mundos possíveis: realidade e ficção na linha do tempo

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE COMUNICAÇÃO Habilitação em Jornalismo ALEXSANDRO OLIVEIRA SANTOS MUNDOS POSSÍVEIS: REALIDADE E FICÇÃO NA LINHA DO TEMPO Salvador 2015

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Este projeto tem como objetivo a utilização da rede social Facebook como plataforma expositiva de imagens fotográficas produzidas a partir de experimentações artísticas envolvendo fotografia e performance, entremeando e convocando no espaço virtual, diversas narrativas fotográficas que investigam e trazem em questão temas como representação e identidade, realidade e ficção. A partir desses usos específicos, tanto da fotografia, quanto da rede social, pude estabelecer conexão e interatividade com uma rede de amigos e interlocutores que influenciaram e participaram ativamente da produção fotográfica que passou a ganhar forma a partir do seu caráter relacional, entremeando, dessa maneira, espaços reais e virtuais, públicos e privados.

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Page 1: Mundos Possíveis: Realidade e Ficção na Linha do Tempo

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE COMUNICAÇÃO

Habilitação em Jornalismo

ALEXSANDRO OLIVEIRA SANTOS

MUNDOS POSSÍVEIS:

REALIDADE E FICÇÃO NA LINHA DO TEMPO

Salvador

2015

Page 2: Mundos Possíveis: Realidade e Ficção na Linha do Tempo

ALEXSANDRO OLIVEIRA SANTOS

MUNDOS POSSÍVEIS:

REALIDADE E FICÇÃO NA LINHA DO TEMPO

Memória do Trabalho de Conclusão de

Curso de Graduação em Jornalismo,

Faculdade de Comunicação,

Universidade Federal da Bahia.

Orientador: José Mamede

Salvador

2015

Page 3: Mundos Possíveis: Realidade e Ficção na Linha do Tempo

Agradecimentos

Agradeço a Aurora e Edésio, meus pais, que mesmo a distância e independentemente de

entender ou não, apoiaram as minhas escolhas e atitudes. Agradeço a Ricardo, meu

companheiro, amigo, amor e cúmplice de muitos dos processos vividos e

compartilhados durante essa pesquisa, me ajudando em muitos momentos, a continuar

seguindo em frente. A Michelle Mattiuzzi, pela sua parceria, força e resistência e pelas

horas e mais horas de conversas e trocas. A todos meus amigos, principalmente Lucas

Moreira e Patrícia Bssa, que estiveram e me acompanharam durante todos esses anos

dias e horas.

A Edgard Oliva, meu grande mestre e amigo, que com sua gentileza e sabedoria, soube

me guiar em muitos momentos da pesquisa. A José Mamede, meu orientador e agora

amigo, que a partir dos nossos encontros e conversas, conduziu e compartilhou muitas

das referências e reflexões que foram de grande importância para o desenvolvimento da

escrita. Ao Labfoto - Laboratório de Fotografia da Facom, que alimentou meu percurso

inicial de envolvimento com a fotografia, e ao Laboratório de Fotografia da Escola de

Belas Artes, pelas possibilidades e experiências com os reveladores químicos e os

procedimentos analógicos da fotografia.

A Vera, Emilly, Neném, Pequeno, Mayra Lins, Luciana Dal Ri, Mariano, Márcio

Mascarenhas, Dulcineia Gomes, Paola De Mori, Driele Mutti, Denise, Inajara, Alana

Silveria, Hirosuke, Jerônimo, Zé Mario, Júlio, David, Iansã, Alana Barbo, Laura Braga,

Laura Castro, Clarice Machado, Cíntia Guedes, Matheus Santos, Rodrigo Sombra,

George Neri, Núbia Neves, Morgana Poiéses, Tereza Raquel, Vanessa e tantos outros

amigos e pessoas que conheci durante essa longa trajetória e que conduziram,

conjuntamente, muitas das ideias e questões trazidas pela pesquisa.

Page 4: Mundos Possíveis: Realidade e Ficção na Linha do Tempo

RESUMO

O presente trabalho é a memória descritiva do projeto Mundos Possíveis: Realidade e

Ficção na Linha do Tempo. Este projeto tem como objetivo a utilização da rede social

Facebook como plataforma expositiva de imagens fotográficas produzidas a partir de

experimentações artísticas envolvendo fotografia e performance, entremeando e

convocando no espaço virtual, diversas narrativas fotográficas que investigam e trazem

em questão temas como representação e identidade, realidade e ficção. A partir desses

usos específicos, tanto da fotografia, quanto da rede social, pude estabelecer conexão e

interatividade com uma rede de amigos e interlocutores que influenciaram e

participaram ativamente da produção fotográfica que passou a ganhar forma a partir do

seu caráter relacional, entremeando, dessa maneira, espaços reais e virtuais, públicos e

privados.

Palavras Chave: facebook, fotografia contemporânea, performance, estética relacional

Page 5: Mundos Possíveis: Realidade e Ficção na Linha do Tempo

SUMÁRIO

1. Apresentação ........................................................................................................ 8

2. O Tema ............................................................................................................... 10

2.1. Facebook como plataforma de criação, circulação e experimentação artística

fotográfica .......................................................................................................... 10

3. A Fotografia ....................................................................................................... 20

3.1. Fotografia e Arte Contemporânea .............................................................. 20

3.2. Fotografia e Performance ........................................................................... 26

3.2.1. Michelle Mattiuzzi ................................................................................... 28

3.2.2. Ricardo Alvarenga ................................................................................... 30

3.2.3. Performance Híbrida ................................................................................ 34

4. O Projeto ............................................................................................................ 37

4.1 Realidade e Ficção na Linha do Tempo....................................................... 37

5. Considerações Finais ......................................................................................... 56

6. Bibliografia ........................................................................................................ 57

7. Anexos................................................................................................................. 59

7.1. Crítica escrita em setembro de 2013............................................................ 59

8. Apêndice.........................................................................................................60

8.1. Prints das publicações no Facebook.........................................................60

Page 6: Mundos Possíveis: Realidade e Ficção na Linha do Tempo

Lista de Figuras

Figura 1 – Facebook, maio de 2013, Paulo Afonso, Bahia......................................................... 16

Figura 2 – Lambe-lambe e Mapa expostos em Paulo Afonso (BA) em setembro de 2014........ 17

Figura 3 – Av. Otaviano L. de Moraes, Paulo Afonso, Bahia .................................................... 18

Figura 4 – Rua 31 de março, Paulo Afonso, Bahia..................................................................... 18

Figura 5 – Rua Marechal Castelo Branco, Paulo Afonso, Bahia................................................ 18

Figura 6 – Alex Oliveira, Salvador, Dezembro, 2014................................................................. 19

Figura 7 – Alex Oliveira, Salvador, Dezembro, 2014................................................................. 19

