mundos possíveis entre ficção e não-ficção - bruno leal

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  • Revista

    Famecosmdia, cultura e tecnologia

    Porto Alegre, v. 18, n. 3, p. 855-876, setembro/dezembro 2011

    Tecnologias do Imaginrio

    Mundos possveis entre a fico e a no-fico: aproximaes realidade televisiva1Possible worlds between fiction and non-fiction: approaches to television reality

    Bruno Souza LeaLProfessor no Programa de Ps-Graduao em Comunicao da UFMG/MG/BR.

    PheLLiPy Pereira JcomeMestrando no Programa de Ps-Graduao em Comunicao da UFMG/MG/BR.

    ResumoO artigo discute a noo de realidade televisiva, vista como sintoma da tenso entre fico e no-fico presente na TV. A reflexo parte de exemplos extrados do Jornal Nacional, em 2010, para empreender a reviso crtica do conceito de fico e como modo de abordagem noo de mundos possveis, desenvolvida por autores como Thomas Pavel e Umberto Eco, e, aproximada aos fenmenos miditicos por pesquisadores como Marcela Farr e Marie-Laure Ryan.

    Palavras-chave: Realidade Televisiva; Fico; Narrativa.

    AbstRActThe article discusses the notion of television reality, seen as a symptom of the tension between fiction and non-fiction in TV. The reflection comes from examples by the Jornal Nacional, in 2010, to undertake a critical review of the concept of fiction and as a way to approach the notion of possible worlds, developed by authors such as Umberto Eco and Thomas Pavel, and, approximate to the media phenomena by researchers as Marcela Farr and Marie-Laure Ryan.

    Keywords: Television Reality; Fiction; Narrative.

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    Bruno Souza Leal, B. S.; Jcome, P. P. Mundos possveis entre a fico e a no-fico Tecnologias do Imaginrio

    Em um volume inteiramente dedicado aos mtodos de crtica e anlise da televiso, Jeremy G. Butler (2009) inicia sua discusso sobre as relaes entre TV e realidade com a pergunta se haveria algo verdadeiramente real na TV ou se tudo que ela apresenta no seria uma grande fico. Dado o propsito metodolgico que o guia, Butler deixa claro que no oferece mtodos analticos que permitiriam seu leitor colher pores da realidade ou da verdade na TV, mas, sim, que apresenta caminhos para o exame das estruturas das representaes televisuais, permitindo ao leitor observ-las como tal, mais que como a realidade em si (Butler, 2009, p. 86, traduo nossa).

    A pergunta do pesquisador americano e a resposta que ele oferece no so infrequentes entre aqueles que se dedicam a estudar o fenmeno televisivo. Afinal, por um lado, certo que a TV transforma a realidade em problema, pois, como observa Butler (2009), muitos programas no existiriam se ns no acreditssemos que eles apresentam alguma forma de realidade. Esses programas de telejornais e programas de auditrio a reality shows , podem no ser a pura realidade, tal como eles, s vezes, se anunciam, mas ainda so distintos da fico televisual padro (2009, p. 84, no original em ingls). Por outro lado, observa Butler, as pessoas que fazem os programas de televiso no apresentam e no podem apresentar uma poro da realidade [...] sem primeiro reorganiz-la na linguagem televisiva e, logo, modificando-a ou ficcionalizando-a em algum grau. Ou seja, na sua transio da realidade para a TV, imagens e sons so massageados, manipulados, e colocados em novos contextos (2009, p. 83-84, no original em ingls). Ao refletir e analisar os mundos televisivos nos termos de Butler, as representaes televisuais esbarra-se, portanto, no problema da realidade televisiva, um termo significativo da tenso fico/no-fico e dos processos de hibridizao tpicos da TV.

    Afinal, o que vem a ser exatamente a realidade televisiva? De modo geral, o termo pode designar os mundos construdos e apresentados na TV, em programas

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    to diversos como uma novela, um documentrio ou um game show. H, no entanto, quem prefira restringir o alcance da expresso, circunscrevendo-a ora aos mundos apresentados nos gneros no-ficcionais ora ao universo restrito dos reality shows. Em todos esses usos, a expresso chama a ateno para o fato dos mundos apresentados na TV no serem espelhos do real, sendo realidades fabricadas, massageadas, para usar o curioso termo de Butler (2009), espera de serem autenticadas, legitimadas pelo telespectador. Essa adeso aos mundos da TV, certamente, no ingnua ou homognea, pois a princpio pelo menos sabemos que um telejornal nos mostra sua leitura do mundo, que os personagens da novela no existem ou que participantes de um reality show so jogadores conscientes das regras do programa. exatamente em funo das diversas atitudes esperadas frente diversidade de programas que a tenso entre fico e no-fico renovada e intensificada.

