venezuela) e professor da Universidade Central de Caracas. Dirigiu, igualmente, programa das Nações Unidas voltado para a análise e o planejamento da urbanização venezuelana. Levado por missões técnicas e viagens de estudo, trabalhou no Senegal, Consta do Marfim, Daomei, Gana, Togo, Tunísia, Argélia, Cuba, México e Colômbia. (DIAS, 2010 apud SANTOS, p. 10, 2010)

Bernard Kayser foi um dos criadores da geografia ativa, professor na Universidade de Toulouse-le-Mirail, defendia a geo35 -grafia como fator ativo e de mudança no mundo.

�47

Milton Santos, então, direciona seu raciocínio autocrítico e deliberado para

investigar a especificidade do espaço dos países subdesenvolvidos, tendo por ideia base o

desenvolvimento de um conceito de espaço que comportasse sua natureza social e humana:

Dever-se-ia conceber o espaço como um todo e não como um espaço aristocrático onde os fluxos estudados são unicamente aqueles das grandes empresas e população burguesa. Isto produziria uma verdadeira geografia da pobreza, uma geografia onde riqueza e pobreza não fossem tratadas como entidades separadas, mas como partes complementares de uma só realidade. (SANTOS, 2015, p.4).

O espaço como morada dos homens e considerado como um todo guiou, de

forma permanente, a procura de Milton Santos por um quadro metodológico de análise para a

teoria geográfica.

�48

Capítulo 5. Categorias de análise, temporalidade e método

Em O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo, tomando o espaço por objeto da

geografia, Milton Santos distingue as especificidades do espaço dos países subdesenvolvidos

dos países desenvolvidos, por meio da dinâmica entre suas variáveis e seu mecanismo.

Para Milton Santos, o espaço é um só e seus componentes são os mesmos. O que

ocorre são relações distintas entre as variáveis para cada realidade, a partir de diferentes

combinações de intensidade e fusão. Em O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo Milton

Santos lança o conceito de espaço como uma hipótese, no momento em que discute o debate

em torno dos conceitos de espaço econômico e espaço geográfico:

Chegou talvez o momento de retomar esse debate, a fim de ver-se em que pode ser enriquecedor ou estéril. Sobretudo, é bom perguntar se não seria mais útil substituir essa querela por outra questão: haverá um espaço real, global, coerente, um espaço habitado por homens e marcado por atividades prenhes de história, um espaço penetrado total ou parcialmente de modernidade, definido por estruturas e percorrido por fluxos? Um espaço onde as decisões locais se chocam e se anastomosam com decisões distantes? Um espaço que é a base de uma síntese e de um equilíbrio, ainda que efêmeros entre todos esses fatores? Ou, ao contrário, haverá espaços diferente segundo o capricho de cada um dos especialistas que o estudam? (SANTOS, 1978a, p.71).

Para análise interpretativa da atualidade que acompanhe a evolução do mundo,

Milton Santos, na introdução de O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo, justifica a

necessidade de renovação do método em geografia e sugere, para tal, a imaginação e a criação

como elementos necessários à pesquisa:

Como sucede na ventriloquia, é preciso possuir certa imaginação, sob pena de fatigar o público. A metodologia é que fornece aos pesquisadores esse domínio. A própria metodologia deve ser renovada constantemente, senão a realidade lhe escapa. No entanto, como o mundo atual evolui muito depressa, vemo-nos diante de uma grande dificuldade, ou seja, fazer com que a metodologia progrida com igual rapidez. Para não incorrer em semelhante impasse, não se deve recear o uso da imaginação e da criação como partes de um novo esforço de concentração. (SANTOS, 1978a, p.10).

O ideal que orienta o propósito do pensamento, sempre vai à frente do esforço de

elaboração lógica e auto-controlada do intelectual e O trabalho do geógrafo no Terceiro

Mundo está permeado de passagens onde a intencionalidade do pensamento de Milton Santos

em relação ao imperativo de revisão do método em geografia está presente.

�49

O posicionamento de que o método deve subserviência à realidade e que é preciso

uma dose de criatividade e imaginação permanece durante toda sua trajetória como

intelectual. A alusão ao método como um exercício de ventriloquia é retomada em A natureza

do espaço, em referência ao uso imaginativo do pesquisador ao dar-lhe vida, sempre à serviço

do objeto da geografia, o espaço:

O método em ciências sociais acaba por ser a produção de um “dispositivo artificial” onde os atores são o que Schutz (1945, 1987, p.157-158) chama de marionetes ou homúnculos. Quem afinal lhes dá vida é o autor, daí esse nome de homúnculos, e sua presença no enredo se subordina a verdadeiras modelizações qualitativas, daí porque são marionetes. Mas o texto deve prever a possibilidade de tais bonecos surpreenderem os ventríloquos e alcançarem alguma vida, produzindo uma história inesperada: é assim que fica assegurada a conformidade com a história concreta. (SANTOS, 1996, p. 22).

O empenho de Milton Santos em propor um método capaz de interpretar a

atualidade e a dinâmica do espaço, sem sufocá-lo em sua aparição, sinaliza sua intenção de

conferir protagonismo ao espaço e propor uma geografia prospectiva, que apontasse para o

futuro.

Em O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo, a proposta de Milton Santos é de

aproximação pela perspectiva geográfica da realidade do espaço dos países subdesenvolvidos,

que pode ser resumida em torno da seguinte questão: as características próprias ao espaço dos

países do Terceiro Mundo derivam de uma história espacial seletiva vinculada a uma

imposição exógena ao país, cuja origem remota vem de sistemas representativos de interesses

distantes.

Observando que o espaço tem seu comportamento afetado por variáveis externas

ao lugar, Milton Santos traz para o centro do debate a ideia clássica de região que analisa as

construções humanas sobre a superfície da Terra, a partir da interação entre grupo humano e

meio geográfico. Essa é a primeira análise crítica que Milton Santos empreende e a faz a

partir do cotejamento dos papéis que cabem tradicionalmente à geografia geral e à regional.

Segundo Santos (1978a), cabe à geografia geral estabelecer princípios a partir de

situações factuais levantadas em diferentes espaços; levantamento este de responsabilidade da

geografia regional, que fará um inventário ou descrição dos dados para proceder

sucessivamente às sínteses necessárias ao estudo da organização daquele espaço sob análise.

Tradicionalmente, cabe à geografia regional subsidiar a geografia geral em informações

�50

trazidas do “concreto”, necessárias para a revisão e progresso da ciência geográfica na busca

da generalidade da teoria como um todo. Destacamos o termo concreto porque ele também

sofre uma análise crítica por Milton Santos, quando tratado de forma polarizada à abstração,

dicotomia que impõe limites intransponíveis aos papéis que cabem aos estudos da geografia

geral e regional.

Essa interdependência por polarização entre a geografia geral e regional é vista

por Milton Santos como uma maneira de interpretação baseada em concepções arraigadas de

concreto e de abstrato; polarização que fixou a ciência geográfica em uma única forma de

interpretação e raciocínio, impedindo a análise das mudanças que ocorrem na realidade do

mundo em movimento. A mesma relação dual e polarizada está presente na ideia de região

quando se restringe a análise da relação entre grupo humano e seu entorno geográfico.

O conceito tradicional de região ao restringir sua análise à interação linear entre

grupo humano e meio geográfico perde sua operacionalidade, porque as modificações no

meio geográfico não dependem exclusivamente do grupo envolvido. Por isso, ele rechaça as

as relações de causalidade restritas entre grupo humano e meio, presentes no conceito

tradicional de região.

Conceitos da geografia baseados em relações duais, para Milton Santos, impedem

o avanço da disciplina e não cabem na dinâmica da atualidade. A região não deve ser

considerada de forma isolada, porque não contém em si a autonomia necessária para uma

análise eficaz na compreensão das variáveis determinantes do espaço dos países

subdesenvolvidos.

Milton Santos sinaliza então a necessidade de um esforço de abstração que não

fuja à realidade, mas que abarque o entendimento de que os trabalhos das pesquisas de campo

encerram tanto elementos de universalidade quanto de particularidade. Essa é para Milton

Santos, a originalidade regional que se busca, capaz de contribuir com o progresso da ciência

geral.

Embora com o risco de provocar um escândalo, ouso afirmar que muitas vezes a geografia Geral deve progredir independentemente da geografia Regional. Tal empresa requer a aceitação de um modelo de trabalho em que os conhecimentos dos mecanismos tenha prioridade. É assim que se poderá utilizar em seu favor os progressos das demais ciências humanas, progressos que recentemente se tornaram bem mais acentuados que os da geografia. Isso permitirá a formulação de hipóteses que os estudos empíricos ou justificarão ou desacreditarão. (SANTOS, 1978a, p. 15, grifo do autor).

�51

Para avançar em termos metodológicos e propor um modelo de trabalho que

privilegie os mecanismos, Milton Santos questiona a eficácia dos métodos da analogia e da

comparação. A crítica gira em torno da incapacidade de tais métodos em subsidiar pesquisas

das causas da incidência dos fenômenos, na medida em que tanto a analogia quanto a

comparação apenas definem os fenômenos a partir do agrupamento dos mesmos segundo sua

natureza:

Muitos geógrafos, sob o pretenso de se limitarem à realidade, deixam-se levar por uma fé no concreto e uma mania de exemplos que também acabam por destruir todo esforço novo de criação, empobrecendo nossa disciplina. Não é suficiente acumular, escrever, analisar e interpretar dados recolhidos como matéria-prima nos diferentes cantos do mundo. Também não basta substituir um dado ou uma série de dados no conjunto de atividades de uma região; é preciso que o comportamento de cada dado, na presença de tal ou tal fator, possa assumir uma significação universal, isto é, possa representar um dado da geografia Geral. (SANTOS, 1978a, p. 34)

Os métodos da analogia e da comparação são válidos para a construção de

modelos que para o estudo dos fenômenos regionais podem encerrar uma intencionalidade

avessa aos interesses das populações dos países subdesenvolvidos. Em O trabalho do

geógrafo no Terceiro Mundo, Milton Santos refuta tais métodos como caminhos válidos, tanto

para a análise dos problemas fundamentais desses países, quanto para sua solução. Segundo

Broek (1967, p. 106):

Como os dados quantitativos sobre o comportamento do homem são disponíveis quase que unicamente nos países desenvolvidos, correspondendo, no máximo, a um século, tende-se a construir modelos derivados dos fenômenos observados “aqui e agora”, deixando-se totalmente de lado as épocas precedentes e as influências de outras culturas. Tal comportamento é odioso, pois que projeta um modelo que é o resultado de circunstâncias especiais mesmo sobre o mundo inteiro, proclamando-o como verdade universal e medindo com ele situações diferentes em outros países, considerando-os como “desvios” do conceito “ideal”. (apud SANTOS, 1978a, p.27).

A revisão crítica do conceito clássico de região, da relação entre geografia geral e

regional e dos métodos geográficos são discussões preparatórias para a propositura de um

modelo que Milton Santos apresenta na terceira parte da obra onde são expostos os princípios

gerais de uma geografia urbana para países subdesenvolvidos como ponto de partida para os

estudos regionais:

Em todos os casos, e a partir de novas constatações, é preciso elaborar uma generalização, esforço que nos parece tanto mais útil e necessário quanto servirá de ponto de partida para novos estudos regionais e quiçá para novos progressos, seja na

�52

geografia - e aqui devemos dizê-lo sem pretensão -, seja nas disciplinas afins. (SANTOS, 1978a, p.53).

A generalização, contudo, é enfrentada com uma cautela similar à utilizada para a

conceituação do espaço que em muito se deve à preocupação de Milton Santos em não

escapar à realidade e pelo pouco conhecimento acumulado até então acerca da realidade dos

países subdesenvolvidos.

Compreendendo a necessidade de conferir ao espaço a dinâmica necessária para

captar o movimento da realidade e a necessidade de incluir em análise as variáveis externas

que incidem nas transformações espaciais e que escapam do conceito tradicional de região,

Milton Santos empreende o diálogo interdisciplinar com a economia política.

Assim, privilegia o enfoque econômico nos estudos dos países subdesenvolvidos

no intuito de conferir movimento à análise do espaço, internalizando para o método o aspecto

da dependência entre uma decisão exógena à região e aos seus habitantes, em uma articulação

dinâmica entre os mecanismos particulares e os mecanismos gerais sobre o espaço que

funcionam como elos entre a geografia geral e a regional

No diálogo com a economia política, Milton Santos explicita sua preocupação

coma a linguagem adequada no trato interdisciplinar, a fim de evitar a transposição de

conceitos de uma disciplina a outra de forma metafórica e sem operacionalidade.

Se por um lado, a relação com a economia política traz vantagens como a

possibilidade de uma aproximação dinâmica e da inclusão de fatores econômicos para a

análise dos países subdesenvolvidos, por outro lado, a geografia perde em operacionalidade

ao tomar por sinônimos o espaço econômico e o espaço geográfico.

Milton Santos conceitua o espaço geográfico em O trabalho do geógrafo no

Terceiro Mundo, como um conjunto composto de massas, fluxos e tempo. Fluxos são os

resultados diretos ou indireto das ações que atravessam as massas, e estas, são as

materialidades perpassadas pelos fluxos. A interação entre fixos e fluxos expressa a realidade

de cada lugar, constituindo o objeto da geografia. A autonomia dos fluxos é relativa na medida

em que depende de uma adaptação às diferentes formas de combinação necessárias à inserção

em uma base geográfica concreta.

As deformações de uma base geográfica em muito se devem à composição de

tempos inscrita no espaço. Para Milton Santos, o espaço acumula diferentes tempos que se

�53

manifestam nas rugosidades, submetendo a interação entre fixos e fluxos a mudanças

quantitativas e qualitativas. Ao se referir às discussões em torno dos conceitos de espaço

econômico e espaço geográfico que reduzem o espaço geográfico ao espaço concreto, Milton

Santos afirma:

Muitos geógrafos, porém chocados por tal definição, apelam frequentemente para a noção de rugosidade do espaço - expressão criada por Tricart para a geomorfologia no intuito de mostrar como, tendo o passado geográfico e histórico modelado paisagens diferentes, tudo o que nelas se superpõe não pode ser indiferente a essa aquisição. (SANTOS, 1978a, p.72).

A noção de rugosidade do espaço, termo criado por Tricart (1920-2003) para a

geomorfologia, faz alusão às modelagens sobrepostas à paisagem, oriundas do passado

geográfico e histórico e que participam das ações que nelas incidem. O espaço assim fornece

uma base que integra todos os tempos. Ainda que cada subespaço comporte atividades e

equipamentos de diversas épocas, o espaço é definido a partir de sua estrutura e organização.

Para tratar das diversas divisões do espaço, Milton Santos propõe a distinção entre

espaço-paisagem a escala do espaço. A primeira se refere às diversas formas de organização

expressas nas aparências concretas do espaço, a segunda escala abrange, do ponto de vista

genético, a estrutura das atividades de determinado espaço-paisagem e os respectivos níveis

de decisão. Ocorre que, para o estudo das interações entre os fixos e os fluxos que compõem o

espaço, é necessário alcançar os níveis decisórios das atividades que o caracterizam, o que

implica em ultrapassar a escala do espaço-paisagem.

Por conseguinte, cada atividade tem um reflexo espacial e uma escala espacial diferentes, dependendo tanto do nível de desenvolvimento econômico como do próprio nível de atividade. É essa escala que deve corresponder a escala de estudo. Entretanto, se alguns dos fluxos relativos à atividade em questão podem ser colocados em níveis inferiores, o mesmo não ocorre com os fluxos de decisão. Ora, é a estes que se vinculam, direta ou indiretamente, as forças de organização e de reorganização do espaço. (SANTOS, 1978a, p. 76).

As noções de massas, fluxos, rugosidades, tempos espaciais, paisagem e escala,

delimitam, assim, tanto o objeto quanto as categorias de análise que são próprias à geografia,

incorporando conceitos da economia política de forma coerente e operacional, necessária ao

diálogo interdisciplinar qualificado, com a ressalva de que nenhum desses elementos pode ser

considerados por si mesmo, o que nos sinaliza, em O trabalho do geógrafo no Terceiro

�54

Mundo, a preocupação de Milton Santos em considerar tanto a análise quanto a síntese, a

partir das relações estabelecidas entre as categorias, para a compreensão dinâmica e complexa

da atualidade do espaço.

Para a análise das forças de organização e reorganização do espaço, Milton Santos

propõe um modelo geográfico qualitativo que subsidie o estudo regional dos países

subdesenvolvidos e que alcance, para além das técnicas de grupo que marcam as relações

entre grupos humanos e meio geográfico, os imperativos exógenos que incidem sobre a

dinâmica espacial. Milton Santos elege a rede urbana como unidade de análise, assim

definida:

Seria o resultado de um equilíbrio instável de massas e fluxos cujas tendências à concentração e à dispersão variam no tempo e estão em relação com os dados estruturais e técnicos de ordem econômica, sociocultural e política. A rede é um momento nessa combinação que evolui sem cessar: as diferentes formas de organização e dominação do espaço pelas aglomerações - formas sempre provisórias - são a consequência desse equilíbrio. (SANTOS, 1978a, p. 119, grifo do autor).

A distinção entre a técnica, vista como modificação e intervenção de grupos

humanos a seu entorno imediato, conceito que permeia a noção tradicional de região e a

técnica como apresentada no conceito de rede urbana, qualificando dados relacionados aos

aspectos econômicos, socioculturais e políticos marca o início de suas reflexões quanto ao

papel da técnica na organização espacial. A técnica surge em seu segundo significado e ainda

de forma preliminar em O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo, se considerarmos o

amadurecimento que sofrerá o conceito ao longo da trajetória intelectual de Milton Santos, até

chegar ao seu papel de mediador entre a universalidade e a particularidade, o sistema de

objetos e o sistema de ação, traduzindo-se como a base material e ideológica para a

compreensão do planeta como um todo, extensiva e detalhadamente, no contexto da

globalização.

O salto qualitativo no tratamento da categoria técnica será uma solução

metodológica para as questões relacionadas à periodização do espaço e para a ascensão da

categoria lugar como categoria totalizante do espaço, questões trabalhadas detalhadamente em

A natureza do espaço.

Em O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo, ao tratar da rede mundial como

unidade a ser considerada para a análise regional dos países subdesenvolvidos, Milton Santos

�55

contextualiza o período para estabelecer as relações necessárias entre países desenvolvidos e

subdesenvolvidos. É condição para uma efetiva análise das transformações qualitativas e

quantitativas nas cidades do Terceiro Mundo, a consideração teórica de tais relações, cuja

origem localiza-se em nível mundial. O trecho que segue, ao contextualizar as relações entre

países desenvolvidos e subdesenvolvidos, registra o momento em que Milton Santos inicia

uma aproximação ao conceito de técnica diverso do tradicionalmente adotado para a geografia

regional. Conceito que se expandirá em seu pensamento, culminando em uma categoria de

análise do espaço extremamente importante em sua epistemologia.

A economia internacional do pós-guerra tem características cada vez mais diferentes do período precedente. Com efeito, as necessidades da grande indústria fizeram evoluir, uma após a outra, a importância da tecnologia, da publicidade e o peso das decisões tomadas, seja pelos “gigantes” industriais, seja pelos governos, em nome e a pedido das grandes empresas. Observa-se um paralelismo entre os fatores tecnológicos, políticos e econômicos (no sentido próprio do termo). Assim, a economia dita “generalizada” afirma-se em função de desnivelamentos que se multiplicam a cada dia. Tais desvios, geradores de dominação igualmente crescente, fundam-se na tecnologia e na política, de que dependem os fluxos econômicos e, mais precisamente, monetários. O equilíbrio perdido é restabelecido a cada dia a expensas de um dos parceiros desse jogo, o que vem a constituir-se na fonte mesma de uma solidariedade crescente. As relações baseiam-se na cooperação competitiva entre os países desenvolvidos e a dominação dos países “industriais” sobre os países subdesenvolvidos. A competição entre os países desenvolvidos origina-se no papel representado pela história própria de cada país ou região e na importância recente das localizações em função das técnicas novas. Uma especialização vai se afirmando mais e mais, na medida mesma em que as tecnologias de rentabilidade se associam para isso. (SANTOS, 1978a, p. 96, grifo nosso).

Milton Santos passa então a apresentação dos modelos de elaboração para a

análise da formação e dinâmica das redes urbanas. O modelo é composto pela combinação de

fatores essenciais e de submodelos. Os submodelos são os fatores de transformação das redes

que condicionam o papel dos fatores essenciais; a lista não se pretende exaustiva e engloba o

tamanho dos países, a idade da colonização, a organização política e o sistema de governo,

comércio internacional e tipos de atividades econômicas, produtividade, composição da

população, etc.

Para os modelos gerais, Milton Santos elenca três fatores essenciais: as massas, os

fluxos e o tempo. As massas são as formas concretas assumidas pelas diversas redes urbanas,

as características da população global, urbana e rural e sua produção, além das características

econômicas em diferentes níveis (consumo e produtividade) e suas formas nas diferentes

redes (rodoviária, marítima, ferroviária), com suas instalações e utilização. Os fluxos se

�56

relacionam com o movimento da distribuição da poupança, do consumo, da origem e da

distribuição da produção das e nas cidades. A população também é geradora de fluxo,

considerando a dinâmica, a duração dos deslocamentos e seus motivos.

O tempo pondera os dois primeiros fatores e sinaliza a idade técnica de um fator

em relação ao outro. Como as redes urbanas são o resultado do equilíbrio de massas e fluxos,

será o tempo o mediador necessário para a análise das particularidades regionais. Por

exemplo, a instalação e a eficiência dos fatores de evolução rápida como transportes e

comunicações estão subordinadas aos fatores de evolução lenta, como as estruturas

socioeconômicas.

Quanto às estruturas sociais, estas sempre ficam em atraso em relação às

estruturas econômicas e ambas são influenciadas diretamente pela evolução dos países

industriais. Como processo de industrialização é um fator dinâmico e motor, por excelência,

esse quadro é suscetível de mudança a depender de quão os aglomerados detêm capacidade de

absorver as atividades econômicas e sociais, como por exemplo, atrair fluxos de pessoas,

produtos, poupança e liberar fluxos de mercadorias e comunicações.

O que chamamos “espaço-tempo” reveste-se aqui de uma grande importância. A distância, não num sentido propriamente físico, mas virtual (tempo, preço), pode tornar possível a instalação, em condições de rentabilidade aceitáveis, de uma atividade industrial ou de serviços numa aglomeração longínqua; a tendência à concentração de algumas indústrias e serviços, sendo anulada ou freada pela distância. (SANTOS, 1978a, p. 111).

O tempo assume então uma dimensão espacial, qualificando a rede urbana como

um momento da combinação entre as massas e os fluxos; rede sujeita à evolução contínua,

cujo equilíbrio momentâneo e instável é expresso nas diferentes formas de organização e

dominação do espaço.

�57

Capítulo 6. Semiose do espaço dos países subdesenvolvidos

O raciocínio deliberado de Milton Santos na busca pela operacionalidade e

coerência do método acerca do espaço dos países subdesenvolvidos é uma semiose marcada

pelos propósitos de seu pensamento guiados pela busca daquilo que é admirável em si

mesmo, localizado no futuro.

A verdade como princípio normativo é viva e dinâmica assim como o é a busca de

um intelectual dentro de determinada comunidade de intelectuais. O ideal sempre se localiza

no futuro e está sob o domínio da categoria da primeiridade, o que significa dizer que é em si

mesmo, independe da relação com quaisquer outros.

Dito isso, artificialmente aproximaremos o ideal em Milton Santos ao sentimento

de empatia ou amor à humanidade, que em sua trajetória de geógrafo se guia pelo desejo de

alcançar uma geografia prospectiva para viabilizar o espaço solidariamente habitado. Esse

desejo é um continuum em sua trajetória de intelectual e, por ser desejo vivo, se manifestou

para o período analisado, em forma do propósito de construir alternativas para retornar às

populações dos países subdesenvolvidos, que ele afetivamente chama de “nossos”, a

dignidade:

Por isso, e urgentemente, estão a reclamar que se imaginem alternativas válidas, fundadas na especificidade de nossos países e preocupadas em atribuir a maioria das populações interessadas aqueles bens, serviços e valores que restituam a cada homem a possibilidade de viver dignamente. (SANTOS, 1979, p. 11).

Milton Santos parte do entendimento que as características próprias ao espaço dos

países do Terceiro Mundo derivam de uma história espacial seletiva vinculada a uma

imposição exógena ao país, cuja origem remota vem de sistemas representativos de interesses

distantes.

