pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo puc …...por isso, mais que responder a questões...

198
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Rodrigo Giacomeli Nunes Massud NORMATIVIDADE DOS PRECEDENTES E LEGITIMIDADE DA TRIBUTAÇÃO COISA JULGADA E RESCISÓRIA TRIBUTÁRIA NO CPC/2015 MESTRADO EM DIREITO TRIBUTÁRIO SÃO PAULO 2016

Upload: others

Post on 19-Nov-2020

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Rodrigo Giacomeli Nunes Massud

NORMATIVIDADE DOS PRECEDENTES E LEGITIMIDADE DA TRIBUTAÇÃO

COISA JULGADA E RESCISÓRIA TRIBUTÁRIA NO CPC/2015

MESTRADO EM DIREITO TRIBUTÁRIO

SÃO PAULO

2016

Page 2: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

2

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Rodrigo Giacomeli Nunes Massud

NORMATIVIDADE DOS PRECEDENTES E LEGITIMIDADE DA TRIBUTAÇÃO

COISA JULGADA E RESCISÓRIA TRIBUTÁRIA NO CPC/2015

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,

como exigência parcial para a obtenção do título

de MESTRE em Direito Tributário, sob a

orientação do Professor Dr. Tácio Lacerda Gama.

SÃO PAULO

2016

Page 3: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

3

Folha de aprovação

Rodrigo Giacomeli Nunes Massud

NORMATIVIDADE DOS PRECEDENTES E LEGITIMIDADE DA TRIBUTAÇÃO

COISA JULGADA E RESCISÓRIA TRIBUTÁRIA NO CPC/2015

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,

como exigência parcial para a obtenção do título

de MESTRE em Direito Tributário, sob a

orientação do Professor Dr. Tácio Lacerda Gama.

Data de aprovação: ___/___/____

Banca Examinadora:

________________________________

________________________________

________________________________

Page 4: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

4

NORMATIVIDADE DOS PRECEDENTES E LEGITIMIDADE DA TRIBUTAÇÃO

COISA JULGADA E RESCISÓRIA TRIBUTÁRIA NO CPC/2015

RODRIGO GIACOMELI NUNES MASSUD

RESUMO: Dois grandes fatores se destacam numa síntese temática do trabalho: (i) a

revolução dos estudos da linguagem (linguistic turn) e sua grande repercussão em matéria

de interpretação e constituição da realidade jurídica, com ápice na proposta de isolamento

cognitivo do ser, o chamado abismo do conhecimento; e (ii) a valorização dos precedentes

na conformação das relações jurídico-tributárias e na construção dos sentidos normativos,

com a projeção para as legítimas expectativas futuras, racionalizando-se a prestação

jurisdicional por meio de sua mecanização programada e, com isso, distanciando-se das

particularidades fáticas dos casos em concreto. Aliando os fenômenos decorrentes destes

eixos categóricos, procuramos realizar uma integração jurídico-filosófica e dogmática no

estudo da coisa julgada e da rescisória em matéria tributária por alteração de

jurisprudência, à luz do Código de Processo Civil de 2015, tendo como contraponto

metodológico as orientações veiculadas e difundidas pelo Parecer PGFN n.º 492/2011.

PALAVRAS-CHAVE: Legitimidade da tributação – Sistema stare decisis – Precedentes

judiciais – Particularidades fáticas dos casos concretos – Coisa julgada e Ação Rescisória

em matéria tributária – Parecer PGN 492/2011 – Positivismo – Pragmatismo – Confronto e

adequação metodológica – Integração jurídico-filosófica e dogmática.

Page 5: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

5

PRECEDENT USED AS LAW AND TAXATION LEGITIMACY

RES JUDICATE AND RESCISSION IN TAX MATTER UNDER THE NEW

BRAZILIAN CIVIL PROCEDURE CODE

RODRIGO GIACOMELI NUNES MASSUD

ABSTRACT: Two major factors should be highlighted for a thematic overview of this study:

(i) the revolution of language studies (linguistic turn) and its great repercussion on the

interpretation and establishment of a legal reality, having its peak with the proposal for

cognitive isolation, the so called abyss of knowledge; and (ii) the appreciation of legal

precedents in shaping the legal-tax relations and in the construction of the normative

senses, with the projection for the legitimate future expectations, rationalizing the

jurisdictional rendering through its programmed mechanization and thereby distancing

from the factual particularities of concrete cases. A combination of the arising phenomena

of these categorical axes, a legal-philosophical and dogmatic integration in the study of res

judicata and rescission in tax matters by alteration of precedent cases was accomplished, in

light of the Brazilian Civil Procedure Code of 2015, having its methodological

counterpoint on the guidance disseminated by the Legal Opinion PGFN nª 492/2011.

KEY-WORDS: Tax Legitimacy – Stare decisis system – Judicial Precedent – Factual

Particularities of concrete cases – Res judicata and Tax Rescission Legal Procedure –

Legal Opinion PGN 492/2011 – Positivism – Pragmatism – Confrontation and

Methodological Adequacy – Judicial-Philosophical and Dogmatic integration.

Page 6: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

6

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO........................................................................................................................ 1. Problematização em concreto...........................................................................................

2. Problematização em abstrato............................................................................................

3. Considerações metodológicas: fenomenologia jurídica e a semiótica.............................

PARTE I

DA ESTRUTURA FILOSÓFICA AO SENTIDO DOGMÁTICO

Capítulo 1. “Ontologismo” jurídico e indeterminação do direito..................................

1. Dedução mecânica versus indução e abdução orgânica...................................................

2. Os antecedentes da escola positivista: mecanicismo, dualismo cartesiano e causação...

2.1. O empirismo lógico (ou simplesmente positivismo)....................................................

2.2. Positivismo jurídico e a relação ser/dever-ser...............................................................

2.3. Posturas aglutinante e isolante no Direito tributário brasileiro.....................................

Capítulo 2. A busca de finalidade.....................................................................................

1. Do pragmatismo filosófico ao pragmatismo jurídico.......................................................

1.1. Método pragmatista no direito e a teoria estruturante de Muller: intersecções............

Capítulo 3. O sentido comum............................................................................................

1. Unidade, coerência e completude. Para quem?................................................................

2. Objeto dinâmico e imediato, evento e fato: do positivismo ao pragmatismo..................

3. Norma jurídica (ou normatividade jurídica): incidência, aplicação, confusão................

PARTE II

SISTEMA STARE DECISIS E A INCIDÊNCIA DOS PRECEDENTES

Capítulo 4. Conceitos fundamentais.................................................................................

1. O sistema stare decisis: precedente como fonte do direito?............................................

1.1. Decisão, jurisprudência e precedente............................................................................

1.2. Elementos do precedente (ratio decidendi e obter dictum)...........................................

1.3. Distinguishing (distinção), overruling (superação ou revogação), drawing of

inconsistent distinctions (distinção inconsistente), sinaling (sinalização), transformation

(transformação) e overriding (adequação)...........................................................................

Capítulo 5. Semiose processual......................................................................................... 1. Segurança jurídica através da legitimação processual democrática.................................

2. Forma versus conteúdo....................................................................................................

PARTE III

FUNÇÃO NORMATIVA DO PRECEDENTE, COISA JULGADA E RESCISÓRIA TRIBUTÁRIA

Capítulo 6. Valorização dos precedentes no sistema brasileiro: implicações...............

1. Normatividade jurídica e decisões normativas: os juízes criam direito?.........................

2. Evolução reformadora no CPC/1973 e a racionalização do contencioso.........................

2.1. Valorização da jurisprudência no contencioso tributário administrativo......................

3. Segurança jurídica, fundamentação, extensão da coisa julgada e o tempo jurídico.........

4. Uma primeira síntese: a mudança na compreensão e construção do Direito tributário a

partir da valorização dos precedentes...................................................................................

Capítulo 7. Coisa julgada e rescisória com referibilidade em matéria tributária........

08

09

14

18

24

25

27

31

34

40

43

44

51

61

63

70

77

83

84

88

94

98

105

108

111

114

115

125

128

131

140

143

Page 7: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

7

1. Panorama e inovações da matéria no CPC/2015..............................................................

1.1. Coisa julgada tributária e o Parecer PGFN n.º 492/2011: crítica metodológica...........

1.2. Os novos regimes rescisórios incorporados pelo CPC/2015.........................................

1.3. Análise jurisprudencial do tema e atualização da Súmula 343 do STF........................

1.4. Quadro sintético dos regimes rescisórios......................................................................

1.5. Pela releitura metodológica do Parecer PGFN n.º 492/2011: fechamento estrutural,

confiança no tradutor e controle das interpretações.............................................................

2. Incidência do precedente e juízo de adequação: identidade x similitude jurídica............

3. Uma segunda síntese: variáveis processuais e condicionantes materiais da coisa

julgada e da rescisória tributária...........................................................................................

CONCLUSÕES.......................................................................................................................

BIBLIOGRAFIA......................................................................................................................

144

152

159

164

171

172

178

186

188

191

Page 8: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

8

INTRODUÇÃO

Evidenciando e explicitando desde logo nossas predileções gnosiológicas,

iniciamos enfatizando o aspecto pragmático da doutrina de PAULO DE BARROS

CARVALHO, que em geral costuma ceder espaço às suas análises lógico-sintáticas e

analíticas do direito positivo. Destacamos, então, que “uma ordem jurídica não se realiza

de modo efetivo, motivando alterações no terreno da realidade social, sem que os

comandos gerais e abstratos ganhem concreção em normas individuais."1

Dessa forma, é na base da pirâmide normativa, em especial a partir das normas

sancionatórias, que encontramos o retrato dos atos da vida, onde travamos contato mais

próximo com a experiência social e, a partir dela, construímos as significações ou

interpretações jurídicas, direcionando as condutas futuras.

Até porque, como já insistia LOURIVAL VILANOVA: “norma primária e

norma secundária (oriunda de norma de direito processual objetivo) compõem a

bimembridade da norma jurídica: a primária sem a secundária desjuridisciza-se; a

secundária sem a primária reduz-se a instrumento, meio, sem fim material, a adjetivo sem

o suporte do substantivo.”2

Ao mesmo tempo, vale o registro, mais a frente explorado, de que não existe

sistema jurídico sem hierarquia, nem hierarquia sem unidade, o que não implica uma

ordenação dedutiva dos conteúdos normativos abstratos, um fluxo unidirecional que

caminha de cima para baixo, senão uma constante inversão, ascendente e descendente, dos

processos interpretativos. Assim compreendemos a ideia de pirâmide.

1 “Direito Tributário, linguagem e método”, 4ª edição. São Paulo: Noeses, 2011, p. 141.

2 “Causalidade e relação no direito”, 4ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 190.

Page 9: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

9

Por essa razão, especialmente quando se fala de normatividade de precedentes

e coisa julgada, ganha relevância as denotações concretas dos antecedentes normativos, já

que são os responsáveis pela conformação das relações intersubjetivas. É assim que

trataremos e caminharemos nas investigações que compreendem o tema deste trabalho.

Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também

não ignorando as suas estruturas formais, direcionaremos nossas atenções para “como o

direito funciona”, ou “para que serve o direito”, fato esse que, ao lado da teoria analítica da

norma jurídica, nos impõe um tom pragmatista, incrementado por teorias argumentativas.

Sob tais concepções, pretendemos revisitar a categoria coisa julgada, com

enfoque nas discussões de índole tributária, sua tendência generalizadora a partir de casos

concretos, consequências e reflexos no processo tributário, sobretudo diante do novo

Código de Processo Civil (CPC/2015)3.

Para atingir os objetivos propostos, partiremos da identificação de problemas

práticos relacionados ao contencioso tributário, contrapondo-os com os aspectos teóricos

que envolvem a valorização dos precedentes jurisprudenciais, seu impacto na formação e

revisão da coisa julgada, na construção e (des)estabilização das expectativas normativas.

1. PROBLEMATIZAÇÃO EM CONCRETO

Na experiência tributária contenciosa, sobretudo a judicial, é comum o

sentimento de que nossos tribunais acabaram se acomodando no julgamento apenas de

teses jurídicas, delimitadas tão somente pelo pedido formulado pela parte e fixadas no

3 Lei n.º 13.105/2015, atualmente na vacatio legis, com vigência prevista para março de 2016.

Page 10: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

10

dispositivo do julgado (princípio da congruência), daí sobressaindo a qualidade do trânsito

em julgado (a sentença é imutável nos limites do dispositivo).

Muitas vezes deixa-se de lado, em contrapartida, o adequado tratamento e

enquadramento dos fatos, o que não raramente empurra para o limbo diversas lides que,

após anos de discussões, num exaustivo e demorado processo, são encerradas já de

maneira desatualizadas ou, o que é pior, acabam não sendo corretamente resolvidas por

conta da dinâmica e peculiaridade das atividades desenvolvidas pelas pessoas atingidas, ou

mesmo das complexidades fáticas do caso, insuficientemente enquadradas. Há, assim, um

vácuo prescritivo que continua não solucionado pela coisa julgada.

Exemplificativamente, podemos citar algumas discussões nas quais se fixou e

decidiu a tese, porém sem considerar adequadamente o conjunto da postulação, as questões

principais e os fundamentos determinantes (para utilizarmos os termos tão presentes no

novo compêndio processual), que só podem ser obtidos a partir dos aspectos dinâmicos dos

fatos, deixando, com isso, as matérias em aberto. Vejamos:

(i) alargamento da base de cálculo do PIS/COFINS pela Lei n.º 9.718/98, onde

se decidiu o conceito de faturamento (a tese), que equivaleria ao conceito

contábil de receita bruta (produto da venda de mercadorias e/ou da prestação de

serviços), mas não se atentou para a análise e evolução dos atos de comércio e

das atividades desenvolvidas pelas empresas. Assim, a decisão ficou indefinida

para as instituições financeiras e seguradoras, bem como para as locadoras de

bens imóveis, que continuam a discutir a extensão do conceito de faturamento4;

(ii) IRPJ devido no Brasil por empresas nacionais, pelos resultados de suas

controladas e coligadas no exterior (tributação universal), tese que em

Page 11: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

11

julgamento conjunto5 orientou, apenas, que não incide o tributo quando se

tratar de coligada localizada em país não considerado paraíso fiscal, bem como

que incide o tributo quando se tratar de controlada localizada em paraíso fiscal,

ficando em aberto todas as demais questões (coligada em paraíso; controlada

em não paraíso; controladas e/ou coligadas em países com tratado contra a

bitributação assinado pelo Brasil; incidência sobre as variações cambiais), que

só podem ser analisadas a partir da dinâmica fática da tributação em cada país e

peculiaridades de cada caso;

(iii) ISS sobre locação de bens móveis, tendo sido afastada a pretensão fiscal6

com base no critério diferenciador entre obrigação de dar e obrigação de fazer,

mas não se avaliando, por exemplo, as hipóteses de prestação de serviços

concomitantes ao fornecimento do bem (caso da locação de guindaste com o

fornecimento do operador), não se definindo, assim, os critérios aptos a aferir a

prevalência do serviço como atividade meio ou fim;

(iv) ICMS-Importação, tendo sido considerado inexigível o tributo nas

importações via leasing7, não tendo sido analisada a dinâmica das diferentes

espécies e modalidades de leasing e negócios praticados pelas empresas, nos

quais não raramente há a transferência de domínio do bem importado (por

exemplo, compra de bem no exterior por empresa controlada e subsequente

formalização de leasing operacional à controladora brasileira);

4 RE n.º 609.096, com repercussão geral (instituições financeiras); RE n.º 400.479 (seguradoras e corretoras);

RE n.º 599.658, com repercussão geral (locadoras de bens imóveis). 5 ADIN n.º 2588, RE n.º 611.586 e RE n.º 541.090.

6 Repercussão geral reconhecida no AI-RG n.º 766.684 e julgada no RE n.º 626.706, ensejando, inclusive, a

edição da Súmula Vinculante n.º 31. 7 Repercussão geral reconhecida no RE n.º 540.829.

Page 12: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

12

(v) a infindável discussão do conceito de insumo para creditamento de

PIS/COFINS8, que necessariamente passa pela análise de cada atividade;

Enfim, existem muitos outros casos, mas a ideia não é traçar uma análise da

evolução jurisprudencial das teses, identificando e apontando suas inconsistências, rupturas

e insuficiências cognoscitivas, mas apenas introduzir o pano de fundo deste trabalho: a

normatividade dos precedentes e a coisa julgada em matéria tributária no CPC/2015.

Veja-se que tais vácuos decisórios são absolutamente comuns, mas passam a

trazer danos concretos ao sistema com a valorização dos precedentes e produção, cada vez

maior, de julgamentos generalizadores que ampliam e expandem objetiva e subjetivamente

os limites da coisa julgada9, até porque, “no final das contas, o direito se constrói na

experiência, no entretecer paulatino das expectativas normativas envolvidas nos múltiplos

conflitos de interesse, filtrados em linguagem competente e submetidos à apreciação de

órgãos credenciados pelo ordenamento.”10

O que ocorre, a partir de então, são problemas de subsunção, ou de

racionalidade subsuntiva, na medida em que incorporamos técnicas consuetudinárias de

produção do direito, mas, ao mesmo tempo, não possuímos uma cultura consuetudinária,

tornando nossos precedentes absolutamente insuficientes e inapropriados para a resolução

de casos concretos: um claro dilema de incidência normativa.

8 Repercussão geral reconhecida no ARE n.º 790.928, tendo sido fixado o conceito de receita tributável para

PIS e COFINS em sede de repercussão geral nos RE’s n.ºs 586.482/RS e 606.107/MG. 9 Não por outra razão, recentemente tivemos a veiculação da PEC 33/2011, arquivada em janeiro de 2015,

por meio da qual se pretendia submeter as súmulas vinculantes e as decisões em controle concentrado de

constitucionalidade à prévia aprovação do Congresso Nacional. 10

CARVALHO, Paulo de Barros. “Direito Tributário, linguagem e método”, 4ª edição. São Paulo: Noeses,

2011, p. 209.

Page 13: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

13

Parece paradoxal, pois se até então combatíamos a morosidade jurisdicional,

muito por conta da desvalorização dos precedentes; agora enfrentaremos problemas de

incidência jurisdicional, por conta da valorização dos precedentes.

Com a ineficiência e ineficácia evolutiva dos conceitos legais abstratos frente à

rapidez das transformações sociais, valoriza-se e racionaliza-se o contencioso: justiça em

massa para todos. Com a massificação da distribuição da justiça, voltamos ao problema da

ineficiência e ineficácia evolutiva dos conceitos legais, um círculo vicioso.

Em outras palavras, para a solução da morosidade legislativa outorgamos

eficiência à jurisdição. E agora, com a massificação jurisdicional passamos por uma

abstrativização das decisões individuais e regressamos à ineficiência jurisprucencial, mas

ainda assim acompanhamos a expansão, cada vez maior, da força vinculante dos julgados.

Desse modo, pensamos que as atuais alterações legislativas em nossa

codificação processual fornecem instrumentos e ferramentas que nos permitirão superar

tais distorções de decidibilidade e incidência do precedente ao caso concreto,

direcionando-nos para uma maior previsibilidade e adequação das condutas futuras.

Dentro dessa dinâmica, conceitos como propósito negocial, substância

econômica, essência sobre a forma, critérios de validade de planejamentos tributários, entre

outros assuntos muito debatidos nos julgamentos, passariam a vincular e direcionar as

condutas dos julgadores e contribuintes, oferecendo segurança jurídica em concreto.

Imersos nesse ambiente, trataremos dos impactados na coisa julgada, sua

formação e revisão, com repercussão nas relações jurídico-tributárias continuativas e

Súmula 239 do STF; ação rescisória de decisão inconstitucional, Súmula 343 do STF e

Pareceres PGFN n.ºs 492/10 e 492/11, temas que serão enfocados no trabalho.

Page 14: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

14

2. PROBLEMATIZAÇÃO EM ABSTRATO

Do ponto de vista jurídico-estrutural11

, a tributação é atividade expropriatória

exercida pela produção de cadeias normativas, nas quais se concatenam e se processam as

semioses do direito que, ao final, conformam as significações normativas (sentido) e

apontam para a direção dos hábitos de conduta (função).

Tem-se, então, o sistema de Direito12

tributário, aqui compreendido como a

união das normas de direito material e de direito processual tributário13

(sistema primário

mais o secundário14

), responsável por ao mesmo tempo permitir a consecução dos

objetivos estatais como, também, proteger as liberdades individuais dos contribuintes.

A normatividade tributária, portanto, procura conformar as relações sociais de

índole econômica e financeira, imprescindíveis para o desenvolvimento do Estado, em

especial quando pautado no regime democrático de direito humanitário, regido pela

solidariedade, fraternidade e igualdade.

Como síntese mediadora entre forma e conteúdo, encontra-se o material

empírico, os casos concretos, onde encontramos e retratamos, nos antecedentes normativos

concretos, o substrato responsável pela construção e atualização dos sentidos semânticos

11

Com esse termo procuramos nos referir, de modo mais amplo, à estrutura normativa do direto, mais do que

ao mero arranjo sintático das normas, que se ocupa com a organização lógica, simplesmente formal

(abstração formalizadora), dos enunciados prescritivos. 12

Utilizaremos Direito em letra maiúscula quando nos referirmos à ciência do Direito, e a letra minúscula

quando nos referirmos ao direito positivo. 13

As peculiaridades do subsistema de Direito material tributário nos permitem falar, na linha da moderna

doutrina, numa teoria geral do processo tributário. Desse modo, o sistema tributário é integrado não apenas

pelo conjunto de normas que regulam, direta ou indiretamente, a instituição, arrecadação e fiscalização dos

tributos, como também por aquelas que regulam a aplicação e controle jurisdicional desse substrato

normativo. Afinal, processo é instrumento, indissociável do produto. 14

Utilizamos o termo sistema secundário nos referindo à acepção de norma secundária adotada por Kelsen,

seguida por Lourival Vilanova e Paulo de Barros Carvalho, de modo a nos remeter às relações jurisdicionais

de índole tributária. Portanto, a diferença entre a norma jurídica primária e secundária não está na sanção (já

que a norma primária também pode ser sancionatória), mas sim na necessidade ou não de intervenção do

Estado-Juiz, ou seja, na natureza da relação (se jurisdicional ou não).

Page 15: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

15

do Direito tributário, sendo precisamente a partir daí que se desenvolvem as disputas pelos

conceitos, fomentando e concretizando as diretrizes tanto da consultoria como do

contencioso tributário.

É a experiência jurídico-tributária, em sua função normativa, que movimenta e

atualiza as estruturas e os sentidos do Direito tributário, permitindo sua evolução.

Conforme já nos ensinava LOURIVAL VILANOVA15

:

“(...) estudando tão-só estruturas formais, à lógica não compete indicar

que proposição normativa válida no sistema do direito positivo é a

acertada e justa para enquadrar o fato como correspondente ao tipo

normativo. Nem lhe compete, num argumento em que o juiz chega à

decisão do caso controvertido, selecionar as proposições normativas

aplicáveis, qualificar normativamente o dado e dizer qual a sua

conclusão. O momento formal do argumento judiciário reside na

estrutura inferencial, que se limita a determinar que dadas tais

premissas, delas decorre tal conclusão. Mas, o factual-social e o

valorativo saturam as estruturas de raciocínio e deles tomar

conhecimento fica para além das análises formais.

Nem cabe à lógica jurídica decidir quando se empregue a inferência

indutiva, ou a inferência analógica, ou a via do argumento a contrario

sensu. A decidibilidade de qualquer um dos possíveis métodos para

encontrar a solução justa é problema nitidamente extralógico.”

Ou ainda, conforme MIGUEL REALE16

:

“(...) a Lógica Jurídica não tem por fim dar resposta às múltiplas e

sempre renovadas exigências da ciência jurídica: ela esclarece

rigorosamente a estrutura do juízo de ‘dever-ser’ ou da proposição

normativa, mas não o seu repertório: não envolve, nem poderia envolver,

o momento decisivo da normatividade, que é o da sua atualização como

conduta, isto é, como comportamento do juiz, do administrador, dos

indivíduos, e dos grupos a que ela se destina.”

Daí a relevância dos precedentes tributários e da coisa julgada, saturando a

experiência e demarcando as inferências jurídicas para a resolução de casos futuros.

Ao mesmo tempo, aqui encontramos o primeiro problema enfrentado neste

trabalho, pois como conciliar um sistema pautado na tradicional unidade, coerência e

15

“As estruturas Lógicas e o Sistema de Direito Positivo”, 4ª edição. São Paulo: Noeses, 2010, p. 55. 16

“O direito como experiência”, 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 191.

Page 16: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

16

completude, com as constantes e crescentes mutações e evoluções das demandas sociais e

da experiência jurídico-tributária?

Parece inconciliável. De um lado temos um objeto de estudo – direito positivo

– pronto e acabado, integralmente pautado e norteado por juízos a priori destinados, de

forma antecipada, a cobrir todo o tecido social, conferindo, assim, segurança jurídica e

pacificação às relações: aqui a segurança jurídica é abstrata, uma garantia através da qual

não-contradição, terceiro excluído e identidade são postulados gerais.

Por exemplo: se faturamento é o resultado da venda de produtos e/ou prestação

de serviços, e se locação de bens imóveis não correspondente nem a uma venda, nem a

uma prestação de serviço, então a conclusão lógica é a de que não é possível incidir, sobre

a receita dessa atividade, tributos que tomem por base de cálculo o faturamento. Em outras

palavras, não haveria que se falar em PIS e COFINS, no sistema cumulativo, sobre a

receita de locação de bens imóveis, simples assim. Mas não é isto que vemos na prática

interpretativa da nossa jurisprudência17

.

De outro lado, temos a expansão e crescimento da realidade econômica, dos

atos de comércio e das discussões tributárias, fruto do aumento das demandas sociais, do

fortalecimento do acesso à justiça e da valorização dos precedentes, evidenciando, muitas

17

No sentido da expansão do conceito de faturamento inicialmente fixado pelo STF: “(...) PIS/PASEP E

COFINS. LEI N. 9.715/98 E LC N. 70/91. CONCEITO DE FATURAMENTO. (...) 2. No julgamento do RE

585.235/MG, o Supremo Tribunal Federal apreciou o recurso extraordinário submetido a repercussão geral

e definiu que a noção de faturamento deve ser compreendida no sentido estrito de receita bruta das vendas

de mercadorias e da prestação de serviços de qualquer natureza, ou seja, a soma das receitas oriundas do

exercício das atividades empresariais consoante interpretação dada pelo RE n. 371.258 AgR (Segunda

Turma, Rel. Min. Cezar Peluso, julgado em 03.10.2006) e pelo RE n. 400.479-8/RJ (Segunda Turma, Rel.

Min. Cezar Peluso, julgado em 10.10.2006). 3. Essa mesma noção de faturamento tem sido acolhida por

este STJ, inclusive porque coincidente com aquela definida no art. 3º, da Lei n. 9.715/98 e art. 2º, da Lei

Complementar n. 70/91, conforme demonstram os seguintes precedentes: EDcl no REsp 929.521 / SP,

Primeira Seção, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 14.04.2010; REsp 776705 / RJ, Primeira Seção, Rel. Min.

Luiz Fux, julgado em 11.11.2009; REsp. n. 1.201.689-RJ, Segunda Turma, Rel. Min. Mauro Campbell

Marques, julgado em 11.02.2014; AgRg nos EDcl no REsp 1427892 / SE, Segunda Turma, Rel. Min.

Humberto Martins, julgado em 16.04.2015; AgRg no REsp 1461557 / CE, Segunda Turma, Rel. Min.

Humberto Martins, julgado em 16.09.2014; REsp 1432952 / PR, Segunda Turma, Rel. Min. Mauro

Page 17: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

17

vezes, o abismo da legislação tributária, incapaz de pacificar as relações jurídico-

tributárias, impulsionando mudanças normativas jurisdicionais: aqui a segurança jurídica é

concreta, um fim, de modo que não-contradição, terceiro excluído e identidade são

possibilidades individuais (a posteriori), porém generalizáveis a partir de casos concretos.

Tomando o mesmo exemplo acima, temos que o conceito de faturamento não

seria imutável, mas, pelo contrário, dependeria das atividades de cada empresa, não

havendo que se falar em identidade e terceiro excluído (uma mesma receita poderia não ser

faturamento para uma empresa, mas poderia ser para outra), por isso, para a correta fixação

da tese em julgamento, o importante seriam os antecedentes normativos concretos18

.

O pensamento a priori, desta feita, é responsável por formular hipóteses, ou

pela formalização do raciocínio, enquanto o pensamento a posteriori seria o teste empírico,

responsável por confrontar as hipóteses com o objeto que pretende representar (estratégia

indutiva). Trata-se, portanto, do embate, se é que existe, entre forma e conteúdo.

Esse é o ambiente atual do contencioso tributário, no qual os precedentes estão

sendo produzidos de acordo com uma lógica universal, uma síntese da tese, abstraídos das

particularidades de cada caso e, ao mesmo tempo, estão sendo aplicados generalizada e

subsuntivamente, a partir do dispositivo do julgado, a casos individuais.

Dessa forma, o desafio que se apresenta, e que se encontra mediado pela coisa

julgada, pode ser assim sintetizado: como conciliar segurança jurídica e generalização de

precedentes com a atualização e evolução das relações tributárias?

Campbell Marques, julgado em 25.02.2014; REsp 1176749 / PR, Primeira Turma, Rel. Min. Luiz Fux,

julgado em 20.04.2010. (...).” (REsp n.º 1.496.085/SC, DJ 10/06/2015 – grifos nossos). 18

Isto não significa o afastamento integral do pensamento lógico, ou da formalização do raciocínio, que

continua muito útil na análise da sintaxe da gramática. Não propomos, portanto, o abandono da lógica

clássica, mas sim sua flexibilização e compatibilização com a realidade atual.

Page 18: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

18

Em outras palavras, como tratar a tradicional imutabilidade da coisa julgada

com a mutabilidade das atividades econômicas e financeiras, especialmente diante das

recentes mudanças processuais que, cada vez mais, privilegiam a força normativa dos

precedentes, a cooperação entre as partes e a democratização do processo?

Nesse cenário, e já adiantando parte de nossas conclusões, as expectativas

normativas são desenvolvidas e estabilizadas a partir dos casos concretos, não podendo ter

um caráter estático, imutável e inflexível no tempo. Afinal, uma mera coleção de

individuais não se confunde com a totalidade dos gerais (crítica à postura nominalista).

Por isso, considerando a confluência unificadora de estrutura, sentido e função

na experiência jurídico-tributária, ou seja, na solução dos casos concretos, pretendemos

analisar a produção do precedente tributário e sua semiose no processo gerador de sentido,

compondo e integrando a racionalidade generalizadora de um sistema de stare decisis,

verificando as repercussões na coisa julgada, sua estabilização e desestabilização.

3. CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS: FENOMENOLOGIA JURÍDICA E A SEMIÓTICA

A partir das diversas metodologias científicas que levam em conta as formas

gnosiológicas de aproximação dos diferentes objetos de estudo, seguiremos metódica que

amplie e concilie a análise das múltiplas regiões ônticas19

manifestadas pelo direito.

Até porque, de acordo com PAULO DE BARROS CARVALHO:

“Já se pode falar, hoje, numa vivência concreta, efetiva, rica de

variações e de alternativas, na existência de cada um dos tributos

19

Sobre as regiões ônticas (objetos naturais, ideais, culturais e metafísicos), e os respectivos métodos de

aproximação, remetemo-nos à obra da Professora Maria Helena Diniz, “Compêndio de introdução à ciência

do direito”. São Paulo: Saraiva, 1988.

Page 19: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

19

brasileiros, principalmente dos impostos. Estes não representam mais,

como outrora, meras construções de linguagem, à espera do longo e

penoso processo de concretização. Vemo-los, agora, integrados numa

realidade vivida e construída pela sociedade brasileira, portanto, por

isso mesmo, dotadas de respeitável carga pragmática e que, agregada às

outras duas instâncias semióticas, poderá propiciar uma visão mais

ampla e fecunda da linguagem jurídico-tributária.”20

Apesar de se apresentar como produto cultural, o direito positivo não deixa de

traduzir formas ideais que representam, em seu interior, objetos naturais, por isso mesmo

podemos falar em predominância, mas não exclusividade do fenômeno da cultura.

O que é, por exemplo, a tabela NCM de classificação de produtos, as

parametrizações digitais dos deveres instrumentais (SPED: NF-e, ECD, EFD, ECF), ou as

equações para a quantificação dos preços de transferência, senão fórmulas lógicas ideais

que representam coisas, objetos e relações? Qual o objeto de uma inspeção judicial?

Enfim, logo se evidenciam as diferentes manifestações do jurídico e a inclusão,

na composição ontológica do direito, dos diversos aspectos que derivam na sua

complexidade cognoscitiva, por isso a fenomenologia jurídica exige a integração de

diversos métodos de investigação, sobretudo porque a linguagem idiomática é veículo de

manifestação do jurídico, mas não detém sua exclusividade constitutiva.

Por oportuno, mostram-se pertinentes as observações de TÁREK MOYSÉS

MOUSSALLEM21

, para quem:

“Nem tudo no mundo é linguagem. Se por um lado a linguagem instaura

uma realidade dentro do sujeito cognoscente, por outro ela não cria o

mundo. Há fatos que existem independentemente da linguagem, v.g. a

árvore, o sol, a lua, os astros, etc. Nada obstante, há fatos dependentes

da linguagem: o romance, a pintura e o direito.

Quando se utiliza a frase: ‘A linguagem cria a realidade’ deve-se

entender: a linguagem instaura uma mundivisão no sujeito

cognoscente.”

20

“Direito Tributário, linguagem e método”, 4ª edição. São Paulo: Noeses, 2011, p. 209. 21

“Fontes do Direito Tributário”, 2ª edição. São Paulo: Noeses, 2006, notas à segunda edição, p. VII.

Page 20: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

20

É claro que dentro de uma perspectiva linguística, o direito manifesta-se

através de uma convenção simbólica, mas a linguagem não se limita aos símbolos. Numa

visão semiótica22

o que existe são predominâncias, razão pela qual conciliaremos, na

aproximação e análise do jurídico, os métodos racional-dedutivo e empírico-indutivo, ao

lado do empírico-dialético, implicando o teste e confronto do resultado da experiência.

Até porque, inclusive os símbolos exercem um papel ontológico na cognição,

representando, na linha de PEIRCE, a realidade da terceiridade. Por oportuno, vejamos a

seguinte passagem de RODRIGO VIEIRA DE ALMEIDA23

:

“O caráter ontológico do símbolo, cabe agora notar, consiste justamente

em que, numa representação, o símbolo deve sempre incorporar uma

forma e, ao fazê-lo, representar o objeto de maneira a expor a sua

cognoscibilidade. O que equivale a dizer que o aspecto ontológico do

símbolo envolve, na verdade e pela verdade, os três tipos de relações que

o símbolo exibe, tanto que um símbolo não pode violar, para ser

verdadeiro, nenhuma das leis formais derivadas dos três tipos de

relações que ele exibe (...).

Em última instância, para Peirce, o símbolo em seu caráter ontológico

estava assentado no fato de que, além do mundo interno (o mundo da

memória) e o mundo externo (o mundo dos objetos e factual) existia o

mundo lógico, coextensivo com os outros dois, de modo a não haver

nenhum tipo de separação. (...)

Uma experiência, portanto, é uma determinação de uma ideia

arquetípica, de modo que Peirce também define a lógica como ‘a ciência

das leis da experiência em virtude de estas serem uma determinação da

ideia, ou, em outras palavras, como a ciência formal do mundo lógico.’

(W 1:169). Como tais leis são leis da experiência, o estudo de suas

características internas, ou seja, um estudo que visaria exibir como o

intelecto trabalha ao pensar, seria nada mais que uma investigação de

suas características externas.

Esse é o ponto crucial: um símbolo pode, ontologicamente, exibir o modo

de ser da realidade. (...)

Aquilo que uma ideia possui de verdade é o que, sendo simbolizável, se

encarna no mundo por meio dos interpretantes contínuos dessa mesma

22

Utilizaremos a matriz semiótica americana de Charles Sanders Peirce, mais abrangente do que a mera

linguística, e assim o faremos com base em: ARAÚJO, Clarice von Oertzen de. “Semiótica do Direito”. São

Paulo: Quartier Latin, 2005; SILVEIRA, Lauro Frederico Barbosa da. “Curso de Semiótica Geral”. São

Paulo: Quartier Latin, 2007; e SANTAELLA, Lúcia. “O que é semiótica”. São Paulo: Brasiliense, 2006. 23

“Algumas reflexões sobre o aspecto ontológico do símbolo e sua relação com a cognoscibilidade de Deus

no interior da metafísica religiosa de Charles Sanders Peirce”, in “Cognitio: Revista de Filosofia”, vol. 15,

número 2, julho/dezembro de 2014. São Paulo: Educ, p. 213/241.

Page 21: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

21

ideia, revelando a sua força evolucionária em direção ao crescimento da

razoabilidade concreta. (...)

(...) o símbolo é a expressão e encarnação de uma conexão real

inteligível, sendo esse o seu peculiar aspecto ontológico.” (grifos nossos)

Em resumo, conforme PEIRCE “nós estamos no pensamento e não o

pensamento em nós.”24

Por isso, os símbolos não se limitam aos atos predicativos de fala

do direito, à análise formal do discurso, vale dizer, eles não estão em nós, não existindo

uma separação entre mundo interior e exterior. Os símbolos, nessa concepção semiótica,

compreendem a linguagem natural.

Nesse sentido, não se nega que o direito é composto por textos, mas estes (os

textos), não são meras coleções arbitrárias de individuais. Esclarecendo o sentido atribuído

ao termo texto, recorremo-nos às lições de GABRIEL IVO25

e 26

:

“O Direito é composto por textos. Textos jurídicos, do direito positivo, e

textos da realidade social sobre a qual incide. Mas não se deve confundir

texto apenas com texto escrito. Uma passagem de GREGORIO ROBLES

é bem interessante para retratar essa situação:

‘El Derecho no sólo está en los textos escritos sino también en los

textos de la realidade social. Es más, el texto escrito casi nunca es un

texto completo, sino que su comprensión integral solo suele ser

posible se se le conecta con su parte no escrita. Uma regla jurídica

escrita no puede ser entendida si no se la conecta hermenéuticamente

con la realidade social a la que va dirigida, integrando dicha

realidade como parte del texto completo de la regla en cuestión.’

Portanto, toda a realidade social que é suscetível de compreensão e de

interpretação pelos homens consiste num texto. E é assim que a

expressão texto é utilizada por PAULO DE BARROS CARVALHO: ‘Não

é de hoje que os estudiosos no campo da semiótica vêm tratando a figura

do ‘texto’ como conceito de abrangência maior que a formulação escrita

d’uma ideia em expressões idiomáticas. Texto, na acepção que venho

considerando em meus trabalhos, extrapola tal definição estreita para

abranger tudo aquilo que se possa interpretar.’”

24

CP 5.289; CP 7.364. 25

“O Direito e a inevitabilidade do cerco da linguagem”. In CARVALHO, Paulo de Barros (coord).

“Constructivismo Lógico-Semântico”, vol. I. São Paulo: Noeses, 2014, p. 89/90. 26

“Para os efeitos que pretendemos, importa discernir o texto, enquanto instância material, expresso em

marcas de tinta sobre o papel ou mediante sons (fonemas), com sua natureza eminentemente física, do plano

do conteúdo, do contexto, seja o linguístico, seja o extralinguístico.” CARVALHO, Paulo de Barros.

“Direito Tributário, linguagem e método”, 4ª edição. São Paulo: Noeses, 2011, p. 191/192.

Page 22: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

22

Desse modo, na linha de GADAMER, temos que tudo aquilo que puder ser

interpretado é texto. E, retomando às lições de PAULO DE BARROS CARVALHO27

:

“Cada porção do real representa uma incisão profunda, mas abstrata,

imposta pelo ângulo de análise que satisfaz o interesse do sujeito do

conhecimento. Este, por sua vez, não ignora a natureza contínua e

heterogênea do mundo que o envolve, procurando, enquanto sujeito

transcendental, romper aquela continuidade extensiva e intensiva para

extrair o descontínuo homogêneo sobre o qual fará incidir o feixe de

suas proposições descritivas. Mas é evidente que o objeto de tal maneira

recortado reivindica um meio próprio de aproximação e de exploração

cognoscitiva, em outras palavras, um método. Daí a insistente asserção

segundo a qual a cada ciência corresponde uma metodologia, ainda que

um único método admita técnicas diferentes de implantação e de

operação. A via racional-dedutiva, por exemplo, utilizada para a

intelecção dos objetos ideais, não pode substituir o processo empírico-

indutivo, empregado na explicação generalizadora das ciências naturais,

em virtude de razões que provêm da própria ontologia objetal (...). os

métodos racional-dedutivo (adequado ao plano dos objetos ideais) e

empírico-indutivo (objetos naturais) não convém à investigação dos

objetos culturais, sempre valiosos, positiva ou negativamente. Aqui, o ato

cognoscente já é outro – a compreensão – e o caminho a ser percorrido

é o método empírico-dialético.”

Aliás, em sua teoria sociológica, PONTES DE MIRANDA28

já afirmava que:

“Nem a ciência é puramente empírica e intuicionista, nem somente

racional e abstrata: a indução e as provas experimentais conciliam as

duas tendências, as duas fases mentais, uma, a em que o espírito

reconhece o geral, e a outra, em que abusa dos processos que lhe

serviram para abstrair e generalizar.

Nas ciências do espírito e da sociedade é ínfimo o papel da dedução.

Que podem obter os processos dedutivos no dédalo de tão abstrusas

complexidades? Muito pouco.”

Assim, mantendo o cuidado de não misturar irrefletidamente correntes

filosóficas tomadas ao acaso, partiremos do positivismo lógico, revisitando temas centrais

como os da unidade, coerência e completude do sistema, mas pretendemos conciliá-lo com

o pragmatismo jurídico, utilizando-nos, para esse fim, dos referencias fornecidos pelo

27

Obra citada, p. 81/82. 28

“Introdução à Sociologia Geral”, 1ª edição. Campinas: Bookseller, 2003, p. 70.

Page 23: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

23

constructivismo lógico-semântico29

, no qual não se esgotam os instrumentos e as bases

teóricas fundadas nas chamadas categorias analíticas (teoria da norma, lógica jurídica,

teoria dos atos de fala, teoria das classes e das relações), havendo a intersecção dos

métodos hermenêuticos e da axiologia, com recursos da filosofia e da semiótica.

A semiótica, como disciplina que estuda todos os aspectos da linguagem

(portanto mais abrangente do que a linguística), exercerá papel importante no trabalho,

pois nos permitirá analisar a forma como as cadeias de precedentes, ou semioses

jurisdicionais, ocorrem, fornecendo as ferramentas para a compreensão dos julgados.

É de certa forma consenso que o direito está em evolução, em crescente

adaptação, determinando e impondo novas formas de aproximação para o seu estudo, até

porque o objeto determina o método, não o contrário.

29

Em recente escrito, Paulo de Barros Carvalho deixa claro que o constructivismo lógico-semântico é

método, e não projeto filosófico, motivo pelo qual admite e convive com diferentes correntes filosóficas e,

com isso, diferentes racionalidades e métodos científicos. Nesse sentido: “O Constructivismo Lógico-

Semântico é, antes de tudo, um instrumento de trabalho, modelo para ajustar a precisão da forma à pureza e

à nitidez do pensamento; meio e processo para a construção rigorosa do discurso, no que atende, em certa

medida, a um dos requisitos do saber científico tradicional. (...) Apesar de suas origens e das concepções

que estão bem caracterizadas na plataforma inferior de suas bases, dista de ser um projeto filosófico: de

método é seu estatuto. (...) O presente volume foi concebido com objetivos bem definidos: (...) ii) reiterar as

possibilidades de diálogo com outros métodos, sem cair no indesejado sincretismo metodológico.” “Algo

Page 24: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

24

PARTE I

DA ESTRUTURA FILOSÓFICA AO SENTIDO DOGMÁTICO

Capítulo 1. “Ontologismo” jurídico e indeterminação do direito

As considerações introdutórias, desde logo, carregam uma série de

questionamentos que colocam em evidência, de um lado, o conceito de direito e sua

multiplicidade conformativa; e de outro, os sintomas diagnosticados a partir do

contencioso tributário, levando os seus operadores a lidar com problemas reais que, em

busca de superações, demandam uma incursão às suas origens históricas.

O direito enquanto objeto de estudo, vimos acima, compreende tanto as normas

jurídicas como as relações sociais e suas diferentes formas de representação, apontando

para variadas regiões ônticas, em graus diferenciados de complexidade no contexto

comunicacional, possuindo, por isso, diferentes status ontológicos. Desse modo, as

abrangentes dimensões significativas do direito impedem falarmos em sua absoluta

determinação, assim como das relações por ele reguladas e suas múltiplas normatividades.

Estas são as precisas lições de PAULO DE BARROS CARVALHO:

“Em momento algum, todavia, o fenômeno jurídico é reduzido à singela

expressão das normas que integram a sua ontologia. A opção pelo

tratamento semiótico da linguagem normativa é decisão de cunho

metodológico, que se projeta na cognição do processo ontológico do

objeto de conhecimento em que atua o homem pelo sistema lógico da

linguagem. Eis o apontamento e o surgimento de um método científico

que toma por base as evoluções nos campos da filosofia, epistemologia e

teoria comunicacional destes últimos dois séculos. Habitar o espírito do

nosso tempo, como diria G. Vattimo é, de certo modo, participar desse

sobre o constructivismo lógico-semântico”. In CARVALHO, Paulo de Barros (coord). “Constructivismo

Lógico-Semântico”, vol. I. São Paulo: Noeses, 2014, p. 4 e 10 (grifos nossos).

Page 25: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

25

mundo de incertezas, acatar essa multidiversidade que a todo instante

nos deixa admirados, escapando, minutos depois, do nosso controle; é

tomar consciência do extraordinário salto tecnológico havido no setor

da comunicação, com informações que se cruzam e entrecruzam em

múltiplos sentidos, acrescentando outras e inesperadas combinatórias ao

tecido já hipercomplexo das sociedades atuais.”30

Por isso, para que possamos adequar nossos métodos de trabalho e, dessa

forma, integrar os paradigmas em que estamos inseridos, mostra-se essencial uma análise

histórica do fenômeno jurídico, a partir das suas influências filosóficas no tempo.

1. Dedução mecânica versus indução e abdução orgânica

Analisando o tema da dedução x indução, no direito positivo, podemos

sintetizar a questão da seguinte forma: as normas gerais e abstratas (“leis gerais”)

conformam infalivelmente as normas individuais e concretas (“leis individuais”), ou os

casos particulares é que conformam, falivelmente, as leis gerais? De um lado as inferências

necessárias (dedutivas), de outro, as inferências prováveis (indutivas e abdutivas). Não sem

razão, os métodos dedutivos e indutivos estiveram no centro das mais variadas disputas

filosóficas e científicas desde o Século XVI.

O problema da indução, com origem em DAVID HUME31

, levou ao

positivismo determinista32

. Posteriormente, PEIRCE e outros pensadores pragmatistas

30

“Direito Tributário, linguagem e método”, 4ª edição. São Paulo: Noeses, 2011, p. 207/208. 31

Para quem, mesmo depois da experiência vivida, a conexão entre causa e efeito continua arbitrária.

“Causalidade. (...). O pão que eu comia antes me alimentava; isto é, um corpo com certas qualidades

sensíveis era dotado de forças secretas naquele tempo. Mas então será lícito concluir que um outro pão deve

nutrir-me também em outro tempo e que qualidades sensíveis semelhantes devam ser sempre acompanhadas

por idênticas forças secretas? A consequência não parece absolutamente necessária.” (in ABBAGNANO,

Nicola. “Dicionário de Filosofia”. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 128). 32

“Determinismo. (...). O determinismo vincula-se, por isso, ao mecanicismo, que é a tendência dominante

da ciência do séc. XIX, assim como da filosofia correspondente a essa fase da ciência. Determinismo é a

crença na extensão universal do mecanicismo, ou seja, na extensão do mecanicismo ao homem.”

(ABBAGNANO, Nicola. “Dicionário de Filosofia”. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 245).

Page 26: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

26

falavam em falibilismo33

, ao mesmo tempo em que KARL POPPER desenvolveu o

princípio da falseabilidade34

, atacando frontalmente o determinismo.

A dedução utiliza-se de abstrações lógicas (processos de formalização),

enquanto a indução utiliza-se de abstrações isoladoras (processos de generalização), de

modo que uma desformalização não se confunde com uma individualização35

.

Dentro desse contexto, um pouco do que dissemos e observamos nas notas

introdutórias identifica, muito bem, os desdobramentos práticos de escolhas dogmáticas

que, por sua vez, possuem pautas filosóficas mais ou menos claras no curso do tempo.

Os problemas do contencioso tributário a partir da valorização dos precedentes,

da generalização dos julgamentos de teses jurídicas e da subvaloração dos contornos

fáticos do caso concreto, acarretando as lacunas decisórias e reflexos na coisa julgada

revelam, com clareza, o descasamento e insuficiência das orientações dogmáticas que

norteiam o nosso direito positivo, uma incompatibilidade evolutiva entre teoria e prática.

Evolução nem sempre é sinônimo de melhora, mas é analisando os momentos

históricos que conseguimos compreender as diferentes fases do pensamento jurídico e, com

isso, caminhar em direção ao futuro.

Nesse sentido, citando PAULO DE BARROS CARVALHO36

, vale lembrar:

“(...) que o direito é algo extremamente complexo, abrangendo, a um só

tempo, (i) uma linguagem prescritiva, (ii) um substrato sociológico

expresso pela vida comunitária que manifesta seu consentimento em

33

De acordo com o falibismo de Peirce, o universo encontra-se em expansão, nunca sendo integralmente

esgotado por qualquer tipo de representação e, por isso, todo o conhecimento é falível. Sutilmente diferente

da falseabilidade, o falibilismo não se refere, diretamente, às proposições científicas, mas sim à experiência. 34

Segundo o qual as proposições científicas são válidas até que evidências verificáveis demonstrem o

contrário (os universais estão na experiência). Com isso, Popper afirmava que a verdade científica é sempre

provável e, portanto, provisória. 35

Sobre a formalização e a generalização no direito positivo, remetemo-nos a VILANOVA, Lourival. “As

estruturas Lógicas e o Sistema de Direito Positivo”, 4ª edição. São Paulo: Noeses, 2010, Capítulo I. 36

“Princípios e sobreprincípios na interpretação do direito”, in Revista da FESDT n.º 7, Porto Alegre, 2011,

p. 136. Disponível em: http://www.ibet.com.br/download/Princípios%20PBC.pdf, consulta em 05/05/15.