    O propsito deste artigo, nesse sentido, se aproximar da realidade televisiva a partir de um ngulo menos usual. No se trata de definir a realidade ou, ainda, de reivindicar algum aspecto ou elemento tico, por exemplo, na relao entre o jornalismo televisual e a realidade que se prope apresentar, mas, numa visada distinta, refletir sobre o conceito de fico, termo, aparentemente, impreciso e, frequentemente, alvo de associaes simplificadoras. No percurso da discusso, um conceito importante surgir como pedra angular das relaes entre a realidade televisiva e telespectador: trata-se da noo de mundo possvel, visto como um terceiro termo na dicotomia fico/no-fico e nos processos que envolvem a cooperao textual televisiva. A pergunta que orienta o percurso aqui proposto envolve, ento, quais ganhos terico-metodolgicos so vislumbrados na aproximao entre a realidade televisiva e a noo de mundo possvel.

    Como o prprio Butler (2009) observa, a questo envolvendo a relao TV/realidade, certamente, no simples. Alm dos pontos levantados pelo pesquisador americano,

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    importante lembrar que ela envolve outros aspectos fundamentais, como, por exemplo, a realidade dos mundos ficcionais, as relaes que o telespectador mantm com a fico, as frequentes e recorrentes hibridizaes de gnero e de formatos, alm, claro, da simples constatao de que h programas que no se oferecem nem como fico nem como no-fico. Observando o problema a partir do universo restrito dos programas no-ficcionais, dois exemplos da complexidade da questo puderam ser vistos no telejornal de referncia do pas, o Jornal Nacional, da TV Globo, em 2010.

    Na edio de trs de novembro, o casal William Bonner e Ftima Bernardes fez o que o site oficial do telejornal definiu como uma, simptica homenagem ao vivo a Rosana Jatob, apresentadora da previso meteorolgica, que estava grvida e exibia sua barriga, diariamente, na telinha. Num clima de bate-papo amistoso, Ftima Bernardes pergunta, ao vivo: Nos ltimos meses, a gente acompanhou a chegada da primavera, a chegada do horrio de vero, mas a pergunta que ns, os telespectadores, gostaramos de fazer para voc a seguinte: quando chegam os gmeos? [grifos nossos]. Em seguida, Rosana fala sobre a possvel data do parto e sobre os significados dos nomes que pretende colocar em seus filhos. A partir da, os trs discutem com muito bom humor as dificuldades em no esconder nenhum estado no mapa com tamanha barriga. Por fim, Bernardes retoma a palavra e diz a gente est gostando muito de acompanhar esse crescimento, que voc continue assim com sade e feliz, como voc est demonstrando e, enquanto esse momento de cobrir [com a barriga] toda a costa no chega, vamos ver qual a previso do tempo para amanh, n, Rosana?

    Qual o sentido de uma cena como essa num telejornal? A princpio, quando assistimos a um programa noticioso, h a suspenso da fico como categoria para avaliar o que nos mostrado. No entanto, o dilogo entre os ncoras do JN surge ao mesmo tempo como real, ao vivo, planejado e estratgico. Esse caso deixa claro que, no esforo de instaurar a realidade que apresenta ao telespectador, a TV precisa

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    estabelecer o contato entre os corpos da tela (reprteres, ncoras, personagens, lugares identificveis) e os corpos da sala (telespectadores e o seu mundo). Isso acaba por ampliar o espao da televiso, pois o espectador interpelado a vivenci-lo.

    Assim, o que se v no telejornal um mundo narrado de tal modo que se pretende confundi-lo com o mundo referencial, criando um efeito de contiguidade entre a narrativa e o objeto da narrao, entre o sof de casa e a bancada do telejornal. O pacto informativo televisual vincula-se a uma srie de convenes que visam constituio de uma relao de confiana e, at mesmo, de intimidade, entre o mundo de referncia e aquele da narrativa e dos programas jornalsticos. Esse esforo acaba por tensionar, de forma muito prpria, os supostos limites entre fico e no-fico.

    Outro exemplo o conjunto de reportagens dedicadas aos vinte e trs jogadores da seleo brasileira de futebol, exibida pelo JN, entre 12 de maio e 02 de julho de 2010. Em cada reportagem, o reprter Tino Marcos conta a histria de um dos convocados para a Copa do Mundo de 2010, delineando o perfil de cada um, recontando sua trajetria e utilizando depoimentos de amigos e familiares. Cada matria da srie de reportagens aberta com uma vinheta, em que uma bola digital de futebol mostra, em seus gomos, imagens dos jogadores, num movimento contnuo, interrompido com aquela que faz referncia ao biografado da vez. Todas as matrias contam histrias de superao, nas quais os jogadores, transformados em heris melodramticos, surgem como vitoriosos, diante de circunstncias adversas: a pobreza, a descrena, a dificuldade de ter seu talento reconhecido, etc. Em cada biografia, o perfil do jogador estabelecido atravs de uma metfora escolhida para caracteriz-lo.

