gruzinski-mundos misturados.pdf

Upload: cris-pereira

Post on 31-Oct-2015

82 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • Os mundos misturadosda monarquia catlica e

    outras connected histories*

    Serge Gruzinski

    Durante muito tempo, a histria foi etnocntrica. Hoje em dia os his-toriadores da Europa continuam manifestando pouca curiosidade pelopassado e pela historiografia que excedem as fronteiras de sua prpria na-o. Quanto aos especialistas da histria mundial, tenderam a elaborar asua viso do mundo a partir da Europa ocidental ou a partir de problem-ticas que provinham da histria deste continente. Por isso, na Europa esobretudo na Frana costumamos distinguir os americanistas e os historia-dores com h maisculo. Os primeiros dedicam-se histria da Amricaenquanto os outros so os especialistas da histria da Frana ou da Europaocidental.

    Em face desse conservadorismo europeu e francs, a denncia doeuropocentrismo tornou-se muito comum nos Estados Unidos. Desde osanos de 1980, nas universidades deste pas, os cultural studies e os postcolonialstudies multiplicaram as crticas contra o europocentrismo da histria e dascincias sociais em geral. Denunciavam uma histria que s seria a proje-o do Ocidente, das suas categorias e das suas ambies sobre o resto domundo.

    A histria comparada

    Para limitar o etnocentrismo e ampliar os nossos horizontes, a hist-ria comparada pareceu uma alternativa possvel. Mas as perspectivas queprope podem ser enganosas. A seleo dos objetos que tm de ser compa-rados, dos quadros e dos critrios, as perguntas, os mesmos modelos deinterpretao, continuam sendo tributrias de filosofias ou de teorias dahistria que muitas vezes j contm as respostas s questes do pesquisa-

    Topoi, Rio de Janeiro, mar. 2001, pp. 175-195.

  • 1 7 6 T O P O I

    dor. No pior dos casos, a histria comparada pode aparecer como um res-surgimento insidioso do etnocentrismo.

    Porm, as nossas crticas histria comparada so outras. Muitas ve-zes, as investigaes que inspiraram a histria comparada tiveram poucacontinuidade. Penso no caso das tentativas de histria comparada entre oPeru e o Mxico. O ensaio pioneiro de Srgio Buarque de Hollanda, quepartia de uma comparao entre a colonizao espanhola e a colonizaoportuguesa, tornou-se uma obra to brilhante quanto isolada no panora-ma da produo latino-americana.

    Convm perguntar se o historiador europeu pode escapar s frontei-ras sem escolher a via da histria comparada. Limitar-me-ei a apontar umaresposta muito pessoal inspirada pelo meu itinerrio de pesquisador. Quan-do comecei, seguia uma linha de pesquisa que tinha pouco a ver com estapreocupao. Mas o estudo dos fenmenos de aculturao no Mxico co-lonial nunca deixou de me confrontar com processos que pertenciam a doismundos ao mesmo tempo. A anlise das imagens e das mestiagens meapresentava configuraes que articulavam de maneira complexa elemen-tos oriundos da Europa e elementos de outras partes do mundo. Observeique estes mundos podiam juntar-se em pontos totalmente inesperados.Longe das vises dualistas que costumam opor o Ocidente aos outros,os espanhis aos ndios, os vencedores aos vencidos as fontes nos reve-lam paisagens misturadas, muitas vezes surpreendentes e sempreimprevisveis.

    Parece-me que a tarefa do historiador pode ser a de exumar as liga-es histricas ou, antes, para ser mais exato, de explorar as connectedhistories, se adotarmos a expresso proposta pelo historiador do imprioportugus, Sanjay Subrahmanyam, o que implica que as histrias s po-dem ser mltiplas ao invs de falar de uma histria nica e unificadacom h maisculo. Esta perspectiva significa que estas histrias esto liga-das, conectadas, e que se comunicam entre si. Diante de realidades que con-vm estudar a partir de mltiplas escalas, o historiador tem de converter-se em uma espcie de eletricista encarregado de restabelecer as conexesinternacionais e intercontinentais que as historiografias nacionais desliga-ram ou esconderam, bloqueando as suas respectivas fronteiras. As que di-

  • O S M U N D O S M I S T U R A D O S D A M O N A R Q U I A C A T L I C A 1 7 7

    videm Portugal da Espanha so tpicas: vrias geraes de historiadoresescavaram entre os dois pases fossos to profundos, que hoje em dia pre-ciso muito esforo para entender a histria comum a estes dois pases eimprios.

    Como explicar que as obras castelhanas do inca Garcilaso de la Vegae do romancista Mateo Alemn tenham sido publicadas em Lisboa? Porque o jesuta navarrs Jos de Anchieta compunha autos bilnges, emcastelhano e portugus, para as pequenas cidades da Terra de Santa Cruz?O que faziam em Belm, nos anos 1620, os sessenta vizinhos espanhisdos quais nos fala o cronista Vsquez de Espinosa? O que procurava nestaprovncia, entre 1612 e 1615, o capito Roque de Chaves, nascido noMxico, alcaide maior de Tacuba e Tlanepantla, duas aldeias do vale do M-xico? Explorou as ilhas do Maranho, subi por el gran Par arriba muchasleguas hasta las sierras de Urucara donde los indios dan noticias de grandesriquezas de oro? Acaso era Belm uma colnia castelhana...?

    Mesmo considerando as diferenas, a retrica da alteridade ope ou-tros obstculos to temveis como o isolamento das historiografias nacio-nais. Para alm das diferenas cultivadas pelos antroplogos, compete aohistoriador fazer aparecer as continuidades, as conexes ou as simples pas-sagens muitas vezes minimizadas (quando no so excludas da anlise).Temos muitos estudos sobre as povoaes indgenas na Amrica espanho-la, mas pouco se escreveu sobre os grupos mestios. Eis aqui um exemplo,entre outros, destes esquecimentos.