Figura 8 – Alex Oliveira, Aurora Descoberta, Salvador, 2011................................................... 24

Figura 9 – Alex Oliveira, Aurora Descoberta, Salvador, 2011................................................... 24

Figura 10 – Alex Oliveira, Aurora Descoberta, Salvador, 2011................................................. 25

Figura 11 – Alex Oliveira, Aurora Descoberta, Salvador, 2011................................................. 25

Figura 12 – Alex Oliveira, S/Título, Salvador, Fevereiro de 2013............................................. 26

Figura 13 – Alex Oliveira, S/Título, Salvador, Outubro, 2012................................................... 27

Figura 14 – Alex Oliveira, S/Título, Salvador, Setembro, 2012................................................. 27

Figura 15 – Alex Oliveira, Jesus 3:30pm de Ricardo Alvarenga, Fevereiro, 2013..................... 27

Figura 16 – Alex Oliveira, S/Título, Vila Eliseu, Salvador, Novembro, 2011........................... 28

Figura 17 - Alex Oliveira, S/Título, Vila Eliseu, Salvador, Dezembro, 2011............................ 30

Figura 18 - Alex Oliveira, S/Título, Vale da Lua, Goiás, Novembro, 2012............................... 31

Figura 19 - Ricardo Alvarenga, Paixão de Cristo, Salvador, Março, 2013................................. 33

Figura 20 - Alex Oliveira, S/Título, Goiás, Novembro, 2012..................................................... 34

Figura 21 - Alex Oliveira, S/Título, Goiás, Novembro, 2012..................................................... 34

Figura 22 - Alex Oliveira, Revelador H2O2, Itapetinga, Maio, 2013......................................... 37

Figura 23 - Alex Oliveira, Revelador H2O2, São Paulo, Abril, 2013......................................... 39

Figura 24 - Alex Oliveira, Revelador H2O2, São Paulo, Abril, 2013......................................... 39

Figura 25 - Alex Oliveira, Revelador H2O2, São Paulo, 2013................................................... 40

Figura 26 - Alex Oliveira, Revelador H2O2, São Paulo, 2013................................................... 40

Figura 27 - Alex Oliveira, Revelador H2O2, São Paulo, 2013................................................... 40

Figura 28 - Alex Oliveira, Revelador H2O2, São Paulo, 2013................................................... 40

Figura 29 - Alex Oliveira, Revelador H2O2, Macaúbas, Maio, 2013......................................... 41

Figura 30 - Alex Oliveira, Porto Seguro, 2013........................................................................... 42

Figura 31 - Alex Oliveira, Macaúbas, 2013................................................................................ 42

Figura 32 - Alex Oliveira, Macaúbas, 2013................................................................................ 42

Figura 33 - Alex Oliveira, Paulo Afonso, 2013........................................................................... 42

Figura 34 - Alex Oliveira, Porto Seguro, 2013........................................................................... 42

Figura 35 - Alex Oliveira, Revelador H2O2, Macaúbas, Maio, 2013......................................... 42

Page 7: Mundos Possíveis: Realidade e Ficção na Linha do Tempo

Figura 36 - Alex Oliveira, Revelador H2O2, Ituaçú, Julho, 2013............................................... 43

Figura 37 – Facebook, Revelador H2O2, Alagados, 2013.......................................................... 45

Figura 38 - Alex Oliveira, Revelador H2O2, Alagados, 2013.................................................... 47

Figura 39 - Alex Oliveira, Revelador H2O2, Alagados, 2013.................................................... 47

Figura 40 – Facebook, Revelador H2O2, Alagados, Agosto, 2013............................................ 47

Figura 41 – Facebook, Revelador H2O2, Alagados, 2013.......................................................... 48

Figura 42 – Facebook, Revelador H2O2, Alagados, 2013.......................................................... 48

Figura 43 - Alex Oliveira, Revelador H2O2, Alagados, 2013.................................................... 49

Figura 44 - Alex Oliveira, Revelador H2O2, Alagados, 2013.................................................... 49

Figura 45 - Alex Oliveira, Revelador H2O2, Alagados, 2013.................................................... 50

Figura 46 - Alex Oliveira, Revelador H2O2, Alagados, 2013.................................................... 50

Figura 47 - Alex Oliveira, Revelador H2O2, Alagados, 2013.................................................... 51

Figura 48 – Facebook, Revelador H2O2, Alagados, 2013.......................................................... 52

Figura 49 - Alex Oliveira, Revelador H2O2, Alagados, 2013.................................................... 54

Figura 50 - Alex Oliveira, Revelador H2O2, Alagados, 2013.................................................... 55

Page 8: Mundos Possíveis: Realidade e Ficção na Linha do Tempo

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1. APRESENTAÇÃO

Mundos Possíveis: Realidade e Ficção na Linha do Tempo é um projeto que

surge do processo de utilização da rede social Facebook como plataforma expositiva de

imagens artísticas – ao produzir e expor no espaço virtual, imagens construídas a partir

das relações estabelecidas entre os distintos ambientes por onde passo, convocando as

pessoas que encontro, desde amigos próximos a desconhecidos. Assim, o processo

criativo produz recortes fotográficos que privilegiam o cotidiano, o acaso, os encontros

e afetos.

Meu envolvimento com a fotografia começou no início da faculdade. Mas

especificamente no segundo semestre de 2008. Desde então já conhecia o site do

Labfoto – Laboratório de Fotografia da Faculdade de Comunicação (UFBA) – e

acompanhava a produção fotográfica dos outros alunos. Com isso, tive certeza que seria

naquele local que eu poderia ter a oportunidade de aprender a fotografar, podendo ter

acesso mais diretamente a equipamentos profissionais de fotografia. Assim, já nos

primeiros semestres da faculdade, fiz inscrição para trabalhar como monitor. Acabei

sendo selecionado e passei a conviver diariamente no Labfoto, conseguindo, dessa

forma, estar mais próximo do meu objeto de pesquisa.

Durante um ano como monitor do Labfoto, pude aprender a técnica fotográfica a

partir de saídas constantes para fotografar festas populares na cidade de Salvador e do

Recôncavo, como Santo Amaro e Cachoeira. Contudo, com o passar do tempo, algo me

inquietava durante as saídas fotográficas e tive necessidade de buscar outras formas de

representar a cidade de Salvador, procurando dar mais destaque ao cotidiano e as

minhas experiências pessoais.

Durante a execução do trabalho e dos questionamentos sobre as necessidades e

os usos da fotografia, busquei encontrar referências que norteassem a minha produção

fotográfica. Sendo assim, encontrei o livro A fotografia como arte contemporânea

(2010) de Charlotte Cotton, - que constitui um apanhado dos artistas da atualidade que

produzem seus trabalhos na intersecção entre arte e fotografia, encontrando a produção

de fotógrafos como Nan Goldin, Wolfgang Tillmans, Mark Morrisroe, Sophie Calle,

Cindy Sherman, dentre outros que se utilizaram da vida íntima como temática de

Page 9: Mundos Possíveis: Realidade e Ficção na Linha do Tempo

9

investigação para seus trabalhos fotográficos e processos criativos, buscando um

entendimento mais crítico da realidade diária de suas vidas.