Page 27: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

27

relação àquela linguagem e (iii) um aspecto axiológico, sua dimensão de

idealidade, imanente à natureza de objeto cultural. Nem sempre, todavia,

se mantém o isolamento metódico entre esses três lados do problema do

direito. Ora se misturam conceito e valor, como no jusnaturalismo

clássico; ora se suprime o dado axiológico e se focaliza apenas a

existencialidade, como no empirismo positivista (positivismo jurídico,

positivismo sociológico etc.); ora, enfim, se cortam o valor e a base

sociológico-histórica, o que dá em conseqüência um formalismo

exacerbado, do tipo kelseniano ou um logicismo formalista, à moda de

Schreier.”

Assim, com o intuito de promover o diálogo comparativo em busca de uma

conciliação, faremos breve escorço do positivismo clássico e subsequente neopositivismo,

com enfoque em HANS KELSEN, desde logo lembrando a diversidade de formas na

apresentação desses diferentes movimentos no Direito.

Em seguida, abordaremos alguns pontos do pragmatismo jurídico,

referenciados em BENJAMIN NATHAN CARDOZO e GEORGE BROWNE REGO,

amparados, ainda, em WILLIAM JAMES, JOHN DEWEY e CHARLES SANDERS

PEIRCE, precursores do pragmatismo filosófico.

2. Os antecedentes da escola positivista: mecanicismo, dualismo cartesiano e causação

Numa síntese muito bem construída da história da filosofia e da percepção

científica no tempo, FRITJOF CAPRA37

percorreu a visão de mundo predominante entre

os séculos XVI e XVIII, por onde tem origem as raízes do positivismo. Tal empenho

também é realizado por ALDA JUDITH ALVES-MAZZOTTI e FERNANDO

GEWANDSZNAJDER, quando analisam a evolução dos métodos nas ciências sociais38

.

37

“O Tao da Física”, 1ª reimpressão da 2ª edição. São Paulo: Cultrix, 2013, tradução José Fernandes Dias. 38

“O método nas ciências naturais e sociais”, 2ª edição. São Paulo: Pioneira, 1999.

Page 28: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

28

E, fazendo os paralelos com estes momentos históricos, CLARICE VON

OERTZEN DE ARAÚJO39

aborda as influências e desdobramentos dos respectivos

pensamentos no fenômeno da incidência jurídica.

Desse modo, até o Século XVI, na Idade Média, prevalecia uma concepção

orgânica de mundo, onde imperava a interdependência dos fenômenos espirituais e

materiais, sendo a estrutura científica assentada em duas autoridades: Aristóteles e a Igreja.

Entre os séculos XVI e XVII, na chamada Idade Moderna, contudo, a visão de

universo e o sistema de valores mudaram radicalmente, prevalecendo a noção de mundo

como se ele fosse uma máquina, com fenômenos absolutamente determinados, tudo em

razão das então alterações revolucionárias na física e na astronomia, baseadas nas

realizações de COPÉRNICO, GALILEU e NEWTON.

Foi GALILEU que combinou a experimentação científica com o uso da

linguagem matemática para formular as leis da natureza e dos corpos por ele descobertas, o

que lhe atribuiu a alcunha de pai da ciência moderna.

Por sua vez, FRANCIS BACON foi o primeiro a formular uma teoria clara do

procedimento indutivo, prezando pela construção de conclusões gerais a partir de

experimentos, desconsiderando projeções mentais subjetivas (como o cheiro, a cor, o som,

o sabor). O método de investigação, portanto, compreendia a descrição matemática da

natureza e a forma analítica de raciocínio.

Em seguida, envolvido nessa “revolução científica”, a filosofia de RENÉ

DESCARTES pretendeu conferir à ciência a característica de completa certeza,

prometendo a unificação de todo o saber, através de uma completa ciência da natureza,

rejeitando todo e qualquer conhecimento provável.

39

“Incidência Jurídica, Teoria e crítica”. São Paulo: Noeses, 2011.

Page 29: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

29

Tanto é que o ponto fundamental de seu método é a dúvida. Ou seja, só

podemos acreditar naquelas coisas perfeitamente conhecidas e sobre as quais não se pode

ter dúvidas, até chegar ao famoso “penso, logo existo.”

Todavia, foi apenas com mecânica de ISAAC NEWTON que houve a

combinação do método matemático de descrição da natureza e o raciocínio analítico. Nas

análises de FRIJOF CAPRA, foi quem realizou, através do cálculo diferencial, uma grande

síntese das obras de COPÉRNICO, KEPLER, BACON, GALILEU e DESCARTES.

Em resumo, NEWTON combinou as descobertas de KEPLER sobre o

movimento planetário (pautadas em estudos de tábuas astronômicas) e de GALILEU sobre

as leis da queda (pautadas em seus experimentos), formulando as leis gerais do movimento

de todos os objetos no sistema solar – das pedras aos planetas –, criando a lei da gravidade.

Daí o termo mecanicismo40

, atrelado a essa ideia de um mundo-máquina, sendo

então considerado como “uma concepção filosófica do mundo, um método ou princípio

diretivo da pesquisa científica”41

, no qual impera o determinismo, representado pelo

conceito de causalidade necessária, ou causação eficiente42

. Vê-se, aqui, o método

dedutivo operando na lógica da inferência necessária.

A formação científica que se sucedeu a partir de então, durante os Séculos

XVII, XVIII e XIX, adotou o padrão mecânico na pesquisa e desenvolvimento de toda e

qualquer ciência, sendo encampada a causalidade absoluta na análise de todos os

40

“Os pilares da cosmovisão mecanicista foram construídos com a teoria matemática de Isaac Newton, a

filosofia de René Descartes e a metodologia científica proposta por Francis Bacon.” (ARAÚJO, Clarice von

Oertzen, obra citada, p. 88). 41

ABBAGNANO, Nicola. “Dicionário de Filosofia”. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 654. 42

“Causalidade. (...). A noção de uma ordem causal do mundo (às vezes remetida a Deus como primeira

causa), segundo o conceito neoplatônico e medieval, forma ainda o pressuposto e o fundamento dos

primórdios da organização da ciência, com Copérnico, Kepler e Galileu. Essas bases são expressas em

termos mecanicistas por Hobbes e, em termos teológicos, por Spinoza, mas são sempre as mesmas. (...) A

causa é o que dá a razão do efeito, demonstra ou justifica sua existência ou suas determinações. (...) A

Page 30: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

30

fenômenos naturais, inclusive nas ciências sociais, ao ponto de alguns filósofos

proclamarem o descobrimento de uma física social, como se verifica na concepção

atomística da sociedade de JOHN LOCKE, baseado em THOMAS HOBBES.

É exatamente isso que caracteriza o dualismo do pensamento cartesiano43

, no

qual se separa o mundo em dois reinos distintos e incomunicáveis: de um lado a matéria, a

natureza, o corpo, o natural, onde tudo se move de forma cega, de maneira absolutamente

determinada através da causação necessária, sem nenhuma influência do homem e sem

qualquer finalidade; de outro, a mente, a cultura, o espírito, o cultural, onde tudo é criado

pelo homem e qualquer desvio de regularidade é atribuível ao sujeito cognoscente44

.

Trata-se, portanto, de uma postura nominalista, que separa um mundo interno e

outro externo, independentes, encarando os fenômenos da natureza como uma sequência

de fatos particulares sem finalidade, de modo que os princípios de regularidade seriam

formas sem comprovação empírica (por exemplo, a lei da gravidade não estaria na

natureza, senão no pensamento). Portanto, todo o ser é reduzido ao pensamento, não

existindo nada no conceito de corpo que pertença à mente, e nada na ideia de mente que

pertença ao corpo. Com isso, as categorias universais seriam apenas mentais.

Tem-se então o problema da causação, através do qual, em sua concepção

inicial, o universo das coisas, dos fenômenos, é absolutamente determinado, havendo uma

relação dedutiva, automática e infalível, entre causa e efeito, sem espaço para desvio.

relação causal é uma relação de dedução” (ABBAGNANO, Nicola. “Dicionário de Filosofia”. São Paulo:

Martins Fontes, 1999, p. 126). 43

DESCARTES, René. “Discurso do método, regras para a direção do Espírito”. São Paulo: Editora Martin

Claret, 2003, tradução Pietro Nasset. 44

“(...) são dualistas os que afirmam a existência de duas substâncias, a material e a espiritual, em contraste

com os monistas, que não admitem mais de uma. A tendência é chamar dualista a toda e qualquer doutrina

metafísica que suponha a existência de dois princípios ou realidades irredutíveis entre si e não

subordináveis, que sirvam para a explicação do universo.” (MORA, José Ferrater. “Dicionário de filosofia”,

4ª edição. São Paulo: Martins Fontes, p. 194/195).

Page 31: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

31

Em grande síntese, é o conjunto dessas ideias que dá origem ao que se chamou

de empirismo lógico, doutrina que então se expandiu a partir do Círculo de Viena.

2.1. O empirismo lógico (ou simplesmente positivismo)

Envolvidos nesse contexto científico, e partindo do princípio unificador

linguístico das coisas, ganhou corpo no século XX (ou seja, em meio à transição que tinha

início na idade moderna), o empirismo lógico do Círculo de Viena, representando os ideais

de um grupo de cientistas liderados por MORITZ SCHLICK.

Acreditava-se, então, que as proposições referentes a um dado fenômeno

deveriam ser traduzidas objetivamente em termos observáveis e testadas empiricamente

para verificar a sua veracidade. Ou seja, a observação estava, ao mesmo tempo, na origem

e na verificação do conhecimento verdadeiro.

Suas influências vão desde GOTTLOB FREGE, passando pelas grandes obras

de BERTRAND RUSSEL45

, LUDWING WITTGEINSTEIN46

e EDMUND HUSSERL47

,

autores cujos textos dão origem à fenomenologia e à filosofia analítica, duas correntes

predominantes no século XX.

Desse modo, estendendo os métodos então dominantes nas ciências naturais às

ciências sociais, a lógica e a matemática eram utilizadas como instrumentais a priori que

estabeleciam as regras da linguagem científica, empiricamente lógica, na medida em que

certo número de observações era generalizado e formalizado sob a estrutura de uma lei

45

“Principia Mathematica.” 46

“Tractatus logico-philosophicus.” 47

“Investigações lógicas.”

Page 32: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

32

formal que, dedutivamente, deveria ser aplicada a todos os fenômenos. Assim, repetindo-se

os mesmos procedimentos, deveríamos chegar aos mesmos resultados.

Com isso, qualquer falha ou desvio na experiência era atribuído ao homem, ao

observador, já que os gerais, nesta concepção, estariam no sujeito, não na natureza.

Com o progresso e desenvolvimento das investigações científicas, seguiam

sendo formuladas teorias cada vez mais amplas e abrangentes, dotadas de maior poder

explicativo para o universo: ainda a síntese do “mundo-máquina”.

Os postulados desse movimento ficam claro no manifesto intitulado “O ponto

de vista científico do Círculo de Viena”, produzido por RUDOLF CARNAP, HANS

HAHN e OTTO NEURATH, reconhecidamente influenciados pela primeira grande obra

de LUDWING WITTGENSTEIN (“Tratactus lógico-philosophicus”).

Em resumo, o campo filosófico foi reduzido à epistemologia (ciência do

conhecimento), e esta à semiótica (de origem europeia, que dava ênfase à linguística, aos

atos predicativos de fala), razão pela qual a linguagem era o instrumento/método por

excelência do saber científico.

Os dois atributos essenciais do manifesto, portanto, refletiam que: (i) todo o

conhecimento fica circunscrito ao domínio do conhecimento empírico; e (ii) a

reivindicação do método de análise lógica da linguagem.

A partir de então, a linguagem passou a ser objeto de estudo e constitutiva da

própria realidade, o que se evidencia na clássica frase de WITTGENSTEIN, de que “os

limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo”, presente em quase todas

as obras que adotam a linguística como método de estudo.

Page 33: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

33

Com efeito, a ausência de linguagem passou a negar não só o acesso ao real

como, muitas vezes, ao o próprio real (postura niilista). Por isso, exigia-se a rígida

observância dos princípios da identidade, não-contradição, terceiro excluído, objeto único

e homogêneo, ou seja, buscava-se o ideal cartesiano da certeza absoluta do conhecimento,

transpondo-se as exigências formais do pensamento para os fenômenos da realidade.

Temos, portanto, o positivismo, como esse movimento acabou ficando

genericamente conhecido, passando-se pelos três momentos da metafísica ocidental, cujas

referências filosóficas são bem expostas por DARDO SCAVINO48

, sendo eles:

(1º) o princípio unificador das coisas é a união de seus predicados, essa é a causa de

ser das coisas (racionalismo de PLATÃO);

(2º) o princípio unificador que permite constituir as coisas são as sensações, de

modo que se abandona a filosofia do “ser”, adotando-se a filosofia da

“consciência”. Ou seja, o princípio unificador não está nas coisas, mas no sujeito, o

que caracteriza o empirismo de LOCKE e BACON; e

(3º) o princípio unificador não é superior (Divino) e nem antropológico (do

Homem), senão linguístico (da palavra), conciliando racionalismo e empirismo.

Esse princípio unificador linguístico é característico do positivismo e, como

dito, predominou no século XX. A partir daí, se difundiu uma tradição hermenêutica da

filosofia onde há a primazia da interpretação sobre os fatos, sendo muitas vezes

identificada com certo niilismo (não há nada fora da linguagem, fora das interpretações) e,

com isso, a interpretação é infinita, livre e inesgotável, não possuindo limites.

48

“A Filosofia Atual: Pensar sem certezas”. São Paulo: Noeses, 2014, tradução de Lucas Galvão de Britto.

Page 34: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

34

O poder constructivo dessa capacidade da linguagem, portanto, passou a

justificar e fundamentar, com impressionante aceitação, a formação, alteração e extinção

de realidades então inquestionáveis, até mesmo de objetos físicos.

2.2. Positivismo jurídico e a relação ser/dever-se

O paradigma mundo-máquina e seu sistema matemático de descrição do

universo foram capazes de explicar o movimento dos planetas, luas e cometas nos mínimos

detalhes, assim como o fluxo das marés e diversos outros fenômenos relacionados com a

gravidade, por essa razão transformou a física clássica no modelo para todas as ciências. A

física, assim, tornou-se naturalmente a base de todas as ciências.

Tem-se, então, que o direito positivo de matriz romano-germânica foi

influenciado e desenvolvido sobre essas bases metodológicas, adotando a codificação, a

unidade, coerência e completude a priori como forma de conferir segurança jurídica.

Analisando exatamente esse contexto evolutivo, citamos as seguintes

observações de TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR49

:

“Na verdade, na tradição liberal mais antiga da doutrina romanística da

segurança, o conceito de segurança, atado ao princípio da legalidade,

pressupunha e exigia que as normas legais fossem gerais, isto é, gerais

pelo conteúdo (ações típicas abstratas) e gerais pelo destinatário

(destinadas a todos, donde o preceito da igualdade perante a lei). A

generalidade pelo conteúdo exigia segurança em termos de certeza; a

generalidade pelo destinatário exigia segurança em termos de igualdade,

igualdade de todos perante a lei. Assim, por força dessas duas variáveis

– certeza e igualdade – havia na exigência de segurança certa

ambiguidade. De um lado, a presunção de que o ordenamento jurídico

constitui um sistema de conteúdos certos, mediante diretrizes

homogêneas capazes de garantir uniformidade a uma pluralidade de

conteúdos sujeitos a interpretação: donde, para controle da 49

“O direito, entre o futuro e o passado”. São Paulo: Noeses, 2014, p. 116.

Page 35: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

35

segurança/certeza, a subsunção como método e a hipótese do legislador

racional, como pressuposto. De outro, que esse sistema constitua uma

hierarquia de competências dotadas de alguma margem de

discricionariedade, que assegura uma flexibilidade de interpretação dos

conteúdos como garantia da igualdade de tratamento: donde, para o

controle da segurança/igualdade, a exigência do devido processo legal,

o habeas corpus, mas também o princípio da independência do juiz.”

Nessa ordem de ideias, os problemas do direito passaram a ser tratados como

os físicos, ao ponto de PONTES DE MIRANDA50

dizer que:

“A regra jurídica foi a criação mais eficiente do homem para submeter o

mundo social e, pois, os homens, às mesmas ordenação e coordenação, a

que ele, como parte do mundo físico, se submete. Mais eficiente,

exatamente porque foi a técnica que mais de perto copiou a mecânica

das leis físicas.”

Também a tradição semiótica pautada na linguística de FERDNAND

SAUSSURE, de origem aristotélica, é igualmente mais explorada nesse tipo de

ordenamento, prevalecendo a análise dos atos predicativos e o dualismo ser e dever-ser.

Segundo ANDRÉ-JEAN ARNAUD51

, as notas gerais que caracterizam o

positivismo jurídico são, em resumo, as seguintes:

“(...) a. não há direito natural e só o direito positivo existe (A. Ross); b. o

direito é um conjunto de regras, que são mandamentos, um produto da

vontade humana ou da autoridade (auctoritas non veritas facit jus”); c.

esses mandamentos emanam do Soberano ou do Estado (Austin); d. eles

são associados a sanções, que garantem a aplicação do direito pela

força; e. eles formam um sistema fechado, completo e coerente; f. a

atividade dos juízes é uma atividade lógica porque toda decisão pode ser

deduzida das regras previamente emitidas pelo Soberano, sem referência

aos fins sociais ou às regras morais.”

Esses ideais são trabalhados na obra de HANS KELSEN52

, ao criar um objeto

único (é direito aquilo que a pessoa competente diz que é) e homogêneo (tudo que é direito

pressupõe sanção). Nessa visão, direito é o conjunto de normas jurídicas válidas,

50

“Tratado de Direito Privado”, Tomo I. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, p. 09. 51

“Dicionário enciclopédico de teoria e sociologia do Direito”. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, tradução de

Patrice Charles F. X. Willaume, p. 607. 52

“Teoria Pura do Direito”, 8ª edição, 4ª tiragem. São Paulo: Martins Fontes, 2014, tradução de João Baptista

Machado.

Page 36: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

36

organizadas hierarquicamente a partir do dogma da norma hipotética fundamental, que dá

fechamento e unicidade ao sistema jurídico.

O dualismo metodológico de HANS KELSEN, no seu isolamento ser e dever-

ser53

, aproxima-se do dualismo cartesiano que isola corpo e mente (não há nada no

conceito de corpo que pertença à mente) e acaba criando um vácuo entre a perspectiva

descritiva e a prescritiva, em sua função de regular as condutas humanas intersubjetivas,

como se não houvesse inter-relação entre os planos.

Mas devemos fazer um esclarecimento, de aspiração constructivista, na medida

em que esse isolamento ser/dever-se ocorre apenas em termos de estrutura, daí porque se

fala em homogeneidade sintática das normas, não se sustentando no processo gerador de

sentido, em termos semântico e pragmático, onde se encontra o conteúdo das normas.

Conforme LOURIVAL VILANOVA54

:

“(...) os modos normativos diferem dos modos digamos fácticos, para

isolarmos um dos ângulos abordados por Von Wright. No âmbito da

teoria pura do direito: do ser não provém o dever-ser, do meramente

factual não provém o normativo, porque as modalidades são irredutíveis,

muito embora na composição do fato objetivo da cultura, que é o direito,

haja inter-relacionalidade entre os modos.”

Criticando a fórmula idealizada por KELSEN (“Se A é, então B deve ser”),

LOURIVAL VILANOVA observa que o dever-ser tem várias funções, nem sempre muito

bem distinguidas na obra de KELSEN.

Segundo VILANOVA, em KELSEN, o dever-ser tem vários usos, sendo um

deles o relacional R, ou seja, o de relacionar e disciplinar as condutas intersubjetivas, cujos

valores são: obrigatório (O), proibido (V) e permitido (P). E quando KELSEN contrapõe o

dever-se à causalidade (imputação jurídica), está tomando o dever-ser como forma de

53

De um lado estariam as leis da natureza (síntese do ser), submetidas à causalidade física, e de outro as leis

jurídicas (síntese do dever-ser), articuladas pela imputabilidade deôntica.

Page 37: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

37

síntese em sua função epistemológica: uma forma gnosiológica de relacionar os dados da

experiência. Assim, esse dever-ser coloca-se no nível da ciência do Direito em que se

descreve o dever-ser no nível da norma jurídica, mas ocupam dois planos inconfundíveis,

de modo que a fórmula “Se A é, então B deve ser” descreve o dever-ser da norma jurídica

como forma de relacionar os dados da experiência.

Vejamos o seguinte trecho de LOURIVAL VILANOVA55

:

“Se simbolizarmos a proposição-hipótese por p e a proposição-tese por

q, e a relação implicacional por “”, a fórmula do primeiro membro da

proposição jurídica seria “D (p q)”, onde D é o functor (o

sincategorema que indica a operação deôntica) incidente sobre a

relação interproposicional. Essa colocação do functor, abrangente da

relação formal, evita que se construa formalmente a proposição-hipótese

na fórmula: “p D (q)”, isto é, como sendo uma proposição-

antecedente descritiva, implicando a proposição-conseqüente de caráter

prescritivo.”

Enfim, se nos limitarmos ao nível do direito positivo, a fórmula “Se A é, então

B deve ser” deve ser reformulada, pois o A não é, ou seja, A também é um dever-ser que

implica B, permeando toda a fórmula lógica, de modo que, em termos formais: D (p→q)56

.

O que estava em destaque na obra de LOURIVAL VILANOVA, importa

observar, era a análise da lógica jurídica, ou seja, a formalização da linguagem deôntica,

que não poderia ser reduzida à lógica do ser, da linguagem alética.

Com isso, em que pese a separação das duas lógicas, ao mesmo tempo fica

claro que, no âmbito semântico e pragmático (responsáveis pela composição do direito), há

inter-relação, ou intertextualidade entre os dois planos (ser e dever-ser).

54

“As estruturas Lógicas e o Sistema de Direito Positivo”, 4ª edição. São Paulo: Noeses, 2010, p. 56. 55

Obra citada, p. 59. 56

Conforme Paulo de Barros Carvalho: “quando usado, e não simplesmente mencionado, o dever-ser denota

uma região, um domínio ontológico que se contrapõe ao território do ser, em que as proposições implicante

e implicada são postas por um ato de autoridade: D (p→q).” (“Direito Tributário, linguagem e método”, 4ª

edição. São Paulo: Noeses, 2011, p. 124).

Page 38: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

38

É o que afirma PAULO DE BARROS CARVALHO, quando sustenta que “os

neopositivistas lógicos, na procura da depuração discursiva, outorgaram uma importância

muito grande à sintaxe e à semântica, em detrimento do ângulo pragmático (...),

construíram um paradigma linguístico empobrecido no plano pragmático (...).”57

Relativizando os preceitos que nortearam o empirismo lógico do movimento

positivista58

, podemos dizer que as alterações nas relações sociais, o movimento da

economia e o fluxo financeiro, por exemplo, alteram, influenciam, determinam,

conformam e atualizam as prescrições normativas tributárias: possuem normatividade.

No contexto deste trabalho, o que estamos afirmando é que o quadro fático

retratado na fundamentação dos julgados, necessariamente é elemento que integra e

atualiza os consequentes normativos abstratos e o julgamento das teses jurídicas.

E aqui já antecipamos uma primeira crítica ao modelo normativo de

precedentes, como vem sendo utilizado, sob uma racionalidade dedutiva, onde Súmulas e

dispositivos do julgado são tratados como leis universais, com premissas maiores (teses)

que causam as premissas menores (casos), desconectados dos fatos e dos fundamentos

jurídicos que determinam e são determinadas pelas particularidades fáticas.

Ou seja, do ponto de vista da unidade e completude do sistema jurídico (mas

veja, atendendo ao enfoque estrutural (sintático) e à perspectiva interna (de quem é

57

Obra citada, p. 28. Ressalta-se, ainda, que a riqueza do plano pragmático é melhor explorada na chamada

“Filosofia da Linguagem Ordinária”, objeto da obra “Investigações filosóficas” de Wittgenstein e seus “jogos

de linguagem”, pois não opera com modelos artificiais. 58

Segundo pontua Bustamante: “Foi durante esse breve período positivista que se acentuaram as diferenças

entre o common law e o civil law. A dicotomia rigorosa entre um Direito inteiramente ‘codificado’ e um

Direito inteiramente ‘jurisprudencial’ é um dos resíduos da forma de pensar positivista, que – como veremos

com mais detalhe no próximo capítulo – considerava o Direito apenas como um objeto estático a ser

analisado e previa para a teoria jurídica apenas uma dimensão analítica e descritiva, cujo método

fundamental era um certo conceptualismo e um apelo a classificações e dicotomias tais como Direito

positivo/Direito natural, norma válida/inválida, ser/dever-ser, norma/proposição jurídica, Direito

subjetivo/obrigação jurídica, ciência do Direito expositória/censorial, etc.” BUSTAMANTE, Thomas da

Rosa de. “Teoria do precedente judicial. A justificação e a aplicação de regras jurisprudenciais.” São Paulo:

Noeses, 2012, p. 95.

Page 39: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

39

obrigado a interpretar e decidir), como veremos mais adiante), esse modelo positivista não

admite vaguezas e ambiguidades, que no direito positivo correspondem às lacunas e

antinomias, pressupondo um sistema jurídico amplo e isolado.

Por fim, quando falamos do positivismo em geral, há que se destacar os

diferentes momentos e escolas aos quais é frequentemente envolvido e aproximado. Como

observa ANDRÉ-JEAN ARNAUD59

, temos que:

“Segundo Bobbio, não existe, entre os três aspectos que ele distinguiu,

uma relação necessária (seja lógica, seja causal). O positivismo como

abordagem do direito não acarreta, necessariamente, e não implica a

teoria positivista do direito, nem uma ideologia positivista da justiça

(Giusnaturalismo e positivismo giuridico, pág. 104). Ele formula, então,

dois princípios metodológicos: identificar um jurista como positivista em

razão de sua abordagem do direito não significa que ele seja igualmente

positivista em sua teoria e sem sua ideologia; a aprovação ou a

condenação de um dos aspectos não implica aprovação ou condenação

de outros. Essa observação parece ser completada de duas maneiras:

a. não existe relação necessária entre as diversas proposições da teoria

do direito chamadas ‘positivistas’, nem entre as diferentes ideologias

positivistas;

b. mas não se pode excluir a existência de relações entre certas

proposições das teorias do direito chamadas ‘positivistas’ e certas

ideologias positivistas, nem entre alguns princípios metodológicos do

positivismo e algumas proposições das teorias do direito positivistas.”

Portanto, devemos ressaltar que não há uma vinculação direta de uma ou mais

posturas positivistas aos variados campos de cognição. No Direito, em especial, diferentes

propostas teóricas transitam sobre perspectivas metodológicas e/ou filosóficas que

eventualmente confluam para determinadas posturas positivistas em particular, em que

pese divirjam, em outros pontos, do chamado positivismo jurídico.

O próprio constructivismo lógico-semântico, não raramente, costuma ser

taxado de positivista (no sentido crítico), mas esquece-se que seus alicerces repousam e

convergem na perspectiva hermenêutica e interpretativa do fenômeno comunicacional,

59

“Dicionário enciclopédico de teoria e sociologia do Direito”. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, tradução de

Patrice Charles F. X. Willaume, p. 609.

Page 40: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

40

encampando a teoria dos valores e assumindo o dialogismo entre ciência do Direito e

direito positivo, num intercâmbio linguístico e filosófico de mútuas influências.

2.3. Posturas aglutinante e isolante no Direito tributário brasileiro

Dentro dessa perspectiva histórica, é possível identificar, na doutrina tributária

nacional, a corrente de pensamento que de algum modo percorre a visão e o ideal

positivista, claramente demarcado pelo movimento isolante que encontra em ALFREDO

AUGUSTO BECKER seu maior expoente.

Foi através de sua clássica obra “Teoria Geral do Direito Tributário” que

BECKER delimitou as fronteiras do Direito tributário, excluindo de seu campo

epistemológico as influências sociais e as consequências financeiras da tributação.

Nesse contexto, a própria grade curricular da matéria sofreu mudanças, sendo a

cadeira de direito financeiro praticamente eliminada do ensino jurídico-tributário. Assim,

aspectos econômicos, contábeis e sociais foram retirados da análise da composição fiscal.

Trata-se, portanto, de clara marca do dualismo do pensamento cartesiano, no

qual se separa o mundo em dois reinos distintos e incomunicáveis (visão isolante).

Não se trata, de modo algum, de uma crítica, na medida em que aquele

momento político e institucional do Brasil, na transição para a democracia e ainda sem a

plena garantia de acesso a uma jurisdição independente, carecia de segurança jurídica e,

por isso, precisava de instrumentos que permitissem o controle do avanço exacional

arbitrário, destituído e descolado de uma rígida teoria que o acompanhasse.

Page 41: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

41

A tributação não podia continuar sendo movida, de forma indiscriminada e sem

uma pauta teórica muito clara, por interesses arrecadatórios descontrolados e justificados

por posições ideológicas de determinados governos.

Seguiu-se então nesse movimento isolante, em grande síntese espelhada nas

doutrinas tradicionais60

dispersadas nas grandes obras e textos de GERALDO ATALIBA,

JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES, PAULO DE BARROS CARVALHO, ROQUE

CARRAZA, dentre outros, com seus traços marcantemente caracterizados pela valorização

da segurança jurídica a partir dos conceitos constitucionais abstratos, adotando uma

unidade formal verticalizada do sistema, amparada em seus laços sintáticos e analíticos.

Trata-se, insistimos na ressalva, de eixos dogmáticos preponderantes nas

principais obras, sem que isso implique colocar em sintonia ou em oposição, aspectos

doutrinários que em muitos pontos encontram-se em desencaixe ou franco embate.

Em contraposição às doutrinas isolantes, encontramos a postura aglutinante

que, por sua vez, visualiza o Direito tributário dentro de um fenômeno maior, encontrando

sua raiz em PONTES DE MIRANDA e alcançando expoentes como ALIOMAR

BALLEIRO, MISABEL DERZI, IVES GANDRA DA SILVA MARTINS e SACHA

CALMON NAVARRO COELHO.

O paradoxo entre essas duas concepções é muito bem descrito por TATHIANE

DOS SANTOS PISCITELLI61

, sendo que, atualmente, percebemos uma valorização

crescente da postura aglutinante, talvez pela consolidação de nossa democracia e também

pela recondução imposta pela própria jurisprudência, onde os julgamentos das teses

tributárias cada vez mais buscam fundamento nas repercussões sociais e econômicas.

60

Fica aqui o registro de que muitos destes autores já adotam discursos inclusivos que admitem a conciliação

de novos paradigmas, encampando, de alguma forma, uma análise aglutinante do fenômeno jurídico. 61

“Argumentando pelas consequências no Direito Tributário”. São Paulo: Noeses, 2011.

Page 42: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

42

Não pretendemos, e nem nos caberia, traçar ou classificar perfis filosóficos de

cada doutrina (jusnaturalista, positivista, neopositivista, realista, nominalista, etc.), até

porque cada uma cumpriu e cumpre seu papel na construção de nosso Direito tributário.

Observação interessante é que a postura isolante adota um enfoque estrutural e

uma perspectiva interna, ou seja, o sistema do direito positivo é único e completo,

expandindo essa artificialidade para as relações sociais. Já a postura aglutinante adota um

enfoque funcional e uma perspectiva externa, introduzindo para o interior do sistema as

incertezas (lacunas e antinomias) presentes na complexidade social.

Tem-se, então, o problema da unidade e completude do sistema, que não passa

de uma dicotomia de enfoque (estrutural ou funcional) e perspectiva (interna e externa).

Não obstante, essa análise cumpre papel importante no percurso deste trabalho,

impedindo que misturemos irrefletida e desmedidamente diferentes premissas e modelos

teóricos, sem as devidas adaptações, permitindo o controle de nossas conclusões.

Seja como for, fato é que as discussões tributárias cada vez mais são

direcionadas para os efeitos da tributação, suas consequências nas políticas públicas e na

segurança jurídica, sendo essa, aliás, a premissa que permite e autoriza falar em modulação

de efeitos das decisões judiciais no controle de constitucionalidade.

É por isso que TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR sustenta que “hoje, a

sensação é de uma espécie de crise desse paradigma, o paradigma do direito legislado e

‘codificado’62

, o que pode ser observado mediante algumas percepções do trabalho

cotidiano do jurista. (...). Em consequência, passamos da centralidade da lei para a

centralidade da jurisdição, jurisdição entendida em sentido amplo: os tribunais judiciais,

62

“Em curso comum sobre teoria da argumentação jurídica (FERRAZ JR., Tercio Sampaio; BARBOSA,

Samuel. Disponível em: http://manoleeducacao.com.br/), Samuel Barbosa cunha o termo ‘cultura do código’

para designar o estilo do pensar jurídico herdado do século XIX.”

Page 43: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

43

tribunais de arbitragem, agências administrativas com poder judicante (com tribunais e

conselhos administrativos), órgãos da administração direta (que dizem o direito por meio

de sentenças, acórdãos, decisões interlocutórias, resoluções, pareceres normativos). Se,

ao tempo de Bismarck, ainda era possível perguntar como eram feitas as leis (...), hoje

talvez interesse menos saber como elas são feitas, mas, como elas são aplicadas.”63

Lidamos, em número crescente, com os efeitos práticos das decisões judiciais

nos casos concretos, ao mesmo tempo em que buscamos conferir racionalização à

distribuição da justiça, consolidando o acesso ao judiciário sem torna-lo irracional,

movimentado de forma cega. Esse é, pensamos, o nosso atual momento, o que fica claro

quando analisamos as discussões tributárias no âmbito do STF, que cada vez mais passam

a abordar os impactos das teses jurídicas nas contas públicas, a destinação financeira dos

tributos, a repercussão social e econômica, e assim por diante.

Capítulo 2. A busca de finalidade

A concepção dualista que concebe um mundo inteiramente determinado por

leis mecânicas, nega qualquer inteligência operando em busca de uma finalidade,

limitando, pois, o papel do homem em sua existência, como parte inserida nos

acontecimentos naturais que os circundam, o que se contrapõe à ideia de integração e

influência recíprocas.

É certo, todavia, que os pensamentos produzem alterações materiais, ao mesmo

tempo em que são por elas alterados (nós estamos no mundo, não o mundo em nós), num

63

“O Direito, entre o futuro e o passado”. São Paulo: Noeses, 2014, Prefácio, XIV, XV e XVII.

Page 44: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

44

constante intercâmbio que se direciona para uma adaptação evolutiva. Não estamos, pois,

envolvidos num universo cego, que cresce e se expande sem qualquer finalidade, fato esse

que nos aponta para diversas posturas pragmatistas64

, como passaremos a analisar.

1. Do pragmatismo filosófico ao pragmatismo jurídico

De modo mais natural, ao menos para os olhos de um modelo de direito com

ascensão românico-germânica, o pragmatismo jurídico parece assimilar melhor as

mudanças impostas pela própria física na visão de mundo e das demais ciências.

Com efeito, a física clássica que pautou todas as ciências entre os séculos XVI

e XVIII, projetando consequências até o século atual, foi radicalmente incrementada com

os estudos dos fenômenos elétricos, o conceito de campo de força (o qual tem sua própria

realidade e pode ser estudado sem qualquer referência a corpos materiais), a exploração do

mundo subatômico e o surgimento da física quântica65

.

A partir de então, fenômenos absolutamente conhecidos cederam espaço para a

indeterminação, para o meramente provável. Foi o que demonstrou ALBERT EINSTEIN

no estudo dos campos eletromagnéticos, os quais não podem ser explicados

64

“A revolução empreendida pelo Pragmatismo encontra-se, certamente, ao se deslocar da origem à

finalidade, na busca da clareza. A clareza das idéias ou dos conceitos, para Peirce e para quem vier adotar

o método pragmatista, não consiste na evidência ou no imediato com que ambos deverão se apresentar à

mente, mas no aprimoramento constante da representação dos efeitos concebíveis deles decorrentes. (...)

Fundamentalmente aconselha a que tenhamos os olhos voltados para o futuro, quando tentarmos esclarecer

nossos conceitos. Para tanto, devemos antecipar imaginativamente as consequências práticas possíveis de

serem derivadas daquela representação. O elenco dessas consequências constituirá a própria concepção do

objeto e, consequentemente, a definição menos equívoca possível do conceito.” SILVEIRA, Lauro Frederico

Barbosa da. “Curso de Semiótica Geral.” São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 183 e 186. 65

Por meio da física quântica, “verificou-se a existência dos átomos; a seguir, foram descobertos seus

componentes (os núcleos e os elétrons) e, por fim, os componentes do núcleo (prótons e nêutrons) e inúmeras

outras partículas subatômicas.” CAPRA, Fritjof. “O Tao da Física”, 1ª reimpressão da 2ª edição. São Paulo:

Cultrix, 2013, tradução José Fernandes Dias, p. 65.

Page 45: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

45

mecanicamente, de modo que “as leis da física quântica não governam o comportamento

de objetos particulares no tempo, mas as variações da probabilidade no tempo.”66

Desse modo, com essa transformação a física saiu de sua fase mecanicista e

constitui-se como ciência da previsão provável, sendo inevitável admitir as vaguezas e

ambiguidades, já que as leis naturais estão em constante evolução, sujeitas ao acaso, na

medida em que os fenômenos ora podem ser matéria (massa), ora energia (onda), sem que

isso infirme a verdade do objeto de estudo.

Assim, os cientistas começaram a trabalhar com a noção de espaço e tempo

como elementos meramente da linguagem utilizada por um observador. Estamos, pois,

diante de uma postura realista, na qual as leis gerais encontram-se na natureza.

Não é possível, desta feita, prever um fato atômico com certeza, tendo em vista

que, conforme FRITJOF CAPRA, “no nível subatômico, não se pode dizer que a matéria

exista com certeza em lugares definidos; diz-se, antes, que ela apresenta ‘tendências a

existir’, e que os eventos atômicos não ocorrem com certeza em instantes definidos e numa

direção definida, mas, sim, que apresentam ‘tendências a ocorrer’. No formalismo da

teoria quântica, essas tendências são expressas como probabilidades. (...).”67

Conforme ABBAGNANO68

:

“Mecanicismo. (...). Fora da física, portanto, o mecanicismo foi uma

aspiração genérica, uma tese filosófica ou, na melhor das hipóteses, uma

exigência genérica de método, mais que instrumento efetivo de

explicação. (...)

Afora isso, as teses do mecanicismo nos vários campos da ciência são

reducionistas: em biologia, consiste em reduzir as leis biológicas a leis

físico-químicas; em psicologia, consiste em reduzir as leis psicológicas a

leis biológicas; em sociologia, consiste em reduzir as leis sociológicas a

66

“The Evolution of Physic”, in ABBAGNANO, Nicola. “Dicionário de Filosofia”. São Paulo: Martins

Fontes, 1999, p. 655, Mecanicismo. 67

CAPRA, Fritjof. “O Tao da Física”, 1ª reimpressão da 2ª edição. São Paulo: Cultrix, 2013, tradução José

Fernandes Dias, p. 82. 68

“Dicionário de Filosofia”. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 656.

Page 46: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

46

leis biológicas e psicológicas. (...) Contudo, a ciência do séc. XX,

sobretudo a partir do terceiro decênio, abandonou a postura

reducionista e, portanto, o mecanicismo, sem voltar às posições às quais

o mecanicismo se opunha.”

De acordo com EDGAR MORIN69

e seu conceito de zona de penumbra do

real, a microfísica encontrou e provou a existência de zonas de realidade nas quais, ainda

que intelectivo, “o material é ao mesmo tempo imaterial, o contínuo, descontínuo, o

separado, não separável, o distinto, indistinto; a coisa e a causa confundem-se e, por

extensão, confundem o nosso sentimento de realidade.”

Em “A Origem das Espécies”, CHARLES DARWIN deu forma a todo o

pensamento biológico subsequente, forçando, através da teoria da evolução, o abandono da

concepção cartesiana de universo, na medida em que comprovou a adaptação natural dos

seres vivos à natureza, ou seja, não há dois reinos distintos e independentes.

O mundo, então, não poderia ser concebido como uma máquina inteiramente

construída pelas mãos de Deus e que caminha de forma mecânica, sem qualquer finalidade,

pois nós o influenciamos e somos por ele influenciados.

A linguagem comum, nesse cenário, revelou-se inadequada para descrever a

realidade atômica e subatômica, pois, segundo HEISENBERG, “não nos deparamos de

início com qualquer guia simples que nos permita correlacionar os símbolos matemáticos

com os conceitos da linguagem usual; e a única coisa que sabemos desde o início é o fato

de que nossos conceitos comuns não podem ser aplicados à estrutura dos átomos.”70

A teoria quântica e da relatividade (os dois pilares da física moderna), portanto,

tornaram claro o fato de que essa realidade atômica e subatônica transcende a lógica

clássica e de que não podemos falar a respeito dela usando a linguagem cotidiana.

69

“O método 3: o conhecimento do conhecimento”, 2ª edição. Porto Alegre: Sulina, 1999, p. 238. 70

In CAPRA, Fritjof. “O Tao da Física”, 1ª reimpressão da 2ª edição. São Paulo: Cultrix, 2013, tradução José

Fernandes Dias, p. 59/60.

Page 47: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

47

Diante disso, NIELS BOHR71

elabora a “teoria da complementariedade”, que

consiste em dissociar, no nível da representação, os dois aspectos fundamentais da

descrição clássica dos fenômenos (sua localização espaço-tempo e o uso da causalidade).

Ao mesmo tempo, WILLIAN JAMES, um dos precursores do pragmatismo

filosófico, já afirmava que seria um erro considerar e julgar as teorias apenas por sua

própria coerência interna, e não por seus resultados ou fins. Não obstante, paradoxalmente

costuma ser lembrado por filósofos da linguagem pela sua célebre frase “a palavra ‘cão’

não morde”, como exemplo didático de que haveria uma autonomia linguística que, por

isso, implicasse na dicotomia entre o mundo das coisas e o mundo da mente.

Na mesma linha, CHARLES SANDERS PEIRCE dizia que: “Supomos que

aquilo que não examinamos é similar àquilo que examinamos, e que aquelas leis são

absolutas e que todo o universo é uma máquina ilimitada operando através das cegas leis

da mecânica. Esta é uma filosofia que não deixa espaço para um Deus! De fato, não! Ela

faz, mesmo da consciência humana, cuja existência não pode ser negada, uma perfeita

inutilidade e um ‘flâneur’ sem função no mundo, com nenhuma influência possível sobre

qualquer coisa – nem mesmo sobre si mesma.”72

O que se vê de tudo isso, portanto, são problemas filosóficos reais, por isso a

razão talvez estivesse com KARL POPPER, que se opunha à WITTGENSTEIN e sua

insistente limitação dos problemas filosóficos a meras perplexidades linguísticas. Retoma-

se, com isso, à velha questão da causação, tanto discutida na filosofia do Século XX73

.

71

“Física atômica e conhecimento humano: ensaios 1932-1957”. Rio de Janeiro: Contraponto, 1995, tradução

Vera Ribeiro. 72

CP 1.162, in ARAÚJO, Clarice von Oertzen de. “Incidência Jurídica, teoria e crítica”. São Paulo: Noeses,

2011. 73

Popper questionava, por exemplo, como podemos saber que uma pessoa está com raiva. Será exatamente

como saber que uma chaleira está fervendo – é o que deduzimos de seus sintomas físicos? “Pode a raiva

também – um fenômeno mental, um sentimento – ser deduzida apenas por suas manifestações exteriores?”

(EDMONDS, David e EIDINOW, John. “O atiçador de Wittgenstein: a história de uma discussão de dez

minutos entre dois grandes filósofos”. Rio de Janeiro: Difel, 2003, tradução Pedro Jorgensen Jr, p. 81).

Page 48: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

48

E foi o próprio WITTGENSTEIN que, mais tarde, evoluiu sua análise sobre a

dimensão sintática da linguagem, dando então ênfase à dimensão semântica e pragmática:

“Desde seu retorno a Cambridge, em 1929, Wittgenstein abandonou a

maior parte das ideais contidas no Tractatus e desenvolveu uma linha

radicalmente nova. Ao passo que muito poucas pessoas na história da

filosofia podem se vangloriar de haver criado uma escola de

pensamento, Wittgenstein pode reivindicar a fundação de duas. Russel

assim rotulou os dois enfoques: Wittgenstein I e Wittgenstein II.

O Wittgenstein do Tractatus trabalhou dentro do mesmo universo

intelectual – o atomismo lógico – em que Russel havia realizado seu

primeiro e mais original trabalho, um universo em que o mundo é

construído a partir de objetos simples, imutáveis (e indefiníveis).

(...)

Em Wittgenstein II, a metáfora da linguagem como imagem é substituída

pela metáfora da linguagem como ferramenta. Se queremos saber o

sentido de um termo, não devemos perguntar o que ele representa:

devemos, ao contrário, examinar como ele é usado na prática.”74

Surge, daí, a teoria dos jogos de linguagem, mais preocupada com a linguagem

ordinária e explorada em “Investigações Filosóficas”, onde a linguagem opera de forma

livre, não havendo regras que governam sua aplicação nas multiplicidades de funções75

.

Em paralelo:

“Causalidade. (...) finalmente, a mecânica quântica tende a substituir a

noção de Causação, que parecia indispensável aos cientistas e

metodologistas do século passado, pela probabilidade. (...) A conclusão

é: todos os nossos raciocínios ‘a priori’ não poderão demonstrar

nenhum direito a essa preferência; é inútil tentar predizer qualquer

acontecimento, ou inferir alguma causa ou efeito, sem o auxílio da

observação e da experiência. (...) A relação causal deve tornar previsível

o efeito, mas nenhuma dedução ‘a priori’ pode tornar previsível um

74

EDMONDS, David e EIDINOW, John. “O atiçador de Wittgenstein: a história de uma discussão de dez

minutos entre dois grandes filósofos”. Rio de Janeiro: Difel, 2003, tradução Pedro Jorgensen Jr, p. 240. 75

Conforme Muller: “No Tractatus existe somente uma linguagem. Ela consiste de enunciados elementares

(ou funções de verdade de enunciados elementares). Cada enunciado elementar individual retrata um estado

de coisas [Sachverhalt]. Com isso se pressupõe que a imagem e o estado de coisas teriam forma lógica. Um

enunciado tem somente uma função, a saber, a de retratar um fato.

Um enunciado tem, no entanto, inúmeras funções, conforme o enfoque das Investigações Filosóficas. A

tarefa consiste agora em compreender o enunciado. (...) Um enunciado é compreendido quando se descobre,

em que situação ele é efetivamente empregado (...). A tese de que os fatos poderiam ter uma forma lógica é

rejeitada por Wittgenstein nessa fase do seu pensamento. No Tractatus a palavra é considerada como nome;

nas Investigações filosóficas ela é vista como momento de um modo concreto de uso.” MULLER, Friedrich.

“O novo paradigma do Direito, introdução à teoria e metódica estruturantes”, 3ª edição. São Paulo: Editora

Revista dos Tribunais, 2013, p. 190.

Page 49: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

49

efeito qualquer; por isso, a dedução é incapaz de fundamentar a relação

causal.”76

A observação e a experiência dos casos particulares é que, com a repetição de

certas similaridades, dão origem ao hábito de crer que tais uniformidades se verificarão

também no futuro. Portanto, as leis gerais são conformadas a partir dos casos concretos,

não mais se falando em causação eficiente (inferência dedutiva), mas sim em inferências

prováveis (indutivas ou abdutivas).

Em oposição ao mecanicismo e a causalidade absoluta, o pragmatismo concebe

a existência de uma ordem finalista no mundo, deixando espaço para uma consciência na

descrição e influência dos fenômenos, que não são absolutamente independentes.

O pragmatismo também exclui os sistemas metafísicos, todavia, diferentemente

do positivismo, entende que o conceito é a soma dos efeitos práticos, de modo que

nenhuma distinção semântica pode ser significativa se não produzir distinção pragmática,

na medida em que as diferenças das palavras não alteram os comportamentos humanos.

Por essa razão, não há dissociação entre ser e dever-ser, pois o conteúdo do

pensamento é determinado pela realidade, que é externa ao pensamento. Em outras

palavras, os resultados práticos é que conformam os conceitos.

Em oportuna passagem, LENIO LUIZ STRECK sustenta que:

“Com efeito, não existem conceitos sem coisas. Nem no direito, nem fora

dele. Tenho propalado esta frase para demonstrar que não existem

respostas antes das perguntas e que qualquer conceito que façamos

sobre algo não tem o condão de abarcar, de antemão, todas as hipóteses

de aplicação.

Assim, a lei é um texto, ao qual atribuiremos um sentido, que somente se

dará na sua concretude. Existem milhares de modos de cometer um furto.

Mas a lei fala apenas em ‘subtrair coisa alheia móvel’. A lei somente se

concretizará no momento em que alguém, efetivamente, furtar. E por

mais que, por exemplo, queiramos conceitualizar o que seja ‘pequeno

76

ABBAGNANO, Nicola. “Dicionário de Filosofia”. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 127/128.

Page 50: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

50

valor’ ou ‘insignificância’ ou ‘rompimento de obstáculo’, somente diante

de cada caso é que construiremos o sentido da ‘coisa concreta’.”77

Dessa forma, ao procurar os conceitos tributários em busca de solução para os

litígios ou teses tributárias, devemos abandonar as definições meramente abstratas e

investigar como eles são usados na conformação de casos concretos, até porque, como

vimos em WITTGENSTEIN II, se queremos saber o sentido de um termo, não devemos

perguntar o que ele representa, devemos examinar como ele é usado na experiência.

Temos, com isso, as principais notas do chamado pragmatismo clássico, o qual

se mostra prospectivo, vale dizer, se projeta para o futuro, para as expectativas normativas

na terceiridade (a chamada realidade da terceiridade78

), de certa forma opondo-se ao

chamado pragmatismo moderno que encontramos hoje, degenerado na secundidade, ou

seja, no qual se estabiliza as expectativas normativas apenas presentes.

É isso, de certa forma, que identificamos no nosso sistema processual atual,

onde os julgamentos racionalizadores e a coisa julgada, considerando apenas teses

momentâneas, pacificam e se projetam para casos presentes, estes, por sua vez, passíveis

de modificação diante das mudanças jurisprudenciais impostas pela dinâmica dos fatos, o

que justapõe, de algum modo, indução e abdução79

.

77

“Jurisdição constitucional e decisão jurídica”, 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 220. 78

Remetemo-nos ao item 3 da Introdução, onde expusemos o papel ontológico dos símbolos na cognição. 79

Dedução, indução e abdução são formas de inferência para estabelecer hipóteses científicas. Na abdução

utiliza-se o processo de generalização, por meio do qual uma coleção de dados individuais gera uma

conclusão mais ampla, sempre em caráter provável, portanto falível. Segundo REGO: “A abdução é

preparatória, é o primeiro passo da investigação; enquanto a indução é o último estágio. A abdução seria

então, o caminho para a introdução e descoberta de novas ideias, em oposição às formas de inferência por

dedução e indução. Enquanto a indução se desenvolve sobre o que já se tem conhecimento, a abdução é livre

para dar saltos na imaginação. (...) As grandes ideias e descobertas na ciência são alcançadas pela

abdução, que consiste em estudar os fatos e inventar uma teoria (hipótese) para explica-los. (...) Em outras

palavras, para encontrar a explicação de um fato problemático, é inventada uma hipótese ou conjuntura, de

onde se inferem consequências que possam ser testadas experimentalmente (verificadas indutivamente).