    Cabe acrescentar que o interesse pela micro-histria, ou pela micro-etno-histria, teve o seu impacto sobre o olhar do historiador e que algunspesquisadores tiveram o hbito de esquecer o contexto geral enquanto fo-calizavam o particular. No fim das contas, estas trs abordagens contribu-ram para desligar os objetos de estudo dos conjuntos aos quais pertenciam.

    Existem, certamente, trabalhos individuais ou coletivos que escapama estes limites. S lembraremos aqui La Mediterrane de Braudel, e os vo-lumes da Nouvelle Clio, redigidos por Pierre Chaunu, que aconselhava nofim dos anos sessenta: Temos de romper com os Estados. E afirmava que,para o historiador, o problema fundamental era o do contato entre as ci-vilizaes e as culturas. Um problema que Braudel abordou vrias vezes

  • 1 7 8 T O P O I

    na Mediterrane quando explorou as relaes entre o Islo e o cristianismo,descrevendo as maneiras como as civilizaes se recobriam.

    H, ainda, a World History anglo-sax, que no se confunde nem coma histria comparada nem com uma pesquisa que procuraria restabelecerconexes histricas. Seria muito bom poder contar com estas abordagenspara empreender o esforo de conectar culturas at ento analisadas sepa-radamente. Uma tarefa que nos parece hoje em dia ainda mais indispens-vel, medida que o processo de globalizao est mudando inelutavelmenteos quadros do nosso pensamento e, por conseguinte, as nossas maneirasde revisitar o passado.

    Concretamente, em que escala e em que espao pode intervir o histo-riador etnlogo para analisar os contatos (Chaunu) ou os recobrimentos(Braudel)? O exerccio pode ser feito quando analisamos os afrescos pinta-dos pelos ndios mexicanos no fim do sculo XVI. Porm, a pesquisa podeser estendida a horizontes muito mais amplos que no seriam definidosem funo de recortes contemporneos, mas tendo em conta conjuntospolticos com ambies planetrias que se constituram em momentosdados da histria.

    A monarquia catlica como campo de observao

    Em nossos trabalhos temos encontrado uma destas configuraes, queno s associa regies e reinos europeus, mas tambm vrios continentespara elaborar um quadro poltico que os contemporneos chamavam deMonarquia catlica. Esta frmula se aplicava ao conjunto de reinos agru-pados debaixo do poder do rei Felipe II a partir de 1580, quando a uniodas duas coroas acrescentou Portugal e o seu imprio mundial s posses-ses de Carlos V.

    Este aglomerado planetrio pode ser estudado de diversas maneiras.De maneira poltica, j que se trata de uma construo dinstica. A Mo-narquia catlica foi tambm o bero de uma primeira economia-mundoque suscitou estudos bem conhecidos e de grande relevo nos anos 1970.Porm, estes trabalhos deixaram na sombra outros aspectos igualmenteimportantes, como por exemplo, a constituio das primeiras burocracias

  • O S M U N D O S M I S T U R A D O S D A M O N A R Q U I A C A T L I C A 1 7 9

    operando numa escala planetria. Estas burocracias tinham estreitas liga-es com a Igreja, devido ao padroado portugus e ao patronato espanhol.

    O destino de Salvador de S (1602-1686) ilustra os tentculos que osmais altos funcionrios podiam estender fora do seu territrio. Salvadorde S foi governador do Rio de Janeiro a partir de 1637 e encomendero senhor de terras e indgenas em Tucum. A sua me era uma espanholafilha do governador de Cdiz. Salvador casou-se com Catalina de Velasco,que era sobrinha de Luis de Velasco, vice-rei do Mxico e do Peru. Viveuseis anos no Prata, viajou s minas de Potos, ficou fascinado pela prataperuana. Na guerra contra a Holanda, propugnou pela reconquista deAngola, desembarcou em Luanda e expulsou os flamengos.

    Caberia lembrar as redes internacionais constitudas pelas ordens re-ligiosas, pelos jesutas e pelos cristos novos. As manifestaes literrias,plsticas e musicais da dominao filipina revelam que a Europa dosHabsburgo desenvolveu uma arte considerada maneirista. Pela primeira vez,um estilo europeu teve uma difuso internacional, j que prosperou simul-taneamente em trs continentes. Estas dimenses mltiplas no fazem daMonarquia catlica um sistema nem uma civilizao, mas estiveram mui-to imbricadas umas nas outras para que o historiador se limite a abordar aMonarquia s em termos polticos ou dinsticos.

    Enquanto os historiadores costumam preocupar-se em inventar econstruir novos objetos definindo territrios e cronologias, a Monarquiacatlica forma uma realidade preexistente no espao e no tempo. Essapreexistncia no significa que os historiadores tenham espontaneamenteadotado o territrio do imprio como campo de observao. Muitas vezes,esta realidade gigantesca, bastante heterognea e fragmentada, para se dei-xar facilmente estudar foi escamoteada nas abordagens hispanocntricas.O livro recente de Geoffrey Parker, The World is not enough. The Grandstategy of Philip II, apesar do seu ttulo e das suas ambies, contm poucascoisas sobre as dimenses africanas, asiticas e americanas da monarquia.Acontece o mesmo com abordagens italianas que no tomam em conta asAmricas ibricas, Portugal e sia nas suas reflexes sobre o sistema imperial.

    A Monarquia catlica um objeto de investigao apaixonante. Re-cobre um espao que rene vrios continentes; aproxima ou conecta vrias

  • 1 8 0 T O P O I

    formas de governo, de explorao e de organizao social; confronta, demaneira s vezes bastante brutal, tradies religiosas totalmente distintas.Foi, ainda, o teatro de interaes planetrias entre o cristianismo, o Islo eo que os ibricos chamavam de idolatrias, uma categoria que abarca arbi-trariamente os cultos americanos, os cultos africanos, ou ainda as grandesreligies da sia.

    Em meio a este espao colonial, foram introduzidas instituies eprticas oriundas de outros continentes. O impacto das instituies euro-pias provocou efeitos en retour. Estabelecido em Goa, na Cidade do M-xico e em Lima, o Santo Ofcio teve de controlar povoaes e extensosterritrios que transformaram as modalidades e o alcance de sua ao.