Finalmente, um plano revela, sem dúvida alguma, as tendências metodológicas e ideológicas de seu autor e os objetivos que ele pretende atingir com o seu trabalho. Para um geógrafo que trabalha para ou num país subdesenvolvido, isto é muito importante: um estudo sem interesse para as populações desses países encerra o risco de estragar o prestígio do país de onde o geógrafo é originário (sobretudo se se trata de um país desenvolvido), assim como o da própria geografia. (SANTOS, 1978a, p. 67).

�58

Para desenvolver um método capaz de descrever e explicar tais características era

necessário que o modelo comportasse alguns elementos, como os fatores exógenos à região e

o movimento da atualidade, operacionalizado a partir da internalização da dinâmica espacial e

da temporalidade.

Para propor o método, Milton Santos teve que ultrapassar alguns obstáculos

inerentes a formas sedimentadas do pensamento geográfico. Passamos a analisar a crítica por

ele empreendida, a partir da tese da irredutibilidade e da lógica da prescindibilidade entre as

categorias universais de Peirce. O intuito é demostrar o caráter triádico do pensamento de

Milton Santos no trato com as categorias do espaço em O trabalho do geógrafo no Terceiro

Mundo, que ele denomina de unidades espaciais:

Isso equivale a dizer que não se pode isolar unidades espaciais como se estas constituíssem entidades que oferecem por i mesmas todos os elementos de sua própria interpretação, sob pena de se partir de uma análise incompleta para se chegar a uma síntese imperfeita. (SANTOS, 1978a, p. 76).

Em Peirce, no plano do pensamento, qualquer geógrafo que, ao partir do mundo

físico, se limite a descrever as relações entre o meio geográfico e o homem terá um

pensamento marcado pela secundidade : 36

Again, the kind of thought of those dualistic philosophers who are fond of laying down propositions as if there were only two alternatives, and no gradual shading off between them, as when they say that in trying to find a law in a phenomenon I commit myself to the proposition that law bears absolute sway in nature, such thought is marked by Secondness. (CP 1.325) 37

Toda teorização está sob a categoria da terceiridade, uma vez que construída a

partir da linguagem como convenção. Para a análise do caráter de secundidade que marca o

pensamento de teóricos que constroem suas teorias a partir de relações duais, é necessário

recorrer às combinações entre as categorias que expressam desde formas genuínas a formas

degeneradas de signo, com base na lógica de que a prescindibilidade entre as categorias não é

um processo recíproco. Em termos categóricos, é possível supor um primeiro sem um

As categorias são tratadas no Capítulo 1.Semiótica na estrutura filosófica de Peirce.36

Novamente, o tipo de pensamento daqueles filósofos dualistas que gostam de estabelecer proposições como se houvesse 37

apenas duas alternativas, e nenhum sombreamento gradual entre elas, como quando dizem que ao tentar encontrar uma lei em um fenômeno eu me comprometo com a proposição de que a lei tem absoluta influência na natureza, tal pensamento é marcado pela secundidade.

�59

segundo, mas não um segundo sem um primeiro, assim como é possível supor um segundo

sem um terceiro, mas não um terceiro sem um segundo e sem um primeiro.

A terceiridade não pode prescindir nem da secundidade nem da primeiridade e a

secundidade da terceridade é uma forma degenerada de pensamento. É possível, então, estar

sob o comando da terceiridade, como no caso do teórico que constrói pela linguagem a sua

teoria e, ainda assim, ter um pensamento marcado pela secundidade.

Nosso propósito, a partir da análise das três obras selecionadas para a pesquisa

que tratam diretamente da teoria geográfica, é demonstrar o caráter triádico do pensamento de

Milton Santos. Inicialmente, trataremos de demonstrar, a partir das mônadas, díadas e tríadas,

aspectos selecionados da análise crítica de Milton Santos à relação entre geografia geral e

regional, ao conceito clássico de região e aos métodos da analogia e da comparação presentes

em O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo.

Retomamos a assertiva de que a semiótica extrai seus princípios da matemática. A

tese da irredutibilidade de Peirce, análoga a tese da prescindibilidade, estatui que existem

apenas três tipos fundamentais de categorias fundamentais de relação, com base em três

elementos: mônadas, díadas e tríadas.

Ao se combinar tríadas é possível obter relações de quaisquer ordens maiores do

que uma tríada, denominadas políadas; assim, uma tríada e uma mônada gera uma relação de

quatro elementos; e uma díada e uma tríada gera uma relação de cinco elementos, e assim

segue. Em operação reversa, é possível reduzir políadas em tríadas, contudo, não é possível

reduzir a tríade em díadas, nem díadas em mônadas.

Uma díada é uma relação irredutível entre dois termos, modelo lógico de Peirce

para a secundidade, que utilizaremos para a análise do pensamento de Milton Santos, tanto

para sua análise crítica à geografia clássica, como para seu pensamento acerca da

interdisciplinaridade, método e categorias de análise para, posteriormente, apresentarmos a

semiose da geografia urbana dos países subdesenvolvidos.

Em O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo, Milton Santos analisa

criticamente a assertiva de que cabe à geografia geral estabelecer princípios a partir de

situações reais levantadas em diferentes espaços pela geografia regional que, por sua vez, a

subsidiará com informações trazidas do ‘concreto’. Tal assertiva nos coloca diante de uma

relação baseada na secundidade da terceiridade, que pode ser representada como uma relação

�60

diádica, uma vez que expressa relação entre dois elementos. O termo ‘concreto’ remete em

secundidade ao termo ‘abstrato’; assim como o termo ‘dia’ remete em secundidade ao termo

‘noite’. São termos definidos a partir de alteridade, por oposição. Assim ocorre com o par

geografia geral e regional, cuja base de relação está no termo ‘concreto’:

Na verdade, o contraste entre a geografia Geral e a geografia Regional era menor antigamente. Achavam-se elas mais próximas uma da outra, quer pelas questões colocadas, quer pelo vocabulário. Daí um certo paralelismo entre ambas, estando a geografia Geral bastante próxima das preocupações com o “concreto”, ou seja, aquilo que é sensível num dado lugar, sendo esse “concreto” considerado como a própria característica da geografia Regional. A passagem de uma para outra era muito simples, graças à idéia de uma causalidade fundada no “concreto” que estava na base desses dois ramos da geografia.

Essa mesma base de análise crítica às relações de causalidade advindas do par

concreto/abstrato é dirigida aos métodos da comparação e da analogia que transportam dados

de determinada porção do espaço para outra, desconsiderando a complexidade das relações de

incidência. Essa transposição é um impedimento para o estudo das especificidades das

dinâmicas dos países subdesenvolvidos e reforça o pensamento equivocado de que o que se

passa com a urbanização nos países subdesenvolvidos é um sistema idêntico pelo qual

passaram os países industrializados. E aqui se faz necessário novamente citar Milton Santos,

quando procede à critica à noção clássica de região, com a agudez de um raciocínio lógico

atento à complexidade da atualidade e avesso ao estabelecimento de relações duais:

Uma geografia Geral fundada numa geografia dita regional acabaria por atribuir um lugar aberrante a relações evidentemente falsas, relações verdadeiramente desprovidas de autonomia, como as que se tecem diretamente entre grupos humanos e meio geográfico. Toda busca de uma causalidade entre esses dois dados conduz inevitavelmente a erros. (SANTOS, 1978a, p. 17).

�61

Figura 3 - Díadas na geografia

!

Fonte: Elaboração nossa, com base em Peirce.

A figura 3 reduz em gráfico as explicações já desenvolvidas: o R representa a

díada que traz em relação dois termos, sem possibilidade da inclusão de um terceiro: assim

ocorre para os pares: concreto e abstrato, geografia geral e geografia regional, grupo humano

e meio geográfico.

A causalidade estabelecida entre a geografia geral e a regional baseada na idéia de

concreto, dificulta o acesso da teoria geográfica à complexidade das relações que marcam

características dinâmicas e complexas da atualidade. Complexidade que demanda que a

passagem entre o empírico e o abstrato não se dê sob o domínio da categoria da secundidade.

Sem o domínio do abstrato, tradicionalmente exclusivo da geografia geral, a geografia

regional não acessa a realidade concreta das redes urbanas dos países subdesenvolvidos. É um

desafio epistemológico que exige que a relação entre empiria e abstração se dê sob a regência

da terceiridade, onde as relações, postas em tríada, não podem ser reduzidas a relações duais

como nas díadas apresentadas na figura 3.

É possível que esse paralelismo entre as noções do “concreto” tenham prejudicado a geografia Geral, e mesmo a geografia Regional. De fato, a complexidade das relações, aparentemente simples, a partir das quais a realidade dita regional se faz e se desfaz é cada vez maior; assim, o instrumento teórico aplicado à interpretação da tendência torna-se cada vez mais abstrato. Não basta trabalhar apenas com relações de causalidade. (SANTOS, 1978a, p.14).

�62

Para escapar às restrições epistemológicas inerentes às relações de secundidade e

incluir o fator dinâmico à análise, Milton Santos propõe um modelo de trabalho em que o

conhecimento dos mecanismos tenha prioridade, por meio da análise de suas diferentes

combinações de intensidade e fusão, no acesso à dinâmica do espaço nos países

subdesenvolvidos.

Assim, privilegia o enfoque econômico nos estudos dos países subdesenvolvidos

no intuito de conferir movimento à análise do espaço, internalizando para o método o aspecto

da dependência entre uma decisão exógena à região e aos seus habitantes, em uma articulação

dinâmica entre os mecanismos particulares e os mecanismos gerais sobre o espaço que

funcionam como elos entre a geografia geral e a regional:

De fato, os mecanismos particulares agem diferentemente conforme suas origens, seu dinamismo e as condições preexistentes do meio de propagação. E o conhecimento dos mecanismos gerais, ou seja, da generalização desses mecanismos sobre o espaço dado - e aí parece localizar-se o interesse da geografia Regional - supõe não apenas o conhecimento do mecanismo de um dos fatores ou de uma das condições particulares, como ainda a apreensão de formas e tendências de interação dos diferentes fatores presentes, bem como a apreciação das formas passíveis de representação no espaço dessas modalidades de ação e interação. (SANTOS, 1978a, p.51).

Mas como apreender as formas e tendências de interação dos diferentes fatores

que incidem em determinada região, se o conceito clássico de região também se sustenta em

uma díada entre grupo humano e meio geográfico? Para superar esse obstáculo, Milton Santos

elege a rede urbana como unidade de análise, que encerra em seu conceito a noção de

equilíbrio provisório e combinação entre dados estruturais e técnicos.

Por mediação dos mecanismos, variáveis exógenas às redes urbanas são incluídas

no modelo, o que lhe permite estabelecer relações complexas entre os fatores de incidência. O

mecanismo é um elemento lógico que traz em relação as redes urbanas e os fatores exógenos

que nela incidem e atua como uma bifurcação, representada pela tríada na figura 4, onde três

termos estão em uma relação de tal natureza, que não pode ser reduzida a díada. A idéia de

analisar as redes urbanas a partir dos mecanismos impede que o pensamento atue de forma

pendular de abstrato para concreto, da geografia geral para a regional, do homem para o meio.

�63

Peirce exemplifica essa relação triádica da seguinte forma “uma estrada com uma

bifurcação é um análogo de um fato triplo, porque ela traz três termos em uma relação, uns

com os outros”. (W 5:244; NEM 4:307).

Figura 4 - Tríada mecanismos

!

Fonte: Elaboração nossa, com base em Peirce.

O conceito de redes urbanas de Milton Santos, internaliza os dados estruturais e

técnicos que sobre elas incidem, por ele qualificados como de ordem econômica, sociocultural

e política, o que exige também a internalização ao método de conceitos trazidos de outras

disciplinas, especialmente da economia política.

Seria o resultado de um equilíbrio instável de massas e fluxos cujas tendências à concentração e à dispersão variam no tempo e estão em relação com os dados estruturais e técnicos de ordem econômica, sociocultural e política. A rede é um momento nessa combinação que evolui sem cessar: as diferentes formas de organização e dominação do espaço pelas aglomerações - formas sempre provisórias - são a consequência desse equilíbrio. (SANTOS, 1978a, p. 119).

Os fatores exógenos que operam nas diferentes formas de organização do espaço

dos países subdesenvolvidos, motivados pela dominação das aglomerações capitalistas, são

incluídos na análise crítica de Milton Santos de forma operacional.

Milton Santos estabelece os limites necessários ao diálogo interdisciplinar com a

economia política, utilizando-se das variáveis econômicas para a análise das redes urbanas,

�64

sem perder a coerência na análise dos elementos constitutivos do espaço, enquanto objeto, por

excelência, da geografia.

Uma de preocupações de Milton Santos foi conferir ao espaço geográfico

protagonismo frente aos fatores exógenos de decisões distantes aos países subdesenvolvidos.

Para isso Milton Santos utiliza desenvolve dois conceitos fundamentais para a geografia que

marcarão toda a sua trajetória epistemológica: a paisagem derivada e as rugosidades.

O conceito de paisagem derivada se refere às “paisagens dos países 38

subdesenvolvidos derivadas das necessidades da economia dos países desenvolvidos, onde,

finalmente, encontra-se a decisão”. (SANTOS, 1978a, p. 15).

Figura 5 - Tríada paisagem derivada

!

Fonte: Elaboração nossa, com base em Peirce.

A tríada da figura 5 coloca em relação a paisagem derivada, os fatores exógenos e

as redes urbanas. As paisagens derivadas permitem que Milton Santos incorpore conceitos da

economia política, na perspectiva que cabe à geografia, para a análise das características das

“É a Maximilien Sorte que se deve a denominação “paisagens derivadas”. Desde que a adotou para as regiões dos países 38

subdesenvolvidos, ele tentou mostrar as relações entre a história dos países industriais e a dos países subdesenvolvidos. (SANTOS, 1987a, p. 123).

�65

redes urbanas dos países subdesenvolvidos. Em termos metodológicos, esses é um dos vários

exemplos da habilidade de Milton Santos em tratar de forma qualificada o diálogo

interdisciplinar, trazendo em tríada os três elementos necessários para conferir à geografia a

prerrogativa da análise do espaço.

Ao relacionarem os fatores externos às redes urbanas, as paisagens derivadas

incluem a escala externa à da rede urbana, aonde as decisões que afetam o espaço dos países

subdesenvolvidos são tomadas. Observamos em O trabalho do geógrafo no Terceiro

Mundo ,quando Milton Santos trata das redes mundiais e das paisagens derivadas, um

primeiro passo para o tratamento da categoria das verticalidades presentes em A natureza do

Espaço, categoria que relaciona os lugares da decisão e os lugares de incidência.

O segundo conceito que marca sua trajetória são as rugosidades, modelagens

sobrepostas à paisagem oriundas do passado geográfico e histórico e que participam das ações

que nelas incidem. São acúmulos temporais materializados no espaço, cristalizados

geograficamente.

Figura 6 - Tríada rugosidades

!

Fonte: Elaboração nossa, com base em Peirce.

Paisagem derivada e rugosidades são as duas categorias próprias à ciência

geográfica que abrem a perspectiva da análise espaço-temporal:

�66

Trata-se, efetivamente, de uma pesquisa do tempo espacial, que vem a ser uma síntese permanente, o resultado de uma acumulação, permitindo distinguir as diferentes porções da superfície do planeta, com suas estruturas e comportamentos próprios. Essas acumulação apresenta características de um precipitado: como na química, o que daí resulta adquire qualidades independentes das de seus componentes. (SANTOS, 1978a, p.75, grifo do autor).

Em função das rugosidades, o modo de produção passa a ser analisado

historicamente como precipitados, a partir das diferentes combinações com que o trabalho e

os recursos se distribuíram e se distribuem geograficamente nas redes urbanas. Combinações

que conferem especificidade aos lugares, todos sob as mesmas unidades de análise. Esse é um

caminho do pensamento de Milton Santos que segue rumo à busca da universalidade na

particularidade e terá seu ápice na categoria lugar, apresentada como categoria do espaço em

A natureza do Espaço.

Considerando que os componentes do espaço são os mesmos, o que irá

caracterizar o espaço dos países subdesenvolvidos é a qualidade e a quantidade desses

componentes. O espaço considerando como a combinação de massas (fixos) e fluxos,

mediados pela temporalidade terá, em forma de precipitado, características próprias nos

países do Terceiro Mundo. Tais características derivam de uma história espacial seletiva

vinculada a uma imposição exógena ao país. Para delimitar a semiose dos países urbanos,

partimos dos seguintes questionamentos: i) como se expressam esses combinados nas redes

urbanas dos países subdesenvolvidos? ii) qual dentre as categorias de análise do espaço em O

trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo tem o potencial de ocupar o lugar de forma

expressiva das redes urbanas, na maneira em que se apresentam no momento da análise?

Contextualizadas as categorias de análise, vamos situá-las nas posições lógico-

formais do signo de Peirce para então demonstrar a semiose do espaço dos países

subdesenvolvidos.

�67

Figura 7 - Semiose do espaço dos países subdesenvolvidos: rugosidades: representamen 1;

espaço dos países subdesenvolvidos: objeto dinâmico; derivado, seletivo, diferenciável,

estável, etc.: objetos imediatos; equilíbrio tempo-espacial instável (fixos e fluxos):

interpretante 1; rugosidades: representamen 2; equilíbrio tempo-espacial instável (fixos e

fluxos): interpretante 2.

!

Fonte: Elaboração nossa, com base em Parmentier, 1985.

A figura 7 representa a estrutura e o movimento da semiose do espaço dos países

subdesenvolvidos. O espaço dos países subdesenvolvidos ocupa a posição do objeto dinâmico

que corresponde, na teoria geográfica de Milton Santos, à parcela da realidade total que ele se

propôs a descrever e explicar em O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo. As rugosidades

ocupam a posição da forma expressiva do signo, seu representamen, ou seja, como o espaço

dos países subdesenvolvidos se mostram em atualidade. O que as rugosidades trazem para a

semiose são os aspectos do objeto dinâmico, as características do espaço dos países

subdesenvolvidos, características que ocupam a posição do objeto imediato do signo.

Cabe, então, descrever tais características que são postas em relação pelas

rugosidades. Nos países subdesenvolvidos o espaço é derivado, seletivo, aberto, descontínuo,

não integrado, incompletamente organizado, diferenciado e instável. O espaço é derivado

porque seus princípios de organização são estabelecidos a partir de decisões exógenas,

distantes das organizações locais; é seletivo porque os impactos das modernizações

comandadas externamente se manifestam em pontos definidos do espaço, uma seletividade

�68

baseada em interesses de grupos estrangeiros; é aberto, porque a modernização ao ser seletiva,

deixa desocupadas porções intercaladas do espaço, característica que o faz também

descontínuo, onde às zonas vazias sucedem as zonas ocupadas e as variáveis passam de

densidade à rarefação. Essas regiões caracterizam o espaço também como não integrado

porque, por ser aberto, ocorre a não integração das regiões vizinhas, geralmente em torno de

grandes metrópoles, podendo provocar migrações das zonas rurais para as urbanas e mesmo o

êxodo urbano entre cidades.

A instabilidade do espaço se refere à defasagem de impactos da modernização em

um mesmo lugar que causa desequilíbrios, resultado dos efeitos de força de origem distante e

do impacto de polos internos. Por ser descontínuo e fracionado e não integrado, o espaço dos

países subdesenvolvidos também é incompletamente organizado. Tais características devem

ser tomadas em conjunto em interrelação e são internalizadas como objetos imediatos pela

categoria rugosidades, forma expressiva ou representamen do espaço dos países

subdesenvolvidos.

A relação entre rugosidades e as características do espaço dos países

subdesenvolvidos produze o efeito de interpretação que é representado pelo equilíbrio instável

e dinâmico entre os fixos e os fluxos que os perpassam. Como o espaço para Milton

Santos,além de social é também temporal essa dinâmica espaço-temporal entre fixos e fluxos,

por ser instável, muda no tempo. Tais mudanças são expressas pelas rugosidades, em uma

cadeia de signo a signo.

Para a classificação dos signos de Peirce que trata da relação do signo consigo

mesmo, temos que todos os elementos que compõem a semiose são legi-signos por estarem

sob uma lei geral, que, no caso da figura 7, é a teoria geográfica dos países subdesenvolvidos

de Milton Santos.

A segunda classificação dos signos é dada a partir da segunda posição lógica – o

objeto (secundidade) –, que trata da maneira como o signo se refere ao objeto dinâmico. O

signo produz o efeito de interpretação (interpretante) a partir da relação que ele mantém com

seu objeto dinâmico, expressa no objeto imediato do signo.

Todos os elementos da semiose da figura 7 são símbolos, concepções derivadas da

abstração que têm o poder de denotar por força de lei, o que significa dizer que o signo e o

objeto estão relacionados somente porque o interpretante assim os relaciona. São signos por

�69

terceiridade, porque incluem e ultrapassam o âmbito da qualidade e da existência. O signo

enquanto símbolo se coloca em relação ao objeto para o interpretante, não por semelhança,

nem por modificação, mas em mediação pura, porque o interpretante assim o determina.

Pela classificação conforme a relação do signo em si (representamen) com o

objeto, temos a rugosidade como um símbolo, porque sua relação com o interpretante se dá

por associação de ideias. Contudo, como já tratado no capítulo 2, o modo de ser da estrutura

do símbolo como representativo da terceiridade apresenta um sistema de inclusão que institui

com o índice e como o ícone, análogo ao processo de prescindibilidade das categorias quando

tratadas como categorias de de relação e modalidade.

Assim, graças à aplicação da lógica das relações e a lógica da prescindibilidade

das categorias universais, podemos ver a secundidade na réplica de um legi-signo, quando ele

se apresenta como singular entre singulares. Ocorre que as rugosidades são um símbolo de

caráter indicial, uma vez que evocam, por associação de ideias, uma modificação espaço-

temporal.

As rugosidades são legi-signo, convencionadas por Milton Santos a representar o

espaço dos países subdesenvolvidos; sendo assim, estão como abstração, como generalização.

Mas, assim que se apresenta em uma rede urbana particular, vira uma réplica do legi-signo,

um caso particularizado.

A terceira tricomia da classificação dos signos em Peirce relaciona-se à forma

com que o signo é interpretado pela terceira posição lógica do signo (terceiridade), o

interpretante. O equilíbrio tempo-espacial instável entre os fixos e fluxos são interpretantes

lógicos por terem o efeito é de suscitar uma associação de idéias que remete tanto à

rugosidade quanto às características do espaço dos países subdesenvolvidos.

III

RENOVAÇÃO DA GEOGRAFIA, O ESPAÇO HUMANO

�71

Capítulo 7. Contextualização a partir das ciências normativas

A busca do ideal em Milton Santos pode ser representada pelo seu desejo em

ofertar à geografia uma construção teórica que incluísse a possibilidade real de um espaço

capaz de restituir aos homens a sua própria humanidade.

O pensamento de Milton Santos, como um intelectual dentro de uma comunidade

de intelectuais na busca pela verdade como um ideal normativo, mirou tanto em O trabalho

do geógrafo no Terceiro Mundo, quanto em Por uma geografia nova uma sistematização

teórica sobre o espaço humano que restituísse a dignidade a todos os homens e não apenas a

alguns deles.

A época da escritura de O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo, a ruptura

com as teorias de planejamento urbano vinculadas às teorias econômicas neoclássicas,

ocorreu a partir das experiências vividas por Milton Santos que o permitiram testemunhar o

impacto nos países do Terceiro Mundo da expansão capitalista e o apoio científico daquelas

teorias para essa expansão. O esforço com que rompeu com tais teorias foi o mesmo que o

redirecionou para novas teorizações em Por uma geografia nova:

No terço do século após a Segunda Guerra Mundial, um número avultado de geógrafos, consciente ou inconscientemente, deu uma colaboração ao mesmo tempo preciosa e perniciosa à expansão do capitalismo e à expansão de todas as formas de desigualdade e opressão, no Mundo tomado como um todo e no Terceiro Mundo em particular. Devemos nos preparar para uma ação no sentido oposto, que, nas condições atuais, exige coragem, tanto no estudo quanto na ação, a fim de tentar fornecer as bases de reconstrução de um espaço geográfico que seja realmente o espaço do homem, o espaço de toda a gente e não o espaço a serviço do capital e de alguns. (SANTOS, 1978b, p. 267).

Por uma geografia nova contém uma análise crítica à geografia, desde a sua

fundação até o pós-guerra, onde o espaço é estudado sem considerar seus mecanismos e sua

natureza social e cujos postulados se voltavam mais para um inventário que, para Milton

Santos, falsearam a visão correta da realidade, atuando como um biombo para a crise pela

qual a geografia passava:

�72

Resumindo, um pouco e em toda a parte, os geógrafos silenciam sobre o espaço. Algumas vezes silenciam também sobre o trabalho inovador de outros geógrafos e de outros espaciólogos. A geografia é viúva do espaço (Santos, 1976). Sua base de ensino e de pesquisa é a história dos historiadores, a natureza “natural” e a economia neoclássica, todas as três substituindo o espaço real, o das sociedades em seu devir, por qualquer coisa de estático ou simplesmente não existente (…). (SANTOS, 1978b, p. 118).