Nesse ponto, a própria abdução já concebe uma falibilidade intrínseca, pois as provas experimentais podem

desmentir as consequências das conjecturas imaginadas e, assim, instigar novas hipóteses. (...) Enquanto da

dedução a inferência se processa pelo modelo (premissa maior + premissa menor = conclusão) e a indução

por este (premissa menor + conclusão = premissa maior) a abdução teria o seguinte formato (conclusão +

premissa maior = premissa menor).” REGO, George Browne. “O pragmatismo e a análise lógica das

Page 51: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

51

Por fim, nas ciências sociais, interessante destacar que prevalece a aceitação da

acomodação entre os diferentes paradigmas, isto é, a possibilidade de compatibilizar os

diferentes aspectos de cada modelo teórico. Nesse sentido, destaca ALVES-MAZZOTTI80

:

“A discussão sobre a acomodação parece ser ainda mais relevante nas

ciências sociais, uma vez que estas, ao contrário das ciências físicas, são

multiparadigmáticas, isto é, nelas competem vários paradigmas (...).

Podemos observar, portanto, que, enquanto no caso da oposição

positivista/não-positivista, a acomodação era majoritariamente

considerada impossível, na situação presente as posições não são tão

rígidas, admitindo-se, inclusive, que a discussão sobre a

incompatibilidade entre paradigmas deve considerar diferentes níveis de

acomodação. (...)

Vários autores, em artigos recentes (Cherryholmes, 1992; Garrison,

1994; House, 1994), têm enfatizado a atualidade do pragmatismo,

resgatando as ideias de Peirce, James, Rorty e Dewey, e apontando-as

como uma alternativa frutífera para a elaboração da teoria e da

pesquisa.” (grifos nossos).

Dessa forma, é dentro dessa perspectiva da acomodação que pretendemos

conciliar, através do pragmatismo, a análise da estabilidade sistêmica, o fenômeno jurídico

da valorização dos precedentes e seu papel na mediação dos sentidos normativos.

1.1. Método pragmatista no direito81

e a teoria estruturante de Muller: intersecções

Quando se fala em pragmatismo no Brasil, não podemos deixar de citar os

textos do professor GEORGE BROWNE REGO, um dos principais nomes sobre o assunto

e que há tempos procura explorar e avançar no tema da legalidade positivista.

consequências na decisão do Supremo Tribunal Federal acerca da exigibilidade do exame da ordem”, texto

inédito, p. 69/71. 80

“O método nas ciências naturais e sociais”, 2ª edição. São Paulo: Pioneira, 1999, p. 142/144. 81

Como costuma ser enfatizado pelos estudos nesse campo, existem muitos pragmatismos, tanto na filosofia

como no Direito, razão pela qual o termo possui ambiguidade semântica. De toda forma, “associar

Pragmatismo e Direito é uma ideia antiga, que pode ser encontrada desde a origem do Pragmatismo

Filosófico norte-americano, passando pelo Realismo Jurídico, até as versões mais recentes do Pragmatismo

Jurídico. De outra maneira, associar abdução e Direito é uma proposta ainda incipiente no meio jurídico.”

Page 52: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

52

Assim, antes de tudo “(...) o Pragmatismo nada mais é do que um novo método

de tratar velhas ideias. Por essa razão o Pragmatismo é substancialmente uma atitude e

não uma técnica procedimental que resulte de uma lógica de cunho estritamente racional

e que enquadre os fatos em categorias universais e necessárias.”82

Nesse sentido, o método, ou a forma pragmatista, opõe-se ao isolamento dos

fatos naturais e sociais proposto pelo dualismo metodológico de KELSEN. A norma

hipotética fundamental cumpriu sua função de fundamentar a validade e unidade do

sistema jurídico, cortando o mundo em dois reinos: de um lado direito, de outro tudo o que

não interessa ao direito, afastando quaisquer implicações jusnaturalistas ou realistas.

Abre-se um parêntese, aqui, para esclarecer que o termo realismo produz

significados distintos na filosofia e no direito. Atrelado às discussões sobre verdade e

realidade, na filosofia, o termo realismo significa acreditar na existência objetiva das

coisas, externa à vontade do homem; no direito, significa acreditar que não existem valores

ou princípios fora da vontade do juiz, ou seja, o direito depende do juiz, vale dizer, fato,

valor e norma compondo a prescritividade jurídica.

Em que pese a proposta original de KELSEN, este, segundo GEORGE

BROWNE, “começava a admitir que existe uma certa funcionalidade da sociologia

jurídica no sentido de complementar, através da jurisprudência, o sentido da norma.”83

Dessa forma, os propósitos que se pretendem atingir integram o curso da

positivação do direito, razão pela qual a jurisprudência não é neutra e, assim, não se move

numa direção única, cega, dedutiva e mecânica, através de silogismos lógicos.

(REGO, George Browne. “O pragmatismo e a análise lógica das consequências na decisão do Supremo

Tribunal Federal acerca da exigibilidade do exame da ordem”, texto inédito). 82

REGO, George Browne. “O pragmatismo como alternativa à legalidade positivista: o método jurídico-

pragmático de Benjamin Nathan Cardozo”, in “Revista Duc In Altum Caderno de Direito”, vol. 1, nº 1, jul-

dez. 2009, p. 44. 83

Obra citada, p. 38.

Page 53: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

53

Com isso, quer-se dizer que os conteúdos dos conceitos legais são delineados

por meio dos casos concretos, de modo que a estabilização das expectativas normativas

através da coisa julgada deve ser compreendida de forma dinâmica, interpretando-se o

conjunto da postulação, as questões principais e os fundamentos determinantes da causa,

agentes determinantes na fixação do sentido da norma.

Conforme GEORGE BROWNE84

:

“Cada caso insere-se num conjunto de circunstâncias específicas e,

assim, tem a sua própria história. Sua solução rejeita portanto modelos

ortodoxos e sua análise varia em função de um maior domínio possível

dos elementos que comparecem à situação conjuntural, associado ao

esforço imaginativo no sentido de encontrar soluções mais apropriadas e

convenientes para cada caso. Os antecedentes são também muito

importantes.”

A partir dessas ideias, conseguimos contrapor e superar alguns dogmas: o

fechamento e a unicidade do direito não se esgotam na forma constitucional; direito não é

apenas linguagem lógica; a linguagem não cria a realidade; a norma jurídica não é uma

moldura puramente formal; a jurisprudência não se move de forma cega, aplicando

dedutivamente, mediante inferências necessárias (causação), conceitos abstratos; a decisão

jurídica não decorre de uma subsunção ou silogismo lógico; a coisa julgada não pode ser

formada, compreendida e mesmo rescindida unicamente a partir do dispositivo.

Esse entendimento alinha-se de forma mais harmoniosa com a pauta filosófica

e científica pós-mecanicismo, até mesmo com os atuais estudos da linguagem, que

encontram no próprio WITTGENSTEIN sua fonte de inspiração.

Segundo FRIEDRICH MULLER, referindo-se aos dois momentos do

pensamento de WITTGENSTEIN (do pensamento lógico ao giro-pragmático), temos que:

“A tese de que os fatos poderiam ter uma forma lógica é rejeitada por

Wittgenstein nessa fase do seu pensamento. No Tractatus a palavra é

84

Obra citada, p. 45/46.

Page 54: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

54

considerada como nome; nas Investigações Filosóficas ela é vista como

momento de um modo concreto de uso. A função da linguagem já não é

mais a de retratar o mundo. Um ‘jogo de linguagem’ é, muito pelo

contrário, uma situação linguística, dentro da qual se pode afirmar que

aqui – mas precisamente só aqui o significado das palavras é a coisa, à

qual elas se referem.”85

Aliás, a Teoria Estruturante de MULLER, bem ao estilo pragmatista, nega as

operações dedutivas na positivação do direito para, enfocando na sua concretização,

edificar uma teoria da norma que, de maneira indutiva, parta de problemas práticos. Não se

admite, pois, uma metodologia jurídica concebida sob a forma de um axioma.

Portanto, compreende-se como normativo tudo aquilo que determina a

resolução do caso (o conjunto da postulação, as questões principais e os fundamentos

determinantes), não apenas a determinação que se deu à resolução do caso.

Veja-se a sutil, mas significante inversão (o que determina o caso versus a

determinação do caso), pois isso opera consequências relevantes na formação da coisa

julgada. Na concepção da Teoria Estruturante, a norma é o resultado de um programa

normativo (um trabalho sobre os textos legais) e de um campo, ou âmbito normativo (um

trabalho sobre os dados fáticos), de modo que os elementos que determinam a resolução do

caso são, pois, igualmente normativos.

A normatividade jurídica, portanto, é conformada por uma estrutura mais

complexa do que o mero arranjo sintático dos enunciados legais. Voltaremos ao assunto

mais à frente, quando tratarmos da normatividade jurídica e das decisões normativas.

Desse modo, mais uma vez reiteramos, não existe julgamento de teses jurídicas

desconectado da realidade do caso (seu campo normativo), o que, no campo do Direito

tributário, implica reconhecer a relevância das especificidades de cada atividade e dos

85

“O novo paradigma do Direito, introdução à teoria e metódica estruturantes”, 3ª edição. São Paulo: Editora

Revista dos Tribunais, 2013, p. 190/191.

Page 55: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

55

negócios jurídicos subjacentes, bem como as consequências econômicas e sociais

envolvidas nos litígios, não se podendo falar, então, em questões unicamente de direito.

Até porque, a própria contabilidade, até então pautada numa visão estática,

vem adotando, com a vinculação aos padrões internacionais pela Lei n.º 12.973/14 (IFRS),

uma perspectiva dinâmica das mutações patrimoniais (exemplos disso são as Avaliações a

Valor Justo – AVJ; os Ajustes a Valor Presente – AVP; os testes de recuperabilidade –

impairment; as mensurações dos ativos intangíveis e dos ativos biológicos, etc.). Eis, aí, a

relação entre processo tributário e contabilidade.

Os fatos econômicos retratados na contabilidade passam, então, a acompanhar

a complexidade do real, exprimindo de forma mais verossímil as relações sociais,

financeiras e econômicas com impacto tributário, reforçando a ideia de que não pode

existir julgamento de teses jurídicas desconectados de toda essa realidade do caso.

Exemplificativamente, quando se discute, na atualidade, o reestabelecimento

das alíquotas do PIS e da COFINS em relação às receitas financeiras das pessoas jurídicas

sujeitas ao regime não-cumulativo de apuração

86, coloca-se na pauta algo que deveria ter

sido solucionado desde a Emenda Constitucional n.º 42/0387

, ou seja: quais setores da

economia deveriam se sujeitar ao regime não-cumulativo.

Desde que se instituiu, de forma generalizada, o regime não-cumulativo de

apuração para as pessoas jurídicas sujeitas ao Lucro Real, discute-se, de forma a amenizar

a majoração da carga tributária (que subiu de 3,65% para 9,25%), o conceito de insumo

para fins de creditamento pelo PIS e pela COFINS, deixando-se de lado, então, a análise do

86

Decreto n.º 8.426/15, editado de acordo com a delegação do § 2º, do artigo 27, da Lei n.º 10.865/04. 87

A qual inseriu o § 12 no artigo 195 da Constituição Federal, de modo a dispor que: “§ 12 - A lei definirá os

setores de atividade econômica para os quais as contribuições incidentes na forma dos incisos I, b; e IV do

caput, serão não-cumulativas.”

Page 56: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

56

quadro fático subjacente: quais setores da economia demandariam mais e/ou menos do

sistema da seguridade social (princípio da solidariedade e da contributividade) e, por isso,

deveriam ou não se sujeitar ao regime não-cumulativo de apuração.

Assim, setores que sequer deveriam estar inseridos na sistemática não-

cumulativa, acabam sofrendo um novo aumento da carga tributária com a inclusão das

receitas financeiras na base de cálculo do PIS/COFINS, o que retoma e aflora, novamente,

a discussão ainda pendente em torno da Emenda 42/03.

E mesmo na questão do conceito de insumo, como decidir a controvérsia sem

qualquer consideração às especificidades da atividade de cada empresa? Simplesmente

impossível, mas é isso que nossos tribunais vêm fazendo quando procuram generalizar

conceitos abstratos de maneira a priori, os quais, em seguida, são aplicados dedutivamente

a casos singulares, sobretudo quando encampados numa Súmula Vinculante.

Veja-se, por oportuno, as restrições crescentes quanto à edição de Súmulas

Vinculantes pelo STF em matéria tributária, ao menos na forma como vem ocorrendo, o

que ficou expressado nas discussões em torno da PSV relativa ao crédito presumido de IPI

sobre insumos desonerados, quando então o Ministro DIAS TOFFOLI ressaltou “ter

restrições quanto à edição de enunciados de súmula vinculante em matérias de ordem

tributária e penal (...), nas quais muitas vezes as particularidades não poderiam ser

enfrentadas nesse tipo de veículo processual.” (PSV 26/DF, de 11/03/2015).88

88

Discussões disponíveis no Informativo STF n.º 777, in

http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo777.htm, consultado em 19/07/15.

Page 57: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

57

A mesma restrição se repetiu na PSV 65/SP, que sugere enunciado vinculante

sobre a não inclusão dos materiais adquiridos de terceiros na base de cálculo do ISSQN

incidente na atividade de construção civil89

.

É o que ocorreu, também, quando não se deliberou sobre a PSV 22/DF, de

15/04/0990

, que pretendia fixar o conceito de receita bruta como a “soma das receitas

oriundas do exercício das atividades empresariais”, o que até parece correto, mas não

representava as discussões que fixaram o conceito como “proveniente das vendas das

mercadorias e da prestação de serviços de qualquer natureza.” Ou seja, nas discussões

judiciais se fixou a tese, abstratamente, em torno do conceito de receita bruta, sem

qualquer consideração às especificidades das atividades empresariais, e, depois, pretendeu-

se corrigir tal deficiência no enunciado sumular.

Da mesma forma deve haver com edição de eventual Súmula Vinculante em

relação ao conceito de insumo para fins de creditamento pelo PIS/COFINS, a qual deverá

contemplar uma adequada abertura semântica para análise dos casos concretos.

Os problemas em face de tais questões são de várias ordens: quem será

responsável para enquadrar e aplicar a abertura semântica do enunciado sumular? Ou seja,

quem definirá quais são as atividades da empresa para fins de subsunção ao conceito de

faturamento e/ou ao conceito de insumo? E mais, como será a metodologia e procedimento

na conformação do caso, para fins de adequação do julgamento e mesmo da eficácia de

eventuais coisas julgadas contrárias? Qual será o órgão que mediará essa operação

jurisdicional de adequação dos julgamentos e das coisas julgadas? Ou não se trata de

89

Informativo STF n.º 782, disponível em

http://www.stf.jus.br//arquivo/informativo/documento/informativo782.htm#PSV: ISSQN e base de cálculo –

2, consultado em 07/08/2015. 90

Disponível em http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=659080, consultado

em 19/07/15.

Page 58: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

58

atividade jurisdicional? Ou então, talvez pior, estaríamos admitindo o controle da

legalidade da coisa julgada pela administração fazendária?

Enfim, analisaremos esses dilemas mais à frente, mas o ponto é que a

normatividade jurídica implica dizer que uma questão de direito nunca está dissociada ou

desconectada de uma questão de fato, de modo que a dificuldade, então, está em

diferenciar quando a questão determina a resolução do caso e quando é por ele

determinada. Trata-se, pois, de um aparente vício circular, pois, como nos exemplos acima,

a definição das atividades é determinada pelo julgamento do caso e, em seguida, também

determina a resolução de outros, de modo que a normatividade da tese encontra seu

fundamento no quadro fático dos casos singulares.

Por isso, as consequências práticas dos julgamentos estão sendo, atualmente,

cada vez mais debatidas não somente no meio jurídico como também pela sociedade civil.

É o que vemos com as audiências públicas no STF, com a ampliação do instituto do

amicus curiae, com a participação popular nas propostas de Súmulas Vinculantes, etc.

Como bem apontou OLIVIER JOUANJA, em artigo sobre o método jurídico

pós-positivista em MULLER e referindo-se ao abandono da certeza formal no direito:

“É possível sentir-se frustrado por esta relatividade. É que a

metodologia não possui a função de satisfazer às necessidades das

certezas objetivistas, nada mais ela pode abandonar-se à ‘ratoeira do

decisionismo cético’, a qual lhe arma a anomia subjetivista. O método

tem por objeto dominar suficientemente, relativamente a distância

revelada pela teoria da norma o texto de norma e a norma jurídica. Este

domínio é necessário em um ordenamento jurídico como o nosso: as

normas, e as normas-decisões que as individualizam, devem poder ser

metodicamente imputadas aos textos de normas estabelecidas pelo

legislador legitimado.”91

91

“De Hans Kelsen a Friedrich Muller – Método jurídico sob o paradigma pós-positivista”, in MULLER,

Friedrich. “O novo paradigma do Direito, introdução à teoria e metódica estruturantes”, 3ª edição. São Paulo:

Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 225.

Page 59: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

59

Não podemos negar que o direito manifesta-se pela linguagem, mas o método

jurídico não se limita às análises textuais em sentido gramatical, de modo que trabalhamos

com textos, e não tão somente sobre textos, vale dizer, sobre as suas análises lógico-

sintáticas. Recordando uma clássica lição de DWORKIN, devemos levar os textos a sério.

Entra em cena, então, a corrente denominada semântica prática92

, considerada

a ciência moderna da linguística nos países germânicos, oposta ao estruturalismo

formalista baseado no giro-linguístico, tal qual inicialmente concebido93

.

Novamente recorrendo às lições do professor GEORGE BROWNE REGO, em

outro texto sobre o pragmatismo, temos que:

“(...) o cerne da preocupação do pragmatismo é a questão metodológica.

Nesse sentido, William James sintetizou com muita precisão o problema

ao afirmar que o Pragmatismo nada mais é do que um novo método para

analisar as velhas disputas filosóficas. Para lançar luz mais

compreensiva sobre o problema, procurar-se-á, então, equacioná-lo

sinteticamente em duas propostas bem distintas: de um lado, a que toma

como ponto de partida na relação do sujeito com o objeto do

conhecimento, a prevalência de um constructo teórico que reduz a

realidade a um conjunto de postulados lógicos capaz de subsumir e

explicar o que se passa no mundo da experiência, através do

entrelaçamento lógico entre as suas premissas; de outro, a crença em

que da observação dos fatos particulares é possível, pela via inversa à

precedente, retirar, do exame dos fenômenos observados, ilações

universalmente válidas.

Os reflexos dessas posturas metodológicas se estenderam – como se verá

posteriormente – à esfera jurídica que vai encontrar no método

92

“A semântica prática é uma corrente decididamente moderna da ciência linguística dos países

germânicos. Ela é oposta ao estruturalismo formalista da escola de Noam Chomsky (‘grammaire

transformationnelle’) e baseada sobre o linguistic turn [giro linguístico] do final dos anos 60 (‘The

Linguistic Turn’), dirigido por Richard Rorty, surgido em 1967). A semântica prática é ainda uma

radicalização dessa corrente geral (linguistic turn, semantic turn) que, atualmente, pode ser considerada

como a mais importante na discussão internacional; mesmo a escola analítica dos Estados Unidos

transformou-se nesse ínterim sob o impacto de Quine e de Davidson, e chamam-se agora os pós-analíticos.”

Entrevista com Friedrich Muller, in MULLER, Friedrich. “O novo paradigma do Direito, introdução à teoria

e metódica estruturantes”, 3ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 241. 93

Segundo Paulo de Barros Carvalho: “Penso que a filosofia da linguagem, tanto na versão do

estruturalismo, mais conectado com a linguística, quanto na proposta da filosofia analítica, em ligação mais

estreita com a lógica e com a matemática, navega a velas pandas no que há de mais fino e elaborado do

pensamento ocidental. As duas vertentes avançam, na forma da terminologia tradicional, aparecendo como

pós-estruturalismo e pós-analítica, para convergir na perspectiva hermenêutica, interpretativa, deitando

raízes na fenomenologia e no existencialismo.” (in DERZI, Misabel Abreu Machado. “Modificações da

jurisprudência no Direito Tributário”. São Paulo: Noeses, 2009, Prefácio, p. XI).

Page 60: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

60

pragmático uma alternativa inovadora para as práticas desenvolvidas no

caldeirão dos tribunais, usando a expressão de Benjamim Cardozo.

(...)

O método abdutivo pode ser constantemente encontrado nos julgamentos

do Supremo Tribunal Federal quando, partindo do geral para apreciar

um caso concreto, uniformiza entendimentos jurisprudenciais, dando

conformidade ao sistema jurídico brasileiro. Tanto é assim que a

Suprema Corte reserva-se a conhecer e julgar demandas que

representem repercussão geral.”94

No pragmatismo, portanto, o conceito é formado e construído pela soma dos

resultados práticos verificados nos atos de aplicação, por isso, não há uma dissociação

entre o “ser” (resultados práticos) e “dever-ser” (textos legais abstratos).

Outra não é a ideia de MISABEL ABREU MACHADO DERZI ao explorar os

princípios da irretroatividade, proteção da confiança e boa-fé no contencioso tributário, em

especial nas mudanças jurisprudenciais, ao afirmar que as situações fáticas (resultados

práticos) consolidadas pelas normas judiciais geram expectativas normativas futuras,

conformando e determinando as relações intersubjetivas, devendo ser preservadas95

.

Em passagem seguinte, fica claro o tom pragmatista inerente à interpretação,

aplicação e controle do direito: “Uma vez definida a posição da Corte sobre certa matéria,

os fatos iguais ao leading case, que se realizam sob a sua regência, devem ser avaliados e

julgados segundo aquela posição, verdadeira norma ‘judicial’ de orientação de conduta.

A fundamentação obrigatória da decisão, por meio de argumentação adequada aos

conceitos e princípios jurídicos; a limitação imposta pelos precedentes; o sopesamento

94

“O pragmatismo e a análise lógica das consequências na decisão do Supremo Tribunal Federal acerca da

exigibilidade do exame da ordem”, texto inédito. 95

“Nosso sistema jurídico conhece e lida com a sentença, como fonte de criação do Direito, ou seja, de

expectativas normativas. Disso resulta o marco temporal – data da publicação da decisão – ou a

qualificação pela coisa julgada, que assinala o termo a quo da vinculação, que alguns denominam de

eficácia processual. Tal eficácia processual, ressalvamos, é, a rigor, ainda material, no sentido de constituir

o Direito, a própria expectativa normativa judicial vinculativa (aplicável erga omnes e para os casos

similares, que se apresentarem no futuro). E esse marco terá relação com a incidência de princípios da mais

alta relevância como irretroatividade, proteção da confiança e boa-fé em relação às decisões judiciais.” (in

“Modificações da jurisprudência no Direito Tributário”. São Paulo: Noeses, 2009 – grifamos).

Page 61: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

61

das consequências do julgado como mera projeção; todos esses fatores são operacionais

internos, que devem ou deveriam proteger o cidadão contra o arbítrio e a insegurança.”96

Isso tudo, cumpre observar, não significa admitir uma indesejável submissão

pura e simples do direito aos fatos sociais ou econômicos, uma espécie de rebeldia ou

revolução atuando contra o sistema normativo, o que apenas causaria insegurança jurídica

e instabilidade às relações sociais.

Não, o direito continua sendo um sistema operacionalmente fechado, ou seja,

retroalimentado por suas próprias estruturas, daí o papel fundamental dos atos de

aplicação, da experiência jurídica, na conformação dos conceitos abstratos e na evolução

das diretrizes normativas. Por isso, também, se mostra adequado e ganha relevância o

método pragmatista aplicado no direito, cujos desdobramentos veremos mais à frente.

Capítulo 3. O sentido comum

A partir da estrutura filosófica procuramos conduzir a compreensão da forma

jurídica, identificando e acompanhando as metodologias gnosiológicas no tempo, sobre as

quais se desenvolvem os modelos teóricos e as categorias fundamentais da dogmática.

É, por assim dizer, em torno dessas pautas, ou plataformas teóricas, que se

sustentam as construções dos sentidos normativos, justificando e fundamentando o

processo gerador de interpretação, controlando seus resultados por meio de referenciais

pré-concebidos, implicando, por essa razão e em certos momentos, o desencaixe do objeto

frente ao modelo, como é o caso do Parecer PGFN n.º 492/2011, cuja análise será

empreendida na Parte III do trabalho.

96

Obra citada, p. 49.

Page 62: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

62

No contexto do chamado processo gerador de sentido normativo, somos

envolvidos numa intensa interpretação dialógica de textos, onde se pressupõe a

multiplicidade ôntica compositiva do direito, dando trânsito às diversas dimensões

fenomenológicas da linguagem normativa.

O percurso que perpassa os quatro subsistemas do sistema jurídico, e que

compõem o processo de geração de sentido das mensagens normativas97

, portanto,

encontra-se inserido num grande plexo comunicacional (texto em sentido amplo98

), de

modo que o intérprete99

, inserido no caos de sensações a que se referiu VILÉM FLUSSER,

dentro desse universo passa a construir as significações em busca do cosmos normativo.

Assim, as contribuições dogmáticas se desenvolvem em torno de questões

comuns a qualquer sistema jurídico, de maneira que o tema da normatividade pressupõe

um mínimo denominador que permita a interação com a estrutura de pensamento e com os

modelos de análise até aqui verificados.

Em outras palavras, para que possamos concluir esta primeira parte do trabalho

e evoluir no estudo dos temas propriamente vinculados ao seu título, imprescindível

97

De acordo com Paulo de Barros Carvalho: S1 (plano da literalidade textual – texto em sentido estrito); S2

(plano do conjunto de conteúdos de significação dos enunciados prescritivos); S3 (plano do domínio

articulado de significações normativas); e S4 (plano do domínio articulado das normas jurídicas, ou de

organização das normas construídas no plano S3). No plano do S1 não há que se falar em norma jurídica, mas

apenas suporte físico que contém os enunciados prescritivos isolados (seria o material bruto de qualquer

intérprete); em S2 estaria a norma jurídica em sentido amplo, ou seja, juízos hipotéticos condicionais

desprovidos de sentido deôntico completo; em S3 estaria a norma em sentido estrito, vale dizer, a regra-

matriz de incidência; e em S4 a norma em sentido completo, aquela decorrente da união entre as normas

primárias (dispositivas e sancionatórias) e secundárias. 98

“Não é de hoje que os estudiosos no campo da semiótica vêm tratando a figura do ‘texto’ como conceito

de abrangência maior que a formulação escrita d’uma ideia em expressões idiomáticas. Texto, na acepção

que venho considerando em meus trabalhos, extrapola tal definição estreita para abranger tudo aquilo que

se possa interpretar. Dessa maneira, mesmo os gestos humanos, o vestuário, sinais luminosos, as nuvens

no céu, tudo isso é texto, se assim for tomado como mensagem num processo comunicativo.”

CARVALHO, Paulo de Barros. “Breves considerações sobre a função descritiva da ciência do direito

tributário”. In “X Congresso Nacional de Estudos Tributários do IBET”. São Paulo: Noeses, 2013, p. 886. 99

Ressaltamos que, numa visão semiótica, o termo mais adequado seria interpretante, figura mais abrangente

que o mero e individualizado intérprete.

Page 63: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

63

empreendermos a conciliação ou adequação ao redor de categorias centrais, comuns a

qualquer escola de pensamento jurídico.

1. Unidade, coerência e completude. Para quem?

Os temas da unidade, coerência e completude do sistema jurídico são daqueles

que influenciam diversas categorias fundamentais do direito, ao mesmo tempo em que

pressupõem diferentes posições jusfilosóficas.

Dentre outras, citamos as questões em torno das fontes do direito, seus modos

de criação, modificação e extinção; a teoria da norma e a validade, vigência e eficácia

normativa; hierarquia do sistema; análise das relações de coordenação e subordinação; a

interpretação e a incidência do direito; a competência, e assim por diante. Qualquer tomada

de posição sobre tais questões, estamos certos, passa de algum modo pelas ideias de

unidade, coerência e completude e, por isso, deve considerar seus pressupostos.

Não sem razão, em sua teoria do ordenamento jurídico NORBERTO BOBBIO

dedica um capítulo inteiro para cada tema100

, criticando em alguns pontos o dogma da

completude, segundo o qual, na concepção de que a produção jurídica seria um monopólio

estatal (unidade de fontes), o Estado deveria regular todos os casos possíveis, de forma

que, segundo BOBBIO, a miragem da codificação seria a completude.

100

“Teoria do Ordenamento Jurídico”, 10ª edição. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999, tradução

de Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos (Capítulo 2 – A unidade do ordenamento jurídico; Capítulo 3 – A

coerência do ordenamento jurídico; e Capítulo 4 – A completude do ordenamento jurídico).

Page 64: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

64

E, ainda que adote diversas concepções positivistas pautadas na trilogia

unidade, coerência e completude, BOBBIO afirma que “coerência não é condição de

validade, mas é sempre condição para a justiça do ordenamento.”101

Iguais preocupações também tomaram diversos debates entre HANS KELSEN

e HERBERT HART, opondo-se a concepção em torno (i) do conteúdo das leis, (ii) do

modo de origem das leis e (iii) do campo de aplicação das leis, não se sustentado, segundo

HART, “uma espúria uniformidade que em verdade não existe.”102

Ao mesmo tempo em que critica os modelos tradicionais, HART propõe a

classificação normativa das regras secundárias, divididas em regra de reconhecimento,

regra de modificação e regra de julgamento, sendo a primeira responsável por encerrar o

sistema. A complexidade social, para HART, estaria contida nas normas primárias, que por

isso dependeriam das normas secundárias para adquirirem o tom da juridicidade.

Nessa ordem de ideias, sustentando um sistema jurídico contemporâneo cada

vez mais complexo, plural e incompleto, JJ. GOMES CANOTILHO afirma que “a

proclamada unidade da ordem jurídica parece estar definitivamente ultrapassada”, de

modo que “a mecânica unificação de alto para baixo através da força jurídica

hierarquicamente superior da constituição, a partir da qual se extraem unilateral e

dedutivamente todas as outras manifestações subordinadas do direito, colocar-nos-ia

completamente ‘fora da estrada’.”103

Da mesma forma propõe FRIEDRICH MULLER, para quem o dogma da

unidade “não pode continuar servindo a tentativas de apagar a linha de fronteira entre

argumentos orientados segundo as normas e argumentos de política jurídica desvinculada

101

Ob. cit., p. 113. 102

“O conceito de direito”, 2ª tiragem. São Paulo: Martins Fontes, 2012, Capítulo III. 103

“Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, 7ª edição. Coimbra: Almedina, p. 1143 e 1151.

Page 65: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

65

do direito (...) argumentos enganosos da ‘unidade’, seja do ordenamento jurídico na sua

totalidade, seja da constituição, levaram a caminhos errados.”104

Por sua vez, através do dogma da norma hipotética fundamental, KELSEN

procurou construir o arcabouço normativo sobre o qual justifica, a partir da uniformidade

estrutural, a unidade, coerência e completude do sistema de direito positivo.

Ou seja, o conjunto das normas homogeneamente uniformes, em última

instância, encontra fundamento numa estrutura que confere fechamento a todo o sistema,

permitindo, a partir daí, eliminar incoerências (ambiguidades) e incompletudes (lacunas).

Acerca de tais premissas, TÁREK MOYSÉS MOUSSALLEM destaca que:

“Ao empreendermos um enfoque dinâmico ao sistema do direito positivo

e ao partirmos do pressuposto de unidade a ele atribuído pela norma

hipotética fundamental, não há se rechaçar o caráter de auto-referência

que o acomete. Auto-referente porque é o próprio sistema que constitui

seus elementos, estruturas, processos e unidades (normas jurídicas), que

permite à dogmática jurídica codificar a diferença a que se refere

Luhmann ente o jurídico e o não jurídico.”105

Com efeito, corta-se formalmente o jurídico do não jurídico, conferindo-se

completude estrutural (sintática) ao sistema, pressuposto da segurança jurídica. Mas, ao

lado da completude formal, tem-se a incompletude material, pois o direito não reproduz, e

nem conseguiria, a complexidade da realidade social, em constante expansão e evolução.

O ontologismo jurídico e a indeterminação do direito, na forma em que

exploramos nos Capítulos 1 e 2 acima, impõem tratarmos a unidade, coerência e

completude do direito sob uma perspectiva menos abrangente e universalista, construída,

isto sim, a partir dos casos concretos, não podendo ser compreendida de maneira estática,

como postulado geral que visa eliminar, abstrata e dedutivamente, lacunas e antinomias.

104

MULLER, Friedrich. “O novo paradigma do Direito, introdução à teoria e metódica estruturantes”, 3ª

edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 106. 105

“Fontes do Direito Tributário”, 2ª edição. São Paulo: Noeses, 2006, p. 56.

Page 66: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

66

Segundo ALF ROSS, toda palavra é vaga e potencialmente ambígua,

representando, pois, um problema da linguagem. E, trazendo essa dificuldade para o

direito, encontramos as lacunas e as antinomias, ou seja, ausência de possibilidade

normativa ou múltiplas possibilidades normativas para um mesmo caso em concreto.

Vale dizer que vagueza e ambiguidade representam, respectivamente, a

ausência de definição para determinada palavra ou a múltipla possibilidade de definições

para a mesma palavra, o que gera, no direito, problemas como lacunas (sistema

incompleto) ou antinomias (sistema incoerente).

Aliás, tal imprecisão linguística também foi algo com o que os estudos da física

moderna e a exploração do universo subatômico acabaram tendo que aprender a lidar,

dando ensejo à teoria da complementariedade de NEILS BOHR e ao conceito de relações

de incerteza de HEISENBERG.

Desse modo, as lacunas e antinomias normativas refletem, de alguma forma, a

incompletude e incoerência material do sistema jurídico, ao mesmo tempo em que

confirmam a completude e coerência formal, pois não há que se falar, dentro do discurso

prescritivo do próprio direito, em lacuna ou antimomia a impedir a solução de um caso.

Isso porque, o próprio direito confere ferramentas para afastar ou conciliar as

lacunas e antinomias, consubstanciadas na hermenêutica jurídica, garantindo-se, com isso,

a certeza e a segurança jurídica através da forma.

O fechamento estrutural e a uniformidade do sistema permitem o

aprofundamento no estudo das diversas categorias fundamentais, mas ainda assim são

insuficientes para conferir fechamento e uniformidade material, da maneira em que

pensamos a tradicional pirâmide kelsiana.

Page 67: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

67

Assim, passando para os demais planos da linguagem, é através da abertura

semântica e pragmática do sistema que, pelos casos concretos, podemos falar em segurança

jurídica. Conforme já vimos, a segurança jurídica abstrata como postulado geral cede

espaço para a segurança jurídica concreta, um fim, de modo que não-contradição, terceiro

excluído e identidade são possibilidades individuais, porém generalizáveis.

Novamente oportunas as lições de TÁREK MOYSÉS MOUSSALLEM106

:

“O fechamento sintático não impede a necessária abertura semântica e

pragmática do ordenamento jurídico. Pelo contrário, a clausura

operacional é pressuposto para regulamentação jurídica da conduta

humana.

Assim, os fatores exteriores ao ordenamento jurídico somente nele

ingressarão quando o sistema do direito positivo os captar. Esses

elementos, uma vez metamorfo-seados em jurídicos, manterão inevitável

vínculo com a linguagem da realidade social (abertura semântica e

pragmática).

Ademais, vale lembrar que o direito positivo é um sistema (nomo)

empírico e, como tal, faz necessária referência à linguagem da realidade

social. Da intersecção entre a linguagem normativa e a linguagem da

realidade social resulta a linguagem da facticidade jurídica, que

ingressa no ordenamento por meio de normas jurídicas (mais

precisamente por seu antecedente), como veremos na sequência.”

É, portanto, através da porta que se abre a partir dos casos concretos que se fala

em heterogeneidade semântica e pragmática, quando então os fatos econômicos, contábeis

e financeiros adquirem normatividade jurídica. Essas são as lições enraizadas nos escritos

de PAULO DE BARROS CARVALHO, ou seja, homogeneidade sintática, ao lado da

heterogeneidade semântica: duas faces da mesma moeda107

.

No mesmo sentido, temos as observações de MISABEL DERZI:

“O interessante é que NIKLAS LUHMANN realça o paradoxo de um

sistema auto-referencial, de modo que a abertura ao real – do ponto de

106

“Fontes do Direito Tributário”, 2ª edição. São Paulo: Noeses, 2006, p. 57/58. 107

“Há homogeneidade, mas homogeneidade sob o ângulo puramente sintático, uma vez que nos planos

semântico e pragmático o que se dá é um forte grau de heterogeneidade, único meio de que dispõe o

legislador para cobrir a imensa e variável gama de situações sobre que deve incidir a regulação do direito,

na pluralidade extensiva e intensiva do real-social.” CARVALHO, Paulo de Barros. “Direito Tributário,

linguagem e método”, 4ª edição. São Paulo: Noeses, 2011, p. 136.

Page 68: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

68

vista tão somente cognitivo – é condição do próprio fechamento e da

viabilidade do sistema. A respeito desse ponto, observa MARCELO

NEVES que ‘o fechamento cognitivo do sistema jurídico proporcionaria

um paradoxo insuperável da autopoiese; não permitiria, portanto, a

interrupção da interdependência dos componentes internos através da

referência ao ambiente.”108

Sob tais premissas, é possível conciliar os diferentes diálogos sobre a unidade,

coerência e completude do sistema, na linha em que expusemos quando tratamos das

posturas aglutinantes e isolantes no Direito tributário brasileiro (item 2.3).

O enfoque estrutural e a perspectiva interna (sistema único e completo), não

exclui o enfoque funcional e a perspectiva externa, onde então falamos das lacunas e

antinomias presentes na complexidade social. Vê-se, então, que tais dicotomias não passam

de predominâncias de enfoque (estrutural ou funcional) e perspectiva (interna e externa).

Nesses termos, encontramos as lições de TÁCIO LACERDA GAMA, para

quem: “as premissas fixadas e desenvolvidas por Hans Kelsen para a construção da

Ciência do Direito assentavam-se num modelo sintático-semântico, com atenção especial

para a precisão dos conceitos e das classificações, tendo a definição de norma jurídica um

papel fundamental. A proposta de Herbert Hart, por outro lado, enfatiza o aspecto

semântico-pragmático, dando enfoque aos usos que os sujeitos, na condição de

observadores ou participantes, fazem das normas.”109

De tudo isso, conclui-se que as antinomias e as lacunas são problemas de

interpretação que decorrem, naturalmente, da ambiguidade e vagueza da linguagem

ordinária sobre a qual incide o direito110

.

108

DERZI, Misabel Abreu Machado. “Modificações da jurisprudência no Direito Tributário”. São Paulo:

Noeses, 2009, p. 27. 109

“Competência tributária, fundamentos para uma teoria da nulidade.” São Paulo: Noeses, 2009, p. 27/28. 110

Nesses termos, remetemo-nos às lições de Aurora Tomazini de Carvalho, “Curso de Teoria Geral do

Direito”, 2ª edição. São Paulo: Noeses, 2010, p. 506.

Page 69: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

69

Por isso, com o aumento da complexidade social e, com ela, da judicialização

dos problemas, sobretudo pela ampliação do acesso à justiça, evidenciam-se as lacunas e

antinomias do direito e, com isso, surge a questão consistente na limitação da produção de

sentidos normativos. Em outras palavras, onde se esgota os limites da interpretação?

Conforme GABRIEL IVO111

:

“Na atualidade há uma crescente juridicização de quase todos os

aspectos da vida. Tal situação decorre da própria configuração do

direito: objeto/ciência. É crescente o alargamento do objeto, como

também cada vez mais a postura da ciência caminha no sentido de uma

defesa da mais ampla juridicização de aspectos da vida. Surge assim

uma indagação: como responder ao dilema, na atualidade, de limitar a

produção do sentido? Talvez seja uma tarefa impossível.

Alguns propõem a superação com textos menos vagos e ambíguos.

Linguagem mais precisa. Tal atitude, contudo, aumentaria a

complexidade do Direito no plano da expressão – S1 –, pois implicaria a

capacidade de antever todos os conflitos e condutas individuais da vida

humana. Seria um plano completo, dotado de enorme abrangência e, o

mais difícil, unívoco. Mas, sabemos, a estabilidade do sentido dos textos

(normas) não depende exclusivamente da precisão semântica. Conforme

referência a LOURIVAL VILANOVA linhas acima, o conhecimento sobre

o direito não é desinteressado: é-o com vistas à aplicabilidade.”

O direito tem a função de reduzir complexidades, não reproduzi-las, assim

como um mapa, ou uma escala geográfica, por isso as potencialidades da realidade por ele

representada se expandem, e é natural que seja assim. Do contrário haveria completa

redundância, esvaziando-se sua eficácia normativa.

De todo modo, com a necessidade de traduzir e interpretar esse grande “mapa

jurídico” que é o direito, adentramos no problema da aplicação, ou positivação, que

corresponde à gradual concretização dos antecedentes normativos abstratos e

individualização dos consequentes gerais, exigindo a análise das semioses normativas.

111

“O Direito e a inevitabilidade do cerco da linguagem.” In CARVALHO, Paulo de Barros (coord).

“Constructivismo Lógico-Semântico”, vol. I. São Paulo: Noeses, 2014, p. 81/82.

Page 70: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

70

2. Objeto dinâmico e imediato, evento e fato: do positivismo ao pragmatismo

Ao lado do fechamento estrutural, temos a abertura semântica e pragmática do

sistema, imprescindível, como vimos, para a regulação jurídica das condutas humanas, de

modo que a internalização das influências exteriores se dá a partir de mecanismos do

próprio direito.

Ou seja, a linguagem da realidade social encontra-se em constante intercâmbio

com a linguagem do direito positivo, tratando-se, portanto, de fenomenologia onde os

chamados conteúdos exteriores ao direito são por ele internalizados, daí a pergunta: como

se dá a semiose entre o que é externo e o que é interno ao direito? E ainda, se o que é

externo está em constante expansão e evolução, onde se encontra o limite da interpretação

e internalização desses conteúdos interiores e exteriores?

Nesse sentido, temos os conceitos de objeto dinâmico e objeto imediato,

próprios da semiótica perciana, segundo a qual não existe um isolamento cognitivo entre

evento e fato, até porque, numa perspectiva comunicacional, o texto em sentido amplo

compreende e contém o texto em sentido estrito.

Desse modo, a interpretação se dá desde o começo da semiose, não

prevalecendo o dualismo segundo o qual os eventos são experimentados por meio dos

sentidos e os fatos são compreendidos mediante interpretação, numa postura que isola e

empurra os problemas da interpretação para a categoria dos eventos.

É sabido que norma não se confunde com texto, pois do contrário limitaríamos

o papel do interpretante, tornando dispensável qualquer trabalho interpretativo. Assim, a

norma é construída (e não revelada) a partir da interpretação dos textos em sentido amplo,

os quais compreendem mais do que apenas a literalidade dos textos legais.

Page 71: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

71

Por oportuno, ao discorrer sobre a teoria dos objetos PAULO DE BARROS

CARVALHO afirma que:

“A Teoria dos Objetos reconhece que todo objeto tem sempre um lado

subjetivo, conteúdo de alguma forma subjetiva, apresentando-se,

portanto, como um dado, um elemento integrante do mundo da

consciência. Mantenhamos presente o que já foi dito: a consciência,

enquanto tal, no fluxo incessante de sua existência, dissolve-se caso não

se apresente sob alguma forma.

Creio oportuno frisar que há uma relação dialética entre sujeito e

objeto, de tal sorte que um, não sendo o outro, não existe sem o outro;

em última instância, um é pelo outro. O objeto de conhecimento, em

sentido estrito, não é a coisa concreta, sentida ou percebida como algo

existente, também chamada objeto em sentido amplo. É sempre interior.

Por isso se apresenta, invariavelmente, sob determinada forma de

consciência, como a percepção, a imagem, o conceito, etc. Transmitido

de modo diverso, o processo de conhecimento dos objetos do mundo não

se completa sem transitar, obrigatoriamente, pela subjetividade do ser

cognoscente, quer os do mundo exterior como os de seu próprio universo

interior, fazendo-se presentes em sua consciência por uma das formas

que cogitamos.

É comum a confusão entre o ‘objeto’ do conhecimento e o ‘objeto’ que

vemos ali, concretamente existente no mundo real. O que está em nossa

consciência é o conteúdo da forma, não o objeto mesmo, tomado na sua

contextura físico-material.”112

Desta feita, o que PAULO DE BARROS CARVALHO chama de objeto do

conhecimento (sem, contudo, negar a coisa ou o dado bruto), é a forma que se apresenta

em nossa consciência, através de sua apreensão por meio de um signo (como por exemplo,

a percepção, a imagem, o conceito, etc.).

Assim, segundo CLARICE VON OERTZEN DE ARAÚJO, “não é a

realidade o que conhecemos, mas somente uma parte dela; apenas a parcela que

sujeitamos à linguagem, às representações e aos conceitos.”113

Em resumo, não temos acesso direto ao que chamamos de mundo real, mas

apenas às suas representações, a partir de juízos seletivos que, portanto, constituem o

112

“Direito Tributário, linguagem e método”, 4ª edição. São Paulo: Noeses, 2011, p. 14/15. 113

“Incidência Jurídica, teoria e crítica”. São Paulo: Noeses, 2011, p. 15.

Page 72: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

72

objeto imediato do conhecimento, ou sua forma. Como tal, o objeto imediato remete-se ao

objeto dinâmico, este, por sua vez, jamais integralmente acessível, dando ensejo ao que

EDGAR MORIN denominou de zona de penumbra do real.

Na linha de pensamento de MORIN, o mundo das coisas é muito mais amplo

do que suas representações, por isso se fala em multiplicidade dos níveis de realidade e

multiplicidade também de realidades. E qualquer tentativa de redução dessas múltiplas

realidades não passa de mera simplificação cognitiva.

O direito positivo, na tentativa de reduzir complexidades, também promove

simplificações, representando a realidade de forma sempre e necessariamente parcial, por

isso a abertura semântica e pragmática potencializa sua vocação normativa, ao mesmo

tempo em que dificulta a compreensão do jurídico.

Os textos legais em sentido estrito, ou símbolos jurídicos, são representações

de uma realidade mais complexa, daí porque a distinção entre objeto imediato e dinâmico

deixa clara a expansividade das palavras, havendo sempre um descompasso entre ambas as

realidades, o que se evidencia na comparação dos conceitos normativos no tempo114

.

A palavra família, ou núcleo familiar, hoje não tem o mesmo significado de

antes, assim como diversos conceitos em matéria tributária, como os de extrafiscalidade,

114

“O fluxo do acontecer histórico é imprevisível e suas incontidas mutações acrescentam uma dificuldade

enorme para o fim de gerar modos de controle e nutrir expectativas de padronizar conteúdos. Daí por que o

sistema jurídico, abrindo mão das ocorrências efetivas, se atém a formas de interação, a pautas de

comportamento com referentes semânticos genéricos, providência que é sempre um posterius em relação ao

fato social objeto das normas e que provoca o inevitável descompasso entre os dois planos: o da realidade

social e o do ordenamento jurídico que sobre ela incide, numa ‘circularidade’ que chama a atenção do

observador e passa ser um dos traços bem característicos da concepção pós-moderna do direito. (...) Seja

como for, é naquele vazio cronológico que acontecem as coisas, se instalam as novidades, surgem costumes

auspiciosos ou preocupantes, propostas de modificações pela via da instauração, da restauração, da

revolução (...). O jurista, exegeta das proporções inteiras deste todo sistemático, pela atitude cognoscitiva de

interpretação, é o ponto de intersecção destes dois mundos sígnicos: realidade e direito positivo, em toda

sua complexidade.” CARVALHO, Paulo de Barros. “Direito Tributário, linguagem e método”, 4ª edição.

São Paulo: Noeses, 2011, p. 205/206.

Page 73: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

73

isonomia ou equidade no custeio da previdência, faturamento, insumo, os quais vêm

sofrendo constante evolução, em especial através dos julgamentos de casos concretos.

Por essa razão, os signos transportam a forma do objeto imediato à consciência

interpretante, carregando as representações parciais do objeto dinâmico. De modo que o

objeto determina o signo, não o contrário.

Conforme LÚCIA SANTAELLA115

:

“(...) a noção de objeto dinâmico, ao pressupor a questão da percepção,

livra a semiose periceana das malhas do idealismo, sem incorrer, ao

mesmo tempo, na iminência de resvalar por um realismo ingênuo. Nessa

medida, limito-me a apontar para os aspectos mais fundamentais da

percepção, com vistas a salientar sua interdependência com os objetos

do signo. Se, de um lado, a inserção da percepção no diagrama lógico

da semiose ajuda a esclarecer a noção de objeto do signo, de outro lado,

a leitura da percepção à luz da tríade semiótica ajuda a esclarecer a

percepção ela mesma.”

Portanto, analisando o papel do objeto dinâmico na semiótica, PEIRCE

sustenta que os elementos de todo conceito entram no pensamento lógico através dos

portões da percepção. Justifica-se, então, o paralelo com a abertura semântica e pragmática

do sistema jurídico, responsáveis pela atualização e evolução do direito.

De qualquer modo, a diferenciação entre dado (ou evento), fato e fato jurídico

é questão que vem desde a filosofia, passando pela teoria do conhecimento e, como não

poderia deixar de ser, também influencia a teoria geral do direito. Não há dúvidas que

existe diferença entre tais conceitos, seja na linguística, na lógica, na semiótica ou na

física, de modo que o fato é mera representação do evento, uma versão.

Não obstante, não se nega o acesso aos eventos, ainda que de forma sempre

incompleta e imparcial, como não poderia deixar de ser. Os fatos são relatos linguísticos

115

“O que é semiótica”. São Paulo: Brasiliense, 2006, p. 48.

Page 74: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

74

dos eventos e, numa visão comunicacional do direito, permitem a reconstrução,

recomposição e atualização dos dados da experiência.

Com efeito, TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR faz a distinção entre

língua-normativa e língua-realidade, nos seguintes termos:

“(...) essa realidade-língua (LR), para o jurista, aparece como de fato

acontece: é fato que ocorreu urgência, é fato que foi expedida uma

medida provisória pelo Presidente da República. Que significa fato?

É preciso distinguir entre fato e evento. A travessia de Rubicão por

César é um evento. Todavia, ‘César atravessou o Rubicão’ é um fato.