A partir dessas inquietações, no ano de 2010, saio do Labfoto e passo a ser

monitor do laboratório fotográfico da Escola de Belas Artes (EBA/UFBA), trabalhando

com Edgard Oliva, professor de fotografia, numa pesquisa que gerou dois cursos

restritos à comunidade UFBA, sendo o primeiro em Fotografia Básica e o segundo em

Fotografia e Estética. Nesse período pude estudar formas de aliar a fotografia ao campo

da arte, podendo ter mais liberdade para experimentação.

A partir dessas novas experiências e das inquietações anteriores, a criação das

imagens passou a estar atrelada ao meu fluxo cotidiano, ritualizando os acontecimentos

diversos através da produção diária que envolvia desde ações performáticas e

interventivas a experimentações artísticas que buscavam formas de diluir a arte dentro

do cotidiano, atento aos instantes e as manifestações do acaso, como também nas

relações oriundas desse encontro com o outro, num misto de arte e vida, privado e

público.

A partir do uso da minha conta pessoal do Facebook como espaço expositivo,

passei a produzir em constante work in progress1, narrativas fotográficas compostas por

ensaios diversos que envolveram ações performáticas, circulando nas redes sociais e

posteriormente transformadas em intervenções urbanas, procurando, a partir dessas

relações, estabelecer reflexões sobre temas como representação e identidade, realidade e

ficção, cultura e poder.

Como o uso da plataforma virtual influencia meu processo criativo e

investigativo dentro da fotografia? A fotografia poderia acompanhar os processos de

construção da identidade? Como a fotografia poderia ser aliada a outras linguagens

artísticas numa tentativa de buscar novas formas de concepção, produção e

experimentação? Essas são algumas questões que nortearão o meu relato de experiência

que entremeia espaços reais e virtuais, públicos e privados.

1 Termo associado a trabalhos em andamento.

Page 10: Mundos Possíveis: Realidade e Ficção na Linha do Tempo

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2. O TEMA

2.1. Facebook como plataforma de criação, circulação e experimentação artística

fotográfica

Desde 2011, utilizo a rede social Facebook como uma plataforma expositiva de

imagens fotográficas produzidas a partir de experimentações artísticas envolvendo

fotografia e performance, entremeando e convocando no espaço virtual, narrativas

fotográficas que investigam e trazem em questão temas como representação e

identidade, realidade e ficção. A partir desses usos específicos, tanto da fotografia,

quanto da rede social, pude estabelecer conexão e interatividade com uma rede de

amigos e interlocutores que influenciaram e participaram ativamente da produção

fotográfica que passou a ganhar forma a partir do seu caráter relacional.

O Facebook foi fundado em fevereiro de 2004 por Mark Zuckerberg e seus

colegas de faculdade: Eduardo Saverin, Dustin Moskovitz, Chris Hughes e Andrew

McCollum, estudantes da Universidade de Havard em Massachusetts, Estados Unidos.

Segundo Zuckerberg, a rede social foi concebida, originalmente, como uma ferramenta

de comunicação e interação, “baseada em relações reais entre os indivíduos e que

proporciona fundamentalmente novos tipos de interação” (KIRKPATRICK, 2011,

p.20). A composição da rede inclui as mais diversas gerações, geografias, idiomas e

classes sociais. No Facebook, qualquer usuário que declare ter pelo menos 13 anos,

pode se tornar usuário registrado do site. Os usuários devem se registrar, e após isso,

podem criar um perfil pessoal, adicionar outros usuários como amigos e trocar

mensagens privadas e públicas, incluindo notificações automáticas quando atualizam o

seu perfil.

Segundo uma matéria publicada no jornal Folha de São Paulo no dia 28 de

janeiro de 20152, atualmente o Facebook atingiu o número de 1,39 bilhão de usuários

ativos, sendo que 890 milhões acessam diariamente, e 754 milhões, pelo celular. De

acordo com o livro O Efeito Facebook (2011) de David Kirkpatrick, jornalista de

tecnologia da revista Fortune de Nova York, “a rede social põe as pessoas em contato

em torno de algo que tenham em comum: uma experiência, um interesse, um problema

ou uma causa” (2011, p.15). Além disso, “no Facebook, todos podem ser editores,

2 In http://www1.folha.uol.com.br/tec/2015/01/1581963-facebook-supera-estimativa-de-receita-de-

analistas-usuarios-ja-sao-14-bi.shtml Acessado em 18 de maio de 2015.

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criadores de conteúdo, produtores e distribuidores” (Ibidem, p.15). O software do

Facebook imprime uma característica viral à informação, difundindo em larga escala, o

que antes era privilégio da mídia eletrônica – rádio e televisão.

O Facebook possui uma linha do tempo (timeline) onde é possível ver todo o

material publicado por um perfil. Esses materiais - fotos, histórias e experiências - são

organizados pela data da publicação mais recente, sendo disponibilizado no perfil, o

desenho de uma linha vertical, onde o usuário pode encontrar sua vida de forma

cronológica, desde o “nascimento” até o momento presente. O feed de notícias é a lista

contínua de atualizações da página inicial que mostra as novidades de seus amigos e das

páginas que você segue. Além disso, o Facebook dispõe das opções “curtir”,

“comentar” e “compartilhar”, recursos onde os usuários podem tornar público as suas

opiniões acerca de certos conteúdos, tais como atualizações de status, comentários, fotos

e links compartilhados por amigos, sendo essa a maneira de interação na rede social.

As imagens fotográficas que são postadas na linha do tempo da minha conta

pessoal do Facebook3 são acompanhadas de uma legenda informativa composta por data

e local, e em alguns casos, o nome da pessoa fotografada, que aparece geralmente

através de uma “marcação” com o link do seu perfil na rede. Na linha do tempo, as

imagens ficam disponíveis sem qualquer organização de pastas, álbuns ou categorias,

intercalando, com isso, os diferentes momentos e fases da minha vida com os distintos

processos e projetos artísticos que a compõe.

Este tipo de experiência com a utilização da plataforma, com seus recursos

técnicos e o papel simbólico que desempenha no contexto atual, me possibilita pensar

em qualidades próprias das imagens na contemporaneidade, na qual as telas de

computador e dispositivos móveis aparecem como importante espaço expositivo. O

Facebook é nessa experiência um veículo de circulação, uma rede digital global, na qual

há a possibilidade de que sejam visualizadas as imagens, não só pela minha rede de

amigos, mas também pela rede das pessoas fotografadas, estabelecendo, com isso,

diálogos diversos que entremeiam e interligam as redes a partir de uma produção

fotográfica, cujo modo de composição mesclam o cotidiano e a criação, aliando em

algum sentido arte e vida.