    Assim, por exemplo, o goleiro Doni surge como o garoto que no queria crescer, que aprendeu a cair e a levantar, numa associao explicitada na reportagem entre um movimento recorrente de um guarda-redes de futebol e as sucessivas dispensas que esse jogador teve, at ser aceito por um clube. J o meio de campo Julio Baptista,

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    por sua vez, apresentado como cavalo puro-sangue: forte, vigoroso, elegante e capaz de superar a origem pobre. Muitas das imagens que compem a srie de reportagens obedecem necessidade de explicitar a relao proposta para as identidades dos jogadores. Alm disso, como, frequentemente, so feitas referncias ao passado de cada um deles, imagens do presente foram produzidas para corresponder e ilustrar depoimentos e associaes: quando a locuo fala de um time de meninos no interior, do qual o jogador era integrante, a imagem traz cenas mostrando garotos quaisquer jogando futebol, e assim por diante.

    Essa srie de reportagens, claramente, dependente de recursos de ps-produo, de efeitos de edio, de jogos de imagens grficas e daquelas compostas exclusivamente para servir s necessidades da narrativa, ilustra outro aspecto da realidade televisiva. Afinal, no se duvida que Doni ou Jlio Baptista, para se manter o exemplo, existam ou que passaram pelas dificuldades narradas. Porm, de se duvidar: que a identidade atribuda a eles seja, totalmente, pertinente ou a mais precisa; que as imagens e termos utilizados sejam fiis realidade; que os recursos narrativos utilizados existam, exclusivamente, em uma suposta funo denotativa ou descritora, como algum poderia exigir de uma narrativa do real. Em outras palavras, ainda que no se duvide da existncia dos jogadores ou mesmo da pertinncia das relaes propostas nas matrias, isso no significa deixar de reconhecer que eles foram transformados em personagens da histria ficcional? que se quis contar sobre eles.

    Diante desses exemplos, a realidade como um problema televisual revela mais alguns de seus contornos. Afinal, se no estamos diante da pura realidade, por outro lado, dizer que o dilogo no JN e as reportagens seriam construes ficcionais, tambm, no resolve o problema. At porque, cabe a pergunta: o que exatamente fico? No uso corrente, o termo, frequentemente, usado como sinnimo de uma inveno, como uma construo livre das relaes com a realidade. O aparente descomprometimento

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    da fico com a realidade, no entanto, no explica porque ela to importante para o telespectador e to frequente na TV e em outras mdias. Desenvolver modos mais amplos de compreenso do que a fico e dos processos e conceitos que a envolvem surge como outro caminho para o entendimento do fenmeno televisivo, para alm, portanto, do reconhecimento de que a realidade televisiva se constitui no imbricamento, hibridizao e/ou tenso entre fico e no-fico.

    os contornos da ficoGrosso modo, os exemplos recolhidos no Jornal Nacional poderiam ser vistos, por parte daqueles preocupados com o telejornalismo, por dois ngulos distintos. Mais frequentemente, seriam encarados como ndices da espetacularizao, produzida pelo jornalismo; pois, isso representaria um desvio na funo do jornal que a de mostrar o mundo. J para aqueles, mais raros, que assumem a priori a condio ficcional do jornalismo, seriam indicadores das convenes que governam o telejornalismo, j que necessariamente seria uma obra de fico. Na crtica a essa polarizao, a pesquisadora argentina, Marcela Farr (2004), num volume dedicado ao entendimento do telejornal como mundo possvel, e, fortemente inspirada pelo pensamento de Thomas Pavel, caracteriza essas duas consideraes sobre a relao entre texto e fico e defende uma terceira via:

    a) No primeiro caso, considera-se a fico como um fenmeno textual, estrutural e imanente, como uma espcie de desvio da norma, bem diferente da referencialidade e da realidade;

    b) No segundo caso, a fico algo que no se distingue do mundo de referncia, j que se considera qualquer texto como uma espcie de simulacro do mundo;

    c) J na terceira via, proposta pela pesquisadora, um texto ficcional diferente daqueles da realidade, mas no oposto a eles, no se constituindo como desvio e possuindo estreita relao com o mundo de referncia.

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    Essas trs posies resumem concepes tericas bem delimitadas: a) a primeira corresponderia a uma viso segregacionista da linguagem e da fico; b) a segunda assumiria um vis integracionista; e c) a terceira prope uma perspectiva referencial da fico. No que diz respeito televiso, aquele que tem como ponto de partida a segregao, seguramente ir denunciar qualquer incurso ficcional num programa que tenha a finalidade estrita de informar. J o que adota uma perspectiva integracionista fatalmente dir que uma novela e o telejornal so fices, desconsiderando, por exemplo, as diferenas entre os contratos comunicativos de ambos os produtos. J, como postula Farr, quando se adota a teoria referencial, admite-se,

    em primeiro lugar, que o ficcional no oposto realidade. Que h um cruzamento entre as modalidades de expresso referencial e ficcional, que permite pensar a realidade parte de convenes no referenciais ou denotativas. Que h zonas intermedirias nas quais certas coisas podem ser comunicadas tambm e s vezes melhor por meio da ficcionalizao.