    A referncia ibrica tem outras implicaes. Ela permite abordar demaneira diferente a questo da modernidade, ao chamar a ateno sobre oconjunto hispano-portugus, que a tradio intelectual europia tem man-tido longe do caminho desta modernidade. Trata-se, evidentemente, docaminho que vai da Itlia Inglaterra passando pela Frana e pela Holanda.Tal mudana de perspectiva tem efeitos paradoxais, j que longe de con-frontarmo-nos com uma Europa meridional, arcaica e fossilizada, ela re-mete a um espao planetrio onde se produzem fenmenos que tm a verde perto ou de longe com processos que hoje em dia chamamos de globa-lizao e mundializao.

    Apesar de correr o risco de multiplicar anacronismos ou de fazer umaleitura retrospectiva das origens, me proponho analisar os mundos damonarquia catlica perguntando-me sobre o que estes termos supem esobre as perspectivas que abrem.

    A dilatao planetria do espao ocidental

    Uma das caractersticas da Monarquia catlica a sua presena emlugares to afastados no espao e na histria como Salvador na Bahia,Mxico (1521), Lima (1536), Manila (1571), Macao (1557), Goa (1510)e Luanda (1576). Com os progressos da dominao espanhola e portuguesa,este expansionismo planetrio ampliou os horizontes europeus. Em todasas partes e quase ao mesmo tempo, nestas diferentes regies do globo, os

  • O S M U N D O S M I S T U R A D O S D A M O N A R Q U I A C A T L I C A 1 8 1

    homens da Monarquia descobrem e enfrentam tradies e heranas queno tm nenhuma ligao direta com as da Europa ocidental.

    Este fenmeno de planetarizao manifesta-se por uma mudana deescala. Podemos observ-lo em mbitos to diversos como o urbanismo, aliteratura e o direito. Sabemos que no curso do sculo XVI difundiu-se umprimeiro urbanismo ibero-americano nas suas variantes portuguesa e cas-telhana. O traado espanhol influenciou os planos das cidades das ndiasde Castela.

    Tambm podemos evocar a apario de um pblico internacional deleitores com dimenses planetrias. Os livros impressos na pennsula ib-rica e na Europa cruzam os oceanos Atlntico, Pacfico e ndico. Uma obra,redigida para um vasto pblico, to famosa e difundida como a Diana deMontemayor, encontra os seus leitores tanto no Recncavo baiano quan-to nas vilas das Filipinas espanholas. Traduzidas para o nahuatl no Mxicoe para o japons em Nagazaki, as Fbulas de Esopo tornaram-se acessveiss elites japonesas e indgenas da Nova Espanha. A apario de um direitoindiano Las leyes de Indias oferece outro exemplo de propagao decategorias e de valores oriundos do mundo ibrico.

    interessante poder extrair do contexto europeu a histria do livro e, atravs dela, a histria do latim, do portugus, do castelhano ou ahistria do direito e do urbanismo, para medir a revoluo que implicoua projeo planetria dessas prticas e idias europias.

    Porm, a difuso mundial dos saberes e dos imaginrios da Monar-quia representa uma dimenso e um processo muito mais complexo. Nopodemos dissoci-lo do descobrimento simultneo de outras lnguas, ou-tros saberes e outros modos de expresso.

    Pela primeira vez, os letrados de uma monarquia europia confronta-ram-se com as principais culturas do globo. revelador, nesse sentido, ofato de que um franciscano como Bernardino de Sahagn tenha estudadoa filosofia moral dos Indios do Mxico nos mesmos anos em que oagostiniano Juan Gonzlez de Mendoza examinou a filosofia natural ymoral que se le publicamente entre os chineses. Na mesma poca, os cro-nistas de Castela e de Roma examinaram as pinturas pictogrficas mexica-nas e os livros da China enviados Europa.

  • 1 8 2 T O P O I

    O desenvolvimento das cartografias europias acompanha o interessepor outras cartografias, quer se trate do uso sistemtico das pinturas dotlacuilos indgenas no Mxico ou da curiosidade ibrica pelos mapas chi-neses. No seu Discurso sobre a China, o galego Bernardino de Escalanteescreve:

    Numa carta geogrfica feita pelos mesmos Chineses que se trouxe a Portu-gal em poder de Juan de Barros, historiador dotssimo daquela nao, estoassinaladas duzentas e quarenta e quatro cidades famosas.

    mesma poca multiplicam-se as possibilidades de comparaes pla-netrias. O historiador da China compara as cidades deste imprio comBruges, Sevilha e Cdiz. Nesta poca tambm os cronistas costumam in-troduzir paralelos entre as ndias Ocidentais e as ndias Orientais. No fimdo sculo XVI, o globe-trotter Pedro Ordoez de Ceballos compara a redehidrogrfica do Mekong com as do Amazonas. O portugus Manuel Cor-reia de Montenegro, revisor rgio das impresses na Universidade deSalamanca, compara o Brasil com as ndias de Castela: naquelas no hmais do que ouro e prata enquanto no Brasil h tambm metais muitosestimados e ademais outras muitas coisas proveitosas e saudveis para a vidahumana.

    Com a disperso dos ibricos nos espaos da monarquia catlica asperspectivas mudam e diversificam-se. Desenha-se uma virada na percep-o ocidental do mundo: a partir desta poca novas comparaes podemser feitas desde um ponto de vista situado em terra longnquas que ofere-cem um novo quadro de referncia, que se sobrepe ao quadro europeu ouibrico. Por isso, o mdico estabelecido no Mxico, Juan de Crdenas, podeusar a frmula mais nas Indias do que em qualquer outra parte ou provn-cia do mundo.