3 Link da minha linha do tempo no Facebook:

https://www.facebook.com/alex.oliveira.5070/media_set?set=a.153836151296089.33064.1000000911666

36&type=3

Page 12: Mundos Possíveis: Realidade e Ficção na Linha do Tempo

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Desta forma, “nas redes, as imagens não estão jamais sozinhas ou isoladas como

nas paredes de uma galeria ou nas páginas de uma revista, elas se inscrevem em

contiguidades aleatórias assignificantes, mas que todavia agem entre si” (ROUILLÉ,

2013, p.34). Com isso, vale ressaltar que o fluxo informacional do feed de notícias da

rede social, com suas características específicas de quantidade, velocidade e atualização,

afetaram de múltiplas formas o fluxo narrativo das imagens fotográficas, que passaram

a atuar de forma descontínua, emaranhada e complexa, coabitando no organismo vivo

da rede digital a partir de procedimentos diversos de experimentação adotados durante a

pesquisa.

Desta maneira, as imagens fotográficas inicialmente foram sendo publicadas no

Facebook a partir da quantidade de pessoas online, observando como acontecia a

recepção a cada dia da semana. Com o passar do tempo, estabeleci outros

procedimentos, chegando a publicar de uma em uma hora, por um período que se

estendeu durante um ano. Por fim, passo a publicar uma foto por dia, sendo este o

procedimento que mantenho até o presente momento.

Desta forma, neste fluxo constante de distribuição, passo a buscar novas formas

de concepção e produção, aliando o procedimento fotográfico à arte contemporânea e

convocando estratégias que se projetaram na sociedade da informação. É importante

lembrar que no Facebook, a partir de algumas “curtidas”, uma imagem pode retornar ao

feed de notícias, convocando e colocando em conjunto diferentes temporalidades, num

jogo de forças complexas que alteram, atualizam e ressignificam as fotografias, que

passam, com isso, a ser retroalimentadas pelos usuários e interlocutores da rede social.

A inserção de fotografias em uma rede social, como o Facebook, pode ser

pensada na perspectiva que Arlindo Machado, doutor em comunicação e professor da

PUC-SP e da ECA-USP, propõe no seu livro Arte e Mídia:

a questão mais complexa é saber de que maneira podem se combinar,

se contaminar, se distinguir arte e mídia, instituições tão diferentes do

ponto de vista das suas respectivas histórias, de seus sujeitos ou

protagonistas e da inserção social de cada um. (MACHADO, 2007,

p.8 e 9)

Machado destaca o fato de que “a apropriação que a arte faz do aparato

tecnológico que lhe é contemporâneo difere significamente daquela feita por outros

setores da sociedade, como a indústria de bens de consumo”. (MACHADO, 2007,

Page 13: Mundos Possíveis: Realidade e Ficção na Linha do Tempo

13

p.10). Diante disso, afirma ser possível uma completa reinvenção dos meios a partir dos

usos feitos pela arte, conseguindo, com isso, distorcer as suas funções simbólicas e

explicitar seus mecanismos de controle e sedução.

No artigo A fotografia na tormenta das imagens (2013), André Rouillé,

professor da Université Paris-8, diz que o cenário da atualidade se apresenta através da

profusão e aceleração na produção de imagens (que não cessa de crescer) e dos novos

dispositivos (de se multiplicarem), gerando mudanças nas ferramentas, materiais,

modos de produção, usos, economias, mas também de olhares, estéticas e regimes de

verdade.

Sendo assim, para Rouillé, a fotografia na contemporaneidade, passa por uma

mudança de natureza e paradigma, deixando de lado o seu regime químico industrial e

passando a um regime digital informacional, se adaptando, com isso, aos regimes de

produção, circulação e visibilidade, oscilando entre um passado recente e um futuro

próximo e deslocando-se de registro da expressão-representação para informação-

comunicação.

Em outro registro, Andreas Müller-Pohle, teórico e fotógrafo alemão, traz no seu

texto Estratégias da Informação (1980), a ideia de que a fotografia desempenhou um

papel central na mudança de paradigma estético da modernidade, levando à substituição

da noção de beleza pela de informação como principal atributo da criação artística.

Sendo assim, “neste tipo de sociedade, produção, distribuição e consumo perdem, ao

final, seu caráter institucionalizado e se tornam partes integrais de funções e relações”

(MÜLLER-POHLE, 2009, p.23), implicando, desta forma, numa estrutura de natureza

dialógica.

Ainda sobre o tema, segundo Müller-Pohle, a fotografia instruiu a arte com o

critério da informação. Diante disso, a produção fotográfica contemporânea passaria a

ser regulada por uma estratégia autoral, ou seja, a criação de uma estratégia de

informação baseada em critérios autodeterminados em termos de conteúdo, espaço e

tempo. Deste modo, esse novo regime operacional associado ao dispositivo fotográfico,

faz com que a fotografia incorpore em sua natureza as noções de velocidade,

mobilidade, simultaneidade, flexibilidade, perda da origem, mixagem, falsidade, etc.

Page 14: Mundos Possíveis: Realidade e Ficção na Linha do Tempo

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Recapitulando, podemos dizer que com o uso do Facebook, a produção

fotográfica é afetada por seus valores de quantidade, velocidade e atualização, passando

a incorporar e se apropriar do fluxo das redes digitais e estabelecendo, com isso,

estratégias específicas de entrecruzamento de usos e necessidades, de resistência e

dilatação das experimentações artísticas dentro da vida, mudando seu estatuto e alcance,

e configurando outras possibilidades de inserção social.

No seu livro Estética Relacional (2009), Nicolas Bourriaud, escritor, crítico de

arte e curador, apresenta e evidencia o interesse de muitos artistas dos anos 1990 em

articular arte e vida a partir de noções interativas, conviviais e relacionais, consistindo

assim, num complexo jogo dos problemas da nossa época. Bourriaud diagnostica que o

artista passa a inventar “modelos de sociabilidade”, enfatizando os vínculos que a obra

estabelece com o público.

Desta forma, “o artista concentra-se cada vez mais decididamente nas relações

que seu trabalho irá criar em seu público ou na invenção de modelos de sociabilidade”.

Ou seja, “todos os modos de contato e de invenção de relações, empreendidas por esses

artistas, representam hoje objetos estéticos passíveis de análise enquanto tais”

(BOURRIAUD, 2009, p.40). Com isso, a intersubjetividade e a interação se tornam

ponto de partida e de chegada, ou seja, modos operacionais capazes de dar forma à

atividade artística.

