poesia e ficção de péricles prade

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POESIA E FICÇÃO DE PÉRICLES PRADE (semas, semantemas, logomatrias) Jayro Schmidt

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POESIA E FICÇÃODE

PÉRICLES PRADE(semas, semantemas, logomatrias)

Jayro Schmidt

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1Jayro Schmidt

São Paulo - 2011

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2 Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias)

© Jayro SchmidtJayro SchmidtJayro SchmidtJayro SchmidtJayro Schmidt

Todos os direitos desta edição reservados aOliveira Rocha - Comércio e Serviços Ltda.Oliveira Rocha - Comércio e Serviços Ltda.Oliveira Rocha - Comércio e Serviços Ltda.Oliveira Rocha - Comércio e Serviços Ltda.Oliveira Rocha - Comércio e Serviços Ltda.Rua Sena Madureira, 34CEP 04021-000 - São Paulo - SPe-mail: [email protected]/Fax (11) 5084-4544

wwwwwwwwwwwwwww.pantemporaneo.com.br.pantemporaneo.com.br.pantemporaneo.com.br.pantemporaneo.com.br.pantemporaneo.com.br

ISBN nº 978-85-62402-11-1

Na capa, reproduz-se, em destaque,obra de Jayro SchmidtJayro SchmidtJayro SchmidtJayro SchmidtJayro Schmidt.

Editoração: nsm

é marca requerida deOliveira Rocha - Comércio e Serviços Ltda.

11-13377 CDD-869.9109

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Índices para catálogo sistemático:

1. Escritores brasileiros : Apreciação crítica070.449306

Schmidt, JayroPoesia e ficção de Péricles Prade (semas,

semantemas, logomatrias) / Jayro Schmidt. --São Paulo : Pantemporâneo, 2011.

ISBN 978-85-62402-11-1

1. Ficção brasileira 2. Poesia brasileira3. Prade, Péricles 4. Prade, Péricles - Escritoresbrasileiros - Crítica e interpretação I. Título.

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Dependendo do dia,noto-me alvo ou flecha.

Péricles Prade

A imagem é aquilo em que o ocorrido encontra o agora num lampejo, formando uma constelação.

Walter Benjamin

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Sumário

Introdução ..................................................................... 7

Primeira Parte: Poesia .................................................... 9Gênese panorâmica ........................................................ 9Signos e sepulturas ......................................................... 11Palavras lemes ................................................................ 16Voo e chifre ................................................................... 23A aura ............................................................................ 25Lírica limiar ................................................................... 27Fogo e faróis .................................................................. 32Coisa de palavra............................................................. 36Simbólico, andaluz, ibérico ............................................ 37Hermenêutica e iconografia ........................................... 47Arma branca .................................................................. 52

Segunda Parte: Ficção .................................................... 55Cão ................................................................................ 57Alçapão .......................................................................... 60Realejo ........................................................................... 62Corvo ............................................................................ 64Espelho .......................................................................... 66Correspondências .......................................................... 68

Terceira Parte: Imagens Multievocativas ........................ 77

Índice Onomástico ......................................................... 83

Bibliografia .................................................................... 91

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Introdução

Desde o livro de estreia em 1963, Este interior de serpentesalegres, Péricles Prade tem mantido regularidade editorial emsignações não afetadas por suas atividades profissionais, fazen-do dele um artista que antes de tudo é um cidadão do mundo.

Em meio a estas solicitações levanta-se uma voz poética emcoordenadas visionárias que desfazem as fronteiras entre o reale o irreal, que seriam instâncias provisórias, demarcatórias ape-nas, pois os estados poéticos são imaginários. Os poetas acredi-tam que nas coisas e em suas relações objetuais há substratos síg-nicos que transformam aparências em aparições.

A regularidade editorial de Prade forma um panorama comode fato é a visada de um todo que conciliou caos e caosmo, noqual cada parte repercute nas demais. Seus livros compõem umúnico livro, o livro dos livros que na tradição esotérica tem aspáginas em branco e na exotérica o livro escrito por vários au-tores. O livro infinito de Borges ao atribuir aos poetas, na tradi-ção do novo, a criação dos precursores. Os seus, poetas inglesese Kafka, entre outros, e mais ainda ao se reportar ao oníricocomo simetria de almas e de continentes a exemplo de Coleridge,no Livro dos sonhos.

Um imperador mongol (Kublai Kahn), no século XIII, so-nha com um palácio e o edifica conforme a visão; no sé-culo XVIII, um poeta inglês (Coleridge), que não tinhacomo saber que esta construção se originou de um sonho,sonha um poema sobre o palácio.

Pouco importa se o sonho de Coleridge tenha sido uma for-midável coincidência ou simplesmente uma invenção. E nem éo caso de se duvidar de Próspero, o mágico de A tempestade:“somos feitos da matéria dos sonhos”.

O livro de livros de Prade, sem reservas, mas com rigor notratamento das palavras, tem a assinatura pessoal do movimen-to rápido dos olhos sem a indecisão sonhada por Russell, com

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papéis que deixou sobre a mesinha no colégio, em um deles es-crito: “O que se diz do outro lado não é verdade”. Ao virar opapel, no transcurso do sonho, leu: “O que se diz do outro ladonão é verdade”.

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Primeira Parte: Poesia

Gênese panorâmica

Com mais de vinte livros publicados em poesia e ficção, Pra-de, no entanto, é escritor do conciso, da palavra lapidada, claracomo é a natureza do pensamento. Sem dar fôlego a interpola-ções literárias, sua poética lembra o acendro de grifos e cifras daimaginação. A palavra bisagra, limiar, operação de sinais, poli-mentos com cinzas.

Quanto mais brinda a concisão, mais a poética é fantasma-górica, contrastando a claridade das palavras com um mundoabsolutamente estranho, sinestésico e alucinógeno. Mundo so-brenatural, não fosse a evidência subliminar, natural como a luzfiltrada por uma abóboda que se sustenta por perfeição numéri-ca. A naturalidade das palavras de Prade é a mesma das imagensdo sonho, porém complexas se não há domínio de sombras, re-flexos, projeções e bifurcações que fazem parte do subsolo damente, no qual se encontram criaturas em formação e que opoeta transforma em imagens fantásticas com as sondagens acu-muladas desde os precursores do inconsciente em arte literáriae pictórica.

Este é o ponto, o tópico, o traçado de um agente inventivonas palavras e nas imagens que têm toda a estocástica posta emcirculação pelos poetas e pintores metafísicos, para não dizersurrealitas simplesmente. Há, portanto, uma genealogia em suapoesia que diz respeito a motivações que fazem do ato de escre-ver a vivificação do que é paralelo às palavras imagísticas, istoé, mundos limítrofes, os mesmos que são vistos entre o sono e avigília. Nesta arte de elaborar imagens que diferem de seus mol-des, as palavras não são estranhas e sim o que exprimem em ter-mos de mundos possíveis em esferas tão palpáveis como são asde um problema matemático típico de Riemann. As lendas dizemque se trata de uma porta mágica, e as deduções numéricas quesão projeções da quarta dimensão. Em caso de se poder compa-rar um poema de Prade com o retard duchampiano, o mesmoseria a passagem ao invisível que pode ser desenhada com a pro-

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jeção descritiva ou com a proposição do sofisma sobre a luz queincide sobre corpos que projetam sombras em duas dimensões.Por que não pode o mundo visível, que é tridimensional, ser aprojeção de uma realidade em quatro dimensões que não conhe-cemos?

Esta é uma pergunta a que a poesia dá muitas respostas,sobretudo a que permeia as mesmas questões postas pela filoso-fia, como, por exemplo, a de Wittgenstein. Mas como assim? Umlógico poderá dizer alguma coisa sobre o que um poema faz,enquanto é feito com probabilidades? Um lógico como Wittgens-tein, sim, ainda mais por ter feito experiências com a hipnosepara melhor obter o que deve ser obtido pela lógica: a clareza.Abro as páginas de suas filosóficas investigações e está ali, subli-nhado: onde há sentido, há ordem perfeita. O imaginário temoutra ordem “porque pode-se pensar o que não ocorre”. Trans-ferindo esta ordem para a estocástica, transfere-se a lógica deWittgenstein para a relação entre o que não ocorre e o que ocorrepor variáveis aleatórias de Markov. Sonho e estocástica têm emcomum alguma coisa que precipita as demais, no sonho de ma-neira relativamente involuntária e na estocástica voluntária nasescolhas que podem ser feitas. Com isso não quero dizer quePrade recorra a teorias de ambas as modalidades. Pelo contrário.Tanto o sonho como a estocástica fazem parte da memória con-temporânea, dos gestos psicofisiológicos dos criadores – heran-ça substancial do moderno e de vanguardas, o expressionismo,o abstracionismo, o futurismo, o dadaísmo e o surrealismo. Sãoas propriedades intrapoéticas de signos da contemporaneidadeque, em variações, ultrapassam as influências, suplantadas pelascontaminações remissivas e prospectivas que formam paideumas.Interessa o que está formado, mais ainda o que está em forma-ção. Pois é a formação estocástica que pertence a todos na defi-nição de Décio Pignatari.

Quando falamos ou escrevemos, em verdade, estamosprocedendo a rapidíssimas seleções de signos em nossorepertório, numa ordem organizativa, às vezes bastantemaleável, prescrita pelas normas do sistema; não nos da-mos conta do fato porque o processo já está automatizado,

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por meio dos constantes e reiterados feedbacks (auto-in-formação) da aprendizagem. Mas basta observar como acriança aprende a falar para percebermos as relações es-truturais entre os processos do feedback, da cadeia deMarkov e da formação do repertório. Estatisticamentefalando, as leis que comandam o processo integrado sãoas do acaso-e-escolha (chance & choice), ou seja, leis daprobabilidade.

Não cabe na abordagem da poética de Prade, portanto, aaplicação estrita das cadeias de Markov. O que cabe é frisar quecom a desconstrução da linguagem clássica pelos modernistas,implodiram-se monumentos estéticos. Apagogia do belo e donovo iniciada por Mallarmé com “as subdivisões prismáticas daIdeia”, prenúncio da estocástica como recepção e emissão dasemiótica como vinha acontecendo com a vontade no pensamen-to de Nietzsche, e, mais tarde, com a probabilidade na arte devanguarda no que tinha de parentesco com a filosofia e a física.

A estocástica tem muitos exemplos na poesia brasileira, co-meçando com Drummond e o poema da pedra. Um caminho pordentro da linguagem proporcionado pela Semana de 22, e, porhorizontes estatísticos de poética teórica, outros rumos depois dapassividade discursiva de grande parte da Geração de 45.

Menciono o poema de Drummond não somente por ser ummarco histórico da poesia em língua portuguesa em impassesmetafísicos por não ter metafísica, pedra revitalizada e perturba-dora, biografada pelo autor mais pelo que disseram seus detra-tores. Mencionei para situar que na estocástica são inevitáveis arepetição e a variação que uma vez escritas alteram significaçõesque fazem parte das expectativas de cada poeta. No caso de Pra-de, que tem muito de representação e de apresentação, são im-previsões de cruzamentos metamórficos, todas vinculadas a se-mas, semantemas e logomatrias.

Signos e sepulturas

O termo sema, de origem grega, significa signo e sepultu-ra. Os significados subjazem, estão sob um véu reativo. Em si-

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lêncio esperam ser chamados, nomeados, ou também chamam ospoetas para que encontrem as suas próprias vozes. O sema, umavez despertado, conjuga o sujeito e o mundo, pois entre ambosestá o signo por virtualidade. Os signos operam a consciência eassim estamos em outro mundo, o da semiótica, que em sua ori-gem foi a arte de tratar, de diagnosticar.

A palavra semiótica foi introduzida na filosofia modernapor Locke, reconhecendo-a como lógica assim como em Peirce,e em Wittgenstein com a “terapia gramatical”, vista por Morris,em seus desenvolvimentos, como tendo funções de linguagem:sintática, semântica e pragmática. Com a sintaxe ocorre a rela-ção dos signos entre si, com a semântica a relação dos signos como que significam, com a pragmática a relação entre os signos eseus intérpretes. Morris aperfeiçoou a semiótica de Peirce, queteve o mérito de fundá-la como método filosófico e científico.

A semiótica peirciana não se restringe ao discurso, reportan-do-se a todas as formas de conhecimento e de expressão, o quefez Barthes pensar a semiologia, na Aula, como “cadeira móvel,curinga do saber de hoje, como o próprio signo o é de todo dis-curso”. A semiologia, neste caso operacional, teve grande desen-volvimento na “análise das narrativas”, prestando serviços ine-gáveis “à História, à etnologia, à crítica de textos, à exegese, àicologia (toda imagem é, de certo modo, uma narrativa)”.

Apesar de a linguagem ser preferentemente discurso emfunção da semiose das palavras, fazendo com que a semiologiaseja metalinguagem, a semiótica forneceu as condições funda-mentais para o surgimento de teorias e práticas informacionaisem suportes abrangentes, nos quais tudo se dá por descontinui-dade da comunicação na multiplicidade de canais, de meios ourepertórios. A redundância e a banalização são os mais inconve-nientes produtos dessa indústria com seus apelos vazios, aosquais os artistas reagem com o noético, por si mesmo um atoproblemático e crítico.

Peirce, em um dos ensaios que compõem Semiótica, definiua estrutura sígnica por modalidades interativas de significados esignificantes.

Ora, um signo possui três referências: primeiro, é signopara algum pensamento que o interpreta; segundo, é sig-

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no para algum objeto que se lhe equivale nesse pensamen-to; terceiro, é signo sob algum aspecto ou qualidade queo liga ao seu objeto.

Observa-se que a definição do signo, em suas referências,enfatiza o pensamento como atividade psicofisiológica, o queinteressa sobremaneira ao campo da arte, principalmente da li-teratura e da pintura em interpretações do mundo e invençõesde signos. Os objetos ficcionais e pictóricos relacionam conota-ções e denotações, ou seja, sentidos imediatamente condiciona-dos por referências entre o mundo e o sujeito postos na lingua-gem. A ideia de ser, por ontologia, já seria um significar o pen-samento do mundo e o mundo do pensamento. Uma via duplaque se unifica ou, melhor ainda, uma circularidade que desfaz olimite entre linguagem de coisas e coisas de linguagem.

Os ícones, os índices e os símbolos podem ser estudadosisoladamente, sendo eventos de um todo sob circunstâncias domundo e do sujeito intermediados pela linguagem: o ícone re-ferencia a semelhança, o índice a causalidade, o símbolo a con-venção ou a arbitrariedade. Suas aparições nas obras de arte equi-valem, para expandir suas energias metonímicas e polissêmicas,a pentimentos – finas camadas de sentidos que se acumulam edesvelam umas às outras como se vê em “A traição das imagens”,de Magritte.

Cada vez que observo a reprodução do cachimbo de Magrit-te, penso sobre a representação do visível que deu imagem aoque é mudo nas coisas. Visibilidade do invisível, verismo paraprovocar a ilusão de ótica que sugere que no aparente mais apa-rente está subentendido o através com as imagens. O recurso doengano de visão tem apenas um vínculo com o figural levado aoextremo de sua possibilidade no contexto em que a pintura foirealizada, no experimento da imagem como signo, que não éfixo: media, correlaciona, referencia. Incomparável é a forçainventiva que se pode obter com o símbolo por seu caráter arbi-trário e que armazena o iconográfico e o indicial, no qual a ima-gem é metonímica, ao passo que no ícone e no índice a imagemé metafórica pela intersecção icônica com o objeto e a reuniãoindicial com o objeto. Esta simbolização foi a percepção semió-

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tica de Magritte, que não é um caso isolado na radicalização dasvanguardas, mas é o reflexo mais específico, valendo-se da ex-perimentação do “automatismo psíquico” como atividade pura-mente semântica em função das correspondências entre sono evigília. E com este deslocamento de intencionalidade poética,então ele pode dizer, ao pintar o cachimbo, ceci n’est pas unepipe, isto não é um cachimbo. O título da pintura questiona odado sensorial ao submetê-lo ao dado conceitual. O ícone doobjeto está ali com todos os seus atributos, por analogia repre-sentacional do forno e do canal de madeira encaixados no ossodo bocal com o metal anelado. Além disso, o mais significante éque Magritte pintou a frase como imagem indicial, cujo enuncia-do afirma categoricamente que o ícone acima, o cachimbo, nãoé um cachimbo. O enunciado é claro na sintaxe e na semântica,o que não dá margem para que se pense que o cachimbo é outracoisa – sendo ele mesmo, porém como engano ou traição doshábitos sensoriais. O verismo da imagem, Magritte apresentoupor semiose visual, proporcionando ao receptor a oportunida-de de pensar que no aparente está o transparente.

Os enunciados de Magritte, como os da vanguarda de ummodo geral, queriam mudar as direções da consciência e isso sig-nificava, em primeiro lugar, varrer a opacidade mental que mol-da as normalidades, as convenções e outros aparatos do gênero.Então, vários dadaístas derivaram para o surrealismo, movimen-to que colocou definitivamente a linguagem entre a consciênciae o mundo sob a estocástica que gradualmente substituiu proble-mas estéticos por problemas semióticos. Outras vanguardas, nosmesmos impulsos, fizeram da realidade da visão a realidade doconhecimento, como são os casos do cubismo e do abstracionis-mo. Enquanto o dadaísmo e o surrealismo traziam à consciên-cia a experiência semiótica do onírico com a fusão de ícone eíndice sem abandonar o objetual e o figural, o cubismo efetuavaum corte no analógico-imitativo, um processo que atingiu a for-ma completa do abstrair com Kandinsky, Mondrian e Malevitch.

Por ter envolvido a interpretação de Magritte com analíti-ca, não poderia deixar de comentar que a semiótica também ser-viu para que a filosofia da linguagem abreviasse a especulaçãometafísica impregnada de interpretações adjacentes, quando o

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objeto da inventividade é a leitura crítica das adjacências, ideo-lógicas ou não, daí seu caráter antitético, o que lhe confere au-tonomia em relação a teorias e sistemas. E isso se deu graças aosavanços em semiose nos próprios objetos artísticos, todos vincu-lados aos conceitos de contemporaneidade, que abarcam todosos tempos. Desde os modernos, que colocaram o novo no lugardo belo, o pensamento estético tornou-se analítico – análise dalinguagem e de novos problemas como em Picasso na elabora-ção de “As senhoritas d’Avignon”, imagem mental que em partecontradizia o que havia pintado anteriormente com a efusão lí-rica dos fauves. E esta imagem desenvolveu-se como princípio decontradição das formas que expressaram, por sua vez, a contra-dição da vida, da história. Além disso, Picasso estava evitando orepresentacional como ilusão, apresentando assim um cômputode inferências sobre o falso e o verdadeiro, o principal objeto daanalítica. A lógica, entretanto, não pode admitir que algo seja aomesmo tempo falso e verdadeiro. De qualquer maneira, até queponto a lógica pode aceitar que na expressão não seja uma coisanem outra, nem o falso nem o verdadeiro? Há uma passagem nasproposições de Wittgenstein, em Investigações filosóficas, queesclarece o impasse.

Quando dizemos ou achamos (meinen) que algo está desteou daquele modo, não nos detemos num ponto qualquer,com aquilo que achamos, diante do fato: mas achamosque isto e aquilo está deste ou daquele modo. Mas pode-se expressar este paradoxo (que na verdade tem a formade uma evidência) também assim: pode-se pensar o quenão ocorre.

Pensamento e linguagem são correlatos do mundo, são ima-gens. Wittgenstein pergunta por que são usadas essas palavras.A resposta está no “jogo de linguagem”. Esta ordem antecedea experiência e se estende sobre sua vivência sem as perturba-ções ou incertezas empíricas. O papel da lógica, como essên-cia do pensamento para o filósofo austríaco, seria o de escla-recer, pois o sujeito está sob exigências psíquicas que obscure-cem a linguagem.

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Pensamento e linguagem são confusos porque não dispomosde “uma visão panorâmica do uso de nossas palavras”. Caráterpanorâmico traduz Uebersichlichkeit, que também é clareza porpermitir que se tenha a visão das conexões ou articulações dotodo como se a linguagem fosse uma partida de xadrez.

O perspícuo do panorâmico teve outras vertentes com asemiose, sobretudo na estética informacional, vasta e constanteoperação de meios matemáticos e semióticos de objetos naturaise artísticos sem ignorar problemas intencionais nos materiais.Operações que acumulam informações estatísticas de fontes, derepertórios. Bense, um dos principais seguidores e ampliadoresda estética informacional fundada por Birkhoff e Moles, diz queela não é filosófica do ponto de vista da reflexão metafísica aose valer da matemática e da tecnologia, portanto uma estéticacientífica sempre em progresso e adaptando-se aos sobressaltosdas linguagens contemporâneas. Bense em Pequena estética:“Esta estética foi, portanto, concebida como uma estética obje-tiva e material, que não opera com meios especulativos, porémcom meios racionais”. A estética informacional opõe-se às teo-rias oriundas de Kant e de Hegel, para os quais não havia auto-nomia dos objetos artísticos, subordinados ao sujeito da expe-riência estética e ao sujeito da experiência teleológica.