A revisão crítica que Milton Santos empreendeu em Por uma geografia nova

acerca da evolução da geografia não é gratuita, como não o foram as análises críticas às

dualidades presentes nas relações entre a geografia geral e regional, no conceito clássico de

região e nos métodos da analogia e comparação apresentadas em O trabalho do geógrafo no

Terceiro Mundo e que ele retoma em Por uma geografia nova; ambas têm por objetivo

levantar os problemas que impedem que a geografia enfrente a questão que sempre marcou o

propósito do pensamento de Milton Santos: apresentar uma ciência descritiva, explicativa e

prospectiva atenta às desigualdades sociais que se inscrevem no espaço social e histórico, cujo

objeto de estudo é o “espaço real, o das sociedades em seu devir” (SANTOS, 1978b, p. 118).

As circunstâncias individuais de Milton Santos, além de ampliarem seus

interlocutores para além da geografia, ampliaram seu diálogo interdisciplinar para além da

economia política presente em O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo, o que refletiu no

tratamento que ele deu ao tema espaço humano. Por uma geografia nova é a obra que marca

esse momento.

Milton Santos imbuído de um espírito crítico busca em Por uma geografia nova

um sistema explicativo pensando historicamente o espaço, a partir das referências a outras

áreas de conhecimento, instigadas pela usurpação do exercício pleno da cidadania brasileira,

forçada pelo contexto histórico de exceção pelo qual passava o Brasil à época:

É difícil falarmos de nós mesmos, mas pouco a pouco já vinha se dando, na minha obra, uma separação das prisões do empírico e a busca de uma construção mais filosófica. Quando escrevi Por uma geografia nova, vivia fora do país há muito tempo e a partir de um certo momento não conhecia mais o Brasil, porque o país mudou muito depois de 64, tanto em termos de materialidade como de relações sociais. Então, a filosofia era o único refúgio para mim, a única forma de continuar vivendo. O Brasil se distanciava e havia a incapacidade de apreender intelectualmente os outros países onde trabalhei e sobre os quais escrevi muito pouco. Escrevi um pouco mais sobre a Tanzânia, sobre a África Ocidental, porque era uma história capitalista menos complexa e com as similaridades dadas pela condição de Terceiro Mundo, questão que era central na minha base teórica. Isso me levou a Por uma geografia nova, que era expressão de uma linha de duplo combate: em relação aos meus colegas do Norte e em relação ao Brasil, onde eu estava pisando de volta. (LEITE, 1999).

�73

A ampliação do diálogo com a filosofia, com destaque para o existencialismo de

Sartre, marca a sistematização do esforço intelectual de Milton Santos, em Por uma geografia

nova, para o trato da totalidade e da consideração do futuro como o reino do possível.

O esforço dedicado pelo intelectual para sistematizar sua compreensão da

realidade está direcionado para o ideal a ser alcançado ao longo do tempo, sustentado pelo

desejo de chegar a um resultado coletivo futuro. Aproximamos o ideal de Milton Santos ao

sentimento de empatia ou amor à humanidade que se manifestou em O trabalho do geógrafo

no Terceiro Mundo, em forma do propósito de construir alternativas para retornar a dignidade

às populações dos países subdesenvolvidos.

Por isso, e urgentemente, estão a reclamar que se imaginem alternativas válidas, fundadas na especificidade de nossos países e preocupadas em atribuir a maioria das populações interessadas aqueles bens, serviços e valores que restituam a cada homem a possibilidade de viver dignamente. (SANTOS, 1979, p. 11).

Atualizaremos, novamente em um exercício artificial, esse sentimento de amor

aos homens que associamos ao ideal de Milton Santos na análise do ideal em O trabalho do

geógrafo no Terceiro Mundo, agora para Por uma geografia nova.

Por uma geografia nova já encerra em seu título o propósito direcionado à

construção de uma ciência prospectiva que tem por dever o alcance de resultados coletivos

para os homens, todos e não alguns e, para isso, a geografia deve dominar o futuro:

Uma ciência digna desse nome deve preocupar-se com o futuro não como um mero exercício acadêmico, mas para dominá-lo. Ela deve tentar dominar o futuro para o Homem, isto é, para todos os homens e não só para um pequeno número deles. Se o homem não for, também, um projeto, retorna ao animal que ele era quando, para assegurar a reprodução de sua própria existência, não comandava as forças naturais. (SANTOS, 1978b, p. 261).

Percebemos, assim, tanto em O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo quanto

em Por uma geografia nova, revela-se a importância da imaginação e do novo para Milton

Santos no trabalho de prospecção da geografia:

Categorias fundamentais como o homem, a natureza, as relações sociais estarão sempre presentes como instrumento de análise, embora a cada período histórico o seu conteúdo mude. É por isso que o passado não pode servir como mestre do presente, e toda tarefa pioneira exige do seu autor um esforço enorme para perder a memória, porque o novo é o ainda não feito ou ainda não codificado. O novo é, de certa forma, o desconhecido e só pode ser conceitualizado como imaginação e não com certezas. (SANTOS, 1978b, p. 25).

�74

Aquilo que Milton Santos denomina o ainda não codificado está sob a categoria

da primeiridade que rege sempre o primeiro elemento das tríadas que compõem as doutrinas

do edifício filosófico peirciano, apresentadas no capítulo 1, como por exemplo, o acaso na

cosmologia, o primeiro na matemática; a mônada na lógica das relações.

�75

Capítulo 8. Categorias de análise, temporalidade e método

Em Por uma geografia nova, Milton Santos sinaliza que a necessidade da

interdisciplinaridade, provocada pela ampliação das ciências sociais e do domínio das

técnicas. Essa ampliação se deu, principalmente a partir da Segunda Guerra Mundial, com as

novas condições e realidades a exigirem uma explicação própria, gerando diversas

contribuições entre disciplinas vizinhas, ampliando o leque de ciências afins à geografia:

Em realidade a lista de ciências chamadas afins da geografia que se escrevia acompanhada de nomes como história, sociologia, economia (se nos limitarmos à geografia humana) tornou-se muito mais longa porque devemos acrescentar-lhes outros domínios do saber como a tecnologia (ciência das forças produtivas), a ciência política, o urbanismo, a técnica gerencial, a semiologia, a epistemologia, os negócios internacionais, a história das ciências, a ciência das ciências, chamada cienciologia, e mesmo a lógica e a dialética. (SANTOS, 1978b, p. 137).

Contudo, a chamada às disciplinas para darem conta da realidade do pós-guerra,

demandou também a necessidade de uma interdisciplinaridade válida capaz de compreender

diversos aspectos de uma realidade total; em revés, a mesma realidade total retorna de forma

impositiva, como o critério único de trabalho e exige assim, determinados cuidados.

Para Milton Santos é a partir dos vários aspectos da realidade e sua

correspondência em cada disciplina, que a interdisciplinaridade pode ser feita. Se a existência

em atualidade é ponto de partida para a conceituação do espaço, ela também deve ser o

denominador comum para o diálogo interdisciplinar. Sem isso, o risco de transpor

significados de disciplinas afins, pode resultar em erros epistemológicos, em conhecimento

meramente metafórico, sem amparo na realidade na forma como se apresenta, em sua

atualidade.

A preocupação de Milton Santos em apreender o mundo, como se apresenta em

atualidade, está presente desde O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo. A renovação das

ciências se justifica pela obediência atenta que o intelectual deve manter ao que se apresenta à

sua observação, na busca pela verdade. Quando a ciência não se atenta a essa condição corre o

risco de se submeter ao princípio controlador de um preceito doutrinário, se satisfazendo com

os avanços outrora conquistados que acabam se cristalizando em dogmas.

�76

Milton Santos aponta a necessidade de uma construção teórica cujos conceitos e

modelos tenham o tônus necessário para propor uma nova escala de valores capaz de

descrever e explicar a relação dos fatos como se mostram na atualidade:

Essa questão não pode ser resolvida fora da história: é da observação dos fatos concretos, na forma como esse se apresentam concretamente, que se impõe aos diversos especialistas um novo elenco de relações, dispostas sistematicamente e cuja força para deslocar as teorias precedentemente vigentes vem do fato de que o novo sistema de ideias é tirado da própria realidade (…) (SANTOS, 1978b, p. 195).

Se a realidade dever ser vista em sua totalidade, para sua apreensão é necessário

que cada disciplina se posicione a partir de sua epistemologia, esforço que se inicia pela

delimitação do objeto e da elaboração de categorias fundamentais. Para Milton Santos, o

objeto da geografia é o espaço visto como um produto histórico, cuja teorização deve prever

categorias fundamentais para a análise da sua gênese, funcionamento e evolução.

Assim, a construção de um sistema próprio a cada disciplina pressupõe a

elaboração de categorias analíticas capazes de reproduzir a totalidade dos processos o que

exige do intelectual um trabalho de análise e de síntese, base da teorização:

A construção de um sistema interior a cada ciência particular só pode ser feita se as categorias de análise são ajustadas às categorias do real. É o chegar a uma síntese, e ninguém ignora que sem síntese não há ciência. O que, finalmente, se quer conhecer é a coisa toda. A análise é uma violência raciocinada, indispensável para ultrapassar o nível das coisas puramente descritivas, incompatíveis com o conhecimento dos fatos dinâmicos, das coisas que têm vida. (SANTOS, 1978b, p. 149, grifo nosso).

O espaço é definido em Por uma geografia nova como uma instância social que

se expressa a partir de um campo de forças de aceleração desigual, uma estrutura que se

manifesta por meio de processos e funções, cuja relação encerra tanto as relações sociais do

passado quanto as do presente. É simultaneamente um fato e um fator social, porque realiza a

dupla função de produto e produtor, determinante e determinado. O comportamento do espaço

de participar como produtor e determinante tem origem na categoria da rugosidade, já tratada

em O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo. É dela o papel de sinalizar o espaço como

acumulação de tempos. As formas cristalizadas do tempo no espaço atuam por inércia

dinâmica em relação às variáveis dos fluxos que incidem na materialidade:

�77

O espaço portanto é um testemunho; ele testemunha um momento de um modo de produção pela memória do espaço construído, das coisas fixadas na paisagem criada. Assim, o espaço é uma forma, uma forma durável, que não se desfaz paralelamente à mudança de processos; ao contrário, alguns processos se adaptam às formas preexistentes enquanto que outros criam novas formas para se inserir dentro dela.(SANTOS, 1978b, p. 173).

A especificidade do espaço como instância social em relação às outras instâncias é

delimitada por Milton Santos por sua característica de qualificar as formas como resultado e

condição para os processos históricos que incidem na materialidade. Ainda que a autonomia

da estrutura espacial seja relativa, como o são todas as instâncias sociais, ela é ativa quanto ao

resultado das variáveis históricas incidentes em sua estrutura.

É pelo espaço, qualificado como uma estrutura social dotado de inércia dinâmica

que os processos históricos são, na passagem do tempo, estruturados em formas.A qualidade

de inércia dinâmica do espaço tem sua elaboração marcada pela influência da noção de

prático-inerte em Sartre:

De fato, o espaço não pode ser apenas um reflexo do modo de produção atual porque é a memória dos modos de produção do passado. Ele sobrevive pela suas formas, à passagem dos modos de produção ou de seus momentos. Essa característica do prático-inerte de Sartre que se volta contra o seu criador é o fundamento mesmo da existência do espaço como estrutura social, capaz de agir e reagir sobre as demais estruturas da sociedade e sobre esta como um todo. As determinações sociais não podem ignorar as condições espaciais concretas preexistentes. Um modo de produção, não pode fazer tabula rasa das condições espaciais preexistentes. (SANTOS, 1978b, p. 182, grifos do autor).

Essas formas que participam da dialética global da sociedade são definidas por

Milton Santos como formas-conteúdo, que será explicitamente reconhecida por Milton Santos

como categoria de análise do espaço em A natureza do espaço, assumindo um papel

fundamental em sua epistemologia, ao conferir ao espaço o protagonismo necessário para a

construção do futuro.

Se as rugosidades assinalam que a estrutura espacial contém o passado no

presente, cabem às formas-conteúdo marcar, na estrutura espacial, o futuro no presente, uma

vez que as coisas construídas no espaço produzidos já são dotadas de intencionalidade e

significação. Em A natureza do espaço, Milton Santos tratará das finalidades presentes nas

formas-conteúdo como o resultado do encontro intencional da ação humana e os objetos, estes

já prenhes de significado. É importante sinalizar que, ainda que o conceito de forma-conteúdo

�78

esteja presente em Por uma geografia nova, sua qualificação como categoria de análise é

dada apenas em A natureza do espaço.

O enfoque que Milton Santos utiliza em Por uma geografia nova é tratar o espaço

humano como o resultado da produção, que resulta da mediação do homem sobre uma

natureza já social, por meio das técnicas e dos instrumentos de trabalho. Nesse processo, o

homem produz também o espaço. O uso social do tempo e do espaço estabelece uma ordem

espaço-temporal que qualifica os tipos de produção conforme a história e é responsável

também pela diferenciação dos lugares. A noção de técnica aliada aos instrumentos de

trabalho será amadurecida em seu pensamento ao qualificar o meio geográfico como um

meio-técnico-científico, incorporando na materialidade a mediação entre o homem e a

natureza modificada. Esse é um avanço em termos metodológicos, detalhadamente explorado

em A natureza do espaço.

A categoria técnica, tratada de forma inicial em O trabalho do geógrafo no

Terceiro Mundo, aparece em Por uma geografia nova como já sinalizadora da totalidade e das

verticalidades, categorias que compõem o conjunto das vinte e oito categorias de análise em A

natureza do espaço. O significado da categoria verticalidades, que possibilita a inclusão das

escalas exógenas e distantes de comando à análise do espaço, aparece de forma embrionária

em O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo, por meio da paisagem derivada.

Diz Milton Santos em Por uma geografia nova:

O fim do século XV, com o processo da navegação, a implantação da segurança no mar e a introdução do comércio e da colonização da América recém-desce aberta, é um marco importante na transformação do Ecúmeno. O fim do século XIX, com a formação dos grandes impérios, marca um momento fundamental nesse desenvolvimento. A estrada de ferro, o navio a vapor, o telégrafo sem fio, a revolução bancária mudam completamente a noção de distância e, como consequência, as escalas de tempo e de espaço. Nessa definição de momentos marcantes da história da humanidade, chegamos à época atual comandada pela revolução científico-tecnológica. As transformações espaciais provêem da intervenção simultânea de redes de influência operando simultaneamente em uma multiplicidades de escalas, desde a escala local até a escalada mundial. Chegamos, finalmente, a um mundo onde, melhor do que em qualquer outro período histórico, podemos falar de espaço total. (SANTOS, 1978, p. 207).

O presente modo de produção, ao considerarmos a relação do homem com a

natureza transformada, qualifica a totalidade. A internacionalização da produção e o consumo

de bens que se originam fora das fronteiras nacionais, caracterizados pela tecnologia e pela

�79

atuação das transnacionais, trazem um novo papel para as relações internacionais, cujas bases

materiais de produção se tornam cada vez mais estreitas. Os instrumentos atuais de

universalização advindos dos avanços tecnológicos e científicos funcionam de forma seletiva

nos diferentes espaços e nem todos têm acesso às suas benesses, por isso Milton Santos

denomina a universalização atual como universalização perversa:

Trata-se, portanto - como dissemos - de uma universalização perversa, porque sob o seu rótulo de generalização o que ela faz, sobretudo, é discriminar e aumentar, de um lado, a riqueza e o poder de alguns e, de outro lado, a pobreza e a fragilidade da imensa maioria. (SANTOS, 1978, p. 212).

Essa universalização é uma nova forma de totalização que, para Milton Santos

(1978b) exige categorias de análise capazes de revelar o mecanismo que envolve a totalidade

e o tempo.

As categorias fundamentais dos estudo do espaço são pois a totalidade e o tempo; mas como o acontecer do espaço não é homogêneo, a noção de lugar e de área se impõem, impondo ao mesmo tempo a categoria da escala, isto é, a noção de fração de espaço dentro do espaço total. Apenas o acontecer próprio a um lugar não é indiferente ao acontecer próprio a um outro lugar, exatamente pelo fato de que qualquer que seja o acontecer é um produto do movimento da sociedade total. (SANTOS, 1978b, p. 218).

Em Por uma geografia nova, percebemos influências de Sartre no pensamento de

Milton Santos na utilização dos conceitos de totalidade e totalização, reflexo de seu diálogo

expandido com a filosofia, aprofundado em A natureza do espaço.

A totalidade pode ser compreendida como a realidade em sua integralidade, é um

processo que não se resume à soma de suas partes. Para captar seu movimento é necessário

sua cisão e isso é feito pela totalização. A totalização, assim, é produto e a totalidade,

processo. “De fato, a noção de totalidade subentende a noção de tempo porque a realidade é

um estado, mas é também uma totalização em marcha.” (SANTOS, 1978b, p. 219).

Em Por uma geografia nova, Milton Santos relaciona a totalidade à estrutura, à

função e à forma que devem ser tratadas em combinação, são categorias imbricadas. Sua

intenção é possibilitar que, metodologicamente, os mecanismos de transformação seletiva no

espaço sejam apreendidos. Para as escalas, ele as trata como espaços e subespaços,

estabelecendo uma síntese para a vinculação da totalidade social, do tempo e das escalas de

análise.

�80

Chamamos a atenção para o termo acontecer, que incide várias vezes na obra Por

uma geografia nova, como o termo que tem o potencial de remeter à ideia do momento

materializado, a localização espaço-temporal da cisão da totalidade, que, em nosso

posicionamento, se expande em significado para a categoria evento, eleita como o coração da

teoria geográfica na obra A natureza do espaço. Será o evento a categoria de análise que

expressará metodologicamente o movimento do espaço. Diz Milton Santos, em Por uma

geografia nova:

Como o acontecer social, aqui enunciado como acontecer geográfico, depende da sociedade como um todo, cada acontecer particular representa uma determinação da sociedade como um todo e um lugar próprio que o define, acrescentando à sua dimensão social original, uma dimensão que é, de uma só vez, temporal e espacial. Lugares e área, regiões ou subespaços são, pois, unicamente áreas funcionais, cuja escala real depende dos processos. (SANTOS, 1978b, p. 219).

Para construir um quadro teórico universal, sem desconsiderar as realidades

próprias a cada fração do espaço, Milton Santos o qualifica como uma formação sócio-

espacial, com base na noção de formação econômica social da teoria marxista, conceito

elaborado por Karl Marx (1918-1883) e Friedrich Engels (1820-1895). Milton Santos (1977,

p. 81-82) conceitua formação econômica social como se referindo “à evolução diferencial das

sociedades, no seu quadro próprio e em relação com as forças externas de onde mais

frequentemente lhe provém o impulso”. Milton Santos não adiciona nenhum conteúdo

semântico ao significado de formação econômica social, ele apenas a compreende como

incluindo também a dimensão espacial e passa a chamá-la apenas de formação social,

subentendido seu caráter espacial.

A formação social, ao funcionar como um signo que remete às forças exógenas

que incidem sobre determinado porção do espaço, atuam de forma análoga à paisagem

derivada, presente em O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo. É uma solução

epistemológica que permite alcançar as especificidades dos lugares, uma vez que as

formações sociais são as estruturas produtivas e técnicas que exprimem os modos de

produção em determinada base territorial; o primeiro sendo gênero e a segunda, a espécie.

Pela formação social, é possível tratar a totalidade e a totalização, analisando as

especificidades espaciais:

O interesse dos estudos sobre as formações económicas e sociais está na possibilidade que eles oferecem de permitir o conhecimento de uma sociedade na

�81

sua totalidade e nas suas frações, mas sempre um conhecimento específico, apreendido num dado momento de sua evolução. O estudo genético permite reconhecer, a partir de sua filiação, as similaridades entre F.E.S.; mas isso não é suficiente. É preciso definir a especificidade de cada formação, o que a distingue das outras, e, no interior da F.E.S., a apreensão do particular como uma cisão do todo, um momento do todo, assim como o todo reproduzido numa de suas frações. (SANTOS, 1977, p. 84).

É da formação social também que noções como relações horizontais e relações

verticais são utilizadas por Milton Santos, com base em Lênin (1870-1924). As relações

verticais dão a estrutura interna da sociedade e as relações de horizontalidade as relações entre

as sociedades. Milton Santos adiciona o dado espacial às relações horizontais e verticais para

tratar das diferenciações entre as formações sociais, que para ele são espaciais, uma vez que

formações sociais não se realizam fora do espaço, tendo por base os modos de produção e a

evolução diferencial de cada sociedade em sua respectiva base territorial.

Se em O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo a unidade de análise geográfica

de estudo eleita foi a rede urbana, em Por uma geografia nova, Milton Santos elege como

unidade o estado-nação. Um estado-nação é constituído por três elementos: território, o povo

que o constitui e sua soberania que se expressa na competência normativa dada pelos limites

de seu território. Cabem ao estado-nação, a regulação da entrada dos investimentos, as

possibilidades de modernizações, a normatização do comércio exterior, etc.; fato que o

posiciona como o único intermediário entre o modo de produção internacional, cuja ação

capitalista se faz pelas transnacionais, e a sociedade nacional.

Ao papel de ator econômico do estado, soma-se o papel político, combinação que

confere ao estado-nação a opção de perpetuar a desigualdade social ou se opor às forças

externas que as desejam. Tal poder, contudo, é relativizado nas relações do estado com os

subespaços inscritos sob sua soberania, uma vez que se depara com a inércia dinâmica do

espaço, presente nas rugosidades:

No que diz respeito às relações entre os grupos humanos e o Estado, trata-se muito mais de ações dependentes, porque toda força do poder é insuficiente para negligenciar as “rugosidades” que definem cada pedaço do território; com efeito, sendo cada pedaço do território definido por uma história, por um arranjo específico dos homens, dos equipamentos e das atividades, nenhuma ação externa e nenhuma ação do Estado podem ser indiferentes a estas rugosidades. (SANTOS, 1978b, p. 227).

As combinações concretas das variáveis que incidem sob a ação das sociedades

territoriais em cada subespaço são condicionadas pelo modo de produção dominante à escala

�82

internacional, pelo sistema político, a partir da unidade de análise estado-nação. O espaço

como formação social, ao ser caracterizado pelas rugosidades, acumula os impactos dos

modos de produção precedentes e os de produção atual em uma combinação dialética das

forças produtivas em uma aceleração desigual que reflete nas diferenciações dos subespaços.

�83

Capítulo 9. Semiose do espaço humano como formação social

Em Por uma geografia nova, Milton Santos define a noção de paradigma como

algo que diz respeito à todas as ciências e que se refere a uma mudança completa na visão de

mundo, cujo sistema de representação deve ser justificado pela mudança do mundo nele

mesmo.

Uma nova concepção teórica deve comportar, a partir de seus conceitos e

modelos, varáveis suficientemente combinadas capazes de aprender a realidade dos fatos

atuais e representar a relação entre os significados novos e os fatos antigos, com seus

significados renovados. Sua preocupação se direciona para a renovação de uma disciplina que

empreenda uma interdisciplinaridade exigida pelos avanços de disciplinas vizinhas e afins,

frente às evoluções e mudanças da atualidade.

Em Por uma geografia nova, Milton Santos questiona duas possibilidades de

interdisciplinaridade. A primeira possibilidade de interdisciplinaridade aplicada à geografia é

a clássica, sustentada em uma proposta de colaboração bilateral entre a história e a geografia,

em que à primeira caberia o estudo dos acontecimentos no tempo; enquanto que à segunda

caberia o estudo dos mesmos acontecimentos no espaço.

Um segundo momento da interdisciplinaridade foi marcado por um movimento de

distanciamento, entre a geografia – que, em época contemporânea aos fundadores da

geografia moderna, pretendia se afirmar enquanto ciência autônoma, e as outras ciências

sociais, especificamente, a sociologia. Milton Santos (1978b) ilustra esse distanciamento e o

exemplifica na recusa de Vidal de La Blache (1845-1918) em conceber a possibilidade de

uma ciência sociológica particular, que estudasse as transformações da sociedade no espaço

geográfico.

O problema assim colocado, induz à conclusão de que a interdisciplinaridade é

uma questão relacional, e a solução interdisciplinar se apresenta com a aproximação entre

geografia e história e entre geografia e sociologia. O entendimento da interdisciplinaridade

como justaposição ou soma de conhecimentos está sob o domínio da categoria peirciana da

secundidade, é uma díada, representada na figura 8:

�84

Figura 8- Díadas na interdisciplinaridade

!