Walter Benjamin no seu texto A obra de arte na era de sua reprodutibilidade

técnica (1955), afirma que “no momento em que o critério da autenticidade deixa de

aplicar-se à produção artística, toda a função social da arte se transforma. Em vez de

fundar-se no ritual, ela passa a fundar-se em outra práxis: a política”. (BENJAMIN,

1955, p.171 e 172). Com isso, Benjamin defende a ideia de que, na sua essência, uma

obra de arte sempre foi reprodutível, e que a reprodução técnica da obra de arte

representa um processo que vem desenvolvendo na história intermitentemente, através

de saltos separados por longos intervalos, mas com intensidade crescente.

Deste modo, a obra de arte se emancipa de suas características tradicionais de

aura e valor de culto, e passa a estar atrelada a transitoriedade e a repetibilidade e a

noção de exposição. Diante disso, Benjamin (1955, p.180) defende que “a arte

contemporânea será tanto mais eficaz quanto mais se orientar em função da

reprodutibilidade e, portanto, quanto menos colocar em seu centro a obra original”.

Page 15: Mundos Possíveis: Realidade e Ficção na Linha do Tempo

15

Com isso, “pensa-se não apenas em termos de processos de produção, ou seja,

em termos estéticos, mas igualmente em termos de categorias público-políticos”.

(MÜLLER-POHLE, 2009, p.20). Ou seja, “a estratégia central de distribuição é, por

analogia, a encenação do meio: as maneiras pelo qual o próprio produtor forma, constrói

ou arranja os canais de distribuição” (MÜLLER-POHLE, 2009, p.20). É preciso frisar,

que, neste caso, o produtor aqui é o fotógrafo, cujas atividades são consequentemente

expandidas, passando a funcionar todavia como um agenciador, um mediador de

eventos e acontecimentos. Deste modo, o fazer fotográfico passa a ser gerido por

experiências que entrelaçam uma trama relacional de encontros, afetos, percepções e

ações, que ativam o sujeito no espaço, tanto social, quanto virtual, organizando, a partir

disso, suas vivências.

Levando em consideração esses aspectos, a obra fotográfica Cartografia dos

Afetos, realizada em maio de 2013, na cidade de Paulo Afonso (BA), é um bom

exemplo a se apresentar como uma das proposições artísticas realizadas a partir da

utilização do Facebook como plataforma de criação e experimentação artística

fotográfica. Nesta obra, as imagens fotográficas foram produzidas a partir do encontro

virtual pelo Facebook com duas meninas de Paulo Afonso, através de sugestão de

amigos em comum, sendo, posteriormente, recebido na casa de uma delas durante

alguns dias de passagem pela cidade. A partir do nosso encontro, construímos, em

conjunto, as imagens que integraram o projeto.

Paola De Mori e Driele Mutti já conheciam meu trabalho pela rede social. Paola

é escritora e Driele é fotógrafa. As duas formam um coletivo artístico, conjuntamente

com Poliana Matos e Tarcila Maica, outras duas garotas da cidade. O coletivo Despir

investiga o uso da fotografia, corpo, identidade e poesia nos seus encontros e

proposições artísticas. Com isso, propus para elas uma caminhada pela cidade,

pensando no deslocamento como possibilidade para criação artística, possibilitando que

pudéssemos trocar experiências e produzir, durante os percursos, imagens que

buscassem relações entre corpo e espaço, realidade e ficção.

Page 16: Mundos Possíveis: Realidade e Ficção na Linha do Tempo

16

Figura 1 – Print da fotografia publicada no Facebook em maio de 2013, Paulo Afonso, Bahia.

As fotografias foram publicadas no Facebook, interligando as nossas redes e

mantendo-nos em contato. Um ano depois, retornei as publicações feitas no Facebook e

fiz o Print Screen das fotografias na plataforma, propondo, posteriormente, a realização

de intervenções urbanas através de colagens das fotografias “printadas” por lugares

diversos da cidade, utilizando a técnica do lambe-lambe4, pertencente ao universo da

Street Art5.

A proposta artística foi selecionada e financiada pelos Salões de Artes Visuais

de Paulo Afonso, organizado pela Fundação de Cultural do Estado da Bahia, sendo

realizada na cidade em setembro de 2014 e tendo recebido a Menção Especial pelo júri.

Com o prêmio, pude expor Cartografia dos Afetos, posteriormente, na Edição Especial

dos Salões de Artes Visuais da Bahia, realizada em dezembro de 2014 na cidade de

Salvador por diversas ruas da cidade (Figura 7) e na Capela do Museu de Arte Moderna

(Figura 6).

4 Técnica de colagem cujo nome advém da ação feita com o pincel e o uso da cola caseira, utilizada para

aderir pôsteres de imagens em superfícies diversas, sendo considerada uma das linguagens da arte urbana

contemporânea. 5 Denominação cunhada a partir de um conjunto de experimentações nas artes realizadas na rua e no

espaço público urbano. Apesar de ser uma expressão recorrente, ela não sintetiza a multiplicidade das

ações artísticas desempenhadas no contexto da cidade.

Page 17: Mundos Possíveis: Realidade e Ficção na Linha do Tempo

17

Dessa maneira, pude transportar para o espaço urbano a plataforma virtual e

investigar as possibilidades de desdobramentos e tensões existentes, trazendo em

evidência o cotidiano, o acaso, os encontros e afetos e emaranhando imagens

fotográficas que trazem em questão realidade e ficção. Em Paulo Afonso, a exposição

coletiva aconteceu no Espaço Cultural Raso da Catarina e teve duração de um mês6.

Figura 2 - Lambe-lambe e Mapa expostos em Paulo Afonso (BA) em setembro de 2014.

Durante as andanças pela cidade em busca dos possíveis muros para as colagens,

percebo algo que já havia notado na minha visita anterior e que foi recorrente durante a

busca por locais para as composições das fotografias: a presença de muitas ruínas. Essa

fotografia acima (Figura 2) foi produzida dentro do antigo restaurante da Chesf, que se

encontrava, na época, em total abandono, tendo toda a sua extensão do teto desabado

pelo local. As paredes com cerâmicas coloniais ainda resistiam. Fiz um autorretrato

dentro do restaurante utilizando um tripé e o temporizador da câmera fotográfica.

Apareço segurando um álbum antigo de fotografias em frente ao meu rosto, sendo

possível perceber, através da imagem feita por uma grande angular, como estava a

situação atual do local.

Assim, com o passar do tempo, um acontecimento alterou essa fotografia: o

restaurante da Chesf havia sido demolido. A partir disso, escolho essa imagem para ser

6 As fotografias da obra “Cartografia dos Afetos” foram impressas a laser, divididas em folhas de A3,

tendo tamanhos diversos que variavam de 1,26 x 0,85 cm a 2,08 x 1,56 m.