    Esta virada tem vrias repercusses. Assim, por exemplo, na cidadedo Mxico na segunda metade do sculo XVI, elaborou-se uma viso pro-priamente americana da sia, ou seja, um orientalismo que se transplan-tou para o Novo Mundo sem perder as suas razes ocidentais. Os morado-res da Nova Espanha viam a sia espanhola e portuguesa com os olhosnovahispnicos, ou seja, tanto como uma fonte de dinheiro quanto como

  • O S M U N D O S M I S T U R A D O S D A M O N A R Q U I A C A T L I C A 1 8 3

    uma possibilidade para conseguir maior autonomia poltica e comercial emrelao a Madri. Eles lisonjeavam-se de ser o corao do mundo.

    Pergunto-me se desde a Bahia e o Rio de Janeiro os brasileiros acostu-mados a visitar a frica no desenvolveram tambm a sua prpria viso destecontinente, uma viso ligada aos seus interesses econmicos e sua grandefamiliaridade com Angola e Cabo Verde. O arquiplago de Capricrnioformava uma zona de intensas interaes que apoiavam-se no circuito ne-greiro Lisboa-Rio de Janeiro-Luanda-Buenos Aires. Ambrsio FernandesBrando considerava o comrcio entre o Brasil, Angola, Rio da Prata e oPeru mais importante do que as trocas com a metrpole. Esta zona, tobem descrita por Luis Felipe de Alencastro no Trato dos viventes, tem mui-to a ver com o Mar del sur denominado pelos mercadores do Mxico, Perue Manila. Cabe lembrar que as duas zonas econmicas se fortaleceram noperodo da monarquia catlica, logrando uma certa autonomia em relao metrpole.

    A compresso das distncias

    Seria errado reduzir o espao da Monarquia catlica ao espao doOcidente e de conceb-lo s em termos de ocidentalizao, ou seja, deexpanso da civilizao da Europa ocidental. Ao se dilatar, o espao oci-dental integra, incorpora, anexa ou procura capturar outros espaos semporm absorv-los. Por isso observamos uma compresso sem precedentedas distncias: o desconhecido torna-se familiar, o inacessvel torna-se dis-ponvel enquanto o longnquo aproxima-se de maneira espetacular. Por estarazo, observamos o aumento de consumos extra-europeus para a Europaocidental: ao mundo dos adeptos do tabaco, antes limitado a alguns gru-pos amerndios da Amrica, acrescentam-se os novos consumidores euro-peus.

    A circulao das novas plantas e drogas e as transformaes dasfarmacopias europias so representativas destes movimentos que conver-gem sobre a pennsula ibrica, ao invs de partir dela. O testemunho deum mdico de Sevilha, o doutor Nicolas Bautista Monardes, nos permiteestudar a chegada das plantas ao porto de Sevilha e a sua difuso na penn-sula e na Europa ocidental, e ainda estudar as distintas etapas da difuso e

  • 1 8 4 T O P O I

    da transmisso do mundo amerndio para o mundo europeu. Ao descre-ver a chegada da raiz de Michoacan, uma planta purgativa oriunda deColima no Mxico, Monardes escreve:

    Em to grau tem-se extendido o uso da raz que j comum em todo omundo, e se purgam com ella no s na Nova Espanha e provncias do Peru,mas na nossa Espanha y toda a Itlia, Alemanha e Flandres. Eu tenho envi-ado grandes relaes dela a quase toda a Europa, assim em latim como nanossa lingua.

    A circulao das plantas medicinais estabelece novos laos entre aEuropa ocidental e a Amrica espanhola. Outros saberes e outras plantaschegaram em Lisboa vindos das terras da sia. Em 1563, Garcia dOrtapublicou em Goa a sua obra mestra, Coloquios dos simples e drogas he cousasmediinais da India. O texto se difunde rapidamente em Castela. Quatroanos depois, em 1567, Charles de lEcluse publica uma verso do texto deGarcia dOrta nas imprensas flamengas, acompanhada pelo texto da obrado mdico sevilhano Nicolas Monardes. Assim, no corao editorial daMonarquia catlica, ficam reunidos os novos saberes oriundos da Amricaespanhola e da sia portuguesa.

    Tambm entre Portugal e Castela as circulaes intelectuais foramintensas. O primeiro livro espanhol dedicado China, o Discurso de laNavigacin, escrito pelo galego Bernardino de Escalante, utiliza as infor-maes contidas nas crnicas portuguesas, como as Dcadas de Joo deBarros, assim como explora contatos diretos do autos com os meios lis-boetas portugueses e chineses.

    Choques e concordncias dos tempos

    O estudo dos mundos da Monarquia catlica leva ao questionamentosobre o tema dos tempos e das temporalidades. A presena hispnica setraduz pela imposio sistemtica da referncia ao tempo ocidental e cris-to, j que a colonizao dos tempos acompanhou a colonizao do espa-o em todas as partes.

    O tempo ocidental no s uma maneira de calcular o passo dos diase da horas. tambm uma concepo do passado e uma possibilidade de

  • O S M U N D O S M I S T U R A D O S D A M O N A R Q U I A C A T L I C A 1 8 5

    prever o futuro: a astronomia e a astrologia so as cincias que permitemestes prognsticos. Enfim, e sobretudo, o tempo o ritmo imposto ao anopelo calendrio litrgico.

    Esta unificao do tempo aparece mais como uma das caractersticasda monarquia catlica. Na sua Monarchia di Spagna, o calabrs TommasoCampanella lembra que a missa celebra-se cada meia hora sobre toda aextenso do Imprio Espanhol.

    Porm, a imposio do tempo europeu toma uma forma bastantedistinta quando experimenta-se a partir de um territrio americano ouasitico. Publicado no Mxico alguns anos depois do tratado de Campanella,o Repertorio de los tiempos um livro de astronomia, astrologia e histriaescrito pelo cosmgrafo alemo Henrich Martin. Nesta obra o autor inte-gra a cronologia da Nova Espanha na cronologia europia e mundial: otempo do vice-reinado, Inglaterra de Henrique VIII e de Maria Stuart.