Fonte: Elaboração nossa, com base em Peirce.

A consequência para a geografia em tratar a interdisciplinaridade sob o domínio

da categoria da secundidade é estabelecer o início do pensamento a partir de relações de

dualidade que não possibilitam a expansão do raciocínio, confinando-o a um movimento

pendular que vai da natureza ao homem e do homem à natureza; ou, ainda, do tempo ao

espaço e do espaço ao tempo. Esse movimento não permite que o raciocínio alcance as

relações complexas e triádicas.

Em Por uma geografia nova, Milton Santos retorna à análise crítica em relação às

díadas que se apresentam na relação entre geografia geral e regional, na conceituação clássica

de região e nos métodos da analogia e da comparação, o que reforça nosso posicionamento

em situar O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo como a origem de sua trajetória como

intelectual na busca por uma nova geografia, como ciência prospectiva.

Na obra que agora analisamos, Milton Santos expande sua análise crítica para as

polarizações presentes no diálogo interdisciplinar da geografia com a história e com a

sociologia. Para a interdisciplinaridade tomada em secundidade, teremos como consequência

uma geografia fundada nas seguintes díadas:

�85

Figura 9 - Díadas na geografia

!

Fonte: Elaboração nossa, com base em Peirce.

Como um recurso de agudo raciocínio, Milton Santos rejeita essa aproximação e a

justifica para antecipar uma das questões centrais de seu pensamento, a temporalidade está

presente no espaço, questão já tratada em O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo e

posteriormente tratadas também em A natureza do espaço.

A noção de uma história que organiza os fenômenos no tempo e de uma geografia que os organiza no espaço [...] é responsável por um equívoco grave no domínio do método: porque a geografia, na realidade, deve ocupar-se em pesquisar como o tempo se torna espaço e de como o tempo passado e o tempo presente têm, cada qual, um papel específico no funcionamento do espaço atual. (SANTOS, 1978b, p. 135).

Para empreender a análise espaço-temporal Milton Santos qualifica o espaço pelas

rugosidades, já presentes em O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo e retomadas em Por

uma geografia nova para trazer em relação o passado, o presente e o espaço como uma

totalidade.

�86

Figura 10 - Tríada rugosidades, em Por uma geografia nova

!

Fonte: Elaboração nossa, com base em Peirce.

Além das rugosidades, Milton Santos inclui em Por uma geografia nova, a noção

de formas-conteúdo. As formas-conteúdo ainda não são explicitamente consideradas

categorias de análise por Milton Santos, como posteriormente aparecem em A natureza do

espaço, mas atuam como signos que, ao incluírem as finalidades nos objetos como marcas da

ação intencional do homem, são capazes de representar, materialmente no espaço, a intenção

do futuro no presente, conforme a figura 11:

�87

Figura 11 - Tríada formas-conteúdo

!

Fonte: Elaboração nossa, com base em Peirce.

Milton Santos sinaliza um empobrecimento da geografia ao correr o risco de

perder o homem social de vista e antecipa, assim, a segunda questão central, futuramente

tratada em A natureza do espaço e tratada de forma inicial em O trabalho do geógrafo no

Terceiro Mundo: o espaço é social e a natureza já é segunda natureza, em referência ao

marxismo. A dialética se dá assim entre o homem social e uma natureza socializada, em sua

totalidade. A técnica, antes associada à noção de modos de vida no conceito clássico de

região, começa a despontar no pensamento de Milton Santos associada ao caráter tecnológico

e científico da atualidade e sofrerá terá um tratamento conceitual próprio em A natureza do

espaço, alcançando o status de categoria de análise, cujo papel de mediação será de central

importância, na teoria e no método lá apresentado.

Se em O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo, Milton Santos situa os

mecanismos como responsáveis em por em relação os fatores exógenos e as redes urbanas,

em Por uma geografia nova esse papel cabe às formações sociais e, de forma ainda

�88

preliminar, às relações verticais e as relações horizontais. A formação social atua como signo

que tem o potencial de representar as forças exógenas que incidem sobre determinado porção

do espaço em atuação análoga à paisagem derivada, presente em O trabalho do geógrafo no

Terceiro Mundo. No caso da figura 12, a tríada é estabelecida tendo por elemento o estado-

nação, eleito por Milton Santos em Por uma geografia nova como unidade de análise do

espaço geográfico.

Figura 12 - Tríada formação social

!

Fonte: Elaboração nossa, com base em Peirce.

Entendemos que as relações verticais e as relações horizontais que aparecem em

Por uma geografia nova são, juntamente com a paisagem derivada, presente em O trabalho

do geógrafo no Terceiro Mundo, as origens do pensamento de Milton Santos que culmina nas

categorias verticalidades e horizontalidades em A natureza do espaço.

O estilo da escrita do intelectual e determinadas alusões que ocorrem de forma

recorrente em obras distintas são signos relevantes para identificar pontos que alinhavam

determinada ideia que, ao permanecer no tempo, nos possibilita a análise do propósito de

�89

Milton Santos em buscar a melhor forma de expressar tais ideias de forma operacional e

coerente.

Desde O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo, redigido em francês dez anos

antes de Por uma geografia nova, percebemos a constância de Milton Santos em escapar às

relações de causalidade e estabelecer relações complexas entre as categorias de análise que

caracterizam cada período analisado.

Para a análise semiótica das categorias miltonianas em Por uma geografia nova,

temos:

Figura 13 - Semiose do espaço em Por uma geografia nova: formação social: representamen

1; espaço: objeto dinâmico; rugosidades, formas-conteúdo, modos de produção, relações

verticais e horizontais, inércia dinâmica, totalidade e totalização: objetos imediatos; dialética

espacial: interpretante 1; formação social: representamen 2; dialética espacial: interpretante 2.

!

Fonte: Elaboração nossa, com base em Parmentier (1985).

A figura 13 representa a estrutura e o movimento da semiose do espaço em Por

uma geografia nova. O espaço ocupa a posição do objeto dinâmico que corresponde à parcela

da realidade total, a ser representada e interpretada na semiose do espaço como formação

social. O espaço, para Milton Santos é uma formação social, espécie do gênero modo de

produção. A distinção entre formação social e modo de produção tem sua relevância na

�90

medida em que Milton Santos dá à formação social o papel de diferenciação dos subespaços,

como resultado das diversas combinações de forças que atuam em nível de generalidade. Isso

permite que ela ocupe o lugar de representamen na semiose, como forma expressiva, ou seja,

como o espaço enquanto objeto dinâmico se mostra em atualidade:

Uma clara distinção entre a noção de modo de produção e de formação social é igualmente indispensável. Quanto à primeira, ela é responsável pelo valor das formas de toda espécie, inclusive as formas geográficas, em sua sucessão temporal: esse aspecto da interpretação da realidade lhe cabe. A noção de formação social nos oferece a possibilidade de interpretar a acumulação e a superposição das formas, a paisagem geográfica, inclusive. A categoria Formação Econômica Social é assim extremamente útil aos estudo de uma realidade nacional pelo fato de que não se aplica à Sociedade considerada em um sentido geral, mas a uma sociedade precisa, cuja especificidade e particularizamos devem ser realçados para que o estudo concreto de suas realidades autoriza depois uma ação igualmente concreta. (SANTOS, 1978b, p. 243, grifo do autor).

A formação social ocupa a posição da forma expressiva do signo, seu

representamen, ou seja, como o espaço se mostra. O que a formação social traz para a semiose

são aspectos do objeto dinâmico, o espaço, que ela está apta a internalizar no signo, enquanto

objetos imediatos.

A formação social inclui como objeto imediato do signo as rugosidades, as

formas-conteúdo, os modos de produção, as relações de verticalidade e de horizontalidade, a

inércia dinâmica, a totalidade e a totalização. As rugosidades são as persistências das formas

espaciais, herdadas dos modos de produção antigos e atuam como condição da realização

concreta de novos modos de produção. A relação estabelecida entre as rugosidades e o modo

de produção, que é gênero da formação social, permite que as rugosidades entrem como

objetos imediatos do signo.

Milton Santos qualifica o espaço como uma estrutura social ativa com autonomia

relativa e essa qualificação é dada, também, a partir da noção de inércia dinâmica, outro

objeto imediato da relação estabelecida entre a formação social e o espaço. As incidências das

forças produtivas no espaço ficam condicionadas às rugosidades e à inércia dinâmica, o que

possibilita que o espaço passe de um mero reflexo do modo de produção vigente para se

constituir também em memória dos modos de produção anteriores. Nessa combinação, o

espaço, como protagonista do movimento histórico e dialético entre as forças de produção, é

uma forma que também produz conteúdo, força explicativa possível por meio da noção de

�91

formas-conteúdo, que, posteriormente, serão trabalhadas de forma mais sistemática em A

natureza do espaço.

Na teoria geográfica presente em Por uma geografia nova, a internacionalização

do capital e a atuação das multinacionais pela política internacional e pela utilização da

tecnologia provocam uma atuação desigual e seletiva no espaço. Milton Santos associa o

resultado dessa internacionalização aos processos de totalidade e totalização, e os vincula à

formação social como espécie do modo de produção. Essa vinculação de sentido entre as

categorias totalidade e totalização, permite à formação social incluí-las como objetos

imediatos do signo, na semiose ora analisada:

Assim, a totalização universal, que é dada pelo presente, isto é, o presente modo de produção, não pode realizar-se (no sentido de materialização ou objetivação) senão através de uma outra totalização que nos é fornecida por intermédio do conceito de formação econômica e social. (…) Na verdade, nenhuma outra categoria poderia ser mais adequada ao estudo do espaço, porque essa categoria permite que não nos afastemos da realidade concreta. (SANTOS, 1978b, p. 213).

O papel dado ao conceito de paisagens derivadas em O trabalho do geógrafo no

Terceiro Mundo é substituído na semiose do espaço como formação social pelas noções de

verticalidade e horizontalidade. As relações horizontais se referem à estrutura interna das

sociedades e as verticais à relação entre as sociedades e o que ocorre em determinado país,

não só afeta, mas interessa a outros países. Milton Santos traz para a categoria de formação

social, a possibilidade de análise dos fatores exógenos e distantes das decisões dos grupos

hegemônicos mundiais:

Uma formação social não pode ser estudada sem que sejam considerados aqueles dois conjuntos de relações definidos, há tempo, por Lênin: as relações horizontais e as relações verticais. (…) Se a geografia, ou menos paroquial, as ciências do espaço desejam interpretar o espaço humano como o fato histórico que, antes de tudo, ele é, só a história da sociedade mundial e a história da sociedade local podem servir como fundamento à compreensão da realidade espacial e aos esforços para transformá-la, pondo-a ao serviço do homem. Pois a história não se escreve fora do espaço e o próprio espaço sendo social, não há sociedade a-espacial. (SANTOS, 1978b, p. 246).

A análise das categorias, que são incluídas na semiose como objeto imediato do

signo pelas formações sociais, não podem ser consideradas isoladamente. O movimento do

espaço como formação social ocorre pela combinação que estabelecem entre si as categorias.

Em cada território a ação das sociedades territoriais é condicionada pelos modos de produção

�92

dominantes à escala internacional e pela mediação do sistema político. A ação das sociedades

no território está sujeita também às características espaço-temporais presentes nos modos

anteriores de produção que precedem o modo de produção atual:

Dominado por um modo de produção, o mundo cria objetos segundo uma certa ordem histórica, uma história que envolve a totalidade dos países. É através de cada Formação Social que se cria e se recria, em permanência, uma ordem espacial de objetos que é paralela à ordem econômica, à ordem social, à ordem política, todas essas ordens atribuído um valor próprio particular, às coisas, aos homens e às ações promanando dela. Por isso, a Formação Social constituí o instrumento legítimo de explicação da sociedade e do espaço respectivo. (SANTOS, 1978b, p. 236).

Em Por uma geografia nova, a conceituação de espaço como formação social

produz o efeito de interpretação que é representado pelas forças de aceleração desigual

presentes na dialética espacial, a partir das massas ou fixos. Como o espaço para Milton

Santos, além de social é também temporal, essa dinâmica espacial tem seu movimento

expresso pelas formações sociais que registram as determinações históricas sucessivas de

signo a signo.

Para a classificação dos signos de Peirce que trata da relação do signo consigo

mesmo, temos que todos os elementos que compõem a semiose são legi-signos por estarem

sob uma lei geral, que, no caso da figura 13, é a teoria geográfica do espaço presente em Por

uma geografia nova.

A segunda classificação dos signos é dada a partir da segunda posição lógica – o

objeto (secundidade) –, que trata da maneira como o signo se refere ao objeto dinâmico. O

signo produz o efeito de interpretação (interpretante) a partir da relação que ele mantém com

seu objeto dinâmico, expressa no objeto imediato do signo. Todos os elementos da semiose da

figura 13 são símbolos, concepções derivadas da abstração que têm o poder de denotar por

força de lei, o que significa dizer que o signo e o objeto estão relacionados somente porque o

interpretante assim os relaciona. São signos por terceiridade, porque incluem e ultrapassam o

âmbito da qualidade e da existência. O signo enquanto símbolo se coloca em relação ao objeto

para o interpretante, não por semelhança, nem por modificação, mas em mediação pura,

porque o interpretante assim o determina.

Ainda na classificação conforme a relação do signo em si (representamen) com o

objeto, temos a formação social como um símbolo, porque sua relação com o interpretante se

dá por associação de ideias. A formação social é legi-signo, convencionada por Milton Santos

�93

a representar o espaço; sendo assim, está como generalização. Quando que se apresenta na

semiose, vira uma réplica do legi-Signo, um caso particularizado de determinada porção do

espaço analisado.

A terceira tricomia da classificação dos signos em Peirce relaciona-se à forma

com que o signo é interpretado pela terceira posição lógica do signo (terceiridade), o

interpretante. A dialética espacial presente no campo de forças de aceleração desigual é

interpretante lógico por ter o efeito de suscitar uma associação de idéias trazidas pela semiose

pelos objetos imediatos do signo. Essa associação de idéias é o resultado do potencial do

representamen, a formação social, em dizer do objeto dinâmico, o espaço. O signo, nessa

semiose específica, passa de um signo a outro, a partir da categoria da formação social que

expressa a diferenciação objetiva nas diversas formas de combinação resultantes das forças de

aceleração desigual que incidem no espaço.

IV

A FORÇA DO LUGAR E A ESCOLHA DO FUTURO

�95

Capítulo 10. Contextualização a partir das ciências normativas

Técnica, espaço e tempo (1994) reúne ensaios teóricos que tratam da relevância

da técnica em uma perspectiva histórica e do conceito de meio técnico-científico que aparece

na obra como resposta geográfica à globalização. A obra antecipa discussões acerca dos

conceitos que posteriormente aparecerão em categorias de análise que constituirão o método

apresentado em A natureza do espaço, em um único quadro teórico. A alusão à obra A

natureza do espaço aparece na introdução de Técnica, espaço e tempo da seguinte forma:

É certo que um projeto mais ambicioso continua em nosso espírito, isto é, a produção de um livro concebido deliberadamente para enfrentar, de forma sistemática, o conjunto de problemas que aqui estão sendo tratados de modo aparentemente fragmentário. Temos a esperança que esse projeto já em curso virá à luz dentro de mais algum tempo. Aliás, uma das razões do atraso na sua realização vem exatamente da dificuldade de transformar um projeto de pesquisa em um projeto de redação. Às vezes quanto mais se pesquisa e dados, inferências e ideias são acumulados, mais difícil se torna encontrar a forma de expressão que, num dado momento, apareça como sendo capaz de incluir, de maneira hierárquica, todos os aspectos da problemática abordada. Confiamos em que essa dificuldade formal seja daqui a pouco eliminada. (SANTOS, 1994, p. 11).

A natureza do espaço é, então, publicada dois anos depois de Milton Santos

redigir a introdução da obra Técnica, espaço e tempo. O cuidado de Milton Santos em

ultrapassar o discurso e empreender a análise e a síntese sobre o espaço que, desde o Trabalho

do geógrafo no terceiro mundo, permaneceu como objeto da ciência geográfica, foi o

resultado de um raciocínio deliberado em propor uma geografia com potencial de explicar a

atualidade e ser prospectiva na oferta de possibilidades para a construção de um mundo mais

humanitário. No período ora analisado, os propósitos do pensamento de Milton Santos podem

ser exemplificados por meio da seguinte passagem quando teoriza sobre a globalização:

O universo é, antes de tudo, um conjunto de possibilidades a concretizar, mas isto sempre é feito de maneira incompleta. Na época atual, e como nunca antes na evolução da humanidade, as condições-suporte da história permitem edificar um mundo novo. Dizer o que vai acontecer é sempre audacioso. No entanto, a partir das perspectivas fornecidas pelos dados que a ciência e a tecnologia põem à disposição da humanidade, pode-se imaginar que as regulações se abrandarão na escala mundial e que se fortalecerão nos estádios inferiores. Isso permitiria talvez que a união prevalecesse sobre a unificação. A regulação mundial é uma ordem imposta, a serviço de uma racionalidade dominante, mas não forçosamente superior. A questão, para nós, seria descobrir e pôr em prática novas racionalidades, em outros níveis e regulações mais consentâneas com a ordem desejada. Desejada pelos homens, lá onde eles vivem. (SANTOS, 1994, p. 54, grifo nosso).

�96

O propósito de ofertar uma geografia prospectiva foi tão marcadamente presente

que se materializou na busca permanente de Milton Santos pela elaboração de um quadro

teórico que comportasse um método composto pela combinação de categorias de análise do

espaço. Categorias que, dispostas em relação, fossem capazes de empiricização sobre o

mundo como se apresenta, em atualidade e em movimento. Ao tratar do sentido de perda da

totalidade na pós-modernidade, Milton Santos afirma:

A definição dada por muitos modernistas tem sido essa. A minha forma de trabalhar é por “empiricizar”. Em vez de me preocupar como o que é “ pós-modernismo”, me preocupo mais com a caracterização desta época, se ela forma ou não um conjunto coerente. Alguns dizem que não, que o mundo está desconstruído, que acabou o grande relato, que por isso não há teoria, não há mais ideologia. A minha impressão não é essa. Ao contrário, o mundo de hoje, na medida em que a totalidade se tornou empírica, permitiu mais facilmente a teorização. (SANTOS, 1994, p. 173).

Para Milton Santos, uma das causas que arrefeceu a busca por categorias de

análise, impedindo que os geógrafos ultrapassassem o âmbito do discurso sobre o espaço e se

distanciassem da análise do mundo, ocorreu pela sedimentação de categorias em conceitos

pelo enfoque marxista dogmático, que, pela ausência da análise necessária que deve

acompanhar a crítica, não foi capaz de evoluir seu sistema de pensamento. Para Milton Santos

uma crítica sem a análise fica reduzida à mobilização pelo discurso. Sem a análise que

precede à crítica não há possibilidade de renovação da disciplina geográfica e esta deve se

manter atenta à revisão do que o mundo é:

O que eu quero dizer com isso é que, se eu não aperfeiçoar os instrumentos analíticos, não chegarei a lugar nenhum, porque só o discurso não permite a análise. A construção teórica é diferente do discurso. A construção teórica é a busca de um sistema de instrumentos de análise que provém de uma visão da realidade e que permite, de um lado, intervir sobre a realidade como pensador, e, de outro, reconstruir permanentemente aquilo que se chamará ou não de teoria. (SANTOS, 1994, p. 161).

No capítulo 8, quando da análise da obra Por uma geografia nova, sinalizamos o

posicionamento de Milton Santos de que o intelectual deve empreender a análise qualificada

como “uma violência raciocinada” (SANTOS, 1978b, p. 149), para ultrapassar as questões

meramente descritivas e alcançar o conhecimento do mundo, que é dinâmico e vivo.

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É um posicionamento que sugere, primeiro, o esforço intelectual necessário à

sistematização e, segundo, o caráter de aprimoramento e busca constantes para a construção

de um quadro teórico e metodológico. Essa compreensão de que a teoria e o método devem

subserviência ao objeto, permitiu que seu pensamento se expandisse, aprimorando suas

categorias em busca da verdade, vista aqui como um ideal normativo, considerado ainda a

materialização dos propósitos de seu pensamento em um resultado prático para a comunidade

de intelectuais na qual ele se inseriu:

Não que eu deseje que se adote “uma” definição do espaço, mas tem que haver alguma, senão você não sabe o que está fazendo, não constrói uma epistemologia. A epistemologia vista como algo situado entre a teoria e o real: você constrói a teoria e ela própria lhe permite extrair uma epistemologia, isto é, o acesso ao real. E essa teoria também já veio do real por outro caminho, que é histórico, que é esse mundo novo que se está fazendo. (SANTOS, 1994, p. 163, grifo do autor).

A globalização, para Milton Santos é um paradigma para a compreensão da

realidade contemporânea que redimensiona as formas tradicionais de organização econômica

e que, em sua forma atual, resulta em uma distribuição desigual de renda e de direitos

fundamentais, a depender do território de determinada população.

A marca mais significativa da globalização é a uma convergência de momentos

possibilitada pela tecnociência, em um salto empírico para a compreensão do planeta como

um todo, extensiva e detalhadamente:

O casamento da técnica e da ciência, longamente preparado desde o século XVIII, veio reforçar a relação que, desde então, se esboçava entre ciência e produção. Em sua versão atual como tecnociência, está situada a base material e ideológica em que se fundam o discurso e a prática da globalização. (SANTOS, 1996, p.177).

Hoje, o que caracteriza a realidade, é a forma como os atores hegemônicos

manipulam as técnicas a serviço da mais valia em escala mundial, base do que Milton Santos

denominou de globalitarismo - discurso único de como a informação é dada à sociedade, onde

o dinheiro emerge em estado puro, como motor da vida econômica e social:

Eu chamo a globalização de globalitarismo, porque estamos vivendo uma nova fase de totalitarismo. O sistema político utiliza os sistemas técnicos contemporâneos para produzir a atual globalização, conduzindo-nos para formas de relações econômicas implacáveis, que não aceitam discussão, que exigem obediência imediata, sem a qual os atores são expulsos da cena ou permanecem dependentes, como se fossem escravos de novo. Escravos de uma lógica sem a qual o sistema econômico não funciona. Que outra vez, por isso mesmo, acaba sendo um sistema político. Esse globalitarismo também se manifesta nas próprias idéias que estão atrás de tudo. E, o

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que é mais grave, atrás da própria produção e difusão das idéias, do ensino e da pesquisa. Todos obedecem, de alguma maneira, aos parâmetros estabelecidos. Se estes não são respeitados, os transgressores são marginalizados, considerados residuais, desnecessários ou não-relevantes. É o chamado pensamento único. Algumas vozes críticas podem se manifestar, uma ou duas pessoas têm permissão para falar o que quiserem, para legitimar o discurso da democracia. Só que a estrutura do processo de produção das idéias se opõe e hostiliza essa produção de idéias autônoma e, por conseguinte, de alternativas. É uma forma de totalitarismo muito forte, insidiosa, porque se baseia em idéias que aparecem como centrais à própria idéia da democracia – liberdade de opinião, de imprensa, tolerância – utilizadas exatamente para suprimir a possibilidade de conhecimento do que é o mundo, do que são os países, os lugares. Eu chamo isso de tirania da informação, que, associada à tirania do dinheiro, resulta no globalitarismo. (LEITE, 1999).

A racionalidade hegemônica que opera para cumprir sua intencionalidade no

mundo é o neocapitalismo, que se utiliza da técnica atual e da política para dar ao movimento

da espacialidade um caráter hegemônico e impor um pensamento único aos lugares.

A manipulação das técnicas pelo capital global ocorre a partir de uma rede

integrada de fluxos financeiros, cujo movimento determina a economia e influencia a

sociedade. As demais técnicas não hegemônicas continuam existindo, mas agora são

hegemonizadas e isso ocorre pelo que Milton Santos denominou de convergência de

momentos:

Outra grande maravilha do nosso tempo é o que estamos chamando de unicidade dos momentos. Também poderíamos considerar esse fato como uma convergência dos momentos. Há quem prefira dizer que o tempo se unifica, mas não é disso que se trata. O que realmente se dá, nestes nossos dias, é a possibilidade de conhecer instantaneamente eventos longínquos e, assim, a possibilidade de perceber a sua simultaneidade. Quando, no mesmo instante, outro ponto é atingido e podemos conhecer o acontecer que ali se instalou, então estamos presenciando uma convergência dos momentos e sua unicidade se estabelece através das técnicas atuais de comunicação. (SANTOS, 1996 , p. 196, grifo do autor).