Page 18: Mundos Possíveis: Realidade e Ficção na Linha do Tempo

18

exposta dentro do Espaço Cultural, convocando memórias diversas e evidenciando essa

informação que ainda era muito recente. As outras imagens foram espalhadas pela

cidade, passando a ser incorporadas ao fluxo cotidiano (Figuras 3, 4 e 5). Busquei, a

partir da escolha dos locais para a colagem, evidenciar as ruínas e os locais

abandonados, dialogando e buscando espalhar as narrativas fotográficas por ruas

diversas em torno do Espaço Cultural, sendo possível identificar as colagens a partir de

um percurso sugerido através de um mapa colado ao lado da imagem exposta na galeria,

indicando, dessa maneira, onde as colagens foram realizadas.

Figura 3 – Av. Otaviano L. de Moraes, Paulo Afonso, Bahia. Figura 4 - Rua 31 de março, Paulo Afonso, Bahia.

Figura 5 - Rua Marechal Castelo Branco, Paulo Afonso, Bahia.

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19

Em suma, como cita Rouillé no seu livro A Fotografia entre documento e arte

contemporânea:

a fotografia utilizada por alguns artistas na contemporaneidade, é vista

a partir de uma estética relacional que propõe um jogo de operações

entre os encontros, trocas, percepções, ações e afetos, convocando,

com isso, outros regimes de verdade, outros usos das imagens, outros

conhecimentos técnicos, outras práticas estéticas, novas velocidades e

novas configurações territoriais e matérias. (2009, p.455)

Com isso, as imagens fotográficas se inscreveram numa interação dinâmica, na

qual, “fotografar e dialogar convergem aqui, para a pesquisa, hesitante e sempre

singular, da distância conveniente com o Outro” (ROUILÉ, 2009, p.432). Desta

maneira, a produção artística fotográfica se propõe a convocar e construir uma

proximidade e uma troca, além das diferenças e a partir delas, enriquecendo-se das

disparidades e adaptando seus métodos e ritmos aos do Outro.

Em outras palavras, Bourriaud defende que

a imagem contemporânea caracteriza-se justamente pelo seu poder

gerador: não é mais traço (retroativo), mas programa (ativo). Aliás, é,

sobretudo, esta propriedade da imagem digital que dá forma à arte

contemporânea. (2009, p.97)

Assim, a fotografia estaria associada a “um programa a ser executado, um modelo a ser

reproduzido, um convite à criação de si mesmo ou à ação” (2009, p.97 e 98). Diante

disso, a câmera fotográfica torna-se um instrumento de interpelação das pessoas, ou

seja, um dispositivo relacional, passando a estar atrelada aos encontros e experiências e

estabelecendo, com isso, um espaço múltiplo no qual o contexto é, ao mesmo tempo,

seu assunto e projeto.

Figura 6 - Alex Oliveira, Salvador, Dezembro, 2014. Figura 7 - Alex Oliveira, Salvador, Dezembro, 2014.

Page 20: Mundos Possíveis: Realidade e Ficção na Linha do Tempo

20

3. A FOTOGRAFIA

3.1 Fotografia e Arte Contemporânea

A fotografia esteve associada historicamente, desde o daguerreótipo

até a sua vertente documental moderna, ao papel de documento e

comprovação do real, ou seja, de reflexo e reprodução da realidade.

Contudo, qualquer olhar atento logo perceberá que a fotog rafia não é um

simples reflexo da realidade. O ato de fotografar exige as mais diversas

tomadas de decisão e regimes de visibilidade, que convocam a interpretação,

percepção e sensibilidade do operador, características que são elementares

durante a mediação entre o homem e o mundo através da câmera fotográfica.

É importante lembrar que a fotografia viveu um longo período de

embate no campo das artes, no qual tentou ser reconhecida de múltiplas

maneiras, podendo citar como exemplo o movimento Pictorial ista (1890-

1914), período no qual a fotografia desejou “se fazer pintura” através de

experimentos manuais que alteravam a granulação e os tons da imagem.

Entretanto, foi somente no século XX, durante a transição entre a arte

moderna e a arte contemporânea, que a fotografia passa a ser aceita como

arte, para além da pintura e escultura.

Numa palestra realizada em agosto de 2007 durante o FotoRio7, André

Rouillé defendeu a ideia de que a fotografia se inseriu no fazer artístico de

duas formas: tanto como ferramenta, quanto como vetor da arte . Desta

maneira, como ferramenta, a fotografia era utilizada, no caso da pintura, ora

como elemento ativo do processo de produção da obra, como se faz ver na

obra de Francis Bacon, ora como elemento principal e inédito, co mo o fez

Andy Warhol durante a Pop Art, sendo que, neste último caso, a fotografia

era um elemento essencial para a despictorialização da arte8.

7 FotoRio – Encontro Internacional de Fotografia do Rio de Janeiro, que passou a ser anual a partir de

2014. Segundo Milton Guran, Coordenador Geral, o encontro atua como agente aglutinador, estimulando

a exposição e discussão de trabalhos históricos e contemporâneos da fotografia brasileira e internacional. 8 Movimento artístico proposto, segundo Rouillé, com o intuito de desvencilhar a arte da esfera da

pintura, ou seja, de reduzir o lugar da pintura na arte. Assim, com o uso da fotografia e da serigrafia, há

uma abertura a criação artística a partir de processos de produção industrial em série, passando a ter,

consequentemente, um consumo de massa.

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21

Já como vetor, a fotografia servia para dar suporte material a

determinados fazeres artísticos como a bodyart, a arte conceitual, a landart

e a arte corporal, que trabalhavam numa perspectiva de aproximar o fazer

artístico da vida. Deste modo, com as práticas artísticas expandindo seu

campo de atuação, “onde antes havia pinturas e esculturas, agora havia itens

de documentação, mapas, fotografias, listas de instruções e informações”

(ARCHER, 2001, p.78).

Deste modo, no livro Arte Contemporânea: Uma História Concisa

(2001), Michael Archer, crítico e escritor de arte, enfatiza que neste período

de expansão e experimentação, a arte começa a dar ênfase aos seus

processos de feitura, deslocando-se da sua produção final para olhar os

fenômenos do mundo de um modo “artístico”. É justamente nesse período

que é dado enfoque ao corpo do artista, que passa a ser utilizado como

matéria para as suas criações oriundas de experiências que buscavam

reconectar a arte com a vida num sentido plenamente político.

Com isso, segundo Rouillé, no livro A fotografia entre documento e

arte contemporânea (2009) , a partir dos anos 1980, a fotografia torna-se um

dos principais materiais para a arte contemporânea, sendo utilizada por uma

infinidade de artistas que se aproveitam do seu material mimético e

tecnológico para questionar e problematizar o real. É important e evidenciar

que “as coisas, os estados das coisas e os eventos do mundo compõem o

material inscritível da fotografia, então, as imagens e o mundo cessam de

ser externos para se interpenetrarem” (ROUILLÉ, 2009, p.338). Em resumo,

a fotografia adquiria um lugar importante na arte por razões ligadas às

profundas evoluções, tanto da fotografia, quanto da arte e do mundo.