    Esta integrao acompanha-se de um quadro de longitudes que situauma centena de cidades da Monarquia em relao ao meridiano da cidadedo Mxico em vez de faz-lo em relao ao meridiano de Madri ou de Se-vilha: por isso temos uma lista de localidades, comeando pelas da NovaEspanha, do Peru, do Brasil, depois temos as da Espanha, das Filipinas eda Gran China, para acabar com as cidades da ndia portuguesa: Calicut,Goa, Diu. A cada vez o cosmgrafo indica a diferena horria que ele temcalculado entre a capital do Mxico, Bahia de Todos os Santos a quatrohoras e quarenta e cinco minutos...

    Debaixo da pena e nos clculos do Heinrich Martin, a cidade doMxico torna-se como que um eixo histrico e um centro geogrfico a partirdo qual o tempo europeu torna-se o tempo ocidental.

    Porm, a vitria do tempo cristo fica longe de ser absoluta. Com otempo da Igreja chegou tambm, na Amrica, na sia ou na frica, o tem-po judeu dos cristos novos. Outros cmputos, at nas zonas diretamentecontroladas pelo rei de Castela, resistiram unificao do tempo na medi-da do possvel. Em Manila, a capital espanhola das Filipinas, o bairro dosmercadores, Sangleyes, vive na hora chinesa, enquanto os cronistas ind-genas da Nova Espanha continuam obstinadamente estabelecendo concor-dncias entre os seus calendrios e o dos cristos. As maneiras indgenas de

  • 1 8 6 T O P O I

    contar o tempo no deixaram indiferentes os espanhis, como revelam osnumerosos estudos feitos pelos missionrios castelhanos sobre os cmpu-tos mexicanos ou, numa outra regio do globo, as informaes relativasaos milnios de histria chinesa.

    Tempos e espaos cruzam-se e confrontam-se no seio da monarquiacatlica e mesmo fora dela, j que a China imperial teve curiosidade pelosrelgios europeus. Conviria exumar pouco a pouco esta trama to com-plexa, sem limitar-se perspectiva de uma ocidentalizao conquistadoraou a uma viso dos vencidos impermevel s mudanas.

    Da ptria ao mundo, do mundo ptria

    A circulao das drogas ilustra a maneira como o local consegue umaprojeo, uma visibilidade sbita na escala global, ou seja, em vriascenas europia, americana e mesmo asitica. evidente que local e glo-bal so categorias contemporneas, ainda muito mal definidas. Tambm evidente que no se trata de projet-las sem adapt-las s sociedades dossculos XVI e XVII. Isso, porm, no significa que o historiador tenha deignorar sistematicamente as solicitaes do presente quando elas podemajudar a reler o passado de maneira nova e talvez a entender melhor as sin-gularidades do nosso mundo contemporneo.

    No seio da Monarquia catlica os testemunhos mais diversos diferen-ciam, distinguem, duas esferas de atividade: aquela de onde a gente vem epara onde s vezes a gente volta, e aquela na qual a gente se move. Local-mente, a ptria, o ptrio ninho, que serve de ponto de ancoragem: olugar para o qual a gente volta depois de ter percorrido os mares e os con-tinentes, como o pssaro ausente do ptrio ninho.

    No fcil definir o global e o local. Menos ainda determinar a natu-reza dos laos que os unem. Durante o sculo XVI, a relao entre o queconstitua o local a ptria e o que correspondia ao global, o mundo,mudou constantemente na medida em que ptria e mundo tomaram ou-tros sentidos. Estas mudanas aparecem ligadas com os contnuos desen-volvimentos da expanso, a emergncia de um global que se identificavacada vez mais com o espao planetrio.

  • O S M U N D O S M I S T U R A D O S D A M O N A R Q U I A C A T L I C A 1 8 7

    Assim, na Amrica a conquista espanhola obrigou os invasores e os ven-cidos a redefinirem o local. Com o andar dos anos e a distncia, os laosdos conquistadores com as suas comunidades de origem na pennsula esti-caram-se ou desfizeram-se. Neste meio tempo apareceu um neolocalamericano que se apresentou como uma realidade institucional. A funda-o da cidade de Vera Cruz pelos conquistadores, em 1519, materializa eoficializa esta reterritorializao de tipo castelhano no solo do Novo Mun-do. Do lado dos vencidos, tanto a criao das repblicas de ndios, queforam o resultado da articulao das instituies ibricas com as tradiesamerndias, como a poltica das congregaes provocaram um processoparalelo de relocalizao no seio das comunidades indgenas.

    No caso do Brasil, a origem da forte ligao entre a famlia de S e oRio de Janeiro est nos laos familiares e de clientela estabelecidos ao lon-go do sculo XVI e do sculo XVII.

    Ao mesmo tempo apareceu um espao global estendido escala pla-netria. Com Magalhes e El Cano, o mundo tornou-se uma realidadevivida e mensurvel. As primeiras ligaes regulares transpacficas e o do-mnio progressivo dos itinerrios planetrios transformaram o excepcio-nal numa prtica rotineira, ainda que muito arriscada. A emergncia destanova dimenso que se fez graas relao martima direta entre a sia ea Amrica precedeu de pouco a edificao da Monarquia catlica.

    Os progressos das tcnicas de navegao, a herana da tradio impe-rial do Ocidente latino, o expansionismo ibrico, a realizao das ambi-es universalistas do cristianismo favoreceram a difuso de uma outra vi-so do mundo, concebido como um conjunto de terras ligadas entre si ecolocadas debaixo de uma mesma dominao.

    Neste contexto e nesta acepo, o termo mundo tornou-se comumnos textos da poca. Quando descreve a difuso das novas espcies de plan-tas, o mdico Monardes no pde evitar o uso sistemtico desta palavra: ouso delas difundiu-se no s na nossa Espanha mas tambm em todo omundo. O cosmgrafo alemo estabelecido no Mxico, Heinrich Martin,nunca perde de vista as outras partes do mundo. Na Citt del sole, de T.Campanella, o informante genovs lisonjeia-se de conhecer tutto il mon-do. Ambrsio Fernandez Brando descreve o Brasil como a praa domundo.