Palavras lemes

Toda esta digressão foi para mencionar uma das predileçõesde Prade, a pintura, ele mesmo colecionador e crítico de arte,além de seu interesse filosófico de escopo amplo: na logogêne-se, na hermenêutica, na heurística e na icologia.

Com a imantação de reflexão e visibilidade, e sem que hajaa separação de intuição e intelecto, dizia que Prade se beneficiada estocástica de maneira deliberada, resoluta e objetiva, com aobstinação de quem procura abrir um claro no claro. Não seriaoutra a obsessão dos poetas, ainda mais com os versos brancos ea prosa poética por invenção singular de um poeta francês pou-co conhecido, Aloysius Bertrand, que viveu de 1807 a 1841.

Com o verso e o reverso na prosa poética, Prade alonga-separa fora de si e volta com todas as iminências que dão vida a

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um escorpião irônico, lírico e dramático, com o cuidado pitagó-rico-espinosiano para que sobressaia o que é o mais perfeito noanimal, a cauda e o bote.

À maneira dos antigos dicionários analógicos, que trazem oíndice de palavras para orientar as remissões aos respectivos pla-nos classificatórios, empreendo uma jornada por algumas pala-vras lemes na obra de Prade. Este material anamnéstico compõeum índice onomástico-poemático. Pelo tom escriturado de cadauma delas, o real conota irrealidade e o irreal realidade. Palavrascharneiras, algo semelhante à “tribarra” criada, em 1934, peloartista sueco Oscar Reutersvärd, e popularizada pelo físico ematemático inglês Roger Penrose, o objeto impossível, do mun-do às avessas, da ilusão de ótica, mas não tanto uma vez consi-derado o quântico em todas as coisas, no côncavo e no convexoda gênese do caracol, o movimento que enquanto vai para fora,mais se volta para dentro. A “tribarra” serve para a significaçãodo perto e do distante, sempre revertidos: quanto mais próximose está de alguma coisa, mais se afasta e vice-versa.

Os nomes de criaturas míticas e humanas, animais e luga-res na obra de Prade iconizam e indiciam. Para tanto, e para nãoser exaustivo, escolhi quatro livros que espelham os demais: Pe-queno tratado poético das asas, Em forma de chama, Além dossímbolos e Relatos de um corvo sedutor.

Criaturas míticas e humanas: Po-yi, Avicena, Farid-od-Dinn Attar, Ramakrishina, Kinnara, Surya, Vinexu, Ja-tayu, Ravana, Saint-John Perse, São João da Cruz, Buda,Rhiannon, Abraão, Abetarda, Deus, Cristo, Anjo, Fênix,Unicórnio, Zürchen Bibel, Ariosto Giovanni Benvenutti,Tales de Mileto, Adão, Sofia, Verônica, Zózimo, Osíris,Rosinus, Persépolis, Manu, Vishunu, Andrógino, Abu’l-Qasim, Jahvé, Jaldaboath, Melusina, Og, Noé, Moisés,Abba Saul, K’i-Lin, Confúcio, K’ung-Tse, Antonio Pisano,José, Anacreonte, Jesus, Esdras, Percival, Rock Lane, RoyRogers, Tom Mix, Vivaldi, Dionísio, Beethoven, CarlosMagno, Diomedes, Kostro, Jarry, Guillaume Apollinaire,Colombo, Leonardo da Vinci, Esteves, Álvaro de Cam-pos, Martin Corvo, Tiago, João, Judas, São Jorge, Aleis-

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ter Crowley, Afonso Ferreira Borges, Ramsés, LorenzoVizencia, Léon, Tischio, Belmonte Pellegrini, Van Gogh,Tamiris, Homero, Camões, Rousseau, Douamier, Maurí-cio de Nassau, Cléopatra, Demócrito de Abdera, Sansão,Milton, Rodrigo de Haro, Floriano Peixoto, Gioconda,Jean-Paul, Simone, Edith Piaf, Nathaniel, Willian Blake,Jorge Luis Borges, James Joyce, Konstantin Kaváfis,Saint-Exupéry, Lewis Carroll, Picasso, Hyeronymus Bosch,Wittgenstein, Tissaut, Kafka, Bachelard, Rimbaud,Buñuel, Lautréamont, Salvador Dali, Marcel Proust,Charles Chaplin, Eva Perón, Gutenberg, Luigi Pomera-nos, Edgar Allan Poe, Annabel Lee, Pilatos, Marco Antô-nio, Pavarotti, Ernestina Kegel, Amenófis, Prometeu,Satã.

Animais e lugares: Pássaro, serpente, Roma, Paraíso,Meca, águia, borboleta, Curdistão, grou, falcão, coruja,urso, corvo, pavão, dragão, escaravelho, cavalo, touro,búfalo, peixe, rinoceronte, leão, pomba, cervo, antílope,Oriente, ovelha, Jerusalém, Arábia, lagarto, Basan, cor-ça, boi, tartaruga, Canaã, Galileia, Egito, Bizâncio, Babi-lônia, tordo, andorinha, Córsega, mosca, sangue-suga,zangão, bode, América, Lisboa, cão, cisne, Sintra, Guima-rães, Damasco, Cairo, abelha, Gaza, Nossa Senhora doDesterro, Lagoa da Conceição, Florença, Veneza, Paris,grilo, Salem, Mississipi, Tóquio, Buenos Aires, Dublin,Alexandria, lobo, Campeche, Dinamarca, ouriço, Cons-tantinopla, porco, Praia Brava, Ocidente, cordeiro, escor-pião, gafanhoto, javali, Abissínia, lebre, Praia da Joaqui-na, percevejo, Costão do Santinho, Cemitério da Paz,New Orleans, pulga, peixe-espada, Santa Catarina, Cam-birela, Borgonha, tartaruga, rã, Braço do Norte, formiga,aranha, Praia de Canasvieiras, Floresta Negra, centopeia,chacal, Machu Picchu, Mesopotâmia, Lagoa do Peri.

Tenha-se em vista que os nomes, fotogramas de civilizações,reinventam épocas e continentes e compõem a arqueologia ima-ginária do autor, e um autor que em viagens mentais e geográfi-

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cas desenha o mapa de sua força poética e erudita, cujas orien-tações rizomáticas apresentam a pluridimensionalidade do mun-do na unidimensionalidade das palavras. A imaginação do poe-ta é o aleph com a disponibilidade com que emprega o balustri-no e o corta mão para intermediar culturas iniciáticas. Um inven-tário multifacetado que compõe, se o autor achar oportuno, umdicionário de motivos que levam às temáticas, o que seria a bio-grafia de manhãs do mundo nos mistérios da linguagem.

Não cabe aqui discutir as origens da linguagem em fusõesdo ouvir, do ver, do dizer e do grafar que giraram nas mentes dosancestrais, poetas e desenhistas anímicos, todos sob o mesmoefeito – o da natureza com seus feixes de funções que levaramos chineses, entre outros, a colocar ideias em imagens, os ideo-gramas, que são vinhetas configurativas que transferem o agen-te para o ato e deste para o objeto por divisões e não por conti-nuidades como nas línguas ocidentais apesar do alemão, do in-glês e, para o espanto dos gramáticos, do tupi-guarani em suasaglutinações verbais com a qualidade semântica que não disso-cia coisa de ação. Agente e objeto verbais originam o substancialem seu conluio, eminentemente poético no sentido de que osnomes são as próprias coisas em ações sígnicas.

Garimpar as palavras dos contextos em que aparecem, alémdo prazer de reencontrar a nuclearidade poética de cada umadelas, qualifica os giros modais e tonais do pensamento de Pra-de em dois aspectos que se polarizam: o sucessivo e o simultâ-neo. Conclusão: nos poemas ou nos contos aparecem o que épróprio da escritura, a sucessão, e o que é próprio da pintura, osimultâneo. Um princípio de montagem da imagem, que é o ago-ra ou a duração espaço-temporal, que pode ser técnica, mas é,antes de tudo, simetria onírica e estocástica.

Com bibliomancia abro páginas da obra de Prade e leio jus-taposições e sobreposições da sucessão e da simultaneidade. Eassim, sem deixar de estar onde estou, sou levado com a leiturade um sonho para o despertar de outro sonho, este da históriana perspectiva do momento singular que projeta o passado nopresente. A intensidade desta leitura é provocada pela intensida-de poemática como se fosse um esfregar retinas sob pálpebrastransitivas. No lugar de conceitos surgem as imagens, o que não

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deixa de ser mística e dialética, aproximação que para muitos éimprovável, absurda.

Os poemas “Semelhança” e “Fatalidade”, em Pequeno tra-tado poético das asas, 1999, exemplificam a energia com que osucessivo e o simultâneo das imagens na noite iluminada dostempos são atualizados, postos na primeira pessoa com o poetacapaz de adivinhar o voo e o canto ancestral com um de seusprecursores, Saint-John Perse.

Vooe gêmea adivinhação

canto Acudam-me Saint-John Perse e sua ancestral intuição

E mais São João da Cruz Buda e Tao que de tão leves a eles se assemelham

Até agora não havia empregado a palavra intuição, substratode todas as obras de arte, angular na imaginação e na memória,tanto no pensamento ocidental como no oriental com a aboliçãodo conflito dos contrários. Intuição de tantas culturas em ummesmo poema, além do poeta incorporar o que está no pássaro,que o guia: indícios, sinais.

No meu pescoço o pássaro atado

O destino atrai as penas da fatalidade

Quadrilogia por perfeição da escolha estocástica em pares:o pescoço e o pássaro, o destino e a fatalidade. O número qua-tro suporta o mundo e na mitologia do pássaro está a mensagem

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que magnetiza o poeta pela fatalidade de ter que escrever o sím-bolo para criar-se por dentro da cultura que o gerou.

Não é somente neste poema que a paridade é modal, sem-pre impulsionada no tom poemático de Prade, o que resultanuma estrutura de poemas que tem a maturidade de um cristal.A fonte e o correr da fonte e na correnteza algo que aparece efaz dos pares sua gravitação, sua gravidade.

Criançasalmas de crianças

Os passarinhos e as borboletasàs vezes pousavam no umbigo da grávida

MeninoMenina

o sexo é um pássaro que sonha

Linguagem analógica: o erotismo na sombra do bosque, nolivro os rostos do menino e da menina. O sexo sonha um pássa-ro que sonha o ninho, lençol de anagramas da mulher-pantera,o poeta admirando a obra que lhe fita, fendida no “olho” e no“órgão singular quando o desejo agita”. O amante admira-se nacomunhão de que faz parte.

Teu corpo percorroentre os azuis das veias,

fadado que sou ao exagero.

Teu corpo percorro,sopro profano no umbigo,

porto sagrado que Arquimedestocar não atreveria.

Corpo. Teu corpo.

Continente de minha geometria.

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O que se passa com os amantes é segredo, mas em Panteraem movimento, 2006, aparece o voyeur no amante que saciadoescreve o corpo amado. O artista e seu modelo que Arquimedesnão poderia tocar, somente ver se tivesse o espírito travesso deDuchamp e Picasso, ou de Courbet ao pintar a “origem do mun-do” para o colecionador turco Khalil Bey, a gruta de jade, flo-resta antecedida por pilares de alabastro para prevenir os incau-tos em seus segredos e armadilhas. Entrar neste non ultra, até aIdade Média, era provar o memento mori. Ao que era, paraColumbus, “doçura de Vênus” e “sede do prazer da mulher”,Aristóteles havia chamado de “nobre coroa”, cantada mais tar-de como “jardim formoso”, para os espanhóis “sorriso vertical”,bem exposto em suas delícias por Picasso com o espectador naobra de traços erotizados, porém voyeur que não vê o que ve-mos como se vê através do orifício da porta hermética de Du-champ, a mulher-herma distendida em sua própria nudez e quesegura uma lâmpada que acende e apaga, tendo ao fundo umapaisagem paradisíaca, à maneira dos cenários de teatro, com acascata da menina mítica que se transforma em fonte caudalosa,logo mulher de carne querida e que atravessa a cidade da memó-ria.

Deusa volátilatraída pelas nuvens do prazer

esvaiu-se

muito cedo.

O espaço entre os três versos e o quarto reafirma a cesurada passagem, da passante de Baudelaire em pleno rumor da ave-nida, no frenético alarido, a encantadora parisiense que ele en-controu, bizarro e basbaque em seu olhar. Para Benjamin, amorà última vista na multidão.

Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste,tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste!

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Voo e chifre

Na introdução de Pequeno tratado poético das asas, 1999,diz o autor que os pássaros reais ou míticos “desde a infância têmprovocado” o “imaginário poético no percurso de seu voo men-sageiro, pleno de presságios, rumo ao desconhecido que nosgoverna”.

Invejável é esta convicção que faz parte da história, do vooda história que parodia o anjo anunciador. Poemas e pinturasnórdicas estão sob esta mítica figura de apocatástese, de reden-ção. Menciono, apenas, Rilke, Trakl, Kafka e Klee, ressaltandoque para Hegel a ave da história é um abutre. Anjos que dizemsobre rupturas cíclicas como nos de Kafka, Benjamin e Klee.

O anjo de Kafka aparece em um esboço de conto em Diá-rios, o sonho com um anjo que ao anoitecer entrou pelo teto noquarto, que nele o sonhador passou o dia sem, contudo, pressen-ti-lo. O anjo deveria falar com ele, pensou, mas, aos poucos, nãoera mais “um anjo de verdade: era apenas uma figura de madei-ra pintada da proa de algum navio, do tipo que costuma ser pen-durada no teto das tavernas de marinheiros”. E o sonho prosse-gue para o mais surpreendente. O sonhador havia arrancado alâmpada do teto para melhor dar passagem ao anjo e, para nãoficar no escuro, acendeu uma vela no punho de sua espada ago-ra servindo de candelabro, ficando “sentado até tarde sob a luzfraca do anjo”.

O anjo de Benjamin é uma das teses da história com a lei-tura dialética e messiânica de tradição e modernidade em umaaquarela de Klee, “Angelus novus”, que paira com as asas aber-tas sobre o abismo onde destroços acumulam-se sobre destroços.Diz Benjamin que o anjo gostaria de ficar ali, de costas para ofuturo, mas um vento que vem do paraíso o empurra para fren-te, ao devir da história. Esse anjo representa o progresso, é apotencialização de energias do modernismo em oposição à mo-dernização com todas as suas ruínas. A tese de Benjamin despertacamadas mais profundas da história pela mimética das imagensao “atravessar o ocorrido com a intensidade de um sonho paraexperienciar o presente como o mundo da vigília ao qual o so-nho se refere”. Proposta utópica com recorrência a Bloch: “Cada

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época sonha a seguinte, mas ao sonhar esforça-se em despertar.Ela carrega em si seu próprio fim”.

Na apocatástese da ave em Pequeno tratado poético das asas,tão concisa como de fato é o despertar símbólico – no pescoçoo pássaro, no destino a fatalidade – o poeta deu outros nomes aseus membros e projetou entre o pássaro e o voo semas gerado-res de semantemas, que de uma figura do mercúrio seguiu parao animal mítico e terno, o unicórnio. Veja-se, como exemplo, opoema de Abba Saul nas variações de Em forma de chama, 2005,motivado pelo diálogo rabínico, no qual ele conta que foi covei-ro: ao correr ao encalço de uma corça, foi parar dentro do fê-mur de um defunto, de Og, mitificado em montanha, mas semapanhá-la por não ter encontrado o fim do osso.

Sou Abba Saul: onde a corçavai lá estou, perseguindo-acomo parafuso faminto

No fêmur do mortoestacionei, a Corça, não velozcomo flecha solteira

O osso era o de Og. Dentrodele medulanão havia: só o restode um corno branco. Ognicórnio

Na mítica do rabino, o osso foi polido pelo símbolo talcomo é o osso branco da poesia nas semelhanças e diferenças daspalavras.

O unicórnio é a água andrógina que se reparte em luz, osímbolo do “benévolo animal” que somente pode ser capturadose descansar no colo de uma virgem. O enxofre da urina, a pri-ma materia de Paracelso, o incriatum, o que vem de si mesmo.

É a si mesmo que se geracom essa forma nada sutilem grave movimento

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O separatio elementorum da alquimia, a urina do unicórniocurativa. Ur é fogo, a simbólica da doutrina das assinaturas deParacelso que Hennig Brand estudou com a trasmutação, a na-tureza que se revela por meio de símbolos. Com os poucos co-nhecimentos que tinha de alquimia, Brand constatou que ener-gias químicas estavam em resíduos, incluindo os do corpo huma-no, constatando que na urina estava a transmutação pela evapo-ração, putrefação, fervura, empastamento, fermentação e aque-cimento em uma retorta, na qual a matéria destilava-se brilhan-te, que se inflamava e soltava vapores. Brand, maravilhado coma descoberta, chamou a substância química de “fósforo”, do gre-go phos, luz, de phoros, o que dá.

A aura

Para a minha surpresa, enquanto garimpava nomes em seuslivros, Prade foi encontrado em matrizes onomásticas no poema“Brevíssimo inventário de palavras nervosas”, na secção “Ilumi-nuras” de Além dos símbolos, de 2003.

Cavalos de Diomedes, Kostro, Cardeal, polpa, bicicleta,Jarry, espátula, mosca, mousse, água-morta, avatar, zigue-zague, Córsega, agulha, assassinato, corneta, obra-prima,veneno, pálpebra, sanguessuga, leite-moça, proparoxíto-na, esdrúxulo, zangão, urina, feras, pás, escaravelho, bodebranco, tique-taque, potranca, fogo, brisa, brita, frieira,espinafre, curto-circuito, incunábulos, vidro moído, lepra,naftalina, Gomorra, tico-tico no fubá, prisão perpétua,vinagre e, naturalmente, pomba-gira.

O título do poema, que se refere a inventário por ser docu-mental de escolhas imaginárias com o cognato saber e sabor, aomesmo tempo diz sobre o desconhecido e o conhecido, o inco-mum e o comum. As escolhas são aleatórias, mas sem que sepossa subestimá-las porque há a intencionalidade formada e emformação no ato de escrever. O poeta, ao trabalhar com o aca-so, foi trabalhado por ele. Um poema surge porque de algumaforma já estava feito na vida de cada percepção. O poema pode

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ser uma vivência, mas é, sobretudo, uma experiência. Por con-seguinte, “bicicleta” e “Jarry” não poderiam estar separados,enquanto “mosca” está perto de “ziguezague”, a mosca do poe-ta, seu olho que costuma ter leitura de raio nas folhas da vida edos livros de sua afeição escrita e figurada. “Agulha”, “assassina-to” e “corneta” correspondem-se, como também “obra-prima”e “veneno”, e assim por diante. No final do poema, o “natural-mente” o conceituou por suas imagens: poeta e poema traduzemum original superior com a logomatria – pomba-gira da poesia.

Outros poemas dariam conta de toda estocástica noéticapradeana. Além dos símbolos, entretanto, tem a particularidadede situá-la na problemática da aura, começando com o título.

O símbolo tradicional é para ser visto e o que nele é visto éa aura, em uma palavra, o cultual. Somente um pensador comsuficiente visão dialética, como Benjamin, poderia com tantapropriedade pensar que o advento da vida moderna suplantouduramente o cultual com a mercadoria, identificando-a com aarte.

Brilhante ensaísta, Benjamin não visou uma teoria geral daarte, antes fazendo a revisão clarividente de possíveis teoriasacerca da volatização intrínseca do novo percebida por Baude-laire, comparando a arte com a moda. É o seu conceito de arteque Benjamin vai considerar como insuficiente ao exigir do ob-jeto artístico o eterno no transitório. Ao imutável juntar-se-ia orelativo “fornecido pela época, pela moda, pela moral, pelaspaixões”. O artista, desta maneira, encontraria aquilo que Bau-delaire chamou de modernidade em O pintor da vida moderna.E Benjamin foi mais longe. Ao aclimatar o conceito de moder-nidade na filosofia alemã, que reclamava uma substância eternada arte, radicalizou-o com a ideia de que o novo, no instantemesmo de seu aparecer, já trazia o seu envelhecimento. A artepoderia ser isso como mercadoria, assim como a moda que comrequintes parodiava a morte.