Sendo assim,

passando do instrumento ao material, os artistas libertam a

fotografia das servidões da transparência documentária,

adotam essa transparência como um traço artisticamente

pertinente das obras ou, ainda, usam como objeto da sua

obra e interrogam a própria fotografia. (ROUILLÉ, 2008,

p.14)

Assim, a arte contemporânea atrelada a temas ligados ao cotidiano, ao

corriqueiro, familiar e trivial, passa a se utilizar da fotografia como seu

Page 22: Mundos Possíveis: Realidade e Ficção na Linha do Tempo

22

local de conteúdo e expressão, atribuindo ao fazer fotográfico “novas”

necessidades e valores e alterando, com isso, seus regimes de visualidade e,

consequentemente, seus modos de escrita e pensamento.

Assim, Susana Dobal, fotógrafa e professora da Universidade de

Brasília, ajuda-nos a complementar este pensamento ao afirmar que a

fotografia passou por uma grande mudança:

não só por causa das transformações técnicas que

aumentaram as possibilidades de apreensão e de divulgação

da imagem, mas pela evidência de que a fotografia constitui

uma espécie de escrita com nuances próprias que a afastam

do mero registro do real. (DOBAL, 2013, p.76)

Nesta perspectiva, a fotografia contemporânea deixa de lado a ideia

de reprodução de um real dado e passa a ser associada como uma

possibilidade de criação e interpretação de realidades, atuando como uma

atividade artística deliberada que inverte e embaralha as suas características

miméticas.

Outro autor que traz um ponto de vista importante é Ronaldo Entler,

fotógrafo, doutor em artes pela ECA-USP e professor da Faculdade de

Comunicação e Artes da FAAP, que no seu artigo Um lugar chamado

fotografia, uma postura chamada contemporânea (2009 ), defende que a

fotografia contemporânea é híbrida, se envolvendo com outras linguagens

artísticas e assumindo, desta maneira, suas possibilidades de trânsito e

reconfiguração de estatuto. Deste modo, o problema-chave abordado na

fotografia contemporânea seria a ideia de que certas realidades se constroem

juntamente com suas formas de representação.

Entler destaca ainda que a fotografia contemporânea,

mais do que ser um procedimento, uma técnica, uma

tendência estilística, ela é uma postura, um pensamento e

um diálogo que se desdobra em ações diversificadas, tendo

como ponto de partida, a tentativa de se colocar de modo

mais consciente e crítico diante do próprio meio. (2009,

p.31)

Em consequência, é importante frisar que a fotografia é, para ele,

um modo de existir das coisas e se estabelece em profundo

diálogo com olhar do público, que por sua vez aprendeu a

Page 23: Mundos Possíveis: Realidade e Ficção na Linha do Tempo

23

relacionar-se com o mundo através de sua mediação. (2009,

p.32)

Por isso mesmo, “o que é captado pela câmera não é o mundo, mas

uma determinada construção do mundo, justamente aquela que a câmera e

outros aparatos tecnológicos estão programados para operar” (MACHADO,

2003, p.67). Com isso, no artigo O Filme-ensaio (2003), Arlindo Machado,

doutor em Comunicação e professor da ECA-USP e da PUC-SP, evidencia

outro fator importante que é o destaque dado ao sujeito operador do

equipamento fotográfico, que passaria aqui a ser mais ativo durante o

processo de concepção, produção e circulação das imagens fotográficas,

ganhando, com isso, mais autonomia, expressividade e liberdade de

pensamento.

Diante deste cenário, numa busca por novas formas e maneiras de

como as coisas pudessem ser fotografadas e também por novas temáticas

para os ensaios fotográficos, dei início às experimentações com a fotografia

no campo da arte contemporânea, aliando, inicialmente, a produção

fotográfica a minha vida íntima e dando atenção ao banal, ao familiar e ao

trivial, intituladas por Rouillé (2009, p.357) como as partes baixas do real,

que se inscreveram num grande movimento de dessublimação9 e de

dessacralização10

da arte.

Diante desses pressupostos, disponho a minha casa aos encontros e

trocas, transformando ainda inconscientemente, o espaço caseiro numa

espécie de residência artística, assumindo o fazer fotográfico como um

processo em curso que agregou e incorporou as investigações artísti cas que

eram desempenhadas diariamente, tanto por mim, quanto pelos meus

amigos: jovens que buscavam dar sentido às suas vidas e construir novas

relações e formas de estar no mundo.

Neste contexto, os acontecimentos diários, oriundos dos acasos,

vivências e compartilhamentos, se tornaram matéria artística para as

9 Movimento artístico que ocorreu a partir dos anos 1970 e consistiu num ato ou efeito de dessublimar,

anular ou reduzir o caráter do sublime na arte. 10 Ato ou efeito de dessacralizar, ou seja, tirar ou perder o caráter sagrado que anteriormente era associada

ao fazer artístico.

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24

produções fotográficas que eram produzidas e comparti lhadas na rede social

(Figuras 8 e 9).

Figura 8 - Alex Oliveira, Aurora Descoberta, Salvador, 2011. Figura 9 - Alex Oliveira, Aurora Descoberta, Salvador, 2011.

Diante disso, os diversos procedimentos adotados foram entrelaçados

por diferentes práticas que envolviam desde a observação minuciosa do

espaço e da luz (que iam sendo catalogados e fotografados) até as

composições fotográficas que tinham como pressuposto as relações entre o

sujeito da foto e os diferentes espaços da casa , tudo isso em conjunto com

um pensamento e atitude ligados a bricolagem de elementos e objetos

diversos.

Um dos locais mais utilizados da casa foi a laje, espaço que permitia

que os experimentos e vivências pudessem ser compartilhados com os

demais moradores e vizinhos (Figura 10). Desta maneira, a fotografia

passava a registrar os diversos momentos e emoções que circundavam meu

cotidiano, como o sono, o almoço, as conversas e os momentos de felicidade

e melancolia.

Desta maneira, esses acontecimentos recortados pela fotografia, por

mais cotidianos que fossem, adquiriam através das apropriações feitas pela

arte, um significado estético, que foi desenvolvido de forma deliberada e

despretensiosa, sendo incorporada ao fluxo do tempo e das experiências ,

coincidindo temporalmente com a minha vida e, espacialmente, com o

entorno em que essa vida era vivida.

Page 25: Mundos Possíveis: Realidade e Ficção na Linha do Tempo

25

Figura 10 - Alex Oliveira, Aurora Descoberta, Salvador, 2011. Figura 11 - Alex Oliveira, Aurora Descoberta, Salvador, 2011.

Lucas Moreira (Figuras 8, 9 e 11), hoje mestrando em Arquitetura e

graduado em Ciências Sociais e Antropologia, foi um dos colaboradores

mais frequentes desse período, que se estendeu por um ano (2011-2012)

dentro da Vila Eliseu, uma comunidade que é também conhecida como

“Ratoeira” e fica localizada no Canela , bairro do centro de Salvador, Bahia.