O estado da política é o outro elemento identificador da realidade, porque “as

técnicas apenas se realizam, tornando-se história, com a intermediação da política, isto é, da

política das empresas e das políticas dos Estados, conjunta ou separadamente” (SANTOS,

1996, p. 26). Para Milton Santos “as redes são um veículo de um movimento dialético que, de

uma parte, ao Mundo opõe o território e o lugar; e, de outra parte, confronta o lugar ao

território tomado como um todo” (SANTOS, 1996 , p. 270).

�99

O avanço do globalitarismo promove a exclusão sócio-espacial com a apropriação

seletiva de áreas do globo terrestre. Essa globalização tem de ser encarada a partir de dois

processos paralelos. De um lado, dá-se a produção de uma materialidade, ou seja, das

condições materiais que nos cercam e que são a base da produção econômica, dos transportes

e das comunicações. De outro, há a produção de novas relações sociais entre países, classes e

pessoas. A nova situação, se alicerça, assim, no dinheiro e na informação.

Segundo Dowbor (2009), com as novas tecnologias do conhecimento ocorre uma

transformação das formas tradicionais de organização social e econômica em várias esferas.

Novas relações de produção surgem com a mudança no conteúdo da produção.

O mundo que, no século XX, focava-se na propriedade e nos meios de produção,

passa a ter como eixo de geração de valor, no século atual, o conteúdo de conhecimento

incorporado aos processos produtivos. Se antes, o fator de produção centrava-se na produção

de matérias primas e produtos industriais, hoje a informação organizada que é agregada ao

produto passa a ser o capital econômico, pelo conhecimento a ele incorporado:

Tomemos como ponto de partida o fato que hoje, quando pagamos um produto, 25% do que pagamos é para pagar o produto, e 75% para pagar a pesquisa, o design, as estratégias de marketing, a publicidade, os advogados, os contadores, as relações públicas, os chamados “intangíveis” [...] (DOWBOR, 2009).

A valorização dos processos produtivos possibilitada pelas tecnociências, impele

uma análise crítica e interdisciplinar de conceitos tradicionais como capital e mão de obra,

enquanto fatores de produção. Se antes o empregador, proprietário dos meios de produção,

media o valor do empregado por horas trabalhadas, atualmente há uma complexidade bem

menos linear na justa remuneração do esforço relacionada ao conhecimento agregado ao

produto. O fator de produção atual centra-se no processo e na cobrança de sua utilização, ou

seja, no acesso ao conhecimento.

No desafio da complexidade do mundo atual, são necessários novos parâmetros

teóricos para tratar criticamente a emergência de formas inteligentes de integração do

conhecimento aos processos produtivos, permitidas pelas novas tecnologias que passam a

constituir o principal fator de valorização. A propriedade intelectual, as patentes e os

copyrights aparecem como questões fundamentais para grandes corporações, em processos

produtivos cada vez mais densos em informação e conhecimento.

�100

O direito ao acesso ao conhecimento torna-se o centro de uma disputa ideológica

e econômica cuja manipulação ocorre por meio da apropriação das formas físicas de

transmissão, controle de códigos de acesso e gerenciamento de conteúdos.

Na era da tecnologia da conectividade o conhecimento, ao contrário de um bem

físico, não é consumido no sentido de destruir-se totalmente, passa de um indivíduo a

outro,sem que o primeiro o perca e tem a qualidade de um bem não-rival. Tal característica

impõe às grandes corporações formas de controle e apropriação adequadas à nova realidade:

Para as grandes corporações, as novas tecnologias implicam numa pirâmide mais alta, com o poder central estendendo dedos mais compridos para os lugares mais distantes, graças ao poder da conectividade de transmitir ordens mais longe. Implicam também uma forte presença planetária de poder repressivo visando o controle da propriedade intelectual crescentemente apropriada pelas próprias empresas transnacionais. Às “tele-comunicações” corresponde uma “tele-gestão”, gestão à distância, global, que gerou por exemplo o poder descontrolado dos grandes intermediários financeiros. A corporação da informação e do conhecimento, que por definição trabalha com uma matéria prima não material, navega com conforto neste ambiente. Vistas por este ângulo, as novas tecnologias aparecem como uma oportunidade maior de controle e de apropriação. (DOWBOR, 2009).

Segundo Castells (1999), a forma de organização em redes é o que caracteriza a

nova base material das atividades, em na estrutura social na era da informação. São sistemas

abertos, plásticos, compostos por um conjunto de nós interconectados que reorganizam as

relações de poder.

Contudo, essa inclusão não se dá de maneira universal para todos os segmentos da

sociedade. Partir da premissa de que o acesso às tecnologias midiáticas e digitais não é

homogêneo, que ocorre de forma desigual, é condição para uma análise crítica da atualidade.

As redes não são homogêneas e é variável o papel dos atores na sua regulação e

funcionamento. Tampouco a rede é dissociada do território e, por ser o espaço diferenciado,

ele conduzirá a instalações de redes elas próprias distintas, rejeitando uma noção que

relaciona as redes a uma indiferença espacial.

Como estágio supremo da internacionalização, a globalização se caracteriza pelo

alcance dos territórios nacionais como espaços nacionais da economia internacional. Há um

aumento da especialização produtiva no espaço e da produção em espaços menores. As

formas de circulação com influências na regulação das atividades locais aumentam a

aceleração o que, por sua vez, reforça a divisão territorial e a divisão social do trabalho. Há,

�101

ainda, um aumento da dependência entre a divisão territorial do trabalho em relação às formas

espaciais e às normas que os regulam.

A escolha das localizações para os investimentos ocorre a partir da produtividade

espacial, em uma dinâmica que envolve tantos os recortes horizontais que se referem à

contiguidade dos lugares, quanto os recortes verticais que agrupam as áreas exógenas de

decisão dos atores hegomônicos. Evidencia-se o papel da regulação para os processos de

constituição das regiões e aumenta a tensão entre localidade e globalidade.

Dentro de cada país, principalmente em países subdesenvolvidos onde estão os

mais pobres, informação e dinheiro mundializados atuam como algo autônomo face à

sociedade, tornando-se o elemento fundamental da produção e da geopolítica, isto é, das

relações entre países e dentro de cada nação.

A eficácia da ação globalizada potencializada pela tecnociência, cuja origem é

remota, depende de uma localização seletiva, sua expressão geográfica é a desorganização do

território e a desigualdade dos lugares, com um aumento expressivo da desigualdade social e

de renda.

"Uma economia para os 99%", relatório da Oxfam (2017) publicado para

coincidir com a reunião anual do Fórum Econômico Mundial, em Davos, expõe informações

expressivas sobre a desigualdade de riqueza global, com base em dados do Global Wealth

Databook do banco Credit Suisse e na lista de bilionários da revista Forbes.

O relatório aponta que apenas oito homens detêm a mesma riqueza que a metade

mais pobre do mundo. Nos últimos 30 anos, a renda dos 50% mais pobres permaneceu

inalterada, enquanto a do 1% mais rico aumentou 300%, sendo que desde 2015, o 1% mais

rico detinha mais riqueza que o resto do planeta. Ao longo dos próximos 20 anos, 500 pessoas

passarão mais de US$ 2,1 trilhões para seus herdeiros – uma soma mais alta que o PIB da

Índia, um país que tem 1,2 bilhão de habitantes. No Vietnã, o homem mais rico do país ganha

mais em um dia do que a pessoa mais pobre ganha em dez anos. Um diretor executivo de

qualquer empresa do índice FTSE-100 ganha o mesmo em um ano que 10.000 pessoas que 39

trabalham em fábricas de vestuário em Bangladesh.

O gráfico abaixo mostra a distribuição global dos 50% mais pobres da população

mundial de 7,2 bilhões de habitantes. Percebe-se que apenas 1% das pessoas que pertencem

Índice calculado pela FTSE The Index Company que representa um pool 100 ações representativas da Bolsa de Valores de 39Londres.

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ao grupo dos 50% mais pobres da população mundial vive na América do Norte, enquanto

70% delas vivem em países de baixa renda:

Figura 14 - Distribuição global da pobreza

Fonte: elaboração nossa, a partir do relatório da Oxfam (2017).

A obra A natureza do espaço é o propósito do pensamento de Milton Santos,

concretizado em teoria e método sobre o espaço humano, onde o lugar e o mundo são

considerados como moradas humanas, escrita como uma resposta ao globaritarismo, cuja

eficácia de expansão, aumenta a concentração de renda, na mesma medida em que aumenta a

pobreza. Nela se apresenta um sistema descritivo e explicativo para a geografia e o conceito

último de espaço em Milton Santos, elaborado a partir da técnica como categoria central, uma

obra direcionada a intervir na realidade de sua época:

�103

Aí eu passei quinze anos trabalhando na preparação desse outro livro, A natureza do espaço, no qual queria mostrar que a geografia também é uma filosofia. Eu tinha uma inconformidade com a minha disciplina e com o que havia escrito antes sobre ela. Empreendi então a fundamentação da idéia de que a geografia é uma filosofia das técnicas. E como tal, ela somente podia se tornar teórica com a globalização, porque antes não havia técnicas planetárias e a universalidade dos filósofos não havia se tornado empírica. Acho que a minha pequena contribuição à filosofia é a idéia de universalidade empírica, que só podia brotar da cabeça de um geógrafo, vendo como os lugares se tornaram parecidos, na sua enorme diferenciação, com a globalização. Mas o que eles têm de parecido não são só os vidros fumês das grandes cidades. Essa psicosfera tem uma base técnica, a produção, as condições de vida das pessoas. Eu tive essa idéia da geografia como filosofia das técnicas há 35 anos. Mas esta elaboração só podia se tornar concreta e sistematizada num livro com a globalização. Aí é visível a inseparabilidade do individual e do universal, através do lugar e do mundo. (LEITE, 1999).

Em Por uma geografia nova é possível perceber o diálogo mais próximo à

filosofia, quando ele operacionaliza conceitos para a geografia, a partir de Sartre, como por

exemplo, as noções de inércia dinâmica e o acontecer como momento de cisão da totalidade.

Em A natureza do espaço ele declara que a geografia é uma filosofia das técnicas, a partir da

noção de universalidade empírica, dada pela técnica planetária que caracteriza a globalização.

�104

Capítulo 11. A Semiose da natureza do espaço

Para a análise do presente capítulo, inicialmente situaremos A natureza do espaço

pela interdisciplinaridade, delimitação do método e conceituação do objeto geográfico,

compondo uma teoria social crítica, cuja síntese foi ancorada na preocupação em explicar a

parcela da realidade total que cabe à geografia.

Contextualizaremos esses elementos, para demonstrar como todos estão a serviço

do desejo de Milton Santos em explicar as condições do mundo atual, estabelecendo relações

entre o meio geográfico e a ação humana que escaparam de relações de causalidades. Além de

contextualizá-los, esse exercício nos serve para antecipar duas questões centrais tratadas em A

natureza do espaço i) o protagonismo do espaço e sua relação equiparada ao acontecer do

tempo, ii) o conceito de espaço como mediação, dada pela categoria técnica, entre a ação

intencional do homem e o mundo.

A preocupação em destacar um campo particular da totalidade, que tenha

autonomia suficiente para se caracterizar enquanto objeto próprio da disciplina mas ao mesmo

tempo permaneça integrado na realidade total, demonstra que o processo de abstração do

pensamento de Milton Santos acontece a partir de um movimento regressivo, que parte da

realidade em direção à síntese, pensamento presente também nas obras O trabalho do

geógrafo no Terceiro Mundo e Por uma geografia nova:

Construir o objeto de uma disciplina e construir sua metadisciplina são operações simultâneas e conjugadas. O mundo é um só. Ele é visto através de um dado prisma, por uma dada disciplina, mas, para o conjunto de disciplinas, os materiais constitutivos são os mesmos. É isso, aliás, o que une as diversas disciplinas e o que para cada qual, deve garantir, como uma forma de controle, o critério da realidade total. Uma disciplina é parcela autônoma, mas não independente, do saber geral. (SANTOS, 1996, p. 20).

A delimitação do objeto, assim como a interdisciplinaridade, é dada no

movimento do pensamento de Milton Santos em uma proposta epistemológica onde “a

definição de um objeto para uma disciplina e, por conseguinte, a própria delimitação e a

pertinência dessa disciplina passa pela metadisciplina e não o revés” (SANTOS, 1996, p. 20).

Milton Santos registra sua preocupação em sistematizar, sem prescindir da

abertura necessária para conceituar o espaço em seu acontecer na história. A pergunta central

“o que é o espaço?” permeia todo seu pensamento e acompanha o processo de definição do

�105

objeto da geografia. Para Milton Santos, “é indispensável uma preocupação ontológica, um

esforço interpretativo de dentro” (SANTOS, 1996, p. 19):

Não se trata de fato, de esperar que os filósofos profissionais digam o que é preciso fazer em filosofia da geografia. Como Sartre nos lembra, é chegado o tempo em que cada disciplina constrói sua própria filosofia. (SANTOS, 1988, p.11).

A primeira parte da obra A natureza do espaço, leva o título “Uma ontologia do

espaço: Noções Fundadoras”. Milton Santos visa conceituar o espaço, enquanto delimita o

objeto. Porém, adverte logo no início da discussão:

Todavia, transcender não é escapar. [...] A possibilidade de saber sem transgredir depende estritamente de sabermos, e de sabermos muito bem, qual a superfície do real de que estamos tratando ou, em outras palavras, qual é o objeto de nossa preocupação. (SANTOS, 1996, p. 20).

De um sistema de idéias que busca definir o objeto, oferece então um quadro

metodológico que não se sobrepõe à explicação do espaço em sua autonomia de existente, em

sua materialidade. Em A natureza do espaço, já aparece a advertência de que o método deve

subserviência ao objeto científico, na medida em que as categorias do método de Milton

Santos são construídas a partir da observação da atualidade.

Em A natureza do espaço, assim como em O trabalho do geógrafo no Terceiro

Mundo, Milton Santos faz alusão à ventriloquia e diz que construir um método é como

escrever um romance, onde é o autor que dá vida e modela qualitativamente as marionetes, no

momento de elaboração do texto. Porém, ressalta que esse dispositivo deve ser flexível, de tal

forma que não enclausure a espontaneidade do objeto, expresso em sua concretude – em um

mundo que é movimento:

Mas o texto deve prever a possibilidade de tais bonecos surpreenderem os ventríloquos e alcançarem alguma vida, produzindo uma história inesperada: é assim que fica assegurada a conformidade com a história concreta. (SANTOS, 1996, p.22).

Por isso que, na busca operacional pelo objeto da geografia, Milton Santos

questiona a legitimidade em se classificar objetos enquanto exclusivamente geográficos, para

delimitar o campo epistemológico.

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A crítica à essa forma de aproximação do objeto geográfico é possível porque o

pensamento de Milton Santos está constantemente atento à realidade em movimento. Assim,

ele propõe a aproximação do objeto pelo prisma geográfico, construindo um sistema

intelectual capaz de abordar a realidade a partir de um ponto de vista, em perspectiva:

Não cremos, pois, que seja indispensável continuar buscando a definição de um objeto com existência separada, isto é, uma existência geográfica, um objeto geográfico em si. A partir do entendimento que tivermos do que deve ser o objeto da disciplina geográfica, ficamos em condição de tratar geograficamente, os objetos encontrados. [...] Trata-se de formular um sistema de conceitos que dê conta do todo e das partes em sua interação. Pensamos que nossa proposta atual de considerar o espaço geográfico como a soma indissolúvel de sistemas de objetos e sistema de ações possa ajudar nesse projeto. (SANTOS, 1996, p. 77).

Tanto em O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo, quanto em Por uma

geografia nova, Milton Santos tratou as relações entre tempo e espaço, sinalizando a

relevância do estudo das técnicas atuais para a compreensão da dinâmica e do movimento do

espaço humano:

Livros e artigos meus publicados antes haviam enfrentado alguns dos problemas de que trata este livro. Agora, não apenas novas questões se levantaram, como temas de nossa preocupação anterior aparecem mais documentados, sistematizados e aprofundados, como é o caso, por exemplo, da técnica, do tempo e do sistema de objetos e ações. (SANTOS, 1996, p. 15).

O tema da geografia, a ser tratado geograficamente não os objetos tomados em

separado, nem as ações, mas ambos na relação homem e mundo, em insuperável tensão,

sustentada pela intencionalidade como amálgama entre ação e objeto, aqui deslocada para a

explicação do conceito e não para a produção do conhecimento:

[...] Mas a noção de intencionalidade não é apenas válida para rever a produção do conhecimento. Essa noção é igualmente eficaz na contemplação do processo de produção e de produção das coisas, considerados como um resultado da relação entre o homem e o mundo, entre o homem e seu entorno. (SANTOS, 1996, p. 90).

Representar em método e conceitos epistemológicos a mediação solidária e

contraditória entre a ação humana e objetos valorados, que caracteriza a realidade em

movimento, foi um desafio sistematizado na escritura de A natureza do espaço. Nela, Milton

Santos apresenta as categorias externas e internas ao espaço e, a partir de suas articulações,

propõe uma teoria da espacialidade para descrever e explicar a realidade em movimento.

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As categorias externas: a técnica, a ação, os objetos, a norma e os eventos, a

universalidade e a particularidade, a totalidade e totalização, a temporalização e a

temporalidade, a idealização e a objetivação, os símbolos e a ideologia. As categorias

internas: a paisagem, a configuração territorial, a divisão territorial do trabalho, o espaço

produzido ou produtivo, as rugosidades e as formas-conteúdo, os recortes espaciais, a

tecnoesfera e a psicoesfera, a racionalidade do espaço, o conteúdo geográfico do cotidiano, a

ordem mundial e a ordem local.

Em uma perspectiva relacional, cabe à categoria técnica reunir as categorias

externas às categorias internas; e funciona como uma amálgama entre o homem e o mundo,

na medida em que é a partir dela que a ação se espacializa. São os meios instrumentais e

sociais dos quais o homem se utiliza para realizar sua vida. Os objetos são todos os

acréscimos que conferem um conteúdo técnico e informacional ao espaço; são cidades,

estradas, hidrelétricas, fazendas, portos, etc. – que formam uma extensão contínua permitida

pela espacialidade que os dispõe como conjunto.

Resultados da ação humana objetivada, “os objetos são esse extenso, essa

objetividade, isso que se cria fora do homem e se torna instrumento material de sua

vida” (SANTOS, 1996 , p. 73). As ações são processos humanos dotados de intencionalidade,

que carregam em si um propósito. A intencionalidade dá o caráter uno do espaço e é o projeto

da ação humana a ser realizada pela técnica sobre os objetos valorados:

Mas a noção de intencionalidade não é apenas válida para rever a produção do conhecimento. Essa noção é igualmente eficaz na contemplação do processo de produção e de produção das coisas, considerados como um resultado da relação entre o homem e o mundo, entre o homem e seu entorno. (SANTOS, 1996 , p. 90).

Mas não se pode dizer que o homem, ao agir sobre seu entorno, exerça

plenamente a intencionalidade de sua ação, porque o espaço não é uma mera oferta de

caminhos. A intencionalidade em Milton Santos não está apenas no querer da ação humana

em sua incidência no meio. Ela está tanto no homem quanto nos objetos dispostos no mundo

pela espacialidade. Conferir intencionalidade à ação humana e às coisas é o que dá o caráter

de imprevisibilidade ao resultado obtido no encontro entre ação e objeto.

Da mesma forma com que as noções fundadoras objetos e ações não podem ser

reduzidas a relações duais, o espaço não pode ser tratado ao lado do tempo. A categoria

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externa técnica é o meio de equivaler e permitir o tratamento do tempo e do espaço como

categorias analíticas imbricadas:

A técnica entra aqui como um traço de união, historicamente e epistemologicamente. As técnicas de um lado, dão-nos a possibilidade de empiricização do tempo e, de outro lado, a possibilidade de uma qualificação precisa da materialidade sobre a qual as sociedades humanas trabalham. Então essa empiricização pode ser a base de uma sistematização, solidária com as características de cada época. (SANTOS, 1996 , p. 54, grifo do autor).

No movimento do espaço, Milton Santos evita a abstração empírica de relações

duais da seguinte forma: a sociedade lança mão de um dos vários usos possíveis dos objetos

dispostos sobre a superfície da Terra pelo meio técnico-científico-informacional, para realizar

o projeto humano. No momento exato da escolha, dentre uma gama de possibilidades, incide

uma ação intencional que aponta para um destino possível sobre os objetos também dotados

de intencionalidade; e ação se materializa como espacialização em movimento na forma de

eventos, em um resultado diverso daquele inicialmente pretendido.

A técnica dá a datação do mundo porque permite ver a intencionalidade na

atualidade:

Tempo, espaço e mundo são realidades históricas, que devem ser mutuamente conversíveis, se a nossa preocupação epistemológica é totalizadora. Em qualquer momento, o ponto de partida é a sociedade humana em processo, isto é, realizando-se. Essa realização se dá sobre uma base material: o espaço e seu uso; o tempo e seu uso; a materialidade e suas diversas formas; as ações e suas diversas feições. Assim empiricizamos o tempo, tornando-o material, e desse modo o assimilamos ao espaço, que não existe sem a materialidade. (SANTOS, 1996 , p. 54).

No momento da ressignificação, o tempo assume uma característica de

simultaneidade em oposição ao seu passar cronológico. Se não houvesse o tratamento do

tempo como simultaneidade, não haveria a possibilidade de cristalizações do passado e do

presente nas formas geográficas que são também conteúdo. A espacialidade perderia sua

participação no movimento da atualidade, tornando-se um fator neutro às incidências do

tempo trazidas pelos projetos humanos, a partir da utilização da técnica:

Desde que instalados sobre um pedaço de espaço, as variáveis (de tipos diferentes, de idades diferentes) formam um precipitado, um fato novo dotado da capacidade de criar ou estabelecer novas relações: uma nova qualidade. [...] Nosso problema será o de compreender os mecanismos de transposição espacial dos sistemas temporais. Se o impacto de um sistema de tempo sobre uma fração de espaço não fosse recorrente, cada sistema temporal poderia imprimir completamente sua marca sobre o pedaço de espaço atingido. [...] Todas essas superposições atribuem a cada lugar uma combinação específica, uma significação particular que é, ao mesmo tempo,

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temporal e espacial. Poderíamos falar de um tempo espacial próprio a cada lugar. (SANTOS, 1996, p. 256-257).

Milton Santos apresenta a noção de idade do lugar para conceituar o tempo como

simultaneidade. O tratamento está em considerar o fenômeno técnico como identificador das

idades geográficas e a técnica atual como possibilidade de ressignificação das escalas

espaciais, introduzindo um novo conceito de lugar.

Ele compara o papel da técnica na geografia aos cortes geológicos que permitem a

datação da materialidade. O caráter da técnica atual é a sua universalidade, que tem o poder

de reunir todas as técnicas e incidir em todos os lugares. Essa característica permite o

surgimento de uma nova qualidade, a simultaneidade do acontecimento técnico:

A tendência universalizante dos primórdios da história humana permite criar, em diversos lugares, soluções técnicas próprias mas convergentes, mas não havia simultaneidade em sua aparição, nem o seu surgimento em um dado ponto da superfície da terra acarretava obrigatoriamente repercussões em outros lugares. (SANTOS, 1996, p. 57).

Com a simultaneidade dada pela técnica atual, é possível uma datação universal

tanto à escala do lugar quanto à escala de um conjunto de lugares, o território nacional de um

país, por exemplo, ou quanto à escala do mundo.

O lugar passa a ser a escala de referência para os diferentes dimensionamentos

espaciais, viabilizando a empiricização das categorias de análise do espaço à atualidade como

totalidade. Isso só é possível porque a técnica é universal. Reunindo todas as técnicas, a

técnica permite que a escala mínima, capaz de congregar todas as características necessárias

para uma análise espacial totalizante, passe a coincidir com a própria escala do vivido:

É o lugar que atribui às técnicas o princípio de realidade histórica, relativizando o seu uso, integrando-as num conjunto de vida, retirando-as de sua abstração empírica e lhes atribuindo efetividade histórica. E, num determinado lugar, não há técnicas isoladas, de tal modo que o efeito de idade de uma delas é sempre condicionado pelo das outras. O que há num determinado lugar é a operação simultânea de várias técnicas, [...] Essas técnicas particulares, essas “técnicas industriais”, são manejadas por grupos sociais portadores de técnicas socioculturais diversas e se dão sobre um território que, ele próprio, em sua constituição material, é diverso, do ponto de vista técnico. São todas essas técnicas, incluindo as técnicas da vida, que nos dão a estrutura de um lugar. (SANTOS, 1996, p. 58, grifo do autor).