Baudelaire não deixou de reivindicar para a arte o estatutode antiguidade, o mesmo fazendo Benjamin, porém sem os atri-butos de eternidade em função da volatibilidade do novo e daperda da aura. O curioso é que Baudelaire escreveu um peque-no poema em prosa que versa sobre a perda do halo. O perso-

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nagem, poeta comedor de ambrosia, ao atravessar a avenida,deixa cair o halo. A sua inquietação diante da perda logo se dis-sipa e até lhe dá satisfação por não ter mais que prestar contasde suas atitudes, podendo até praticar atos inconfessáveis, alémde favorecer algum poeta canhestro em caso de achar o halo,podendo então ostentá-lo e vangloriar-se.

Não se sabe o quanto Baudelaire foi um perfeito ironista,incorrigível na volubilidade com que ora estava ao lado da víti-ma ora ao lado do carrasco. Baudelaire queria a revolução deambos os lados, “a metafísica do provocador” para Benjamin.Quem sabe, na realidade das ambivalências de sua lírica, Baude-laire estava sendo a expressão das descontinuidades psicofísicasque a emergência da vida urbana imprimia em cada passo, emtodos os gestos, fazendo da metrópole o irreversível apelo deescritas, de choques.

Foi esta a fundamental cosmovisão de Benjamin ao repor-tar-se às mudanças repentinas provocadas pela vida nas cidadesmodernas, notadamente em Paris, cuja grandeza formava o tran-sitivo das consciências entre a tradição e a modernidade. Da tra-dição Benjamin ainda percebeu resquícios de aura no aparelhofotográfico, nos daguerreótipos, no congelamento iconográfico,imagens imobilizadas no tempo em lugares fora da cidade, pai-sagens e cemitérios como se fossem intervalos da tradição. Muitodesta aura é matéria das concepções contemporâneas de poesiae artes plásticas, experimentada como tradição do novo commeios específicos ou na especificidade de todos os meios, den-tre os quais a palavra.

A palavra pradeana não desconhece tais sinapses significa-tivas, sendo, em corte transversal do tempo, duração no queguarda de aura no mundo metamoderno com símbolos épicos,de origem mítica, escatológica no ritual da renovação de criatu-ras sobrenaturais, nas quais a lembrança do humano cultua ani-mais, plantas e objetos mágicos.

Lírica limiar

O adiamento da entrada dos primeiros livros de Prade foiestratégico. Preferi este recurso para estar descondicionado em

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suas fontes evocativas que, acredito, circunscrevem um dos con-ceitos de linguagem que mais aprecia, os ilimitados sentidos dasimagens.

As epígrafes tornaram-se, desde o primeiro livro, uma cons-tante com brevíssimas frases mestras, orientadoras de conteúdose formas inseparáveis na lírica limiar de um jovem poeta: Esteinterior de serpentes alegres, A lâmina, Sereia e castiçal. Trilogiade nascedouro, segura no que tinha a dizer nas incertezas pes-soais e da época desagregadora, tenebrosa, na qual as reaçõeshumanas queriam mudar o mundo com a contracultura existen-cial de Sartre, Camus e Vian.

O ser, o nada e a revolta marcaram esta vertente filosóficae literária com o termo adotado por Sartre, existence, para tra-duzir o Dasein de Heidegger, um dos expoentes existenciais aolado de Nietzsche e Kierkegaard. E assim ele teve os fundamen-tos necessários para definir o existencialismo, que influencioutoda uma geração de artistas e intelectuais do pós-guerra: “Aexistência precede e governa a essência”. Outras origens se en-contram em Schopenhauer, Dostoiévski e Husserl.

Sem que houvesse alguma coisa que determinasse o exis-tente, o homem estava diante de si mesmo, da liberdade de es-colhas subjetivas, construindo sua essência, transitória como omundo. Destituído de imutabilidade, o homem estava à deriva,no opúsculo do exitir que Sartre explicou em O existencialismoé um humanismo.

Se Deus não existe, há pelo menos um ser, no qual a exis-tência precede a essência, um ser que existe antes de po-der ser definido por qualquer conceito, e que este ser é ohomem, ou, como diz Heidegger, a realidade humana.Que significa então que a existência precede a essência?Significa que o homem primeiramente existe, se descobre,surge no mundo, e que só depois se define. O homem, talcomo o concebe o existencialista, se não é definível, éporque a princípio é nada. Só depois será, e será tal comoa si próprio se fizer.

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Considera-se que a filosofia existencialista realizou-se com-pletamente na literatura, na responsabilidade da linguagem. Oindivíduo, ao conduzir sua realidade, criava a linguagem de suasescolhas. A concretude da vida posta em palavras significava arealidade mesma do sujeito na privacidade de sua vontade, en-quanto o geral não passava de abstrações catastróficas e absur-das. A linguagem deveria redimir o ato problemático de existira ponto de Heidegger afirmar que “a linguagem fala, não o ho-mem”. Por outro lado, de nada valeu o repúdio de Sartre a Ca-mus quando se desviou da prática política do existencialismocom o primado da prática literária, apta a descondicionar o su-jeito de qualquer ideologia. A Camus não era improvável que ohomem fosse estrangeiro de si mesmo e, ao apresentar-se como“artista” ao receber o Nobel, tinha ciência de que a obra é oencontro de “duas ou três imagens simples e grandes para asquais o coração, ao princípio, se abriu”.

Estas imagens se encontram em Este interior de serpentesalegres, 1963, com a epígrafe crucial de Camus: “Basta mover alíngua para que as trevas invadam tudo e os seres me repugnem”.Surpreende a força com que, aos vinte e um anos, Prade mani-festa a poética descontente, de consciência ampliada do pastorilao urbano, moldando-se com a linguagem lírica, instintiva, aparte obscura que poderia ser objetada no contexto daquela épo-ca que não queria ver no onírico o meio mais crítico da cultura.Um engano interpretativo, o mesmo que levou Jorge de Lima,Murilo Mendes e Ismael Nery ao esquecimento.

Interpretações à parte, Prade integra uma geração catarinen-se de poetas que têm o caráter extraordinário do contemporâ-neo junto com C. Ronald, Lindolf Bell e Érico Max Müller. Pra-de e C. Ronald não participaram da Catequese Poética, mas osmotivos não importam: o fato é que eles não foram menos ur-gentes no sentimento do mundo, no que faz a poesia ser poesia– a lembrança do que devemos ser por resistência utópica.

Quais as imagens do poeta, jovem encanecido? O mundo éum carbono, as emoções ficam estranhas, não existem promes-sas. Não há retorno, o poeta está condenado a ser livre, daí aangústia e a comédia. Fica a emoção da corda e do pescoço.

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Entre o imprevisto e o ousado nascendo dos gestosConservo o ritmo de ouro destas veias incertas.

O suicídio é simbólico, a poesia não tem idade, a morteperdura para rejuvenescer a palavra.

Ah, noturno, haverei de batizar com sangue a alegriade amar o desconhecido no mundo, porque somente assimserei feliz como Calígulana serenidade triste do impossível.

A gula de se formar sem se conformar. Fome de mundo,ternura da sobrevivência, do respirar. O homem quer ser pássa-ro, criança do futuro. Todas as manhãs findam e a poesia não secompleta no escrever, que é redescoberta. No jovem poeta estáo ancião.

No mesmo ano de Este interior de serpentes alegres, 1963,A lâmina deu continuidade às inquietações existenciais aclima-tadas nas antinomias da procura e do encontro de linguagens.Dos versos o poeta passou ao poema em prosa indagativa e comforte acento narrativo, retomado na década seguinte com a fic-ção.

Uma lâmina de perguntas sobre a verdade do humano ouda animalidade perdida. O que mais importa, o “essencial”, é queno mundo “as coisas tenham existência, mesmo absurda”. Oanimal parece saber da força que habita o homem, que quer sairde si, estar em outro lugar, natural como a infância, a imagina-ção, a corrente sanguínea. O poeta, em expectativas ansiosas,aspira o incessante, o movimento da vida.

Tudo o que é estático me desagrada. Tudo o que é imóvelme dá náuseas.

É a outra natureza, a do panteísmo, que poderá livrar ohumano da moral, a doença da manada humana. Ferir para co-nhecer e simbolizar para crer, ainda que a queda seja o mundo eo vazio permaneça.

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O vazio permanece no homem como água transparente.O vazio permanece no homem como sangue sujo. O quepoderás criar na infância de teu corpo e voz? Não sei.Deves ser raiz e flor ao mesmo tempo. Deves crer em ti,no teu núcleo, no teu nó, na tua força.

O que poderá ser criado é aquilo que se é. O conhecer é umacreditar com o esquecimento das nuvens, o humano cruamen-te lançado na imanência.

Depois do convulsivo A lâmina, as erosões emocionais cris-talizaram-se em Sereia e castiçal, 1964. Ao tom elegíaco sobre-veio o tom idílico, apaziguador com a convicção de que a poe-sia é a infância reencontrada como se lê na epígrafe geral do li-vro, de Baudelaire: La poésie c’est l’enfance retrouvée. A origi-nalidade dos poetas modernos estava na infância da palavra, aságuas de ma soeur, o nome da poesia.

O nome de todo poeta adolescente ingressando na maturi-dade do poema, que se dirige finalmente ao outro, nele refleti-do, o nome de uma moça violeta, Arminda. Ao ter procuradouma filosofia, encontrou a rosa de sangue, a palavra que fermen-ta, a carne radiante da amada mulher-bengala, mulher-libélula,mulher-sereia. O amante cresce em ilha, carne de espumas, sar-gaços, vogais da cultura que criou.

Sou caçador e fera nesta corrida loucapara o domínio do mundo. Do vasto e largo mundoque abre um abismo na dor e outro na flor.

Na trilogia inicial estava o poeta futuro, constante de epí-grafes e de alusões que formam seu firmamento espiritual. Nãoé à toa que a triangulação encerra com Cruz e Sousa, o poeta daexistência simbólica, com o “bordão clemente”, o sonho, crian-do-se como um original.

Sei que no teu interior de neveo segredo da abertura do infinitomostra-se puro como o símbolo.

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A admiração de símbolos por Prade foi precoce, daí Cruz eSousa e o sentimento que o desterrense transformou em “hóstiade ouro”.

Fogo e faróis

Sem forçar a simbologia e a fenomenologia do fogo, ospoemas de Nos limites do fogo, 1976, têm a elevação da chama,que é cônica, piramidal, figura de simetria do pensamento, queirrompe de um ponto interior e evola. Esta simetria não é alheiaà estrutura poemática no referido livro de Prade, caracterizadopelo fluxo de consciência em fragmentos portais aos demais poe-mas. Um poema evocativo e narrativo, “O escorpião sonolento”,com mínimas pontuações e alinhado em ambas as margens, se-quenciais, mas guardando autonomia em cada um dos frag-mentos que podem ter leituras isoladas e alternadas. São vintefragmentos infinitivos e que por velaturas despertam outros poe-mas no monólogo da leitura.

Nos limites do fogo tem a densidade de imagens em atritos,fagulhas, crepitações de matérias em formação e na primeirapessoa fáustica que se recusa, diante do mar, explorar sua ener-gia armazenada desde o tempo original, visto da colina comMefistófeles, o cavaleiro e o réptil traidores. Um herói que des-confia da perda de sangue em nome do tentador que quer levá-lo à exploração da natureza no canteiro de obras, da matéria quepara ele é livre na contemplação e no estudo do fogo e da águado casal originário, antes do tempo da usura, da alienação hu-mana. Nos limites do fogo é a invenção da eletricidade poética,mas o destruidor está à espreita, sedento, frente ao mar – a “pla-centária lembrança” do lugar ameno, imemorial, que não deveser tocado.

Não me convenceo sangue que perdi em teu nome,Mefistófeles.

Cruzamos o limiardo gesto cruel,

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oh treva inconsútilque me devora.

Repousa logo os crespos cabelos,tu, sábio, luminoso pecadoque incendeia as veias do morto.

Entre Nos limites do fogo e Os faróis invisíveis, 1980, háuma proximidade acerca da disposição visual do poema, em si ena página, radicalizada na forma de um sinete, de um lacre, deum ícone de palavras que indicam tanto as estimativas visuais dopoema como a familiaridade do autor com pinturas que sedimen-tam os poemas no campo expandido da arte, ou seja: o desenhoda página com o desenho das frases, entre e nos quais os espa-ços em branco fazem o mesmo que fazem as formas supremas deMalevitch, em amplas superfícies brancas, por onde o olhar ga-nha força transformadora. Não são as representações figuradasna inventividade de Prade que impedem as recepções espontâ-neas das apresentações abstratas, cujos equivalentes verbais sãoas ideias ou conceitos.

Em “limites do fogo” e “faróis invisíveis” as notações res-peitam estes cortes e recortes como se os poemas fossem som-bras chinesas que oscilaram em Os faróis invisíveis para o assi-nalado por Claudio Willer, a transgressão tal como foi formula-da por Bataille e, com o prazer da linguagem, por Barthes. Oprazer é perverso pela própria natureza de seus impulsos e o tex-to o prazer da escritura. A transgressão é a da linguagem ao di-zer-se, e transgressão de linguagens imobilizadas pelo o ter quedizer sobre alguma coisa.

Dentre os comentadores da obra de Prade, a abordagem deWiller é praticamente isolada ao concentrar-se na questão da lin-guagem, em signos de signos, poemas sobre a linguagem sem,entretanto, o sacrifício do factível numa circularidade apontadapor ele, a tautologia de Octavio Paz e, digo, dos lógicos de Vie-na, que elaboraram um sistema que tem como premissa a reto-mada da proposição que vai do simples ao mais complexo, man-tendo-a em constante ebulição. Tudo é tautologia, exceto as cons-tatações sensoriais.

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Willer detecta a autenticidade da poesia neste “círculo vi-cioso”, o da palavra que se volta sobre si mesma, sem que hajauma exterioridade comandando-a, somente “o puro jogo de pa-lavras, o lúdico, o prazer”. A perversão da linguagem que baldapoderes da linguagem em O prazer do texto, de Barthes.

A Lei, a Doxa, a Ciência não querem compreender que aperversão, muito simplesmente, torna feliz; ou então,mais precisamente, produz um mais: torno-me mais sen-sível, mais perceptivo, mais loquaz, distraio-me mais etc.,e neste mais vem situar-se a diferença (e a partir daí oTexto da vida, a vida como texto).

De nada adianta amarrar a poesia em uma corrente ou su-percorrente, sujeitando-a a ser o que não é, ou pouco que é, ni-velando-a no sincrônico, que não pode levar em conta o que nelanão é vicário, submisso. Um ciclo poemático é demolidor emrelação a antecedentes, somente isso, a liberdade barroca emcontraparte ao comedimento renascentista ou, mais próximo denós, os paraísos artificiais de Baudelaire que nas seguintes gera-ções seriam realismo, a realidade mesma de Rimbaud. O quepode ser suposto como revolução moderna da poesia, e da arteem geral, se deu mais por diacronia e por devir do presente como reconhecimento de que “o desconhecido reclama novas for-mas”. Insisto na ideia de que temas permanecem, são retomadosem suas universalidades, porém com outras estruturas de lingua-gem, outros motivos. Bashô aconselhava seus discípulos de poe-sia a não seguir os antigos, mas procurar o que eles procuraram.

O corpo desconhece a superfícienas esferas limitadas pela dor

Não é o pássaro zangadoa versátil criatura

Nem balão velozsuprido pelo canto

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E anjo não se prestaa voo tão luminoso

O corpo desconhece a corporque o brilho apodrece o manto

O poema de dois poemas em Os faróis invisíveis, o primei-ro elíptico, com a transposição dos significados do corpo. A re-petição dos signos, que não se confunde com a redundância,desloca-os com corpo e corpo ainda ao ser movido da superfí-cie para a cor, da dor para o manto. No segundo poema – en-tremeado e deslocado à direita para o silêncio da página unindoas duas partes do primeiro, espelhados, duplicados – a sequên-cia dos dísticos com uma única imagem transvalorou-se do pás-saro ao balão e deste ao anjo.

O significado deste poema é ele mesmo sem deixar de ser alinguagem do mundo. Enquadrá-lo em um determinado pontode vista, estético ou não, reduz seu alcance, diminui a sua força.É o poema que ilumina quem dele se ocupa: indica por ondedeve seguir a leitura. Ler, comentar um poema, é receber semreservas o que ele exprime. De nada adiantam princípios prees-tabelecidos, sobretudo os da evolução. Um poema ou um con-junto de poemas pode ser evolutivo, mas o seu prazo não tem aduração e a multiplicidade das reações, das rupturas. Não é pos-sível manter fidelidade por muito tempo a algum sistema a par-tir do momento em que se escreve. O escrito não se deixa mo-delar, é ele que modela o provável – ato crítico de linguagens aodeslocar-se do que sabe para o que não sabe. É preferível o de-sabrigo da formação que o abrigo do formado. O escritor, esteé o seu fantasma, disponibiliza o caos, de onde tudo pode vir ater forma, imagem. Em Pequena estética, Max Bense explicou ocaos como “fonte real, um repertório real de possíveis inovaçõesno sentido de criações”. Até mesmo a filosofia comprometeu-secom o caógeno da inventividade, buscando no processo artísti-co respostas para as indagações filosóficas. Duradouras são es-tas “propriedades da linguagem” sem perder a atualidade, omóbile de Valéry que revela como os objetos artísticos são fei-tos na distinção de motivo e tema. O motivo do poema pensa a

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linguagem que, dependendo da embocadura, causa a sensação deque foi o poema que pensou o poeta.

Coisa de palavra

As obras de Prade são factíveis nas visões mitopoéticas. Peladensidade, geralmente atraem interpretações do tema com o sa-crifício do motivo da linguagem, o da poesia que está nas coisase transformadas em palavras. Importa a factibilidade, mais ain-da as relações de significados e significantes no escrito que se valeda suprarrealidade por reconhecer que no arbitrário há uma or-dem na formação da matéria. Todorov, em Poética da prosa, ad-verte que se há um ritmo regular nos eventos do mundo “é por-que esse ritmo vem de outro lugar”, da harmonia cósmica deKhlebnikov, relacionando-a com as “consoantes iniciais” e comos “nomes elementares”. Khlebnikov: “Os corpos elementares dalíngua – os sons do alfabeto – são os nomes das diversas formasde espaço, a enumeração dos casos de sua vida”. Mallarmé di-zia que os prefixos são as virtudes dos nomes, a arquilíngua dassemioses poéticas. Neste sentido, a coisa posta na palavra temdensidade semantológica em Prade, na qual cabe, inclusive, aleitura de iconografias pictóricas.

Em Jaula amorosa, 1995, há esta paratática verbal das ima-gens de pintores que fizeram o mesmo em contextos diferentes,porém sob os imperativos da linguagem como se lê na alusão avan Gogh nos sonetos de “O jardim das asas multiplicadas”.

“Saint-Rémy” é o poema, cidade da França, região em quenasceu Nostradamus, de ciprestes e noites estreladas que o ho-landês pintou com o chi’yun, a expressão do vívido nos cânonesda pintura oriental formulados por Hieh Ho. O chi’yun é a vidana estrutura do traço, chamado então de “osso” e que, na pin-tura de van Gogh, se dava por golpes caligráficos, vibrações na-quela cidade e antes, em Arles, “a arlesiana à margem do livro”no soneto de Prade, Madame Ginoux com o cotovelo na beirada mesa redonda com livros, um fechado e outro aberto, a mãoesquerda apoiando o rosto com o olhar já sem fundo com queretratou, no mesmo período, a berceuse Augustine Roulin posan-do e segurando uma corda para embalar o filho recém-nascido,

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berço que fez van Gogh pensar na árdua labuta de pescadoresembalados pelas ondas. A temporada do pintor em Saint-Rémyfoi breve e exclusivamente para ser “tratado” como artista, ten-do, além de seu quarto, um compartimento para pintar e pintou,antes engolindo a pintura, ou melhor, a tinta a óleo saturada dechumbo, um suicídio simbólico conforme seu médico. Van Goghjá havia aceitado a condição de louco, transfomado em perigopara si e para os demais depois do episódio da orelha cortada.Impressiona as aquarelas que fez no sanatório de Saint-Rémy, ummosteiro medieval, do início do corredor e de sua extensão comcorredores laterais e a saída para o pátio, onde desenhou o poçodo jardim e encontrou a borboleta caveira, esboçando-a em car-ta e descrevendo-a ao irmão. Dela quis fazer uma pintura, maspara tanto teria que matá-la e isso ele não podia fazer. Dos mu-ros do jardim foi pelas imediações com a “locomotiva de pintar”,quando teve outro distúrbio auditivo e visual, do qual se recu-perou com doses acentuadas de remédios à base de ópio, emseguida indo para Auvers-sur-Oise conhecer Gachet, retratando-o “com o olhar triste” daquela época em duas pinturas – estu-dos da loucura, ambas com o ramo da dedaleira, provedora dedigitalis, digitalina, componente do sábio absinto.