    (Farr, 2004, p. 78, traduo nossa)

    Essa terceira via tem o mrito de reconhecer a fora representacional da fico e ser capaz de reconhecer a existncia de zonas fronteirias. Ela desloca o problema em torno do estatuto ficcional das obras, mas no o apaga, pois toma as estratgias narrativas ou textuais como algo que articula e perpassa textos de diferentes naturezas. Parece mesmo atraente. Uma vez que, sugere formas de superar a dicotomia fico/

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    no-fico e de avanar no entendimento dos processos mediticos na sociedade contempornea, esse outro caminho, ainda, est em desenvolvimento, necessitando de maior investigao conceitual e metodolgica. Nos termos utilizados por Farr (2004), por exemplo, no fica claro que processos envolvem a noo de ficcionalizao, ora tomada como sinnimo de estratgia narrativa, ora indicando modos de composio de mundos possveis. Cumpre, ento, antes de mais nada, tentar esclarecer o que se entende, afinal, por fico.

    Nesse sentido, , exatamente, Thomas Pavel (1986) quem observa que o termo agrega pelo menos trs grandes dimenses, sendo necessrio diferenci-las para que se reconheam as distintas posies a seu respeito. A primeira delas remete a questes metafsicas, acerca dos seres ficcionais, da (sua) verdade e do seu estatuto ontolgico; um outro conjunto de discusses envolve aspectos demarcacionais, no esforo de estabelecer limites sofisticados e/ou precisos entre fico e no-fico; por fim, uma terceira dimenso remete a aspectos institucionais, s voltas com o lugar e a importncia da fico como uma instituio cultural.

    A ateno de um pesquisador a um desses aspectos no envolve, necessariamente, o esforo de apreenso dos demais, observa Pavel (1986), que associa, ainda, a perspectiva por ele chamada de segregacionista a um olhar externo, que mede a fico a partir do privilgio ao mundo no-ficcional. J a perspectiva integracionista corresponderia a um olhar interno, cujo propsito propor modelos que representem os modos como os usurios entendem a fico (Pavel, 1986, p. 43, traduo nossa). Para o pesquisador americano, a reflexo sobre a fico necessita de um sistema conceitual mais rico, capaz tanto de fazer frente fora epistemolgica da viso segregacionista quanto oferecer um modelo conceitual mais flexvel que aquele da viso integracionista. Segundo Pavel (1986), um dos elementos fundamentais para a construo de uma viso mais elaborada da fico necessitaria de uma teoria dos objetos

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    e mundos ficcionais, uma reflexo que, segundo ele, articula-se noo de mundo possvel.

    Est claro, portanto, que, para Pavel, as vises segregacionista e integracionista detm fora terica distinta, sendo a primeira mais consistente e desenvolvida. Muito da ateno do pesquisador, nesse sentido, destina-se elaborao de uma crtica a essa perspectiva, cujo fundamento, denominado segregacionismo clssico, seria representado por Bertrand Russel e seus seguidores, que fazem uma negao absoluta a qualquer estatuto ontolgico para os objetos que no existem. Assim, excluem do domnio do verdadeiro quaisquer discursos que remetem a objetos de fico, j que acreditam que eles dizem somente de uma no realidade. J a face moderna dessa corrente alimentada, segundo Pavel (1986), pela teoria dos atos de fala, de Austin e especialmente Searle, segundo a qual as assertivas ficcionais seriam no-srias, parasitrias ou falsas. Segundo a teoria dos atos de fala, as obras literrias, por exemplo, devem ser tomadas como discursos separados das condies que tornam possveis os atos ilocucionrios, sendo consideradas como um uso particular dos atos de linguagem.

    John Searle avana nessa perspectiva, ao propor uma concepo pragmtica e no semntica do estatuto da fico. Para ele, ser ou no ficcional no dependeria propriamente de propriedades textuais, mas, sim, da inteno do autor e sua posio a respeito do que relata, sendo difcil saber se uma frase ficcional ou no, se no conhecemos seu contexto. Alm disso, Searle defende que h um uso no srio da linguagem, sem comprometimento do autor (a fico), e um outro srio, que pode ser tomado como verdadeiro. Assim, como qualquer ato ilocutrio, a assero deveria obedecer a regras precisas, tanto do ponto de vista do sentido (a semntica), quanto dos usos da lngua (a pragmtica). A verdade do enunciado seria estabelecida mediante algumas regras, dentre as quais a mais importante deveria ser o comprometimento

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    do interlocutor com a crena na veracidade do que postula. Nesse sentido, a fico no se constituiria como um ato de fala pleno e autntico, j que o autor faz como se fizesse uma afirmao. Imitando o ato de fazer afirmaes, ele simula que declara, finge que postula.