A escala do vivido como escala mínima de análise – o lugar “mais pequeno” de

Milton Santos –, por estar no mundo como totalidade, não é o mesmo lugar da geografia da

�110

percepção. A escala do vivido é traduzida na solução epistemológica de qualificar o mundo

da matéria como movimento de significação, a exemplo da ação humana. Explicar o momento

exato em que o espaço aparece em atualidade como movimento é a chave para dar vida ao

mundo da matéria:

A coisa acabada nos dá a uma cristalização do movimento, mas não a própria vida. A significação somente é obtida quando alcançamos entender o que Whitehead chama “the specious Present”, o presente iminente, inconcluso, não apenas projeto e não ainda realidade terminada. (SANTOS, 1996 , p. 121).

Para explicar esse instante, Milton Santos retoma de Sartre (1968) o conceito de

totalidade, examinando suas formas de aparência em movimento e transformação, para

relacioná-la com o movimento de significação do espaço.

Sartre, (apud SANTOS, 1996 , p. 119), afirma “que o todo está presente na parte

como seu sentido atual e seu destino”. Para captar o movimento da totalidade, é necessária

sua cisão, uma vez que ela é “produto de um movimento real, aparece, a cada momento, como

um conjunto inerte e um momento de totalização que está em curso” (SARTE apud SANTOS,

1996 , p. 118-119). A totalização permite reconhecer esse movimento do todo e das partes,

porque surpreende o movimento da totalidade. Sartre distingue totalidade e totalização; a

primeira como resultado e a segunda como processo:

Para nós, a verdade é algo que se torna, ela tem e terá de tornar-se. É uma totalização que está sendo totalizada continuamente. Fatos isolados não significam nada; não são nem verdadeiros nem falsos, enquanto não relacionados, pela mediação das diferentes totalidades parciais, à totalização em processo. (SARTRE apud SANTOS, 1996 , p. 119).

Para que exista objetivamente, o movimento da totalidade tem por direção sua

espacialização, e essa espacialização se dá como particularização. Vista como integral, a

totalidade é um todo abstrato. Observada em atualidade, a partir de suas manifestações de

forma, função, valor e relação, a totalidade é uma diferencial que resulta do movimento da

totalização. “A atualidade é a unidade do universal e do particular: este aparece como se

fosse separado, existindo por si, mas é sustentado e contido no todo” (SANTOS, 1996 , p.

126).

O processo da totalização é a ressignificação que ocorre no encontro do sistema

de ação e do sistema de objetos, materializada no lugar. Como os objetos não são meros

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receptores da ação do homem, porque Milton Santos não os vê como coisas em si, eles já

estão valorados de significações anteriores.

As significações passadas se cristalizam como formas no meio geográfico. São as

formas espaciais que darão a oportunidade à incidência das ações humanas, pela força seletiva

da forma-conteúdo, que é característica do espaço:

A forma já utilizada é coisa diferente, pois seu conteúdo é social. Ela se torna espaço, porque forma-conteúdo. Não existe dialética possível entre formas enquanto formas. Nem a rigor, entre paisagem e sociedade. A sociedade se geografiza através dessas formas, atribuindo-lhes uma função que, ao longo da história, vai mudando. O espaço é a síntese, sempre provisória, entre o conteúdo social e as formas espaciais. Mas a contradição principal é entre a sociedade e o espaço, entre um presente invasor e ubíquo que nunca se realiza completamente, e um presente localizado, que também é passado objetivado nas formas sociais e nas formas geográficas encontradas. (SANTOS, 1996 , p. 109).

As rugosidades, já tratadas em O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo e em

Por uma geografia nova, tomadas na perspectiva do espaço como um conjunto indissociável

entre o sistema de ação e o sistema de objetos, são cristalizações de significações passadas

que a ação humana conferiu e que, como acúmulos, participam da significação presente vinda

pelas novas ações.

Em função das rugosidades, o modo de produção só pode ser compreendido por

meio da formação socioespacial com que o trabalho e os recursos se distribuíram e se

distribuem geograficamente nos lugares. Porque, fora do lugar, produtos, dinheiro, inovações

situam-se apenas como abstrações.

A divisão territorial do trabalho é o processo de distribuição social e geográfica

dos recursos disponíveis. Como as novas ações se dão sobre velhos objetos já valorados,

ocorre uma limitação da eficácia de qualquer ação humana que se queira hegemônica na

incidência espacial de novas divisões de trabalho.

Assim, quando novas divisões de trabalho chegam pela intencionalidade humana,

encontram restos de divisões de trabalho antigas inscritas nas rugosidades, que são as divisões

de trabalho morto. Como as rugosidades são memórias espacializadas da divisão territorial do

trabalho morto, no momento em que as formas antigas participam formando um novo

conteúdo, imprimem um resultado variado, a depender do lugar em que se localizam.

Esse desenvolvimento desigual segue uma ordem, em conformidade com a

transmutação de uma totalidade em outra. Contudo, essa ordem não obedece a um movimento

�112

unívoco e linear, porque, para existir, a estrutura necessita da forma e a forma-conteúdo

interfere no movimento do todo:

Tomada forma-conteúdo pela presença da ação, a forma torna-se capaz de influenciar, de volta, o desenvolvimento da totalidade [...] Essa visão renovada da dialética concreta abre novos caminhos para o entendimento do espaço, já que, desse modo, estaremos atribuindo um novo estatuto aos objetos geográficos, às paisagens, às configurações geográficas, à materialidade. Fica mais claro desse modo, porque o espaço não é apenas um receptáculo da história, mas condição de sua realização qualificada. (SANTOS, 1996 , p. 126).

As variáveis da universalidade se encontram concretamente como particularidade,

o que resulta na diferenciação dos lugares, porque, como cada pedaço da Terra tem uma

disposição diferente de formas-conteúdo – nenhum lugar é igual a outro –, as combinações de

significados são as mais diversas.

Essas formas heterogêneas são sociogeográficas, uma vez que encerram o valor de

uso de ações humanas passadas. Por isso, a paisagem, enquanto porção de uma configuração

territorial, não é apenas natureza física, já é social em Milton Santos.

O espaço se manifesta a partir dos eventos como acontecimentos nos lugares. Os

eventos redistribuídos são existentes que expressam o movimento da espacialidade. Nesse

sentido, o evento é “uma brutalidade eficaz” (SANTOS, 1996 , p. 146), que registra o

movimento da espacialidade e interpreta o mundo:

Os eventos são todos filhos do mundo, seus intérpretes atentos, suas manifestações particulares. O mundo em movimento supõe uma permanente redistribuição dos eventos, materiais ou não, com uma valorização diferencial dos lugares. (SANTOS, 1996 , p. 158).

O motor que gera a produção do evento é a divisão territorial do trabalho; vem de

origens remotas a partir da racionalidade das grandes empresas, do mercado de capitais, das

normas do Estado; são as racionalidades dominantes que movem a ação intencional humana a

agir sobre o mundo. Essa perspectiva redefine a escala geográfica a partir da origem dos

eventos e do local de sua incidência. A escala, assim, não é determinada apenas por seus

limites de extensão, porque, além de ser limite, ela também é conteúdo a partir das variáveis

dinâmicas que incidem sobre ela:

A distinção entre lugar e região passa a ser menos relevante do que antes, quando se trabalhava com uma concepção hierárquica e geométrica onde o lugar deveria

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ocupar uma extensão do espaço geográfico menor que a região. Na realidade, a região pode ser considerada como um lugar, desde que a regra da unidade, e da continuidade do acontecer histórico se verifique. E os lugares – veja-se o exemplo das cidades grandes – também podem ser regiões. (SANTOS, 1996, p. 166).

A estrutura do lugar dá a diversidade das instalações de redes e dos eventos. A

qualidade “surpresiva” do espaço aparece no acontecer solidário do cotidiano vivido no lugar.

Como os eventos se fazem em existência sempre no lugar, eles surgem como acontecimento

no eixo das coexistências, no viver comum do espaço banal. Esse é o motivo pelo qual uma

racionalidade única nunca se perfaz totalmente no espaço:

O espaço geográfico é um desses campos de ação racional. Isso lhe vem da técnica, presente nas coisas e nas ações – o que, ao mesmo tempo, caracteriza o espaço geográfico em nossos dias e lhe atribui a condição de ser um espaço de racionalidade. (SANTOS, 1996 , p. 294).

A racionalidade do meio técnico-científico-informacional está embebida em uma

tecnoesfera que qualifica o meio natural, conferindo à primeira natureza qualidades de

segunda natureza. Esse mesmo meio é composto também por uma psicoesfera que qualifica a

racionalidade do espaço no reino das emoções, das paixões e dos significados. Se, no período

atual, a técnica funciona como instrumento ao movimento hegemônico do capital que tenta

impor uma racionalidade única aos lugares, é pela racionalidade do espaço que esse processo

hegemônico nunca se perfaz totalmente:

O processo de globalização, em sua fase atual, revela uma vontade de fundar o domínio do mundo na associação entre grandes organizações e uma tecnologia cegamente utilizada. Mas a realidade dos territórios e as contingências do “meio associado” asseguram a impossibilidade da deseja da homogeneização. (SANTOS, 1996 , p. 45).

Assim, a tecnoesfera e a psicoesfera promovem uma densidade técnica de

informação e de comunicação, que permite que a racionalidade espacial congregue, no lugar,

tanto as racionalidades distantes e hegemônicas quanto as racionalidades que surgem do

cotidiano vivido no espaço banal:

Essas contra-racionalidades se localizam, de um ponto de vista social, entre os pobres, os migrantes, os excluídos, as minorias; de um ponto de vista econômico, entre as atividades marginais, tradicional ou recentemente marginalizadas; e, de um ponto de vista geográfico, nas áreas menos modernas e mais “opacas”, tornadas irracionais para usos hegemônicos. Todas essas situações se definem pela sua incapacidade de subordinação completa às racionalidades dominantes, já que não

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dispõem dos meios para ter acesso à modernidade material contemporânea. Essa experiência da escassez é a base de uma adaptação criadora à realidade existente. (SANTOS, 1996 , p. 309).

Milton Santos trata teoricamente o espaço como um conceito híbrido, dotado das

seguintes características: i) é um espaço humano, ou seja, a natureza em sua totalidade deve

ser compreendida como já “agida” pela ação humana, prenhe de significado social, por meio

da técnica atual; ii) o mundo objetivo significado pela ação humana é um espaço-temporal,

por conseguinte, dotado de movimento; iii) seu movimento encerra uma intencionalidade

espacial que aponta para o futuro, manifestação geográfica que se traduz em um meio

geográfico técnico, científico e informacional.

Em nossa pesquisa anterior, a análise semiótica da teoria geográfica inscrita em A

natureza do espaço, chegou a resultados específicos que serão explorados neste capítulo por

estarem diretamente vinculados à hipótese da tese. Uma das semioses analisadas se refere ao

papel da categoria técnica. A categoria técnica é conceituada em Milton Santos como todos os

meios dos quais os homens se utilizam para realizar sua vida na materialidade do mundo. A

técnica é mediação no sentido semiótico, porque funciona como um medium da

intencionalidade da ação humana direcionada ao espaço, colocando em relação as ações e os

objetos.

Ocorre que a intencionalidade humana, incluídos grupos, grandes firmas, estado,

países, etc., apenas se perfaz totalmente em ação, a partir das condições dadas pela

materialidade. Tais condições advêm menos das características geomorfológicas do meio e

mais do fato de a materialidade já estar prenhe de significações de ações humanas passadas;

ela própria, um meio técnico-científico-informacional que não recebe a ação passivamente,

mas participa do resultado do encontro da ação com o objeto.

Assim, o que a técnica faz é estabelecer uma relação entre ações humanas e

objetos, ação que não pode ser reduzida a uma relação dual entre seus os elementos, uma vez

que o resultado do encontro entre a ação e o objeto é de uma terceira ordem que ultrapassa a

adição.

Lembremo-nos, porém, de que os resultados da ação humana não dependem unicamente da racionalidade da decisão e da execução. Há, sempre, uma quota de imponderabilidade no resultado, devida, por um lado, à natureza humana e, por outro lado, ao caráter humano do meio. (SANTOS, 1996, p.94).

�115

Quando afirmamos que o pensamento de Milton Santos se caracteriza por uma

lógica triádica, o que pretendemos dizer é que suas categorias assumem o papel lógico de

colocar em relação outras categorias de uma maneira tal, que essa relação não pode ser

reduzida a relações diádicas.

Em Milton Santos, o espaço não é um palco que recebe indiscriminadamente as

ações do homem, ele participa da narrativa da história porque interfere no resultado, ele

mesmo detendo uma racionalidade que se expressa geograficamente no meio técnico-

científico-informacional. É o encontro entre a materialidade e a intencionalidade humana que

confere ao espaço sua racionalidade, cuja compreensão passa pela característica do caráter

híbrido do espaço de Milton Santos, que aponta para o erro da concepção dualista na ciência

geográfica regional; análise crítica que aparece também nas obras O trabalho do geógrafo no

Terceiro Mundo e Por uma geografia nova.

Além de garantir o caráter híbrido do espaço, atuando como mediação entre a

ação humana e a materialidade, a técnica permite incorporar o tempo à espacialidade de

maneira teórico-metodológica. Milton Santos, ao incorporar o tempo em sua teoria

geográfica, confere movimento ao espaço que passa a ser um espaço de racionalidade

produtor de significados.

A periodização do espaço é possível porque com o estudo das técnicas alcança-se

a datação do acontecimento, compreendido enquanto encontro do tempo e da materialidade.

Em Milton Santos, o espaço é uma acumulação desigual de tempos: “tomado isoladamente,

tempo é sucessão, enquanto espaço é acumulação, justamente uma acumulação de

tempos.” (Santos, 2005, p.63). As formas de ação humana ficam inscritas no mundo objetivo

porque são materializadas como rugosidades.

Por meio da técnica, que estabelece a relação entre espaço e tempo, a escala

geográfica passa a ser delimitada pelo acontecimento, como escala espaço-temporal.

Os limites geográficos compreendidos a partir da noção estática de coordenadas

geográficas são relativizados para funcionarem como localizações espaço-temporais da

materialidade do mundo objetivo. Conceitos da geografia como região, paisagem e lugar

assumem outra dimensão epistemológica e ganham novos contornos, uma vez que o mundo

passa a ser constituído mais da totalidade de eventos do que de coisas.

�116

A habilidade de Milton Santos propor uma conceituação para a categoria técnica

como mediação entre a ação intencional humana e a materialidade é uma habilidade que, no

edifício filosófico de Peirce, está situada na matemática, a partir da qual a semiótica extrai

seus princípios. Na lógica dos relativos, já apresentada em capítulo anterior, tratamos da tese

da irredutibilidade em Peirce onde é possível reduzir políadas em tríadas, contudo, não é

possível reduzir a tríade em díadas, nem díadas em mônadas. O signo genuíno é uma tríade e

a técnica é signo de terceridade:

Figura 15 - Tríada técnica

Fonte: Elaboração nossa, com base em Peirce.

Como a técnica é a categoria que permite a periodização espacial, é ela que

determina quais as características do período, ou seja, pela técnica é possível avaliar as

condições das transformações do espaço em determinado tempo histórico. E o período atual, o

da tecnociência, permite pela primeira vez que o lugar seja uma unidade totalizante de análise

do mundo. Se consideramos a história do presente, a datação é dada pela tecnociência que tem

um poder de alcance planetário e centrípeto sobre todas as demais técnicas, sendo essa

característica a grande novidade do período atual:

A morte dos impérios, que o fim da segunda guerra mundial vai precipitar, coincide com a emergência de uma técnica capaz de se universalizar. Na verdade, antes mesmo de se instalar amplamente, o novo sistema técnico ganha essa enorme vitória, jogando abaixo as únicas fronteiras que poderiam impedir sua difusão. O

�117

surgimento de numerosos Estados nacionais, a criação de organismos supranacionais, a entrada em cena da informação e do consumo como denominador comum universal, tudo isso trabalha para facilitar o triunfo das técnicas baseadas na informação e que iriam revolucionar doravante a economia e a política, antes de incluir a cultura no processo global das mudanças. (SANTOS, 1996, p.191).

Com a tecnociência, abre-se a possibilidade de entender a dinâmica mundial, a

partir da análise da racionalidade do lugar, atentando-se para os acontecimentos que nele se

situam:

O nível global e o nível local do acontecer são conjuntamente essenciais ao entendimento do mundo e do lugar. Mas o acontecer local é referido (em última instância) ao acontecer mundial. Desde o nascimento, o acontecimento se inclui num sistema para o qual atrai o objeto que ele acabou de habitar. O acontecimento é a cristalização de um momento da totalidade em processo de totalização. Isso quer dizer que outros acontecimentos, levados pelo mesmo movimento, se inserem em outros objetos no mesmo momento. Em conjunto, esses acontecimentos reproduzem a totalidade; por isso são complementares e se explicam entre si. Cada evento é um fruto do Mundo e do lugar ao mesmo tempo. (SANTOS, 1996, p. 164).

Assim, o lugar passa a explicar o mundo enquanto unidade mínima de análise do

próprio acontecer mundial, o que é uma vantagem epistemológica. A tecnociência, incluídas

as midiáticas, que tem o poder de reunir todas as técnicas, reúne também o acontecer dos

lugares em tempo real e empiriciza a totalidade, assegurando um novo sistema técnico

planetário. Esse sistema técnico planetário é prenhe de aspectos políticos e não pode ser

apartado da análise do território e do espaço. A eficácia da ação globalizada, cuja origem é

remota, depende de uma localização seletiva, sua expressão geográfica é a desorganização do

território e a desigualdade dos lugares. Decorre disso a importância do lugar como a escala

mínima geográfica que permitirá uma análise do espaço tomado por um todo. O lugar é escala

que, quando incorpora uma sequência de eventos, funciona enquanto um recorte espacial

totalizante do espaço.

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Figura 16 - Semiose: espaço, técnica e lugar: técnica: representamen 1; espaço: objeto

dinâmico; ação, objetos, eventos, universalidade e particularidade, totalidade e totalização,

temporalização e temporalidade, rugosidade, racionalidade do espaço, ordem mundial e

ordem local: objetos imediatos; racionalidade do lugar: interpretante 1; meio geográfico

técnico-científico-informacional: representamen 2; racionalidade do lugar: interpretante 2.

! Fonte: Elaboração nossa, com base em Peirce.

Na figura 16, temos a análise semiótica da centralidade da categoria técnica que

ocupa o papel da primeira posição lógico-formal, representamen, forma expressiva do

conceito de espaço que, por sua vez, ocupa a segunda posição lógico-formal de objeto

dinâmico. A técnica traz para a posição de objeto imediato as categorias de análise: ação,

objetos, eventos, universalidade e particularidade, totalidade e totalização, temporalização e a

temporalidade, rugosidade, racionalidade do espaço, ordem mundial e ordem local.

A relação estabelecida entre técnica e o conceito de espaço é expressa pelo

potencial sígnico da técnica em incluir na semiose as categorias indicadas como objeto

imediato, que provocam um efeito de interpretação expresso pela racionalidade do lugar como

interpretante, terceira posição lógico formal. O lugar corresponde ao meio geográfico técnico-

científico-informacional, enquanto escala mínima de uma análise totalizante. Como a técnica

permite a periodização do espaço, por meio dela é conferido ao evento seu caráter espaço-

temporal. Na figura 17, está expresso o potencial sígnico da categoria técnica em dar

temporalidade ao evento enquanto um acontecimento espaço-temporal, um encontro entre a

espacialidade e a ação intencional humana que aponta, a exemplo da semiose anterior, para a

�119

racionalidade do lugar como interpretante. Essa semiose é a passagem para a semiose da

categoria evento como réplica do espaço.

Figura 17 - Semiose: técnica, evento e lugar: técnica: representamen 1; evento: objeto

dinâmico; encontro espaço-temporal entre a ação intencional humana e os objetos: objetos

imediatos; racionalidade do lugar: interpretante 1; meio geográfico técnico-científico-

informacional: representamen 2; racionalidade do lugar: interpretante 2.

!

Fonte: Elaboração nossa, com base em Peirce.

Os eventos, enquanto acontecimento, corporificam o encontro da ação humana

com a materialidade e expressam o resultado da ação do mundo híbrido do significado

humano e da matéria. Nesse sentido, a categoria evento figura como o coração da teoria

geográfica de Milton Santos:

Um evento é o resultado de um feixe de vetores, conduzido por um processo, levando uma nova função ao meio preexistente. Mas o evento só é identificável quando ele é percebido, isto é, quando se perfaz e se completa. E o evento somente se completa quando integrado no meio. Somente aí há o evento, não antes. Segundo Simmel (1903, p. 43) o rendez-vous tanto denota o encontro, quanto o lugar do encontro. Se aquele feixe de vetores pudesse ser parado no caminho, antes de se instalar, não haveria evento. A ação não se dá sem que haja um objeto; e, quando exercida, acaba por se redefinir como ação e por redefinir o objeto. Por isso os eventos estão no próprio coração da interpretação geográfica dos fenómenos sociais. (SANTOS, 1996, p. 95).

Na associação de ideias em Milton Santos, o espaço – conjunto indissociável entre

sistema de ação e sistema de objetos, corresponde à realidade em movimento que ocupa o

lugar de objeto dinâmico.

�120

Como lei geral no contexto da teoria miltoniana, o conceito de espaço é um

símbolo ou legi-signo que age através do evento, o que significa dizer que todas as vezes em

que eventos ocorrem nos lugares, eles reproduzem o espaço em sua forma expressiva. Como

tal, o evento é a réplica do espaço, ele também um signo de lei. Sua referência aponta para a

realidade, mas de uma forma mais genuína do que signos que referenciam existentes, no

sentido de particulares. Milton Santos diz que “São os eventos que constituem os vetores

dessa metamorfose, unindo objetos e ações. Não se trata de um tempo sem nome, mas de um

tempo empiricizado, concreto, dado exatamente através desse portador de um acontecer

histórico, que é o evento.” (SANTOS, 1996, p. 25). Assim, o evento registra o movimento do

espaço por réplicas, na passagem de evento a outro.

O evento produz um efeito interpretativo lógico possibilitado pela racionalidade

do meio técnico-científico-informacional. No retorno da semiose do espaço pelo vetor de

representação, cabe às racionalidades o papel da terceira posição lógico-formal do signo de

Peirce: o interpretante.

A ação interpretativa das racionalidades pode gerar novos eventos, o que confere

o caráter surpresivo da história. Esse interpretante então assume o lugar do representamen na

forma expressiva de outro evento:

Os eventos são atuais, absolutos, individualizados, finitos, sucessivos. Mas na medida em que se estendem uns sobre os outros, participando uns dos outros, eles estão criando a continuidade do mundo vivente e em movimento (Leslie Paul, 1961, p. 126), ou, em outras palavras, a continuidade temporal e a coerência espacial. É assim que as situações geográficas se criam e recriam. (SANTOS, 1996, p. 95).

A semiose do espaço se movimenta a partir dos interpretantes, com a

possibilidade de novas racionalidades. Evidências de novas formas de pensar e de agir, que

são coletivas e derivam da solidariedade do lugar vivido, podem resultar em novos eventos,

conforme apresentado no figura 18 que segue:

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Figura 18 - Semiose: realidade em movimento, evento e lugar: evento: representamen 1;

realidade em movimento: objeto dinâmico; categorias internas e externas ao espaço: objetos

imediatos; racionalidade do lugar: interpretante 1; novos eventos: representamen 2;

racionalidade do lugar: interpretante 2.

!

Fonte: Elaboração nossa, com base em Peirce.

O movimento da semiose da figura 17, também expressa o embate ideológico da

racionalidade do globalitarismo e das novas racionalidades, expresso pela mudança da

posição lógico-formal do interpretante para o próximo representamen na forma de um novo

evento, e assim sucessivamente. A semiose do espaço assume, então, um caráter surpresivo e

demonstra a forma pela qual o espaço participa na construção da história.

O evento enquanto réplica não esgota o símbolo espaço. Na semiose espacial, essa

assertiva se assemelha a dizer que o espaço como um conjunto indissociável entre o sistema

de ações e o sistema de objeto, ainda que se expresse a cada incidência de um evento, é mais

do que a soma de todos os eventos no mundo. “Se o evento esgota as suas próprias

possibilidades, jamais ele esgota ou utiliza todas as possibilidades oferecidas pelo mundo”.

(SANTOS, 1996, p. 160).

Pela semiose, é possível observar a expansão de evento a evento, sem que o

espaço/realidade em movimento seja esgotado em sua interpretação, porque o espaço como

realidade é inconcluso e dinâmico.