Simbólico, andaluz, ibérico

De um modo geral, poetas publicam coletâneas, escritos degavetas. Por mais cuidadas que sejam, e são quando prevalece aanalogia de linguagem, parecem-se com um nó que ao ser feitoperdeu a corda. Não é o caso de Prade, escritor de envergadurasuficiente para fazer com que cada uma de suas obras seja umorganismo vivo, pensado no corpo inteiro e suas pegadas. Co-menta Fábio Brüggemann que a poesia brasileira atual se ressentedesta qualidade, a do projeto, da construção, concluindo que não“estamos diante de um autor de antologias, que publica poemasfeitos aqui e ali. Ele apresenta livros de poemas que têm unida-de, não apenas temática, mas também estrutural”.

O programático, em Prade, é de infinita importância e issodepende das escolhas que tem feito ao longo de tantos anos, es-tritamente pessoais, mas sem render-se ao solipsismo. Nos ter-

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mos desta premissa, o poeta torna-se cada vez mais ciente de quea excelência de uma peça literária está no máximo desafio escri-tural: um poema é feito com o que não deve ser dito, a “fraseno pulso” de que falou Cruz e Sousa em sua solidão povoada desímbolos.

O não dizer está intimamente presente no ato problemáti-co da escrita, por si mesmo crítico ao forçar a linguagem a sairdo hábito, do estereótipo. E como a linguagem é a depuração doque surge com o que é feito, a literatura é colocada nos ângulosde suas exigências volitivas e cognitivas, sendo, por algum tem-po, metalinguagem.

O conjunto das escolhas deliberadas de Prade tem esse mé-rito maior: trabalho de linguagem em repercussões de lingua-gens, levando-o, inevitavelmente, a escrever um livro repositó-rio, híbrido, cambiante em suas formas, Além dos símbolos, sumade escrituras, livro álgido, emblemático.

O livro Além dos símbolos, 2003, é um composto de dezpartes, mantendo entre as mesmas a semelhança e a diferença.“Verônica sem rosto”, “Capela de ossos”, “Caleidoscópio”,“Ovários de princesa” e “Confabulatores nocturni” são as que secorrespondem por variações mais de ordem temática, verificá-veis em livros anteriores e posteriores. “Túnel perverso”, “Ilu-minuras”, “Asa delta”, “Entre as folhagens” e “Visões do jardi-neiro” são as partes diferenciais, inclusive entre si, tanto no temacomo na forma: sonetos, poemas em prosa, apotegmas e haicais.

O leque da diferença formal e não costumeira na poética dePrade, porém com lampejos em toda a sua obra, demonstra acompletude de seu labor exigente, mas sem que isso pese no re-sultado final. A impressão que fica é a da palavra que já estavaali polida pelo tempo.

Nos sonetos (“Túnel perverso”), a construção do aparatofechado em quatorze versos desmobiliza-o com a ausência pro-posital da rima. Os pontos do poema ficam ocultos, como devemficar para que os contrapontos, ideia e imagem, saiam pelas bor-das do escrito.

Nem só de peixes move-se o aquário.Habita-lhe o Azul ou então o Verde

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quando o pássaro ridente supera-seda terra com soberbas asas caladas.

O aquário também sem susto convivecom a cor em movimento de piratasentre ondas e outras ondas e ondasao mar conferindo um tom mais claro.

E se no aquário fogo alto houvesse,água alguma porventura dentro dele,como fazer para outro nome dar-lhe?

Seria sempre enfim o mesmo aquáriorefletido neste traço dos desenhosde outra água como a luz do pranto.

Quem conhece poesia sabe o que acabei de comentar. So-neto assim é porque, ao verter-se em direção de seu centro, ex-pande-se em todas as direções. Soneto com esta têmpera, compalavras que mostram a superfície e a profundidade, somenteforam escritos por grandes mestres como Rilke, “Torso arcaicode Apolo”, e como Jorge de Lima em “Invenção de Orfeu”.

Nos poemas em prosa (“Iluminuras” e “Visões do jardinei-ro”), a meticulosidade dos ofícios de ornar uma página com pe-quenos desenhos e semear retinas tem a simplicidade de quempassa a vida estudando o que são e o que as coisas fazem. Ascoisas são aquilo que fazem: a andorinha o voo, o cálamo a gra-fia... Truísmos e sinopias de uma sensibilidade ontológica.

Com o cálamo, sem tremores, urdi iluminuras na Babilô-nia. Tordos, pavões e cabeças de outras aves desenhei nasfolhas de ouro. E mais o azul do lápis-lazúli. Mesmo as-sim não se abriram as portas do mistério.

Nos apotegmas (“Asa delta”), a brevidade das frases descon-trai as metáforas universais de signações: mundo e ombro vaza-dos de anamorfias. Apotegmas que encerram crítica lição de coi-sas.

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América, América O ovo de Colombocaiu e quebrou

Nos haicais (“Entre as folhagens”), as palavras passam pordentro de palavras, o kaketotoba, com o ícone que situa o cos-mos imutável, seguido da ocorrência, o mutável, para o desfe-cho do caminho seguido pelo poema. Uma ilha de três versos nostraços de nanquim que destraçam o mundo árido, o não saberatuar, em modalidades. Com o fu, vento e elegância; com o wabi,simplicidade e equilíbrio; com o yugen, mistério e escuridão;com o shibumi, pungente e severo; com o hosomi, exíguo e agu-do; com o miyabi, graça e harmonia; com o sabi, pátina e tem-po; com o karumi, leve e límpido; com o mu-ga e mu-i, não-eue não-fazer. Outras lições da longevidade na brevidade, a perma-nência na passagem.

Signos andantes:as águas saltampara sete nuvens.

Por falar em brevidade e longevidade, Ciranda andaluz,2003, “viagem singular” em Espanha nas palavras do autor –com a ciranda do canto fundo dos ciganos.

O livro, breve, diz muito na “publicação solteira” e não“encartado em um livro maior”, diz o autor, com a expectativade encontrar empatia. Sou esse encontro na viagem que levouPrade a Lorca em giros de pressentimentos. Não posso deixar decitar o afetivo do viajante com a transcrição, que tem o dom deguiar quem se ocupa de um texto e seus motivos.

Cada viagem é uma viagem singular, pessoalíssima, in-transferível, ainda que maravilhosa seja a companhia.Tantas viagens fiz por esse mundo afora, mas a maiorparte delas caiu no esquecimento. Contudo, algumas háque não saem da memória, tamanho o deslumbramentoemergido já no primeiro impacto. Foi o que ocorreu nabelíssima região espanhola da Andaluzia. Eu a percorri

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toda, sem cansaço aparente, durante um tempo de retiroespiritual, em um mês de janeiro, encantado pelas paisa-gens, arquitetura e pessoas.Todavia, supondo-me poeta, e tendo por Federico GarcíaLorca especial predileção (considerando-o um verdadeirocânone), não pude resistir e fui até Fuente Vaqueros. Lá,no pequeno povoado, estive na casa (ou no que restoudela, imagino) em que nasceu esse extraordinário expoenteda literatura universal, atraído, entre outros objetos, peloberço dele balançado na infância pelos seus pais e fami-liares.

O poeta, no recinto singelo e com o passado de um meni-no no berço da luz, comovido escreveu “de ouvido” o poema queseria, na mesma corrente de comoção consciencial, a centelhamagistral dos demais poemas que compõem Ciranda andaluz. Ovisto naqueles instantes mobilizou o tempo vivido de Lorca aolongo de terras espanholas no carroção teatral, moção de músi-ca, sons entreouvidos do embalar para o berço distinto do “fa-zer poético” de Prade.

Além da evocação de Lorca – que pressentiu a guerra civilao ver uma vara de porcos devorando carneiros no pátio de umacasa abandonada – e o ritmo do berço já ciranda, o que é o maisdecisivo nesta distinção poética é exatamente o frontispício dopoeta moderno em viagens ao desconhecido que exigem novasformas em direção do conhecimento. O poeta, no estranho, en-controu a canção infantil, as águas europeias que Rimbaud re-cordou nos crepúsculos da manhã e da tarde de seu barco.

O berço estava ali para o ouvido do poeta comovido com“as ausências de uma criança” nas presenças de suas andanças nofio de versos e de cenários, para os quais as variações imprimi-ram nos objetos – berço, lanterna, guitarra, piano e espelho – ofuturo de seu pretérito.

Velho berço de seda encarnadasob o leque de sombras balançaas ausências de uma criançaque em Fuentevaqueros nasceu.

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Em sua cabeça coroadacolheu ciprestes, ouro e poesia.Ramo de oliveira em Andaluziapara quem é pássaro e poeta.

Sob o berço uma lanternaque de puro cobre é feitaservirá para a colheitade muito amor e suspiros.

E se perto da cisternahouver laranjas caídasrecolha suas cascas feridaspara a melhor sobremesa.

Sobre a mesa vejo cordasde sua primeira guitarraonde todo som amarraas rimas ciganas do pranto.

E no rural piano bordascomo arqueiro de flechas levesum belo manto de nevespara o amante do unicórnio.

Com este trigo ao ventoreze por teu “Cristo moreno”.Ah! Apenas num vaso pequenoguarda teu suor perfumado.

E guardará tudo, lamento,como se guardasse somenteo veneno de uma serpentenum frasco de algodão doce.

Palavras como jarra e medusa,Guadalquivir, rã ou punhal,tarântula de um faquir fatalque é trânsfuga e jardineiro.

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Agora sim vejo no espelhopalavras tão bem escolhidasque as mantenho colhidasno Cante Jondo do fogo-fátuo.

A obra de Lorca vem do cante jondo, canto fundo, a formaprimitiva do flamenco que arrebatou Prade e colocou-o na rodaexposta da canção, no moer o grão da palavra. Um lamento graveatenuado pela infância da voz, de procedência oriental corren-do nas veias espanholas, em sonoridades de adivinhações que jáaconteceram ou vão acontecer.

No cata-vento equestre haviaMuçulmana e breve inscrição:Calet el Bedeci Aben HabuzQuidt ahahet Lindabuz.

Legendas, legados arábes: “Diz o sábio Aben Habuz/queassim se defende o Andaluz”.

Guitarra de improvisos e avisos, cuja origem se encontra nacerteira nominação de Baltasar Gracián, o engenho e a agudezaassociados ao cultismo, isto é, exprimir cultamente sus concep-tos. Culto é um latinismo, o ornamento da oração. A palavraaguda exprime o engenho conceptivo de quem escreve, o gon-gorismo e a passagem do maneirismo ao barroco espanhol porregularidades e irregularidades conciliadas de pomba e punhal.

O barroco fez da imagística a dialogia através da escrita, oudo pintado como se observa em Salvador Rosa, pintor, músico eator napolitano influenciado pelo espanhol Jusepe Ribera. Rosacultuava legendas latinas: o melhor é ficar calado quando não setem a dizer algo melhor que o silêncio. O dito, avt tace avt lo-qvere meliora silentio, está estampado na placa que o pintor se-gura, autorretrato de 1640, no qual ele aparece inquirindo, noprimeiro plano da pintura, o espectador. Seu olhar é desdenho-so, insatisfeito, porém ele quer ser visto na agudeza de seu en-genho encenado à frente de nuvens não tão sombrias como ele.

Os silêncios dizem o que deve ser dito, sonoridade em ci-randa, moenda da linguagem.

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Peço perdão, oh Maria,Por assim ter nascido.Uma cabeça bastariapara ser dragão querido.

Também a José peço perdãopor essa grande desgraça.Ah! se pudesse ter a graçado anjo sobre um portão.

Peço perdão a Picassoque desenha sob medidaqualquer cabeça perdidae faz o que eu não faço.

Também a Lorca peço perdãopelo desenho tão engraçadoem que o rabo desarrumadoparece cauda de escorpião.

Caminhos de Espanha nas rimas toantes, as mesmas de ou-tro poeta brasileiro, João Cabral de Melo Neto, no diálogo como ferrageiro de Carmona. As palavras fundidas não têm a toaçãoda marreta e da bigorna, somente as forjadas, cabralinas, vistasna Giralda, pradeanas no dragãozinho, o corpo a corpo com odomar. Nomes e desenhos forjados são como luta no poema deJoão Cabral.

Forjar: domar o ferro à força,não até uma flor já sabida,mas ao que pode até ser a florse flor parece a quem o diga.

Ao nomear o que lhe parece o desenho infantil de Lorca,Prade nomeia-se feliz Murillo, feliz Miró.

Eu sou feliz prisioneiropor que tenho por companheiro

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um livro de poesiafruto desta fantasia?

Prade sempre escreveu poemas de viagem, em desvelos dequem se deixa tocar pelo intocável, pela alma secreta das coisas.Tríplice viagem ao interior da bota, 2007, como Ciranda anda-luz, é a temporada anímica que por afeição estética e eruditareencena outras cidades das mesmas cidades que visitou com afilha Priscila, testemunha de “fatos propiciatórios” dos poemas,companheira de viagem à bota, a Península Itálica com os medi-terrâneos familiares do poeta, meridianos dos poemas.

Poemas de introvisões, escritos em tom de cartas, cujos se-gredos somente podem ser confiados a uma pessoa ou a poucas.Talvez por isso o autor tenha dito que os poemas poderão seresquecidos, “fadados ao esquecimento”. Cartas podem ser esque-cidas porque guardadas, segredadas no sodalício em páginas quedizem que a vida não é breve na brevidade dos fatos que apro-ximaram pessoas e as afastaram para outras comunhões e memó-rias. Com muito sabor são lidas as cartas de quem se conheceupela sorte de um instante, que chegam como se fossem gatos comas marcas do que são e do que fizeram. Sêneca, que viveu emRoma, escrevia a Lucílio, supostamente seu discípulo.

Escreves-me com frequência, o que me é grato, pois assimte mostras a mim pelo único meio de que dispões. De cadavez que chega carta tua, hei-nos de imediato juntos. Seficamos felizes por possuir os retratos dos nossos amigosausentes... quanto mais não nos alegra uma carta, poistraz vivas marcas do ausente, o cunho autêntico de suapessoa. O traço de uma mão amiga, impresso nas páginas,proporciona o que há de mais doce na presença: reconhe-cer.

Os poemas de Tríplice viagem ao interior da bota têm estecunho e o reconhecimento do que foi habitando o poeta com asescritas memoráveis de Roma (muralhas, Capela Sistina, Miche-langelo, Juízo Final, Mariano Fortuny, Aloysius Bertrand, Fabri-

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zio Montecchio); de Veneza (gôndolas, pombas, mendigos, más-caras, Palazzo Ducale, escultor); de Florença (carrossel, PiazzaDuomo, moedas, Sandro Botticelli, Davi, Golias, Niccollo Ma-chiaveli, Leonardo da Vinci, Ghiberti, Porta do Paraíso). Cartas,que pelo instante consagrado do olhar, vivificam os “fatos” quePriscila testemunhou no frescor de sua idade, a primeira leitorada bota itálica reatualizada.

À multipla viagem, de prazer estético em obras e em ocor-rências, Prade acrescentou outro prazer ao se reportar aos mo-mentos que propiciaram os poemas, descritos nas “informaçõesnecessárias”, os submersos que enriquecem a leitura, o estudo.Além do rol de lugares e obras, Prade anotou as peripécias defatos inofensivos, porém determinantes na genética dos escritos,alguns indiferentes ao seu toque e em contraste com o magne-tismo do poeta, serpente e ave. Menciono, apenas, o poema dasvisitas de um escultor veneziano com presentes, “Delicadeza”.

Um escultor, desses de maior hierarquia,dupla visitaao quarto me fez.

Na primeira,sobre a cama deixoutrês pássaros de ouro.

Na segunda,uma criança nuae de sangue azul.

A um escultor, veneziano,nada se recusa.Nem mesmopássaros de ouroou criança azulà noite e pela manhã.

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O poeta recordou o episódio, pois das peças se desfez aopassar pela Ponte dos Prisioneiros, sem suspiros mas com remor-so. Presentes são irrecusáveis, até de inimigos. Irrecusáveis tam-bém são os exercícios de desfazer-se de alguma coisa.

Hermenêutica e iconografia

A imagem que tenho da poética de Prade, dependendo dascircunstâncias, ou é a da flecha ou a do alvo. Muito do que eleviu está em suas viagens em países europeus e em orientes ima-ginados, o poeta inscrito em focos poéticos para os quais o livro,sagrado e mágico, reenvia sua mente a origens miméticas e aní-micas. E nesta absoluta capacidade de impregnar e ser impreg-nado por mônadas e escatologias preciosas de outras idades, eledeixa de ser histórico e se torna contemporâneo de origens, deoriginais. Não que a história atual e relativamente retrospectivanão tenha importância para ele, como de fato tem, mas é a an-cestralidade em portadores escritos e visualizados que o toca porhermenêutica e iconografia, fatores imprescindíveis para a ela-boração de sua poesia e ficção. A hermenêutica de textos sim-bólicos associados a ícones, que fascinam o poeta, comprome-te-se com a linguagem ao aspirar e sorver o poema no interpre-tar, cuja compreensão é a da palavra como foi dita e da imagemcomo foi vista no dizer e no ver outra vez com o haurir, que alémde aspirar e sorver tem o sentido de esgotar. Não propriamentea fonte, mas quem dela se beneficia para dar lugar, duração, aooutro. Nos recuos exegéticos, o poeta chega à extremidade desuas forças para dizer pela primeira vez.

A mitologia, nas genéticas das obras, tem um papel prepon-derante de iniciação e estímulo noético, sem que se saiba se es-tamos lendo o tempo em que as palavras se formaram ou se aspalavras estão nos formando. Assim, por osmose do escrito e dolido, conhecemos e reconhecemos entidades sobrenaturais, oci-dentais e orientais, todas por sopros mitomágicos. Uma expe-riência real do surgimento de cultos imbuídos de retorno às ori-gens como nos xamânicos, em animismo de sons míticos porquehá o conhecimento do ritual que foi levado a efeito pela primei-ra vez. Então, no canto xamânico, ouve-se a reiteração ritualís-tica, o ensejo mágico da origem.

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Mito é palavra, mythos, encarnação simbólica de forças danatureza em seu passado remoto, do qual desperta o futuro. Oque vai acontecer, nesta tradição evocativa, já aconteceu – a redeinvisível da memória que em parte é a pré-história de cada pes-soa e de culturas, o tronco arcaico ou o inconsciente coletivo deque falam os especialistas. O mito é circular.

Dentre os livros hermenêuticos e iconográficos de Prade, osmais característicos em poesia são Pequeno tratado poético dasasas, Em forma de chama e Labirintos. São obras que tratam depalavras e de imagens em suas origens míticas, nos instantes deseus aparecimentos reverberados nas elaborações do poeta.

Foi no escrito ancestral atualizado, com os respectivos íco-nes, que abordei Prade com a asa, com a chama e, agora, comos arcanos do Tarô em Labirintos, 2008, obra especificamentede extrato icônico-hermenêutico que seduz o iniciado e o leigocom suas figuras do ocultismo. Para tanto, esboço algumas biblio-mancias dos poemas, levando em conta o texto de abertura e ainterpretação numérica do posfácio.

Toda a hermenêutica em Labirintos não é uma finalidade,antes um meio de escritura, de estar na e com a linguagem. Sen-do um através ou mediação, o ato da escritura reveste-se de ex-pectativa exegética e heurística com o encontro de logomatrias,as palavras ditas pela primeira vez. Esta não é somente uma fa-culdade do livro em questão, convite para o ingresso na matu-ração do autor já maturado desde os livros precursores. Foi porisso que mencionei o livro dos livros de Prade, a palavra daspalavras curadas na perspectiva curiosa de que o semelhante atraio semelhante para que a diferença imprima sua marca inaugu-ral. Mas, é em Labirintos, pela rotação noética, que o dizer pelaprimeira vez tem os arcanos maiores da probabilidade.

Longa é a viagemem busca do destino.

A plenitude da palavra está nas vibrações de um círculoperfeito com a sensação de que não está em nenhum lugar e emtoda parte. Então o poeta não pode olvidar que nele costurou-

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se “ambígua sombra”. É o poeta que cria seu destino e dele ten-ta escapar ao escrever o poema.

Ao regressar trarei pela mão giganteum deus que se chama menino.

Os números do labirinto estão lançados. O tudo e o nada,o começo e o fim. Números circulares na definição do posfácio,“Labirinto poético do Tarô pradeano”, assinado por Onor Cam-pos Filomeno.

Depois de investigar cada um dos poemas de Labirintos comirrompimentos de cunho etimológico, Onor Campos Filomenochegou a classificar todas as recorrências verbais que interme-diam os poemas, além de traçar o próprio círculo de suas apari-ções numeradas para que se tenha a teia de seus instantes, aspalavras-aranhas na agudeza dos poemas, cada um deles nas teiasdos arcanos. O círculo me fez lembrar, na icologia dos saberesocidentais, do homem vitruviano de Leonardo da Vinci, incluí-do em suas experimentações da proporção, que teve expressãomáxima com a teoria da visão das pirâmides baseada na célebrelei áurea, que estabelece a relação ideal entre duas grandezas,constatação arquitetônica de Vitruvius que o frade bolonhêsLuca Pacioli retomou e publicou em 1509.