    Contra esse entendimento da fico, Pavel (1986) desenvolve trs argumentos. Primeiro, questiona o comprometimento do autor com suas asseres, discutindo tanto qual sua natureza, quanto a idealizao que envolve tal concepo, e chamando ateno, por fim, para o carter coletivo no individual da linguagem, que faz com que as certezas e os compromissos sejam menos com o que falamos e mais com os nossos amigos, as nossas fontes, os grupos sociais a que pertencemos. O segundo argumento reside exatamente a, na crtica do autor como a nica origem e o mestre de suas prprias asseres. Para Pavel, essa viso reflete uma perspectiva cartesiana de sujeito, j bastante criticada, por exemplo, pela psicanlise e pelo desconstrucio- nismo.

    O terceiro argumento de Pavel (1986), por sua vez, dedica-se a questionar o carter supostamente falso das asseres ficcionais. Para o pesquisador americano, por um lado, os atos poticos so vicrios, no raro, ultrapassando a conscincia e as intenes de quem os performa. Por outro lado, a distino entre asseres falsas e genunas dizem pouco a uma obra ficcional, uma vez que, seu poder de afetao no depende dessa distino. possvel viver uma experincia, emocionalmente, inesquecvel com uma obra ficcional, independentemente de se saber ou considerar se a assero genuna ou no. Por fim, e mais importante, a distino entre assero sria e no-sria, para Pavel, recusa a criatividade e fluidez do uso cotidiano da linguagem, afirmando uma viso fortemente normativa, na qual a inventividade seria algo marginal. Diz Pavel:

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    [Mas] quando considerado desde um ponto de vista integracionista, a fico deixa de ser uma anormalidade, marginalmente aceita, por uma conservadora, mas tolerante comunidade de falantes. Visto desta perspectiva favorvel, o comportamento referencial inclui aspectos criativos, de risco, tanto quanto uma tendncia de estabelecer padres convencionais.

    (1986, p. 27, traduo nossa)

    Tendo em vista os estudos sobre televiso, no incomum encontrarmos pesquisadores que ser dedicam a apreender a realidade televisiva, ora adotando a perspectiva da teoria dos atos de fala, como, por exemplo, Franois Jost (2004), ora no desenvolvendo uma reflexo sobre o conceito de fico, quando no, reduzindo o termo como sinnimo de inveno ou de falsidade. Em outras palavras, o estudo sobre a telerrealidade deixa, frequentemente, de lado a discusso acerca do seu suposto elemento composicional ou antinmico, conforme o ponto de vista adotado. Mesmo que discorde ou concorde, em maior ou menor grau, com as crticas de Pavel s teorias dos atos de fala, sua caracterizao das trs dimenses implcitas, no conceito de fico, esclarecedora. Nesse sentido, o entendimento do papel da noo de mundo possvel e sua aproximao com a TV fornecem elementos a mais para o aprofundamento da questo.

    o que um mundo possvel?O conceito de mundo possvel foi cunhado por Leibniz como base para um modelo das modalidades lgicas. A absoro dessa noo, no mbito dos estudos sobre a fico, ao

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    mesmo tempo em que reconhece a sua origem na lgica modal, opera deslocamentos fundamentais. Para efeitos deste texto, e tendo em vista os limites necessrios para ele, trabalharemos com trs perspectivas distintas e complementares. Para Pavel, a noo serve a uma maior preciso dos objetos e mundos ficcionais, contribuindo para aprofundar o entendimento das relaes que envolvem a fico, nas trs dimenses que a constituem. Para Umberto Eco (2002), por sua vez, a noo fundamental para apreenso dos processos de cooperao textual. J em sua pesquisa sobre a realidade virtual, a sua Marie-Laure Ryan (2001) entende que a noo importante para a reflexo acerca dos mundos virtuais produzidos pelas mdias contemporneas e dos processos de interao que os receptores desenvolvem com elas.

    Nesses deslocamentos, uma diferena fundamental, como aponta Eco, j que nesses outros usos, a noo de mundo possvel distinta da utilizada pela lgica modal, em pelo menos um aspecto importante: nesta, trata-se de conjuntos vazios de mundos e nas demais, de mundos individuais mobiliados (Eco, 2002, p. 105-106). Em outras palavras, interessa, para a associao entre fico e mundo possvel, o fato dos mundos ficcionais serem repletos de qualidades, de atributos, constituindo-se como construtos culturais, postos em cena pelas diversas obras de lingua- gem.

    O possvel, portanto, no uma operao estritamente lgica, mas uma virtualidade, posta em cena pelas diversas referncias presentes nos textos. A relao entre o uso da noo de mundo possvel, para o entendimento dos mundos textuais varia, porm, nesses trs autores, em funo dos interesses que os movem. Enquanto Pavel utiliza o conceito em dilogo forte com a lgica modal, para Umberto Eco, bastaria dizer que no so a mesma coisa. De fato, trata-se de duas categorias que funcionam em quadros tericos distintos (2002, p. 106, traduo nossa). J Ryan entende que autores como Eco e Pavel desenvolvem elementos comuns na noo de mundos possveis e que

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    envolvem sua definio e relaes importantes, como seu papel na cooperao textual e na relao entre textos ficcionais e no-ficcionais.