O evento tem esse poder de representar o movimento da realidade espacial

porque, com as tecnociências, um evento pode estar simultaneamente em vários lugares. Ele

�122

manifesta não só o caráter indissociável da ação e do objeto, mas une, também, tempo e

espacialidade. O evento internaliza as categorias técnica e lugar, a possibilidade de seu

acontecer é dada pela técnica, e a oportunidade do seu acontecer é dada pelo lugar.

O evento também se encarrega de incluir na cadeia da semiose do espaço as

demais categorias de Milton Santos, todas em nível de terceiridade. Ou seja, as categorias

miltonianas, que são símbolos, se tornam internas à semiose, permitindo uma análise

interpretativa totalizante, ocupando a posição lógica de objeto imediato.

�123

Capítulo 12. Internalização das Categorias de Milton Santos na semiose do espaço

Nosso objetivo neste capítulo é proceder à analise da internalização das categorias

presentes em O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo e em Por uma geografia nova no

método presente em A natureza do espaço, seguindo nossa hipótese de que o método

apresentado em A natureza do espaço espelhou a triadicidade que qualificou o pensamento de

Milton Santos e que o permitiu supor o espaço sob um sistema geral de regras, no intuito de

prever o curso futuro de sua conduta.

No plano do pensamento, quando pretendemos explicar de forma sistemática o

que percebemos, temos que lançar mão de um raciocínio deliberado. Uma construção teórica

está sob o crivo da categoria da terceiridade, porque é generalização.

É possível que determinada construção teórica seja marcada pela secundidade da

terceridade. São constructos teóricos que partem de díadas enquanto fundamentos para seu

desenvolvimento. A tendência de teorias sob o domínio da secundidade da terceiridade é

confinar o pensamento à repetição de um movimento pendular que segue e retorna de um polo

a outro, sem possibilidade de expansão.

Todas as críticas empreendidas por Milton Santos à geografia foram direcionadas

a sistematizações teóricas cujos pensamento de base tem por domínio a secundidade da

terceiridade. Em nossa avaliação, o que distingue Milton Santos em seu processo de

teorização é a forma qualitativa com que as categorias peirceanas afloram em seu

pensamento, qualificando-o como um pensador em seu tempo.

Em O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo, sua análise crítica se dirigiu às

díadas entre geografia geral e regional, homem e meio geográfico, presentes no conceito

clássico de região, ambas ancoradas na distinção entre concreto e abstrato.

A figura 19 compara as relações que marcam um pensamento de secundidade na

terceiridade e as relações que marcam o pensamento triádico de Milton Santos, com base na

análise crítica que ele empreendeu na obra:

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Figura 19 - Diádas e tríadas em O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo

Fonte: Elaboração nossa, com base em Peirce.

Seu ponto de partida é conferir a dinâmica necessária para a análise, elegendo os

mecanismos como categoria de análise que, além de darem o movimento necessário às 40

relações entre as variáveis, incluem também a referência aos fatores externos. Associar os

fatores exógenos à rede urbana também é o papel da categoria paisagem derivada, cabendo às

rugosidades marcarem o passado no presente e inscreverem a acumulação de tempos na

materialidade do espaço.

As categorias de Milton Santos, que aparecem na figura 19, não podem ser

analisadas apartadas umas das outras. O que marca o caráter triádico do pensamento de

Milton Santos em O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo é a preocupação em estabelecer

relações entre as tríadas, para empreender uma análise cuja síntese que fosse capaz de dar

revelar a dinâmica dos países subdesenvolvidos.

Em Por uma geografia nova, Milton Santos mantém o propósito de construir um

método capaz de conferir temporalidade ao espaço e incluir os fatores distantes de decisão a

Em O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo, Milton Santos denomina as categorias de unidades de análise. Em nossa 40

análise as referimos como categorias.

�125

fim de marcar a característica social do espaço. Para isso, amplia o diálogo interdisciplinar da

economia política, que marcou a interdisciplinaridade em O trabalho do geógrafo no Terceiro

Mundo, para a filosofia, com destaque para o existencialismo de Sartre e o marxismo de Marx

e Engels.

Com a expansão do diálogo interdisciplinar, as tríadas em seu pensamento se

proliferam e surge, em Por uma geografia nova, a preocupação metodológica sistematizada

em identificar a universalidade na particularidade. Na obra, Milton Santos coloca em diálogo

as noções de totalidade e totalização de Sartre com as características de horizontalidade e

verticalidade de Engels.

A figura 20 elenca as tríadas identificadas em Por uma geografia nova, para

sinalizar não só o pensamento triádico de Milton Santos, mas sua expansão desde a obra O

trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo até Por uma geografia nova:

Figura 20 - Tríadas em Por uma geografia nova

Fonte: Elaboração nossa, com base em Peirce.

O papel de diferenciação dos subespaços, resultado das diversas combinações de

forças de produção que atuam em nível de generalidade, é dado pela formação social, na

�126

tríada (modos de produção - formação social - espaço). Essa tríada permite, além da

diferenciação dos subespaços, a entrada operacional de conceitos da economia política,

qualificando o espaço enquanto formação econômica social, o que, por sua vez, o torna uma

unidade de análise para a incidência das forças produtivas que atuam na dinâmica do

capitalismo, conferindo historicidade à análise geográfica. A inclusão das escalas exógenas ao

subespaço ao método, vem da influência de Engels, expressa na tríada (relações verticais e

relações horizontais - fatores exógenos - espaço).

As tríadas (rugosidade - passado no presente - espaço) e (formas-conteúdo - futuro

no presente - espaço) permitem que o método seja capaz de tratar a análise espaço-temporal.

A presença das formas-conteúdo marca o futuro no espaço, por meio dos interesses inscritos

nos objetos geográficos .

O protagonismo do espaço é sinalizado pela tríada (inércia dinâmica - autonomia

relativa - espaço) que impede que as forças exógenas executem plenamente sua

intencionalidade em função da materialidade. O conceito de inércia dinâmica se inspira no

conceito de prático-inerte em Sartre.

É de Sartre também a inspiração da tríada (totalidade/totalização - universalidade/

particularidade - dinâmica espacial). Essa tríada é de especial relevância, porque, além de

permitir tratar da universalidade na particularidade dos subespaços, permite um aproximação

metodológica do movimento do espaço, dado pela totalidade como cisão do movimento da

totalização.

Cotejaremos dois trechos que seguem na citação das duas primeiras obras, para

demostrar a atenção permanente de Milton Santos em espelhar em categorias de método o seu

pensamento triádico. A primeira citação é de O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo, a

segunda, de Por uma geografia nova:

Trata-se, efetivamente, de uma pesquisa do tempo espacial, que vem a ser uma síntese permanente, o resultado de uma acumulação, permitindo distinguir as diferentes porções da superfície do planeta, com suas estruturas e comportamentos próprios. Essas acumulação apresenta características de um precipitado: como na química, o que daí resulta adquire qualidades independentes das de seus componentes. (SANTOS, 1978a, p.75, grifo do autor).

O espaço se define por uma combinação integral de variáveis e não por uma ou alguma delas, por mais significativas que sejam. Cada variável é inteiramente desprovida de significação fora do sistema ao qual pertence. Na verdade, as variáveis isoladas perdem sua especificidade quando passam por um processo de interação localizada. A elaboração e a reelaboração dos espaços (formação e evolução) são processos químicos: a individualidade do espaço resultante provém de um certo tipo de combinação. E a continuidade do espaço é assegurada pelo fato de

�127

que cada combinação é também fruto da combinação precedente. (SANTOS, 1978b, p. 255).

À alusão à química, presentes nas duas passagens citadas, se aproxima da

irredutibilidade dos elementos lógicos advindos da lógica das relações em Peirce, a tríada é

um elemento com características próprias que, caso decomposto, perde a natureza que o

caracteriza.

Na obra A natureza do espaço, o método é desenhado para dar tratamento às

questões constitucionais na conceituação do espaço: a união espaço-tempo, o papel do lugar

no processo social; o período atual – caracterizado pela globalização e pela técnica científico-

informacional; a interação entre os objetos e as ações fundamentadas pela intencionalidade

humana, mediada pela técnica.

Cabem às categorias técnica e evento internalizar as categorias apresentadas em

em Por uma geografia nova, conforme a figura 21:

Figura 21 - Internalização Internalização modo de produção e relações verticais e horizontais

! Fonte: Elaboração nossa, com base em Peirce.

�128

A figura 21 mostra a internalização das categorias modos de produção e relações

verticais e horizontais, presentes em Por uma geografia nova, pela categoria técnica presente

em A natureza do espaço. A tríada formada pela técnica (técnica - modo de produção -

relações verticais e horizontais) possibilita a entrada das tríadas formadas pelas categorias de

Por uma geografia nova.

Essa forma gráfica de exposição das tríadas sinaliza também a expansão do

pensamento triádico de Milton Santos, na medida em que, quando a técnica internaliza as

tríadas de Por uma geografia nova, ela inclui também as relações que advêm dessas tríadas.

Essa internalização se dá porque a técnica que caracteriza o modo de produção

atual é a tecnociência, o instrumento da eficácia da ação globalizada. A técnica, ao

internalizar as relações verticais e horizontais de Por uma geografia nova, internaliza também

as escalas exógenas ao lugar de incidência dos atores hegemônicos da globalização que

alcança os territórios nacionais como espaços nacional da economia internacional, o que

intensifica o papel do estado o papel das normas que regulam a entrada das forças produtivas

no território nacional, internalizando as normas, a ordem mundial e a ordem local. Milton

Santos, em A natureza do espaço estabelece as categorias da verticalidades e horizontalidades

que têm sua origem nas relações verticais e horizontais de Engels, tratadas quando da análise

da obra Por uma geografia nova.

�129

Figura 22 – Tríada técnica, totalidade e meio técnico-científico-informacional

! Fonte: Elaboração nossa, com base em Peirce.

A internalização da categoria totalidade e totalização deve ser compreendida a

partir da tríada (técnica - totalidade/totalização - meio técnico-científico-informacional). Essa

tríada é a que possibilita a internalização da universalidade/particularidade e da dinâmica

espacial. É a técnica que confere ao meio geográfico a qualidade de técnico-científico-

informacional:

Nesse período, os objetos técnicos tendem a ser ao mesmo tempo técnicos e informacionais, já que, graças à extrema intencionalidade de sua produção e localização, eles já surgem como informação. Já hoje, quando nos referimos às manifestações geográficas decorrentes dos novos progressos, não é mais de meio técnico que se trata. Estamos diante da produção de algo novo, a que estamos chamando de meio técnico-científico-informacional. (SANTOS, 1996, p. 238, grifo do autor).

A intencionalidade imputada pela técnica ao meio geográfico tem desdobramentos

significativos para o método, porque os objetos, que participam do conceito de espaço em

indissociabilidade com a ação, também se tornam dotados de intencionalidade, o que confere

ao meio geográfico uma racionalidade.

A intencionalidade do meio geográfico técnico-científico-informacional se faz

presente também nas categorias da paisagem e da configuração social, ambas entendidas

�130

como formas heterogêneas e sociogeográficas. Esse mesmo meio geográfico confere

intencionalidade aos objetos, que já nascem ideológicos, características dadas pelas categorias

da idealização, dos símbolos e a da ideologia.

Ao trazer em tríada o meio técnico-científico-informacional em relação com a

totalidade/ totalização pela técnica, Milton Santos encontra uma solução de método para a

análise totalizante do lugar como particularidade, e o põe o lugar em relação triádica com a

universalidade. Esse é um salto metodológico de peso, porque seu pensamento sempre buscou

superar a dicotomia da geografia geral e regional, que não é capaz de alcançar a compreensão

do universal no particular. Assim, a técnica vista enquanto mediação espelha em método a

expressão do pensamento triádico de Milton Santos.

A totalidade e a totalização, da mesma maneira que as relações horizontais e

verticais, por sofrerem um tratamento mais detalhado em A natureza do espaço, são elevadas

à categorias de análise do espaço. Milton Santos, então, vai em busca da expressão geográfica

do momento da cisão da totalidade, para definir o modo com o qual determinado espaço se

mostra em atualidade, no instante mesmo da análise. A categoria responsável por expressar a

cisão da totalidade, pela totalização, é o evento.

O evento também registra o momento em que o espaço forma conteúdo, quando a

ação intencional do homem incide sobre os objetos já dotados de significação e

intencionalidade, por mediação da técnica. O evento é o responsável por registrar o encontro

do tempo e do espaço e seu sentido tem origem no termo acontecer, que aparece inúmeras

vezes em Por uma geografia nova, mas não entra ainda como uma categoria de análise.

A palavra acontecer que incide várias vezes na obra Por uma geografia nova, tem

o potencial de remeter à ideia de um momento materializado, a localização espaço-temporal

da cisão da totalidade, que, em nosso posicionamento, é o termo que se expande em

significado para o evento, que assumirá o papel, enquanto categoria de análise, de apreender

metodologicamente o espaço no momento em que se movimenta. Diz Milton Santos em Por

uma geografia nova:

Como o acontecer social, aqui enunciado como acontecer geográfico, depende da sociedade como um todo, cada acontecer particular representa uma determinação da sociedade como um todo e um lugar próprio que o define, acrescentando à sua dimensão social original, uma dimensão que é, de uma só vez, temporal e espacial. Lugares e área, regiões ou subespaços são, pois, unicamente áreas funcionais, cuja escala real depende dos processos. (SANTOS, 1978b, p. 219, grifo nosso).

�131

Em Técnica, espaço e tempo, obra publicada dois anos antes da publicação de A

natureza do espaço, Milton Santos ainda se utliza da palavra acontecer para sinalizar o

encontro das ações nos objetos, visto enquanto processo, onde o todo em sua cisão produz o

múltiplo, em uma ordem temporal, do presente para o futuro. Para não esvaziar o movimento,

ele busca apreender a sua cisão e a atenção de seu pensamento estava, à época, voltada para a

noção de acontecer:

O acontecer é o encontro de muitas ações num objeto. É o acontecer que tem a vida e a existência real. O acontecer tem a cara própria em cada lugar; uma individualidade é um indivíduo. O acontecer é o todo tornando-se existência. O todo existe através de indivíduos aparentemente separado, mas irmanados no todo que lhe deu origem e no todo que é resultado. O todo se dá realmente, objetivamente, empiricamente através dos aconteceres particulares que são diferentes. (SANTOS, 1994, p. 157, grifo nosso).

Em A natureza do espaço, Milton Santos elege o evento enquanto categoria de

empiricização da cisão da totalidade, colocando-o em relação com as ações e com os objetos

que formam a indissociabilidade do espaço:

Mas o evento só é identificável quando ele é percebido, isto é, quando se perfaz e se completa. E o evento somente se completa quando integrado no meio. Somente aí há o evento, não antes. Segundo Simmel (1903, p. 43) o rendez-vous tanto denota o encontro, quanto o lugar do encontro. Se aquele feixe de vetores pudesse ser parado no caminho, antes de se instalar, não haveria evento. A ação não se dá sem que haja um objeto; e, quando exercida, acaba por se redefinir como ação e por redefinir o objeto. Por isso os eventos estão no próprio coração da interpretação geográfica dos fenómenos sociais. (SANTOS, 1996, p. 95, grifo nosso).

A centralidade que o evento ocupa na interpretação geográfica e é dada pelo papel

de mediação da técnica, que qualifica o meio geográfico como técnico-científico-

informacional, conferindo aos objetos o poder de produzir significado:

O que realmente se dá, nestes nossos dias, é a possibilidade de conhecer instantaneamente eventos longínquos e, assim, a possibilidade de perceber a sua simultaneidade. O evento é uma manifestação corpórea do tempo histórico, algo como se a chamada flecha do tempo apontasse e pousasse num ponto dado da superfície da terra, povoando-o com um novo acontecer. Quando, no mesmo instante, outro ponto é atingido e podemos conhecer o acontecer que ali se instalou, então estamos presenciando uma convergência dos momentos e sua unicidade se estabelece através das técnicas atuais de comunicação. (SANTOS, 1996, p. 196).

�132

A técnica posiciona o evento como forma expressiva da cisão da totalidade em

relação com o meio geográfico, na mesma posição que ela ocupa na figura 19.

Um evento é a causa do outro, mas o faz pela via do universo, com a intermediação da totalidade, conforme à totalidade. Isto tanto se dá com os grandes fatores de mudança global, como em níveis inferiores e em episódios banais. Uma modificação em um quarteirão afeta outros e não só os vizinhos. Melhorar o trânsito em uma área repercute em outras positivamente ou negativamente caso não sejam alterados o traçado das vias ou a estrutura do movimento. “a verdade não está no céu absoluto das essências, mas na trama complexa dos próprios acontecimentos”. (SANTOS, 1996, p. 162-163, grifo nosso).

Figura 23 - Tríada evento, totalidade/totalização, meio técnico-científico-informacional

Fonte: Elaboração nossa, com base em Peirce.

O evento atua colocando em relação a tríada (totalidade/totalização -

universalidade/particularidade - dinâmica espacial) e a tríada (meio técnico-científico-

informacional - sistema de ação e sistema de objetos), dele é o potencial de registrar o

momento da cisão da totalidade. Ao formar a tríada (meio técnico-científico-informacional -

�133

sistema de ação e sistema de objetos) ele comporta em seu significado o conceito do espaço,

dado em A natureza do espaço.

A indissociabilidade presente no conceito de espaço enquanto símbolo - o espaço

é convencionado por Milton Santos como o conjunto indissociável do sistema de ação e do

sistema de objetos - encontra a sua forma expressiva na categoria evento, em relação triádica.

O evento é o representamen do espaço, sua expressão em atualidade, ocupando na semiose do

espaço a segunda posição lógico-formal.

Ao incluir a tríada (totalidade/totalização - universalidade/particularidade -

dinâmica espacial), o evento comporta em seu significado, com o potencial de signo que é, de

incluir também a dinâmica espacial, expressa pela articulação entre totalidade e totalização. O

evento passa a ser, então, não apenas a forma expressiva ou representamen do espaço como se

mostra em atualidade, mas também como se mostra em seu movimento.

Quando o evento forma a tríada (evento - totalidade/totalização - meio técnico-

científico-informacional) ele também inclui as outras duas tríadas, temos, assim, uma

combinação complexa de tríadas.

São diversas e inúmeras as combinações triádicas possibilitadas pelo evento entre

as categorias que compõem a obra e em relação às categorias das obras anteriores que são

internalizadas em A natureza do espaço.

Quando analisamos as três obras é possível perceber a insistência de Milton

Santos ao afirmar que nenhuma unidade de análise ou categoria pode ser compreendida com

autonomia própria. Esse posicionamento serve para sinalizar que um método capaz de

alcançar a atualidade em movimento, deve comportar relações complexas entre suas

categorias de análise, necessariamente tomadas em conjunto para viabilizarem um quadro

único de análise.

Até esse momento da pesquisa, podemos afirmar que seu pensamento se mostrou

triádico, desde O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo. Pensamento que inicia nas duas

obras, O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo e em Por uma geografia nova, pela análise

crítica de conceitos sedimentados da geografia. Tais críticas nunca foram gratuitas.

As análises críticas que Milton Santos empreendeu se prestam a sinalizar a

deficiência de teorias sustentadas em relações de causalidade, que têm por fundamento, um

pensamento pendular sob o domínio da secundidade da terceiridade. Iniciar pela análise

�134

crítica, mais do que proceder a crítica pela crítica, foi o meio que Milton Santos encontrou

para justificar a sua busca por novos caminhos de teorização.

Em o trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo, o caminho era, partindo do

conceito de espaço como uno, compreender as especificidades dos países subdesenvolvidos, a

partir do diálogo qualificado com a economia política.

Em Por uma geografia nova, a análise se dirigiu ao espaço humano e suas

interlocuções incluíram a economia política, mas se ampliaram para a filosofia. Essa dilatação

da interdisciplinaridade foi uma das variáveis que permitiu a elaboração do método em A

natureza do espaço. Identificamos como uma das variáveis, porque o que de fato o moveu

para a escritura da obra A natureza do espaço, foi o seu desejo de encontrar a melhor forma de

expressar seu pensamento, pensamento cujo propósito seguia um ideal que associamos na

pesquisa com a empatia ou amor ao que é humano.

A complexidade do pensamento triádico, quando expresso em método, resulta

em combinações de tríadas que se proliferam em outras combinações, abertas ao movimento

de representação e interpretação, que caracteriza a ação do signo, ele mesmo uma tríada.

Tríadas crescem e em A natureza do espaço, encontramos inúmeras delas.

Considerando a categoria evento como a responsável pela inclusão das categorias

na semiose do espaço como objetos dinâmicos conforme demonstrado no capítulo 11, o que

passamos agora a proceder é demonstrar as diversas tríadas que ela possibilita, a partir da

análise acompanhada de citações de Milton Santos.

�135

Figura 24 - Tríada evento, rugosidades e formas-conteúdo

! Fonte: Elaboração nossa, com base em Peirce.

A figura 24 expressa o potencial do evento, em seu acontecer de colocar em

relação a materialidade do espaço e os tempos, a partir da tríada (evento - formas-conteúdo -

rugosidades) . Na perspectiva do tempo como eixo das sucessões, o evento representa a

sequência do acontecer; na perspectiva do tempo como eixo das coexistências, o evento

permite a representação da simultaneidade, que é a acumulação do tempo na materialidade do

espaço.

A tríada (evento - formas-conteúdo - rugosidades) traz as tríadas (formas-

conteúdo - materialidade do espaço - furto no presente) e (rugosidades - materializada do

espaço - passado no presente).

A possibilidade do evento, pela inclusão da materialidade do espaço presente nas

tríadas trazidas pelas rugosidades e pela forma-conteúdo, é dada pelo lugar de sua incidência.

Com a materialidade que se impõe pelas rugosidades e pelas formas-conteúdo, o evento é

condicionado e condiciona a criação de novas formas. Assim, o evento revela o encontro do

passado e presente, inscritos na materialidade das formas cristalizadas (rugosidades) com o

futuro, dado pela expressão da intencionalidade do espaço, nas formas-conteúdo.

�136

A cada evento, a forma se recria. [...] Ela significa que o evento, para se realizar, encaixa-se na forma disponível mais adequada a que se realizem as funções de que é portador. Por outro lado, desde o momento em que o evento se dá, a forma, o objeto que o acolhe ganha uma outra significação, provinda desse encontro. Em termos de significação e de realidade, um não pode ser entendido sem o outro, e, de fato, um não existe sem o outro. Não há como vê-los separadamente. (SANTOS, 1996, p. 102-103, grifo nosso).

A nova significação que surge pelo evento é o resultado da mediação com o meio

técnico-científico-informacional, conforme a figura 25. Como este acumula os tempos, ao

formar conteúdo, cria uma significação nova que provém do encontro da ação com a

materialidade. O evento assim, confere ao espaço a intencionalidade presente também na ação

humana quando incide no espaço:

Os eventos também são ideias e não apenas fatos. Uma inovação é um caso especial de evento, caracterizada pelo aporte a um dado ponto, no tempo e no espaço, de um dado que nele renova um modo de fazer, de organizar ou de entender a realidade. (SANTOS, 1996, p. 148, grifo nosso).

Figura 25 - Tríada evento, intencionalidade e meio técnico-científico-informacional

!

Fonte: Elaboração nossa, com base em Peirce.

�137

Conferir intencionalidade à materialidade, se vista como um recurso de método, é

mais uma maneira de reforçar o protagonismo do espaço no conjunto indissociável do sistema

de ação e sistema de objetos. O evento, ao trazer em relação a tríada (intencionalidade - ação

humana - sistema de objetos) qualifica a tríada (meio técnico-científico-informacional - foram

conteúdo - rugosidades) como produtora de significados, por encerrar em sua materialidade,

uma intencionalidade.

O evento, permite o encontro entre as intencionalidades da ação humana e dos

objetos em extenso, esse encontro materializado produz um significado diverso do

inicialmente pretendido pela ação humana.

Vem daí a imprevisibilidade do espaço, qualidade que estava presente no

pensamento de Milton Santos e que encontra sua expressão metodológica, em A natureza do

espaço, na assertiva de que os eventos ocorrem no lugar. É a qualidade tantas vezes sinalizada

por Milton Santos de que o espaço é “surpresivo”.

É do evento também o potencial de incluir a divisão do trabalho, internalizando-a

à análise do espaço e, como isso alcança também questões tratadas no diálogo interdisciplinar

de Milton Santos com a economia política, conforme a figura 26.

�138

Figura 26 - Tríada evento, divisão do trabalho e totalidade/totalização em combinação com a

tríada evento, formas-conteúdo e rugosidades

!

Fonte: Elaboração nossa, com base em Peirce.