O círculo de Leonardo com as imanências de utilitas (utili-dade), venustas (beleza), e firmitas (solidez) foi implodido porEl Greco, praticamente uma revolução copernicana na pintura,na qual não há mais um centro predominante, ptolomaico, masvários. A intuição de El Greco, sendo um visionário religioso,superou a perspectiva de ponto de fuga central renascentista coma perspectiva vivida dos barrocos e românticos, francamenteconceituada na pintura de Cézanne. Na história das morfologiasda pintura, esta linha de formação não é improvável, somentecom diferenças contextuais. Cézanne dedicou a sua paleta baixaao visível mais visível, a montanha de Santa Vitória que pintoude todos os ângulos possíveis até, gradualmente, tê-la sob mui-tos ângulos em uma mesma pintura. A essa circularidade pictó-rica e plástica atribuo a paralaxe do olhar, o efeito astronômicoque os gregos conheciam e que foi comprovado, em 1838, por

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Friedrich Bessel, ou seja, a multiplicidade de posições de umaestrela em relação a uma constelação na órbita da terra em tor-no do sol. Cézanne não tinha conhecimentos de astronomia, ten-do, isso sim, uma mente fenomenológica e ontológica. Disse ele,no auge de suas modulações: “Sou a consciência da paisagem quese pensa em mim”.

Por mais remissiva que seja a palavra labiríntica de Prade, aremissão tem o impacto da diacronia paraláxica quanto à formados poemas com o espaço contínuo na descontinuidade do re-presentado. Esta é a contemporaneidade de sua poesia, um zoo-trópio que alterna, no movimento da circularidade, figuras di-ferentes que compõem figuras que não se conhece, mas que es-tão ali imagísticas.

Traço um círculo ao redore creio. Creio nele, o deus vivo,Enamorado.

A suposição da paralaxe que acabei de apresentar sem maio-res detalhes, um trecho da abertura de Labirintos, que Prade tevea paciência de escrever, tem a explicação providencial. Diz eleque as variações poemáticas, de fundo “cabalístico, mitológicoe alquímico, têm valimento somente como corpo ‘poético’. Aspalavras passam a ter, assim, significados múltiplos em dimen-sões especulares, sem referências datadas e teóricas, na rede pen-dular das metáforas e das imagens”. A palavra cíclica, recircula-da, tanto nas prospecções dos arcanos, que oferecem direçõesocultas, como nas dos versos ou mesmo em palavras retomadase assim deslocadas de um sentido para outro.

O tempo cíclico está nas idades da terra, no pensamentode Vico e em muitos autores modernos e que Harold Bloomaplicou na formação do cânone ocidental, principalmente a Erado Caos, em cujo centro canônico colocou Kafka, autor de labi-rintos na viagem de um jovem, na intimação sem motivo e naaldeia com um suposto castelo. A mais do que conhecida trilo-gia do pesadelo da razão de um escritor sob a interpretabilidadejudaica em parábolas, lendas e sonhos que primam pela logoman-cia do retorno. Um de seus sonhos, aliás, é citado por Onor Cam-

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pos no posfácio de Labirintos, livro de outro absolum que dis-solve o horror do Minotauro em sua dupla complexidade, ho-mem e animal, mesmo que guiado pelo fio terno e brilhante daidade do ouro. O Minotauro ainda chora no reflexo da mons-truosidade, figura mítica necessária ao sentimento trágico dosgregos.

Absolum de vinte e dois poemas na unidade encontrada domago ao louco, o originador e o propagador transformados pelopoeta em dinamismo de palavras vibratórias como se vê, nos flu-xos e refluxos de linhas no “labirinto gráfico” de Onor CamposFilomeno.

Na recirculação das palavras está a imagem mais cara a Ba-chelard, convocador de poetas do redondo. Foram as inscriçõesnuméricas que motivaram perfilar a este diagrama, e por visua-lização de Labirintos, outro círculo interferido pela árvore deRilke, que desenhei com fractais de Mondrian, arredondada naabóboda do céu, na passagem da realidade da visão para a reali-dade do conhecimento.

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Uma configuração que em muitos aspectos aproxima-se decosmicidade e imaginação, matéria e sublimação.

Ao ponto de partidaretorno. Sob a lâmpada de Hermes,o manto de Apolônioe o sábio bastão do eremita eu toco.

O anima de Labirintos manteve-se do primeiro ao últimopoema, girando em torno o animus, o humano – o poeta aindano labirinto de sua invenção, rejuvenescido, “geômetra do uni-verso interior”: na escritura do número-poema.

Arma branca

Na obra de Prade há persistências da memória que merecemum estudo à parte: a arma está entre as mais recorrentes, objetode usos variados e de polimentos que elevam a lâmina ao sím-bolo ritualístico que lembra a longa feitura do instrumento paraconquistar o meio, cuja eficiência obtida conquista o poder má-gico. A adoração dos animais tem muitos propósitos com a per-cepção de que seus membros são armas, além de curarem-se porconta própria.

Em Sob a faca giratória, 2010, a arma é a figura do poeta,no passado latino com a figura vela dare, o levantar vela comometáfora do início do texto, instante em que o escritor sente otemor diante de tão longa e perigosa viagem, além da viagem sero tema do conhecimento a partir de Homero para as viagens li-terárias de Dante, passando por muitos autores e culminandocom Rimbaud, Conrad, Kaváfis e Joyce.

A metáfora da arma do artista moderno foi enunciada porBaudelaire com o heroico nas grandes cidades, em Paris das ave-nidas de Haussmann, logo ocupadas pelas barricadas socialistascom pedras amontoadas por “mãos mágicas” conforme o poe-ta. Mágicas, comenta Benjamin, porque Baudelaire não conhe-cia as mãos que as empilharam apesar da simpatia por Blanqui epor Courbet, e de ter brandido uma espingarda em desafio aogeneral Aupick. Entretanto, a luta passional do poeta não era

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menos branda, a lírica alegórica, na qual o artista em duelo po-deria ser vencido com um gemido de horror.

Na apreciação do pintor moderno Constantin Guys, a es-grima é a arma de refinamento técnico, audaciosa e precisa. Opintor, durante o dia, observa os costumes, os gestos e as açõesna multidão. Nada escapa a sua fina sensibilidade que à noite temo silêncio necessário para que possa captar as imagens cambian-tes, fugitivas. Baudelaire descreveu-o, em O pintor da vida mo-derna, “esgrimindo com seu lápis, sua pena, seu pincel (...) per-seguindo o trabalho rápido e impetuoso, como se temesse queas imagens lhe fugissem. E assim ele luta, mesmo sozinho, e aparaseus próprios golpes”.

Não são poucos os contemporâneos de Baudelaire que neleviram o esforço para realizar uma obra de arte, identificado em“O sol”, de “Quadros parisienses”, exercendo a “estranha esgri-ma” na tradução de Ivan Junqueira.

Buscando em cada canto os acasos da rima,Tropeçando em palavras como nas calçadas,Topando imagens desde há muito já sonhadas.

Qual o poeta que não sonhou com imagens da arma daspalavras? Nas de Sob a faca giratória o suor frio do poeta estáno passado da cânfora, ainda que lute com rastros emocionaisentre o peso do humano e a leveza da ascese. Ludibriado, des-consolado caranguejo, quer esquecer a gravidade, a mortalida-de. Até mesmo o mito esvazia-se.

O poeta suspende o rostonas águas de Narciso.

O rosto quer escapar do cansado. Espectador de si mesmo,o poeta quer outra imagem da forma-homem ao perceber o fan-tasma ridente: suspenso nos movimentos da sorte, acrobata, umdeus natural aspira.

Sem que haja ênfase nos mistérios do escrever em algumpoema de Prade, no entanto há reflexos com a menção da pala-vra e a escrita do corpo, marca viva da passagem, e há a leitura

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em Sob a faca giratória, do romance de formação no “país doalto” de Thomas Mann.

Eis a doençae sua cura, a mente prisioneira

na estante que flutua.

O que flutua é a memória, a história mnemônica do herdei-ro genealógico da imaginação em luta com os ancestrais pararecuperar o crepúsculo que não acaba. O poeta reconhece a per-da e amplia a imaginação.

Sou a outra manchana imagem, o avesso

da fera, o espelhoinfinito, o princípio

e o fim.

Sou o somda memória,

aquele que provocaos animais no paraísosob a faca giratória.

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Segunda Parte: Ficção

A potencialização narrativa na poesia de Prade somentepoderia encontrar suporte adequado no conto que remonta aooral de sagas, lendas e fábulas.

Depois de Os milagres do cão Jerônimo, Prade publicouAlçapão para gigantes, Relatos de um corvo sedutor, Ao som dorealejo, Espelhos gêmeos e Correspondências. Livros de breves ebrevíssimos textos que se valem de motivos e temas desviados dousual, do convencional, o puxar-se pelos cabelos do Barão deMünchhausen ao cair no lamaçal.

As causas e os efeitos imaginários são prodigiosos em nar-rações geracionais. Enquanto alguém decide cavalgar até a pró-xima aldeia na parábola de Kafka, o monólogo da tradição dizque a aldeia está no passado, no começo da voz, no instante donomear. A linguagem, neste caso, atinge a simbolização e ganhavida própria na interpretabilidade fora e dentro da textualidade.Na interpretabilidade são os eventos, mais ou menos presentes,que animam a narrativa nas fronteiras do conhecido e do desco-nhecido. Este é um dos segredos da ficção, que, dependendo doautor, na temporalidade dos fatos exprime o tempo da lingua-gem.

Com a leitura descontraída da ficção de Prade, em cada umde seus livros preponderaram focos específicos e analógicos emvariáveis da cultura historicizada, porém suspensa de sua época,com o tempo único e bem demarcado da narrativa, da narraçãoe do narrador. Histórias de manifestações viscerais, instintivas:do oxímoro, do cômico, do grotesco, do erotismo e do lapsodelirantes que torcem pescoços dogmáticos como convém aoprefixo na singularidade etimológica e inventiva da palavra sur-real: o acima, sur, e o abaixo, su.

O surreal na inventividade de Prade é uma qualidade abran-gente no que se convencionou chamar de linha do onírico. Hásurrealidade em sua obra, porém a do período avançado da ex-periência do movimento, o período racional, desvirtuador dapureza preliminar do automatismo psíquico, pelo menos para

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Breton, o guia intransigente. Um período de segundo grau, noqual o encontro fortuito da mesa de dissecação e o guarda-chu-va de Lautréamont foi pensado na estocástica relacional de ima-gens sem nenhuma conjunção imediata entre si, derivadas doinconsciente e racionalizadas em Giorgio De Chirico, a pinturametafísica seguida por Carlo Carrá, Giorgio Morandi, RenéMagritte, Max Ernst, Victor Brauner, e outros artistas. Ao co-mentar o metafísico, De Chirico falou em revelação de “vozesmortas” que estão perto, mas que “soam como vozes oriundasde outro planeta” porque os sentidos não estão desenvolvidosadequadamente.

As confluências de Prade estão na pintura metafísica e naliteratura visionária povoada por Blake, Rimbaud, Lautréamont,Jarry, Roussell, Apollinaire e tantos outros vórtices. Cabe distin-guir a diferença de procedimentos e isso já o fez, com toda pro-priedade, Álvaro Cardoso Gomes no posfácio de Alçapão paragigantes. A prosa surrealista é espacial e a de Prade temporal.

Ou seja: o universo surrealista secciona o real, através deimagens flutuantes do subconsciente: a sequência automá-tica das imagens impede a linearidade da ação. As imagensvagam num ritmo imponderável, criando poderosos oxí-moros com o que se entende por normalidade. Já nas nar-rativas de Péricles Prade, aparentadas com o mito, a len-da, as histórias exemplares, a linearidade se afirma emobrigatória compulsão. Desse modo, as imagens do sub-consciente deixam de se comportar como bolsões de sig-nificado. Pelo contrário, metaforicamente elas se alinhamem enredo, porque só passam a ter significado quando de-senvoltas. É a colocação das palavras no tempo que fazos embriões do obscuro desencadearem um processo, noqual, eles se transformam em seres espacialmente conce-bidos.

A espacialidade das imagens, com o metonímico que inter-rompe o discurso, reverte o processo narrativo. Desta maneira,as palavras, prontas no léxico, levam ao estranhamento o nomearcomo sistema de signos, cujas propriedades dão sentido ao fic-

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cional. O sentido, que o leitor não percebe como foi atingido, éao mesmo tempo da palavra e da coisa na lógica pretendida comsucesso por Deleuze ao pensar sobre Lewis Carroll e estoicos. Osentido não é unilateral na vida de suas aparições, daí o não-sen-so da nomeação. Cada palavra, ao exprimir determinada coisa,exprime outra e assim indefinidamente, fazendo da ficção oconstante devir. O sentido, nestes termos, está ligado ao parado-xal no momento em que a palavra se diz, dizendo as palavras quefazem parte de suas significações. A Lewis Carroll era imprescin-dível que as palavras significassem “tantas coisas diferentes”. Ateoria de Deleuze demarca esta probabilidade imaginária. EmLógica do sentido, obra caracterizadora da ficção, ele consideraque sentido paradoxal “explica-se facilmente: o sentido é umaentidade não existente, ele tem mesmo com o não-senso relaçõesmuito particulares”. O sentido dos sentidos Deleuze designacomo “constelações-problemas” que colocam a linguagem noque poderá ser, por si mesmo o paradoxo do “devir-louco”. Alinguagem, enfim, fixa e ultrapassa os limites de cada sentidopara que o enunciador e o enunciado não se acomodem na uni-lateralidade. Deleuze: “É certo que toda designação supõe o sen-tido e que nos instalamos de antemão no sentido para operartoda designação”.

As propriedades da linguagem, na significação e no sentido,conduzem os personagens na ficção de Prade. Personagens-lin-guagens em signos entre si e com o que significam para elesmesmos, pois são seus próprios intérpretes. E fica uma questãosob a forma de pergunta: para onde a linguagem conduz os per-sonagens? Talvez não haja resposta satisfatória, somente parcial,o que é muito na leitura de contos com simulacros que oscilamdo sonho à vigília e inversamente em imagens com seus respec-tivos nomes: fantasma, espectro, sombra.

Cão

A excelência ficcional de Os milagres do cão Jerônimo,1970, tem sido objeto de ensaios e artigos que apesar das rele-vâncias não esgotaram suas forças vitais, algumas revisitadas nosdemais livros com variações e oposições, ampliando ainda mais

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as faces narrativas condensadas nas ideias de profundidade filo-sófica-mitomágica, nas quais o literário e o pictórico têm umlugar privilegiado. Diria até que as tramas insólitas servem paraque o autor sublinhe conceitos que fazem de sua palavra umavisão específica da realidade filtrada com o pensamento e a ima-ginação. Não é possível dizer quando uma coisa procede da ou-tra, pois o pensar e o agir são indissolúveis em seus impulsos la-tentes e manifestos. Seria cômodo afirmar que o agir é o pensare vice-versa, mas a lógica invertida do que ocorre desfaz o habi-tual entre a causa e o efeito, entre o sujeito e o objeto. Logo, opensar-agir se dá por disjunções que rearticulam a memória vo-luntária e involuntária em narrativas que causam impactos ime-diatos, enquanto seus alentos subliminares levam algum tempopara ocupar todo o espaço da consciência. Este tempo é abrevia-do desde que se confie na memória pessoal convertida na memó-ria do narrador de odores, cores e sons que precedem e motivamas imagens.

As disjunções, lógicas do avesso, inclusive aparecem noscomportamentos dos personagens, por sorte do que são e fazemnos incidentes em que se encontram. No conto “O herói salva acidade dentro de um sapato”, o personagem é animado pela ca-pacidade do improviso porque acredita “que o importante nemsempre é pensar”. A tese do pensar-agir, com o heroísmo sobre-natural, fica desautorizada na sustentação filosófica, ainda quese possa recorrer ao que legitima o pensamento – a intuição, quefaz retornar o possível filosófico do herói antes de qualquer sis-tema de pensar.

O pensado e o impensado, de qualquer maneira, perpassamas narrativas de Os milagres do cão Jerônimo. Em “A filha do reiAnjahamara”, o que deve ser feito é habilmente pensado pormétodos comprovados. Uma criança de dois anos, a filha do reique tem poderes paranormais, precisa ser salva da clausura. Noquarto desde que nasceu, seu divertimento é suspender objetoscom olhos de abelhas, as mesmas que o pai caça com ódio. Aparódia do pensado e do impensado se duplica com a salvação eo poder infantil. Dos olhos da abelha-rainha, conservados emuma redoma durante sete anos, um líquido precioso seria obti-do, o curativo chamado pelo autor de “puderama”. Ao remédio

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imaginado para a menina, um neologismo bruxo que transferea doutrina das assinaturas para a semantologia da palavra: pudeé unidade de massa, e rama, de orama, o visto, a unidade doolho, do olhar.

As paródias são frequentes em Os milagres do cão Jerônimo:o cavalo parodia a ave, o corpo despido a pureza, o sapato aarca...

E as coisas resolvem ter vida própria: a dentadura, o tape-te... Relembram outras vidas, realizam seus desejos e se vingamde alguma coisa com toda inocência: a dentadura, fora da boca,engole o bolo; o tapete ataca quem o maltratou, a velha prosti-tuta. Um irônico humor nos domínios da metagoge ficcional.

E as criaturas são imprevisíveis: o tatu não cava buracos, oque se transforma em “alta indagação filosófica”. A razão des-denha o coração do tatu e seu privilégio está na cegueira. Xamâ-nico cava em um morto, a vida na morte.

Linguagens pontuadas de princípios, de conceitos que con-fundem filosofia e poesia: o canto das paralíticas é panaceia; acalma dos sábios vem da nudez; na infância a vocação para odesconhecido; a resistência pertence aos imortais; no suicídioestá a redenção; na boca fechada do cão, o mistério infernal.

As monstruosidades são encantadoras no tempo instintivoda agressão. O paródico, em consequência, substitui o pensadoe o impensado pelo poder e o despoder, sob outras óticas em “Asimples morte pelo punhal” e “No museu”.

No conto da morte, o fracasso do poeta posterior é a suaforça: matar o antecedente é inevitável para que se dê a autopur-gação. Ao ler Rilke, fantasma da influência, “morre diversas ve-zes”. Leitura que esvazia a imaginação, a procedência da pala-vra. Repete o propósito, “matar”, para ser capaz de chegar ao atosimples que purgará a humilhação da impotência inventiva, “pá-lida figura de um escritor”. Isso ele reconhece, máscara cruel,através de inocentes, querendo ser um deles, cometas da poesia.Apunhalar o precursor seria desviar-se do vazio, atingir a subli-midade do mestre elegíaco. Matá-lo é a sua obra, alegórica emuma fotografia, ícone de sua impossibilidade ôntica. O poetafracassado queria ouvir-se com “o punhal no exato lugar ondena foto um coração aceso deveria existir”. O que ele ouve, pura

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contradição, são os versos finais de Elegias de Duíno, “como seRilke oferecesse a brevidade de uma vingança”. Muitos poetas,no amplo círculo de empatia por Rilke, mestre da morte, sofre-ram este débito, a angústia de não poder dizer o silêncio da pa-lavra a si mesma.

A teleologia do sujeito estético, em “No museu”, tambémé relatada por um artista frustrado. O ódio que sente pelo pre-cursor, van Gogh, é tão intenso quanto a admiração por “Cafénoturno”, obra arlesiana de um drama solitário, do lugar ondealguém pode se perder, cometer crimes. Todos os dias o pintorprecário, mas astuto, “conversa com o homem de branco e decabelos verdes” atrás da mesa de snooker. Com ele fez um pac-to: libertá-lo do quadro desde que modificasse o ambiente ten-so, comprimido, prestes a romper-se do interior de seus objetos,de suas cores. O quadro foi transfigurado “sensivelmente”, masas conexões das imagens, iluminadas pelos lampiões de explo-sões estelares, tornaram-se mais convulsivas, iminentes. E o ho-menzinho, cabelos verdes simultâneos no vermelho da parede,continua ali e pergunta se não vai ser libertado. O pintor fanáti-co responde: “Ora, a libertação está em ti”. Na loucura de vanGogh estaria a lucidez artística, a liberdade da expressão? Elepoderia privar-se de tantas coisas, não da potência de pintar.Poderia morrer, mas estando vivo, foi o que escreveu ao irmãoThéo, não poderia ir para uma estrela, assim como estando mor-to não poderia tomar um trem. Não lhe parecia “impossível quea cólera, a tísica, o câncer, sejam meios de locomoção celeste,assim como os barcos a vapor, os ônibus e a estrada de trem sãomeios terrestres. Morrer tranquilamente de velhice seria ir a pé”.