Quando, pois, dizemos que ‘é um fato que César atravessou o Rubião’,

conferimos realidade ao evento. ‘Fato’ não é, pois, algo concreto,

sensível, mas um elemento linguístico capaz de organizar uma situação

existencial como realidade. (...)

Pois bem, quando interpretamos, analogamente com o que sucede na

tradução, realizamos a passagem de uma língua, a das prescrições

normativas (LN), para outra língua, a da realidade (LR). Note que

estamos falando de interpretação de normas e não de verificação de

fatos. Saber se ocorreu ‘urgência’ ou ‘se o Sr. J. bate na mulher’ é um

problema de verificação, interno à língua-realidade (LR). A

interpretação hermenêutica de que estamos tratando cuida da passagem

de (LN) para (LR), portanto, é uma questão interlinguística.”116

Da mesma forma, PAULO DE BARROS CARVALHO distingue linguagem

social e linguagem do direito positivo, com a particular diferença que identifica, na

linguagem social, os eventos referidos pelo direito positivo. Vejamos:

“Com efeito, se as mutações que se derem entre os objetos da

experiência vierem a ser contadas em linguagem social, teremos os fatos,

no seu sentido mais largo e abrangente. Aquelas mutações, além de

meros “eventos”, assumem a condição de “fatos”. Da mesma forma,

para o ponto de vista do direito, os fatos da chamada realidade social

serão simples eventos, enquanto não forem constituídos em linguagem

jurídica própria.

(...)

Essa elaboração de linguagem a que se dedica o legislador tem um

objeto dinâmico, que é o fato social, isto é, aquele seguimento linguístico

assim qualificado pela comunidade. O objeto imediato, para o direito,

será o modelo do enunciado conotativo formado na norma geral e

116

“Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação”, 5ª edição. São Paulo, Atlas, 2007, p. 280.

Page 75: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

75

abstrata e todos os enunciados protocolares que puderem subsumir-se na

ambitude do conceito legislado.”117

Apesar de aparentemente limitar o objeto dinâmico do direito aos fatos, é o

próprio PAULO DE BARROS CARVALHO que inclui os eventos na composição

normativa do sistema jurídico ao sustentar, em diversas passagens, a concepção ampla dos

textos no contexto comunicacional do direito, à medida que o sistema social também é um

sistema comunicacional de nível objeto, sobre o qual atual o direito positivo118

.

Até porque, a experiência colateral do intérprete, vale dizer, o contexto de

qualquer interpretação, integra e limita a atividade interpretativa, condicionando os

axiomas da inesgotabilidade dos sentidos e da intertextualidade.

Em matéria tributária, os eventos (objeto dinâmico) seriam, por assim dizer, as

atividades econômicas desenvolvidas pelas empresas, como por exemplo, a circulação de

mercadorias, a tradição de bens e produtos, a industrialização, o transporte (rodoviário,

marítimo ou aéreo), a prestação de serviços, etc. Já os fatos (objeto imediato) estariam

parcialmente representados nos signos dessas atividades, seja através da contabilidade, da

documentação comercial ou fiscal, do pagamento do preço, enfim, seria a linguagem da

facticidade social, contábil, econômica, financeira, e assim por diante.

E, transitando de uma postura positivista para uma perspectiva pragmatista, não

há que se limitar o objeto dinâmico do direito aos relatos dos fatos sociais, sob pena de

aprisionar e impedir a evolução dos conceitos jurídicos. É extremamente relevante, então,

incluir os eventos, em toda sua profundidade e complexidade, na semiose normativa do

direito, sempre com a ressalva de que jamais serão integralmente conhecidos.

117

“Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência”, 6ª edição. São Paulo: Saraiva, 2008, pp. 105 e

110. 118

“O direito positivo, enquanto camada de linguagem prescritiva, se projeta sobre o contexto social,

regulando as condutas intersubjetivas e direcionando-as para os valores que a sociedade quer ver

praticados.” CARVALHO, Paulo de Barros. “Direito Tributário, linguagem e método”, 4ª edição. São Paulo:

Noeses, 2011, p. 207.

Page 76: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

76

Tanto os fatos jurídicos (retratados conotativamente nos antecedentes das

normas abstratas, ou denotativamente nos antecedentes das normas concretas), como os

fatos sociais, são apenas um ponto de vista da experiência concreta.

Veja-se, nesse sentido, a elucidativa passagem de PAULO DE BARROS

CARVALHO, segundo a qual: “Aplicando ao estudo do direito, essa distinção de origem

peirceana vai possibilitar-nos imediatamente, compreender a dualidade existente entre o

fato social, que já é um recorte promovido pela linguagem relatora do correspondente

evento, e o fato jurídico, nova incisão feita por outra linguagem e que opera sobre o

primeiro recorte.”119

Por essa razão, a semiose jurídica absorve no interior do direito uma

multiplicidade de realidades nunca inteiramente conhecidas, mas permanentemente

pressupostas, sempre em busca de uma finalidade: a segurança jurídica concreta. A

ordenação do universo jurídico, desta feita, ocorre através da relação do interpretante com

o objeto (dinâmico e imediato), através do signo. Veja-se a representação:

Nesse sentido, o objeto tem uma relação imediata com o signo e mediata com o

interpretante. Ou, em outras palavras, o interpretante é imediatamente determinado pelo

signo e mediatamente determinado pelo objeto.

119

Obra citada, p. 111.

Interpretante

Signo Objeto

Imediato

Objeto

Dinâmico

Eventos

Fatos

Page 77: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

77

É por isso que, de alguma forma, se atribui normatividade ao preâmbulo da

Constituição Federal, às exposições de motivos das leis, às ementas dos julgados ou

mesmo às súmulas persuasivas de jurisprudência dominante, na medida em que remetem

ao contexto comunicacional do direito, à sua enunciação, permitindo o ingresso do receptor

da mensagem prescritiva ao conteúdo transmitido120

.

Com efeito, assim se torna possível compreender a normatividade do ser, dos

eventos, dos fatos sociais, econômicos, financeiros, contábeis, e assim por diante, vale

dizer: não se tratam de normas jurídicas, mas determinam a sua normatividade.

Conforme insistia GERALDO ATALIBA, o reducionismo da norma ao fato

(sociologismo), da norma positiva à norma ideal (jusnaturalismo), dos valores e normas às

estruturas lógicas (logicismo), é sempre um desconhecimento da experiência integral do

direito. Voltaremos e insistiremos nesse tema no curso dos próximos capítulos.

3. Norma jurídica (ou normatividade jurídica): incidência, aplicação, confusão

Assim como divide o objeto na relação com o signo em objeto imediato

(interior ao signo) e objeto dinâmico (exterior ao signo e que decorre da experiência

colateral, ou seja, do contexto e do dialogismo), PEIRCE também divide o interpretante em

imediato e dinâmico, ou seja, a dupla determinação que se apresenta ao interpretante.

120

Segundo Paulo de Barros Carvalho: “É precisamente neste último exemplo – a enunciação pela

Assembleia constituinte do Preâmbulo e do Texto constitucional – que Kelsen trouxe a singela, porém genial

contribuição da ‘norma hipotética fundamental’, não posta, mas pressuposta, juridicizando aquele fato –

procedimento de elaboração normativa – que ficara de fora, por imprimir-lhe a feição de normatividade que

lhe faltava.” In “O preâmbulo e a prescritividade constitutiva dos textos jurídicos.” Notus 35/2015.

Page 78: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

78

Desse modo, o signo exerce uma dupla determinação sobre o interpretante, a

primeira decorrente do próprio signo que representa o objeto (interpretante imediato) e a

segunda decorrente do interpretante desse signo (interpretante dinâmico).

Tem-se, ainda, que a cadeia de semioses ao longo do tempo é produzida por

novos interpretantes, sempre na busca de um maior conhecimento do objeto investigado,

tratando-se, nesse sentido, de séries que buscam o interpretante final.

A norma jurídica, portanto, é o produto dessas séries de interpretantes,

resultado de uma multiplicidade conformativa que toma os enunciados conotativos das

hipóteses abstratas, os enunciados factuais dos casos concretos e, ainda, o contexto

determinado pelas experiências colaterais em relação com o objeto dinâmico.

Assim, o contexto é externo ao interpretante, mas faz parte da compreensão do

signo, constituindo, assim, um pré-requisito para permitir a construção de qualquer

significação de sentido, de qualquer norma jurídica.

A partir desses referenciais iniciais, coloca-se a questão da incidência e

aplicação da norma jurídica, e o debate entre as teorias declarativistas e constructivistas.

No primeiro caso, a incidência da norma se daria de forma automática e

infalível, como se houvesse um conceito ontológico de norma jurídica (ou como se o

conceito de direito fosse natural), enquanto a aplicação, num segundo momento,

corresponderia apenas ao ato de declarar o fenômeno natural da incidência.

No segundo caso, a partir do fenômeno da linguagem (simbólica) e do papel

imprescindível do interpretante na construção da norma jurídica, não há que se separar

incidência de aplicação e, com isso, a incidência da norma ocorreria no exato momento da

aplicação (conversão dos eventos em linguagem competente, ou internalização dos eventos

pelos mecanismos próprios do direito positivo).

Page 79: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

79

Veja-se, contudo, que ambas as posturas não negam o papel do interpretante na

semiose jurídica, muito menos a normatividade dos eventos, da linguagem social,

econômica, contábil, financeira e assim por diante. O que se dá, apenas, é um isolamento

temático na análise do papel do interpretante e da questão do ser e dever-ser.

Fique claro, desde logo, que tais oposições ou aproximações estão longe de

uma concordância na dogmática jurídica. De todo modo, fazendo uma aproximação, quer

nos parecer que a proposta de declarativista da incidência automática e infalível assim se

daria enquanto forma jurídica (operação lógica), e, com isso, estaria alinhada com a

perspectiva da homogeneidade sintática do ordenamento jurídico.

Por outro lado, da mesma maneira o próprio constructivismo sustenta que a

incidência é uma operação lógica (não cronológica) de subsunção, portanto igualmente se

utiliza dos instrumentos da lógica dedutiva121

e, com isso, também se alinha à

homogeneidade sintática do ordenamento, ao mesmo tempo em que nega o caráter

declaratório da atividade interpretativa de incidência/aplicação.

Ou seja, adota-se o conceito lógico de derivação, que se refere aos

instrumentos introdutores de normas jurídicas, o qual não se estende às normas

introduzidas. A interpretação abrange tanto o processo como o produto e, por isso, não se

pode equipará-la a uma máquina de impressão pautada na causalidade absoluta, como se

houvesse uma dedução automática e infalível entre causa e efeito.

Com a compreensão de que o contexto do ser (objeto dinâmico determinado

pela experiência colateral) integra a normatividade do dever-ser, parece-nos que há um

deslocamento ou uma inversão do problema posto, que deixa de contrapor positivismo e

121

Onde então o evento seria dotado de regularidade, movimentando-se através de padrões matemáticos,

razão pela qual o fato, representando-o mecanicamente, esgotá-lo-ia numa fórmula lógico-subsuntiva.

Page 80: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

80

antipositivismo, ou jusnaturalismo, para então se preocupar com a fenomenologia jurídica,

assim determinada pelas semioses do direito.

No declarativismo a incidência se daria no plano do ser (intérprete não

autêntico) e a aplicação no plano do dever-ser (intérprete autêntico); no constructivismo,

tanto incidência como aplicação se daria apenas no dever-ser (intérprete autêntico) 122

.

Com efeito, o embate entre as duas teorias é normalmente colocado da seguinte

forma: a interpretação independeria da atividade humana e seria limitada a um exercício

meramente declaratório ou, pelo contrário, seria desempenhada pela linguagem do sujeito

competente e teria um papel construtivo do direito?

Mas, reformulando a questão, proporíamos o seguinte: como é compreendida a

normatividade jurídica em sua semiose ser e dever-ser (objeto dinâmico e imediato)? E,

assim, a incidência não seria automática e infalível por que há um isolamento semântico e

pragmático, ou um isolamento apenas estrutural da norma jurídica?

Reformulada a questão, o que sustentamos é que não existe automaticidade e

infalibilidade na incidência, mas não porque haveria apenas e tão somente um isolamento

estrutural da norma jurídica (homogeneidade sintática), senão também porque, ao lado

disso, há um constante e indispensável intercâmbio entre ser e dever-ser, numa postura

aglutinante que impõe a abertura semântica e pragmática.

Em outros termos, não é possível adotar padrões matemáticos de completa

certeza na regulação das relações intersubjetivas, numa racionalidade lógico-dedutiva

(inferência dedutiva) a partir de abstrações formalizadoras. Negamos a incidência

122

Retomando os conceitos, de acordo com Kelsen existem duas espécies distintas de interpretação: a

interpretação do direito pelo órgão credenciado que o aplica (autêntica), e a interpretação do direito que não é

realizada por um órgão jurídico credenciado pelo direito (não autêntica). Mas ainda assim reside a dúvida em

saber o que diferencia ambas as atividades interpretativas, a linguagem competente ou a forma de uso?

Page 81: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

81

automática e infalível, portanto, não por conta de uma mera dicotomia linguística, senão

pela superação de um dualismo cartesiano que exige uma postura aglutinante.

Ou seja, de acordo com as premissas em que temos insistido, não há que se

separar os momentos da incidência e da aplicação, pois implicaria um incorreto e

distorcido dualismo cartesiano onde a incidência comporia o reino do pensamento e a

aplicação o reino do corpo, limitando a atividade do pensamento e do interpretante.

Por essa razão, reiteramos, a incidência da norma jurídica é resultado de uma

multiplicidade conformativa também determinada pelo contexto e pelas experiências

colaterais que integram a complexidade do objeto dinâmico, daí a relevância, cada vez

maior, dos julgamentos dos casos concretos.

Em esclarecedora passagem, assim se manifesta EROS ROBERTO GRAU:

“Interpretação e aplicação consubstanciam um processo unitário

(Gadamer), superpondo-se.

Assim, sendo concomitantemente aplicação do direito, a interpretação

deve ser entendida como produção prática do direito, precisamente

como a toma Friedrich Muller: não existe um terreno composto de

elementos normativos (= direito), de um lado, e de elementos reais ou

empíricos (= realidade), do outro.

Vou repetir, mais uma vez: a norma é produzida, pelo intérprete, não

apenas a partir de elementos colhidos no texto normativo (mundo do

dever-ser), mas também a partir de elementos do caso ao qual será ela

aplicada, isto é, a partir de dados da realidade (mundo do ser). (...)

Logo, o que incisivamente deve aqui ser afirmado, a partir da metáfora

de Kelsen, é o fato de a ‘moldura da norma’ ser, diversamente, moldura

do texto e moldura do caso. O intérprete interpreta também o caso,

necessariamente, além dos textos, ao empreender a produção prática do

direito.”123

E nas palavras de THOMAS DA ROSA DE BUSTAMENTE124

:

“Apesar de Hart se ter mantido positivista por toda sua vida, outros

juristas, como Dworkin e MacCormick – no mundo do common law – e

Alexy e Peczenik – no Direito continental –, perceberam que nenhuma

123

“Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito.” São Paulo: Malheiros, 2002. 124

“Teoria do precedente judicial. A justificação e a aplicação de regras jurisprudenciais” São Paulo: Noeses,

2012, p. 251.

Page 82: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

82

teoria positivista pode ser adequada para entender a natureza do Direito

a partir do momento em que abandonamos a perspectiva do observador.

O Positivismo não basta mais enquanto teoria jurídica, porque ele não

leva em consideração o aspecto ideal do Direito (as ideias de correção,

justiça, razoabilidade) e advoga uma separação a priori entre Direito e

Moral, que não corresponde à prática de desenvolvimento do Direito em

sociedades relativamente avançadas. Parece mais plausível que, apesar

de o Direito e a Moral poderem ser conceitualmente diferenciados, haja

uma mútua dependência entre ambos. A Moral necessita do Direito para

superar sua indeterminação cognitiva; e o Direito necessita da Moral

para legitimar suas decisões.”

De tudo isso, podemos dizer que o ponto de vista adotado para o estudo da

incidência acaba influenciando e obscurecendo nossas conclusões, de modo que, para o

intérprete autêntico, incidência e aplicação se encontrariam no mesmo átimo; para o

intérprete não autêntico, vislumbra-se a formulação, construção e incidência de normas

jurídicas independentemente de sua aplicação. Vemos, então, que a posição e intenção do

intérprete na interação com o fenômeno passou a ser determinante na construção do objeto,

por isso a relevância da complementariedade.

De maneira que, no primeiro caso (teoria declarativista), teríamos incidência-

prescritiva, enquanto no segundo (teoria constructivista) incidência-descritiva, em ambos

havendo o fenômeno interpretativo operando de forma dialógica e complementar no

conjunto do plano comunicacional que forma os textos normativos (texto em sentido

amplo125

). Assim, é possível conciliar os discursos declarativistas e constructivistas.

125

Lembramos que os quatro subsistemas do processo gerador de sentidos que compõem a interpretação,

também são constitutivos do texto em sentido amplo. E a enunciação dos textos, em que pese figurarem

como fontes, também possuem normatividade.

Page 83: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

83

PARTE II

SISTEMA STARE DECISIS E A INCIDÊNCIA DOS PRECEDENTES

Capítulo 4. Conceitos fundamentais

Dentro desse contexto de valorização de precedentes, racionalização do

contencioso e mudanças na compreensão do fenômeno jurídico, passamos a conviver, em

número crescente, com institutos próprios do regime jurídico da common law126

, embora

impropriamente apropriados pelo nosso sistema codificador.

É nesse ambiente que analisaremos, mais à frente, a fenomenologia de

formação da coisa julgada e incidência dos precedentes, em particular no que diz respeito à

rescisão em matéria tributária.

Não obstante, desde já se percebe que a análise crítica dos precedentes sempre

foi conduzida a partir da Constituição, ou em nome da Constituição e da segurança

jurídica, o que, com a valorização e normatividade dos precedentes, impõe que sua análise

seja realizada a partir dos próprios precedentes. Ou seja, ao invés de confrontar os

precedentes com a Constituição, passa-se a confrontá-los com eles mesmos, obviamente

sem descuidar e sem abandonar as diretrizes constitucionais.

126

Destacando as diferentes origens e culturas do regime common law, Lenio Streck aponta que: “o conflito

que, como se viu, atravessou décadas e décadas, não foi estéril, uma vez que deu à common law americana

características próprias e particulares em confronto com a common law inglesa. O direito americano

evoluiu sob a influência de fatores próprios, e é profundamente diferente do tipo inglês. Os próprios

conceitos tornaram-se diferentes, e os dois direitos já não se identificam pela sua estrutura. Não se deve,

contudo, exagerar nas diferenças. (...) O direito, tanto para o jurista inglês como para o americano,

desenvolve-se sob a forma jurisprudencial. Os juristas desses países têm as regras de direito produzidas pelo

legislador (statutes) como algo ‘anormal’ no sistema. De qualquer maneira, tais regras (statutes) são

sempre mais bem assimiladas depois de devidamente interpretadas pelos tribunais, mormente se se tratar do

direito norte-americano. Quando não existe precedente, diz-se que there is no law on the point, mesmo que

Page 84: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

84

Imprescindível, portanto, compreendermos a linguagem e a extensão dos

conceitos e ferramentas que, direta ou indiretamente, passam a ser utilizadas no CPC/2015,

como overruling e distinguishing, dentre outros tão presentes num sistema stare decisis.

1. O sistema stare decisis: precedente como fonte do direito?

Quando falamos em common law e stare decisis, duas ressalvas iniciais se

fazem necessárias: (i) não se tratam de termos sinônimos, na medida em que um regime

civil law também pode fazer uso do sistema stare decisis, assim como um regime common

law igualmente pode ser altamente codificado; e (ii) não há uma acomodação ou

sobreposição do regime common law em relação ao nosso sistema jurídico, mas sim uma

adaptação evolutiva de nossa prática jurídica, que precisa ser devidamente compreendida.

Segundo LUIZ GUILHERME MARINONI127

:

“Da relação entre a natureza constitutiva da decisão judicial e o stare

decisis formaram-se três mitos: i) o common law não existe sem o stare

decisis; ii) o juiz do common law, por criar o direito, realiza uma função

absolutamente diversa daquela do seu colega do civil law; e iii) o stare

decisis é incompatível com o civil law.”

Em grande síntese, stare decisis é expressão designativa dos sistemas jurídicos

integrados por um conjunto de ferramentas que procuram valorizar e compreender a

fenomenologia normativa a partir dos precedentes judiciais, não detendo, portanto,

pertinência exclusiva às culturas common law128

.

exista uma lei que preveja a situação sob análise.” STRECK, Lenio Luiz. “Jurisdição constitucional e

decisão jurídica”, 3ª edição. São Paulo: RT, 2013, p. 375. 127

“Precedentes obrigatórios”, 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 25. 128

“Lembre-se que, embora os precedentes tenham sido fundamentais para o desenvolvimento do common

law, o stare decisis – isto é, a eficácia vinculante dos precedentes – tem sustentação especialmente na

igualdade, na coerência e na estabilidade da ordem jurídica e na previsibilidade. Ainda que seja costume

pensar o stare decisis como aspecto indissociável do common law, a verdade é que o primeiro surgiu no

Page 85: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

85

Ao apontarmos para uma evolução da nossa prática jurídica, nos referimos às

mudanças promovidas tanto na legislação processual como, consequentemente, na forma

de compreensão do fenômeno jurídico, onde então o direito legislado passou a conviver

com o direito jurisprudencial, com os costumes e com os valores, e então os conceitos

legais passaram a se descolar dos enunciados prescritivos gerais e se aproximar de uma

prática judicante (mudança intercalar de preponderâncias), o que se evidencia, por

exemplo, quando observamos as discussões sobre o chamado ativismo judicial.

Desse modo, não se trata de mudança promovida ou imposta a partir da

substituição dos paradigmas teóricos (superação pura e simples de um sistema lógico-

dedutivo, baseado na subsunção, para um sistema jurídico-discursivo; ou substituição do

regime civil law por um common law), mas sim mudança do objeto, com a valorização dos

precedentes pautando uma nova racionalidade, chamada stare decisis, o que exige, da

mesma forma, novas ferramentas para aproximação e explicação do fenômeno129

.

Feitos esses esclarecimentos, voltemos ao problema do precedente como fonte

do direito, questão pertencente à filosofia do direito130

e sobre a qual gravita as oposições

entre civil law e common law, e então perceberemos que se trata de um dilema semântico

que não impede a devida integração do sistema stare decisis ao nosso sistema codificador.

Não iremos promover uma análise comparativa entre os regimes anglo-saxãos

e romano-germânicos, cujas origens e traços característicos já foram abordados, de algum

modo, em tópicos anteriores. Não obstante, cumpre observarmos que as experiências

curso do desenvolvimento do segundo para, sobretudo, dar segurança às relações jurídicas.” (MARINONI,

Luiz Guilherme. “Precedentes obrigatórios”, 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 15). 129

“A idealização/moralização do Direito induz, como veremos logo a seguir, a uma mudança na

autocomposição tanto da teoria jurídica quanto da filosofia do Direito.” (BUSTAMENTE, Thomas da Rosa

de. “Teoria do precedente judicial. A justificação e a aplicação de regras jurisprudenciais.” São Paulo:

Noeses, 2012, p. 166). 130

À filosofia do direito cabe estudar e responder o que é o direito, como ele pode ser descoberto, conhecido

e consultado.

Page 86: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

86

concretas desses diferentes regimes acabaram gerando intercâmbios evolutivos com

mútuas influências que, hoje, não admitem um isolamento estrutural.

As escolas positivistas e o civil-law, portanto, atualmente estão altamente

influenciadas e interessadas por mecanismos tipicamente anglo-saxãos, dentre os quais a

doutrina dos precedentes, a partir de uma cultura que lhes passa a outorgar papel criativo

no direcionamento das condutas intersubjetivas131

.

Dentre os aspectos fundamentais que marcam a teoria positivista do direito,

tem-se, segundo BOBBIO132

, o tema das fontes do direito, inserido na teoria da legislação

como fonte preponderante do direito.

Assim, ao invés do ideal jusnaturalista de um direito racional e universalmente

válido, onde o dever-ser provém do ser, com a codificação o que se deu foi o isolamento

valorativo do mundo do dever-ser, inacessível a partir do ser. De forma paradoxal, mais do

que distanciamento o que se viu com o positivismo foi uma aproximação, na tentativa de

impor o ideal de um direito racional e universalmente válido e, com isso, substituiu-se a

racionalidade universal do ser pela racionalidade universal do dever-ser.

Ocorre que com a evolução da complexidade social no mundo pós-moderno,

surge o pluralismo jurídico caracterizado pelo pensamento não isolante, apresentando-se

como alternativa à concepção de que as fontes normativas seriam somente de natureza

legislativa e que, portanto, não haveria margem criativa no ato jurisdicional.

131

Como já destacamos, cumpre reiterar que o sistema stare decisis revela uma multiplicidade conformativa

até mesmo nos regimes da common law, conforme se percebe nos diferentes contornos recebidos na prática

americana e inglesa. Conforme observa Marinoni, “o termo stare decisis significa tanto a vinculação, por

meio do precedente, em ordem vertical (ou seja, como representação da necessidade de uma Corte inferior

respeitar decisão pretérita de Corte superior), como horizontal (a Corte respeitar decisão anterior proferida

no seu interior, ainda que a constituição dos juízes seja alterada). (...). Em outra senda, há aqueles que

optam por distinguir o termo stare decisis de precedent (...).” “Precedentes obrigatórios”, 3ª edição. São

Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 25. 132

“O positivismo jurídico: Lições de filosofia do direito.” São Paulo: Ícone, 1995.

Page 87: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

87

Assim, admitida a natureza criativa do juiz, responsável que é pela atualização

dos conteúdos legislativos, o que temos, em verdade, é uma relação complementar das

fontes normativas (tais quais originariamente concebidas no positivismo jurídico), e que

leva em consideração a conjugação dos dois eixos de organização da linguagem jurídica: o

eixo paradigmático e o eixo sintagmático.

Desse modo, as fontes legislativas operam no eixo paradigmático, ou seja, em

ausência, enquanto as fontes jurisdicionais operam no eixo sintagmático, vale dizer, diante

dos casos concretos, portanto em presença, podendo também se expandir a partir da

generalização, projetando-se para o futuro, para o eixo paradigmático.

Assim se conforma a virtualidade e a concretização das fontes normativas,

ambas se projetando, de diferentes maneiras, para as relações sociais, o que ficou claro

quando tratamos dos conceitos de objeto dinâmico e objeto imediato (Capítulo 3, item 2).

A dinâmica social permeia a regulação das condutas, sendo objeto tanto da

fonte legislativa como da jurisdicional, porém possuindo status ontológicos diferenciados,

pois operam em graus diferentes de complexidade (multiplicidade dos níveis de realidade).

Portanto, a partir do estudo das fontes do direito, e com o auxílio dos conceitos

de enunciação, verificamos que tanto as leis como a jurisprudência integram o direito

positivo, mas ao mesmo tempo, ambas as enunciações possuem normatividade jurídica.

A enunciação normativa (fonte) produz os enunciados prescritos que integram

o direito. Os enunciados prescritivos dividem-se em enunciação-enunciada e enunciado-

enunciado, os quais compõem o documento normativo. Da enunciação-enunciada

construímos uma norma jurídica concreta e geral (o veículo introdutor tanto da lei como do

precedente); e a partir dos enunciados-enunciados construímos as demais normas que

compõem o conteúdo da lei, podendo ser gerais e abstratas, individuais e concretas, etc.

Page 88: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

88

É nesse sentido, da mesma forma como hoje se entende a fonte legislativa, que

podemos compreender o precedente como fonte do direito, ou seja, direito produzido pelo

órgão jurisdicional, em que pese a classificação dogmática que separa fonte formal de

fonte material, misturando o conceito de veículo introdutor, o que acaba por confundir e

prejudicar o estudo das fontes.

1.1. Decisão, jurisprudência e precedente

Ao analisarmos os elementos centrais que caracterizam o sistema stare decisis,

acabamos nos deparando com uma diversidade classificatória que por vezes prejudica a

compreensão do tema, de modo que decisão, jurisprudência e precedente são

constantemente referidos como sinônimos.

Por essa razão, quando falamos em criatividade do direito pela fonte judicial,

devemos questionar quais manifestações judiciais e em que extensão produzem tal efeito

criativo, nesse sentido normativo que nos vêm à mente.

Desde logo, como decorrência dos títulos anteriores, deixemos claro que toda

manifestação jurisdicional, em especial de mérito (portanto compositiva do conflito de

interesses submetido à apreciação do órgão judicial), produz direito positivo e possui uma

multiplicidade conformativa que se projeta de diferentes maneiras para as legítimas

expectativas futuras, gerando padrões de conduta.

Com efeito, atualmente os critérios contábeis de avaliação de riscos

contingenciais ativos e passivos (provável, possível e remoto) impõem a avaliação, de

Page 89: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

89

diferentes maneiras, das diversas formas de manifestações jurisdicionais. Ou seja, a

gradação de riscos, hoje, em grande parte é determinada pelas orientações jurisprudenciais.

Dito isso, em primeiro lugar não podemos confundir o veículo introdutor da

enunciação judicial com o seu conteúdo material (sua normatividade). Desse modo, todo

conteúdo jurisdicional é a expressão de um ato de decisão que pode adotar diferentes

formas jurídicas (liminar, sentença, acórdão, etc.).

Nesses termos, podemos afirmar que decisão compõe o gênero, cujas espécies

são determinadas e conformadas a partir dos diferentes veículos introdutores, sem que

necessariamente carreguem diferentes conteúdos materiais. De modo que, um mesmo

conteúdo jurisdicional pode apresentar-se sob diversas formas jurídicas.

Assim, as espécies decisórias ora são determinadas pelo momento de sua

produção, ora pelo grau hierárquico de sua fonte, ora pelo procedimento ou rito adotado,

enfim, existe uma multiplicidade conformativa do gênero decisão, sendo precisamente a

partir daí que o sistema processual (sistema secundário) elege e impõe as diferentes

extensões e cargas normativas (eficácia erga omnes ou inter partes; vinculante, persuasiva

ou de persuasão especial).

Por outro lado, ao nos referirmos à jurisprudência, estamos tomando certo

conjunto de elementos da classe decisão, formado particularmente por um universo

indefinido de manifestações jurisdicionais provenientes dos tribunais e veiculadas por

acórdãos (ou seja, decisões judiciais colegiadas)133

.

133

Há quem utilize o termo jurisprudência em um sentido amplo, para designar o conjunto de decisões

judiciais colegiadas, e também em um sentido estrito, para se referir às orientações firmes no mesmo sentido,

mas ainda assim fica em aberto o que se considera por decisões firmes.

Page 90: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

90

Não se trata, portanto, de um conceito do direito positivo, até porque

encontramos 12 (doze) correspondências o termo jurisprudência no vigente CPC/1973 e 10

(dez) no CPC/2015, todas sem qualquer conteúdo definitório.

Assim, apesar dos relevantes efeitos atribuídos à jurisprudência dominante

(como a permissão do julgamento monocrático de recursos ou sua inadmissibilidade; a

concessão de tutelas de evidência; a imposição de multas processuais por abuso de direito;

etc.), ainda assim não encontramos um conceito positivado.

Ao lado do termo jurisprudência, encontramos apenas 1 (uma)

correspondências ao termo precedente no CPC/1973, que em seu artigo 479 dispõe que “o

julgamento, tomado pelo voto da maioria absoluta dos membros que integram o tribunal,

será objeto de súmula e constituirá precedente na uniformização da jurisprudência.”

Trata-se, portanto, de um específico e limitado uso da expressão, onde então

apenas o julgamento da maioria dos membros do tribunal constituiria precedente, para fins

de uniformização da jurisprudência.

No CPC/2015, por sua vez, encontramos 6 (seis) correspondências134

que,

todavia, não definem aprioristicamente o conceito de precedente, possuindo um uso

significativamente mais ampliado, para corretamente identificar as decisões que precedem,

embasam e justificam a produção de outras.

Com isso, relativiza-se o conceito até então adotado, mas ainda assim se elege,

de maneira antecipada, as formas jurídicas capazes de produzir efeitos de precedente, ou

134

“Art. 489. (...) § 1º (...). V – se limitar a invocar precedente (...); VI – deixar de seguir enunciado de

súmula, jurisprudência ou precedente (...).”

“Art. 926. (...) § 2º - Ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas

dos precedentes (...); § 5º - Os tribunais darão publicidade aos seus precedentes (...).”

“Art. 988. (...) IV – garantir a observância de enunciado de súmula vinculante e de precedente (...).”

“Art. 1.042. (...) § 1º (...). II – a existência de distinção entre o caso em análise e o precedente (...).”

Page 91: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

91

seja, há uma prévia determinação dos veículos introdutores de decisões judiciais capazes

de fundamentar e justificar, vinculativamente (segurança jurídica e isonomia através do

respeito aos precedentes), outras decisões.

É nesse sentido que o artigo 927 do CPC/2015 impõe a observância

obrigatória, pelos juízes e tribunais, das decisões do STF em controle concentrado de

constitucionalidade, dos enunciados de súmula vinculantes, dos acórdãos em incidente de

assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e de julgamentos dos

recursos extraordinário e especial repetitivos, bem como das orientações do plenário ou do

órgão especial aos quais estiverem vinculados135

.

Ou seja, trata-se da lei impondo e definindo os veículos introdutores de

precedentes, o que, como vimos, ainda limita e reduz a potencialidade de um verdadeiro

modelo stare decisis de respeito aos precedentes. Mas na medida em que o precedente,

enquanto forma, está sendo delimitado aprioristicamente pela lei, seu conteúdo jamais o

será, não sendo possível limitar a potencial expansividade normativa de um julgado

qualquer produzir efeitos de precedente, quando invocado para a solução de um caso.

Nas lições de JÚLIO CÉSAR ROSSI, discorrendo sobre a chamada força

gravitacional do precedente, temos que:

“Em verdade, a força gravitacional do precedente não pode ser

apreendida por nenhuma teoria que considere estar a plena força do

precedente em sua força de promulgação, tal qual a promulgação de

uma lei. A força gravitacional de um precedente judicial pode ser

explicada por um apelo, não à sabedoria da implementação e leis

editadas, mas à equidade, isonomia e a tão decantada segurança

jurídica, que estão em tratar os casos semelhantes do mesmo modo.

135

De acordo com Thomas da Rosa de Bustamente, tal fenômeno espelha os fatores institucionais que

influenciam a força do precedente, permitindo, a partir dessa ideia, a classificação “de acordo com a seguinte

escala de três níveis: (1) precedentes obrigatórios em sentido forte ou formalmente vinculantes (formally

binding); (2) precedentes obrigatórios em sentido frágil (not formally binding but having a force); e (3)

precedentes meramente persuasivos.” BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. “Teoria do precedente judicial.

A justificação e a aplicação de regras jurisprudenciais.” São Paulo: Noeses, 2012, p. 389/390.

Page 92: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

92

Ora, como sustenta Dworkin, ‘um precedente é um relato de uma decisão

política anterior; o próprio fato dessa decisão, enquanto fragmento da

história política, oferece alguma razão para se decidir outros casos de

maneira similar no futuro.”136

Temos, então, que o precedente seria a decisão que precede outra, portanto,

refere-se a decisões passadas, cujo objeto litigioso seria similar àquele enfrentado no

presente. Assim, uma decisão deveria ser qualificada como precedente a posteriori, ou seja,

a partir do momento em que, por sua importância ou repercussão, por sua densidade ou

fundamentação, passa a gerar expectativas normativas presentes e futuras (é isto, como

vimos, que determina a classificação de risco das contingências).

Desse modo, o que queremos dizer é que os precedentes não são fórmulas

jurídicas, não determinam o objeto, o suporte fático, mas sim o contrário, vale dizer, é o

caso que vai determinar a potencialidade normativa do precedente, o qual é eleito e

utilizado como signo da regra jurídica a partir da complexidade do objeto dinâmico.

Até porque, numa visão semiótica, o sentido da mensagem é dado pelo

receptor, que tem condições de fazer o juízo de adequação do caso ao precedente, não

sendo essa uma tarefa do emissor, quase que num exercício de futurologia, pois de acordo

com o falibilismo de PEIRCE, nosso conhecimento nunca é absoluto, mas evolui

mergulhado na contínua incerteza e indeterminação do objeto.

Nesse sentido, qualquer soma de individuais (jurisprudência) compõe um

recorte que jamais representará e esgotará a complexidade dos gerais. Veja-se:

“O falibilismo caracterizou-se como a doutrina segundo a qual o nosso

conhecimento nunca é absoluto, mas evolui mergulhado em um

continuum de incerteza e indeterminação. No continuum, qualquer soma

de individuais que componha um recorte não representará jamais uma

genuína amostra, uma vez que nenhuma fração poderá esgotar o acaso e

a diversidade latentes na continuidade. Peirce rejeitou o mecanicismo

determinista, que chamou de doutrina necessitarista. Segundo a 136

ROSSI, Julio César. “Precedente à Brasileira. A jurisprudência vinculante no CPC e no novo CPC”. São

Paulo: Atlas, 2015, p. 130/131.

Page 93: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

93

formulação peirceana, a regularidade das leis é constantemente violada

(CP 6.59; 6.588).

(...)

Na concepção da semiótica peirceana, é o objeto que determina o signo,

sendo a relação entre signo e objeto o que o filósofo denominou de

fundamento do signo. Assim, nesta formulação, é a partir do suporte

fáctico que uma mente irá identificar a regra jurídica incidente, ao invés

da regra colorir o suporte fáctico, como a prancha de impressão,

automática e infalivelmente.”137

O sistema stare decisis, desta feita, impõe o peso da mensagem no receptor,

sendo ele o responsável pela identificação e convocação do precedente, de modo que o

verdadeiro caso precedente surge, portanto, prospectivamente, não retrospectivamente, de

forma degenerada, como já vimos acima e como temos caminhado, com a formação de

precedentes que já nascem com tal status.

Dentro desse cenário, mostra-se essencial identificarmos os elementos do

precedente, tendo em vista que suas aproximações ou distinções é que permitirão, ou não,

serem utilizados para a solução dos casos concretos e direcionamento das condutas futuras.

Devemos, então, analisar os “conceitos de ratio decidendi e obter dicta,

indispensáveis para a compreensão da essência dos precedentes, chegando-se, após, à

análise dos seus modelos operacionais, como o distinguishing e seus assemelhados:

técnica da sinalização, transformation, overriding e elaboração de distinções

inconsistentes. Estuda-se, ainda, o overruling, dando-se atenção ao anticipatory

overruling e os efeitos prospectivos da revogação do precedente, cuja assimilação é

absolutamente fundamental a um sistema que, dando ênfase a precedentes vinculantes,

deve se preocupar tanto com a segurança jurídica, quanto com o desenvolvimento do

direito e com a confiança justificada na ordem jurídica.”138

137

ARAÚJO, Clarice von Oertzen de. “Incidência jurídica, teoria e crítica.” São Paulo: Noeses, 2011, pp. 125

e 130. 138

MARINONI, Luiz Guilherme. “Precedentes obrigatórios”, 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2013, p. 19.

Page 94: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

94

Discorrer sobre stare decisis, portanto, é falar de precedentes, sua formação,

seus elementos, sua eficácia e as formas de articulação nos casos concretos.

1.2. Elementos do precedente (ratio decidendi e obter dictum)

Diante da natural ideia de que os precedentes judiciais tendem a generalizar ou

transsubjetivizar sua potencialidade normativa, temos que o ato de decidir passa a

considerar suas repercussões pragmáticas (políticas, econômicas, financeiras, etc.), sendo

então formulado prospectivamente, por isso sua particular vocação prescritiva.

Nesse cenário, são os fatos espelhados no relatório, mais os motivos ou

fundamentos determinantes (de fato e de direito) que compõem a ideia de ratio decidendi

e, assim, passam a formar o precedente e integrar sua normatividade prospectiva.

Aliás, é o próprio inciso V, do § 1º, do artigo 489 do CPC/2015 que não

considera fundamentada “qualquer decisão” que “se limitar a invocar precedente ou

enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar

que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos.”

Também o artigo 979, § 2º, dispõe que “para possibilitar a identificação dos

processos abrangidos pela decisão do incidente, o registro eletrônico das teses jurídicas

constantes do cadastro conterá, no mínimo, os fundamentos determinantes da decisão e os

dispositivos normativos a ela relacionados.”

Destacamos que o conceito de ratio decidendi, no sistema stare decisis, é fruto

de diversas teorias e não se confunde com os meros fundamentos determinantes do caso,

Page 95: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

95

sendo algo mais amplo, integrado principalmente pelos fatos, pelas particularidades do

caso e pelo contexto interpretativo envolvido em determinado momento histórico.

Trata-se de diretriz inerente ao sistema stare decisis, não sendo possível

manusear e articular os precedentes sem a correta compreensão de seus elementos

essenciais, o que ficará evidenciado quando passarmos a analisar, mais especificamente

adiante, as alterações e repercussões desse fenômeno na coisa julgada.

Isso porque, o objeto da demanda passa por uma ampliação objetiva, que não

mais se limita apenas ao pedido e ao rígido princípio da congruência. Aliado a isso, temos

que os precedentes invocados para a solução de casos concretos compõem a

fundamentação jurídica da decisão, não o pedido.

Assim, em primeiro lugar temos uma peculiaridade intranormativa, na medida

em que os fundamentos determinantes do precedente, ao compor o caso decidendo, podem

ser úteis e relevantes para justificar um elemento não essencial, existindo, nesse caso, uma

relação complementar entre os fundamentos determinantes do caso e os obter dicta.

Nessa hipótese, trata-se de uma ratio decidendi que, quando invocada e

utilizada para a composição e resolução de um caso concreto, passa a integrar um obter

dicta, ou seja, transforma-se em um elemento não essencial139

.

139

“A razão de decidir, numa primeira perspectiva, é a tese jurídica ou a interpretação da norma

consagrada na decisão. De modo que a razão de decidir certamente não se confunde com a fundamentação,

mas nela se encontra. Ademais, a fundamentação não só pode conter várias teses jurídicas, como também

considera-las de modo diferenciado, sem dar igual atenção a todas. Além disso, a decisão, como é óbvio,

não possui em seu conteúdo apenas teses jurídicas, mas igualmente abordagens periféricas, irrelevante

enquanto vistas como necessárias à decisão do caso. (...) No que diz respeito ao último ponto, se, por

exemplo, a solução da Corte em relação à segunda questão é desnecessária, uma vez que a solução da

primeira foi suficiente para definir o caso, aquela é obter dictum e, portanto, não vincula as Cortes

inferiores. Mas há casos, nos Estados Unidos, em que a Corte considerava-se vinculada pela solução dada à

questão que não é necessária ou suficiente – em princípio um dictum –, que então é considerada uma ratio

alternativa.” (MARINONI, Luiz Guilherme. “Precedentes obrigatórios”, 3ª edição. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2013, p. 220 e 244).

Page 96: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

96

Conforme THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE, “se definirmos a ratio

decidendi como uma norma universalizável que pode ser extraída de um precedente

judicial, percebemos que na maioria dos casos se pode encontrar não apenas uma, mas

diferentes rationes decidendi, que podem ter graus diferentes de vinculatividade em casos

futuros.”140

É por isso que se mostra essencial segregar as causas de pedir (próximas e

remotas), os pedidos (mediatos e imediatos) e os fundamentos do precedente invocado

para, então, identificar as ratio decidendi e delas obter a potencialidade prescritiva, visto

que os obter dicta, ou elementos não essenciais, não possuem vocação normativa

expansiva, senão meramente persuasiva para a utilização em casos futuros.

Foi exatamente em razão da falta de diferenciação entre ratio decidendi e obter

diicta que, por exemplo, o STF julgou constitucional a revogação da isenção de COFINS,

concedida pela LC n.º 70/1991 às sociedades civis prestadoras de serviços legalmente

regulamentados, pelo artigo 56 da Lei n.º 9.430/96. A discussão tratava da possibilidade de

uma lei ordinária revogar uma lei complementar, tendo sido decidido que a LC n.º 70/1991

era formalmente complementar, mas materialmente ordinária (pois cuidava de matéria que

não estava sob reserva de lei complementar), então nada impedia que uma lei ordinária

promovesse a sua revogação.

Sob o fundamento de que a natureza da LC n.º 70/1991 não constava do

dispositivo do julgado na ADI n.º 1/DF, o STF decidiu que não se vinculava ao

entendimento que, naquela oportunidade, considerou sua natureza complementar. Veja-se:

“COFINS - LEI COMPLEMENTAR Nº 70/91 - AÇÃO DECLARATÓRIA

DE CONSTITUCIONALIDADE Nº 1-1/DF - JULGAMENTO -

ALCANCE. No julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade

140

“Teoria do precedente judicial. A justificação e a aplicação de regras jurisprudenciais” São Paulo: Noeses,

2012, p. 257.

Page 97: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

97

nº 1-1/DF, o Colegiado não dirimiu controvérsia sobre a natureza da Lei

Complementar nº 70/91, consubstanciando a abordagem, no voto do

relator, simples entendimento pessoal.” (STF, Rcl 2475 AgR/MG,

Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 02/08/2007 – grifamos).

Ou seja, a insuficiente discussão sobre a ratio decidendi da ADI n.º 1/DF

influenciou decisivamente o resultado da tese sobre a revogação da isenção da COFINS,

pois não se demonstrou, analiticamente, que o entendimento sobre a natureza (material ou

formalmente complementar) da LC n.º 70/1991 seria um mero elemento não essencial para

o julgamento daquele caso específico.

Não obstante, em segundo lugar, ao compor a fundamentação jurídica da

decisão, verifica-se que não existe imutabilidade dos fundamentos determinantes do

precedente no tempo, os quais, apesar de comporem e integrarem a ideia de coisa julgada,

como veremos mais a frente, agregam e ampliam a multiplicidade do objeto dinâmico.

As cadeias de precedentes e de fundamentos determinantes, portanto, vão

atualizando os conceitos gerais e incrementando as mensagens normativas, num empenho

dialógico que, a partir da participação democrática dos atores processuais, passa a absorver

e integrar as complexidades do ser.

Nesse cenário, imprescindível conhecer as ferramentas inerentes ao sistema de

valorização de precedentes, não para reproduzi-las em nosso modelo, mas para colher os

frutos de uma cultura que necessariamente se constrói com o tempo, avaliando sua

pertinência quando da interpretação das inovações trazidas pelo CPC/2015.

Page 98: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

98

1.3. Distinguishing (distinção), overruling (superação), drawing of inconsistent

distinctions (distinção inconsistente), sinaling (sinalização), transformation

(transformação) e overriding (adequação)141

Em primeiro lugar, observamos que qualquer tentativa de tradução dos termos

e institutos do sistema stare decisis é altamente falível, pois não há como os descolar de

suas práticas consuetudinárias, razão pela qual assim o fazemos numa tentativa meramente

assimilatória, não de acordo com um uso técnico que sequer é próprio do nosso direito.

Pois bem, além dos elementos dos precedentes, é da essência do sistema stare

decisis o raciocínio estruturado através da comparação de casos (o caso precedente com o

presente e o futuro, ou pressuposto), mediante técnicas que permitam tal dialogia.

Portanto, as duas principais ferramentas que decorrem do gênero das

denominadas judicial departures, intrínsecas a esse arcabouço de valorização dos

precedentes e baseadas em particular no regime americano, são espelhadas nas figuras da

distinção (distinguishing) e da superação ou revogação (overruling). Dizem-se intrínsecas,

até porque se referem aos deveres de congruência e fundamentação das decisões.

É, aliás, através dessas ferramentas que se contornam os questionamentos de

que a valorização dos precedentes suprimiria os graus inferiores de jurisdição, ofendendo

as cláusulas da independência, livre convicção motivada e duplo grau.

Estamos certos de que é exatamente o contrário, na medida em que a

responsabilidade das instâncias ordinárias será ainda maior, pois a elas competirá atribuir

141

Cumpre-nos desde logo destacar, para evitar tomadas de posições equivocadas, que qualquer tentativa de

exemplificação dos institutos ora analisados, a partir de experiências e julgamentos de nossos tribunais, não

deve ser compreendida de maneira rígida, senão como simples esforço didático, na medida em que existe um

natural desencaixe procedimental entre os precedentes da common law, produzidos de acordo com tais

técnicas e referenciais, e os nossos precedentes, pautados num sistema codificador.

Page 99: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

99

os contornos fáticos e jurídicos da causa, identificando a ratio decidendi, avaliar as

consequências ou repercussões pragmáticas do caso e, motivadamente, distinguir ou

aproximar os precedentes, especialmente quando invocados pelas partes.

Ressalte-se, desde logo, que essa tarefa não é exclusivamente do juiz, pois a

democratização do processo passa a obrigar também as partes nesse empenho dialógico, o

que fica claro a partir do chamado princípio da cooperação (CPC/2015, artigo 6º).

Não basta, portanto, que as partes tragam uma série de ementas ou súmulas de

julgados para justificar ou combater as pretensões deduzidas no caso concreto, sendo

imprescindível a construção das aproximações ou distinções, ou mesmo apontar

superações de entendimentos a partir dos fundamentos determinantes.

Um parêntese se faz necessário, pois a superação (overruling) só pode ser

realizada pelo próprio órgão prolator da decisão. Não pode, desta feita, um tribunal local

alterar os fundamentos de um precedente de observância obrigatória ou mesmo persuasiva,

mas apenas promover sua distinção ou meramente apontar eventual superação.

De toda forma, a superação é ferramenta igualmente indispensável em um

sistema stare decisis, pois permite a constante adaptação evolutiva das complexidades

sociais, da solução dos casos e da estabilidade normativa, porém mediante um pesado ônus

argumentativo que deve levar em consideração os casos precedentes, os casos presentes e

as consequências para casos futuros.

Como ainda não vivenciamos um verdadeiro modelo stare decisis, tomando

conta recentemente dessa nova racionalidade normativa de valorização dos precedentes,

muitas vezes percebemos certa confusão entre os institutos, como distinção e superação, o

que é extremamente relevante em especial pelas consequências de um e de outro.

Page 100: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

100

Na distinção, simplesmente deixa-se de observar um precedente, pois seus

contornos fáticos e jurídicos não de aproximam do caso decidendo, enquanto na superação

frustram-se legítimas expectativas normativas, impondo, eventualmente, regras de

modulação, irretroatividade e observância da boa-fé, com repercussão, em matéria

tributária, na exigência de multas punitivas, juros e demais consectários.

É o que observamos, de algum modo, na atual (re)discussão sobre o

alargamento da base de cálculo do PIS/COFINS pela Lei n.º 9.718/98, onde se decidiu o

conceito de faturamento (a tese), que equivaleria ao conceito contábil de receita bruta

(produto da venda de mercadorias e/ou da prestação de serviços), mas não se atentou para a

análise e evolução dos atos de comércio e das atividades desenvolvidas pelas empresas.