O motor do evento, a força que impulsiona sua formação é a categoria divisão do

trabalho, é dela também o papel de motor de diferenciação do espaço. Para análise dessa

categoria, são necessárias duas tríadas, mediadas pelo evento, a composta pela tríada (evento -

totalidade - divisão do trabalho) e tríada (evento - formas-conteúdo - rugosidades).

A divisão do trabalho, como motor da diferenciação espacial, aparece nas

distribuição dos eventos no espaço geográfico e está sujeita ao protagonismo do espaço que

atua pelas formas-conteúdo, pelas rugosidade e pela própria intencionalidade que o espaço

encerra como meio técnico-científico-informacional.

A categoria divisão do trabalho pode ser mais largamente explorada nos estudos geográficos. Trata-se de combiná-la, mais sistematicamente, às noções de totalidade e de tempo, associando a ideia de distribuição de recursos à própria noção de evento. A divisão do trabalho constitui um motor da vida social e da diferenciação espacial. (SANTOS, 1996, p. 129, grifo nosso).

Milton Santos teve durante sua trajetória intelectual o desafio de transpor em

método o protagonismo do espaço, incluindo em sua teoria a explicação de como o espaço

contribui para o movimento da história.

�139

O protagonismo do espaço, para Milton Santos deveria comportar também sua

qualidade surpresiva, aquilo próprio do espaço que sinalizasse seu vir-a-ser, como

possibilidade de construção de um mundo solidário. O vir-a-ser do espaço está na categoria

lugar: “No lugar, estamos condenados a conhecer o mundo pelo que ele já é, mas, também,

pelo o que ele ainda não é. O futuro, e não o passado, torna-se a nossa âncora.” (SANTOS,

2005, p. 163).

Categorias como as rugosidades e as formas-conteúdo, universalidade e a

particularidade, a totalidade e totalização, a temporalização e a temporalidade, em

combinação mediada pela técnica, conferem às diferenciações do espaço o caráter de meio

geográfico técnico-científico-informacional, dotado de intencionalidade. É a partir da

intencionalidade compreendida nas tríadas do método, que o espaço produz racionalidade e

seu protagonismo é expresso no evento como encontro da ação intencional do homem com o

objeto.

O que marca a qualidade “surpresiva" do espaço, contudo, são as tríadas postas e,

relação pela tríada (evento - lugar - acontecer solidário). Nessas relações, o lugar assume em

A natureza do espaço uma conceituação totalmente original, quando Milton Santos o eleva à

categoria totalizante do espaço. Evento e lugar são as categorias-chave para a compreensão

das condições de possibilidade e oportunidade ofertadas pela união espaço-temporal:

Os eventos operam essa ligação entre os lugares e uma história em movimento. A região e o lugar, aliás, definem-se como funcionalização do mundo e é por eles que o mundo é percebido empiricamente. (...) Tanto a região quanto o lugar são subespaços subordinados às mesmas leis gerais de evolução, onde o tempo empiricizado entra como condição de possibilidade e a entidade geográfica preexistente entra como condição de oportunidade. (SANTOS, 1996, p. 165).

�140

Figura 27 - Tríada evento, lugar e escala do acontecer

!

Fonte: Elaboração nossa, com base em Peirce.

A figura 27 mostra a tríada evento - lugar - escala geográfica como escala do

acontecer, essa fusão é dada porque os eventos quando acontecem, ocorrem nos lugares. Diz

Milton Santos: O conteúdo das diversas áreas tem o que ver com a natureza dos eventos que nela se estendem. (SANTOS, 1996, p. 150). A noção de escala do acontecer pode assim ser fundida com a noção de escala geográfica. (SANTOS, 1996, p. 155).

O lugar, sendo a oportunidade do evento, internaliza os significados advindos das

tríadas que o evento media. Assim, a tríada (evento - totalidade - divisão do trabalho) e tríada

(evento - formas-conteúdo - rugosidades) qualificam a sequência da ocorrência dos eventos

no lugar, é nesse sentido que Milton Santos é capaz de, metodologicamente, fundir a escala

geográfica com a escala do acontecer, combinando a particularidade na universalidade e a

temporalidade na materialidade.

�141

O lugar é a oportunidade do evento. E este, ao retornar espaço, ainda que não perca as suas marcas de origem, ganha características locais. É como se a flecha do tempo se entortasse no contato com o lugar. O evento é, ao mesmo tempo, deformante e deformado. Por isso fala-se na imprevisibilidade do evento, a que Ricoeur chama de autonomia, a possibilidade, no lugar, de construir uma história das ações que seja diferente do projeto dos atores hegemônicos. É esse o grande papel do lugar na produção da história, e apontá-lo é a grande tarefa dos geógrafos neste fim de século. (SANTOS, 2005, p.163).

O papel da categoria lugar, qualificado como uma unidade totalizante do espaço,

além de ser responsável pelo redimensionamento das escalas geográficas, é responsável por

qualificar o mundo como possibilidade. Milton Santos afasta pelo método, a noção de

determinismo do espaço, o redirecionando para o futuro.

O mundo como possibilidade é viabilizado metodologicamente pela tríada

apresentada na figura 28 (evento - lugar - acontecer solidário).

Figura 28 - Tríada evento, lugar e acontecer solidário

!

Fonte: Elaboração nossa, com base em Peirce.

�142

O caráter solidário do evento se dá exclusivamente no espaço banal, aquele

espaço de todos, que o compartilham pela contiguidade. “ O entorno vivido é um lugar de

troca, matriz de um processo intelectual” (SANTOS, 1987, p.81). A experiência cotidiana do

território vivido relaciona-se com a cultura do lugar, presente na linguagem, na forma de

alimentação, no trabalho, estas também vivas e em movimento pelas varias situações de troca

intersubjetiva que o lugar possibilita.

A densidade comunicacional resulta daquilo a que G. Berger (1964, p, 173) chamou de "caráter humano do tempo da ação", já que o evento pode ser visto como práxis intersubjetiva (J. L. Petit, 1991) ou práxis transindividual (Simondon, 1950 p. 248). Esse tempo plural do cotidiano partilhado é o tempo conflitual da co-presença. Como lugar do acontecer solidário, esse espaço banal da geografia (e não o espaço especial, particular, adjetivado, do economista, ou do antropólogo, ou do psicólogo, ou, ainda, do arquiteto ou do filósofo) é criador da interdependência obrigatória e da solidariedade, geradas pelas situações de cara a cara de que fala Schutz (1967, p. 60). Para esse resultado, é essencial que "você e eu tenhamos o mesmo entorno", já que "somente nessa situação [...] posso assumir, com maior ou menor certeza, dentro da realidade diretamente vivida (experimentada) que a mesa que estou vendo é a sua mesma mesa, e a mesma em todas suas situações perspectivas".(SANTOS, 1996, p. 258).

A técnica, internaliza as escalas exógenas ao lugar de incidência dos atores

hegemônicos da globalização e qualifica o lugar como um meio-técnico-científico dotado de

racionalidade. Essa racionalidade é diversa da racionalidade hegemônica dos atores globais,

que atuam em forma de cooperação diversa.

Além do mais, os eventos históricos não se dão isoladamente. Esse não-isolamento se traduz por dois tipos de solidariedade. O primeiro tem como base a origem do evento, sua causa eficiente, cuja incidência se faz, ao mesmo tempo, em diversos lugares, próximos ou longínquos. Trata-se, aqui, de eventos solidários, mas não superpostos: sua ligação vem do movimento de uma totalidade superior à do lugar em que se instalam. O outro tipo de solidariedade tem como base o lugar da objetivação do evento, sua própria geografização. Aqui os diversos eventos concomitantes são solidários porque estão superpostos, ocorrendo numa área comum. No primeiro caso, temos a escala das forças operantes e no segundo temos a área de ocorrência, a escala do fenômeno. (SANTOS, 1996, p. 152).

O lugar é a escala que geografiza os eventos, porque dá o local de sua

objetivação. O lugar possui uma racionalidade própria, que Milton Santos denomina de novas

racionalidades. A dinâmica da racionalidade dominante ocorre a partir da manipulação da

técnica pelos atores hegemônicos do neocapitalismo, a serviço da mais-valia, em escala

mundial. É a base do que Milton Santos denominou de “globalitarismo” – discurso único de

�143

como a informação é dada à humanidade, em que o dinheiro emerge em estado puro, como

motor da vida econômica e social.

O embate ideológico entre racionalidade hegemônica e as novas racionalidades

ocorre no espaço banal, no cotidiano vivido das cidades, que viabiliza esse discurso

planetário, nacional e global. A racionalidade dominante que pretende assegurar o

funcionamento global do neocapitalismo, a partir de uma cooperação vertical pela

manipulação da economia e da política, se encontra no lugar com as novas racionalidades que

ocorrem nas horizontalidades permitidas pela contiguidade espacial.

Porém, a globalização, a despeito do seu significado hegemônico, com o advento

da técnica atual, permite compreender o global a partir do local, possibilitando novas formas

de pensar o mundo:

Todavia, graças à globalização está surgindo uma coisa muito mais forte: hoje é a história da maioria da humanidade que conduz à consciência da existência dessa tercermundização (que de alguma forma inclui também uma parte da população dos países ricos). Há uma formidável contradição em busca de seus intérpretes, em busca de um discurso mais planetário e também nacional e local. Esse discurso é dificultado pelo pensamento único, mas ele pode se fazer.(LEITE, 1999)

Assim, o embate de racionalidades presentes na globalização faz com que a escala

geográfica seja vista na perspectiva do acontecimento e se funda com a escala do acontecer e

com a escala do vivido. Essas novas racionalidades se materializam em eventos, frutos tanto

do mundo como do lugar.

Para perceber historicamente as acumulações de significações passadas na

espacialidade e as origens remotas dos eventos, basta ver a diversidade alienante com que os

eventos são distribuídos no mundo. Essa alienação entre origem do evento e local de sua

incidência define as escalas global, nacional e local. E o lugar, como o locus das novas

racionalidades, assume uma função central na sua epistemologia:

O mundo aparece como primeira totalidade, empiricizada por intermédio das redes. É a grande novidade do nosso tempo, essa produção de uma totalidade não apenas concreta, mas também empírica. A segunda totalidade é o território, um país e um Estado – uma formação socioespacial – totalidade resultante de um contrato e limitada por fronteiras. Mas a mundialização enfraquece as fronteiras e compromete o contrato, mesmo se ainda restam aos Estados numerosas formas de regulação e controle das redes. O lugar é a terceira totalidade, onde fragmentos da rede ganham uma dimensão única e socialmente concreta, graças à ocorrência, na contigüidade, de fenômenos sociais agregados, baseados num acontecer solidário, que é fruto da diversidade e num acontecer repetitivo, que não exclui a surpresa. (SANTOS, 1996 , p. 270).

�144

No mundo contemporâneo, é característica das cidades acumular pessoas em

espaços limitados, o que provoca uma densidade social que induz modos diversos de

cooperação e solidariedade na contiguidade do lugar – espaços sensíveis à criatividade e à

“crítica espontânea de um cotidiano repetitivo” (SANTOS, 1996 , p. 320). A agregação dos

homens nos lugares permite, a partir de novas formas de viver e fazer, a emergência de uma

cultura popular.

É assim que o lugar, como espaço banal, aquele do cotidiano vivido, congrega

diferentes racionalidades derivadas dos usos possíveis dessa mesma técnica que se pretende

“globalitária” e, assim, racionalidades paralelas se impõem frente à racionalidade hegemônica

da globalização. É a força do lugar, cuja ordem local permite o acontecer solidário e

comunicativo:

No lugar – um cotidiano compartilhado entre as mais diversas pessoas, firmas, instituições – cooperação e conflito são a base da vida em comum. Porque cada qual exerce uma ação própria, a vida social se individualiza; e porque a contiguidade é criadora de comunhão, a política se territorializa, com o confronto entre organização e espontaneidade. O lugar é o quadro de referência pragmática ao mundo, do qual lhe vêem solicitações e ordens precisas de ações condicionadas, mas é também o teatro insubstituível das paixões humanas, responsáveis, através da ação comunicativa, pelas mais diversas manifestações da espontaneidade e da criatividade. (SANTOS, 1996, p. 322).

A insurreição proposta por Milton Santos, possível pela dialética renovada, se

viabiliza pela força do lugar. Porque é o lugar, e nenhuma outra escala geográfica, que

permite a contiguidade dos homens condensados em espaços cada vez mais populosos, e

promove novas racionalidades avessas a um pensamento único, nesse processo contínuo de

criação de significado:

Por enquanto o Lugar – não importa sua dimensão – é, espontaneamente, a sede da resistência, às vezes involuntária, da sociedade civil, mas é possível pensar em elevar esse movimento a desígnios mais amplos e escalas mais altas. Para isso é indispensável insistir na necessidade de um conhecimento sistemático da realidade, mediante o tratamento analítico do território, interrogando-o a propósito de sua própria constituição no momento histórico atual. (SANTOS, 1996, p. 259).

A possibilidade de análise do pensamento de Milton Santos, a partir da lógica das

relações, com a vantagem gráfica de visualizar as combinações de seu pensamento em formas

de tríadas, corrobora nossa tese de que, em A natureza do espaço, Milton Santos apresentou

uma forma expressiva capaz de traduzir seu pensamento em método, combinando as

�145

categorias de análise de forma complexa e formando um quadro único. Quadro capaz de

descrever e explicar a natureza do espaço, prevendo o curso futuro de sua conduta e

qualificando esse curso como surpresivo, aberto às novas racionalidades que se contrapõem

ao pensamento único da globalização.

A realidade em movimento e em atualidade permaneceu como fonte da sua

semiose durante a trajetória analisada neste trabalho. Em função disso, Milton Santos

aperfeiçoou seu método e seus conceitos, consciente da falibilidade da investigação científica,

porque a aproximação à realidade é dada em representações regressivas. A partir do desejo de

explicar o mundo que existe independente dele, Milton Santos atentou-se à pré-ideia e à

emoção, e a primeiridade se evidenciou na forma de novas hipóteses, na busca de palavras

que, como signos, fossem capazes de transportar a intuição da pré-ideia pelo vetor da

representação da semiose. Então, o pensamento de Milton Santos partiu da secundidade na

atualidade em movimento, permitiu a entrada da primeiridade na elaboração de hipóteses e

amadureceu em terceiridade a partir do diálogo metadisciplinar, no estabelecimento de

relações triádicas e irredutíveis entre conceitos.

�146

Conclusão

Para Milton Santos, tanto a análise histórica quanto a proposição de conceitos

prestam conta à atualidade, uma vez que “o conceito só é real na medida em que é

atual” (Santos, 1985, p.19). Ao longo de vinte anos de pesquisa, Milton Santos atento à

atualidade, aprimorou seu método e sua conceituação de espaço, no intuito de oferecer à

geografia uma teoria prospectiva para a construção de um espaço solidariamente habitado.

Uma teoria é construída a partir de representações e interpretações

sistematicamente organizadas na busca pela explicação de determinado aspecto da realidade.

A teoria geográfica proposta por Milton Santos, no contexto da linguagem científica, é uma

semiose direcionada à parcela da realidade de interesse da geografia, a saber: o mundo em sua

materialidade e as relações que os homens estabelecem com ele. A centralidade da semiótica

na obra de Peirce está representada pelo grau máximo de abstração e generalidade do conceito

de signo que age em relação triádica ou mediação entre os três elementos lógicos que o

estruturam. Pela análise semiótica, é possível explicar a produção do conhecimento traçando o

movimento de um pensamento a outro, a partir do conceito de signo peirciano.

A estrutura do signo e o mecanismo de passagem de signo a signo, que caracteriza

o movimento de uma mente em expansão, são capazes de prover um protótipo metodológico

promissor para a análise de qualquer teoria científica que busque explicação para a realidade,

considerando realidade como aquilo que é independente do que qualquer individual possa

pensar sobre ela. Nesse aspecto, uma análise semiótica da produção de conhecimento, como

um guia de orientação metodológica, ocorre menos da análise do signo em si, mas da semiose

que o signo engendra, a partir da relação que estabelecem as posições lógico-formais que o

estruturam.

A importância filosófica do signo está em sua estrutura triádica e na estreita

correspondência que mantém com as categorias universais de Peirce. É a inclusão do objeto

de Peirce (segunda posição lógico-formal) que permite ver o signo como mediação fundada

no mundo real, porque a fonte de toda semiose que tenha o potencial de expansão é a

realidade. A produção de conhecimento ocorre segundo um sistema regido por dois vetores de

direções opostas: o de determinação, que parte da realidade (objeto) em direção à

representação; e um vetor de representação, que reage a essa determinação com o retorno de

�147

representações em direção ao objeto, pela ação do interpretante (terceira posição lógico-

formal). Cabe ao interpretante realizar a leitura da relação estabelecida entre a primeira

posição lógico-formal (representamen) e a segunda posição lógico-formal (objeto). A

interlocução entre os dois vetores implica que as posições do signo não permaneçam estáticas

e o que dá movimento à semiose é a troca das posições lógico-formais, à medida que o vetor

de determinação avança para o interpretante e o de representação retorna em direção ao

objeto. O movimento da semiose ocorre porque a realidade determina a produção de um signo

a outro signo, que regressa em direção a ela pelo vetor de representação, pelo interpretante do

signo.

Para mapear a construção teórica de Milton Santos, analisamos a maneira pela

qual as categorias externas e internas ao espaço entraram nas semioses das obras O trabalho

do geógrafo no Terceiro Mundo, em Por uma geografia nova e em A natureza do espaço,

posicionando as categorias do espaço nas posições lógico-formais do signo de Peirce

seguindo a alternância de tais categorias na cadeia de cada semiose, a partir do protótipo de

Parmentier (1985).

Resultados da pesquisa anterior nos sinalizavam a hipótese de que Milton Santos

internalizou as categorias de análise das obras O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo, em

Por uma geografia nova no método presente em A natureza do espaço. Assim, tomando a

sequência de produção das três obras analisadas enquanto uma semiose, analisamos a forma

triádica de internalização de categorias das duas primeiras obras, cotejando tais categorias

com as categorias de A natureza do espaço. Para isso, analisamos o modo triádico com que

Milton Santos combinou as categorias das três obras analisadas que o possibilitou sua

internalização na teoria geográfica apresentada em A natureza do espaço. Esse procedimento

foi realizado tendo por base os elementos lógicos, díadas e tríadas, oriundos da lógica das

relações peirciana.

Para posicionar a semiótica no edifício filosófico peirciano, apresentamos o

funcionamento triádico da semiose genuína como protótipo da lei da mente, a partir das

posições lógico-formais do signo, bem como sua relação com as categorias universais de

Peirce, tomadas como categorias de relação e modalidade, sinalizando as correspondências

das categorias para a classificação dos signos e as operações de generalização e

hipostatização, internalizadas no modo de ser da semiose genuína. Conceituamos ainda o

�148

signo e o modo de funcionamento de uma semiose genuína, definindo o símbolo e sua

correspondência na categoria da terceiridade, a partir da operação de prescindibilidade das

categorias universais peircianas. Apresentamos a articulação entre as ciências normativas e o

pragmaticismo, a fim de contextualizar os fins e o ideal do pensamento de Milton Santos para

cada obra analisada.

Realizamos a análise semiótica de cada obra, identificando os fins e ideal do

pensamento de Milton Santos para, na sequência, definir o tratamento epistemológico dado

por Milton Santos em relação às categorias de análise, à temporalidade e ao método para cada

obra. Essa abordagem de contextualização das obras pela semiótica enquanto ciência

normativa, foi uma escolha de método para sinalizar as motivações, paixões e desejos de

Milton Santos para cada época analisada, uma escolha nossa em tratar do momento histórico

da escritura de cada obra, a partir da perspectiva do próprio autor.

A estrutura do signo, o protótipo da semiose e os elementos lógicos mônadas,

díadas e tríadas nos permitiram identificar a forma triádica com a qual as categorias das obras

O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo e Por uma geografia nova foram internalizadas

por Milton Santos em A natureza do espaço.

O método presente na obra A natureza do espaço possibilitou a internalização das

categorias de análise presentes em O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo e em Por uma

geografia nova, em padrões relacionais triádicos que permitiram Milton Santos identificar a

racionalidade do espaço e a força do lugar como locus de novas racionalidades. A semiose do

espaço expressa o sistema geral da teoria geográfica de Milton Santos, elaborada no intuito de

prever o curso futuro de conduta do espaço e a sua qualidade surpresiva.

Em A natureza do espaço, Milton Santos utilizou as categorias de análise do

espaço como vetores epistemológicos de empiricização da indissociabilidade entre sistema de

ação e sistema de objetos para explicar geograficamente a realidade em movimento,

colocando-as em uma relação eminentemente triádica. Dos resultados encontrados,

selecionamos a centralidade das categorias técnica, evento, racionalidades e lugar na semiose

do espaço. Para traduzir a atualidade, ou o que ele denominou a história do presente, Milton

Santos tratou teoricamente o espaço como um conceito híbrido que encerra uma

intencionalidade espacial que aponta para o futuro, manifestação geográfica que se traduz em

um meio geográfico técnico, científico e informacional.

�149

O espaço em Milton Santos por ser uma racionalidade que se expressa

geograficamente no meio técnico-científico-informacional não é um palco que recebe

indiscriminadamente as ações do homem, mas participa da narrativa da história e interfere no

resultado da mesma.

A técnica é a categoria que permite a periodização espacial, ao determinas as

características do período, ou seja, pela técnica é possível avaliar as condições de suas

transformações do espaço em determinado tempo histórico. A técnica permite a datação do

acontecimento e qualifica o espaço enquanto espaço temporal. As escalas geográficas perdem

seu caráter estático e passam a funcionar como localizações espaço-temporais da

materialidade do mundo objetivo, delimitadas pelo evento no lugar. Decorre disso a

importância do lugar como a escala mínima geográfica que permitirá uma análise do espaço

como um todo. O lugar é a escala que, quando incorpora uma sequência de eventos, funciona

como um recorte espacial totalizante do espaço. Como os eventos acontecem nos lugares, será

a categoria lugar a conferir a localização espaço-temporal dos eventos.

Os eventos como acontecimento corporificam o encontro da ação humana com a

materialidade e expressam o resultado da ação do mundo híbrido do significado humano e da

materialidade. Com a globalização, cada vez mais a causa de um evento vem de origens

estranhas ao lugar, mas quando os objetos acolhem a ação, conferem ao resultado uma

interpretação própria, expressa nas formas geográficas que se mostram como acontecimentos

nos lugares.

Na perspectiva semiótica, a escala do acontecimento é um signo indicial do

espaço, a forma expressiva com a qual o espaço se mostra em atualidade. Pela semiose, é

possível observar a expansão de evento a evento, sem que o espaço seja esgotado em sua

interpretação, porque a racionalidade do espaço como realidade é aberta e dinâmica.

O evento produz um efeito interpretativo lógico que, na teoria da espacialidade, é

possibilitada pela racionalidade do meio técnico-científico-informacional. No retorno da

semiose do espaço pelo vetor de representação, cabe a racionalidade do lugar o papel da

terceira posição lógico-formal do signo de Peirce: o interpretante. A semiose do espaço se

movimenta a partir dos interpretantes lógicos, com a possibilidade de novas racionalidades.

Estes interpretantes podem resultar em eventos abertos a novas significações, veiculadas pelas

redes e por coletivos de homens com interesses comuns, solidariamente juntos na

�150

contiguidade espacial que o lugar permite. O que era um interpretante, então, vai para a

posição de representamen, gerando o movimento da semiose na combinação dos vetores de

determinação e representação.

Se por um lado, a posição privilegiada e o alcance que a semiótica ocupa na

filosofia de Peirce se traduzam como uma vantagem espistemológica para o semioticista

peirciano que tenha interesse no estudo de um determinado campo de conhecimento, por

outro lado, exige do mesmo semioticista situá-la no quadro geral e abstrato da obra peirciana.

Um dos desafios da pesquisa foi avançar nas intersecções da semiótica com a

filosofia o necessário para alcançar os objetivos propostos no trabalho, compreendendo as

categorias universais de Peirce, enquanto categorias de relação e modalidade em vez de

substância e qualidade.

Notadamente, Milton Santos propôs compreender a geografia como uma filosofia

das técnicas, saindo dos limites seguros das bordas de cada ciência particular para qualificar

seu pensamento no diálogo com filósofos, que deveria marcar o caráter interdisciplinar cada

vez mais necessário entre as ciências modernas. Para Milton Santos, o espaço é o mais

interdisciplinar objeto concreto. Guardada a dimensão absoluta que a obra de Peirce assume

na contribuição para o crescimento da razoabilidade do mundo, a pesquisa intencionou

aproximá-los, para evidenciar o mundo como possibilidade, na perspectiva da racionalidade

do espaço humano.

�151

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