Alçapão

O tempo não separou Alçapão para gigantes, 1980, de Osmilagres do cão Jerônimo. Ambas as obras, em caleidoscópiosimagísticos, apontam para o sinótico regido pelo público e oprivado.

Como no livro anterior e nos posteriores, em Alçapão paragigantes aparecem as intenções silenciadas, conspiradas no mo-

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nólogo, na fala interna. Há o entreouvir, todavia o ouvir-se pro-voca a precisão incontrolável do sujeitar e do sujeitar-se.

O mito do dado sensorial permanece, revertido. A exaus-tão é a armadilha no conto que dá título ao livro. Resistir ouceder têm a mesma força, a do pensamento. A consciência étudo, disponível ou indisponível. A força pode ser segredada. Opoder, em “O segredo”, não é usado. Tanto melhor, porque aforça é a curiosidade. Confiar o segredo a alguém seria deixar opensamento agir por conta própria. A quem poderia ser confia-do, acabou de morrer e o arado não passou sobre seu cadáver.Sem poder confiar, há o alívio “por não ter cometido um erro”.A força da curiosidade é a errância.

Ao mito do dado, imaginário na percepção e no percebido,são as coisas que provocam as reações de criaturas singulares,todas movidas por vontades misteriosas. A sina de um rato éaparecer onde não se espera. Habita tantos corpos que sua ve-racidade torna-se improvável. Rothan, o personagem de “O vul-nerável destino de um rato”, chegou a negar suas ocorrências.Destino venerável, o deste rato, como também do micróbio em“O servo de Schedin”, que possui a capacidade de se transfor-mar em chumbo. “Consegui manter-me vivo graças ao fato de serpossuidor de um controle orgânico inédito no mundo animal”.A unha, encravada, tem o mesmo dom em “A grande concha”,crescer sem controle para a compulsão de cortá-la, trabalho emvão de um professor de cegos, Maiochi. Ficou sabendo atravésde outro professor, com a alcunha de “Senhor U”, que o desme-dido caso poderia ser resolvido com “uma fórmula singela”, cor-tar a unha “em V”. A anomalia, concha que engoliu a aldeia,resolve-se na visualidade indicial das letras com humor, aliáspresente em outro conto, “O demônio e as margaridas”. Umdemônio inofensivo, tímido, com complexo de infância. “Algomisterioso envolvia a singular criatura”. A sabedoria do diabinhodas pétalas brancas pode ser enganosa, não seus chifres de ino-cência. Sua timidez deve ser respeitada, bicho de lágrimas e ri-sos. Demônio assim, capiroto, quer divertir-se com quem sim-patiza e fala com a doce voz do paraíso.

Não são menores, nos demais contos, as provas de quempensa e faz dos outros a realização do pensamento: no prisionei-

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ro da falência humana, o símbolo corrompido, o animal supor-ta a iniciação em “O tigre”; na desmoralização se for aceita aforça alheia em “Mirsânia, a estrategista”; no extermínio coeren-te dos irmãos adotados em “Depoimento de um filho adotivo”;no animal maltratado pelo prazer da crueldade humana em “Ocavalo de Mergoror”; na salvação pela mão de uma criança em“O touro e o rio”; na fixação de uma lembrança onírica em “Ounicórnio voador”.

Todas as personificações em Alçapão para gigantes, comvasto material arquetípico, são animadas por entidades internasque fazem parte do pensamento. Falando ou caladas, enriquecema linguagem privada e pública no campo semântico da ficção. Amatéria arquetípica, em todas as suas versões, aproxima-se deJonas, o personagem da filosofia da mente de Sellars, em está-gios que vão das sensações aos conceitos. As linguagens arquetí-picas não separam o humano do animal em práticas naturais,naturalistas, semelhantes na pintura de Bosch, Arcimboldo, Brue-ghel, Blake e outros metafísicos.

Realejo

Ao contrário do que se possa pensar, não é de musicalida-de que trata Ao som do realejo, 2008. As narrativas, obviamen-te, têm ritmos peculiares que condicionam a imaginação e o atode escrever. E isso é expresso em frases que se estendem reflexi-vas para que transpareça a originalidade das imagens.

A figura do realejo sugere, já que o autor não pretendeufazer música, que a monotonia das palavras, que equivale ao doinstrumento vetusto, vai ser quebrada por súbitas transposiçõesdo personagem em aventuras fantasmagóricas de seu polipsiquis-mo. Ao narrar certas obsessões, a voz inicial modula-se em ou-tra voz e assim sucessivamente, fazendo com que se tenha omúltiplo narrador.

O convite feito no início do livro, “virar a manivela e ou-vir a musiquinha”, nada mais é do que o ensejo de repetições quevão provocar os sentidos. A interminável repetição, não impor-ta qual, provoca fantasmagorias, fosfenos, espectros e outrascoisas do gênero. Geralmente as mais corriqueiras, inofensivas

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e até graciosas como o realejo, caixinha monótona enquanto amanivela gira e toca a musiquinha em falsete que inebria o ou-vinte e o carrega para longe com devaneios e desvarios.

Logo na primeira narrativa, “No país dos silvanos”, o per-sonagem fascina-se com a música ouvida. Como chegou ali dan-tesco, na selva, ele não sabe. Apaixonado, não foi bem recebidoe segue a melodia encantadora que vem do rio, nele deslizando“uma folha amarela”, na qual colocou o pé, que diminuiu, e afolha avolumou-se. A atmosfera do lugar era de cegueira e desoluço, estremecendo-o e o balseiro.

O relato, com a objetividade misteriosa de um ex libris, dizque os sons dão vida às coisas, dotando-as de energias mágicasque mudam o curso dos acontecimentos. Não é o homem quetem poderes, mas a matéria elementar. O homem só tem fetiches,volições estranhas, interditas.

São as relações especiais, ocultas, com qualquer objeto. Umurinol desperta algo esquecido ou reprimido: longe dele o per-sonagem quer sexo no nexo da urina. A força que não atinge, dourinol erotizado, é a inanição de sua potência.

E entra em cena o personagem desmembrado e furta umacoxa delicada. Seu propósito foi executado com perfeição e eletem a “certeza” de que o membro é seu, somente seu, dando-lheaderência afetiva. Um corpo sem membros precisa de outrosórgãos, de outros nomes com a dissolução da psique. A coxapode sobressaltar-se, ficar “assustada” em outro lugar, em outrocorpo.

Não-senso e erotismo? Lacanagens: olho que sangra, moçarediviva, Leda cismada, orgasmo que não sacia, Evita cuspindoesperma, boceta costurada... Ferimentos são curados com outrosferimentos. Mostrar as chagas não é uma profissão desagradável,nem a condenação pela serpente, que anda como bengala, letraS, semovente e infinita.

A caracterização da simbologia, nesta passagem de apeloicônico, reafirma que o pensamento é por imagens do mistérioe do oculto com a serpente metamorfoseada em bengala e estaem letra: respectivamente a palavra da imagem e a imagem daletra, sua forma na experiência sígnica do ícone em correspon-dências, deslocando a enunciação do narrado para a ação que,

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por sua vez, desloca o referente sintático para o campo da semió-tica simbólica de carântulas, que são figuras cabalísticas, carac-teres mágicos dos feiticeiros. O caráter da figura, da letra, dapalavra.

Outras narrativas, que o autor chama de profanas, inclusi-ve de pretensas psicanalidades, dão continuidade ao onanismodo realejo, entrecortado com a leitura de um livro devorado edevorando-se, o livro-gula de Alice Carroll Dodgson. A leituranão foi adiante, ficou na Lagarta fumando ópio na página 57,leitura de saltos porque páginas foram comidas, 65, 67 e 68,desembocando na 69, a do gato do sorriso que escapou da pági-na. O leitor ficou “irritado” e descobriu que a última página,157, comeu as demais, “engolindo-as sem sequência para nin-guém desconfiar”.

Corvo

A ficção de Relatos de um corvo sedutor, 2008, é a maisimpetuosa, contrastando o mítico agouro da ave da história compersonalidades do mundo da arte, ícones reconhecidos da cul-tura, inclusive de massa. Ao escrever, o autor ouvia o canhão daepígrafe do livro, de Léon Bloy.

O corvo, antes de retornar à Ilha de Nossa Senhora do Des-terro, esteve em cidades distantes: Florença, Paris, Salem, Tó-quio, Buenos Aires, Dublin e Alexandria. Ao aterrissar, quis con-vencer Rodrigo Antônio de Haro a “repintar” antigas naves dacolônia que resistem... na única cidade do mundo em que aindase fazem aterros. Repintar, porque o artista já havia reinventa-do algumas delas, amigo que é da absconsa.

Durante o exílio voluntário do corvo, a Ilha foi desilhadapor sabichões que mandaram construir edifícios de pastilhas euniversidades de pastiches. Ocupado em pôr ideias em ação, ocorvo não percebeu que a isla estava infestada de cupins desco-munais, rogando perdão se deixou algum detalhe fora das cro-citações.

Nas cidades estrangeiras viu prodígios que espantariam es-tas inteligências bate-estacas, não a ele, acostumado a pegar umpedaço de água como pega um pedaço de carne. Ao se preparar

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para refundar a Ilha, corvo Orfeu, não conseguia deixar de re-petir o nome de seu criador, sem dizer, contudo, “nunca mais”,porém agora sim. Após peripécias que logo esqueceu com a per-da da cicatriz de ouro da amada prostituta, o corvo dedicou-sea “seu reino pessoal”. Sem mais nem menos, com manigância,fatiou a Ilha em doze pedaços iguais, sendo adorado por seugesto distrital. Impostador de unhas, cabotino, perdeu as ener-gias e não pode se livrar de impostores com úlceras inflamadas,chegando à cegueira. Convocou, recurso familiar, outro corvocomo guia, um fêmea de nome Annabel Lee, aquela que se foi,aquela que sempre volta, cultuadora de porcos. Com a blasfêmiade quem caiu de uma estrela, enfia-lhes pelo cu toda a sabedo-ria de Rabelais.

Estes e outros episódios são vertiginosos em Relatos de umcorvo sedutor. A cada ação, as palavras ganham autonomia e oautor, sem poder conter os personagens, recorta as sequênciascom diálogos que têm parentesco com a tefromancia. O da go-vernanta da Ilha com súditos e bisbilhoteiros é exemplar. Que-ria ter um nome por conta própria, “Fogo”, avisando os circuns-tantes que seriam sacrificados se não soubessem que som chama-ria a criatura de seu nome. Apesar da ameaça, emitem alguns,todos negados: “Luto”, “Praga”, “Luxo”, “Fome”, “Marfim”,“Fruto”, “Lâmpada”, “Fortuna”, “Mármore”, “Linho”, “Rique-za”, “Cidade”. Nenhum dos nomes soou bem nos tímpanos dalouca, viúva com cara de formiga, quando, de um gigante, ou-viu seu desejo, a máxima palavra: “Magia”.

Os sons dos prefixos no rol dos nomes próprios, seguidospelos sons dos digramas em magia – ma-ag-gi-ia – reverberam oritmo alucinado da narrativa que chega ao orgiástico do caniba-lismo, a hora reparadora do fedor do corvo, a antropofagia ne-cessária dos corpos redimindo-se na catarse ou hecatombe daspalavras.

A consoante m implica divisão, o que faz o mago com amagia, doutrina ou arte, daí a “visão estética” do corvo, encan-tador, sedutor. Outras palavras que iniciam com a mesma letracomportam sentido semelhante: mulher, matriz, metal, madria,mestre, mar, monstro, mente... Os “nomes elementares” deKhlebnikov, estudados por Todorov em Poética da prosa, que re-

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lacionou as múltiplas combinações de palavras com o número deletras do alfabeto. O fulgor da língua está “em unidades funda-mentais”, o que traduzo por logomatrias, as fontes, os sons ini-ciais, as capitulares dos nomes, das frases.

Espelho

As narrativas de Espelhos gêmeos, inédito, ampliam o po-lipsiquismo do narrador com personae animalizadas e objetoscom intenções humanas. Os espelhos de espelhos, reflexos du-plicados.

O livro, em ebulição ficcional, reflete os anteriores em suaextensão que foi partida e reconstituída na erótica que mostramais o outro lado do especular. A polissemia da especulação or-ganiza o cosmos na mesma medida em que se organiza o rostomergulhado no outro lado, que se dá em parcelas, em fúlgidasimagens com perfeição definidas na epígrafe do livro, de Petrô-nio: “Sabeis muito bem que a fome satisfeita bem cedo despertanovos desejos”.

As libertinagens de Espelhos gêmeos têm, para facilitar osrecortes narrativos, o tom antipsiquiátrico. Falos e vaginas queos moralistas gostariam de engolir e ministrar com vômitos. Todaa teoria psicanalítica virada do avesso. No excremento está oouro. E daí? Schiele, Klimt, Breton, Artaud, Duchamp...

As artimanhas de um sapato: provocou a ereção de um sá-bio senil, foi o objeto feliz de uma mulher, viu outra, narcisistae ninfomaníaca, olhando a ausência da labia minora, labia ma-jora pudenti ou vestibulum vaginae. O que ela olhava era a per-da renovada em cada coito, que parodia a morte. E viu, o sapa-to, enorme Marlene Dietrich, anjo azul de ânus solar. Suas per-nas envelhecerão, não seu sapato.

Estas e outras perversões, algumas com vingança, identifi-cam o narrador com o assassino. É com requintes que planejaexterminar alguém, descrevendo planos engenhosos dignos daexecução de uma obra de arte. Concluiu, no entanto, que sãoimpraticáveis pelo excesso de detalhes, preferindo a satisfação do“fluxo da imaginação pura, o crime pensado, organizado e exe-cutado apenas na mente”.

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Não para amenizar as obsessões, mas para sutilizá-las, ametaironia acaba sendo o conceito mais significativo em Espe-lhos gêmeos através dos relatos “Marcel enquanto joga” e “Ter-mômetro”. São duas peças literárias que identificam pensamen-to e imaginação no jogo da linguagem.

O personagem de “Marcel enquanto joga” é Duchamp, quepreferia jogar xadrez a pintar metros e metros de tela – críticaaos produtores, aos impostores do mundo artístico que ele con-siderou bem menos “simpático” do que o dos jogadores, entreos quais se sentia à vontade. O jogo, qualquer jogo, é um vícioque tem somente um objetivo: realizar o impossível. Vencer éapenas um detalhe, diz o relato: “O vício, convertido em obses-são, tem outra origem”. Ainda mais no xadrez, que hipnotiza ojogador com “o movimento das peças” no “reino de possibilida-des infinitas”.

Estas são as peças articuladas no início do relato, baseadoem uma foto de Julian Vasser, de 1963, Duchamp e Eve Babitzjogando xadrez ao lado do “Grande vidro” no Pasadena ArtMuseum. A jovem despida, na época com vinte anos, não per-turbou o oponente, concentrado na jogada utópica, que pratica-mente não ocorre e que persegue os mestres em todos os tem-pos. A foto ficou famosa, e alvo de comentários nada lisonjeirosem função da idade e dos fartos seios de Eve, segundo ela mens-truada, diante do velho celibatário, a quem foi atribuído o amorincestuoso por sua irmã Suzanne.

O narrador não se excitou com a nudez da jovem na foto,e outra testemunha argumenta que a beleza não está nela, masno jogador, em sua atenção no provável movimento, “belo” parao artista nas entrevistas que concedeu a Pierre Cabanne, sob otítulo Marcel Duchamp: engenheiro do tempo perdido. Belezamecânica que compara aos móbiles de Calder. “No xadrez exis-tem, sem dúvida, coisas extremamente belas no domínio domovimento, mas não no domínio visual. Imaginar o movimentoou o gesto é que faz a beleza neste caso. Está completamentedentro da massa cinzenta”.

Não é esta a melhor definição de arte que se conhece de-pois de Leonardo e de Klee?

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Em “Termômetro”, os conhecimentos de Farfalu sobre artesão rudimentares, não se considerando crítico. O fato é que Far-falu é um pincel vivo nas obras excelentes da ereção. Se as obrasnão fazem isso, sonolência, micção. A vara do crítico é uma tris-teza, não a de Farfalu, sensitivo e intuitivo. Comparece, na me-dida do possível, a todas as exposições e ficou mais famoso queos próprios artistas, no geral farsantes de primeira categoria.Farfalu chegou a consultar psicanalistas para obter alguma “ex-plicação plausível” sobre a complexidade de seu “priapismo”.Seria, concluiu-se, uma rara “manifestação de raiz mitológica”.É o seu pênis o termômetro das qualidades artísticas ou são asqualidades que deixam seu membro em vigília. Foi convidadopara decidir qual a melhor obra, “Mona Lisa” ou “A madona, omenino e São João Batista”. O erotismo velado de Leonardodeixou o termômetro como estava, sem faíscas, e a inocência deRafael perturbou-o a ponto de romper a braguilha com o suorda virgindade. Houve uma discussão onanista entre o diretor domuseu e um crítico de arte, Pisanelli, que não podia aceitar ta-manho disparate do falo incontrolável. “Até posso, contrariado,admitir a superação estética de Gioconda, se comparada comoutra obra, da época, mas não é possível, convenhamos, inérciafálica diante de um quadro de Leonardo da Vinci”. Presume-seque a autenticidade da obra é o que move Farfalu no transeptode sua capela. A obra era falsa e escamoteava os propositadosenganos de visão na pintura de Leonardo, a mulher com calorno traseiro e que fita o espectador da pirâmide ótica, áureo sor-riso.

Correspondências

Paradigmático é o título do mais recente livro de contos dePrade: Correspondências, 2009. Relaciona, indicial e anamórfi-co, escrever e ler para reunir sabedorias em um só pensamento.Ao aproximar imaginação e erudição, as alusões nesta obra logosão submetidas no que têm de histórico ao trespasse da ficção.

Quem se der ao feliz trabalho de sistematizar as fontes fic-cionais de Prade terá, em primeiro plano, as relações abstratasmotivadas pelo afetivo, faculdade que sobrevive graças às cen-

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telhas que as palavras emitem uma vez pronunciadas como su-cedâneos em mudanças.

O termo correspondência abrange a enálage (ou hipálage),a metonímia, a catacrese e a sinédoque. As alusões, assim, sãoprovisórias, pois da fagulha lida vem o relâmpago da escrita emgiros e inversões. As palavras mais adequadas aqui são permuta-ção, translocação e transposição.

Não menos que os livros anteriores, Correspondências foiescrito de uma tal forma que não é mais possível dissociar pen-sar de alucinar, qualidades aparentemente antípodas e poucoencontradas na literatura brasileira. A tal forma, que transformasemelhanças em diferenças, sugere a vigília de escritura, a me-ditação ou a “varinha de condão” em “Vocação”, e que o autorlocalizou na magia, a “vírgula divina” na história milenar deobjetos que têm vida própria.

Sem poder adestrar porcos, como desejava, o personagemdeste conto sai de casa à procura de sua vocação, desconhecida.Auxilia um geólogo, pratica a tatuagem, consulta os arcanos eencontra, finalmente, a cigana que lê sua futura glória “pelasmãos do destino”. Enquanto as circunstâncias levam o persona-gem ao que já estava nele, um encantador de serpentes, o autorvai pontuando práticas sagradas, todas lidas em livros de magiae em outros não menos mágicos. Nas peripécias de tatuador, porexemplo, sabe-se que o personagem sem nome lê um artigo quediz sobre a origem da tatuagem: “Soube, então, que sua origemse encontra nos antigos judeus, sendo prescrita por Jeová, noÊxodo (XIII, 16), como sinal de Aliança. Fascinou-me, também,a notícia de que o Apocalipse (XIV, 9) localiza a marca da Bestana mão ou na testa”.

Ao sujeito, além da substância, interpõe-se o acidente, e asfinalidades são atingidas, mesmo as mais absurdas. Em “Vende-doras de ventos”, no qual o autor cita um livro, História damagia, de François Ribadeau Dumas, saboreia-se o improvávelmas verossímil sobre duas mulheres “possuidoras de idênticaprofissão”, vender ventos. Ambas têm comportamentos demen-tes, cuja sabedoria advém do estranho que não denota nenhumautilidade, a não ser alimentar pequenos sinistros afetivos. Cole-cionam dentes podres, matam adversários, não soluçam, não fa-

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zem sexo nos domingos e memorizam “as letras de todos os al-fabetos das línguas vivas e mortas”. A motivação de tão insólitaprofissão não é revelada, o que provoca a intertextualidade so-bre as ilusões: os homens correm atrás do vento, como maripo-sas esvoaçam na luz.