Assim, quando se pretende (re)discutir a questão em relação às instituições

financeiras, seguradoras, corretoras e locadoras de bens imóveis, fica a dúvida se o tribunal

está a distinguir situações não debatidas ou cujos fundamentos não foram contemplados no

precedente (mero distinguishing), ou se estamos diante de verdadeira superação

(overruling)142

, até porque muitas financeiras, seguradoras, corretoras e imobiliárias

tiveram decisões favoráveis transitadas em julgado com base exatamente no entendimento

então pacificado. Daí porque precisamos levar os precedentes a sério, e com eles as

técnicas de fundamentação, comparação, distinção e superação.

Seja como for, a superação ou revogação do precedente não tem, ou não

deveria ter, relação com a coisa julgada, sob pena de impedir a salutar evolução da

142

“(...) ao se admitir uma nova circunstância, ainda que não se volte a tratar da mesma questão já

resolvida pelo Supremo Tribunal Federal, afirma-se que o precedente não mais presta a definir a

interpretação da questão constitucional. Outro órgão do Poder Judiciário, que não o Supremo Tribunal

Federal, estaria a dizer que houve alteração da realidade social, etc., capaz de permitir a revogação do

precedente firmado em ação direta de constitucionalidade. (...) Não calha argumentar que, diante de nova

circunstância, não se revoga o precedente, mas apenas se diz que o precedente não se aplica a uma nova

situação. Ora, se é necessário dizer que o precedente não se aplica, há, para o efeito que aqui interessa,

revogação do precedente.” MARINONI, Luiz Guilherme. “Precedentes obrigatórios”, 3ª edição. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2013, p. 311 (grifos nossos).

Page 101: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

101

jurisprudência. Ou seja, a coisa julgada que reveste a qualidade do precedente, e também

dos casos nele fundamentados, não constitui óbice à realização de overruling:

“(...) o que realmente obriga a tratar a revogação da decisão de

inconstitucionalidade como hipótese de superação de precedente, e não

de desconsideração da coisa julgada, é a circunstância de que, no

controle abstrato de constitucionalidade, a coisa julgada material

proporciona estabilidade à ordem jurídica e previsibilidade aos

jurisdicionados e não segurança jurídica às partes.

Acontece que a estabilidade da ordem jurídica e a previsibilidade não

podem ser obstáculos à mutação da compreensão judicial da ordem

jurídica.”143

De todo modo, tanto a distinção quanto a superação exigem a identificação da

ratio decidendi, pois, como vimos, é o enredo decisório inerente aos elementos essenciais

da decisão que possui normatividade expansiva e vinculante (se o caso).

Ao lado dessas duas ferramentas (distinguishing e overruling), e com o mesmo

objetivo de preservar a estabilidade do sistema juntamente com a evolução jurisprudencial,

o próprio modelo stare decisis, no common law principalmente americano, admite e

convive com formas alternativas de distinções e superações, sempre buscando preservar a

capacidade criativa do juiz diante da multiplicidade de realidades apresentadas no tempo.

Assim, preserva-se o desenvolvimento do direito através da extensão e

limitação dos precedentes, com a ressalva de que o juiz não pode distinguir um caso com

base em fatos materialmente irrelevantes.

Pois bem, olhando para os objetivos e finalidades presentes no precedente, ao

lado dos valores do sistema (previsibilidade e igualdade), admite-se a chamada distinção

inconsistente do precedente (drawing of inconsistent distinctions).

143

Obra citada, p. 299.

Page 102: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

102

Dessa forma, a limitação ou extensão do precedente, analisando-se suas razões

substanciais, acabam configurando a correção ou acomodação da sua ratio decidendi. Mas

veja-se, essa acomodação apenas é possível ao se priorizar as razões do próprio precedente.

Com esse objetivo, e para evitar a revogação do precedente, aceita-se uma

distinção inconsistente, ou seja, embora a razão imediata da distinção seja a não revogação

do precedente, a sua justificativa está nos valores da estabilidade e previsibilidade.

Isso é possível, pois em alguns casos pode ainda não haver consenso ou

aprofundamento em torno da necessidade da revogação do precedente, quando então se

opta por mantê-lo em vigor até que se chegue a um juízo definitivo acerca do overruling.

Então, como não se deseja revogar e nem aplicar o precedente em sua

integralidade, promove-se, no caso em julgamento, uma distinção inconsistente para

considerar e preservar as particularidades do caso em face da potencialidade do precedente,

existindo, com isso, um desencaixe inconsistente e consciente na comparação dos casos

com o fim de não aplicar a ratio decidendi do precedente no caso concreto.

Juntamente com a distinção inconsistente, outra técnica que se situa entre a

distinção e a superação é a chamada sinalização (sinaling), hipótese em que não se ignora

que o conteúdo do precedente está equivocado ou não deve mais subsistir, mas, em virtude

da segurança jurídica, deixa de revogá-lo, apenas apontando para a sua perda de

consistência e sinalizando para sua futura revogação144

.

Ou seja, sabe-se que não é possível realizar o distinguishing no caso concreto,

ao mesmo tempo em que a revogação do precedente se mostraria danosa à segurança

jurídica, de modo que, nessa hipótese, o tribunal segue o precedente, tutelando a justificada

144

É o que de certa forma aconteceu com a já mencionada PSV 22/DF, de 15/04/09, que de algum modo

sinalizou pela superação do conceito limitado de faturamento, para então compreender a “soma das receitas

oriundas do exercício das atividades empresariais.”

Page 103: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

103

confiança nele (precedente) depositada, mas aponta para a sua futura revogação, não

colhendo os litigantes de surpresa.

Podemos dizer, então, que a distinção inconsistente e a sinalização são técnicas

utilizadas para contornar ou reafirmar a ratio decidendi de um precedente, deixando de

aplica-lo ou aplicando-o mesmo nas hipóteses de dessemelhança.

Outra situação, porém, é a chamada transformação (transformation), situação

em que o tribunal também não realiza a superação, nem a distinção do caso sob julgamento

para deixar de aplicar o precedente, mas sim a transformação ou reconfiguração do

precedente, de sua ratio decidendi, porém sem revogá-lo.

Enquanto no overruling o tribunal expressamente anuncia a superação e

revogação do precedente, na transformação de algum modo nega-se o conteúdo do

precedente, mas deixa-se de expressar isso formalmente145

. Por isso, costuma-se

diferenciar a transformação da superação mais a partir de critérios formais:

“O resultado obtido na decisão que fez o everruling não é compatível

com o resultado do precedente revogado. Na transformation, porém,

tenta-se muitas vezes compatibilizar o resultado do precedente

transformado com o resultado alcançado no caso sob julgamento. Isso

poderia ser visto como distinção substancial entre overruling e

transformation. Acontece que esta compatibilidade é frequentemente

artificial. A compatibilidade entre os resultados obtidos no caso

transformado e no caso em que se fez a transformation é obtida somente

quando se realiza a individualização de pontos do precedente que a

antiga Corte não considerou fundamentais ou materiais.”146

145

Essa parece ser a hipótese do recente ARE 925.754, com repercussão geral reconhecida no STF e cujo

acórdão ainda não se encontra publicado. De acordo com as notícias da Corte: “O relator do ARE 925754,

ministro Teori Zavascki, observou que embora o caso dos autos, uma ação coletiva ajuizada por sindicato,

não seja idêntico ao julgado no RE 568645, que tratava de litisconsórcio facultativo, fundamentos que

embasam as duas hipóteses são semelhantes. O ministro destacou que, ao decidir no precedente, a ministra

Cármem Lúcia assentou que, no relacionamento com a parte contrária, os litisconsortes se consideram como

litigantes autônomos, dessa forma, a execução promovida deve considerar cada litigante autonomamente,

sem importar em fracionamento, pois cada um receberá o que lhe é devido segundo a sentença proferida.”

Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=306998, 30/12/2015. 146

MARINONI, Luiz Guilherme. “Precedentes obrigatórios”, 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2013, p. 343.

Page 104: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

104

A vantagem da transformation em detrimento do overruling está no fato de que

a primeira não importa admitir o erro de julgamento, mas apenas que a tese então

sustentada estava equivocada ou era insuficiente, podendo ou não alterar o resultado do

precedente, enquanto o segundo, necessariamente, altera o resultado do precedente.

Então, com a transformation não se perturba o precedente, mantendo-se a

segurança de sua estabilidade, carregando consigo, porém, as dificuldades de compreensão

e aplicação no julgamento dos casos futuros.

Novamente citando MARINONI, temos que:

“É preciso perceber, porém, que a transformation apenas se sustenta

enquanto a Corte ainda supõe que é necessária maior discussão a

respeito do tema jurídico. Se a questão está madura para ser definida,

achando-se a Corte em condições de definir a nova regra e revogar o

precedente, impõe-se o overruling.

(...)

Deixe-se claro que o overruling é ideal quando se tem motivo para

abandonar entendimento antes fixado. As razões que justificaram a

transformation em épocas passadas, como a tutela da estabilidade do

sistema de precedentes e a preservação da confiança nos julgamentos,

não têm motivo para prevalecer quando se tem a clareza de que o

overruling é necessário para preservar a confiança no sistema.”147

Por fim, tem-se a técnica do overriding, que não se confunde com o overruling,

não tendo relação, também, com a sinalização e com a transformação, pois com o seu uso

não se revoga o precedente, não se anuncia sua futura revogação e nem se faz a sua

reconstrução, mas apenas se limita ou restringe a potencialidade do precedente.

Aproxima-se, assim, de uma interpretação restritiva da ratio decidendi do

precedente, pois mediante o overriding se faz uma distinção parcial para deixar de aplicar

integralmente, ou em sua totalidade, o precedente.

147

Obra citada, p. 345.

Page 105: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

105

Os efeitos do overriding são parecidos com a drawing of inconsistente

distinctions (ambos resultam na não aplicação do precedente), porém diferenciam-se na

medida em que no primeiro a distinção é consistente, no segundo inconsistente. Assim, o

overriding se baseia na necessidade de compatibilização do precedente com um

entendimento posteriormente formado, adequando-se os casos.

Note-se, portanto, que todas essas ferramentas e técnicas utilizadas no stare

decisis do regime common law, em especial americano, são fruto de uma cultura

aperfeiçoada com o tempo, e sua formulação teórica foi surgindo a partir da análise da

prática jurisprudencial de casos concretos.

Sem dúvida, muitas dessas técnicas já são plenamente identificadas, hoje, em

nossa cultura jurídica, sobretudo com a racionalização do contencioso e valorização dos

precedentes, daí porque tais contribuições teóricas, se bem compreendidas, certamente

serão muito úteis em nosso sistema jurídico.

Até porque, como visto, trata-se de desdobramentos decorrentes do overruling

e do distinguishing, hoje expressamente contemplados em nosso CPC/2015, ao lado da

preocupação com o princípio da isonomia e a manutenção da estabilidade decisória.

Capítulo 5. Semiose processual

Quando falamos em semiose processual, estamos nos referindo à ação que

relaciona a produção de decisões compositivas dos conflitos submetidos à apreciação

jurisdicional, desencadeando os chamados interpretantes, responsáveis pela construção das

significações normativas e geração de novos interpretantes, num processo inesgotável.

Page 106: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

106

Trata-se, portanto, das cadeias normativas de interpretantes produzidas no

curso do processo, num diálogo intermediado pelos signos linguísticos, assim

compreendidos enquanto veículos que exercem a função de transportar e integrar as

representações dos diversos textos presentes no ambiente processual.

Portanto, em uma semiose processual relaciona-se objeto imediato e objeto

dinâmico, cujas cadeias de decisões vão gerando novos interpretantes e, por sua vez, novos

objetos dinâmicos e novos objetos imediatos. Ou seja, o objeto dinâmico de uma sentença

é diferente do objeto dinâmico de um acórdão de um tribunal local, que é diferente do

objeto dinâmico de um acórdão do Supremo Tribunal Federal, e assim por diante.

De acordo com a metáfora de DWORKIN, citada por BUSTAMANTE, a

atividade do juiz é comparada à do autor de um romance em cadeia, onde:

“(...) cada autor de um capítulo recebe os manuscritos escritos por uma

outra pessoa, mas segundo um amálgama de princípios coerentes que

garantem a ‘integridade’ do texto, e, após adicionar sua contribuição,

deixa sempre o final em aberto, ou seja, deixa para o autor do próximo

capítulo um certo espaço para que adicione sua contribuição.”148

Seja como for, em qualquer etapa desse romance em cadeia, a relação de um

signo com seu interpretante jamais esgota a linguagem-objeto, esta entendida como os

textos (em sentido amplo) condicionantes dos casos concretos.

Quando falamos de precedentes, portanto, devemos considerar as cadeias

decisórias que partem de um dado caso, nunca plenamente exaurido, a partir do qual se tem

a formação paulatina da ratio decidendi. Nos dizeres de MARINONI149

:

“No item anterior mostrou-se a importância e a necessidade da

interpretação da ratio decidendi e que os julgados posteriores podem

servir como instrumentos para o seu esclarecimento. Algo diferente

148

BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. “Teoria do precedente judicial. A justificação e a aplicação de

regras jurisprudenciais.” São Paulo: Noeses, 2012, p. 269. 149

MARINONI, Luiz Guilherme. “Precedentes obrigatórios”, 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2013, p. 247.

Page 107: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

107

ocorre quando, em razão do enfrentamento de outra questão, um

julgamento ou julgamentos posteriores agregam conteúdo a ratio

decidendi, dando-lhe outra conformação. Neste caso não há

interpretação da antiga ratio, mas formação paulatina da ratio, que vai

ganhando corpo à medida que os julgamentos vão sendo proferidos.

A dessemelhança pode ser mais bem compreendida a partir da distinção

entre o ato do fotógrafo e a atividade do pintor. Embora o fotógrafo

possa retratar e dar significado peculiar à paisagem, atribuindo-lhe

interpretação, é certo que a fotografia congela a interpretação do

passado, enquanto que o pintor vai, com o passar dos dias, dando forma

e significado a sua pintura, que, no início do seu trabalho, muitas vezes

nem mesmo ele sabe que resultado ou significado terá.”

Uma Súmula do STF, por exemplo, representa a síntese de um entendimento

formado em diversos acórdãos do próprio tribunal, que por sua vez originam-se de outros

tantos acórdãos dos tribunais locais, que por sua vez decorrem de um sem número de

sentenças que, também por sua vez, dizem respeito a uma multiplicidade de casos quando

muito similares, ou verosímeis, jamais idênticos e nunca plenamente esgotados.

O mesmo fenômeno ocorre com os precedentes, que quando convocados para a

solução de um caso concreto carregam consigo, de forma indissociável, essa cadeia de

semioses que devem, necessariamente, acompanhar o processo de adequação,

impropriamente chamado de subsunção.

Desse modo, é preciso estar presente a ideia de semiose processual ao lidarmos

com o sistema stare decisis, com os precedentes, os quais, por mais longa tenha sido sua

cadeia decisória, não podem se distanciar das particularidades dos casos, pois geram

expectativas normativas que se projetam para o futuro.

Nessa ordem de ideias, tem-se que o precedente é produto de uma enunciação

coletiva, na medida em que diversos atores processuais interagem em sua formação. E,

diante da normatividade da enunciação (como já vimos nos Capítulos 3 e 4), compondo e

condicionando o contexto interpretativo, o CPC/2015 incorpora diretrizes muito claras com

Page 108: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

108

o fim de promover e programar a necessária legitimação processual democrática que, com

a valorização dos precedentes, passa a ser imprescindível.

1. Segurança jurídica através da legitimação processual democrática

Se por um lado o modelo stare decisis passa a inverter a construção do direito,

conferindo segurança jurídica em concreto, não podemos caminhar, por outro lado, num

modelo de processo angular, onde as partes não interagem entre si, senão pela mediação de

um terceiro imparcial que concentra, na figura do juiz, a centralidade da jurisdição.

A partir de então, e isso fica expresso no CPC/2015 ao incorporar

expressamente o princípio da cooperação150

, com a fixação de eixos temáticos muito

claros, como o diálogo entre as partes, o tratamento processual paritário, a valorização do

contraditório e a não surpresa151

, o processo delimita formalmente o espaço e o limite de

construção do discurso normativo, pois materialmente estamos inseridos, reiteramos, nos

textos em sentido amplo, na indeterminação que recobre o contexto jurídico.

O necessário diálogo e integração entre ser e dever-ser não se dá, portanto, no

fundamento do sistema jurídico, mas na aplicação das normas no ambiente processual, no

150

“Art. 6o Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável,

decisão de mérito justa e efetiva.” 151

“Art. 7o É assegurada às partes paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades

processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, competindo

ao juiz zelar pelo efetivo contraditório.”

“Art. 8o Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum,

resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a

razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência.”

“Art. 9o Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida. (...)”

“Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual

não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva

decidir de ofício.”

Page 109: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

109

momento da interpretação (concretizadora), como vimos em especial no Capítulo 3. Na

linha de HABERMAS, temos então que:

“A moralidade que não só defronta o direito, mas que, também, se

estabelece, por si só, no direito positivo, é, certamente, de natureza

puramente processual; ela libertou-se de todos os conteúdos

determinados de normas e sublimou-se num procedimento de

fundamentação e aplicação, de possíveis conteúdos de normas. Deste

modo, um direito processual e uma moral processual conseguem

controlar-se mutuamente.”152

É esse o percurso das teorias discursivas ou argumentativas em geral, as quais

analisam a relação entre direito e moral dentro de uma crítica ao pensamento positivista

que separa ser e dever-ser. Assim, na linha de ALEXY, os princípios e os argumentos

morais seriam abarcados pelo direito, o direito positivo seria limitado pela moral e esta

seria o fundamento de obediência ao direito, não se tratando, pois, de um retorno ao ideal

universalista do jusnaturalismo.

De acordo com BUSTAMANTE153

:

“Conjugando os elementos recolhidos das teorias jurídicas resumidas

acima, podemos, ainda que provisoriamente, concluir que o Direito é

uma ordem normativa institucionalizada (MacCormick) que se constitui

sob a forma de uma prática social (Hart) de natureza construtivista

(Rawls, Habermas, Dworkin, Alexy), interpretativa, argumentativa

(Dworkin) e não manifestamente injusta (Radbruch, Alexy,

MacCormick), pressupondo-se uma teoria procedimental da justiça

(Habermas) capaz de tornar definitivamente sedimentado o

conhecimento moral necessário para satisfazer as exigências

epistemológicas da ideia de ‘extrema injustiça.’”

Falamos, então, em legitimação processual democrática como pressuposto

indispensável desse diálogo intertextual, onde então o objeto dinâmico do direito ganharia

extensão pela construção coletiva de suas múltiplas representações. É pela legitimação

152

“Direito e moral.” Lisboa: Instituto Piaget, 1986, p. 57. 153

“Teoria do precedente judicial. A justificação e a aplicação de regras jurisprudenciais.” São Paulo:

Noeses, 2012, p. 165.

Page 110: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

110

processual democrática que deixamos de ter respostas já dadas subsuntivamente, para

então termos respostas construídas a partir dos problemas de convivência humana.

As repercussões das decisões para além dos limites subjetivos da causa, por

outro lado, imprimem e reforçam a exigência do caráter participativo no ambiente

processual, conformando uma segurança jurídica democrática e legitimamente construída.

É novamente o próprio CPC/2015 que, ampliando o instituto do amicus curiae,

das audiências públicas, da participação de terceiros nas propostas de súmulas vinculantes,

dentre outros, confirma essa preocupação pragmática das decisões e reafirma sua

legitimação a partir da participação democrática no processo, onde então a interpretação

dos textos normativos passa a ser coletiva e, de acordo com HABERMAS, todo aquele que

puder contribuir para o discurso não deve ser excluído.

Não se pode admitir, então, uma legitimidade processual democrática apenas

formal, a qual deve ser materialmente produtiva e eficaz. Conforme já nos ensinava

PAULO DE BARROS CARVALHO154:

“Implementa-se a investigação da linguagem pela verificação do plano

pragmático. E aqui radicam muitos dos problemas atinentes à eficácia, à

vigência e à aplicação das normas jurídicas, incluindo-se o próprio fato

da interpretação, com seu forte ângulo pragmático. A aplicação do

direito é promovida por alguém que pertence ao contexto social por ele

regulado e emprega os signos jurídicos em conformidade com pautas

axiológicas comuns à sociedade.”

As pautas axiológicas comuns à sociedade e que conformam a formação do

precedente, portanto, são compartilhadas e construídas pela legitimação processual

democrática. Assim se concebe, pois, a transição de uma segurança jurídica abstrata para

um modelo pautado na segurança jurídica enquanto fim. Voltaremos e insistiremos no

assunto mais à frente, no Capítulo 6.

154

“Direito Tributário, linguagem e método”, 4ª edição. São Paulo: Noeses, 2011, p. 203.

Page 111: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

111

2. Forma versus conteúdo

O debate entre forma e conteúdo costuma ser empregado para os mais diversos

fins, como o fizemos, por exemplo, quando da análise dos conceitos de decisão,

jurisprudência e precedente, onde vimos que a forma não determina e não condiciona o

conteúdo de um precedente, o qual é reconhecido como tal a partir de sua multiplicidade e

potencialidade conformativa, quando convocado no caso concreto.

O veículo introdutor de um precedente, sua forma, produz uma norma concreta

e geral, ao mesmo tempo em que determina a extensão subjetiva e vinculativa de seus

enunciados, ou seja, do ponto de vista formal, é através do veículo introdutor que

identificamos os precedentes chamados vinculativos.

Mas, em contrapartida, é o conteúdo da forma que determina a normatividade

do precedente, que se projeta para o futuro independentemente da sua forma. Desse modo,

é a abrangência, profundidade e coerência da fundamentação do precedente que condiciona

a sua normatividade, delimitando, conforme lições de BUSTAMANTE, os chamados

fatores extrainstitucionais que determinam a força de um precedente:

“(A) Caracteres das normas jurisprudenciais – (A.1) O grau de

generalidade das normas jurisprudenciais e a força do precedente: já

advertimos que as normas empregadas na justificação de uma decisão

judicial podem variar em níveis de generalidade. Normalmente é

possível justificar essas normas gerais através das razões aduzidas pelos

juízes como base para suas decisões. (...) Quanto mais geral for uma

norma enunciada na fundamentação de uma decisão, mais ela poderá

ser útil para a solução de outros casos, e maiores serão sua fecundidade

e seu potencial argumentativo para estabelecer novos parâmetros

normativos para desenvolver o Direito e ordenar de forma coerente as

regras mais específicas de um sistema normativo; mas, por outro lado,

menos ‘in puncto’ ela será nos casos ulteriores, e por isso menor será

sua autoridade. ‘Cetaris paribus’, quanto mais abstrata é a regra

Page 112: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

112

derivada do caso A, maior o número de casos que ela cobre, mas menor

é seu grau de vinculatividade, pois mais provável se torna o surgimento

de uma circunstância não inicialmente considerada que justifique a

formulação de uma regra excepcional. De outro lado, quanto mais

concreta seja a regra derivada de um caso A, menor o número de casos

que ela poderá cobrir, mas mais elevada será sua vinculatividade para

se decidir um caso B.”155

Portanto, é a partir da fundamentação do precedente que se desenvolve o

modelo stare decisis, que não é e nem poderia ser limitado formalmente por um rol

taxativo de veículos introdutores de manifestações jurisdicionais.

Por outro lado, o debate entre forma e conteúdo também remonta à

potencialidade normativa do precedente, compreendida e integrada pelos fatos, pelos

motivos e fundamentos determinantes, bem como pelo contexto interpretativo.

O que queremos evidenciar, com isso, é que no sistema stare decisis os fatos

não representam um mero elemento formal da decisão e do precedente, como estamos

acostumados a observar. Vale dizer, os fatos não constituem capítulo acessório do

dispositivo, senão o condicionam materialmente.

Novamente citando THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE156

:

“Enquanto o juiz do common law compararia os fatos considerados

‘materiais’ no caso tomado como precedente e no caso ainda pendente

de resolução, o jurista continental procuraria no precedente apenas um

‘pronunciamento em forma de regra [rule-like pronouncemente] com

alto grau de autoridade’: ‘Aquilo que a doutrina convencional de

common law iria desvalorizar, tratando de mero dictum, é bem recebido

precisamente porque tem sustentação independente da concreta

constelação dos fatos do caso’ [Damaska 1986:34].

De modo semelhante, Gorla relata uma tendência nos ordenamentos

jurídicos continentais – e especialmente no italiano, onde os precedentes

judiciais são registrados e divulgados de forma seletiva pela própria

Corte de Cassação, por meio de um órgão (Ufficio Massimario)

encarregado de elaborar as máximas que podem ser extraídas de cada

caso concreto [Gorla 1981-f:310] – de se adotar diferentes técnicas

155

BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. “Teoria do precedente judicial. A justificação e a aplicação de

regras jurisprudenciais.” São Paulo: Noeses, 2012, p. 338 e 340. 156

Obra citada, p. 107/108.

Page 113: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

113

interpretativas quando se busca extrair a ratio decidendi de uma decisão

judicial. (...)

Vê-se, portanto, que nas duas abordagens – a de Gorla e a de Damaska

– a distinção entre a forma de se interpretar as decisões judiciais no

common law e no civil law, para delas extrair seu elemento vinculante

(ratio decidendi), diz respeito à maior atenção que se dá aos fatos do

caso sub judice ou às regras universais que aparecem na justificação das

decisões tomadas como paradigma.”

Desse modo, amarramos o debate em torno da normatividade do precedente e

da tributação, acomodando os discursos da segurança jurídica em concreto através dos

fatos, da fundamentação e da motivação decisória, independentemente da constituição

formal de um veículo introdutor de regras vinculantes. Os precedentes vinculam sua

normatividade a partir da complexidade conformativa de sua ratio decidendi.

Page 114: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

114

PARTE III

FUNÇÃO NORMATIVA DO PRECEDENTE, COISA JULGADA E RESCISÓRIA TRIBUTÁRIA

Capítulo 6. Valorização dos precedentes no sistema brasileiro: implicações

É a experiência jurídico-tributária, corporificada na prática jurisprudencial, já

vimos, que retrata os antecedentes normativos concretos, movimenta e atualiza as

estruturas do Direito tributário, permitindo sua evolução e constante atualização.

Em outras palavras, de acordo com a pauta teórica em que nos inserimos, a

normatividade não é simples isolamento temático do dever-ser, nem uma redução do

dever-ser ao ser, de modo que “o positivismo extremado e o antipositivismo extremado

encontram-se num dualismo abstrato, como cujo ponto nevrálgico se evidencia também

aqui no tratamento da norma jurídica.”157

Dentro de nosso eixo de pesquisa, compreendida a estrutura filosófica, os

sentidos dogmáticos comuns e as ferramentas de análise empregadas no regime common

law e no sistema stare decisis, cumpre-nos analisar, agora, o confronto entre estabilização

da coisa julgada, racionalização da jurisprudência e desestabilização das relações

tributárias continuativas no CPC/2015, acomodando o estudo sob o princípio informador

de todo o sistema: a segurança jurídica.

Numa grande síntese, o desafio que se apresenta é conciliar a tradicional

imutabilidade da coisa julgada (hoje de alguma forma pautada num positivismo

157

MULLER, Friedrich. “O novo paradigma do Direito, introdução à teoria e metódica estruturantes”, 3ª

edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 48.

Page 115: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

115

extremado), com a mutabilidade das relações sociais, das atividades econômicas e

financeiras que determinam os contornos das imposições tributárias (o que se poderia dizer

próximo de um antipositivismo extremado).

Para conduzir nosso empenho, elegemos dois temas entrelaçados,

eminentemente práticos e atuais dentro do que se pode chamar de função normativa do

precedente: (i) a projeção da coisa julgada nas relações jurídico-tributárias continuativas; e

(ii) a relativização da chamada coisa julgada inconstitucional.

Com esse objetivo, iniciaremos nossas análises a partir de questões

preliminares cujo campo gravitacional atrai previamente nossas atenções.

1. Normatividade jurídica e decisões normativas: os juízes criam direito?

Desde logo, em complemento ao Capítulo 4, item 1, reformulando a pergunta

que contrapõe diferentes correntes teórico-filosóficas, devemos questionar, na verdade, em

que sentido e medida os juízes criam direito, sob pena de nos inserirmos num dilema

circular meramente semântico, envolvidos numa falsa pureza ideológica158

.

158

Conforme Thomas Bustamante, citando Victoria Iturralde Sesma, existem “cinco sentidos em que a

locução ‘os juízes criam Direito’ pode ser encontrada. São eles: (1) criação em sentido estrito formal –

quando se considera uma decisão judicial como uma ‘ordem’, ‘cada decisão é um ato normativo, tal como

uma norma lei’; (2) criação em sentido material no caso concreto por meio da especificação de regras

jurídicas preexistentes – nesse sentido, parte-se da premissa kelsiana de que ‘o processo de produção do

Direito é ao mesmo tempo aplicativo e criativo.’ O juiz, ao aplicar regras gerais, cria normas mais

concretas; (3) criação em sentido material de uma regra particular no caso concreto devido à não-existência

de regras preestabelecidas – nesse sentido, o juiz reconhece uma lacuna jurídica e cria uma nova regra por

analogia para o fim de solucionar o caso concreto; (4) criação em sentido material de regras gerais – aqui,

o juiz cria regras gerais que têm um valor de precedente para casos futuros, tendo em vista uma exigência

normativa do próprio sistema jurídico (como acontece, por exemplo, em decisões interpretativas de uma

corte constitucional); e (5) expulsão de regras jurídicas do sistema jurídico – como acontece em decisões em

que o Judiciário atua como ‘legislador negativo’ e declara a invalidade – v.g., por inconstitucionalidade –

de uma regra jurídica qualquer.” BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. “Teoria do precedente judicial. A

justificação e a aplicação de regras jurisprudenciais.” São Paulo: Noeses, 2012, p. 266/267.

Page 116: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

116

Quando falamos em normatividade, não queremos propor discussões que

delimitem e definam, metafisicamente, o que é o direito, até porque, num sentido

antropogênico159

, é pela violação que muitas vezes uma norma é explicitada. Também não

pretendemos propor uma teoria da norma a par das já existentes.

Seja como for, partindo do normativismo positivista, direito é o conjunto de

normas jurídicas válidas, orientadas hierarquicamente sob um vetor comum que lhes

confere unidade, esta é a tradicional definição de um sistema puramente formal. Abre-se

aqui um parêntese, objeto de diversas disputas dogmáticas, pois sabemos que norma não se

confunde com texto, de modo que a validade (enquanto critério de pertencialidade), deve

ser compreendida a partir do texto e seus dêiticos normativos, razão pela qual não podemos

falar em validade da norma sem validade do texto160

.

De todo modo, ainda dentro desse referencial, observamos que na compostura

da norma jurídica encontramos a normatividade, que só pode ser compreendida em um

sistema que opere sob as mesmas estruturas, vale dizer, dentro de um sistema

operacionalmente fechado, só existindo força normativa a partir do fechamento estrutural

do conjunto de elementos (fechamento do ponto de vista operacional, não cognitivo).

159

Termo muito utilizado para se referir às alterações no meio ambiente derivadas das atividades humanas. 160

Não há como falarmos em norma jurídica destituída de seu plano literal de expressão, ou seja, a norma

jurídica aparece para o direito como instância lógica no momento de sua aplicação, tratando-se, portanto, da

enunciação prescritiva composta de sentido mínimo para a regulação de condutas, sendo passível ainda, de

novas semioses. A validade diz respeito tanto à norma jurídica (em sentido estrito), como ao enunciado

prescritivo, seu plano de expressão: no primeiro caso, analisa-se o conteúdo (validade material identificada

no enunciado-enunciado); no segundo caso, analisa-se a forma (validade formal identificada na enunciação-

enunciada), de modo que a invalidade da forma igualmente acarreta a invalidade do conteúdo (de modo que

não existe conteúdo válido sem forma válida). Conforme Eurico Marcos Diniz De Santi, citado por Aurora

Tomazini de Carvalho: “a validade como relação de pertencialidade pode ser aferida em todos os planos de

manifestação do direito positivo. Assim, podemos falar em: (i) validade dos enunciados (S1); (ii) validade

das proposições ainda não estruturadas (S2); (iii) validade das significações estruturadas (... S3); e (iv)

validade do sistema como um todo (S4). (...) a validade do plano do texto é condição necessária da validade

do conteúdo: atacando-se o texto, desqualifica-se a validade não só do documento, como de todo o seu

conteúdo.” “Curso de Teoria Geral do Direito”. São Paulo: Noeses, 2010, p. 705/706.

Page 117: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

117

Operar de forma estruturalmente fechada não significa isolamento sistêmico,

até porque, como já dizia PONTES DE MIRANDA, em sua teoria sociológica, o sistema

jurídico compõe um dos processos de adaptação social.

Não há dúvidas de que o sistema jurídico é composto por normas formal e

hierarquicamente orientadas sob um vetor comum que lhes confere uniformidade

estrutural: é norma jurídica aquela estrutura incorporada pelo sistema do direito positivo.

Não obstante, diante da abertura cognoscitiva própria da norma jurídica, sua

força normativa há que ser compreendida e delimitada a partir de elementos que integram

um conjunto comunicacional mais amplo, internalizado que é pelo próprio direito.

Portanto, apesar de inseparável, norma não se confunde com normatividade: o

direito encampa a norma jurídica e sua normatividade. Os eventos e os fatos sociais não

são normas jurídicas, mas determinam a sua normatividade. A mesma coisa ocorre com os

fatos econômicos, financeiros, contábeis, e assim por diante.

As classificações das diversas ciências do Direito, aliás, só existem em razão

das suas peculiares normatividades, pois estruturalmente não se diferenciam em nada. Ou

seja, só podemos falar em Direito civil, Direito penal, Direito tributário, e assim por diante,

não em razão de alguma diferença estrutural (meramente formal) das normas jurídicas que

se ocupam, senão em virtude da normatividade que lhes imprime as específicas e

peculiares relações materiais de que tratam e regulam.

Portanto, antes de tudo são os antecedentes normativos que, conjugados com os

efeitos prescritivos da norma, determinam de qual ramo do Direito estamos a tratar.

O Direito civil se diz civil porque se ocupa das relações materiais ou

processuais relacionadas à posse, propriedade, responsabilidade, indenização, contratos

entre particulares, matrimônio, sucessão, etc.

Page 118: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

118

O Direito penal se diz penal porque se ocupa das relações materiais ou

processuais atreladas aos comportamentos ética e moralmente relevantes do ponto de vista

das liberdades individuais, do patrimônio, da honra, etc.

Já o Direito tributário é tributário, pois diz respeito às relações materiais ou

processuais de índole econômica e financeira que repercutem nas fontes primárias de

financiamento estatal. E assim se sucede com todos os demais ramos do direito.

A autonomia do direito, desta feita, não está em negar a influência dos outros

sistemas de comunicação na sua composição normativa, numa proposta isolante entre ser e

dever-ser, como se houvesse dissociação entre norma e normatividade.

Especificamente no Direito tributário, as relações econômicas e financeiras não

são jurídicas, não são normas jurídicas, mas são normativas, possuem normatividade

jurídica, pois integram os antecedentes das normas jurídico-tributárias. Alterando-se a

realidade econômica ou financeira que integra a normatividade, altera-se a norma.

Aliás, é o próprio Código Tributário Nacional que, em seu artigo 100, inciso II,

ao dispor sobre as normas complementares em matéria tributária, admite a normatividade

das “decisões dos órgãos singulares ou coletivos de jurisdição administrativa, a que a lei

atribua eficácia normativa.” Portanto, a prática administrativa acaba delimitando as

expectativas normativas, sendo que sua observância, nos termos do parágrafo único do

mesmo artigo, “exclui a imposição de penalidades, a cobrança de juros de mora e a

atualização do valor monetário da base de cálculo do tributo”, enunciados esses que

encontravam respaldo desde a Lei n.º 4.502/64, artigo 76, em vigor até a presente data:

“Art. 76. Não serão aplicadas penalidades: (...)

II - enquanto prevalecer o entendimento - aos que tiverem agido ou pago

o impôsto:

Page 119: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

119

a) de acôrdo com interpretação fiscal constante de decisão irrecorrível

de última instância administrativa, proferida em processo fiscal,

inclusive de consulta, seja ou não parte o interessado;

b) de acôrdo com interpretação fiscal constante de decisão de primeira

instância, proferida em processo fiscal, inclusive de consulta, em que o

interessado fôr parte;

c) de acôrdo com interpretação fiscal constante de circulares instruções,

portarias, ordens de serviço e outros atos interpretativos baixados pelas

autoridades fazendárias competentes.”

As soluções dos casos concretos, desse modo, igualmente possuem sua

normatividade, sobretudo quando adquirem expansão subjetiva, transformando-se, pois,

em decisões normativas, ou seja, atos de aplicação do direito que projetam efeitos na

regulação das condutas futuras, orientando as relações materiais e processuais. A decisão

normativa configura e conforma, a um só tempo, a norma jurídica e a sua normatividade.

É através da decisão normativa que se abre o diálogo entre os diferentes

sistemas de comunicação, confirmando-se o fechamento operativo do direito e a sua

abertura cognoscitiva, por meio dos casos concretos.

De acordo com MULLER e sua já mencionada Teoria Estruturante, podemos

dizer que a normatividade jurídica seria o efeito produzido pelo conjunto formado do

programa da norma e do âmbito da norma:

“Toda norma afeta a certos fatos do mundo social, os pressupõe, deve

confirma-los ou modifica-los. Do conjunto de fatos afetados por um

preceito, da parcela da realidade que haja de regular, isto é, do âmbito

material, extrai o preceito legal ou ‘programa normativo’, que há de ser

interpretado sobretudo mediante recursos tradicionais, o âmbito

normativo na qualidade de parte integrante do preceito. O âmbito

normativo não é, por conseguinte, um conglomerado de fatos materiais,

senão uma conexão, expressa como realmente possível, de elementos

estruturais extraídos da realidade social desde a perspectiva seletiva e

valorativa do programa normativo, e que habitualmente se encontram

pré-formados juridicamente. Com a distinção entre âmbito material e

âmbito normativo, fica descartada a ‘força normativa do fático’ como

usurpação da eficácia normativa por parte de meros fatos. (...).

Normatividade não significa aqui nenhuma força normativa do fático,

tampouco a vigência de um texto jurídico ou de uma ordem jurídica. Ela

pressupõe a concepção – a ser explicada mais tarde – da norma como

Page 120: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

120

um modelo ordenador materialmente caracterizado e estruturado.

‘Normatividade’ designa a qualidade dinâmica de uma norma, assim

compreendida, tanto de ordenar à realidade que lhe subjaz –

normatividade concreta – quanto de ser condicionada e estruturada por

essa realidade – normatividade materialmente determinada.””161

Por tais razões, apesar das discussões que envolvem o tema, é essencial o

compromisso de vinculação das decisões aos textos jurídicos em sentido amplo, aqui se

incluindo a própria jurisprudência numa concepção lata. É precisamente assim, estamos

convencidos, que se permite a evolução do direito, preservando-se a segurança jurídica

sem incorrer em idealismo, politicismo, ou na “ditadura das togas”162

.

A força normativa das decisões, contudo, gera o antigo debate em torno da

criatividade do direito (os juízes criam direito?), discussão essa que regride às questões

fundamentais que abordam o conceito de direito e o problema da norma jurídica, desde

KELSEN e sua concepção de sistema como conjunto de ordens coercitivas163

, até HART e

suas reflexões sobre a norma secundária, dividida em norma de reconhecimento, norma de

modificação e norma de julgamento164

, e ainda MULLER e sua teoria estruturante pós-

positivista da norma jurídica. Sintética e resumidamente, o que se questiona é: “o direito

vem objetivamente da lei ou vem do que os juízes decidem que a lei quer dizer?”165

A discussão, aqui, vai um pouco mais além daquela relação complementar das

fontes normativas apontada no Capítulo 3, item 1, colocando em jogo a tradicional

concepção de que os juízes apenas aplicam a lei e questionando-se o caráter inovador,

construtor ou descobridor da norma jurídica.

161

“O novo paradigma do Direito, introdução à teoria e metódica estruturantes”, 3ª edição. São Paulo:

Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 27 e 35/36. 162

Expressão utilizada pelo Ministro Eros Grau quando do julgamento do HC n.º 95.009. 163

“Teoria Pura do Direito.” São Paulo: Martins Fontes, 2014, trad. João Baptista Machado. Nesse sentido,

remetemo-nos ao seu Capítulo V (Dinâmica Jurídica), em especial ao item 2, ‘g’ (criação das normas

jurídicas gerais pelos tribunais: o juiz como legislador; flexibilidade do Direito e segurança jurídica). 164

“O conceito de Direito.” São Paulo: Martins Fontes, 2012, tradução de Antônio de Oliveira Sette-Câmara.

Em especial, vide Capítulos V (O direito como união de normas primárias e secundárias) e VI (Os

fundamentos de um sistema jurídico), bem como seu Pós-escrito.

Page 121: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

121

A sentença é um ato de aplicação mecânica da lei ou, antes, é um ato criador do

direito? Essa questão nos remete à outra anterior: há uma cisão dos momentos de criação e

aplicação do direito, ou todo ato de aplicação implica uma criação? De certo modo já

analisamos essa questão quando abordamos a discussão da incidência, mas voltemos ao

tema, agora sob outras luzes.

Para tanto, encontramos os relevantes estudos de RICCARDO GUASTINI

relativamente ao direito jurisprudencial e a margem de criatividade dos juízes166

, para

quem a expressão “criação” fica reduzida a um sentido amplo e outro estrito: no primeiro

caso se equipara aplicação e criação, de modo que toda sentença é uma criação de nova

norma; no segundo caso, só há criação diante da resolução de uma antinomia ou de uma

lacuna, quando então o juiz inova, utilizando-se, por exemplo, de analogias.

Na perspectiva em que vimos insistindo, a normatividade jurídica e a decisão

normativa não isolam, abstrata e metodologicamente, ser e dever-ser, razão pela qual a

sentença (lato sensu), como ato de positivação, não pode ser compreendida como mera

atividade de aplicação, de revelação do jurídico ou de escolha do a priori, do pré-existente,

descolada do momento da criação; pelo contrário, a sentença cria a normatividade jurídica.

Em interessante abordagem sobre a evolução do caráter criativo do juiz,

MISABEL ABREU MACHADO DERZI conclui o seguinte:

“De fato, é hoje cediço afirmar o papel criador do juiz. O abandono da

caduca concepção de uma aplicação da lei, como silogismo lógico

dedutivo, em favor de uma compreensão jurídica, parece uma aquisição

definitiva. A evolução da Hermenêutica jurídica, desencadeada pelo

impulso notável que lhe deu E. BETTI167

, ao inseri-la numa teoria geral

165

ADEODATO, João Maurício. “Retórica Jurídica, Filosofia do Direito e Ciência Não-Ontológica.”, texto

inédito. 166

“Das Fontes às Normas”. São Paulo: Quartier Latin, 2005. 167

“V. Interpretazione dela Legge e Degli Atti Giuridici. Milano: Dott. A. Giuffrè, 1949. 367 p. e Teoria

Generale Della Interpretazione. 1 ed., Milano: Giuffrè, 1955.”

Page 122: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

122

da interpretação e, sobretudo, pela obra não menos fundamental de

HANS GEORG GADAMER, reforçou as tendências já apontadas.

Se a interpretação do Direito, em fase inaugural, se centrava na busca

da intencionalidade primária do legislador, em uma segunda etapa

desloca-se para o exame objetivo da obra jurídica (desligada das

subjetividades de seu autor), como totalidade e sistema integrado de

normas. Finalmente, a partir da década de sessenta, coube a GADAMER

acrescentar-lhe a perspectiva histórica do intérprete. Toda

interpretação, inclusive a jurídica, é uma ‘intermediação entre a nossa

visão linguística do mundo e a linguagem do texto’.

O intérprete, em que pesem todas as pretensões à objetividade, não pode

abolir o seu pertencer ao mundo, de modo que sempre se dá uma tensão

entre o sentido original do texto e o atual. O aqui e agora ou a

historicidade do Direito, através do caso, do problema proposto, atua

continuamente no sentido da norma, no evoluir jurídico do texto. (...)

Ora, nesse processo, o de investigação jurídica, é necessário pôr em

correspondência recíproca a norma e o caso, o ser da situação concreta

e o dever ser da norma.”168

(grifamos).

É de se destacar da transcrição acima que a “interpretação é uma

intermediação entre a nossa visão linguística do mundo e a linguagem do texto”, pois é

exatamente assim que se opera a normatividade fática do caso e da sua realidade

subjacente, no contexto da norma jurídica, em sua qualidade dinâmica.

Contrapõe-se a ideia de que o juiz deve aplicar o sentido original do texto

verbal (não há, aqui, criatividade alguma no ato de decidir), ao lado da ideia de que o juiz

deve atualizar o sentido do texto (aqui, então, o juiz estaria criando o direito).

Ora, o que vemos, por exemplo, quando se estende a imunidade dos livros

também para os livros eletrônicos, ou quando se admite um núcleo familiar formado por

pessoas do mesmo sexo, e assim por diante? Não estamos vivenciando e admitindo o

caráter criativo da decisão jurídica? Parece-nos que sim.

De todo modo, o poder criativo do juiz não é absoluto, livre, rebelde, como

uma carta branca, uma espécie de vale tudo que induz a um indesejável decisionismo. Pelo

168

“Modificações da jurisprudência no Direito Tributário”. São Paulo: Noeses, 2009, p. 93/94.

Page 123: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

123

contrário, o poder criativo exige responsabilidade e vinculação argumentativa, na medida

em que exerce papel fundamental no direcionamento das condutas futuras.

O juiz não pode, por exemplo, definir aleatoriamente o conceito de

faturamento, razão pela qual a evolução do termo deve observar uma prática

jurisprudencial consistente. Até porque, é o próprio STF que, já há algum tempo, incorpora

a ideia de que a delimitação dos conteúdos semânticos cabe ao juiz, o qual deve considerar

os influxos e consequências provenientes dos outros sistemas de comunicação. Veja-se:

“(...) CONCEITO CONSTITUCIONAL DE RENDA (...).

Em uma série de precedentes, o Supremo Tribunal Federal examinou o

alcance semântico dos vocábulos empregados pela Constituição, para

examinar se a legislação infraconstitucional que instituía tributos se

adequava ou não aos parâmetros postos pela competência tributária.

Registro, por exemplo, as discussões acerca dos conceitos de serviços e

locação de bens móveis (ISS e locação - RE 201.465), indenização e

renda (RE 188.684, rel. min. Moreira Alves, DJ de 07.06.2002), e

faturamento e receita bruta (Cofins).

Em mais de uma ocasião a Corte afirmou que a estipulação dos

conceitos em matéria tributária não está à livre disposição do legislador

infraconstitucional. (...)

Em sentido semelhante ao que sustentou UMBERTO ECO (Os Limites da

Interpretação, 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2004), a jurisprudência da

Corte aponta, em termos gerais, à existência de uma espécie de direito

do texto Constitucional à interpretação. Quer dizer, embora uma mesma

palavra utilizada na Carta Magna possa significar várias coisas, não

pode ela significar qualquer coisa ao alvedrio do legislador

infraconstitucional.

Por maior que seja a ambigüidade da expressão “renda e proventos de

qualquer natureza”, a respectiva definição não fica ao exclusivo arbítrio

do legislador complementar ou ordinário. (...)

Por outro lado, não há um conceito ontológico para renda, de

dimensões absolutas, caráter imutável e existente independentemente

da linguagem, que possa ser violado pelo legislador complementar ou

pelo legislador ordinário, dado que se está diante de um objeto cultural.

A inexistência de um conceito ontológico para lucro ou renda já foi

examinada pela Corte, por ocasião do julgamento do RE 201.465 (red.

p/ acórdão min. Nelson Jobim, DJ de 17.10.2003), precedente que versa

sobre efeito da inflação sobre as demonstrações financeiras e sobre a

fixação da base de cálculo do IRPJ, na modalidade lucro real (Leis

8.200/1991 e 8.682/1993).

Assim, nos quadrantes do sistema constitucional tributário, o conceito

de renda somente pode ser estipulado a partir de uma série de influxos

Page 124: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

124

provenientes do sistema jurídico, como a proteção ao mínimo

existencial, o direito ao amplo acesso à saúde, a capacidade

contributiva, a proteção à livre iniciativa e à atividade econômica, e de

outros sistemas com os quais o Direito mantém acoplamentos, como o

sistema econômico e o contábil. (...).” (STF, RE n.º 582.525/SP, Repercussão Geral, Rel. Min. Joaquim

Barbosa, Plenário, DJ 07/02/2014 – grifamos).

Trata-se, portanto, de direção interpretativa que já se desenhava há algum

tempo, conforme se verifica do seguinte julgamento plenário, em 2005:

“(...) EFEITO TRANSCENDENTE DOS FUNDAMENTOS

DETERMINANTES DO JULGAMENTO DO RE 197.917/SP -

INTERPRETAÇÃO DO INCISO IV DO ART. 29 DA CONSTITUIÇÃO. -

O Tribunal Superior Eleitoral, expondo-se à eficácia irradiante dos

motivos determinantes que fundamentaram o julgamento plenário do

RE 197.917/SP, submeteu-se, na elaboração da Resolução nº

21.702/2004, ao princípio da força normativa da Constituição, que

representa diretriz relevante no processo de interpretação concretizante

do texto constitucional (...). No poder de interpretar a Lei Fundamental,

reside a prerrogativa extraordinária de (re)formulá-la, eis que a

interpretação judicial acha-se compreendida entre os processos

informais de mutação constitucional, a significar, portanto, que "A

Constituição está em elaboração permanente nos Tribunais

incumbidos de aplicá-la". Doutrina. Precedentes. A interpretação

constitucional derivada das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal

Federal - a quem se atribuiu a função eminente de "guarda da

Constituição" (CF, art. 102, "caput") - assume papel de essencial

importância na organização institucional do Estado brasileiro (...).”

(STF, ADI 3345/DF, Rel. Min. Celso de Mello, Plenário, julgado em

25/08/2005, DJ 20/08/2010 – grifamos).

Fica cada vez mais claro e transparente, ao analisarmos a evolução histórico-

normativa da nossa prática jurídica, o caráter criativo da decisão e a acentuada tendência

pragmatista francamente admitida pela jurisprudência, encampada pela dogmática e,

igualmente, traduzida nas modificações legislativas processuais dos últimos tempos.

Note-se, cumpre reiterar, que admitir o caráter criativo do juiz não é

incorporar, pura e simplesmente, um regime common law, pois nem mesmo dentre dessa

cultura jurídica existe pacificação sobre o tema. Veja-se:

“Neste sentido, para distinguir os sistemas, mesmo em suas origens, não

basta falar que em um o juiz cria o direito e no outro declara a lei, sendo

Page 125: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

125

imprescindível compreender que somente no common law o juiz mereceu

confiança e espaço na esfera de poder e que a afirmação de que o ‘juiz

cria o direito’ constitui slogan de uma das vertentes doutrinárias que se

apresentaram neste sistema jurídico.