  • 1 8 8 T O P O I

    Todos os cronistas da Monarquia catlica e dos seus vizinhos come-am as suas crnicas falando de um mundo que no s o mundo da cria-o, do Antigos e da Idade Mdia, mas tambm o conjunto formado pelasquatro partes do globo Europa, Amrica, frica, sia ou seja, zonasdistribudas nos dois hemisfrios e que j haviam sido ocupadas ou quedeviam ser rapidamente conquistadas.

    O global corresponde tambm a uma visualizao sempre mais agudado globo terrestre. No sculo XVI, o globo desvela-se na sua realidade fsi-ca e na sua integralidade nos mapas-mndi ou nas tapearias. Assim, porexemplo, na tapearia realizada por Bernard Van Orley, que mostra A ter-ra protegida por Jpiter e por Juno, vemos o imprio portugus nas suasdimenses brasileiras, asiticas e africanas, representado sobre um globobranco e azulado de grande beleza.

    Mas tambm podemos lembrar os escritos dos poetas ibricos. Elesdescrevem viagens feitas no ar sobre mquinas voadoras. Enquanto estovoando, os passageiros descobrem:

    do Brasil os pramos incultos;Os Andes, O Dorado e os temidosDesertos do Darim, cheios de assaltos,Embora ento frescos e floridos...

    As relaes entre o global e o local

    Os vastos espaos que cobrem a Monarquia catlica convidam amultiplicar as perguntas. Como o local integra-se ao global e como pode-mos definir estes termos na segunda metade do sculo XVI? Como os ato-res da poca podem perceber o local no seio de uma dominaomundializada como a Monarquia catlica? Como o global traduzia-seou, antes, era percebido localmente no seio de um espao concreto, vividodia-a-dia?

    Muitas pistas podem ser percorridas. A leitura de trs autores ocalabrs Tommaso Campanella, os espanhis estabelecidos no Mxico, Juande Torquemada e Bernardo de Balbuena traz indicaes bastante inte-ressantes. Embora as suas concepes do global e do local sejam muito di-

  • O S M U N D O S M I S T U R A D O S D A M O N A R Q U I A C A T L I C A 1 8 9

    ferentes, os trs concordam em reconhecer a misso providencial da Espa-nha e imaginam o local como uma pequena sociedade ideal ou idealizada.Pode ser a cidade do Mxico, a comunidade indgena controlada pelosfranciscanos ou a utpica Citt del sole do calabrs Campanella.

    Longe de se reduzirem afirmao da hegemonia castelhana, os siste-mas de representao que encontramos no quadro da Monarquia revelamque a unidade dinstica e religiosa compatvel com pontos de vistasmltiplos que reservavam a cada regio do imprio um papel dinmico.Como se a pertena ao imprio nunca discutido pudesse se acomodar auma releitura local, criadora e singular.

    Poderamos reler na mesma perspectiva a Rhetorica christiana, domestio mexicano Diego Valads, publicada em Perugia no ano de 1579,ou examinar os Commentarios reales, do inca Garcilaso de la Vega, quecoloca, frente Monarquia catlica, uma viso idealizada do reino dos Incas.Caberia tambm estender a anlise aos autores portugueses para estudar oslaos que eles estabelecem entre uma Lisboa, posta no centro do mundo, eos gigantescos espaos da dominao filipina. Sem esquecer a sia portu-guesa e a sua capital, Goa, chamada de Roma da sia. Por fim poderamosinterrogar um autor africano, o mulato Andr Alvarez de Almada, que nosdeixou um Tratado breve dos rios de Guin do Cabo Verde, no qual define olugar que deve ocupar a Guin e o Brasil no contexto da Monarquia ibrica.

    Veramos que, a partir das periferias da Monarquia, sejam napolitanasou portuguesas, mexicanas ou peruanas, africanas ou asiticas, nasceramsimultaneamente representaes do mundo que articulavam o local e oglobal a partir das mltiplas formas que podiam assumir no seio daMonarquia catlica.

    Viver entre os mundos

    Mas estas pistas apenas indicadas s se referem a produes intelec-tuais. Mesmo se pertencem a um quadro comum, parecem revelar paren-tescos insuspeitos ou at hoje pouco analisados.

    Existe outra maneira de considerar estas questes. O estudo dos indi-vduos pode desvelar a maneira como o local e o global so constantemen-te rearticulados. S ao multiplicar os estudos de casos, poderemos reunir

  • 1 9 0 T O P O I

    informaes significativas. Como os exemplos anteriores, os casos seguin-tes s pretendem oferecer algumas pistas e idias de pesquisa.

    Uma caracterstica notvel o nomadismo dos homens do Impriocatlico. evidente que este trao no apareceu com a monarquia, mascom ela tornou-se muito mais comum. Como no Mediterrneo de Braudel,e talvez muito mais, o movimento dos homens o elemento que d a suaunidade ao gigantesco espao aqui considerado. Muitas vezes, a realidadesuperava a fico: se o Guzmn de Alfarache, o prottipo do heri picares-co, circulou na Bacia do Mediterrneo ocidental, o seu criador, o escritorMateo Alemn, cruzou o Atlntico e viveu vrios anos na Cidade do M-xico. Os deslocamentos efetuam-se fora das fronteiras da Europa ociden-tal e do mundo mediterrneo: muitos homens, hoje bem esquecidos, da-vam a volta ao mundo. Pedro Ordnez de Ceballos lisonjeava-se de t-lopercorrido vrias vezes:

    desde esta idade de nove anos at os quarenta e sete anos, andei peregrinan-do e vendo o mundo, andando por ele mas de trinta mil lguas, tocandotodas as cinco partes dele: Europa, frica, sia, Amrica e Magalhnica.