    Segundo Pavel, um mundo possvel pode ser entendido como, uma coleo abstrata de estados de coisas, distinta das afirmativas que descrevem esses estados e, logo, distinta da lista completa de sentenas do livro sobre o mundo (1986, p. 50, grifos do original). Em Lector in Fabula, a noo de mundo possvel est assim explicitada por Eco:

    um estado de coisas expresso por um conjunto de preposies onde para cada preposio ou p ou ~p. Como tal, um mundo consiste em um conjunto de indivduos dotados de propriedades. Visto que algumas dessas propriedades ou predicados so aes, um mundo possvel pode ser visto tambm como um curso de eventos. Dado que esse curso de eventos no real, mas absolutamente possvel, ele deve depender dos comportamentos proposicionais de algum, que o afirma, nele acredita, com ele sonha, deseja-o, o prev, etc.

    (2002, p. 109)

    Ou seja, tanto para Pavel (1986) quanto para Eco (2002), os mundos possveis articulam-se a um conjunto dado de coisas, de afirmativas sobre um mundo (aquele em que vivemos ou os das obras de linguagem). Para Pavel, os mundos possveis so presentes tanto nas realidades virtuais das obras de linguagem, dos textos, quanto na realidade social, uma vez que, o que entendemos como o mundo constitudo por um conjunto de regras e de explicaes que definem a realidade e as condies para

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    que ela se estabelea e transforme. Os mundos oferecem, ento, modelos internos que definem tanto a realidade quanto a fico e outros modos de construo de sentido, como os mitos ou as religies.

    Desse modo, imaginao e criatividade so elementos importantes na composio dos mundos, sendo regulados por seus modelos internos e pelas regras institucionais que a envolvem. Para Pavel, uma populao privada de imaginao no nada mais que a fantasia de uma pessoa numa populao capaz de imaginar (1986, p. 55, traduo nossa). Para a semitica do texto narrativo, de Eco (2002), o termo mundo possvel designar indivduos, aes e propriedades configurados na concretude do texto que se constitui. Ou seja, no uma manifestao imanente ou linear da narrativa (somente aquilo que est escrito), mas, sim, o contedo total, quer ele implcito ou explcito, dado ou interpretado, que o leitor emprico ir atualizar com os dados da sua enciclopdia, no momento da decodificao. Assim, um mundo possvel sempre um constructo, antes de tudo, cultural.

    Nesse sentido, Marcela Farr (2004) atenta para o fato de que a categoria de possibilidade no se dirige, exclusivamente, a uma existncia efetiva como postulava a lgica modal , mas, sim, ao que acontece dentro do universo abarcado pelo texto. No caso das obras de linguagem, Marie-Laure Ryan (2001) esclarece o uso do termo ao associ-lo metfora do texto como um mundo e a uma potica da imerso, que caracterizaria a relao que este estabelece com o receptor. Quando traamos uma narrativa, por exemplo, delineamos certo nmero de indivduos providos por um nmero limitado de propriedades. Tais propriedades ou podem seguir as mesmas regras do mundo referencial ou a prpria narrativa pode criar aquelas vlidas somente em seu mundo (um lobo que fala, porquinhos que constroem casas).

    No entanto, um texto jamais poder desenvolver todas as possveis propriedades de um indivduo ou coisa, porque, de modo algum um mundo narrativo pode ser

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    totalmente autnomo do mundo de referncia. Desse modo, h sempre uma oferta de liberdade para o leitor, que preenche os espaos vazios inerentes a qualquer construo narrativa. Assim, ao mobiliar-se e atribuir uma srie de propriedades aos seus indivduos, o mundo possvel se superpe ao mundo de referncia, gerando uma frico entre ambos.

    Nesse quadro de abordagem dos mundos possveis, o chamado mundo real de referncia deve ser entendido, tambm, como uma construo da cultura. Assim, os elementos de comparao entre ambos mundos dependem de qual enciclopdia (Eco, 2002) ou obra magna (Pavel, 1986), o indivduo utiliza como instrumento para efetuar essa operao. Da a importncia da noo de mundo possvel para o entendimento da cooperao textual. Eco (2002) d o exemplo de que, reconhecemos como irreal a possibilidade da av da Chapeuzinho Vermelho ter sobrevivido ao ingurgitamento de um lobo. Outro leitor, porm, pode acreditar na possibilidade real de que Jonas tenha sido devorado por um peixe e, passado trs dias, sado intacto, pois, de acordo com a sua enciclopdia aquilo seria extremamente possvel. Assim, a categoria de possibilidades, do que real ou no, depende de uma relao maior, que envolve a troca comunicativa dos discursos e a enciclopdia dos indi- vduos.