Aliás, no que diz respeito a este último ponto, é bom rememorar que, no

common law, ainda se discute a respeito da natureza da jurisdição, se

declaratória ou constitutiva. Tal questão foi objeto de recente debate

entre Herbert Hart – que sustenta o papel criativo da jurisdição – e

Ronald Dworkin – que o nega. Na verdade, Dworkin é um dos

integrantes de um poderoso e crescente núcleo de pensamento engajado

em negar a natureza positivista do precedente e em propor uma visão

‘interpretativista’ para se compreender o common law, com a

consequente reinserção no debate da teoria declaratória da jurisdição,

ainda que, obviamente, sob uma roupagem contemporânea.”169

Admitir o caráter criativo do juiz, da decisão jurídica, significa incorporar o

pragmatismo e, com isso, negar as dualidades ser/dever-ser e positivismo/antipositivismo,

exigindo-se, ao mesmo tempo, uma nova forma de compreender o modelo teórico,

determinado que é por essa nova realidade, por esse novo objeto de estudos que vem se

modificando com velocidade, como procuraremos evidenciar no presente Capítulo.

2. Evolução reformadora do CPC/1973 e a racionalização do contencioso

É natural a ideia, hoje inquestionável, de que o Direito processual deve servir

de forma útil ao direito material (instrumentalidade), acompanhando a evolução das

complexidades sociais e das relações intersubjetivas. Mas nem sempre foi assim.

Tendo os Códigos de Processo Civil de 1939 e 1973 sido promulgados em

períodos de ditadura, justificava-se a postura lógico-positivista, rígida e intransigente em

matéria de interpretação, de modo que, ao menos até 1960, ainda se falava convictamente

em autonomia do Direito processual, a separar Direito substantivo e adjetivo.

169

MARINONI, Luiz Guilherme. “Precedentes obrigatórios”, 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2013, p. 50.

Page 126: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

126

Ao incorporar a ideia de instrumentalidade das formas, o Direito processual

passou a sofrer uma série de reformas a fim de racionalizar o contencioso, com o nítido

propósito de minimizar a crise de ineficiência material, tomando corpo rapidamente no

Direito tributário a partir da adequação da atuação da PGFN e da RFB aos precedentes,

tudo isto diante da valorização normativa da jurisprudência, que passou a ditar e moldar a

legalidade, num processo ascendente que muitas vezes redesenha a própria Constituição.

Assim, fruto da crescente inefetividade e ineficiência do sistema processual,

tivemos uma série de reformas racionalizadoras do processo decisório170

, a saber:

(i) 1998: decisão monocrática sobre conflito de competência quando já

houver jurisprudência dominante do tribunal; declaração de

inconstitucionalidade por órgão fracionário quando já houver

pronunciamento do Tribunal ou do Plenário do STF sobre a questão;

inadmissibilidade ou provimento monocrático do recurso pelo relator

diante de Súmula ou jurisprudência dominante do respectivo Tribunal, do

STF ou do STJ (artigos 120, § Ú, 481, § Ú e 557, todos do CPC,

incluídos e/ou alterados pela Lei n.º 9.756/98);

(ii) 2001: dispensa de reexame necessário quando já houver

jurisprudência do Plenário do STF ou Súmula deste ou de outro Tribunal

competente; e deslocamento de competência para a pacificação de

170

Sobre o assunto, citamos também os apontamentos de Mantovanni Colares Cavalcante, in “Técnicas de

estabilização da jurisprudência: Em busca do equilíbrio na corda bamba processual.” IX Congresso Nacional

de Estudos Tributários do IBET. São Paulo: Noeses, 2012. Com base em lições da doutrina, o autor trabalha

com o seguinte percurso racionalizador: previsibilidade → estabilidade → uniformidade. A previsibilidade

leva à estabilização das expectativas normativas através dos precedentes generalizadores que, por sua vez,

impõem à uniformidade por meio da vinculação dos órgãos inferiores. E as técnicas de estabilização são

divididas em: exclusivamente administrativas; preponderantemente procedimentais; e essencialmente

processuais.

Page 127: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

127

jurisprudência em órgão colegiado (artigos 475, § 3º e 555 do CPC,

incluídos pela Lei n.º 10.352/01);

(iii) 2002: tutela antecipada fundada na incontrovérsia do pedido (§ 6º do

artigo 273 do CPC, incluído pela Lei n.º 10.444/02);

(iv) 2004: repercussão geral e súmula vinculante (EC n.º 45/04);

(v) 2005: embargos à execução com efeito rescisório para a adequação

jurisprudencial (§ 1º do artigo 475-L e § Ú do artigo 741, ambos do CPC,

incluídos pela Lei n.º 11.232/05);

(vi) 2006: inadmissibilidade de apelação quando a sentença estiver

fundada em súmula de jurisprudência dominante do STJ ou STF (artigo

518, § 1º do CPC, incluído pela Lei n.º 11.276/06);

(vii) 2006: sentença liminar de improcedência pelo juiz singular quando

já houver reiteração decisória da matéria junto ao Juízo (artigo 285-A do

CPC, incluído pela Lei n.º 11.277/06);

(viii) 2006: multiplicidade de recursos no STF (artigos 543-A e 543-B do

CPC, incluídos pela Lei n.º 11.418/06);

(ix) 2008: multiplicidade de recursos no STJ (artigo 543-C do CPC,

incluído pela Lei n.º 11.672/08);

(x) 2010: julgamento monocrático de agravo contra despacho

denegatório no STF e STJ quando houver súmula ou jurisprudência

dominante (artigo 544, § 4º do CPC, incluído pela Lei n.º 12.322/10).

Atualmente, em especial no Direito tributário, estamos vivenciando o apogeu

da jurisprudência, sendo comum ouvirmos falar, dentre outros termos, em “relativização da

Page 128: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

128

coisa julgada inconstitucional” e “coisa julgada rebelde”171

, para designar julgamentos que

contrariam jurisprudência consolidada, ainda que formada em momento posterior, temas

estes que ganharam força a partir dos Pareceres PGFN n.ºs 492/2010 e, em especial,

492/2011, o qual será retomado e melhor explorado mais à frente, mas cujo contexto desde

logo fica claro: a adequação do sistema à orientação jurisprudencial.

O CPC/2015, de igual forma, possui balizas muito claras em relação à

racionalização e efetividade dos julgamentos, adotando e aprimorando diversos

mecanismos, como a tutela de evidência (artigo 311), a institucionalização do amicus

curiae (artigo 138), o incidente de resolução de demandas repetitivas (artigos 976/987), a

regulamentação do precedente e, de algum modo, do sistema stare decisis (artigo 489), a

instituição da mútua cooperação entre as partes (artigo 6º), o saneamento compartilhado do

processo (artigos 190/191), dentre tantos outros.

Por isso, tais mudanças naturalmente também provocaram alterações no

contencioso tributário e no modo de atuação dos órgãos fazendários, que atentos a esse

movimento passaram igualmente a se empenhar na racionalização de sua atuação.

2.1. Valorização da jurisprudência no contencioso tributário administrativo

Alinhado a essa nova racionalidade provocada a partir das mudanças na

legislação processual, a própria administração fazendária passou a admitir e encampar a

ideia de valorização dos precedentes, trazendo efetividade tanto para as atividades

fiscalizatórias, como para o consultivo e contencioso tributário administrativo, com a busca

171

Termo utilizado pelo Ministro Luis Felipe Salomão no REsp n.º 1.163.267/RS, julgado em 19/09/2013.

Page 129: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

129

de ganhos no correto direcionamento dos esforços e dos recursos financeiros destinados à

cobrança e defesa do crédito tributário.

Nessa direção caminham os atos decisórios administrativos, com a adoção, por

exemplo, de soluções de consulta vinculadas (IN RFB 1.396/10), uniformização de

julgados nos tribunais administrativos e filtros vinculantes, dentre outros, o que denota o

papel prescritivo generalizador das decisões normativas.

Ainda no âmbito federal, já a Lei n.º 10.522/02, em seus artigos 18 e 19,

particularmente após as alterações promovidas pela Lei n.º 12.844/13, passou a dispensar a

discussão fazendária de matérias desfavoráveis fixadas em jurisprudência pacífica do

STJ172

, bem como a constituição de créditos tributários relativos a essas matérias.

A partir de então, tem sido crescente a edição de atos normativos

administrativos racionalizadores, fruto dos Pareceres PGFN/CRJ n.ºs 492/10173

e 492/11,

os quais tratam, resumidamente, da força persuasiva expansiva e dos efeitos dos

precedentes do Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça.

172

“Art. 19. Fica a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional autorizada a não contestar, a não interpor

recurso ou a desistir do que tenha sido interposto, desde que inexista outro fundamento relevante, na

hipótese de a decisão versar sobre: (...) II - matérias que, em virtude de jurisprudência pacífica do

Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, do Tribunal Superior do Trabalho e do

Tribunal Superior Eleitoral, sejam objeto de ato declaratório do Procurador-Geral da Fazenda Nacional,

aprovado pelo Ministro de Estado da Fazenda; (...). § 4º A Secretaria da Receita Federal do Brasil não

constituirá os créditos tributários relativos às matérias de que tratam os incisos II, IV e V do caput, após

manifestação da Procuradoria- Geral da Fazenda Nacional nos casos dos incisos IV e V do caput. § 5º - As

unidades da Secretaria da Receita Federal do Brasil deverão reproduzir, em suas decisões sobre as

matérias a que se refere o caput, o entendimento adotado nas decisões definitivas de mérito, que versem

sobre essas matérias, após manifestação da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional nos casos dos

incisos IV e V do caput.” (...).” (grifos nossos). 173

“(...) 3. Em se tratando, especificamente, de RE/RESP´s interpostos contra acórdãos proferidos em

consonância com jurisprudência reiterada e pacífica do STF/STJ, o seu seguimento tem sido

repetidamente obstado pelos Presidentes/Vice-Presidentes (de TRF`s e do STJ); daí que, nesses casos, pode-

se afirmar, com a segurança necessária, que os recursos extremos interpostos contra essas decisões possuem

reduzida viabilidade de êxito, de modo que a PGFN não possui interesse prático em continuar insistindo na

sua interposição. (...).” (grifos nossos).

Page 130: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

130

Correlatamente, foi editado os sucessivos Parecer PGFN/CDA n.º 2.025/11 e

Parecer PGFN n.º 396/2013174

, que tratam exatamente das hipóteses de desistência das

discussões pacificadas pelos tribunais e das repercussões tanto na cobrança dos créditos

tributários como na orientação e direcionamento dos critérios interpretativos futuros.

Cita-se ainda a Portaria PGFN n.º 294/2010, que procurou orientar a atuação

fazendária diante dos precedentes e, em seu artigo 2º, § 1º, dispõe que “consideram-se

como questões definidas em “jurisprudência reiterada e pacífica” pelo STF ou pelo STJ

apenas aquelas assim indicadas em lista elaborada e divulgada, respectivamente, pela

CASTF e pela CRJ, que será atualizada periodicamente, podendo sempre os

Procuradores-Regionais da Fazenda Nacional auxiliar na sua atualização, encaminhando

a essas duas Coordenações sugestões de novos temas a serem incluídos na referida lista.”

E por fim, como forma de impor uma otimização e organização interna à

atuação fazendária em face da jurisprudência, tem-se a Portaria Conjunta PGFN/RFB n.º

1/2014, a qual dispõe sobre o acompanhamento e as comunicações entre PGFN e RFB,

relativamente aos julgamentos das Cortes Superiores.

Por tudo isso, é indiscutível a adaptação evolutiva de nosso objeto de estudos,

que vem se modificando rapidamente em especial em relação às matérias tributárias, de

modo que, nessa perspectiva, “a estabilidade não se traduz apenas na continuidade do

direito legislado, exigindo, também, a continuidade e o respeito às decisões judiciais, isto

é, aos precedentes.”175

174

“(...) Restituição do indébito e compensação. A mudança de entendimento em sentido favorável ao

contribuinte enseja a possibilidade de restituição e de compensação dos valores efetivamente pagos, na

forma da legislação em vigor. Julgamento em primeira instância administrativa. A nova interpretação

assumida pela Fazenda Nacional deverá ser seguida pelas autoridades julgadoras no âmbito das

Delegacias da Receita Federal do Brasil de Julgamento- DRJ, em cumprimento ao disposto no art. 7º da

Portaria MF nº 341, de 12 de julho de 2011. (…)” (grifos nossos). 175

MARINONI, Luiz Guilherme. “O precedente na dimensão da segurança jurídica”, in “A força dos

precedentes”, 2ª edição. Salvador: Juspodivm, 2012.

Page 131: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

131

3. Segurança jurídica, fundamentação, extensão da coisa julgada e o tempo jurídico

Conscientes de que nosso objeto de estudos vem sofrendo grandes alterações,

adaptando-se às contingências e demandas impostas por uma sociedade complexa e

dinâmica, voltamos nosso questionamento ao modelo teórico que até então predomina e

prevalece na ciência jurídica, a partir do qual unidade, coerência, completude e segurança

jurídica são postulados gerais que preenchem dedutivamente todo o sistema.

Ou seja, a segurança jurídica, enquanto meio, operando de maneira descolada

da realidade fática dos casos concretos. Porém, já vimos, a cognoscibilidade é aberta, é a

porta de acesso da normatividade, onde então interage ser e dever-ser, num intercâmbio

que permite falar em segurança jurídica enquanto fim.

Desse modo, dentro da realidade e racionalidade pragmatista, a consolidação

da segurança jurídica ocorre concretamente, a partir dos casos particulares e, por isso, a

estabilidade e adequação jurisprudencial são construídas prospectivamente.

Nesse ponto, já concluía DWORKIN que “a compreensão meramente

burocrática do decidir despe o juiz de responsabilidade e o afasta do compromisso com o

caso. Quando se deixam de julgar casos, para julgarem-se teses, tem-se sintoma

inequívoco da suplantação da atividade judicial pela burocracia.”176

Por oportuno, lembremo-nos de exemplo anterior, onde o conceito de

faturamento fixado pela jurisprudência, do ponto de vista estrutural, numa interpretação

isolada dentro do sistema jurídico (resultado da venda de produtos e/ou da prestação de

176

DWORKIN, Ronald. “A justiça de toga.” São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 175.

Page 132: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

132

serviços), acabou tendo que ser revisto por conta de suas consequências práticas no

mercado, não se mostrando adequado diante de uma interpretação que passa a considerar a

realidade dinâmica das atividades empresariais.

Com isso, pretende-se atingir a segurança jurídica concreta, dirigida para um

fim que não se compreende num isolamento formalista, de modo que receita de aluguel

para uma empresa com atividade imobiliária é faturamento, enquanto não o é para uma

indústria, para uma empresa comercial ou para uma prestadora de serviços, da mesma

forma ocorrendo com a receita financeira, que nos parece compor o conceito de

faturamento de uma corretora de títulos e valores mobiliários ou de um banco177

.

Por tais razões, nos termos do artigo 93, IX, da Constituição Federal178

, a

fundamentação é requisito de validade de qualquer decisão normativa, pois é através dela

que se permite vincular o julgador tanto aos precedentes, como aos casos futuros, além de

permitir o controle das legítimas expectativas normativas, essenciais à segurança.

São estas as lições de DANIEL AMORIM ASSUMPÇÃO NEVES: “Sob o

ponto de vista político a motivação se presta a demonstrar a correção, imparcialidade e

lisura do julgador ao proferir a decisão judicial, funcionando o princípio como forma de

legitimar politicamente a decisão judicial. Permite um controle da atividade do juiz não só

do ponto de vista jurídico, feito pelas partes no processo, mas de uma forma muito mais

ampla, uma vez que permite o controle da decisão por toda a coletividade.”179

177

Lembrando que essas questões estão para ser julgadas pelo STF nos seguintes casos: RE n.º 609.096, com

repercussão geral (instituições financeiras); RE n.º 400.479 (seguradoras e corretoras); e RE n.º 599.658, com

repercussão geral (locadoras de bens imóveis). 178

“Art. 93 (omissis). IX - todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e

fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados

atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito

à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação; (Redação dada pela

Emenda Constitucional nº 45, de 2004).” 179

“Manual de Direito Processual Civil”, 2ª edição. São Paulo: Método, 2010, p. 71.

Page 133: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

133

A fundamentação do e no caso é que conforma a normatividade da decisão,

encampando suas consequências práticas, projetando-se para o dispositivo e para a coisa

julgada. Nessa ordem de ideias, para a correta fixação da tese em julgamento e delimitação

da coisa julgada, o retrato dos fundamentos é imprescindível para a sua compreensão, de

forma que a atividade exercida por cada empresa, matéria aparentemente apenas fática,

secundária, no exemplo acima, torna-se o centro da normatividade: como falar em

definição do conceito de faturamento descolado da realidade fática do caso?

Estamos, de certo modo, no contexto das teorias da interpretação e da

argumentação, hoje encampadas pelo chamado pós-positivismo ou neoconstitucionalismo,

com sua importância na análise do problema da aplicação do direito180

.

A propósito do chamado neoconstitucionalismo, veja-se a seguinte passagem

de LENIO LUIZ STRECK, segundo o qual:

“Numa palavra, fundamentos determinantes (motivos etc.) e o

dispositivo fazem parte de um círculo (hermenêutico): somente se

compreende a parte dispositiva em toda a sua dimensão quando se tem

antecipadamente a (pré)compreensão dos fundamentos determinantes.

Do mesmo modo, somente é possível transcender os fundamentos

determinantes (tragenden Grunde) porque eles precisam estar

densificados no dispositivo. Uma não pode viver sem o outro. Com isso,

evita-se que ‘ementários’ tenham vida própria. Para ser mais explícito:

evita-se, assim, a construção de conceitos sem coisas.”181

180

“O problema da aplicação, da justificação da decisão jurídica ganha uma importância inédita. Os

problemas da identificação do direito e da sua interpretação passam a gravitar em torno das justificações da

decisão, que são transformados em dados preceptivos ao lado de outros (os legislativos e até com vantagem

sobre eles). E um sintoma disso é a assimilação do conceito de interpretação à argumentação.

Existe hoje uma vasta literatura (Dworkin, Alexy, Carlos Nino, Zagrebelsky, Atienza, Troper etc.) que, a

partir de uma crítica ao positivismo analítico e sua exclusão das justificações morais da argumentação

jurídica, propõe, ao contrário, que os saberes e as técnicas jurídicas, por óbvio, não conseguem conviver

com essa exclusão, sobretudo no terreno constitucional.

Surge daí um ‘constitucionalismo principialista e argumentalista, de clara matriz anglo-saxônica, que não

só parte para um ataque à argumentação positivista (que separa direito e moral e despe os argumentos de

sua carga moral para lhes dar uma carga de mera eficiência técnica), mas se endereça também para uma

concepção da argumentação jurídica que vem sendo chamada de neoconstitucionalista.” FERRAZ JR.,

Tércio Sampaio. “O Direito, entre o futuro e o passado”. São Paulo: Noeses, 2014, Prefácio, XVI. 181

STRECK, Lenio Luiz. “Jurisdição constitucional e decisão jurídica”, 3ª edição. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2013, p. 734/735.

Page 134: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

134

Aliás, não à toa há muito a doutrina já atribui papel determinante da

fundamentação e dos contornos do caso na formação da coisa julgada, conforme vemos,

por exemplo, na seguinte passagem de HUMBERTO THEODORO JUNIOR:

“É na conjugação dos atos das partes e do juiz que se chega aos

contornos objetivos da coisa julgada. São, pois, as pretensões

formuladas e respectivas causa de pedir (questões litigiosas) julgadas

pelo Judiciário (questões decididas) que se revestirão da eficácia da

imutabilidade e indiscutibilidade de que trata o art. 468 do CPC. (...)

Ressalte-se, mais uma vez, que o dispositivo da sentença não se confunde

com o texto final do julgado, mas deve ser localizado em todos os

momentos da sentença em que o julgador deu solução às questões que

integram a causa petendi, seja da demanda do autor, seja da defesa do

réu, como adverte Liebman na seguinte passagem: ‘Em conclusão, é

exata a afirmativa de que a coisa julgada se restringe à parte dispositiva

da sentença. A expressão, entretanto, deve ser entendida em sentido

substancial e não apenas formalístico, de modo que compreenda não

apenas a fase final da sentença, mas também tudo quanto o juiz

porventura tenha considerado e resolvido acerca do pedido feito pelas

partes. Os motivos são, pois, excluídos por essa razão, da coisa julgada,

mas constituem amiúde indispensável elemento para determinar com

exatidão o significado e o alcance do dispositivo.’”182

De certa forma, essa é a ideia que se propagou a partir das lições do Ministro

Gilmar Mendes a respeito da “eficácia transcendente da motivação”183

, encampadas no

seguinte leading case sobre a matéria:

“EMENTA: RECLAMAÇÃO. CABIMENTO. AFRONTA À DECISÃO

PROFERIDA NA ADI 1662-SP. (...) 1. Preliminar. Cabimento.

Admissibilidade da reclamação contra qualquer ato, administrativo ou

judicial, que desafie a exegese constitucional consagrada pelo Supremo

Tribunal Federal em sede de controle concentrado de

constitucionalidade, ainda que a ofensa se dê de forma oblíqua. (...) A

decisão do Tribunal, em substância, teve sua autoridade desrespeitada

de forma a legitimar o uso do instituto da reclamação. Hipótese a

justificar a transcendência sobre a parte dispositiva dos motivos que

embasaram a decisão e dos princípios por ela consagrados, uma vez que

os fundamentos resultantes da interpretação da Constituição devem ser

182

“Notas sobre a sentença, coisa julgada e interpretação”, in Revista de Processo vol. 167. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2009, p. 14 e 20. 183

“Cabe ao Ministro Gilmar Mendes o grande mérito de ter desenvolvido o assunto a partir do direito

alemão. Aludindo à ideia de ‘eficácia transcendente da motivação’, o Ministro fez ver que esta eficácia está

umbilicalmente ligada à própria natureza da função desempenhada pelos tribunais constitucionais, além de

ser absolutamente necessária à tutela da força normativa da Constituição.” MARINONI, Luiz Guilherme.

“Precedentes obrigatórios”, 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 270.

Page 135: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

135

observados por todos os tribunais e autoridades, contexto que contribui

para a preservação e desenvolvimento da ordem constitucional. (...)

Contrariedade à autoridade da decisão proferida na ADI 1662.

Reclamação admitida e julgada procedente.” (STF, Pleno, Rcl 1987/DF,

Rel. Min. Maurício Corrêa, julgado em 01/10/2003 – grifamos).

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, responsável pela pacificação

dos temas processuais de índole infraconstitucional, igualmente há tempos não destoa:

“Coisa julgada. Dispositivo. A coisa julgada refere-se ao dispositivo da

sentença. Essa, entretanto, há de ser entendida como a parte do

julgamento em que o juiz decide sobre o pedido, podendo ser encontrada

no corpo da sentença e não, necessariamente, em sua parte final.” (STJ,

3ª Turma, AgRg no Ag 162.593/RS, Rel. Min. Eduardo Ribeiro, julgado

em 12/05/1998, DJ 08/09/1998).

“Conquanto seja de sabença que o que faz coisa julgada material é o

dispositivo da sentença, faz-se mister ressaltar que o pedido e a causa de

pedir, tal qual expressos na petição inicial e adotados na fundamentação

do decisum, integram a res judicata, uma vez que atuam como

delimitadores do conteúdo e da extensão da parte dispositiva da

sentença.” (STJ, 1ª Turma, REsp 795.724/SP, Rel. Min. Luiz Fux,

julgado em 01/13/2007, DJU 15/03/2007).

Dessa forma, para saber e compreender o que transitou em julgado, devemos

pesquisar qual o tema controvertido no processo, os motivos determinantes, e não apenas a

síntese constante do dispositivo ou, o que é pior, da ementa do julgado ou de uma súmula.

Pois bem, sob tais concepções, a consolidação do trabalho judicante, conforme

sintetiza PAULO DE BARROS CARVALHO, é responsável por estabilizar o sistema,

realizar segurança jurídica, promover a orientação jurisprudencial, operar a simplificação

da atividade processual e trazer previsibilidade decisória.

Nesses exatos termos, remetemo-nos ao AI-AgR n.º 179.560/RJ, 1ª Turma,

Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 24/05/2005:

“A SÚMULA DA JURISPRUDÊNCIA PREDOMINANTE DO

SUPREMO TRIBUNAL (...). A formulação sumular, que não se qualifica

como “pauta vinculante de julgamento”, há de ser entendida,

consideradas as múltiplas funções que lhe são inerentes – função de

estabilidade do sistema, função de segurança jurídica, função de

Page 136: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

136

orientação jurisprudencial, função de simplificação da atividade

processual e função de previsibilidade decisória, v.g. (RDA 78/453-459 –

RDA 145/1-20), como resultado paradigmático a ser autonomamente

observado, sem caráter impositivo, pelos magistrados e demais

Tribunais judiciários nas decisões que venham a proferir.”

Conforme já destacado, o percurso da racionalidade decisória caminha no

seguinte sentido: previsibilidade → estabilidade → uniformidade. A previsibilidade parte

dos entendimentos fixados nas diversas manifestações jurisdicionais (ou melhor, nas

decisões normativas). A partir daí podemos caminhar para a estabilização das expectativas

normativas, através dos precedentes generalizadores. Por fim, tais precedentes impõem à

uniformidade da orientação, por meio da vinculação dos órgãos inferiores.

Assim, previsibilidade, estabilidade e uniformidade caminham juntas na busca

da adequação jurisprudencial, não sendo alcançadas através de um processo mecânico

meramente dedutivo, mas sim a partir de constantes influxos indutivos, pautados na

complexidade dos casos concretos a da realidade que lhes subjaz. Conforme

MANTOVANNI COLARES CAVALCANTE, “como a ‘previsibilidade’ revela uma

tendência, e a ‘uniformidade’ um ideal, o meio-termo seria a ‘estabilidade’, um eixo por

onde gravitam aqueles extremos da interpretação.”184

Por conta das distorções, sobretudo do próprio judiciário, na compreensão do

papel criativo do juiz, do precedente e da jurisprudência, advém a crítica que se espelha no

termo “commonlawnização”, para designar o abrasileiramento do regime common law e do

sistema stare decisis.

A construção da jurisprudência é sempre prospectiva (um caso passado

fundamenta comparativamente o caso presente e o futuro, ou justifica sua evolução), não

184

“Técnicas de estabilização da jurisprudência: Em busca do equilíbrio na corda bamba processual.” IX

Congresso Nacional de Estudos Tributários do IBET. São Paulo: Noeses, 2012.

Page 137: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

137

se podendo falar em adequação jurisprudencial mecânica e retrospectiva (um caso ou uma

evolução presente justificando e alterando automaticamente um caso passado).

Em recente obra prefaciada por NELSON NERY JUNIOR, intitulada

“Precedente à Brasileira. A jurisprudência vinculante no CPC e no novo CPC”, JÚLIO

CÉSAR ROSSI analisa o fenômeno da valorização jurisprudencial e ressalta que:

“Sendo possível, fala-se em precedente judicial na tradição do ‘civil law’

e um aspecto deve ficar muito evidente: essa doutrina não pode vir

determinada por lei (ou mesmo Emenda Constitucional). A aplicação de

um precedente não pode ser fruto de imposição legislativa, mas de

interpretação-aplicação do direito ao caso concreto, não existindo

aplicação por método subjuntivo ou acoplamento mecânico e

vinculante de um precedente universal para o julgamento de casos

futuros. (...)

Nosso precedente é estabelecido, muitas vezes, por um único julgamento

sobre um determinado tema, mas com aptidão de resolver casos

manifestamente diferentes daquele do qual se originou. Sua aplicação é

obrigatória (não é fruto de uma evolução ou cristalização de um

posicionamento em que o órgão julgador pode ou não aplicar a mesma

razão de decidir, sem qualquer espécie de sanção).

(...)

Por tais motivos, nossos precedentes possuem características muito

peculiares que os afastam dos estadunidenses (common law), e também

dos precedentes do civil law, não porque os sistemas não interajam, mas

pela existência da seguinte peculiariedade ou particularidade:

pretendemos construir um precedente que estabeleça uma série de

soluções para abarcar as mais diversas peculiaridades possivelmente

existentes em qualquer espécie de lide (seja assemelhada, seja

repetitiva), o qual possa ser fruto de um único julgamento e cuja decisão

seja de aplicação obrigatória a todos os demais, que se encontrem em

qualquer grau (...)

Dessa forma, não só fixamos entendimentos que desencadearão

julgamentos em cascata, ignorando as peculiaridades de cada caso

concreto, como também combatemos a falta de estrutura de nosso Poder

Judiciário, justificando essa postura na busca da segurança jurídica,

como se esta fosse simplesmente a estabilização dos conflitos, a qualquer

preço e de qualquer forma (...).”185

(grifos nossos).

Na mesma linha, encontramos a seguinte passagem de RENATO LOPES

BECHO: “as decisões judiciais não são, apenas, individuais e concretas. Elas agem como

185

ROSSI, Julio César. “Precedente à Brasileira. A jurisprudência vinculante no CPC e no novo CPC”. São

Paulo: Atlas, 2015, pp. 85 e 152/153.

Page 138: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

138

elementos interpretativos, como normas gerais e abstratas, nos mesmos termos que as leis.

Elas criam expectativas de direito. (...) Se a jurisprudência for irrelevante na formação do

princípio da segurança jurídica, os advogados não precisam buscar os precedentes

jurisprudenciais. Nessa hipótese, os repertórios de jurisprudência serão tão úteis quanto

as revistas que tratam da vida alheia e o STJ, assim como o STF ou qualquer outro

tribunal, pode decidir qualquer caso independentemente de outros processos. Assim, em

uma tarde de julgamento, um tribunal pode dar decisões alheatórias em processos

diferentes, ainda que os fatos sejam iguais e a lei seja a mesma.”186

A segurança jurídica que se busca com a racionalização decisória, corolário de

todo o sistema jurídico, ganha contornos especiais no Direito tributário, sendo expressa em

diversos dispositivos que, em grande síntese, encontram fundamento no tripé veiculado

pelo artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal: “a lei não prejudicará o direito

adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.”

O termo lei, atualmente, é reconhecido e trabalhado no sentido de norma

jurídica, vinculando, portanto, não apenas o Poder Legislativo, como também as legítimas

expectativas geradas pelas normas criadas pelo Poder Judiciário187

, razão pela qual a

jurisprudência nova também não poderá, em regra, prejudicar a coisa julgada.

Por fim, acerca da manipulação jurídica do tempo no caso da coisa julgada, são

oportunas as lições de TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR, para quem:

“Trata-se de um tempo existencial, que o direito, mediante positivação

normativa, manipula e controla na forma de uma capacidade

tecnológica de reinterpretar o passado (sem anulá-lo ou apaga-lo) – por

exemplo, pela responsabilização normativa por aquilo que aconteceu – e

de orientar o futuro (sem impedir que ele ocorra) – por exemplo, usando-

o como finalidade reguladora da ação: planejamento normativo. Entre o

186

In “Conflitos de jurisprudência entre STF e STJ”, p. 15 e 17-18, texto inédito. 187

Nesse sentido, remetemo-nos ao trabalho de Misabel Derzi, “Modificações da jurisprudência no Direito

Tributário”. São Paulo: Noeses, 2009, com citação de diversos outros autores sobre o assunto.

Page 139: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

139

passado e o futuro, esse tempo cultural que aparece como duração, ou

seja, cuja experiência se dá no presente, que o homem vive como um

contínuo tem de ser conceitualmente dominado. Pois a duração desafia o

tempo cronológico, que tudo corrói: torna o passado (que não é mais)

algo ainda interessante (como faz a memória) e faz do futuro (que ainda

não ocorreu) um crédito, base da promessa. E a promessa, para esses

efeitos, torna-se tema jurídico.

E eis aí a razão por que é aqui que entra a segurança como um direito

fundamental. Segurança tem que ver com a consistência da duração, isto

é, com o evitar que um evento passado (o estabelecimento de uma norma

e o advento de uma situação normada), de repente, torne-se algo

insignificante, e o seu futuro, algo incerto, o que faria do tempo do

direito mero tempo cronológico, uma coleção de surpresas

desestabilizadoras da vida. Afinal, se o sentido de um evento passado

pudesse ser alterado ou o sentido de um evento planejado pudesse ser

modificado ao arbítrio de um ato presente, a validade dos atos humanos

estaria sujeita a uma insegurança e uma incerteza insuportáveis.

(...)

Se o tempo cronológico tudo corrói, o instituto da res judicata (coisa

julgada) é um instrumento capaz de resgatar o passado em nome de um

futuro incerto e cambiante, pela prevalência de uma incidência

jurisdicional ocorrida sobre a efetividade de uma nova incidência sobre

o mesmo objeto. Por força do fator tempo, a coisa julgada é um dos

institutos que, ao garantir a segurança contra a entropia temporal, está

inserida no rol dos direitos fundamentais.”188

Até porque, já dispõe o artigo 468 do CPC que “a sentença, que julgar total ou

parcialmente a lide, tem força de lei nos limites da lide e das questões decididas.” De

forma que, numa releitura, “a norma jurídica [lato sensu] não prejudicará o direito

adquirido, o ato perfeito e a coisa julgada.”

Por essa razão, mais do que a proteção da boa-fé e da confiança (aplicáveis

genericamente para justificar a modulação de efeitos nos casos de viradas

jurisprudenciais), cumpre-nos analisar em que condições a coisa julgada é ou pode ser

afetada na medida em que novos paradigmas interpretativos são construídos, conceitos são

revistos, relações e realidades sociais são alteradas, enfim, na medida em que a

complexidade do ser volta-se contra a simplificação do dever-ser.

188

“O direito, entre o futuro e o passado”. São Paulo: Noeses, 2014, p. 12-14.

Page 140: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

140

Sob tal perspectiva, a jurisprudência deve ser usada de forma estatístico-

científica, estabelecendo a regularidade – ratio decidendi – dos julgados, o que não tem

acontecido em nossa prática forense, onde os operadores fazem um uso

retórico/persuasivo, deduzindo consequências a partir de ementas ou dispositivos isolados

das decisões, sendo essa a realidade que se pretende mudar com o novo CPC.

4. Uma primeira síntese: a mudança na compreensão e construção do direito

tributário a partir da valorização dos precedentes

Impositivamente ou não, estamos lidando com uma realidade cada vez mais

presente no fenômeno normativo em matéria tributária, caracterizando-se pela constante

modelagem dos conteúdos prescritivos gerais e abstratos pelas decisões normativas,

produzidas tanto pelos julgamentos judiciais como, em grande número, pelas

manifestações administrativas, as quais vêm assumindo papel importante na transformação

das políticas fiscais e até mesmo na pauta legislativa.

Trata-se, portanto, da ocupação de um espaço que, dentro da complexidade

social, não consegue ser adequadamente preenchido e acompanhado pelas normas de maior

generalidade e abstração, razão pela qual a dinâmica das normas individuais e concretas,

aquelas que mais de perto se aproximam das relações intersubjetivas, acabam delimitando

os contornos do sistema tributário.

Temos, portanto, que a concretização normativa não só preenche o conteúdo

dos antecedentes abstratos como, sobretudo, num sistema racionalizante, generaliza o

Page 141: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

141

direito num processo ascendente, apontando para as soluções de casos futuros189

, sendo

esse o papel das decisões normativas.

Conforme J.J. GOMES CANOTILHO: “A concretização seria a

‘densificação’ ou o ‘processo de densificação’ de normas ou regras de grande ‘abertura’

– princípios, normas constitucionais, cláusulas legais indeterminadas – de forma a

possibilitar a solução de um problema.”190

Indo além, a concretização não só permite a

solução de um problema concreto, como também direciona as condutas futuras.

Por essa razão, analisando os aspectos negativos desse fenômeno, J.J. GOMES

CANOTILHO se refere à “lei dos regulamentos” e à “constituição das leis”. Ou seja, o

ato infralegal atribuindo sentido ao legal e a lei atribuindo sentido à Constituição, havendo,

com isso, uma aparente mudança paradigmática que passa a conferir ao aspecto pragmático

da linguagem jurídica especial relevância no processo gerador de sentidos.

Em ligeira adaptação, falaríamos em espécies que determinam os gêneros, ou

denotações que implicam as conotações, para nos referir aos precedentes que condicionam

as leis, o que representa uma inversão no processo de positivação do direito, fenômeno

esse que altera a ideia de segurança jurídica, como vimos acima.

Portanto, insistimos que a jurisprudência é fonte criativa do direito, afirmativa

essa que vem recebendo grande espaço por parte da doutrina tributária e de teoria geral

nacional, como vemos em REGINA HELENA COSTA191

, MISABEL DERZI192

, TÉRCIO

189

Pouco discutido no campo tributário, esta é a exata prescrição do já referido artigo 468 do Código de

Processo Civil, segundo o qual “a sentença, que julgar total ou parcialmente a lide, tem força de lei nos

limites da lide e das questões decididas.” (grifos nossos). 190

“Constituição dirigente e vinculação do legislador”, 2ª edição. Coimbra: Coimbra, 2001, p. 321/322. 191

“Curso de direito tributário: Constituição e Código Tributário Nacional.” São Paulo: Saraiva, 2009. 192

“Modificações da jurisprudência no direito tributário: proteção da confiança, boa-fé objetiva e

irretroatividade como limitações constitucionais ao Poder Judicial de Tributar.” São Paulo: Noeses, 2009. Na

mesma linha, vide o artigo “Interpretação constitucional controvertida”, in VIII Congresso Nacional de

Estudos Tributários do IBET. São Paulo: Noeses, 2011.

Page 142: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

142

SAMPAIO FERRAZ JUNIOR193

, RENATO LOPES BECHO194

, JOÃO MAURÍCIO

ADEODATO195

, WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO196

, dentre outros que têm se

dedicado ao assunto.

O próprio Supremo Tribunal Federal, inclusive, já registrou essa tendência no

recente julgamento, em 20/03/14, da Rcl n.º 4.335/AC, Relator Min. Gilmar Mendes,

quando então foi destacado o seguinte no Voto-Vista do Min. Teori Zavascki:

“(...) Não se pode deixar de ter presente, como cenário de fundo

indispensável à discussão aqui travada, a evolução do direito brasileiro

em direção a um sistema de valorização dos precedentes judiciais

emanados dos tribunais superiores, aos quais se atribui, cada vez com

mais intensidade, força persuasiva e expansiva em relação aos demais

processos análogos. Nesse ponto, o Brasil está acompanhando um

movimento semelhante ao que também ocorre em diversos outros países

que adotam o sistema da ‘civil law’, que vêm se aproximando,

paulatinamente, do que se poderia denominar de cultura do ‘stare

decisis’, própria do sistema da ‘common law’. A doutrina tem registrado

esse fenômeno, que ocorre não apenas em relação ao controle de

constitucionalidade, mas também nas demais áreas de intervenção dos

tribunais superiores, a significar que a aproximação entre os dois

grandes sistemas de direito (civil law e common law) é fenômeno em vias

de franca generalização (...). É interessante ilustrar a paulatina, mas

persistente, caminhada do direito brasileiro no rumo da valorização dos

precedentes judiciais, no âmbito da jurisdição geral (e não,

exclusivamente, da constitucional, de que se tratará mais adiante)

mencionando alguns de seus mais expressivos movimentos. (...).”

E ainda, como bem destacado no Voto-Vista do Ministro Roberto Barroso, “a

expansão do papel dos precedentes atenderia a três finalidades constitucionais: segurança

jurídica, isonomia e eficiência”.

193

“O Direito, entre o futuro e o passado”. São Paulo: Noeses, 2014. 194

“Filosofia do direito tributário.” São Paulo: Saraiva, 2009. De igual forma, citamos seu artigo “Conflitos

de jurisprudência entre STF e STJ.” 195

“Uma Teoria Retórica da Norma Jurídica e do Direito Subjetivo.” São Paulo: Noeses, 2012. Na mesma

linha, remetemo-nos aos artigos: “Retórica da Jurisdição Constitucional e Tributação – Suas Origens na

Teoria Pura de Hans Kelsen” e “Retórica Jurídica, Filosofia do Direito e Ciência Não-Ontológica.” 196

“A ilusão da normatividade universalista em face da nossa superlativa contingência.” In Revista

Faculdade de Direito PUC-SP, volume 2, 2º semestre/2014. São Paulo: Letras Jurídicas, 2014.

Page 143: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

143

O dado concreto, sem dúvida, apresenta-se no papel de relevo que vem sendo

desempenhado pelas decisões normativas na experiência jurídico-tributária, não se

podendo, diante disso, ignorar os efeitos que porventura produz na coisa julgada.

Capítulo 7. Coisa julgada e rescisória com referibilidade em matéria tributária

Inicialmente, dois dados merecem atenção na identificação dos temas

pertinentes ao presente Capítulo. Primeiramente, ao nos referirmos especificamente à coisa

julgada e rescisória em matéria tributária, não pretendemos criar uma nova categoria

dogmática de rescisória ou de coisa julgada, mas assim o fazemos por uma opção que leva

em conta à própria instrumentalidade e efetividade do processo.

Assim, enquanto instrumento do direito material, analisaremos as

peculiaridades processuais da coisa julgada e da rescisória com referência, em particular,

às lides tributárias, ou seja, aquelas que tomam por objeto litigioso matérias próprias que

compõem as relações jurídicas de direito material tributário.

Em segundo lugar, o tema certamente atrai maior atenção no contexto das

chamadas ações antiexacionais (ajuizadas pelos contribuintes) preventivas (cuja eficácia

normativa se projeta para o futuro, prospectivamente), em especial nos casos de alteração

ou modificação jurisprudencial. Inserimo-nos, portanto, no universo das chamadas relações

jurídicas continuativas, com os desdobramentos e influências da coisa julgada e da

rescisória que as tomam por objeto.

Tratam-se, portanto, de dois cortes epistemológicos empreendidos com o

objetivo de possibilitar um maior aprofundamento no estudo dos temas.

Page 144: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

144

1. Panorama e inovações da matéria no CPC/2015

A coisa julgada, tradicionalmente definida como qualidade atribuída aos efeitos

da sentença contra a qual não caiba mais recurso197

, tornando-a imutável, podendo ser

material ou meramente formal, passa, com o CPC/2015, por grandes reformulações.

No CPC em vigor fala-se em coisa julgada material como qualidade da

sentença de mérito (artigo 269) proferida em grau de cognição exauriente; e coisa julgada

formal como qualidade da sentença terminativa (artigo 267), projetando efeitos para dentro

do processo em que se origina e, portanto, permitindo a propositura de nova demanda.

Assim, a coisa julgada não é um mero efeito decorrente da sentença transitada

em julgado, pois os efeitos da sentença existem mesmo antes da formação da coisa julgada,

razão pela qual a coisa julgada consiste numa qualidade que, como corolário do princípio

da segurança jurídica, é elevada a nível constitucional e prevista dentre os direitos e

garantias fundamentais (CF, art. 5º, inciso XXXVI).

Com o CPC/2015, além de sofrer a devida atualização conceitual, a coisa

julgada passou a qualificar a decisão de mérito, não mais, genericamente, a sentença198

,

sendo vinculada, ainda, às questões principais decididas, não mais ao conceito restritivo de

lide, delimitado que era pelo princípio da congruência (pedido e dispositivo). Portanto, a

questão prejudicial, com algumas restrições, passa a transitar em julgado,

independentemente de pedido (antiga ação declaratória incidental do artigo 470),

197

Decreto-lei n.º 4.657/42 (Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro): “Art. 6º (...). § 3º - Chama-se

coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso.” 198

Tanto é que, segundo a súmula 336, aprovada pelo Fórum Permanente de Processualistas Civis, apoiado

pelo IBDP, num esforço interpretativo sobre o CPC/2015, tem-se que: “(artigo 966) Cabe ação rescisória

contra decisão interlocutória de mérito. (Grupo Sentença, Coisa julgada e Ação Rescisória).”

Page 145: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

145

lembrando que questão prejudicial (menos abrangente) não se confunde com questão

principal (mais abrangente). Vejamos o quadro comparativo:

CPC/2015 CPC em vigor

Art. 502. Denomina-se coisa julgada material a autoridade

que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não

mais sujeita a recurso.

Art. 467. Denomina-se coisa julgada material a eficácia,

que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais

sujeita a recurso ordinário ou extraordinário.

Art. 503. A decisão que julgar total ou parcialmente o

mérito tem força de lei nos limites da questão principal

expressamente decidida.

Art. 468. A sentença, que julgar total ou parcialmente a

lide, tem força de lei nos limites da lide e das questões

decididas.

§ 1o O disposto no caput aplica-se à resolução de

questão prejudicial, decidida expressa e incidentemente

no processo, se:

I - dessa resolução depender o julgamento do mérito;

II - a seu respeito tiver havido contraditório prévio e

efetivo, não se aplicando no caso de revelia;

III - o juízo tiver competência em razão da matéria e da

pessoa para resolvê-la como questão principal.

§ 2o A hipótese do § 1o não se aplica se no processo houver

restrições probatórias ou limitações à cognição que

impeçam o aprofundamento da análise da questão

prejudicial.

Com essas mudanças, a ideia de decisão passou a ser mais valorizada do que a

simples identificação da sentença, cujo conceito, aliás, foi novamente alterado para

contemplar tanto a definição conteudística como topológica (artigo 203, § 1º199

). Da

mesma forma, valorizou-se o princípio do contraditório e da não surpresa, previstos de

maneira inaugural logo nos artigos 9º e 10 do CPC/2015200

.

Consequentemente, foi preciso adequar o princípio da congruência, pois agora

o pedido deve ser objeto de interpretação, considerando-se o conjunto da postulação e os

fundamentos determinantes dos precedentes que o fundamentam. Fez-se necessário, então,

também atualizar os elementos integrantes da sentença, numa tentativa de regulação e

codificação, ainda que insuficiente, do modelo stare decisis. Vejamos:

199

“Art. 203 (...). § 1o Ressalvadas as disposições expressas dos procedimentos especiais, sentença é o

pronunciamento por meio do qual o juiz, com fundamento nos arts. 485 e 487, põe fim à fase cognitiva do

procedimento comum, bem como extingue a execução.” (grifamos). 200

“Art. 9o Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida.” “Art. 10.

O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se

Page 146: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

146

CPC/2015 CPC em vigor

Art. 322. O pedido deve ser certo. Art. 286. O pedido deve ser certo ou determinado. É

lícito, porém, formular pedido genérico: § 2o A interpretação do pedido considerará o conjunto da

postulação e observará o princípio da boa-fé.

Art. 489. São elementos essenciais da sentença:

Art. 458. São requisitos essenciais da sentença: III - o

dispositivo, em que o juiz resolverá as questões, que as

partes Ihe submeterem.

III - o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões

principais que as partes lhe submeterem.

§ 1o Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial,

seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:

V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de

súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes

nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta

àqueles fundamentos;

§ 3o A decisão judicial deve ser interpretada a partir da

conjugação de todos os seus elementos e em conformidade

com o princípio da boa-fé.

Desse modo, o dispositivo da decisão resolverá as questões principais

submetidas pelas partes, não estando, portanto, adstrito à moldura estática do pedido

formulado pelo autor, mas sim ao conjunto da postulação e aos fundamentos determinantes

dos precedentes que embasaram a resolução do caso. É a partir da conjugação de todos

esses elementos, aliado ao princípio da boa-fé e do contraditório, que a coisa julgada passa

a ser compreendida, de forma que, se antes a coisa julgada tinha força de lei nos limites do

pedido, agora, terá força de lei nos limites das questões principais.

Ou seja, as questões principais, o conjunto da postulação, os fundamentos

determinantes que embasam o julgado (ratio decidendi) e a boa-fé, agora, passam a

interagir e compor a coisa julgada, revelando a ampliação dos seus limites objetivos.

Com a racionalização e valorização dos precedentes, de igual maneira houve a

ampliação dos limites subjetivos da coisa julgada, que antes não poderia nem prejudicar,

nem beneficiar terceiros; agora, apenas não pode prejudicar:

CPC/2015 CPC em vigor

Art. 506. A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais

é dada, não prejudicando terceiros.

Art. 472. A sentença faz coisa julgada às partes entre as

quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando

terceiros. Nas causas relativas ao estado de pessoa, se

tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir

de ofício.”

Page 147: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

147

houverem sido citados no processo, em litisconsórcio

necessário, todos os interessados, a sentença produz

coisa julgada em relação a terceiros.

Tal expansão dos limites da coisa julgada não foge muito do que já vinha sendo

diagnosticado na própria doutrina e jurisprudência, como ressaltamos no Capítulo 6,

havendo tão somente a positivação das lacunas e patologias de nossa legislação processual.

Ainda que os motivos e a verdade dos fatos não façam coisa julgada (e nem

poderia ser diferente, diante da complexidade da dinâmica social, como vimos insistindo),

os precedentes utilizados para justificar a resolução do caso concreto compõem a

fundamentação jurídica da decisão e, nesse sentido, vinculam a normatividade da coisa

julgada. Ou seja, existe a coisa julgada formada no precedente que, por sua vez, imporá sua

observância no caso decidendo, conformando a nova coisa julgada produzida. Veja-se:

CPC/2015 CPC em vigor

Art. 504. Não fazem coisa julgada: Art. 469. Não fazem coisa julgada:

I - os motivos, ainda que importantes para determinar o

alcance da parte dispositiva da sentença;

I - os motivos, ainda que importantes para determinar o

alcance da parte dispositiva da sentença;

II - a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento

da sentença.

Il - a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da

sentença;

III - a apreciação da questão prejudicial, decidida

incidentemente no processo.

Art. 489. (...):

§ 1o Não se considera fundamentada qualquer decisão

judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:

V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de

súmula, sem identificar seus fundamentos

determinantes nem demonstrar que o caso sob

julgamento se ajusta àqueles fundamentos;

Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:

I – as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle

concentrado de constitucionalidade;

II – os enunciados de súmula vinculante;

III – os acórdãos em incidente de assunção de competência

ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento

de recursos extraordinário e especial repetitivos;

IV – os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal

Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal

de Justiça em matéria infraconstitucional;

V– a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais

estiverem vinculados.

§ 1o Os juízes e os tribunais observarão o disposto no art.

10 e no art. 489, § 1o, quando decidirem com fundamento

neste artigo. (...)

§ 4o A modificação de enunciado de súmula, de

jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento

de casos repetitivos observará a necessidade de

fundamentação adequada e específica, considerando os

princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e

da isonomia. (...)

Page 148: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

148

As disposições do artigo 927, portanto, reforçam e acompanham a expansão

objetiva da coisa julgada, na medida em que vinculam a sua normatividade. Não por outra

razão, o Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC), apoiado pelo IBDP, em

esforço interpretativo sobre as disposições do CPC/2105 aprovou as seguintes súmulas:

“317. (art. 927). O efeito vinculante do precedente decorre da adoção

dos mesmos fundamentos determinantes pela maioria dos membros do

colegiado, cujo entendimento tenha ou não sido sumulado. (Grupo:

Precedentes).”