Em “Paisagens”, o incidente de uma garrafa trazida pelomar transforma uma criança em ancião, Jeremias. Ficou “encan-tado” com sua forma de gema e, tocando-a, ouviu uma voz queo fez olhar pelo gargalo, ansioso. Comportando-se como quemviveu o suficiente para ver que é o movimento que faz as coisas,virou-a à direita e à esquerda, caleidoscópica, desfrutando “even-tos” belos e tenebrosos, respectivamente. A garrafa é prodigiosapor conter a vontade da matéria.

É o tempo de Jeremias, o de ouro, que faz dele a percep-ção de outro tempo, o do clinamen, que concentra o que foi e oque virá. Daí a sua prudência, própria de mentes avançadas:enterra a garrafa para não ser girada à esquerda, poupando ahumanidade do horror, porém privando-a da “esplendente be-leza”.

O clinamen que irrompe na escrita pradeana, de fonte epi-curista, também permeia o nome e a identidade. Um ornitólo-go, em “Passaromorfose”, quer ser uma criatura de asas e ima-gina “que tipo melhor se afeiçoaria ao seu temperamento”. En-quanto pensa nos possíveis pássaros que poderiam resgatá-lo dopeso humano, vai descrevendo suas atribuições anímicas e míti-cas. O engole-vento, o corvo, a coruja, o milhafre, o pelicano, osimorgh, o rouxinol e a andorinha transportam-no a continen-tes e a culturas. O ornitólogo contenta-se com as três últimasaves, que representam o humano, o platônico e o fecundante.Enfim, decepcionado, viu “que se transformara num pavão bi-zantino”.

De desvio em desvio, a narrativa do ornitólogo diz que osentido de uma palavra, ao nomear um objeto, está no sentidode outra e assim por diante. Ao valer-se de figuras, na realidadesão as palavras que vão dizendo umas às outras na deriva da lin-guagem. Deleuze: “Para cada um de seus nomes, a linguagemdeve conter um nome para o sentido deste nome”. Essa propo-sição é conhecida como paradoxo de Frege, e é também, para

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Deleuze, o de Lewis Carroll. Veja-se “Olhos esbugalhados”, o tí-tulo da canção do cavaleiro no encontro com Alice. – “Oh, é o no-me da canção?” diz Alice. – “Não, você não compreendeu, dizo cavaleiro. É como o nome é chamado. O verdadeiro nome é:o Velho, o velho homem”. – “Então eu deveria ter dito: é assimque a canção é chamada?” corrigiu Alice. – “Não, não deveria:trata-se de coisa bem diferente. A canção é chamada Vias e meios;mas isso é somente como ela é chamada, compreendeu?” – “Masentão, o que é que ela é ?” – “Já chego aí, diz o cavaleiro, a can-ção é na realidade Sentado sobre uma barreira”.

Outros contos – “Engrenagem”, “Hipnotizador”, “Bicicle-tas”, “Correspondência”, “Arapongas” e “Sonhos” – dão conti-nuidade objetual e mental aos paradoxos da linguagem. Corres-pondem a um sistema mutacional de tempo, espaço e suas repre-sentações.

O conto “Engrenagem” emblematiza estas subversões ilógi-cas que aspiram a grande lógica, a correspondência das declina-ções. O mecanismo exato de um relógio, que somente poderiaser suíço, é questionado pela imponderabilidade humana. Mer-gulhado no interior da máquina repetitiva, o personagem quersaber sobre a sua “estrutura”, que pode agonizar na “matemáti-ca nitidez de sons emitidos”. Mas, não agoniza. Vacuidade: eleapenas constata a “sensação de fazer parte desta extraordináriaengrenagem musical”.

O fascínio exercido pelo relógio continua em “Hipnotiza-dor”, este um relógio renascentista e maléfico na coleção de al-guém que abriu uma loja sem despertar o interesse dos compra-dores, até ouvir batidas na porta, de um homem no meio da vida.Apesar da aparência maltratada, ele tem posses suficientes, dia-mantes, para adquirir um certo relógio do século 15, que tem odom de hipnotizar, do qual quer se vingar por ter induzido seufilho a matar “o assasssino de seu primeiro proprietário”. Ocliente, que espatifou o precioso objeto com um martelo, desfi-la seus conhecimentos sobre coleciadores, relojoeiros e invento-res de relógios, que são mais enigmáticos quando parados. Co-menta sobre Rodolfo II, que abrigou em sua corte os mais famo-sos relojoeiros, “entre os quais se destacavam Georges Schnee-berger e Jobst Burgi, inventor do pêndulo, o melhor amigo de

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Kepler”. Esclarece o equívoco sobre o artista Pontormo, que te-ria construído o relógio de bolso, na realidade façanha de um ser-ralheiro, “Peter Henlein, nascido em 1480 e falecido em 1542”.

Todas estas informações são verdadeiras, inquestionáveis, epor isso mesmo beiram a ficção, ainda mais quando o “eruditocliente” demonstra familiaridade com a iconografia simbólica:“Assim como o pentágono é o símbolo dos pitagóricos, e o ter-ceiro olho é o símbolo dos budistas, o relógio é o símbolo dosmaneiristas”. E ele menciona sua ascendência memorável, dizen-do-se “descendente de Athanasius Kircher, criador do orologiumphantasticum, combinação feliz de clepsidra e de relógio solar”,quem sabe a comunhão de elementos vitais, a água e o fogo, quedesde sempre são a mesma coisa.

As correspondências, além dos relógios, reavivam bicicletas,“obsessão” ou “coisa mental”, “paranoia” no discurso da razãosobre a loucura, para o personagem, batismo “sem razão”.

O conto, “Bicicletas”, é uma breve aula sobre artes plásti-cas, especificamente sobre três obras do século passado, das quaisse atribuiu os transtornos psíquicos do personagem-paciente:“Roda de bicicleta”, de Marcel Duchamp em 1913, “Cabeça detouro”, de Pablo Picasso em 1942, e “Bicicleta e lousas com ins-crições”, de Joseph Beuys em 1984. Ao refutar estas procedên-cias, não é a clareza com que lê as obras que o tornam menosobtuso, negando-se ao papel de coautor por osmose com a artefeita como crítica da arte. Mesmo assim, ele não deixa de sercrítico: a Duchamp imputa o desejo de utilizar uma roda “comose fosse obra de arte”; a Picasso satisfazer “apenas aos amantesda tauromaquia”; e Beuys a “pedagógica, lendária e messiânicapretensão”. Nada disso ele queria aceitar, apaixonado pela “pró-pria bicicleta, inteira, de uso diário, objeto útil e estético”. Comopoderiam, artistas iconoclastas, satisfazer a sua fantasia que sa-crificava a existência moral, não a estética na fisicalidade doobjeto em si?

“Bicicletas”, nesta passagem, coloca o mais controvertido dahistória cultural e familiar. O roubo em arte, que na apropria-ção de objetos expropria as suas funções, é substituído pelo rou-bo executado pelo personagem por não ter sido, no costume fa-miliar, presenteado com uma bicicleta ao completar 25 anos.

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Decepcionado com o lapso, foi tomado pelo furor de Marcel –a criança proustiana que somente dormia com o boa-noite damãe e a leitura que a ele fazia de George Sand. A decisão de fur-tar uma bicicleta amenizou o impasse, “pois, se não a furtasse,além de choroso ficaria violento, causando problemas aos vizi-nhos”. Nas artimanhas do roubo, ao preparar o ato, o ladrãopassa à descrição de uma foto de Harlingue-Viollet, do mestrepatafísico Jarry pedalando, com energia: “Ele andava, o olharfixo no provável horizonte, sem revelar distração, movimentan-do os pés com segurança, o esquerdo embaixo e o direito emcima, cuja cabeça heráldica, enfeitada por um bigode ralo, cobriaa metade do portão da casa antiga, que exibia a janela maior deasas abertas”.

No final de “Bicicletas” constata-se que um problema, adecepção do personagem, foi substituído por outro, o roubo,porém como solução imaginária que levou-o à catarse mistifica-da com a bicicleta: “Ela, a mais amada, está comigo nesta Cate-dral de muros fechados, e a giro, giro, giro enquanto as imagensdas rodas, guidão e selins embaçam o que ainda resta da memó-ria, até eu cair exausto”. Jarry, por outro lado, obteve a bicicle-ta da foto como se fosse um sub-roubo, não a pagando. Aquitambém um problema foi suplantado por outro, algo semelhan-te nas obras de Duchamp, Picasso e Beuys. A arte, em poucaspalavras, é um ato problemático que, ao abolir o passado, inau-gura o futuro.

A abolição em arte, com apagogias dialéticas e utópicas, temequivalentes no processo científico. Um problema pode e deveser resolvido com outro com a relativização de propriedadesmentais e físicas mais afastadas entre si. Isso já é uma problemá-tica que nunca acaba de ser pensada. Assim encontra-se o “físi-co” em “Correspondência”. Precisa resolver um problema cien-tífico que, na física moderna, não pode se valer da experiência,somente da especulação. Este foi o método de Einstein, no qualo dado teórico constitui-se antes de assumir o fato experimen-tal, não o contrário. Há mais suposições nos campos da relativi-dade e da probabilidade, que, além de físicas, são filosóficas.

O físico do conto de Prade, “nuclear”, especula em tornode um problema não revelado, e chega à conclusão de que so-

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mente poderia solucioná-lo com a declinação de todos os verboslatinos. Orietur, originar-se, originar. E assim ele procede durantelongos anos na expectativa de “estabelecer alguma correspon-dência entre a declinação verbal e o problema, na certeza de so-lucioná-lo”. Sem encontrar a solução, retoma a tarefa linguísti-ca por outra via, pois ele é físico, e “um físico nuclear jamaisabandona a esperança”.

Não abandona, no sentido que o narrador dá à esperança,o contato com o desconhecido, que tem somente uma idade: ados eventos, que se correspondem em suas singularidades. Hápontos aleatórios ou o acaso exemplificado por Borges em Fic-ções ao descrever o jogo babilônico: “Se a loteria é uma intensi-ficação do acaso, uma infusão periódica de caos no cosmos, nãoseria conveniente que o acaso interviesse em todas as etapas datiragem e não em uma só apenas?” As tiragens são infinitas e asdecisões se ramificam, continua Borges. “Os ignorantes supõemque infinitas tiragens necessitam de tempo infinito; basta, narealidade, que o tempo seja infinitamente subdivisível, como omostra a famosa parábola do Conflito com a Tartaruga”. Umevento ocorre porque outros ocorreram e assim todos os even-tos são possíveis. O mesmo Borges ilustra com o segredo de Fange o desconhecido que surge: “Fang pode matar o intruso, o in-truso pode matar Fang, ambos podem escapar, ambos podemmorrer etc. Todos os desfechos se produzem, cada um é o pon-to de partida de outras bifurcações”.

“Arapongas” e “Sonhos”, entre outros relatos, apresentamesta quarta dimensão. Ao ser perturbado por arapongas que pou-sam em seu enorme nariz, o personagem perfila “soluções” paraexterminá-las. Chega a apelar a São Francisco de Assis, que po-deria, telepático, “chegar a um acordo” com as aves. Nenhumadas soluções foi executada, prevalecendo outra “escolha”, estade “origem mística”, conforme ouviu da vidente que consultou.Da superfície, conclui-se, o relato foi à profundidade em graduaisdeclinações que acabam, ou começam, esferas limítrofes em re-gressões na escrita. Chega-se, então, ao vazio, de onde poderãosurgir outros sentidos.

Estes, em “Sonhos”, multiplicam-se com o hábito de umcasal relatar suas vidas noturnas exemplificadas em dois sonhos:

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o homem sonha com a mão decepada de São Damasceno, e amulher com o sol escurecido. O hábito foi quebrado, pois resol-veram não compartilhar mais os sonhos, porém escrevendo-ose guardando-os. O silêncio entre ambos levou-os a mudançasfisiológicas que afetaram a sincronia afetiva. Escrever os sonhos,é provável, foi uma defesa inconsciente contra estes ataques, osmesmos que ocorrem no sono paradoxal quando o sistema ner-voso simpático defende o sonhador, que se decompõe, com ex-ceção dos músculos oculares, descrito, em 1899, por Sante deSanctis: o fenômeno onírico é provocado pelos movimentos ocu-lares de quem dorme.

O compartilhar e o segredar apontam para o mútuo dese-jo: a mudança da consciência com a linguagem. Somente o rela-to, na voz e na escrita, poderia unificá-los, como se homem emulher soubessem que o psiquismo possui dinâmica e economiaque reorganizam os desejos. Eles não queriam ignorar ou despre-zar áreas desconhecidas de suas histórias. As vigílias do dizer edo escrever aprimoradas nos sonhos.

O final do conto enseja todos os sonhos. No dia em que amulher faleceu, o homem, ao resgatar os papéis segredados, des-cobriu que haviam “sonhado os mesmos sonhos”. Sem que sesaiba quais as imagens, imagina-se tantos sonhos, começandocom um dos mais raros: eles sonharam que estavam sonhando.

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Terceira Parte: Imagens Multievocativas

A poesia e a ficção de Péricles Prade compõem imagens queexigem desenvolta percepção e nomadismo no campo da lingua-gem. A “ciência das soluções imaginárias”, a patafísica de Jarry,é o que melhor define sua literatura.

Francis Bacon, ensaísta do século 16, acreditava que as ima-gens que o mundo nos apresenta estavam na memória desde onascimento, proposição fundada em Platão, que “tinha a concep-ção de que todo conhecimento não passava de recordação”, eque “estamos todos refletidos de algum modo nas numerosas edistintas imagens que nos rodeiam”.

Somos feitos de imagens, como pensava Aristóteles, “quetomam o lugar das percepções” contendo os conceitos, princí-pio aceito ao longo de muitos séculos e questionado por WilfridSellars. Aristóteles não podia admitir suposições vagas com aconvicção da organicidade da forma, enquanto Platão confiavana memória e na recordação.

Antes do questionamento de Aristóteles, a memória e a re-cordação atraíram o pensador do temor e do tremor, Kierkegaard.Para ele a memória ocorre sem mediação, flutuando entre a lem-brança certa ou errada. A recordação, por ser refletida, não in-corre nesta indecisão ou na ilusão da lembrança. Kierkegaardexplica com o que chama de arte: “Por exemplo, o que é a sau-dade? É vir à recordação algo que está na memória. A saudadeaparece pelo fato de se estar ausente. Arte seria sentir saudadesem se estar ausente”. E Kierkegaard vai mais longe acerca doque é ativo na recordação, identificada com a repetição: “são ummesmo movimento, apenas em direções contrárias; pois o que érelembrado aconteceu, é repetição para trás, enquanto que arepetição, propriamente dita, é uma relembrança por antecipa-ção”. A arte da recordação projeta-se no futuro da repetição.

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Apesar de Nietzsche ter abismos que desfazem os de Kierke-gaard, pelo menos na repetição ambos têm velada proximidade.Nietzsche considerou que tudo o que pode ser pensado “é ne-cessariamente uma ficção”, o próprio abismo que tanto olhava,nele transformando-se por recordação não de sistemas, que tantocriticou e tornou-os inofensivos, mas do devir, do que vai acon-tecer porque de alguma forma já havia acontecido. O bigodudoé, assim, o primeiro pensador moderno em devorações que di-zem o que os poetas fazem: originam-se ao nomear o mundo.

Deste ponto de vista que lembra Bachelard – o animal nãocome para viver, mas vive para comer –, dentre os comentado-res da obra de Prade há um estudo que em vez de amarrá-lo aalgum sistema, como é comumente feito, coloca-o onde deve sercolocado por sua natureza entrópica, cibernética. Refiro-me a Ocão e o alçapão, análise do ficcional em Prade na autoria de Luze Silva. O livro tem uma estratégia ensaística necessária e inteli-gente ao não reduzir sua obra a psicologismos e, sobretudo,mantendo-a no que provoca, sugere, indaga, instaura na ampli-tude e no alcance inventivo. É esta uma das principais caracte-rísticas da obra de arte, a apropriação seguida da desapropria-ção com a leitura crítica que faz das ideologias, inclusive tornan-do a maior parte da crítica literária um pássaro empalhado. Aleitura crítica, no processo artístico, desautoriza discursos redu-tivos, principalmente os da psicanálise e os de algum sistemapolítico. Barthes, na Aula, já disse tudo sobre isso, sobre a liber-dade literária, que não está no doutrinal: “O que tento visar aquié uma responsabilidade da forma: mas essa responsabilidade nãopode ser avaliada em termos ideológicos – e por isso as ciênciasda ideologia sempre tiveram tão pouco domínio sobre ela”.

O livro de Luz e Silva foi escrito com breves ensaios demar-cados pela ficção de Os milagres do cão Jerônimo e Alçapão paragigantes, dos quais deixou a reflexão seguir o curso volitivo dasnarrações sobre forças instintivas levadas a efeito e as mesmasforças segredadas, pacificadas.

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Luz e Silva, ao aproximar-se da ficção pradeana, não per-deu de vista o arbitrário nos personagens, pois a linguagem tra-duz o imaginável e não o verossímil. Acertadamente ele diz, en-tão, que “Péricles Prade é um caçador do invisível”.

A ficção de Prade tem a capacidade de interpolar no infini-tamente impalpável o cunho filosófico de uma ordem imanentee transcendente, multievocativa de forças irrefreáveis, anárqui-cas, irracionais. Uma outra ordem que questiona as certezas, li-mitadas e provisórias, revelando o humano insuficiente por terperdido o anímico, sendo apenas um organismo estropiado nosespasmos da passionalidade.

O imaginário, quando noético, encena o mundo na e coma linguagem. E não são as coisas, criaturas e objetos, que são in-verossímeis, porém as circunstâncias em que aparecem por vita-lismos, que têm as suas próprias energias, nas quais se constataque os vivos são o que são. Inverossímeis, portanto, para os há-bitos e normas convencionais do cativeiro humano, cultural. Etais personagens, entre a ação e a contemplação, parodiam osanimais enquanto por eles são parodiados. Personagens, quemesmo submetidos a princípios civilizados, continuariam sendoselvagens, instintivos, além do bem e do mal.

Nietzsche, para resolver dúvidas de antecedentes e de con-temporâneos acerca dos sentidos, legou à posteridade quatroteses: na primeira tese, o fato de se acreditar que o mundo éaparente justifica uma outra realidade que não pode ser demons-trada; na segunda tese, as características do ser são as mesmas donão-ser, com a contradição entre o mundo real e o mundo apa-rente, aparente como ilusão da moral; na terceira tese, é despro-positado fabular acerca de outro mundo, a não ser que se quei-ra vingar-se da vida com a fantasia de um mundo melhor; naquarta tese, a divisão do mundo em verdadeiro e aparente é obrada decadência, um declínio da vida. A aparência na arte não éuma objeção a essa tese, significa outra vez a realidade selecio-nada, corrigida, reforçada.

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Não fossem estas teses, Nietzsche não teria dito o que dis-se ao ler Memórias do subsolo, de Dostoiévski: “A voz do san-gue (como denominá-lo de outro modo?) fez-se ouvir de imedia-to e minha alegria não teve limites”.

Entre os autores russos do século 19, Dostoiévski é um casosingular: fez da ficção uma forma de filosofia que tornou supér-fluas quase todas as ideias que pululavam no movimento edito-rial da época, situando no particular uma crítica geral da razãoocidental. Memórias do subsolo concentra toda a potencialida-de ficcional iniciada em Crime e castigo, e na primeira pessoa,em nota prevenindo os leitores que o autor e o texto são imagi-nários: “Todavia, pessoas como o seu autor não só podem, masdevem até existir em nossa sociedade, desde que consideremosas circunstâncias em que, de um modo geral, ela se formou”. Ascircunstâncias a que Dostoiévski se refere são históricas, a comu-nhão com o solo e o respectivo desalojamento dessa cultura re-presentada pelo homem do subsolo. Memórias foi escrito no iní-cio da década de 1860, e seu personagem incomum contrastacom os demais, os homens práticos. O homem do subsolo é re-voltado. Contra a sociedade e contra ele mesmo, daí suas con-tradições e paradoxos. Um anti-herói dissecado nas três primei-ras frases do livro: “Sou um homem doente... Um homem mau.Um homem desagradável”. Tem quarenta anos e metade da vidaesteve no porão, querendo, muitas vezes, tornar-se um inseto.Não foi digno para tanto, ou o excesso de consciência não per-mitiu, considerando-a “uma doença autêntica, completa”. Ohomem do subsolo relata o que nele é antípoda até confrontar-se com o oficial superior. Na primeira parte, “o subsolo”, estãoas refutações cáusticas e, na seguinte, com o subtítulo “a propó-sito da neve molhada”, a prática das ideias fermentadas no sub-terrâneo. O personagem, nesta parte, retoma o “belo e sublime”de Kant, ironizando a sua aplicação ou mesmo a sua inutilidadepara homens de consciências medianas, subjugadas. Mas o per-sonagem não se exclui dessa massa informe, e se sente vitimadopela segregação dos superiores representada pelo tilintar do sa-bre do oficial.