    No se trata aqui, no entanto, de relativizar toda a realidade e tomar a atitude integracionista de dizer que no existe nada fora dos textos. O real pode no ser apenas um constructo cultural, mas as formas de acess-lo e convert-lo em realidade o so. Da a necessidade metodolgica de caracterizar certos tpicos do mundo de referncia, com o objetivo de compar-lo com os demais mundos possveis. Ou seja, o nosso mundo de atualidades est cercado de diversos outros mundos possveis, que utilizamos para melhor compreend-lo e atualiz-lo. Para isso, temos em conta que um mundo possvel constitui parte do sistema conceitual de algum

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    indivduo e depende de esquemas conceituais mais amplos (as enciclopdias, as obras magnas).

    Nesse sentido, um mundo possvel sempre resultado de um permanente jogo de fazer-crer e de uma conveno temporal e cultural que diz o que fico ou no, num determinado contexto histrico. Pavel (1986) encontra na mitologia um importante ponto de anlise. Para a nossa sociedade moderna, impensvel acreditar na existncia efetiva de Zeus, Atena ou todos os outros deuses gregos. Por muitos processos histricos, tais divindades esto hoje abarcadas, culturalmente, pelo mbito do ficcional. No entanto, para um grego do perodo clssico, todos os deuses do Olimpo eram tidos como a realidade possvel e havia uma fuso de suas ontologias.

    Marie-Laure Ryan (2001) observa que os limites entre os mundos possveis e aqueles impossveis so decorrentes das condies de acessibilidade, ou seja, das condies de interao entre os mundos e o indivduo, entre texto/leitor, incluindo-se a a enciclopdia de ambos. A autora, tambm, alerta para que se evite a reduo dos mundos ficcionais aos mundos textuais, uma vez que: a) a distino entre real e possvel se d, tambm, dentro do domnio semntico do texto, seja ele ficcional ou no; b) se os mundos no reais fossem apreendidos como simples afirmaes de possibilidades no haveria diferena fenomenolgica entre afirmaes contra-factuais ou expresses de desejo e afirmativas ficcionais.

    Da mesma forma, a autora observa que uma distino importante entre textos ficcionais e no-ficcionais se d nos processos de recentramento do receptor. Uma vez que todo texto recentra o receptor em seu universo de referncias, aquele de carter ficcional no s mobilia o mundo com indivduos e atributos, como estabelece os parmetros para avaliao das aes e seus desdobramentos. J em um texto no-ficcional esse processo clivado, acontecendo em dois momentos:

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    (1) um no qual o leitor constri o texto (ou seja, se engaja imaginativamente na representao); e (2) um no qual o leitor avalia o texto (ou seja, se distancia da imagem, separa-a e considera a preciso das asseres individuais com respeito ao mundo referencial). Na primeira fase, o leitor contempla o mundo de dentro e, na segunda, de fora.

    (Ryan, 2001, p. 104-105, traduo nossa)

    Essa clivagem no apaga o fato de textos ficcionais e no-ficcionais precisarem da adeso do receptor para se constiturem, adquirirem vida. Ao mesmo tempo, deixa claro que a fico no est, portanto, separada do mundo de referncia e deve ser entendida numa relao mais ampla entre o mundo possvel e as enciclopdias movimentadas no processo comunicacional. Nesse sentido, a fico serve inclusive para colocar nossa cultura e sociedade em perspectiva, j que avana sobre as fronteiras do que entendemos como o real. Como defende Farr,

    muitas so as questes que, a partir dessa perspectiva, podemos examinar: a mimese em sua relao com a prxis; o que resulta verossmil e necessrio segundo um princpio de realismo; os pactos de leitura que estabelecem em que sentido um texto deve ser compreendido; os modos em que uma obra afeta as condies sociais; o que aceitvel ou no, segundo o tipo de texto que se trate; o lugar da fico literria entre as produes humanas; seu valor de verdade, etc.

    (Farr, 2004, p. 88, traduo nossa)

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    Nesse sentido, h combinaes possveis e critrios mltiplos para dizer da ficcionalidade de um produto. Uma obra pode valer como fico no sentido institucional, sem ser considerado irreal ou inexistente do ponto de vista metafsico/semntico. Isso muito importante para anlise de um telejornal, j que, por exemplo, ainda que as personagens de uma notcia possam ter suas ontologias alteradas/moldadas (sendo apresentadas, por exemplo, como categorias: consumidor, dona de casa, empresrio, etc.) e o veculo faa incurses ficcionais (como o uso do melodrama, recursos de edio, de grafismos), institucionalmente o telejornal deve ser reconhecido por sua natureza no ficcional, j que primordial para o pacto com o telespectador que se creia que o que se transmite , se no a verdade, pelo menos uma verdade possvel e legtima.