“318. (art. 927). Os fundamentos prescindíveis para o alcance do

resultado fixado no dispositivo da decisão (obiter dicta), ainda que nela

presentes, não possuem efeito de precedente vinculante. (Grupo:

Precedentes).”

“319. (art. 927). Os fundamentos não adotados ou referendados pela

maioria dos membros do órgão julgador não possuem efeito de

precedente vinculante. (Grupo: Precedentes).”

Ou seja, a força normativa do precedente e da coisa julgada está diretamente

ligada ao debate da matéria e ao contraditório, promovendo-se a legitimação

jurisprudencial através da democratização do processo e da não surpresa.

E, acompanhando as evoluções em torno da coisa julgada, da racionalização e

valorização dos precedentes, invariavelmente também foi preciso atualizar diversos pontos

relativos à ação rescisória e à chamada relativização da coisa julgada.

Desse modo, se não é mais apenas o dispositivo que transita em julgado, senão

as questões principais objeto da decisão, o conjunto da postulação e os fundamentos

determinantes, de igual modo, não é mais a mera mudança de texto (em sentido estrito) que

influencia a normatividade da decisão, mas sim, como há tempos já entende a

jurisprudência, a mudança de norma: rescinde-se a normatividade da coisa julgada,

podendo haver a rescisão de capítulos da causa. Veja-se:

Page 149: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

149

CPC/2015 CPC em vigor

Art. 966. A decisão de mérito, transitada em julgado,

pode ser rescindida quando: (...)

V - violar manifestamente norma jurídica;

§ 3o A ação rescisória pode ter por objeto apenas 1 (um)

capítulo da decisão.

Art. 485. A sentença de mérito, transitada em julgado,

pode ser rescindida quando: (...)

V - violar literal disposição de lei; (...)

Art. 975. O direito à rescisão se extingue em 2 (dois) anos

contados do trânsito em julgado da última decisão

proferida no processo.

Art. 495. O direito de propor ação rescisória se extingue

em 2 (dois) anos, contados do trânsito em julgado da

decisão.

Portanto, se a mudança de lei declarada inconstitucional não altera,

automaticamente, a coisa julgada, da mesma forma a mudança de jurisprudência também

não opera efeitos automáticos sobre a chamada coisa julgada inconstitucional (aquela que

viola norma jurídica fixada em julgamento posterior).

Essa concepção de relativização da coisa julgada pela mudança de lei confronta

a ideia tradicional de jurisdição de CHIOVENDA201

, perspectiva sobre a qual a lei

inconstitucional causaria a inconstitucionalidade da sentença, de modo que a lei nula

tornaria a sentença nula, pois a sentença seria a vontade concreta da lei.

Vale registrar, de acordo com LUIZ GUILHERME MARINONI, que:

“Este raciocínio está ancorado na ideia de que a jurisdição tem a função

de atuar a vontade da lei. A adoção da teoria chiovendiana da

jurisdição, segundo a qual o juiz atua a vontade concreta da lei,

realmente pode conduzir à suposição de que a decisão de

inconstitucionalidade deve invalidar a sentença que atuou a vontade da

lei posteriormente declarada inconstitucional.”202

Em concepção um pouco diferente, temos as lições de CARNELUTTI, para

quem “o escopo do processo seria, então, a justa composição da lide.” Assim, a validade

da sentença não estaria, necessariamente, atrelada à validade da lei, da mesma forma que

não estaria atrelada à validade dos precedentes que a fundamenta.

201

Segundo a qual “a função do Estado que tem por escopo a atuação da vontade concreta da lei por meio

da substituição, pela atividade de órgãos públicos, da atividade de particulares ou de outros órgãos

públicos, já no afirmar a existência da vontade da lei, já no torna-la, praticamente efetiva.” CHIOVENDA

apud CÂMARA, Alexandre Freitas. “Lições de direito processual civil”, 17ª edição. Rio de Janeiro: Lumen

Juris, v. I, 2008, p. 66. 202

MARINONI, Luiz Guilherme. “Coisa julgada inconstitucional”. São Paulo: RT, 2008, p. 25.

Page 150: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

150

A chamada coisa julgada inconstitucional, portanto, é válida e eficaz enquanto

não for rescindida ou revista por outra decisão. E isso foi reforçado não apenas pelo artigo

966 do CPC/2015, como pelas alterações dos “embargos rescisórios”. Vejamos:

CPC/2015 CPC em vigor

Art. 535. A Fazenda Pública será intimada na pessoa de seu

representante judicial, por carga, remessa ou meio eletrônico,

para, querendo, no prazo de 30 (trinta) dias e nos próprios

autos, impugnar a execução, podendo arguir:

III - inexequibilidade do título ou inexigibilidade da

obrigação;

§ 5o Para efeito do disposto no inciso III do caput deste

artigo, considera-se também inexigível a obrigação

reconhecida em título executivo judicial fundado em lei ou

ato normativo considerado inconstitucional pelo Supremo

Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação

da lei ou do ato normativo tido pelo Supremo Tribunal

Federal como incompatível com a Constituição Federal, em

controle de constitucionalidade concentrado ou difuso.

§ 7o A decisão do Supremo Tribunal Federal referida no §

5o deve ter sido proferida antes do trânsito em julgado da

decisão exequenda.

§ 8o Se a decisão referida no § 5o for proferida após o

trânsito em julgado da decisão exequenda, caberá ação

rescisória, cujo prazo será contado do trânsito em julgado

da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal.

Art. 741. Na execução contra a Fazenda Pública, os

embargos só poderão versar sobre:

II - inexigibilidade do título;

Parágrafo único. Para efeito do disposto no inciso II do

caput deste artigo, considera-se também inexigível o

título judicial fundado em lei ou ato normativo

declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal

Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei

ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal

como incompatíveis com a Constituição Federal.

Primeiramente destacamos a adequação do novo dispositivo, que não fala mais

apenas em inexigibilidade do título, senão em inexequibilidade do título, pressuposto e

atributo oposto à executabibilidade. O título é exequível ou não exequível, enquanto a

exigibilidade ou inexigibilidade é atributo da obrigação.

Costuma-se diferenciar, em Direito tributário, exigibilidade de executabilidade,

representando graus diferentes de eficácia da obrigação, de modo que é possível, por

exemplo, uma obrigação exigível, mas não exequível. Por isso, o título executivo judicial

fundado em lei ou ato normativo considerado inconstitucional pelo STF, em certas

circunstâncias, perde sua executabilidade, não sua exigibilidade.

Além do mais, em linha com os atuais precedentes, ficou claro que a mudança

jurisprudencial, para que afete a executabilidade do título ou a exigibilidade da obrigação,

deve ter ocorrido antes da formação da coisa julgada no caso exequendo/rescindendo,

Page 151: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

151

hipótese esta que representa, em verdade, error in procedendo na aplicação da legislação

processual, sobretudo pela ofensa aos artigos 489 e 927 do CPC/2015.

Nesse sentido, veja-se o enunciado 307 do já citado Fórum Permanente de

Processualistas Civis (FPPC), segundo o qual:

307. (Art. 489, §1º; art. 1.013, §3º, IV) Reconhecida a insuficiência da

sua fundamentação, o tribunal decretará a nulidade da sentença e,

preenchidos os pressupostos do §3º do art. 1.013, decidirá desde logo o

mérito da causa. (Grupo: Competência e invalidades processuais).”

É o que, apesar dos questionáveis fundamentos, mas de certa forma

corroborando as alterações do CPC/2015, recentemente decidiu o STJ203

, in verbis:

“EMENTA. PROCESSUAL CIVIL. NULIDADE DE SENTENÇA. (...).

LEI POSTERIORMENTE DECLARADA INCONSTITUCIONAL

PELO SUPREMO. INSTITUTO DA QUERELA NULLITATIS

INSANABILIS. POSSIBILIDADE. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.

(...)

DA QUERELA NULLITATIS

Cinge-se a controvérsia ao cabimento de ajuizamento de querela

nullitatis com vistas a anulação de sentença proferida com base em lei

posteriormente declarada inconstitucional.

(...)

A ação de querela nullitatis é 'remédio vocacionado ao combate de

sentença contaminada pelos vícios mais graves dos erros de atividade

(errors in procedendo), nominados de vícios transrescisórios, que

tornam a sentença inexistente, não se sanando com o transcurso do

tempo" (REsp 1.201.666, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJ 4.8.2014).

No entanto, a doutrina e a jurisprudência modernas vêm ampliando as

hipóteses de cabimento do instituto da querela nullitatis para os

seguintes casos: a) quando é proferida sentença de mérito, a despeito de

faltar condições da ação; b) quando a sentença de mérito é proferida

em desconformidade com a coisa julgada anterior; e c) quando a

decisão é embasada em lei posteriormente declarada inconstitucional

pelo Supremo Tribunal Federal. (...)

Ante o exposto, com fundamento no art. 557, § 1º-A, do CPC, dou

provimento ao recurso especial, para que os autos retornem à instância

ordinária e prossiga no julgamento da querela nullitatis.”

(STJ, REsp 1.496.208/RS, Rel. Min. Humberto Martins, publicado em

25/03/2015 – grifamos).

203

No corpo do julgado são citados, ainda, outros dois precedentes relevantes: REsp 1.201.666, Rel. Min.

Luis Felipe Salomão, DJ 4/8/14; e REsp 1.252.902, Rel. Min. Raul Araújo, DJ 24/10/11.

Page 152: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

152

Não obstante, o regime da querela nullitatis – por error in procedendo – da

coisa julgada inconstitucional (hipótese da alteração jurisprudencial anterior), acabou

sendo absorvido, em nome da instrumentalidade, pelo chamado “embargos com efeitos

rescisórios”, manejado pela fazenda pública exatamente nessa situação.

Ou seja, de acordo com as disposições do artigo 535 do CPC/2015, havendo

decisão do STF em controle concentrado ou difuso de constitucionalidade, em sentido

oposto e anterior à formação da coisa julgada exequenda204

, é possível arguir a

inexequibilidade do título ou, dependendo do tipo de controle e da técnica exercida pelo

STF, a inexigibilidade da própria obrigação.

Diante de todas essas reformas, em linha com a valorização da racionalidade

stare decisis, o CPC/2015 acaba por promover alterações substanciais em matéria

tributária, em especial nas discussões que se iniciaram com o Parecer PGFN 492/2011.

1.1. Coisa julgada tributária e o Parecer PGFN n.º 492/2011: crítica metodológica

Quando analisamos a questão da coisa julgada e sua rescisão em matéria

tributária, devemos contrapor as inovações do CPC/2015 com as ideias do Parecer PGFN

492/11, o qual representou um marco no contencioso tributário, especialmente diante do

seu caráter normativo-prescritivo, ao menos do ponto de vista interno, da atuação da

administração fazendária, procurando conformar a racionalidade stare decisis.

204

Estamos falando, pois, de decisão com conteúdo de título executivo, o que, no direito tributário, é

representado por uma condenação à repetição do indébito e/ou declaração do direito à compensação.

Page 153: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

153

Nesse sentido, o ato buscou contornar os efeitos da coisa julgada (de eficácia

prospectiva) nas relações jurídicas continuativas, diante da alteração de jurisprudência,

assim considerada como mudança de direito, sendo assim ementado:

“Decisão judicial transitada em julgado que disciplina relação jurídica

tributária continuativa. Modificação dos suportes fático/jurídico. Limites

objetivos da coisa julgada. Superveniência de precedente

objetivo/definitivo do STF. Cessação automática da eficácia vinculante

da decisão tributária transitada em julgado. Possibilidade de voltar a

cobrar o tributo, ou de deixar de pagá-lo, em relação a fatos geradores

futuros.”

Estamos, pois, diante de uma específica coisa julgada: àquela que, em direito

tributário, gera efeitos prospectivos a favor ou contra o contribuinte, ou seja, uma tutela

jurisdicional preventiva de natureza declaratória negativa (ação declaratória ou mandado

de segurança que objetiva o reconhecimento da inexistência de relação jurídico-tributária).

Assim, a partir do fenômeno da valorização dos precedentes e, em seguida,

diante das disposições do Parecer PGFN 492/2011, surgiu o termo, já mencionado,

“commonlawnização”, em referência a uma deficiente incorporação do sistema stare

decisis pelo nosso modelo codificador de tradição românico-germânico da civil law.

O Parecer já não é novo, mas as discussões em torno do assunto não se

esgotam205

, ganhando interessantes contornos a partir do tratamento da coisa julgada e da

ação rescisória no CPC/2015, gerando possibilidades inovadoras para o exame do tema.

Como pano de fundo, tem-se a constante e indesejável oscilação da posição

jurisprudencial a respeito de julgamentos tributários e, consequentemente, os efeitos dessas

205

A propósito, citamos a interessante conversação, sob três distintas perspectivas, entre os artigos de

RIBEIRO, Diego Diniz (“Coisa julgada, direito judicial e ação rescisória em matéria tributária”); SOUZA,

Fernanda Donnabella Camano (“Efeitos materiais da sentença declaratória. Perspectivas no tempo e ruptura

destes efeitos em face de precedente do STF em sentido contrário”); e VITA, Jonathan Barros (“Tributação,

direito concorrencial e processo: as mudanças das circunstâncias de fato e de direito no campo da ação

revisional do artigo 471 do CPC”), in CONRADO, Paulo César (coord.). “Processo tributário analítico”, vol.

II. São Paulo: Noeses, 2013.

Page 154: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

154

modificações (alteração de direito206

) sobre a coisa julgada formada em favor ou desfavor

do contribuinte: ou seja, uma questão de limitação objetiva e subjetiva da coisa julgada207

.

Desde logo se faz necessária uma ressalva, na medida em que o Parecer

rechaça expressamente a tese da relativização da coisa julgada, ou seja, afirma que não está

a tratar dos efeitos retrospectivos da alteração jurisprudencial sobre a coisa julgada, mas

tão somente dos efeitos prospectivos, falando, portanto, em “cessação automática da

eficácia vinculante da decisão tributária transitada em julgada.”

Ou seja, na perspectiva do Parecer, cessação da eficácia vinculante da decisão

transitada em julgado seria algo diferente da relativização da coisa julgada, adotando como

critério justificador do discriminem a prospectividade ou retrospectividade da cobrança do

tributo que, a partir da nova jurisprudência, passa a se tornar devido.

Podemos traduzir o entendimento na seguinte contextualização:

(i) uma legislação veicula norma jurídica “A”, delimitando determinada regra-matriz

geral e abstrata com incidência mensal (PIS/COFINS do regime cumulativo, com

incidência sobre o faturamento, assim considerado a totalidade das receitas);

(ii) em ação preventiva movida por um contribuinte, a exigência é declarada

parcialmente inconstitucional, com a formação de uma norma jurídica “B” para a

adequação da base de cálculo do tributo, limitando o conceito de faturamento;

206

Reiteramos as premissas desenvolvidas no curso do trabalho, de que uma alteração de direito nunca está

descolada ou desvinculada das questões de fato. 207

Segundo o Parecer: “(...) 15. Deixando de lado as possibilidades de alterações nos suportes fáticos

capazes de fazer cessar a eficácia vinculante da decisão tributária passada em julgado, que são inúmeras,

tantas quantas permite a liberdade humana, passa-se a centrar o foco no aspecto que verdadeiramente

interessa ao presente Parecer, donde vem a pergunta: quais são as alterações nas circunstâncias jurídicas

existentes ao tempo da prolação da decisão tributária posteriormente transitada em julgado que são capazes

de fazer cessar a sua eficácia vinculante? (...).”

Page 155: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

155

(iii) posteriormente, a jurisprudência que fundamentou a norma “B” é modificada,

formando uma norma jurídica “C” que, com base em fundamentos não discutidos na

ação do contribuinte, reconhece e reformula (interpretação conforme) a

constitucionalidade da norma “A”, relativamente aos setores de atividade econômica

em que atua este contribuinte (o conceito limitativo de faturamento deixa de

sustentar a não incidência do PIS/COFINS sobre as receitas deste contribuinte);

(iv) diante disso, o Parecer entende que a norma jurídica “B” cessa,

automaticamente, sua eficácia vinculante prospectiva e, por isso, o contribuinte passa

a dever o tributo antes desonerado, de acordo com o que prescreve a norma “C”. Em

hipótese inversa, o contribuinte poderia deixar de recolher o tributo veiculado pela

norma “A”, mas não poderia apurar indébitos passados;

.: (v) ou seja, norma “B” e norma “C” teriam idênticas, porém contrapostas, eficácias

vinculativas: a eficácia vinculativa de “C” seria imediata (automática), fazendo

cessar, também imediata e automaticamente, a eficácia vinculativa de “B”208

. Com a

ressalva de que a norma “C” não pode gerar lançamentos retroativos, e nem indébitos

tributários passados: os “fatos geradores” anteriores à “C” ficam blindados,

independentemente do tipo de controle exercido e eventual modulação de efeitos.

Desse modo, estamos diante de um dilema semântico em torno dos termos

“cessação da eficácia”, “relativização” ou “rescisão” da coisa julgada, o que pensamos não

fazer sentido, pois na essência tratamos do mesmo fenômeno: o revolvimento da coisa

julgada formada em descompasso com a jurisprudência (no caso) posterior.

208

No item 1.3, adiante, verificaremos que esse entendimento não se compatibiliza com a atual

jurisprudência firmada pelo STF, em especial no RE nº 730.462, julgado em sede de repercussão geral.

Page 156: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

156

Temos, portanto, uma única classe (rescisória), sujeita a regimes jurídicos

diversos a depender do momento e da espécie de controle de constitucionalidade exercido

no julgado paradigma que lhe embasa e da eventual modulação de seus efeitos. Ou seja, é o

tipo de controle e a extensão dos efeitos do paradigma que permitirão, ou não, falar em

rescisão da coisa julgada que lhe seja contrária, determinando, também, o seu alcance.

Parece-nos, portanto, que o Parecer utiliza-se de recurso retórico para designar

o mesmo fenômeno, porém atribuir-lhe regime próprio que independe de qualquer

providência jurisdicional. Assim, como não se trataria de rescisão de julgado, mas sim de

mera cessação de eficácia da coisa julgada, não haveria problema em operar tal efeito

imediata e automaticamente, sem qualquer intermediação jurisdicional.

De acordo com o Parecer, a rescisória estaria no plano da validade, enquanto a

“cessação da eficácia” no plano da vigência (ou vigor), o que acaba por criar diferentes

normas sancionatórias a partir dos planos em que se ataca a coisa julgada. Mas, como

sabemos, a rescisória pode modular a sancionar quaisquer desses planos, sem que

alteremos o regime jurídico a que está sujeita.

Nesse sentido, ressaltamos que o impedimento para a cobrança passada do

tributo não decorre da eficácia retroativa ou prospectiva da norma “C” sobre a norma “B”,

tendo fundamento, em verdade, na irretroatividade e anterioridade tributária, na segurança

jurídica, proteção da confiança e da boa-fé que se impõem com a mudança jurisprudencial.

Ao mesmo tempo, o critério diferenciador (efeito retrospectivo e/ou

prospectivo) é relativo, já que a própria ação rescisória, em seu juízo rescindendo de

rejulgamento da causa, nem sempre possui efeito retrospectivo209

, podendo também ser

209

A ação possui uma natureza necessária, desconstitutiva (juízo rescisório); e outra possível, declaratória,

constitutiva, condenatória, mandamental ou executiva, verificada no juízo rescindendo.

Page 157: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

157

modulado, especialmente quando falamos de rescisória contra sentença declaratória de

inexistência de relação tributária (ação antiexacional preventiva, com efeito prospectivo).

É de certo modo até paradoxal, pois o próprio Parecer PGFN 492/2011 admite

o termo relativização da coisa julgada na hipótese dos chamados “embargos rescisórios”

(artigo 741 do CPC/73), onde há, de forma parecida com suas balizas teóricas, a mera

inibição da eficácia executiva do título judicial (em tese, outro caso de cessação).

Em outras palavras, de acordo com o entendimento do Parecer, a coisa julgada

formada em ação declaratória perderia sua eficácia vinculante automaticamente, enquanto

a coisa julgada formada em ação com conteúdo condenatório não perderia sua eficácia

automaticamente, dependendo de pronunciamento judicial.

É, portanto, esse o problema metodológico que nos parece relevante e que gera

efeitos indesejados e incompatíveis quando analisamos a experiência do contencioso

tributário, independentemente do dilema semântico que se pretende impor.

A rigor, não há como se compatibilizar as premissas teóricas do Parecer com

suas propostas metodológicas que sustentam a “cessação automática” da coisa julgada, o

que fica evidente com os novos parâmetros rescisórios veiculados pelo CPC/2015.

No campo teórico, o Parecer é inteiramente impregnado por uma postura

pragmatista, pautado que é por uma racionalidade do sistema stare decisis de valorização

jurisprudencial, encampando e admitindo a segurança jurídica concreta, num processo

indutivo e abdutivo que, portanto, nega e contrapõe o dogma formalista da civil law.

Ao mesmo tempo, adota a metodologia dedutiva que procura mecanizar, de

forma automática e nos termos de uma lei, a incidência do precedente racionalizador, em

prejuízo à continuidade e respeito às decisões judiciais: ou seja, um nítido desencaixe de

métodos que acaba retroalimentando o problema da ineficiência dos conceitos legais.

Page 158: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

158

São oportunas, pois, as lições de LUIZ GUILHERME MARINONI, segundo o

qual: “Impedir que a lei declarada inconstitucional produza efeitos é muito diferente do

que negar efeitos a um juízo de constitucionalidade, legitimado pela própria

Constituição.”210

Não é possível, pois, valorizar os precedentes e conferir racionalização ao

contencioso, mas, ao mesmo tempo, continuar operando sob o modelo clássico da lógica

mecanicista, onde prevale a não-contradição, identidade e terceiro excluído como

postulados gerais e apriorísticos. A mudança de objeto impõe, incontornavelmente, a

mudança dos métodos, sendo preciso, portanto, evoluir a lógica subsuntiva e tratar os

precedentes de maneira responsável.

Em resumo, o Parecer é extremamente atual ao considerar a evolução do

sistema de precedentes, mas ainda assim está envolvido numa crise metodológica que ele

mesmo pretende superar, qual seja, a lógica universal de um sistema dedutivo de civil law,

que busca uma subsunção mecânica e automática da lei ao caso concreto.

Não basta substituir o termo lei pelo termo precedente, mas ao mesmo tempo

continuar operando a unidade, coerência e completude como postulados gerais que

preenchem dedutivamente o sistema e, assim, sustentar a incidência automática do

paradigma, com efeito rescisório imediato (um silogismo lógico), sem a necessidade de

qualquer providência jurisdicional (ainda que administrativa), sob pena de continuarmos

no mesmo dilema, envolvidos numa segurança jurídica abstrata, onde dispositivos do

julgado são aplicados como lei, desconectados dos fatos e dos fundamentos jurídicos.

210

“Precedentes obrigatórios”, 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 449.

Page 159: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

159

Além de tudo isso, é o próprio CPC/2015 que, ao modificar o tratamento da

coisa julgada e da rescisória, acaba por infirmar a “cessação automática” da eficácia

vinculante da coisa julgada inconstitucional, como veremos adiante.

1.2. Os novos regimes rescisórios incorporados pelo CPC/2015

Tivemos a oportunidade de analisar, no item 1, as mudanças gerais promovidas

pelo CPC/2015 relativamente à rescisória. Agora, cumpre-nos retornar, especificamente,

para os regimes rescisórios adotados quando falamos de adequação jurisprudencial,

sobretudo diante do novo artigo 535. Retomemos o quadro comparativo:

CPC/2015 CPC em vigor

Art. 535. A Fazenda Pública será intimada na pessoa de seu

representante judicial, por carga, remessa ou meio eletrônico,

para, querendo, no prazo de 30 (trinta) dias e nos próprios

autos, impugnar a execução, podendo arguir:

III - inexequibilidade do título ou inexigibilidade da

obrigação;

§ 5o Para efeito do disposto no inciso III do caput deste

artigo, considera-se também inexigível a obrigação

reconhecida em título executivo judicial fundado em lei ou

ato normativo considerado inconstitucional pelo Supremo

Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação

da lei ou do ato normativo tido pelo Supremo Tribunal

Federal como incompatível com a Constituição Federal, em

controle de constitucionalidade concentrado ou difuso.

§ 7o A decisão do Supremo Tribunal Federal referida no §

5o deve ter sido proferida antes do trânsito em julgado da

decisão exequenda.

§ 8o Se a decisão referida no § 5o for proferida após o

trânsito em julgado da decisão exequenda, caberá ação

rescisória, cujo prazo será contado do trânsito em julgado

da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal.

Art. 741. Na execução contra a Fazenda Pública, os

embargos só poderão versar sobre:

II - inexigibilidade do título;

Parágrafo único. Para efeito do disposto no inciso II do

caput deste artigo, considera-se também inexigível o

título judicial fundado em lei ou ato normativo

declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal

Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei

ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal

como incompatíveis com a Constituição Federal.

Art. 966. A decisão de mérito, transitada em julgado, pode

ser rescindida quando: (...)

V - violar manifestamente norma jurídica;

§ 3o A ação rescisória pode ter por objeto apenas 1 (um)

capítulo da decisão.

Art. 485. A sentença de mérito, transitada em julgado,

pode ser rescindida quando: (...)

V - violar literal disposição de lei; (...)

Art. 975. O direito à rescisão se extingue em 2 (dois) anos

contados do trânsito em julgado da última decisão proferida

no processo.

Art. 495. O direito de propor ação rescisória se extingue

em 2 (dois) anos, contados do trânsito em julgado da

decisão.

Desde logo, fica evidenciado dois distintos regimes rescisórios em caso de

mudança jurisprudencial, sendo (i) um comum (artigo 966), previsto para a rescisão das

Page 160: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

160

sentenças não dotadas de força executiva (eminentemente declaratórias); e (ii) outro

especial (artigo 535), previsto para a rescisão das sentenças com força executiva.

Esse regime especial, ainda, é subdividido em dois, sendo (ii.a) um para o caso

de mudança jurisprudencial anterior à formação da coisa julgada rescindenda/exequenda

(artigo 535, §§ 5º e 7º); e (ii.b) outro para o caso de mudança jurisprudencial posterior à

formação da coisa julgada rescindenda/exequenda (artigo 535, § 8º), cujo termo a quo será

contato a partir do trânsito em julgado da decisão paradigma211

.

O regime rescisório especial, portanto, é mais restrito, podendo ser manejado

contra decisão com força de título executivo (podendo ser tanto condenatória, como

constitutiva e/ou, eventualmente, declaratória), sendo que, quando formada antes da

alteração jurisprudencial, deverá ser objeto de ação própria; e quando formada após a

alteração jurisprudencial, poderá ser atacada nos próprios embargos à execução (agora,

impugnação ao cumprimento de sentença).

Em outras palavras, quando a modificação jurisprudencial (mudança no estado

de direito) for posterior à coisa julgada com força de título executivo, deve-se propor a

rescisória especial com prazo de dois anos contados do novo paradigma; quando a

modificação jurisprudencial for anterior à formação da coisa julgada exequenda, pode-se

arguir a relativização no prazo e no corpo da impugnação ao cumprimento de sentença.

Ainda no caso da rescisória especial por alteração jurisprudencial anterior

(“embargos rescisórios”), em atenção aos princípios da confiança, boa-fé e irretroatividade

211

Observamos, apenas, a ausência de previsão desse novo prazo rescisório também no artigo 975, que trata

exatamente do Capítulo da ação rescisória. De todo modo, parece-nos que prevaleceu a doutrina de Nelson

Nery Jr. e Georges Abboud sobre o assunto, no sentido de proteção da coisa julgada como crítica à doutrina

relativista, ou da relativização da chamada coisa julgada inconstitucional. Conforme Lenio Streck, “o

enfraqueciomento do instituto da coisa julgada é um forte elemento predador da autonomia do direito. É sob

esse aspecto que devem ser vistos os arts. 475-l, § 1º, e 741, parágrafo único do CPC. Por isso, têm razão

Nery Jr. e Abboud.” STRECK, Lenio Luiz. “Jurisdição constitucional e decisão jurídica”, 3ª edição. São

Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 565.

Page 161: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

161

em matéria tributária212

, entendemos que os indébitos reconhecidos pela decisão

exequenda/rescindenda, anteriores à formação do novo paradigma, deverão ser mantidos.

A situação seria esta:

Ou seja, o indébito 1, ainda que acolhido pela coisa julgada quando já existente

mudança jurisprudencial (portanto mudança anterior à formação da coisa julgada),

continuaria tendo sua executabilidade resguardada. E ainda, o conteúdo meramente

declaratório (prospectivo) da coisa julgada continuaria plenamente vigente e eficaz,

devendo ser objeto de ação rescisória comum ou ação revisional.

Desse modo, a sentença meramente declaratória, ou seja, aquela que objetiva

tão somente resguardar relações jurídicas prospectivas, ficará sujeita apenas à rescisória

comum, cujo prazo para ajuizamento é de dois anos contados do seu trânsito em julgado,

não se submetendo à rescisória especial por alteração jurisprudencial anterior ou posterior.

Caso o prazo decadencial dessa rescisória já tenha sido esgotado, continua em

vigor no CPC/2015 a chamada ação revisional. Vejamos:

CPC/2015 CPC em vigor

Art. 505. Nenhum juiz decidirá novamente as

questões já decididas relativas à mesma lide, salvo:

I - se, tratando-se de relação jurídica de trato

continuado, sobreveio modificação no estado de fato ou de

direito, caso em que poderá a parte pedir a revisão do que

foi estatuído na sentença; (...)

Art. 471. Nenhum juiz decidirá novamente as

questões já decididas, relativas à mesma lide, salvo:

I - se, tratando-se de relação jurídica continuativa,

sobreveio modificação no estado de fato ou de direito; caso

em que poderá a parte pedir a revisão do que foi estatuído

na sentença; (...)

212

Temas muito bem trabalhados por Misabel Abreu Machado Derzi, em sua obra “Modificações da

jurisprudência no Direito Tributário”. São Paulo: Noeses, 2009.

Propositura ação

Paradigma Coisa julgada

no sentido 1

Jurisprudência 1 Jurisprudência 2

Indébito 2 Indébito 1

Page 162: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

162

Por tais razões, há que se distinguir, a partir de então, os capítulos e

fundamentos da coisa julgada, bem como o momento da alteração jurisprudencial, pois

estarão sujeitos a diferentes regimes rescisórios213

.

Até porque, como já esclareceu o próprio STF214

ao definir e especificar o

alcance da Súmula 239215

, as eficácias normativas das decisões tributárias variam de

acordo com o tipo de relação jurídica que se discute em cada ação, a saber:

“(...) A súmula 239/STF baseia-se em dois precedentes, o AI 11.227-

Embargos (DJ de 10/2/1945) e o RE 59.423-Embargos (DJ de

12/6/1970). Ambos os precedentes fazem uma importante distinção

para fins de cálculo da extensão dos efeitos da coisa julgada relativa à

tributação.

Naquelas oportunidades, entendeu a Corte que as sentenças que

afastassem relações jurídicas tributárias individuais e concretas

ficavam circunscritas ao tempo em que ocorridos os fatos jurídicos

tributários. É o típico caso no qual pede-se a anulação de lançamento

tributário.

Em sentido diverso, se a sentença afastasse relações jurídicas

tributárias individuais, mas de menor densidade de concreção (mais

abstratas), de modo a proibir a constituição do crédito tributário,

irrelevante a presença de circunstâncias de fato distintivas, os efeitos

da coisa julgada se projetariam para o futuro. É esta a atualização

que faço da nomenclatura utilizada nos antigos precedentes. (...)”

Por exemplo, uma declaratória de inexistência de relação jurídico-tributária

transitada em julgado de forma procedente, com pedido prospectivo para resguardar

recolhimentos futuros e pedido retrospectivo para declarar o direito à compensação dos

indébitos passados. Havendo mudança jurisprudencial antes da formação da coisa julgada,

a fazenda deverá manejar: (i) ação rescisória comum, no prazo de dois anos, contra o

capítulo declaratório (prospectivo), caso deseje lançar/cobrar tributos relativos a fatos

213

Tal entendimento, aliás, de certa forma já foi utilizado pela própria PGFN em seu Parecer 121/2015, ao

tratar da “teoria dos capítulos da sentença” e da unicidade recursal, quando então sustentou ser

“perfeitamente razoável a tese de que a existência de partes autônomas e distintas em uma decisão

permitiria uma flexibilização à unicidade no segundo grau de jurisdição (...).” 214

RE n.º 597.678, Relator Min. Joaquim Barbosa, julgado em 10/11/2010. 215

“Decisão que declara indevida a cobrança do imposto em determinado exercício não faz coisa julgada

em relação aos posteriores.”

Page 163: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

163

geradores ocorridos nos últimos cinco anos; ou (i.a) ação revisional contra o capítulo

declaratório, caso já tenha escoado o prazo de dois anos da rescisória comum, hipótese em

que poderá lançar/cobrar os tributos relativos a fatos geradores ocorridos a partir de então;

e (ii) “embargos rescisórios” contra o capítulo condenatório (retrospectivo) da sentença, de

forma a retirar a sua executabilidade (respeitados os indébitos anteriores ao paradigma).

Se a mudança jurisprudencial for posterior à formação da coisa julgada, a

fazenda pública deverá manejar: (i) ação rescisória especial contra o capítulo condenatório

(retrospectivo) da sentença (respeitados os indébitos anteriores ao novo paradigma), no

prazo de dois anos da formação da decisão do STF, podendo e devendo, nessa hipótese,

requerer uma tutela provisória para suspender a executabilidade do título executivo

judicial; e (ii) ação revisional contra o capítulo declaratório (prospectivo) da sentença, não

cabendo rescisória comum para atingir e permitir o lançamento de fatos geradores

passados, preservando-se, com isso, a segurança jurídica e os princípios da confiança, boa-

fé, irretroatividade e anterioridade em matéria tributária.

Veja-se que o Parecer PGFN 492/2011 volta-se, essencialmente, para a

alteração jurisprudencial posterior à formação da coisa julgada, não distinguindo os

capítulos da sentença rescindenda, concluindo que, indistintamente, tal decisão

supervenientemente inconstitucional teria sua eficácia vinculativa cessada de forma

automática, o que, como vimos, não se compatibiliza com o CPC/2015.

De todo modo, o que temos, em resumo, são novos horizontes para a superação

das patologias decorrente das constantes reviravoltas jurisprudenciais, algo indesejável do

ponto de vista da segurança jurídica. E o CPC/2015, reagindo sintomaticamente, procurou

regulamentar: (i) a fonte dos problemas, com a veiculação de uma incipiente teoria do

Page 164: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

164

precedente no artigo 489; e (ii) a resolução dos problemas, com a prescrição e demarcação

dos novos regimes rescisórios para a compatibilização jurisprudencial.

Por fim, vale ressaltar que esse novo quadro rescisório aplica-se às decisões

transitadas em julgado após a entrada em vigor do CPC/2105, conforme regra de direito

intertemporal veiculada no artigo 1.057, segundo o qual: “o disposto no art. 525, §§ 14 e

15, e no art. 535, §§ 7º e 8º, aplica-se às decisões transitadas em julgado após a entrada

em vigor deste Código, e, às decisões transitadas em julgado anteriormente, aplica-se o

disposto no art. 475-L, § 1º, e no art. 741, parágrafo único, da Lei nº 5.869/1973.”

1.3. Análise jurisprudencial do tema e atualização da Súmula 343 do STF

O tema “relativização da coisa julgada inconstitucional” tem sido objeto de

diversos questionamentos judiciais, tendo aportado no STF, especialmente, por conta de

discussões contra a administração pública, levando à reanálise da Súmula 343216

.

Passemos, então, aos julgados que envolvem o tema para, a partir deles,

identificar alguma orientação interpretativa.

No RE 730.462, com repercussão geral reconhecida, julgado em 28/05/2015,

decidiu-se que não é possível desconstituir, após o prazo da rescisória, a coisa

julgada que negou honorários advocatícios, com fundamento em lei posteriormente

declarada inconstitucional em sede de controle concentrado. Nos termos da ementa,

“a decisão do Supremo Tribunal Federal declarando a constitucionalidade ou a

inconstitucionalidade de preceito normativo não produz a automática reforma ou

216

“Não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver

baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais.”

Page 165: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

165

rescisão das decisões anteriores que tenham adotado entendimento diferente.

Para que tal ocorra, será indispensável a interposição de recurso próprio ou, se

for o caso, a propositura de ação rescisória própria, nos termos do artigo 485 do

CPC, observado o respectivo prazo decadencial.” No caso, a coisa julgada foi

formada na vigência de uma lei que impedia honorários advocatícios nas demandas

contra o FGTS, tendo essa lei sido posteriormente declarada inconstitucional,

ensejando a rescisória para atacar e adequar o conteúdo condenatório da sentença,

ou seja, trata-se de coisa julgada fundada em norma posterirormente modificada

pela jurisprudência do STF em sede de controle concentrado, sendo que, de acordo

com o Min. Rel. Teori Zavascki, “não se pode confundir a eficácia normativa de

uma decisão que declara a inconstitucionalidade – e que retira a norma do plano

jurídico com efeitos ex tunc (pretéritos) – com a eficácia executiva, ou seja, com o

efeito vinculante dessa decisão (...) o efeito vinculante é pró-futuro, ou seja,

começa a operar da decisão do Supremo em diante, não atingindo atos anteriores.

Quanto ao passado, é preciso que a parte que se sentir prejudicada proponha uma

ação rescisória.” Segundo a PGFN217

, em parte correta, esse tema não se

confundiria com a matéria objeto do Parecer 492/2011, na medida em que trata dos

efeitos retrospectivos da coisa julgada inconstitucional, enquanto o Parecer aborda

os efeitos prospectivos relativamente à relações de trato sucessivo. Desse modo,

para o órgão fazendário ainda prevalece o entendimento da rescisão automática

(cessação da eficácia) da coisa julgada inconstitucional, relativamente aos fatos

geradores continuativos (capítulo declaratório, prospectivo, da sentença

rescindenda). Mas veja-se que o presente julgado faz uma distinção, correta ou não,

entre eficácia normativa (retrospectiva) e eficácia executiva (prospectiva) da

217

Nota n.º 735/2014/PGFN/CASTF.

Page 166: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

166

decisão paradigma para, com isso, justificar a impossibilidade de rescisão

automática da coisa julgada inconstitucional. O Parecer PGFN, por sua vez, de

certa forma também trabalha com essa ideia, mas sob o ponto de vista da decisão

rescindenda, dizendo que a alteração do suporte fático e/ou jurídico retira

automaticamente a sua eficácia vinculante (executiva). Contudo, de acordo com o

Min. Teori, a eficácia executiva do novo paradigma não é automática, vale dizer,

não desconstitui automaticamente as coisas julgadas anteriormente formadas de

forma contrária; para a PGFN, a eficácia executiva da coisa julgada

inconstitucional é cessada automaticamente com o advento do novo paradigma

(vide item 1.1), o que é inconciliável. Veja-se que o presente julgado, portanto,

infirma a conclusão do Parecer 492/2011, de que o novo paradigma possuiria

eficácia vinculante (executiva) imediata. Além do mais, no regime do CPC/2015,

apesar de não tratar de matéria tributária, essa coisa julgada (capítulo

condenatório), diante da modificação jurisprudencial posterior, em tese poderia ser

objeto da rescisória especial, com prazo de 2 (dois) anos contados do paradigma;

No RE 596.663, também com repercussão geral reconhecida, julgado em

29/09/2014, discutiu-se a limitação temporal da coisa julgada que reconheceu a

incorporação de determinado percentual à remuneração de um servidor, inclusive

para o futuro (conteúdo condenatório de trato sucessivo), percentual este que

posteriormente foi objeto de dissídio coletivo. Assim, decidiu-se que houve

alteração no estado de fato e, consequentemente, o exaurimento da eficácia da

sentença. Em resumo, em execução de julgado contra o Banco do Brasil, a sentença

exequenda foi limitada no tempo, razão pela qual o trabalhador/exequente ajuizou

ação rescisória para que fosse reestabelecida a condenação, tendo sido negada a

pretensão rescisória sob o fundamento de alteração posterior no estado de fato e de

Page 167: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

167

direito, já que o percentual remuneratório foi incorporado na remuneração do

servidor por dissídio coletivo. Ou seja, estava em discussão, em sede de execução

de título judicial na justiça do trabalho, o conteúdo condenatório da decisão

fundada em norma cujo suporte fático foi posteriormente alterado, tendo o

exequente ajuizado ação rescisória, negada por conta do adequado cotejo analítico

promovido pela decisão rescindenda. O presente julgado, portanto, trabalha com a

ideia da cláusula rebus sic stantibus, não tratando de matéria tributária ou mesmo

da alteração da posição jurisprudencial;

No STJ, quando do julgamento do REsp 1.118.893, em sede de repetitivo, negou-se

a possibilidade de novas cobranças de CSLL, em violação à coisa julgada

declaratória (prospectiva) existente em favor do contribuinte, pois ainda que

houvesse mudança de texto, não houve mudança de norma, também não se

podendo falar em cessação automática da eficácia da coisa julgada em razão da

posterior e parcial alteração de jurisprudência. No caso, existiu mudança de lei

posterior à formação da coisa julgada e, então, a Fazenda Nacional passou a lançar

e cobrar a exigência, tendo o contribuinte se insurgido em embargos à execução

fiscal, alegando violação da coisa julgada. Contudo, se discutiu apenas o alcance da

Súmula 239 do STF nas relações continuativas (CPC, artigo 471, I), não tendo sido

debatido, ao menos diretamente, a tese fazendária da “relativização/cessação

automática da coisa julgada inconstitucional” (Parecer PGFN 492/11), até porque

foi reconhecido que a coisa julgada continuava produzindo efeitos. De todo modo,

verifica-se que a RFB, utilizando-se de forma indevida do Parecer PGFN 492/2011,

passou a autuar os contribuintes diante da alteração do texto de lei que embasou as

coisas julgadas em torno da CSLL, enquanto o Parecer rechaça a tese positivista

que confunde texto de lei com norma.

Page 168: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

168

Ainda que assim não fosse, o voto condutor do Min. Arnaldo Esteves Lima também

é claro ao afirmar que “o fato de o Supremo Tribunal Federal posteriormente

manifestar-se em sentido oposto à decisão judicial transitada em julgado em nada

pode alterar a relação jurídica estabilizada pela coisa julgada, sob pena de negar

validade à própria existência do controle difuso de constitucionalidade,

fragilizando, sobremodo, a res judicata, com imensurável repercussão negativa no

seio social”. A questão da CSLL está sendo discutida no CARF, que tem recebido

autuações contra contribuintes que possuem decisão transitada em julgado e, em

sua Câmara Superior, tem mantido o entendimento do STJ218

.

Na perspectiva do CPC/2015, essa coisa julgada declaratória, com a modificação

jurisprudencial posterior (se confirmada), deverá ser objeto de ação rescisória

comum (se dentro do prazo) ou ação revisional, se decorrido o prazo rescisório;

Por fim e talvez mais relevante, temos o RE 590.809, julgado sob repercussão geral

em 22/10/2014, no qual se discutiu especificamente o tema da ação rescisória para

uniformização jurisprudencial. No caso, não foi reconhecida a possibilidade de

rescisão automática do acórdão que autorizou o crédito de IPI em relação a insumos

isentos, não tributados ou tributados à alíquota 0, fundado em jurisprudência então

218

Conforme acórdão CSRF 91.01-002.087, de 10/03/15, no qual de cancelou o AIIM lavrado contra

contribuinte detentor de coisa julgada em seu favor: “Contribuição Social sobre o Lucro Líquido - CSLL

Ano-calendário: 2005 RELAÇÃO JURÍDICO TRIBUTÁRIA CONTINUATIVA. DECISÃO TRANSITADA EM

JULGADA EM AÇÃO JUDICIAL QUE DECLARA A INCONSTITUCIONALIDADE DA EXIGÊNCIA DA

CSLL NOS TERMOS DA LEI Nº 7.689/88. COISA JULGADA. DECISÃO POSTERIOR EM AÇÃO DIRETA

DE CONSTITUCIONALIDADE. EFEITOS. ALCANCE TEMPORAL. RECURSO ESPECIAL 1.118.893 MG

(2009/00111359), SUBMETIDO AO REGIME DO ARTIGO 543C DO CPC. ARTIGO 62- A DO

REGIMENTO INTERNO DO CARF. Segundo entendimento do STJ proferido no julgamento do Recurso

Especial 1.118.893 MG, submetido ao artigo 543 C do CPC: Nos casos que envolvem relação jurídico

tributária continuativa, a decisão transitada em julgado, declarando a inexistência de relação jurídico

tributária entre o contribuinte e o fisco, faz coisa julgada em relação a períodos posteriores. Nos casos em

que há decisão judicial transitada em julgado, em controle difuso, declarando a inexistência de relação

jurídico tributária entre o contribuinte e o fisco, mediante declaração de inconstitucionalidade de lei que

instituiu determinado tributo, a decisão posterior, em controle concentrado, mediante Ação Declaratória de

Constitucionalidade, em sentido oposto à decisão judicial transitada em julgado em nada pode alterar a

relação jurídica estabilizada pela coisa julgada.”

Page 169: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

169

pacificada pelo STF, mesmo que posteriormente modificada. Ou seja, negou-se a

rescisória por divergência interpretativa, ainda que a divergência seja

constitucional, tendo sido rediscutido o alcance da Súmula 343, in verbis:

“(...) AÇÃO RESCISÓRIA – VERBETE Nº 343 DA SÚMULA DO

SUPREMO. O Verbete nº 343 da Súmula do Supremo deve de ser

observado em situação jurídica na qual, inexistente controle concentrado

de constitucionalidade, haja entendimentos diversos sobre o alcance da

norma, mormente quando o Supremo tenha sinalizado, num primeiro

passo, óptica coincidente com a revelada na decisão rescindenda.”

Em sua manifestação no Plenário, e já se referindo às orientações do então projeto

do novo CPC, o Min. Luiz Fux registrou que:

“(...) esse é um tema moderníssimo, é um tema que está à altura da

composição da Corte, é um tema que nós deveríamos nos debruçar com

essa ótica que foi aqui suscitada pelo Ministro Marco Aurélio, a quem

parabenizo pelo passo adiante que promoveu ao dar uma nova exegese a

essa Súmula nº 343: interpretação controvertida não pode gerar

violação a literal dos processos.”

O Min. Celso de Mello, por sua vez, transcreveu seus reiterados entendimentos no

sentido de que:

“(...) superveniência de decisão do Supremo Tribunal Federal,

declaratória de inconstitucionalidade de diploma normativo utilizado

como fundamento do título judicial questionado, ainda que impregnada

de eficácia ‘ex tunc’ – como sucede, ordinariamente, com os julgamentos

proferidos em sede de fiscalização concentrada (RTJ 87/758 – RTJ

164/506-509 – RTJ 201/765) –, não se revela apta, só por si, a

desconstituir a autoridade da coisa julgada, que traduz, em nosso

sistema jurídico, limite insuperável à força retroativa resultante dos

pronunciamentos que emanam, ‘in abstracto’, da Suprema Corte.

Doutrina. Precedentes.

(...)

Cabe ter presente, neste ponto, o que a própria jurisprudência

constitucional do Supremo Tribunal Federal vinha proclamando, já há

quatro (4) décadas, a respeito da invulnerabilidade da coisa julgada em

sentido material, enfatizando, em tom de grave advertência, que

sentenças transitadas em julgado, ainda que inconstitucionais, somente

poderão ser invalidadas mediante utilização de meio instrumental

adequado, que é, no domínio processual civil, a ação rescisória.”

(grifamos).

Page 170: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

170

Portanto, o que restou decidido, em sede de repercussão geral, é que: (i) se deve

aplicar a Súmula 343 mesmo diante de controvérsia de matéria constitucional,

desde que tal controvérsia seja do próprio STF (como foi o caso dos créditos de IPI

sobre insumos desonerados); e (ii) a superveniência de decisão do STF não gera,

por si só, efeitos rescisórios. Em linha com o RE 730.462, acima mencionado, o

pressuposto relevantíssimo deste julgamento, em suma, é de que não há rescisão

automática da chamada coisa inconstitucional e, indo além, também não cabe ação

rescisória sequer quando houver alteração jurisprudencial, no próprio STF, anterior

ou posterior à decisão rescindenda.

Ainda sobre esse julgado, vale registrar a Nota n.º 1.408/2014/PGFN/CASTF,

segundo a qual, reconhecendo releitura da Súmula 343 do STF, continua

entendendo que “se houver interpretação constitucional controvertida, mas não

predominante no STF, não incide a Súmula 343, sendo, portanto, cabível o

ajuizamento de ação rescisória.” Fica a dúvida, no entanto, se a PGFN estaria

assumindo e, de alguma forma, reformulando indiretamente o entendimento do

Parecer 492/11, na medida em que reconhece a necessidade de ajuizamento de ação

rescisória contra o conteúdo declaratório (prospectivo) da coisa julgada

rescindenda. Parece-nos que sim.

Pelo exposto, em razão dos recentes posicionamentos do STF e das Notas da

PGFN, não é mais correto dizer que a interpretação controvertida de matéria constitucional

é, indistintamente, capaz de afastar o teor da Súmula 343 e, com isso, justificar tanto a

rescisória comum como, particularmente, os “embargos rescisórios” e a “nova rescisória”

especial do artigo 535 do CPC/2015, pois a ideia por detrás disso tudo é a uniformização

irrestrita da interpretação constitucional, hoje não mais absoluta.

Page 171: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

171

O que queremos dizer, em síntese, é que não é possível se falar em

“inexequibilidade do título ou inexigibilidade da obrigação (...) fundado em lei ou ato

normativo considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal”, no caso deste

pronunciamento representar mudança jurisprudencial do próprio STF. É possível, então,

que haja ato normativo considerado inconstitucional pelo STF, mas que ainda assim não

autorize a revisão das coisas julgadas formadas em sentido contrário.