    No fim da sua vida, Pedro Ordnez acabou com o ttulo de vigrio-geral dos reinos da Cochinchina e de chantre da Igreja de Huamanga noPeru. Na mesma poca, o franciscano Martn Ignacio de Loyola desempe-nha atividades intensas de religioso, de diplomata e de homem de neg-cios em duas zonas do globo postas nas antpodas uma da outra: a sia deManila, Macau e Canto por uma parte, e por outra parte a Amrica rio-platense.

    A vida de Manuel da Paz cruza tambm os espaos da Monarquia.Nascido em Olinda pertencia s comunidades crists-novas de Recife eOlinda de onde saram os primeiros luso-braslicos globalizados (a expres-so de Luiz Felipe de Alencastro). A famlia de Manuel voltou para o Reinono final do sculo XVI. Manuel investiu no negcio asitico e estabeleceu-se em Goa (1607-1616). Retornou a Lisboa e logo mudou-se para Madrionde o seu palacete ficava defronte ao Palcio real de Buen Retiro.

    Estes deslocamentos no se faziam em sentido nico. No podemossubestimar os itinerrios que levaram para o continente europeu mestiosamericanos, como o inca Garcilaso de la Vega e Diego Valads, ou envia-

  • O S M U N D O S M I S T U R A D O S D A M O N A R Q U I A C A T L I C A 1 9 1

    dos japoneses, como os alunos dos jesutas que visitaram Lisboa, Madri eoutras cidades da Europa ocidental.

    Convm questionar sobre a representatividade destes casos, que po-rm podem ser facilmente multiplicados. No podemos evocar aqui, empoucas palavras, os conquistadores e os exploradores, os missionrios e oseclesisticos, os mercadores, que, conforme suas vocaes e seus interesses,conduziram-se para os demais continentes. Sem esquecer os escravos afri-canos que foram deportados para a Europa, a Amrica ou a sia, muitasvezes depois de longos deslocamentos no continente africano. Os velhosreflexos eurocntricos nos levam a repelir estas figuras para as sombras dasperiferias e da exceo. As coisas tornam-se distintas se fazemos da Monar-quia catlica, e no da Europa ocidental, a nossa base de pesquisa e deobservao.

    Por enquanto, parece mais importante identificar em cada trajetriaos comportamentos novos induzidos pela Monarquia atravs das suas di-menses planetrias: mobilidades intercontinentais, nomadismos, facili-dade para deixar um lugar pelo outro, poder de se adaptar a mbitos varia-dos a fim de circular sem obstculos nos mundos da Monarquia etc.

    Conviria examinar de perto esta capacidade e esta propenso para cir-cular de uma civilizao a outra, relacionando-as com as notveis faculda-des de observao que costumavam mostrar os sditos da monarquia cat-lica. O relato do florentino Carletti ou A viagem do Mundo, do espanholOrdnez de Ceballos, so cheios de observaes extradas das sociedades edas lnguas mais diversas. Parecem hoje em dia to precisas e cuidadosasque tendemos a cham-las de etnogrficas. Apesar dos esteretipos, dospreconceitos e das segundas intenes de que estes textos esto repletos,estes olhares revelam uma vontade contnua de acumular informaes so-bre os diferentes territrios da monarquia e de seus vizinhos. claro queexpressam um desejo de dominao e de conquista impulsionado dos cen-tros da Monarquia, mas ao mesmo tempo traduzem a capacidade sistem-tica de se abrir aos demais. O texto de Bernardino de Escalante sobre aChina, por exemplo, examina o paradoxo da China: como possvel queum pas to perfeito seja idlatra? O jesuta Lus Fris quer entender porque os japoneses, to civilizados, tm costumes diferentes daqueles dosportugueses.

  • 1 9 2 T O P O I

    Mas a adaptao pode efetuar-se de outros modos, contemplandooutros aspectos, como a alimentao, o clima, o corpo, as tcnicas, a pene-trao das redes locais, os meios intelectuais que nos deixaram testemu-nhos escritos. Esses deslocamentos implicaram milhares de europeus e no-europeus que aprenderam a viver e a sobreviver no caso dos escravosafricanos ou das massas amerndias entre vrios mundos.

    Quais so as perguntas que podemos fazer aos homens da Monarquia?Essas perguntas so ao mesmo tempo simples e complexas: como conectar-se com a Amrica? Como conectar-se com a Europa? Como viver entredois mundos? Na falta de tempo para examinar mais casos, queria concluircom algumas observaes gerais.

    Os mundos misturados da monarquia catlica

    Tudo que expus at aqui no me levou a concluir que o estudo daMonarquia catlica tenha de limitar-se aos indivduos. necessrio mul-tiplicar os estudos de casos e as pesquisas de micro-histria para analisarestes mecanismos de adaptao, de transformao e de inveno que seproduzem em todos os mbitos da Monarquia.

    As terras da Monarquia so terras de mesclas, de confrontaes e deconflitos. So margens sempre em contato com outros universos: a Calbriade Campanella fica to perto do imprio turco que o dominicano quischamar os turcos para apoiar o seu levantamento contra os espanhis. Damesma forma, o Japo, a ndia portuguesa, as Filipinas, as costas africanasso terras de mesclas e enfrentamentos.

    Estas sociedades hbridas superam as fronteiras da Monarquia. NoMxico os Mayas do Petn que no eram controlados pelos espanhis con-sumiam bens, compravam armas de origem ocidental. Os piemontsamaznicos tinham relaes com as selvas que, apesar de serem aparente-mente desconhecidas e hostis, no impediam os contatos e as trocas entrendios, mestios, mamelucos e europeus. Os portugueses da sia saam dazona de controle de Lisboa e circulavam facilmente nas outras sociedades:eram portugueses fora do imprio para usar o ttulo de um trabalhode A. J. R. Russel-Wood.

  • O S M U N D O S M I S T U R A D O S D A M O N A R Q U I A C A T L I C A 1 9 3

    Estas mltiplas sociedades mestias podem ser abordadas de vriasmaneiras. A mais simples, e talvez a mais limitada, consiste em repertoriare explorar as mestiagens biolgicas. Incita a examinar em todas as partesa apario de novos grupos que chamamos de mestios: mestizos e janizeirosda Amrica espanhola, mamelucos do Brasil, mestios da ndia, tangomaos dafrica etc.