    Alm disso, a perspectiva tridica de Pavel (1986) afasta a viso em pares da fico (fico/mentira, realidade/verdade) e nos permite dizer que ainda que o telejornal lance mo de recursos narrativos diversos, ele no estar incorrendo num erro ou numa falsificao do real, j que, muitas vezes, se pode entender melhor o mundo de referncia pela fico, por sua vez submetida aos processos de regulao tpicos ou inevitveis de qualquer instituio social.

    Questes para desenvolvimentoA partir dessa breve incurso terica e da rpida aproximao ao Jornal Nacional, podemos refletir sobre a complexidade da realidade televisiva no apenas sob o prisma do real, mas tambm da fico. Tendo em vista os exemplos citados, certo que um telejornal precisa mostrar o que enuncia, lanando mo de estratgias narrativas diversas, como recursos grficos ou imagens pr ou ps-fabricadas. Ao extremo, faz-se uso, inclusive, de encenao, como no caso das matrias dos jogadores, em que h uma representao da me de Jlio Baptista, por uma atriz, ou o uso de um goleiro fake, para representar Doni.

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    Em ambas, a locuo do reprter/narrador a responsvel por atribuir sentido e verossimilhanas a essas situaes altamente artificiais. Jlio Baptista e Doni, tal como construdos pelo JN, certamente so sujeitos tornados possveis pelas reportagens a eles dedicados. Isso no dizer que eles no existam, mas que, ali, naqueles mundos, eles so construtos culturais, para os quais contribuem elementos importantes da sociedade brasileira (a valorizao da superao, a figura do heri melodramtico, as lies de vida necessrias s suas histrias, etc.). Ao mesmo tempo, isso no implica dizer que so seres ficcionais: ainda que produzidos, suas histrias so institucionalmente reguladas, avaliadas pelo crivo do real possvel e/ou aceitvel, no s por parte dos telespectadores, individualmente, como pelas demais instituies sociais que interagem com a TV. No exemplo, esses jogadores seriam tomados como ficcionais, se moldados de modo muito distante daquilo que poderia ser considerado aceitvel como realidade.

    O que governaria essa aceitao? Diante da impossibilidade de se perguntar a cada um dos telespectadores qual o limite aceitvel entre fico e no-fico, a televiso obviamente, supe comportamentos e valores. No infrequente nos depararmos com falas de produtores de programas de televiso afirmando que tal ou qual ao se suceder em funo do que o pblico gosta, desgosta, tolera, concorda. Fica claro, ento, que tanto a no-fico quanto a fico mantm relaes complexas com o que se entende como a realidade social, nem aquela podendo ser vista como espelho, nem esta como pura inveno.

    Dizer que um mundo ficcional representa algo inexistente, aparentemente, responde dimenso metafsica da fico, mas no esclarece muito acerca das dimenses demarcacionais ou institucionais. Nesse sentido, uma maior problematizao dos conceitos e processos da fico e mesmo o uso de noes de mundo possvel, abrem espao para uma gama de novos problemas e novos espaos crticos. Provocadoramente,

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    pode-se, por exemplo, perguntar quais as dimenses de possibilidade dos mundos possveis na TV. Em outras palavras, que mundos possveis so possveis na realidade televisiva brasileira?

    Essa pergunta decorre do reconhecimento de que h muito mais em jogo que a dicotomia fico/no-fico deixa ver e que termos como realidade televisiva so indicadores importantes. Ao refletirmos, mesmo que brevemente, sobre a fico, observamos, como aponta Pavel (1986), que h distintos modos de perceb-la e nenhum deles capaz de dar uma definio exclusiva. possvel utilizar elementos marcados ontologicamente como ficcionais, para estancar o fluxo do real e estabelecer sentidos referenciais, a partir dos interesses da narrativa e das relaes que ela estabelece com seus espectadores, por exemplo. Alm disso, a fico nos permite ter acesso a outros ramos do cotidiano, explorar relaes possveis, aumentando as possibilidades da realidade.

    A questo sobre o estatuto ficcional, sobre a realidade e suas construes, sendo ampla, no permite, porm, que operemos redues simples ou fceis. Recusar fico qualquer validade, ou mesmo olh-la de fora deixar de apreender todo um conjunto de questes fundamentais para a configurao das sociedades contemporneas. Evitar respostas fceis, nesse sentido, implica tanto deixar de lado a afirmao de que tudo fico, como tomar os textos ficcionais como no-ficcionais, desconsiderando a complexidade de seus processos. Os mundos da TV, da novela, do programa de entretenimento, do telejornal, entre outros, se situam dentro de um regime complexo de textos, que nos apresentam o seu mundo e nos revelam aspectos do nosso, ajudando na construo permanente do que entendemos por realidade. Menos que tomar partido a favor ou conta a fico, talvez o mais instigante seja observar como seus limites se estabelecem, alargam, reduzem, transformam-se. l

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