1.4. Quadro sintético dos regimes rescisórios

Em vista dos novos contornos rescisórios incorporados pelo CPC/2015, e

também das peculiaridades da jurisprudência, elaboramos o seguinte quadro sintético:

Capítulo da decisão com conteúdo

executivo

Capítulo meramente

declaratório da decisão

Alteração jurisprudencial

anterior, sem controvérsia da

matéria constitucional no STF

Rescisória especial no bojo da

impugnação ao cumprimento de

sentença, resguardados os indébitos

anteriores ao novo paradigma Rescisória comum no prazo

de 2 (dois) anos contados

da decisão rescindenda Alteração jurisprudencial

posterior, sem controvérsia da

matéria constitucional no STF

Rescisória especial autônoma, no prazo

de 2 (dois) anos contados da decisão

paradigma, resguardados os indébitos

anteriores

Alteração jurisprudencial

anterior ou posterior, com

controvérsia da matéria

constitucional no próprio STF

Não cabe rescisão Não cabe rescisão, apenas

ação revisional

Alteração jurisprudencial

anterior ou posterior, com

prazo rescisório vencido

N/A Ação revisional

Page 172: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

172

1.5. Pela releitura metodológica do Parecer PGFN n.º 492/2011: fechamento

estrutural, confiança no tradutor e controle das interpretações

Retomando às premissas inaugurais, os conteúdos dos conceitos legais

encontram-se delimitados nos casos concretos que geram os precedentes, de modo que a

estabilização das expectativas normativas através da coisa julgada deve ser compreendida

de forma dinâmica, por meio das questões principais, do conjunto da postulação, dos

fundamentos determinantes da causa e da boa fé.

E, conforme passagem já citada de GEORGE BROWNE REGO:

“Cada caso insere-se num conjunto de circunstâncias específicas e,

assim, tem a sua própria história. Sua solução rejeita portanto modelos

ortodoxos e sua análise varia em função de um maior domínio possível

dos elementos que comparecem à situação conjuntural, associado ao

esforço imaginativo no sentido de encontrar soluções mais apropriadas e

convenientes para cada caso. Os antecedentes são também muito

importantes.”219

Desde logo precisamos superar, então, um primeiro impasse procedimental

veiculado pelo Parecer PGFN n.º 492/11, na medida em que este pressupõe uma atividade

administrativa mecanizada de adequação do caso “rescindendo” ao paradigma, onde as

questões principais, o conjunto da postulação e os fundamentos determinantes

jurisdicionalmente delineados são subsumidos através de um silogismo lógico pela própria

autoridade fazendária, sem qualquer critério analítico que considere, no mínimo, os

conteúdos e as eficácias decisórias (declaratória x condenatória).

Ou seja, a abertura semântica do caso é reenquadrada administrativamente, à

margem de qualquer controle jurisdicional ou procedimento dialógico.

219

REGO, George Browne. “O pragmatismo como alternativa à legalidade positivista: o método jurídico-

pragmático de Benjamin Nathan Cardozo”, in “Revista Duc In Altum Caderno de Direito”, vol. 1, nº 1, jul-

dez. 2009, p. 45/46.

Page 173: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

173

Em termos simplificados, a coisa julgada será relativizada (terá sua eficácia

cessada), de forma automática, mediante simples lançamento (relativo aos períodos

posteriores ao paradigma) dos créditos tributários pela autoridade administrativa,

responsável por fazer o silogismo lógico do caso com o precedente paradigmático e, por

assim dizer, implementar o overruling (certificação da superação jurisprudencial),

exercendo o controle da legalidade do ato judicial220

.

Esse, portanto, seria o segundo impasse procedimental, senão de ordem

constitucional, na medida em que pressupõe a superação ou o redimensionamento da coisa

julgada pelo Poder Executivo. Talvez a solução para tal problema pudesse passar pela

incorporação de um procedimento contencioso administrativo que garanta o diálogo

contraditório do contribuinte na confrontação e cotejo de seu caso, antes da superação da

coisa julgada pelo simples e oneroso lançamento administrativo.

Seja como for, assumindo a premissa de que os juízes criam direito,

reconhecemos a vinculatividade da sua fundamentação e, com isso, preservamos a

segurança jurídica e a continuidade jurisprudencial sem incorrer em idealismo ou

politicismo, permitindo a constante adaptação, transformação e evolução dos conceitos

normativos, que se dá mediante abertura cognoscitiva dos casos concretos, ao lado do

fechamento estrutural, que exige a atuação jurisdicional para o confronto da coisa julgada.

Admitir que um lançamento tributário, dotado de uma específica e limitada

função (a constituição do crédito tributário), possa promover a análise comparativa do caso

rescindendo/superando com o novo paradigma jurisprudencial (ainda que isso de fato fosse

220

Absolutamente pertinente, aqui, a observação de Streck: “Despiciendo lembrar que, mesmo no sistema de

precedentes da common law, uma vez construído um precedente, este não se transforma numa norma

abstrata. Nem mesmo sua aplicação é simplesmente dedutivista – realizada através do vetusto modelo de

subsunção. A construção do precedente precisa ser reconstruída no caso posterior.” STRECK, Lenio Luiz.

“Jurisdição constitucional e decisão jurídica”, 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 736.

Page 174: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

174

realizado, e não o é), é o mesmo que admitir a abertura estrutural do sistema, autorizando o

controle da legalidade dos atos judiciais pela administração pública.

Isso porque, numa perspectiva analítica, a coisa julgada (declaratória) em favor

do contribuinte representa um obstáculo de ordem sintática que condiciona e redesenha,

dentro de certos limites objetivos e subjetivos, a regra-matriz aplicável a determinado caso,

ou seja, fenômeno parecido com a isenção (condicionada ou não), que igualmente

representa um obstáculo de ordem sintática ao ciclo de positivação, só podendo ser

revogada por lei. Assim, deve-se respeitar a hierarquia dos veículos introdutores,

operando-se de acordo com suas próprias estruturas.

Por essas razões, não há dúvidas de que as particularidades do caso concreto,

das atividades empresariais e da realidade social, em virtude da abertura cognoscitiva

própria da normatividade jurídica, impõem e determinam mudanças jurisprudenciais e

mesmo (mas não automaticamente) da coisa julgada. Mas, como insistimos, abertura

cognoscitiva, ao lado do fechamento estrutural (estrutura hierarquizada do sistema).

O Parecer PGFN n.º 492/11 parte da correta premissa de que os juízes não são

meros aplicadores da lei, de modo que a sentença não é um ato de subsunção mecânica,

mas, contudo, ao final pretende que a mudança jurisprudencial seja aplicada

mecanicamente pela própria administração fazendária, internalizando um ato

administrativo (lançamento lato sensu) para dentro do sistema normativo próprio da

atuação jurisdicional e, o que é pior, sem a observância do contraditório.

A autonomia do direito, como já vimos, não está em negar a influência dos

outros sistemas de comunicação na sua composição normativa, numa proposta isolante

entre ser e dever-ser, como se houvesse dissociação entre norma e normatividade.

Page 175: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

175

Mas, alterando-se o suporte fático-jurídico que integra a normatividade, não há

uma alteração (causação) automática da norma e da coisa julgada. Até porque, como vimos

no já mencionado RE 582.525/SP (repercussão geral julgada em 07/02/14), é o próprio

STF que incorpora a ideia de que a delimitação dos conteúdos semânticos cabe ao juiz.

Por isso, é prerrogativa da atividade jurisdicional exercer, quando o caso e nas

hipóteses admitidas, o controle de eficácia da coisa julgada.

Na linha de TÁCIO LACERDA GAMA, podemos dizer que a

rescisão/cessação da coisa julgada trata-se de uma segunda norma sancionatória da

competência, já que a norma fixada na coisa julgada rescindenda seria uma primeira

sanção ao exercício irregular da competência tributária, o que reforça a necessidade de

atuação jurisdicional, pois inviável a sanção administrativa do ato jurisdicional.

Aliás, é o próprio artigo 489 do CPC/2015 que, a partir de então, exige a

demonstração, pelo juiz, da “existência de distinção no caso em julgamento ou a

superação do entendimento”, não havendo a transferência ou delegação dessa atividade

para a autoridade administrativa, sobretudo sem um procedimento dialógico e imparcial.

Portanto, em resumo não há que se falar em cessão/rescisão automática da

coisa julgada inconstitucional por duas razões: (i) uma de ordem sintática, pois há que se

distinguir as diferentes espécies de sentença e/ou capítulos do julgado (condenatório ou

declaratório); e (ii) outra de ordem semântica e pragmática, na medida em que o confronto

entre a coisa julgada rescindenda e o paradigma deve levar em conta a tradução e o cotejo

do quadro fático-jurídico por um sujeito imparcial, observando-se o contraditório.

Page 176: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

176

A teoria da tradução221

, nesse sentido, reforça a necessidade de que a atividade

de reenquadramento da coisa julgada deve ser exercida por um órgão imparcial. Isso

porque, os processos decisórios são instrumentos de tradução dos eventos para a linguagem

social, da linguagem social para a linguagem jurídica, da linguagem jurídica para outra

linguagem jurídica, desta para a linguagem social, e assim por diante nas diversas semioses

que integram os processos de construção jurídica.

Portanto, o diálogo comparativo entre o precedente e o caso rescindendo

representa um exercício de tradução do paradigma e da coisa julgada, quando então se

promove a adequação decisória dos casos e, com isso, se transmite uma nova significação

ao destinatário da mensagem, vale dizer, ao contribuinte que foi parte no caso rescindendo.

Para o critério da boa tradução, desta feita, rejeita-se a teoria realista que

propõe uma transposição da língua ao mundo real (palavra da língua 1 = coisa = palavra da

língua 2), bem como a teoria idealista que sugere uma adequação da língua ao mundo real,

por intermédio do pensamento (palavra da língua 1 = pensamento = palavra da língua 2).

Assim, conforme TÉRCIO FERRAZ JUNIOR222

:

“A resposta remete-nos a uma questão pragmática: trata-se de uma

questão de enfoque. O critério da boa tradução, diz Flusser, repousa no

enfoque do tradutor, ou, mais precisamente, na aceitação do enfoque do

tradutor. Aceitar o enfoque do tradutor significa abrir-lhe um crédito de

confiança. Ou seja, as fronteiras, de que falamos na articulação

linguística e que nos permitem distinguir entre rio, riacho, ribeirão, etc.,

são preenchidas de modo diferente de língua para língua, conforme suas

respectivas regras de uso. Contudo, a transferência de uma sentença na

221

“Reportando-nos aqui ao pequeno ensaio de Flusser: Para uma teoria da tradução, admitamos que

traduzir é transpor o texto de uma para o de outra língua. Referimo-nos a duas línguas naturais, como o

português, o inglês, mas podemos ampliar o conceito. Toda vez que um cientista explica para o público não

especializado uma teoria – obra de divulgação científica –, realiza também uma tradução, isto é, transpõe

uma língua técnica numa língua natural. Que as traduções são possíveis atesta o fato de que elas ocorrem.

Qual, porém, seu fundamento teórico?” JUNIOR, Tércio Sampaio Ferraz. “Interpretação jurídica:

interpretação que comunica ou comunicação que se interpreta?” In: HARET, Florence; CARNEIRO, Jerson

(coords.). “Vilém Flusser e Juristas. Comemoração dos 25 anos do Grupo de Estudos de Paulo de Barros

Carvalho.” São Paulo: Noeses, 2009, p. 24. 222

Obra citada, p. 29.

Page 177: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

177

língua A para a língua B depende do enfoque do tradutor, para quem se

abre um crédito de confiança. Que significa isso?

Se uma pessoa não tem certeza se a sentença que melhor traduz ‘as suas

ideias ultrapassam nossa época’ é ‘his ideas are ahead o four time’,

certamente se dirigiria a alguém que conhece bem o inglês. Trata-se de

uma confiança na competência.

(...) O que chamamos, então, de uso competente, base da confiança no

tradutor, depende de uma relação de poder, o poder de violência

simbólica que, numa comunidade linguística, se manifesta como

autoridade, liderança e reputação.”

Desta feita, permitir que o próprio órgão fazendário realize a tradução do

precedente e adequação da coisa julgada, significa conferir-lhe um poder de violência

simbólica que, pelo modelo constitucional de processo, ele não detém.

Conforme CLARICE VON OERTZEN DE ARAÚJO, “para o universo

jurídico essa tradução chama-se incidência”223

, e, como vimos, a incidência do precedente

ao caso concreto não se opera (ou melhor, não é operada) mediante um silogismo lógico,

de forma automática, senão por meio de um juízo analógico-comparativo.

É na adequação decisória que caracteriza o processo de tradução, também, que

se exerce o controle das interpretações extensivas ou restritivas (problema lógico, de teoria

das classes, e extra-lógico, dos conteúdos normativos delimitados pelas particularidades

dos casos), legitimando a operação a partir do órgão judicial.

Os limites semânticos do precedente e do caso concreto, portanto, não podem

ser definidos externamente por um juízo no qual se predomina o interesse arrecadatório.

Para a superação de todos esses obstáculos metodológicos que contaminam o

Parecer PGFN n.º 492/2011, e procurando conciliar as suas premissas teóricas, de duas

uma: ou se impõe o ajuizamento da competente medida judicial para a compatibilização e

adequação jurisprudencial (de acordo com o quadro rescisório transcrito no item 1.4,

223

ARAÚJO, Clarice von Oertzen de . “Da incidência como tradução.” In: HARET, Florence; CARNEIRO,

Jerson (coords.). “Vilém Flusser e Juristas. Comemoração dos 25 anos do Grupo de Estudos de Paulo de

Barros Carvalho.” São Paulo: Noeses, 2009, p. 157.

Page 178: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

178

acima); ou, de lege ferenda, se cria um procedimento contencioso administrativo que

permita à autoridade fazendária, no exercício de função jurisdicional atípica, garantir o

diálogo angular e imparcial inerente a uma atividade julgadora, podendo-se até mesmo,

como forma de desjudicializar as discussões, incentivar o contribuinte que reconheça

espontaneamente a superação da sua coisa julgada, com a exclusão da multa e juros.

2. Incidência do precedente e juízo de adequação: identidade x similitude jurídica

Do que dissemos até aqui, insistimos: num sistema de valorização de

precedentes, é exatamente sua peculiar normatividade que impede tratarmos a incidência

dos julgados racionalizadores a partir de um método dedutivo e mecanizado de subsunção

ao caso “rescindendo”, numa espécie de silogismo lógico.

A essa altura, podemos afirmar que é exatamente por meio dessa dinâmica que

se confere legitimidade à tributação a partir da normatividade dos precedentes. Vale dizer

que, a confiança dos precedentes, num verdadeiro sistema stare decisis, legitima a

atividade exacional através do conjunto de semioses democraticamente construídas.

Por isso, devemos superar o dogma da subsunção, ou causação, sendo mais

correto falarmos em adequação, pois o precedente só pode ter força normativa a partir da

sua fundamentação, e não meramente do dispositivo.

Assim, a correta identificação e delimitação da profundidade objetiva do

precedente leva ao problema de sua incidência ao caso concreto, colocando em questão a

atividade interpretativa de adequação perante a coisa julgada incompatível, de modo que o

intercâmbio integrativo entre os casos não pode ser mecanizado.

Page 179: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

179

É preciso, pois, detectar as questões principais (determinantes fáticas e

jurídicas), o conjunto da postulação (causas de pedir e pedidos) e os fundamentos

determinantes dos precedentes que fundamentam o caso e do próprio caso, para então

confrontar a normatividade do paradigma.

Nesses termos, desde logo verificamos que o precedente incide, na extensão de

seus limites objetivos, aos casos com similitude jurídica, ou seja, que possuem similares

âmbitos e programas normativos, em que pese possa haver dessemelhança fática.

Analisando os aspectos lógicos que compõem o juízo de semelhança e/ou

dessemelhança, assim nos ensina LOURIVAL VILANOVA224

:

“O ‘ser semelhante a’ é propriedade relacional que não encontra

tradução formal adequada. A semelhança é uma comunidade conotativa

parcial: dois termos x e y são semelhantes se têm conotação comum M e

conotação diferencial N. Se carecessem de conotação comum M, seriam

termos diferentes. Se coincidissem em conotação, seriam termos

equivalentes ou equissignificativos. Agora, formalmente não podemos

transitar da fração conotativa comum, eliminando a fração não-comum,

para fazer a subsunção ou includência silogística. Não há passagem

formal do enunciado predicativo “A é B” para o enunciado relacional

“x é semelhante a B”, que fica como enunciado na conclusão. O que nos

autoriza, pois, a retermos a conotação M comum e a desprezarmos a

conotação diferencial provém de critério extralógico.”

Essencial, portanto, sistematizar, identificar e separar as ratio decidendi225

(fundamentos que sustentam a tese julgada) dos obter dicta226

(partes incidentais e

acessórias constantes no precedente); o overruling (mudança de jurisprudência); o

224

“As estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo.” São Paulo: Noeses, 2005, p. 231/232. 225

Previsão, aliás, constante no artigo 489, § 1º, V, do CPC/2015: “Art. 489 (...). § 1º - Não se considera

fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: (...) V – se

limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem

demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; (...).” (grifamos).

O § 5º do artigo 927 também dispõe que “os tribunais darão publicidade a seus precedentes, organizando-os

por questão jurídica decidida e divulgando-os na rede mundial de computadores.” 226

Nos termos do § 4º do artigo 521, “não possuem o efeito previsto nos incisos do caput deste artigo os

fundamentos: I – prescindíveis para o alcance do resultado fixado em seu dispositivo, ainda que presentes no

acórdão; (...).”

Page 180: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

180

distinguishing227

(distinção das hipóteses em que um precedente não é compatível com o

caso concreto), drawing of inconsistent distinctions (distinção consciente e inconsistente),

sinaling (sinalização), transformation (transformação) e overriding (adequação

consistente), conforme vimos no decorrer do Capítulo 4.

Em diversas passagens do CPC/2015, ainda somos levados ao conceito de

identidade228

, o que acaba influenciando nossa compreensão acerca do fenômeno

racionalizador e generalizante de valorização dos precedentes.

Mas é o próprio CPC/2015 que, quando trata da comprovação de divergência

jurisprudencial, dispõe sobre a indicação das “circunstâncias que identificam ou

assemelham os casos confrontados” (artigo 1.029, § 1º), o que se repete nos Embargos de

Divergência (artigo 1.043, § 4º). Aliás, a decisão não será considerada fundamentada no

caso de se invocar precedente ou enunciado de súmula sem “demonstrar que o caso sob

julgamento se ajusta àqueles fundamentos” (artigo 489, § 1º, V).

227

Também previstos no artigo 489 do CPCC/2015: “VI – deixar de seguir enunciado de súmula,

jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em

julgamento ou a superação do entendimento. (...).” (grifamos). 228

“Art. 56. Dá-se a continência entre duas ou mais ações quando houver identidade quanto às partes e à

causa de pedir, mas o objeto de uma, por ser mais amplo, abrange o das outras”;

“Art. 337. (...) § 2o Uma ação é idêntica à outra quando possui as mesmas partes, a mesma causa de pedir e

o mesmo pedido. (...)”;

“Art. 985. Julgado o incidente, a tese jurídica será aplicada: I – a todos os processos individuais ou

coletivos que versem sobre idêntica questão de direito e que tramitem na área de jurisdição do respectivo

tribunal, inclusive àqueles que tramitem nos juizados especiais do respectivo Estado ou Região; II – aos

casos futuros que versem sobre idêntica questão de direito e que venham a tramitar no território de

competência do tribunal, salvo revisão na forma do art. 986.”

“Art.1.035 (...) § 8º Negada a repercussão geral, o presidente ou o vice-presidente do tribunal de origem

negará seguimento aos recursos extraordinários sobrestados na origem que versem sobre matéria

idêntica.”;

“Art. 1.036. Sempre que houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica questão de direito,

haverá afetação para julgamento de acordo com as disposições desta Subseção, observado o disposto no

Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal e no do Superior Tribunal de Justiça.”;

“Art. 1.039. Decididos os recursos afetados, os órgãos colegiados declararão prejudicados os demais

recursos versando sobre idêntica controvérsia ou os decidirão aplicando a tese firmada.”;

“Art. 1.040. Publicado o acórdão paradigma: (...) § 1º A parte poderá desistir da ação em curso no primeiro

grau de jurisdição, antes de proferida a sentença, se a questão nela decidida for idêntica à resolvida pelo

recurso representativo da controvérsia.”

Page 181: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

181

Dessa forma, não há que se falar em identidade fática ou jurídica, pautadas que

são, insistimos, na lógica clássica que pressupõe uma segurança jurídica abstrata, onde

unidade, coerência e completude são juízos a priori. Assim, falamos em similitude jurídica

a partir dos antecedentes normativos de cada caso.

Exemplificativamente, citamos o julgamento que afastou a incidência do

ICMS-Importação nas aquisições realizadas através de arrendamento mercantil (RE n.º

540.829/SP, com status de repercussão geral). Veja-se:

“Ementa: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL E

TRIBUTÁRIO. ICMS. ENTRADA DE MERCADORIA IMPORTADA DO

EXTERIOR. ART. 155, II, CF/88. OPERAÇÃO DE ARRENDAMENTO

MERCANTIL INTERNACIONAL. NÃO-INCIDÊNCIA. RECURSO

EXTRAORDINÁRIO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. O ICMS tem

fundamento no artigo 155, II, da CF/88, e incide sobre operações

relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de

transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que

as operações e as prestações se iniciem no exterior. 2. A alínea “a” do

inciso IX do § 2º do art. 155 da Constituição Federal, na redação da EC

33/2001, faz incidir o ICMS na entrada de bem ou mercadoria

importados do exterior, somente se de fato houver circulação de

mercadoria, caracterizada pela transferência do domínio (compra e

venda). 3. Precedente: RE 461968, Rel. Min. EROS GRAU, Tribunal

Pleno, julgado em 30/05/2007, Dje 23/08/2007, onde restou assentado

que o imposto não é sobre a entrada de bem ou mercadoria importada,

senão sobre essas entradas desde que elas sejam atinentes a operações

relativas à circulação desses mesmos bens ou mercadorias. 4. Deveras,

não incide o ICMS na operação de arrendamento mercantil

internacional, salvo na hipótese de antecipação da opção de compra,

quando configurada a transferência da titularidade do bem.

Consectariamente, se não houver aquisição de mercadoria, mas mera

posse decorrente do arrendamento, não se pode cogitar de circulação

econômica. 5. In casu, nos termos do acórdão recorrido, o contrato de

arrendamento mercantil internacional trata de bem suscetível de

devolução, sem opção de compra. 6. Os conceitos de direito privado não

podem ser desnaturados pelo direito tributário, na forma do art. 110 do

CTN, à luz da interpretação conjunta do art. 146, III, combinado com o

art. 155, inciso II e § 2º, IX, “a”, da CF/88. 8. Recurso extraordinário a

que se nega provimento.” (grifos nossos).

Ao se analisar o conteúdo do voto condutor, verifica-se que o núcleo decisório,

sua ratio decidendi, gira em torno das condições do negócio jurídico de arrendamento

Page 182: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

182

entabulado pelo importador, de modo que a tese jurídica fixada no precedente, em sua

essência, acomoda-se sob as particularidades fáticas a serem avaliadas em concreto.

Não se pode incluir no mesmo escaninho, portanto, processos que veiculam

diferentes formatações jurídicas, com base em distintas espécies e modalidades de

arrendamento implementadas pelo mercado, cada vez mais criativas e inovadoras,

eventualmente havendo até mesmo a flexibilização da opção de compra pelo arrendatário

ou sua segregação, como por exemplo, no caso da compra do bem no exterior por empresa

controlada e subsequente formalização de leasing operacional à controladora brasileira.

Enfim, trata-se de particularidades não contempladas no precedente, mas que

são fundamentais para a incidência ou distinção do paradigma quando convocado para

fundamentar um caso concreto.

Voltando ao exemplo, para a incidência do referido precedente ao caso

concreto, com o afastamento do ICMS, é necessário, em juízo de adequação, que haja uma

importação realizada através de arrendamento mercantil, sem opção de compra, ou seja,

sem circulação, pouco importando (i) se o importador é ou não contribuinte do ICMS; (ii)

qual a natureza ou destinação do bem; (iii) o regime cambial e/ou de importação adotado;

ou (iv) qual a forma jurídica do negócio (o que se releva é o objeto do negócio não

caracterizar, na essência, uma compra e venda).

Ainda que a forma do negócio jurídico não seja relevante, sua essência, ou os

efeitos que produz na situação jurídica do patrimônio do arrendatário é relevante para a

incidência ou não do precedente e, consequentemente, do ICMS-Importação sobre a

operação que se discute no caso concreto.

No referido precedente do STF, a situação fática tratava de uma importação via

leasing entre duas empresas aparentemente ligadas (Hayes Wheels do Brasil Ltda. e Hayes

Page 183: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

183

Wheels de España S.A), cujo objeto era dois equipamentos utilizados na fabricação de

rodas de liga leve (aparentemente bens utilizados no processo produtivo da arrendatária),

não se destinando ao ativo fixo da empresa e com cláusula de devolução ao final do

contrato (sem previsão de compra). A situação jurídica, por sua vez, abrangia o alcance do

ICMS-Importação nas importações via leasing, sobretudo após a EC n.º 33/2001.

O juízo de adequação ao caso concreto, portanto, deve levar em consideração

todas essas particularidades, não se podendo falar, apenas, em questão unicamente de

direito, muito menos em idêntica questão de direito, para fins de confirmação, superação

ou relativização da coisa julgada fixada nos casos concretos.

Não existe, pois, uma solução pronta e acabada que possa ser subsumida

mecanicamente a todos os casos que tratem de “ICMS-Importação via leasing”.

Como vimos acima, a tese fixada no precedente deve ser acomodada aos casos

concretos de acordo com suas particularidades fáticas e jurídicas, não havendo que se falar

em identidade de questões unicamente de direito, mas sim em similitude jurídica, sob pena

de distorção e desvio do sistema stare decisis.

Conforme já destacou o STF no julgamento do AgRg AI n.º 621.722/RJ:

“(...) No sistema da repercussão geral, a decisão proferida no leading

case deve ser aplicada a todos os recursos análogos,

independentemente dos fundamentos específicos que os sustentam. O

que releva é a questão constitucional decidida, não a causa petendi do

apelo extremo. Concluído o julgamento do paradigma, cabe aos

Tribunais de origem apreciar os recursos sobrestados, nos termos do art.

543, § 3º, do CPC, considerando o contexto fático-probatório dos

autos.” (grifos nossos).

Trata-se, portanto, do holding previsto no sistema stare decisis, de maneira

que, novamente citando o Voto-Vista do Ministro Barroso na Rcl 4.335/AC:

“(...) na medida em que nós venhamos a expandir esse papel dos

precedentes - para usar o verbo utilizado pelo Ministro Teori -, teremos

Page 184: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

184

que produzir decisões em que a tese jurídica afirmada seja mais nítida -

o que, no Direito anglo-saxão, se chama ‘holding’. Muitas vezes - a

meu ver, esse é o papel da ementa, e tenho procurado discutir isso -, era

preciso que ficasse mais claro, prima facie, qual foi a tese jurídica

afirmada pelo Supremo.” (grifos nossos).

Tomando as lições de DARDO SCAVINO: “um enunciado é verdadeiro, em

princípio, quando se encontra conforme uma interpretação estabelecida, aceita, instituída

dentro de uma comunidade de pertinência. E esta interpretação, que por sua vez pode

pensar-se como um conjunto de enunciados sobre outra interpretação prévia, somente

pode ser discutida quando a confrontemos com essa versão ainda mais originária.”229

Dessa forma, os precedentes são interpretações sobre interpretações, de modo

que, alterando-se as interpretações-base, modificam-se as meta-interpretações. A similitude

jurídica do juízo de adequação, portanto, deve buscar a consentaneidade.

Quando o precedente é produzido, deve-se dizer qual é o fato e qual é o direito,

o que compõe a fundamentação e a justificação da decisão. Desse modo, encontramos na

decisão a fundamentação e a justificação tanto do fato como do direito, essenciais para,

num trabalho analítico-comparativo, fundamentar a incidência do precedente.

Assim, utilizando-nos das categorias da teoria da decisão jurídica230

, temos que

o holding, a ratio decidendi, deve ser identificado a partir da fundamentação do fato

(indicação dos enunciados factuais que influenciaram na conformação do fato jurídico);

justificação do fato jurídico (razões que levaram à utilização daqueles enunciados

factuais, e não de outros); fundamentação jurídica (legislação tomada como base para a

decisão); e justificação jurídica (razões que levaram à utilização daquela legislação, e não

de outra). Tudo isso compõe a tese jurídica decidida.

229

“A filosofia atual: pensar sem certezas”. São Paulo: Noeses, 2014, trad. Lucas Galvão de Britto, p. 25. 230

Sobre o tema, remetemo-nos à obra de Aurora Tomazini de Carvalho, “Curso de Teoria Geral do Direito”,

2ª edição. São Paulo: Noeses, 2010, p. 517.

Page 185: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

185

Nessa ordem de ideais, diante da multiplataforma das fontes produtoras dos

precedentes, impõe-se o diálogo angular no juízo de adequação do precedente ao caso

concreto, o que exige uma postura empírico-dialética.

Isso porque, na atividade interpretativa que envolve o juízo de adequação, tem-

se a generalização e a individualização do caso concreto, ou derivação e positivação, de

modo que: “a derivação está para a interpretação, assim como a positivação está para a

aplicação do direito. Formalizando, D : I :: P: A.”231

A título de esquematização teórica do roteiro analítico-comparativo dos casos,

para fins de adequação e incidência do precedente, teríamos o seguinte quadro:

Decisão paradigma Caso rescindendo

Questões principais

Conjunto da

postulação

Fatos

Causa(s) de pedir

próxima(s)

Causa(s) de pedir

remota(s)

Pedido(s)

Fundamentos determinantes

Tese jurídica

decidida

Fundamentação e

justificação do fato

Fundamentação e

justificação jurídica

Distinções/aproximações relevantes

É, portanto, através da comparação analítica desses pontos em comum que se

torna possível identificar a similitude jurídica dos casos e promover a incidência e

adequação decisória ou, então, a distinção ou superação dos entendimentos.

231

CARVALHO, Paulo de Barros. “Derivação e Positivação no Direito Tributário”, Volume II. São Paulo:

Noeses, 2013, p. XIX.

Page 186: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

186

Dentro desse contexto de stare decisis, pois, é preciso identificar e entender os

institutos que permeiam a atividade decisória e o trabalho de manuseio da jurisprudência,

de forma a evidenciar as operações lógicas e extralógicas que, a partir do CPC/2015,

precisarão expressamente constar da fundamentação das decisões (artigo 489).

3. Uma segunda síntese: variáveis processuais e condicionantes materiais da coisa

julgada e da rescisória tributária

No contexto de valorização dos precedentes, vimos que dois recortes são

fundamentais para a análise da formação, extensão e controle da coisa julgada, quais

sejam: (i) a identificação da natureza jurídica do conteúdo decisório (declaratório,

constitutivo ou condenatório); e (ii) a delimitação da normatividade do precedente a partir

da complexidade conformativa que o compõe, tudo isso ao lado da temporalidade decisória

dos casos, da boa fé e do contraditório.

Trata-se das variáveis processuais tributárias, de um lado, e das condicionantes

materiais, de outro, ambas concorrendo na fixação dos capítulos decisórios transitados em

julgado, na definição dos regimes rescisórios e individualização dos conteúdos

concretamente considerados para fins de confrontação e adequação dos casos.

Portanto, a separação das eficácias da coisa julgada e dos elementos da decisão

potencializa a análise não só da relação jurídica de direito material estabilizada, como

também dos processos de desestabilização, através da unificação de forma e conteúdo.

Todos esses aspectos, é claro, respeitando-se o modelo dialógico que impõe a

legitimidade processual democrática, sempre por meio da atividade decisória imparcial que

Page 187: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

187

deve caracterizar o exercício de tradução e adequação dos precedentes e das diversas

realidades que interagem e compõem a multiplicidade sempre inesgotável dos casos.

Page 188: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

188

CONCLUSÕES

A título de considerações conclusivas, podemos dizer que o trabalho procurou

empreender uma análise da legitimidade da tributação a partir da normatividade dos

precedentes em um sistema stare decisis, seus reflexos na coisa julgada e na ação

rescisória em matéria tributária por alteração jurisprudencial, em especial diante das

modificações do CPC/2015, mas não se limitando aos estudos dos enunciados de direito

positivo, senão conferindo uma amplitude relativamente mais ampla, dada a potencialidade

que o estudo do tema passou a revelar, em conexão com os mais modernos e recentes

debates em torno da crise de identidade do nosso sistema codificador232

.

Com esse objetivo, de forma a proporcionar a amarração do discurso em sua

totalidade propedêutica, buscamos enlaçar os três planos de expressão do tema a partir do

que chamamos de estrutura filosófica, sentido dogmático e função pragmática.

Assim, passamos a pensar em conjunto os dois eixos temáticos a que nos

referimos na introdução: (i) revolução linguística e isolamento cognitivo do ser; e (ii)

valorização dos precedentes judiciais e mecanização da prestação jurisdicional: a miragem

da codificação sendo substituída pela miragem da padronização decisória.

Desse modo, empreendemos na Parte I uma análise da evolução histórico-

filosófica que precedeu o positivismo, bem com das suas influências na dogmática jurídica,

tão propagada em nossa cultura positivista. Com isso, identificamos as deficiências

232

“Este livro pretende discutir a crise do direito, do Estado e da dogmática jurídica, assim como os seus

reflexos na sociedade, a partir do papel da justiça constitucional e sua legitimidade nestes tempos de pós-

positivismo e de resistências positivistas. (...) O crescimento dos direitos supraindividuais e a crescente

complexidade social (re) clamam novas posturas dos operadores jurídicos. (...) Visivelmente há uma crise

que, antes de mais nada, precisa ser des-coberta ‘como’ crise. Essa crise ocorrre porque o velho modelo de

direito (de feição liberal-individualista) não morreu, e o novo modelo (forjado a partir do Estado

Democrático de Direito) não nasceu ainda.” STRECK, Lenio Luiz. “Jurisdição constitucional e decisão

jurídica”, 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 29.

Page 189: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

189

metodológicas encampadas pelo nosso modelo de racionalização da prestação jurisdicional

a partir da valorização dos precedentes, sugerindo uma adequação por meio do intercâmbio

com o pragmatismo filosófico e jurídico.

Em seguida, na Parte II adentramos no estudo do sistema stare decisis,

apontando as particularidades, diferenças e aproximações dos regimes common law e civil

law, bem como individualizando o estudo dos elementos do precedente e dos institutos

próprios de um sistema de valorização das decisões jurídicas.

Em resumo, pela conexão das duas primeiras partes do trabalho evidenciamos a

insuficiência do silogismo lógico na interpretação e aplicação dos precedentes, sendo

necessário resgatar o plano pragmático de análise da linguagem, com a valorização das

particularidades fáticas dos casos concretos na construção dos sentidos normativos e

legitimação da atividade tributante.

Para isso, as categorias pragmatistas, a semiótica de PEIRCE, o

desenvolvimento do método abdutivo por GEORGE BROWNE REGO e a teoria

estruturante de MULLER nos apresentaram uma interessante aptidão adaptativa na

integração com as teorias analíticas.

Diante desse quadro de inter-relações, enfim entramos na Parte III, onde então

particularizamos as análises das modificações da coisa julgada e dos novos regimes

rescisórios introduzidas pelo CPC/2015, em sintonia com os pressupostos filosóficos e

dogmáticos antes fixados, concluindo, ao final, pela inadequação metodológica das

orientações contidas no Parecer PGFN n.º 492/2011, impregnado que é por uma lógica

subsuntiva incompatível com suas próprias diretrizes de valorização dos precedentes.

Page 190: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

190

Com efeito, a coisa julgada passa por modificações subjetivas e objetivas,

sendo compreendida a partir da multiplicidade conformativa que compõe os fatos, as

questões principais, o conjunto da postulação e os fundamentos determinantes do caso.

Da mesma forma, o CPC/2015 incorpora novos regimes rescisórios e, em

grande parte, se adequa às orientações jurisprudenciais, de modo que a chamada

relativização da coisa por modificação jurisprudencial, com isso, não se dá de forma

automática, por meio do controle exercido pela própria autoridade fazendária.

Pelo contrário, por diversas razões teóricas (independência de poderes e

funções, identidade de instrumentos introdutores, fechamento estrutural, confiança no

tradutor e controle das interpretações extensivas), e diante das diretrizes do próprio

CPC/2015 (legitimação processual democrática, princípio da cooperação, contraditório

maximizado, não-surpresa e rigor na fundamentação comparativa de precedentes), a

rescisão da chamada coisa julgada inconstitucional deve se submeter ao necessário

controle e adequação judicial, num diálogo angular e imparcial.

De lege ferenda, sugerimos a possível criação de um procedimento contencioso

administrativo que permita ao órgão fazendário, no exercício de função jurisdicional

atípica, garantir o diálogo inerente a uma atividade julgadora, podendo-se até mesmo,

como forma de desjudicializar as discussões, incentivar o contribuinte que reconheça

espontaneamente a superação da sua coisa julgada, com a exclusão da multa e juros.

Por tudo isso, esperamos ter contribuído para o estudo de tema tão relevante,

com grandes repercussões no dia a dia do contencioso tributário, aguardando as sempre

bem vindas críticas e comentários para a evolução do trabalho.

Page 191: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

191

BIBLIOGRAFIA

ABBAGNANO, Nicola. “Dicionário de Filosofia”. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

ADEODATO, João Maurício. “Uma Teoria Retórica da Norma Jurídica e do Direito

Subjetivo.” São Paulo: Noeses, 2012.

_________. “Retórica Jurídica, Filosofia do Direito e Ciência Não-Ontológica”, texto

inédito.

_________. “Retórica da Jurisdição Constitucional e Tributação – Suas Origens na

Teoria Pura de Hans Kelsen”, texto inédito.

ALMEIDA, Rodrigo Vieira de. “Algumas reflexões sobre o aspecto ontológico do símbolo

e sua relação com a cognoscibilidade de Deus no interior da metafísica religiosa de

Charles Sanders Peirce.” In: “Cognitio: Revista de Filosofia”, vol. 15, número 2,

julho/dezembro de 2014. São Paulo: Educ, 2014.

ALVES, Alaôr Caffé. “Lógica. Pensamento Formal e Argumentação”, 5ª edição. São

Paulo: Quartier Latin, 2011.

ALVES-MAZZOTTI, Judith; e GEWANDSZNAJDER, Fernando. “O método nas

ciências naturais e sociais”, 2ª edição. São Paulo: Pioneira, 1999.

ARAÚJO, Clarice von Oertzen de. “Semiótica do Direito.” São Paulo: Quartier Latin,

2005.

_________. “Incidência Jurídica, teoria e crítica.” São Paulo: Noeses, 2011.

_________. “Da incidência como tradução.” In: HARET, Florence; CARNEIRO, Jerson

(coords.). “Vilém Flusser e Juristas. Comemoração dos 25 anos do Grupo de Estudos de

Paulo de Barros Carvalho.” São Paulo: Noeses, 2009.

ARNAUD, André-Jean. “Dicionário enciclopédico de teoria e sociologia do Direito.” Rio

de Janeiro: Renovar, 1999, tradução de Patrice Charles F. X. Willaume.

ÁVILA, Humberto. “Segurança jurídica: entre permanência, mudança e realização no

Direito Tributário.” São Paulo: Malheiros, 2011.

Page 192: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

192

BECHO, Renato Lopes. “Filosofia do direito tributário.” São Paulo: Saraiva, 2009.

_________. “Conflitos de jurisprudência entre STF e STJ”, texto inédito.

BOBBIO, Norberto. “Teoria do Ordenamento Jurídico”, 10ª edição. Brasília: Editora

Universidade de Brasília, 1999, tradução de Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos.

_________. “O positivismo jurídico: Lições de filosofia do direito.” São Paulo: Editora

Ícone, 1995.

BOHR, Niels. “Física atômica e conhecimento humano: ensaios 1932-1957.” Rio de

Janeiro: Contraponto, 1995, tradução de Vera Ribeiro.

BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. “Teoria do precedente judicial. A justificação e a

aplicação de regras jurisprudenciais.” São Paulo: Noeses, 2012.

CANOTILHO, JJ. Gomes. “Constituição dirigente e vinculação do legislador”, 2ª edição.

Coimbra: Editora Coimbra, 2001.

_________. “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, 7ª edição. Coimbra:

Almedina.

CAPRA, Fritjof. “O Tao da Física”, 1ª reimpressão da 2ª edição. São Paulo: Cultrix, 2013,

tradução de José Fernandes Dias.

CARVALHO, Aurora Tomazini de. “Curso de Teoria Geral do Direito”, 2ª edição. São

Paulo: Noeses, 2010.

CARVALHO, Paulo de Barros. “Direito Tributário, linguagem e método”, 4ª edição. São

Paulo: Noeses, 2011.

_________. “Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência”, 6ª edição. São

Paulo: Saraiva, 2008.

_________. “Curso de Direito Tributário”, 22ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010.

Page 193: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

193

_________. “Algo sobre o constructivismo lógico-semântico.” In: CARVALHO, Paulo de

Barros (coord.). “Constructivismo Lógico-Semântico”, vol. I. São Paulo: Noeses, 2014.

_________. “Princípios e sobreprincípios na interpretação do direito.” In: Revista da

FESDT n.º 7, Porto Alegre, 2011.

CAVALCANTE, Mantovanni Colares. “Técnicas de estabilização da jurisprudência: Em

busca do equilíbrio na corda bamba processual.” In: CARVALHO, Paulo de Barros

(coord.). “IX Congresso Nacional de Estudos Tributários do IBET”. São Paulo: Noeses,

2012.

CHIOVENDA, apud CÂMARA, Alexandre Freitas. “Lições de direito processual civil”,

17ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, v. I, 2008.

CONRADO, Paulo César. “Introdução à teoria geral do processo civil”, 2ª edição. São

Paulo: Max Limonad, 2003.

_________. “Processo tributário”, 2ª edição. São Paulo: Quartier Latin, 2007.

COPI, Irving. “Introdução à Lógica”, 2ª edição. São Paulo: Mestre Jou, 1978, tradução de

Álvaro Cabral.

COSTA, Regina Helena. “Curso de direito tributário: Constituição e Código Tributário

Nacional.” São Paulo: Saraiva, 2009.

DERZI, Misabel Abreu Machado. “Modificações da jurisprudência no Direito

Tributário.” São Paulo: Noeses, 2009.

DESCARTES, René. “Discurso do método, regras para a direção do Espírito”. São

Paulo: Editora Martin Claret, 2003, tradução de Pietro Nasset.

DIAS, KAREM JUREIDINI. “Fato tributário, revisão e efeitos jurídicos.” São Paulo:

Noeses, 2013.

DINAMARCO, Cândido Rangel. “Relativizar a coisa julgada material.” In: Revista de

Processo – REPRO n.º 109/9-38.

DINIZ, MARIA HELENA. “Compêndio de introdução à ciência do direito.” São Paulo:

Saraiva, 1988.

Page 194: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

194

DWORKIN, Ronald. “A justiça de toga.” São Paulo: Martins Fontes, 2010.

EDMONDS, David; e EIDINOW, John. “O atiçador de Wittgenstein: a história de uma

discussão de dez minutos entre dois grandes filósofos”. Rio de Janeiro: Difel, 2003,

tradução de Pedro Jorgensen Jr.

FERRAZ JR., Tércio Sampaio. “O Direito, entre o futuro e o passado.” São Paulo:

Noeses, 2014.

_________. “Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação”, 5ª edição.

São Paulo: Atlas, 2007.

_________. “Interpretação jurídica: interpretação que comunica ou comunicação que se

interpreta?” In: HARET, Florence; CARNEIRO, Jerson (coords.). “Vilém Flusser e

Juristas. Comemoração dos 25 anos do Grupo de Estudos de Paulo de Barros Carvalho.”

São Paulo: Noeses, 2009.

FILHO, Willis Santiago Guerra. “A ilusão da normatividade universalista em face da

nossa superlativa contingência.” In: “Revista Faculdade de Direito PUC-SP”, volume 2,

2º semestre/2014. São Paulo: Letras Jurídicas, 2014.

FLUSSER, Vilém. “Língua e realidade”, 3ª edição. São Paulo: Annablume, 2007.

GAMA, Tácio Lacerda. “Competência tributária, fundamentos para uma teoria da

nulidade.” São Paulo: Noeses, 2009.

GRAU, Eros Roberto. “Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito.”

São Paulo: Malheiros, 2002.

GUASTINI, Riccardo. “Das Fontes às Normas.” São Paulo: Quartier Latin, 2005.

HABERMAS, Jurgen. “Direito e moral.” Lisboa: Instituto Piaget, 1986.

HART, Herbet. “O conceito de direito”, 1ª edição, 2ª tiragem. São Paulo: Martins Fontes,

2012, tradução de Antônio de Oliveira Sette-Câmara.

Page 195: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

195

IVO, Gabriel. “O Direito e a inevitabilidade do cerco da linguagem.” In: CARVALHO,

Paulo de Barros (coord.). “Constructivismo Lógico-Semântico”, vol. I. São Paulo: Noeses,

2014.

JOUANJA, Olivier. “De Hans Kelsen a Friedrich Muller – Método jurídico sob o

paradigma pós-positivista.” In: MULLER, Friedrich. “O novo paradigma do Direito,

introdução à teoria e metódica estruturantes”, 3ª edição. São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais, 2013.

JUNIOR, Humberto Theodoro. “Notas sobre a sentença, coisa julgada e interpretação.”

In: “Revista de Processo”, vol. 167. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.

KELSEN, Hans. “Teoria Pura do Direito”, 8ª edição, 4ª tiragem. São Paulo: Martins

Fontes, 2014, tradução de João Baptista Machado.

MARINONI, Luiz Guilherme. “O precedente na dimensão da segurança jurídica.” In: “A

força dos precedentes”, 2ª edição. Salvador: Juspodivm, 2012.

_________. “Coisa julgada inconstitucional.” São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,

2008.

_________. “Precedentes obrigatórios”, 3ª edição. São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais, 2013.

MARQUES, Cláudia Lima (coord.). “Diálogo das Fontes. Do conflito à coordenação de

normas no direito brasileiro”, 2ª tiragem. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.

MENDES, Sônia Maria Broglia. “A validade jurídica pré e pós giro linguístico.” São

Paulo: Noeses, 2007.

MIRANDA, Pontes de. “Introdução à Sociologia Geral”, 1ª edição. Campinas:

Bookseller, 2003.

_________. “Tratado de Direito Privado”, Tomo I. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954.

MORA, José Ferrater. “Dicionário de filosofia”, 4ª edição. São Paulo: Martins Fontes,

2011.

Page 196: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

196

MORIN, Edgar. “O método 3: o conhecimento do conhecimento”, 2ª edição. Porto Alegre:

Sulina, 1999.

MOUSSALLEM, Tárek Moysés. “Fontes do Direito Tributário”, 2ª edição. São Paulo:

Noeses, 2006.

MULLER, Friedrich. “O novo paradigma do Direito, introdução à teoria e metódica

estruturantes”, 3ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.

NEVES, Daniel Amorim Assumpção. “Manual de Direito Processual Civil”, 5ª edição

São Paulo: Método, 2013.

PEIRCE, Charles S. “Semiótica.” São Paulo: Perspectiva, 2003.

PISCITELLI, Tathiane dos Santos. “Argumentando pelas consequências no Direito

Tributário.” São Paulo: Noeses, 2011.

QUEIROZ, Rafael Mafei Rabelo. “Monografia jurídica: passo a passo. Projeto, pesquisa,

redação e formatação.” São Paulo: Editora Método, 2015.

REALE, Miguel. “O direito como experiência”, 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 1992.

_________. “Lições preliminares de direito”, 22ª edição. São Paulo: Saraiva, 1995.

REGO, George Browne. “O pragmatismo e a análise lógica das consequências na decisão

do Supremo Tribunal Federal acerca da exigibilidade do exame da ordem”, texto inédito.

_________. “O pragmatismo como alternativa à legalidade positivista: o método jurídico-

pragmático de Benjamin Nathan Cardozo.” In: “Revista Duc In Altum Caderno de

Direito”, vol. 1, nº 1, jul-dez. 2009.

_________. “O pragmatismo e a análise lógica das consequências na decisão do Supremo

Tribunal Federal acerca da exigibilidade do exame da ordem”, texto inédito.

RIBEIRO, Diego Diniz. “Coisa julgada, direito judicial e ação rescisória em matéria

tributária.” In: CONRADO, Paulo César (coord.). “Processo tributário analítico”, vol. II.

São Paulo: Noeses, 2013.

Page 197: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

197

RICKEN, Friedo (org.). “Dicionário de Teoria do Conhecimento e Metafísica.” São

Paulo: Saraiva, 2003.

ROSSI, Julio César. “Precedente à Brasileira. A jurisprudência vinculante no CPC e no

novo CPC”. São Paulo: Atlas, 2015.

SANTAELLA, Lúcia. “O que é semiótica.” São Paulo: Brasiliense, 2006.

SCAVINO, Dardo. “A Filosofia Atual: Pensar sem certezas”. São Paulo: Noeses, 2014,

tradução de Lucas Galvão de Britto.

SILVEIRA, Lauro Frederico Barbosa da. “Curso de Semiótica Geral.” São Paulo:

Quartier Latin, 2007.

SOUZA, Fernanda Donnabella Camano. “Efeitos materiais da sentença declaratória.

Perspectivas no tempo e ruptura destes efeitos em face de precedente do STF em sentido

contrário.” In: CONRADO, Paulo César (coord.). “Processo tributário analítico”, vol. II.

São Paulo: Noeses, 2013.

STRECK, Lenio Luiz. “Jurisdição constitucional e decisão jurídica”, 3ª edição. São

Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.

TALAMINI, Eduardo. “Coisa julgada e sua revisão.” São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais, 2005.

TOMÉ, Fabiana del Padre. “A prova no direito tributário.” São Paulo: Noeses, 2005.

TUCCI, José Rogério Cruz e. “Precedente Judicial como fonte do direito.” São Paulo:

Editora Revista dos Tribunais, 2004.

VALVERDE, Gustavo Sampaio. “Coisa julgada em matéria tributária.” São Paulo:

Quartier Latin, 2004.

VILANOVA, Lourival. “As estruturas Lógicas e o Sistema de Direito Positivo”, 4ª edição.

São Paulo: Noeses, 2010.

_________. “Causalidade e relação no direito”, 4ª edição. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2000.

Page 198: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC …...Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também não ignorando as suas estruturas formais,

198

VITA, Jonathan Barros. “Tributação, direito concorrencial e processo: as mudanças das

circunstâncias de fato e de direito no campo da ação revisional do artigo 471 do CPC.”

In: CONRADO, Paulo César (coord.). “Processo tributário analítico”, vol. II. São Paulo:

Noeses, 2013.

WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; e MEDINA, José Miguel Garcia. “O dogma da coisa

julgada. Hipóteses de relativização.” São Paulo: RT, 2003.

WITTGENSTEIN, Ludwig. “Tractatus logico-philosophicus.” São Paulo: Edusp, 1994,

tradução de Luis Henrique Lopes dos Santos.

_________. “Investigações filosóficas”, 3ª edição. Petrópolis: Vozes, 2005.

ZAVASCKI, Teori Albino. “Embargos à Execução com eficácia rescisória: Sentido e

alcance do artigo 741, parágrafo único, do CPC.” In: Revista de Processo – REPRO n.º

125/79-91.