    Podemos dar um passo mais adiante ao estender a categoria de mesti-os a todos os indivduos que tm de assumir o papel de passeurs entre associedades e entre os grupos. Eles podem ser europeus ou no-europeus,ou seja, amerndios, africanos e asiticos.

    Podemos dar outro passo mais frente ao estudar a maneira como oseuropeus americanizam-se, africanizam-se ou orientalizam-se. Por exem-plo, os espanhis que se americanizam so chamados de indianos pelosmoradores da metrpole. Os portugueses que se orientalizam so chama-dos de castios ou inditicos na ndia portuguesa. Os portugueses do Brasiltornaram-se os braslicos, os da Angola os angolistas. Na obra de AmbrsioFernandes Brando, os reinis opem-se aos brasilienses tal como osrecm-chegados se distinguem dos que contavam muitos anos de vida eexperincia naquelas terras.

    A pesquisa torna-se ainda mais interessante se, superando a etapa, afase dos inventrios e das descries, procuramos entender o funcionamentoe as especificidades das sociedades que apareceram em mbitos to distin-tos como no Mxico, nos Andes, no Brasil, nas costas africanas, na ndia,no Japo e nas Filipinas. Por muito tempo uma maneira de deixar de ladoeste problema foi chamar estas realidades de coloniais. Mas as coisas com-plicam-se quando aceitamos que a relao colonial que coloca estassociedades numa posio de dependncia poltica e de explorao econ-mica em relao a uma metrpole no mais do que uma dimensoentre outras que caracterizam os mundos da Monarquia. Muitas vezes assuas capacidades de autonomia, de reao e de inveno foram subestima-das. De fato, estas sociedades coloniais, que na maioria dos casos foramsociedades urbanas, parecem tanto mais singulares quanto procuram arti-cular modos de vida e de expresso, formas de organizao social e tipos depresena ocidental radicalmente distintos.

  • 1 9 4 T O P O I

    Desta situao resultam sistemas compostos de dominao e de orga-nizao do trabalho, associaes de saberes e de tcnicas de origem muitodiversas, representaes hbridas do espao e do tempo, mesclas de crenasque muitas vezes nos limitamos a chamar de sincrticas em vez de analis-las de maneira mais detalhada. No s os corpos misturam-se, mas todasas formas da existncia social e do pensamento.

    A transformao de um grupo de origem pr-hispnica osmacehuales, do Mxico-Tenochtitlan numa plebe urbana um fen-meno to complexo e imprevisvel como a mistura das idias e dos estilos.

    Esta metamorfose no se efetua por simples substituio, sendo tam-pouco um processo biolgico puro. A mistura implica uma srie demestiagens que mobilizam todos os mbitos da vida urbana, sejam osquadros polticos e institucionais tanto os herdados da sociedade nahuaquanto os herdados da pennsula ibrica , sejam as formas de trabalhoque combinam as antigas organizaes coletivas como o salrio e o acessoao mercado europeu, sejam, ainda, as estruturas religiosas que cristianizamprticas idoltricas, sem esquecer solues tcnicas que associam know-howamerndio com inovaes europias.

    Na metade do sculo XVII, aparece um grupo que ao mesmo tem-po uma plebe do Antigo Regime e uma plebe americana, ou seja, umamassa portadora das heranas amerndias e africanas nas quais se reflete adiversidade tnica do povo. Em um sculo, o jogo complexo das mestiagensno s transformou os indivduos, mas tambm modificou o grupo, aomesmo tempo que a sociedade no seu conjunto dentro da qual este grupoevolui.

    O inventrio das grandes cidades mestias da Monarquia catlicamostra que cada lugar tem o seu destino particular: a cidade do Mxicono Lima, tampouco Lima confunde-se com Potosi nem com Salvadorda Bahia. E na cidade de Manila, mesmo se ela pertence a Nova Espanha,as mestiagens so muito diferentes das que encontramos na cidade doMxico. Porm, j que todas estas misturas produzem-se no espao daMonarquia catlica, isto nos convida a examinar a maneira como o polti-co no sentido mais amplo e analisado a partir de uma perspectiva glo-bal influi sobre as manifestaes locais da mestiagem.

  • O S M U N D O S M I S T U R A D O S D A M O N A R Q U I A C A T L I C A 1 9 5

    Mas a dominao exercida pela Monarquia no basta para explicar adinmica destes fenmenos aparecidos nos quatro continentes. A simplesexistncia da Monarquia instaura espaos de circulaes, intercmbios econflitos que escapam a qualquer estratgia global, por ambiciosa que seja.O global que se manifesta na Monarquia no pode ser confundido comuma estratgia global de dominao que se enfrentaria com uma multidode histrias locais, mesmo se a Igreja, a Coroa, as administraes ibricasinterviessem muito nos domnios que nos interessam aqui. As configura-es que observamos so bem mais complexas.

    Por isso necessrio explorar esta trama em toda a sua complexidadee numa perspectiva que se parece com a dos especialistas da World Historyquando tratam as partes do mundo como zonas interconnected andinteractive. A Monarquia catlica oferece um exemplo perfeito deinteractive zone onde proliferam as relaes entre os poderes, os grupos e asculturas.

    A sua anlise nos obriga a superar as frgeis fronteiras das disciplinase das reas culturais tradicionais. Nos convida tambm a buscar no conta-to com as cincias duras, com a teoria da complexidade, categorias e mto-dos novos para poder pensar o mundo.

    Notas

    * Palestra proferida na UERJ, em 11 de agosto de 2000, a convite da UFRJ (Programa dePs-graduao em Histria Social, Programa de Estudos Americanos e Programa de Teo-ria, Historiografia e Histria da Cultura) e da UERJ (Programa de Ps-graduao emHistria e Laboratrio de Estudos Histricos da Cincia).