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81Jayro Schmidt

O “belo e sublime” é uma alusão ao livro Observação so-bre os sentimentos do belo e do sublime, muito popular em SãoPetersburgo nas décadas de 1830 e de 1840, e uma oportunida-de para Dostoiévski desancar os críticos vigentes, colocando nosembates de seu personagem as limitações dos pensamentos quepredominavam na época. Quanto mais o homem do subsolo queras sutilezas da beleza e da sublimidade, mais ele se afunda em seu“lodo”, não por “acaso”, mas por inevitabilidade, “como algoque tinha de ser”, normalidade que lhe proporcionava um “pra-zerzinho secreto”, “ignobilzinho”, na realidade, “doçura vil”. Daconsciência ilimitada de sua degradação provinha o seu prazer,lei básica de uma “consciência hipertrofiada” pela “inércia” exer-cida sobre ele. Há, afinal, uma razão para o homem do subsoloser um perfeito canalha na hipertrofia da consciência, levando-aa efeito, porém sem se atirar “diretamente ao objetivo” como oshomens normais. “Ora, trata-se de um homem e, por conseguin-te, de tudo o mais também. E o mais importante é que ele seconsidera a si mesmo um camundongo; ninguém lhe pede isto,e este é um ponto importante”. E o camundongo quer vingar-secom mais rancor do que o homem de Jean-Jacques Rousseau emConfissões: “Quero mostrar aos meus semelhantes um homemem toda a verdade da natureza; e este homem serei eu”. Rous-seau foi saudado pelos românticos alemães e, sobretudo, porTolstoi, que consideravam o homem bom como representação dajustiça, legitimando-a em seus atos, por isso mesmo estúpido paraDostoiévski, pois seu camundongo “nega haver nisso qualquerjustiça”. O homem de Rousseau pode, aqui, ser interpretadocomo submisso ou covarde diante das leis naturais. O homem dosubsolo sabe que nada pode fazer contra tais leis “porque dois edois são quatro, é matemática”. Um muro é um muro e à natu-reza não importam os desejos, imperativos a que não se confor-ma por ter renunciado ao solo e a outros princípios complemen-tares que tem que compensar com outra lógica, com causas pri-meiras que provocam outras mais anteriores ainda. “Tal é, defato, a essência de toda consciência, do próprio ato de pensar”.Com estas causas, e após digressões sobre as promessas racionais,o homem do subsolo chega à conclusão de que o melhor seriaviver de acordo com a vontade, porém a “vontade que seja nos-

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82 Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias)

sa, livre, um capricho nosso, ainda que dos mais absurdos, nos-sa própria imaginação, mesmo quando excitada até a loucura –tudo isso constitui aquela vantagem das vantagens que deixei decitar, que não se enquadra em nenhuma classificação, e devidoà qual todos os sistemas e teorias se desmancham continuamen-te, com todos os diabos! E de onde concluíram todos esses sabi-chões que o homem precisa de não sei que vontade normal, vir-tuosa? Como foi que imaginaram que ele, obrigatoriamente,precisa de uma vontade sensata, vantajosa? O homem precisaunicamente de uma vontade independente, custe o que custaressa independência e leve aonde levar”.

A vontade do homem do subsolo, que coincidia com a deNietzsche, prenunciava a literatura do mal de Bataille, antecedidae seguida por escritores rebeldes que são verdadeiros clínicos dalinguagem. Uma literatura sem inocência, de expurgação, na qualo erótico se confunde com o onírico, sem que se possa dizer,então, que é moral ou imoral, definindo na linguagem a nature-za humana. Bataille: “um homem que ignora o erotismo é tãoestranho quanto um homem sem experiência interior”. Assim éo autor de Os milagres do cão Jerônimo, Alçapão para gigantes edemais livros, com o essencial: quanto mais encobertos os dese-jos, mais expostas as palavras em narrativas que insinuam duasvozes, do autor e do personagem, que não se anulam, porémapresentam uma terceira voz, a das imagens ficcionais.

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83

Abdera, Demócrito de 18Abetarda 17Abissínia 18Abraão 17Abu’l-Qasim 17Adão 17Alçapão para gigantes

(Prade) 55, 56, 60, 62, 78,82

Além dos símbolos(Prade) 17, 25, 26, 38

Alexandria 18, 64Alice 71Amenófis 18América 18, 40Anacreonte 17Andaluzia 40, 42“Angelus novus” (Klee) 23Ao som do realejo

(Prade) 55, 62Apocalipse 69Apollinaire,

Guillaume 17, 56Apolônio 52Arábia 18“Arapongas” (Prade) 71, 74Arcimboldo 62Aristóteles 22, 77Arles 36Arminda 31Arquimedes 21, 22Artaud, Antonin 66“Asa delta” (Prade) 38, 39Attar, Farid-od-Dinn 17Aula (Barthes) 12, 78

Índice Onomástico

Aupick, General 52Auvers-Sur-Oise 37Avicena 17

Babilônia 18, 39Babitz, Eve 67Bachelard, Gaston 18, 51, 78Bacon, Francis 77Barthes,

Roland 12, 33, 34, 76Basan 18Bashô, Matsuo 34Bataille, Georges 33, 82Baudelaire, Charles 22, 26,

27, 31, 34, 52, 53Beethoven, Ludwig van 17Bell, Lindolf 29Benjamin, Walter 3, 22, 23,

26, 27, 52Bense, Max 16, 35Benvenutti, Ariosto

Giovani 17Bertrand, Aloysius 16, 45Bessel, Friedrich 50Beuys, Joseph 72, 73Bey, Khalil 22Bibel, Zürchen 17“Bicicleta e lousas com

inscrições” (Beuys) 72“Bicicletas” (Prade) 71, 72,

73Birkhoff, Garret 16Bizâncio 18Blake, William 18, 56, 62Blanqui 52

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84 Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias)

Bloch, Ernst 23Bloom, Harold 50Bloy, Léon 64Borges, Afonso Ferreira 18Borges, Jorge Luis 7, 18, 74Borgonha 18Bosch, Hyeronymus 18, 62Botticelli, Sandro 46Braço do Norte 18Brand, Hennig 25Brauner, Victor 56Breton, André 56, 66“Brevíssimo inventário de

palavras nervosas”(Prade) 25

Brueghel, Pieter 62Brüggemann, Fábio 37Buda 17, 20Buenos Aires 18, 64Buñuel, Luis 18Burgi, Jobst 71

Cabanne, Pierre 67“Cabeça de touro”

(Picasso) 72“Café noturno”

(van Gogh) 60Cairo 18Calder, Alexander 67“Caleidoscópio” (Prade) 38Calígula 30Cambirela 18Camões 18Campeche 18Campos, Álvaro de 17Campos Filomeno,

Onor 49, 51Camus, Albert 28, 29

Canaã 18Cão e o alçapão, O (Luz e

Silva) 78“Capela de ossos” (Prade) 38Capela Sistina 45Carmona 44Carrá, Carlo 56Carroll, Lewis 18, 57, 71Carroll Dodgson, Alice 64Catequese Poética 29“Cavalo de Mergoror, O”

(Prade) 62Cemitério da Paz 18Cézanne, Paul 49, 50Chaplin, Charles 18Chirico, Giorgio de 56Ciranda andaluz

(Prade) 40, 41, 45Cleópatra 18Coleridge, Samuel 7Colombo, Cristóvão 17, 40Columbus 22“Confabulatores nocturni”

(Prade) 38Confissões (Rousseau) 81Confúcio 17Conrad, Joseph 52Constantinopla 18“Correspondência”

(Prade) 71, 73Correspondências

(Prade) 55, 68, 69Córsega 18, 25Corvo, Martin 17Costão do Santinho 18Courbet, Gustave 22, 52Crime e castigo

(Dostoiévski) 80

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85Jayro Schmidt

Cristo 17, 42Crowley, Aleister 18Cruz, São João da 17, 20Cruz e Sousa, João da 31,

32, 38Curdistão 18

Dali, Salvador 18Damasco 18Dante 52Davi 46Deleuze, Gilles 57, 70, 71“Delicadeza” (Prade) 46“Demônio e as margaridas,

O” (Prade) 61“Depoimento de um filho

adotivo” (Prade) 62Deus 17, 28Diários (Kafka) 23Dietrich, Marlene 66Dinamarca 18Diomedes 17, 25Dionísio 17Dostoiévski, Fiódor 28, 80, 81Drummond de Andrade,

Carlos 11Dublin 18, 64Duchamp, Marcel 22, 66,

67, 72, 73

Egito 18Einstein, Albert 73Elegias de Duíno (Rilke) 60Em forma de chama

(Prade) 17, 24, 48“Engrenagem” (Prade) 71“Entre as folhagens”

(Prade) 38, 40

Ernst, Max 56“Escorpião sonolento, O”

(Prade) 32Esdras 17Espanha 40, 44Espelhos gêmeos

(Prade) 55, 66, 67Este interior de serpentes

alegres (Prade) 7, 28, 29,30

Esteves 17Evita 63Existencialismo é um

humanismo, O (Sartre) 28Êxodo 69

Fang 74Farfalu 68Faróis invisíveis, Os

(Prade) 33, 35“Fatalidade” (Prade) 20Ficções (Borges) 74“Filha do rei Anjahamara, A”

(Prade) 58Florença 18, 46, 64Floresta Negra 18Fortuny, Mariano 45França 36Frege, Friedrich 70Fuente Vaqueros 41

Gachet, Paul 37Galiléia 18Gaza 18Geração de 45 11Ghiberti 46Ginoux, Madame 36Gioconda 18, 68

Page 87: Poesia e ficção de Péricles Prade

86 Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias)

Giralda 44Gogh, Vincent van 18, 36,

37, 60Golias 46Gomes, Álvaro Cardoso 56Gomorra 25Gracián, Baltasar 43“Grande concha, A”

(Prade) 61“Grande vidro”

(Duchamp) 67Greco, El 49Guadalquivir 42Guimarães 18Gutenberg 18Guys, Constantin 53

Habuz, Aben 43Harlingue-Viollet 73Haro, Rodrigo de 18, 64Haussmann, Barão 52Hegel, Friedrich 16, 23Heidegger, Martin 28, 29Henlein, Peter 72Hermes 52“Herói salva a cidade dentro

de um sapato, O”(Prade) 58

“Hipnotizador” (Prade) 71História da Magia (Ribadeau

Dumas) 69Ho, Hieh 36Homero 18, 52Husserl, Edmund 28

Idade Média 22“Iluminuras”

(Prade) 25, 38, 39

Invenção de Orfeu (Lima) 39Investigações filosóficas

(Wittgenstein) 10, 15

Jahvé 17Jaldaboath 17“Jardim das asas

multiplicadas” (Prade) 36Jarry, Alfred 17, 25, 26, 56,

73, 77Jatayu 17Jaula amorosa (Prade) 36Jean-Paul 18Jeová 69Jeremias 70Jerusalém 18Jesus 17João 17José 17, 44Joyce, James 18, 52Judas 17“Juízo Final”

(Michelangelo) 45Junqueira, Ivan 53

K’i-Lin 17K’ung-Tse 17Kafka, Franz 7, 18, 23, 50,

55Kahn, Kublai 7Kandinsky, Wassily 14Kant, Emmanuel 16, 80Kaváfis, Konstantin 18, 52Kegel, Ernestina 18Kepler, Johannes 72Khlebnikov, Velemir 36, 65Kierkegaard, Sören 28, 77, 78Kinnara 17Kircher, Athanasius 72

Page 88: Poesia e ficção de Péricles Prade

87Jayro Schmidt

Klee, Paul 23, 67Klimt, Gustav 66Kostro 17, 25

“Labirinto poético do Tarôpradeano” (CamposFilomeno) 49

Labirintos (Prade) 48, 49,50, 51, 52

Lagoa da Conceição 18Lagoa do Peri 18Lâmina, A (Prade) 28, 30, 31Lane, Rock 12Lautréamont,

Conde de 18, 56Leda 63Lee, Annabel 18, 65Léon 18Lima, Jorge de 29, 39Lisboa 18Livro dos sonhos (Borges) 7Locke, John 12Lógica do sentido

(Deleuze) 57Lorca, Federico

García 41, 43, 44Lucílio 45Luz e Silva 78, 79

Macchiaveli, Niccollo 46Machu Picchu 18“Madona, o menino e São

João Batista, A” (Rafael) 68Magno, Carlos 17Magritte, René 13, 14, 56Maiochi 61Malevitch, Kasimir 14, 33Mallarmé, Sthéfane 11, 36

Mann, Thomas 54Manu 17Marcel 73Marcel Duchamp: engenheiro

do tempo perdido(Cabanne) 67

“Marcel enquanto joga”(Prade) 67

Marco Antônio 18Maria 44Markov, Andrei 10, 11Meca 18Mefistófeles 32Melo Neto, João Cabral

de 44Melusina 17Memórias do subsolo

(Dostoiévski) 80Mendes, Murilo 29Mesopotâmia 18Michelangelo 45Mileto, Tales de 17Milton 18Minotauro 51Miró, Joan 44“Mirsânia, a estrategista”

(Prade) 62Mississipi 18Mix, Tom 17Moisés 17Moles, Abrahan 16“Mona Lisa” (Da Vinci) 68Mondrian, Piet 14, 51Montecchio, Fabrizio 46Morandi, Giorgio 56Morris, Charles 12Müller, Érico Max 29Münchhausen, Barão de 55Murillo, Bartolomé 44

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88 Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias)

Narciso 53Nassau, Maurício de 18Nathaniel 18Nery, Ismael 29New Orleans 18Nietzsche, Friedrich 11, 28,

78, 79, 80, 82Nobel 29Noé 17“No museu” (Prade) 59, 60“No país dos silvanos”

(Prade) 63Nos limites do fogo

(Prade) 32, 33Nossa Senhora do

Desterro 18, 64Nostradamus 36

Observação sobre ossentimentos do belo e dosublime (Kant) 81

Ocidente 18Og 17, 24“Olhos esbugalhados”

(Carroll) 71Orfeu 65Oriente 18Osíris 17“Ovários de princesa”

(Prade) 38

Pacioli, Luca 49“Paisagens” (Prade) 70Palazzo Ducale 46Pantera em movimento

(Prade) 22Paracelso 24, 25

Paris 18, 27, 52, 64Pasadena Art Museum 67“Passaromorfose” (Prade) 70Pavarotti 18Paz, Octavio 33Peirce, Charles 12Peixoto, Floriano 18Pellegrini, Belmonte 18Península Itálica 45Penrose, Roger 17Pequena estética

(Bense) 16, 35Pequeno tratado poético das

asas (Prade) 17, 20, 23, 24,48

Percival 17Perón, Eva 18Perse, Saint-John 17, 20Persépolis 17Petrônio 66Piaf, Edith 18Piazza Duomo 46Picasso, Pablo 15, 18, 22, 44,

72, 73Pignatari, Décio 10Pilatos 18Pintor da vida moderna, O

(Baudelaire) 26, 53Pisanelli 68Pisano, Antônio 17Platão 77Poe, Edgar Allan 18Poética da prosa

(Todorov) 36, 65Pomeranos, Luigi 18Ponte dos Prisioneiros 47Pontormo 72Porta do Paraíso 46

Page 90: Poesia e ficção de Péricles Prade

89Jayro Schmidt

Po-yi 17Praia Brava 18Praia da Joaquina 18Praia de Canasvieiras 18Prazer do texto, O

(Barthes) 34Priscila 45, 46Prometeu 18Próspero 7Proust, Marcel 18

“Quadros parisienses”(Baudelaire) 53

Rabelais, François 65Ramakrishina 17Ramsés 18Ravana 17Relatos de um corvo sedutor

(Prade) 17, 55, 64, 65Reutersvärd, Oscar 17Rhiannon 17Ribera, Jusepe 43Riemann, Georg 9Rilke, Rainer Maria 23, 39,

51, 59, 60Rimbaud, Arthur 18, 34, 41,

52, 56“Roda de bicicleta”

(Duchamp) 72Rodolfo II 71Rogers, Roy 17Roma 18, 45Ronald, C. 29Rosa, Salvador 43Rosinus 17Rothan 61Roulin, Augustine 36

Rousseau,Jean-Jacques 18, 81

Roussel, Raymond 56Russell, Bertrand 7

Saint-Exupéry, Antoine de 18Saint-Rémy 37“Saint-Rémy” (Prade) 36Salem 18, 64Sanctis, Sante de 75Sand, George 73Sansão 18Santa Catarina 18Santa Vitória 49São Damasceno 75São Francisco de Assis 74São Jorge 17São Petersburgo 81Sartre, Jean-Paul 28, 29Satã 18Saul, Abba 17, 24Schiele, Egon 66Schneeberger, Georges 71Schopenhauer, Arthur 28“Segredo, O” (Prade) 61Sellars, Wilfrid 62, 77Semana de 22 11“Semelhança” (Prade) 20Semiótica (Peirce) 12Sêneca 45“Senhor U” (Prade) 61“Senhoritas d’Avignon, As”

(Picasso) 15Sereia e castiçal

(Prade) 28, 31“Servo de Schedin, O”

(Prade) 61Simone 18

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90 Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias)

“Simples morte pelo punhal,A” (Prade) 59

Sintra 18Sob a faca giratória

(Prade) 52, 53, 54Sofia 17“Sol, O” (Prade) 53“Sonhos” (Prade) 71, 74Surya 17Suzanne 67

Tamiris 18Tao 20Tarô 48Tempestade, A

(Shakespeare) 7“Termômetro”

(Prade) 67, 68Théo 60Tiago 17“Tigre, O” (Prade) 62Tischio 18Tissaut 18Todorov, Tzvetan 36, 65Tolstói, Leon 81Tóquio 18, 64“Torso arcaico de Apolo”

(Rilke) 39“Touro e o rio, O”

(Prade) 62“Traição das imagens, A”

(Magritte) 13Trakl, Georg 23

Tríplice viagem ao interior dabota (Prade) 40

“Túnel perverso” (Prade) 38

Valéry, Paul 35Vasser, Julian 67“Vendedoras de ventos”

(Prade) 69“Vulnerável destino de um

rato, O” (Prade) 61Veneza 18, 46Vênus 22Verônica 17“Verônica sem rosto”

(Prade) 38Vian, Boris 28Vico, Giambattista 50Viena 33Vinci, Leonardo

da 17, 49, 68Vishunu 17“Visões do jardineiro

(Prade) 39Vitruvius 49Vivaldi 17Vizencia, Lorenzo 18“Vocação” (Prade) 69

Willer, Claudio 33, 34Wittgenstein,

Ludwig 10, 12, 15, 18

Zózimo 17

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91

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PRADE, Péricles. Este interior de serpentes alegres. Florianópo-lis: Roteiro, 1963.______. A lâmina. São Paulo: Literatura Contemporânea,1963.______. Sereia e castiçal. Florianópolis: Roteiro, 1964.______. Os milagres do cão Jerônimo. Porto Alegre: Flama,1970.______. Nos limites do fogo. São Paulo: Editora do Escritor,1976.______. Os faróis invisíveis. São Paulo: Massao Ohno, 1979.______. Alçapão para gigantes. São Paulo: Alfa-Ômega, 1980.______. Jaula amorosa. Florianópolis: Letras Contemporâ-neas, 1995.

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94 Poesia e Ficção de Péricles Prade (semas, semantemas, logomatrias)

______. Pequeno tratado poético das asas. Florianópolis: Le-tras Contemporâneas, 1999.______. Ciranda andaluz. Florianópolis: Letras Contemporâ-neas, 2003.______. Além dos símbolos. Florianópolis: Letras Contempo-râneas, 2003.______. Em forma de chama – variações sobre o unicórnio.São Paulo: Quaisquer, 2005.______. Pantera em movimento – breves poemas de muitoamor. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2007.______. Tríplice viagem ao interior da bota. Florianópolis: Le-tras Contemporâneas, 2007.______. Labirintos – variações sobre os arcanos maiores doTarô. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2008.______. Ao som do realejo – narrativas profanas. Blumenau:Nauemblu, 2008.______. Relatos de um corvo sedutor. Florianópolis: LetrasContemporâneas, 2008.______. Sob a faca giratória. Florianópolis: Papa-terra, 2010.______. Espelhos gêmeos. (inédito)______. Correspondências – narrativas mínimas. Porto Alegre:Editora Movimento, 2009.

QUILLET, Pierre. Introdução ao pensamento de Bachelard. Trad.de César Augusto Chaves Fernandes. Rio de Janeiro: Zahar,1977.

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95Jayro Schmidt

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