As imagens desse fabulário cotidiano11

, além de serem compartilhadas

no Facebook, num jogo entre privado e público , compôs a minha primeira

exposição individual realizada em agosto de 2011 na Aliança Francesa de

Salvador. A exposição teve curadoria de Edgard Oliva, professor de

fotografia da Escola de Belas Artes da UFBA, e recebeu o nome de “Aurora

Descoberta”, uma junção do nome da minha mãe com a descoberta da

potência de ter o conceito de família expandido a partir dos encontros e

trocas estabelecidas com meus amigos.

Vale lembrar, que mesmo inconscientemente, já era possível notar em

algumas imagens desse período, um tom performativo nos corpos que eram

retratados. Moreira, mais adiante, assumiria a performance como linguagem

artística (Figura 12), tendo seu corpo como matéria para a criação de ações

que desempenharia em diferentes contextos e espaços, sejam eles públicos

ou privados, utilizando-se tanto da fotografia, quanto do vídeo como formas

de registrar suas ações.

11 Termo inspirado no livro Fabulário Geral do Delírio Cotidiano de Charles Bukowski, poeta e escritor

alemão, que norteou, nesse período, o meu processo criativo e, consequentemente, a produção de algumas

das séries fotográficas.

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26

Figura 12 - Alex Oliveira, S/Título, Salvador, Fevereiro de 2013.

Desta maneira, essas experiências compartilhadas se revelaram de

grande importância e experimentação, estabelecendo-se em paralelo aos

nossos ritos de passagem ligados a investigação da identidade e do gênero,

tendo na prática fotográfica um lugar de registro e compartilhamento,

compondo, com isso, o nosso plano de vivência.

O curador Edgard Oliva apreendeu muito bem esse espírito coletivo

no texto12

que apresenta a exposição:

tudo tem um quê de princípio descoberto, de benevolência

distribuída, de uma juventude que se re -inventa

constantemente criando personas que funcionam como um

antídoto para a realidade (2011).

3.2 Fotografia e Performance

Nesse emaranhado de experiências vividas com a fotografia, Michelle

Mattiuzzi (SP) e Ricardo Alvarenga (MG), artistas da performance,

participaram e colaboraram ativamente dos meus processos de

12 No site da exposição é possível acessar o texto na íntegra: https://auroradescoberta.wordpress.com/

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27

experimentação, tornando-os ainda mais complexos a partir dos

imbricamentos possíveis entre fotografia e performance, e despertando,

consequentemente, o meu interesse pela utilização e investigação do corpo

como matéria para as criações artísticas. Nas páginas seguintes, passo a

relatar as relações estabelecidas com estes dois artistas, indispensáveis para

a realização do meu trabalho e para as contaminações artísticas que

ocorreram a partir do nosso contato diário.

Figura 13 - Alex Oliveira, S/Título, Salvador, Outubro, 2012. Figura 14 - Alex Oliveira, S/Título, Salvador, Setembro, 2012.

Figura 15 - Alex Oliveira, Jesus 3:30pm de Ricardo Alvarenga, Salvador, Fevereiro, 2013.

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28

3.2.1. Michelle Mattiuzzi

Michelle Mattiuzzi é pesquisadora do corpo, mestranda da Escola de

Belas Artes da UFBA e graduada em Comunicação e Artes do Corpo pela

PUC-SP. Antes de tentar mestrado na Bahia, Mattiuzzi veio morar em

Salvador, e através de amigos em comum, passamos a dividir a casa da Vila

Eliseu, incorporando ao ato fotográfico muitas das suas ações performáticas.

Figura 16 - Alex Oliveira, S/Título, Vila Eliseu, Salvador, Novembro, 2011.

Assim, o espaço que outrora norteava as minhas investigações com a fotografia,

passa a servir para compor e ambientar as ações performáticas de Mattiuzzi, que traziam

em evidência a instauração do seu corpo como matéria para a criação artística,

convocando, assim, diferentes signos históricos, sociais, culturais, políticos e estéticos

(Figuras 16 e 17).

No texto Breviário sobre uma ação performática: só entro no jogo! (2013)13

,

Mattiuzzi traz alguns relatos pessoais da sua experiência inicial na Bahia e,

consequentemente, dos diálogos que estabeleceu com a cidade através do seu fazer e

viver performance. Num deles, a performer enfatiza:

13

Para acessar o relato de experiência na íntegra: http://performatus.net/breviario/

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29

Sou uma forasteira nesse lugar, faz menos de seis meses que vivo

aqui, qualquer movimento/ação/intenção que muda o cotidiano

provoca alteração no espaço e aumenta a capacidade de

diálogo/comunicação com as pessoas que vivem nele. (MATTIUZZI,

2013, p.33)

A “Musa Mattiuzzi” - como ela se autodenomina depois do seu encontro em São

Félix (BA) com o coletivo GIA (BA) no 3º FIAR, Festival de Intervenções e Artes do

Recôncavo, desenvolve ações performáticas nas quais, tem como condição o seu corpo

nu, exposto por diferentes locais e contextos, sejam eles virtuais ou reais, públicos ou

privados (Figuras 13 e 14), entrecruzando vida e arte e incitando um posicionamento

político e estético diante das normas vigentes, ou parafraseando a “Musa”, “como

possibilidade de experimentar estados, provocar contaminações, reiterar o caos e gerar

instabilidades de diversos graus” (2013, p. 34 e 35).

No seu Breviário, a Musa relata alguns dos usos que emprega na utilização do

seu corpo como discurso que rege questões em torno da arte, vida e política. “Meu

corpo evidencia minhas características, exibem meu tipo, ou melhor, o estereótipo social

que cabe a mim dentro das classificações sociais” (2013, p.39 e 40); “O meu corpo é a

minha fala e o espaço que ocupo compõe os modos de comunicação”; “Como

performer, utilizo elementos da minha biografia como situação fundamental” (Ibidem,

p. 38); “Além de compor com intenções ideias e experiências, é assim, amontoando vida

e performance, que ando por espaços que constroem e destroem meus afetos, lapidam

minhas memórias e bagunçam minhas escolhas”(Ibidem, p.34), revela a Musa.

E complementa:

Meu corpo se modifica a cada instante de tempo. Meu corpo pulsa.

Meu corpo age, meu corpo performa. Como efetuar deslocamentos de

ações? Como relacionar corpo, estética e política através de

microações? Como criar poéticas com micropolíticas? Como não

falhar, sabendo que isso pode acontecer a qualquer momento? Essas

questões são propulsoras para o planejamento das minhas ações em

arte e vida. Elas pulsam a todo minuto, a todo momento as respostas

saem como outras questões. E muitas vezes elas se tornam ações. Será

que existe apenas uma resposta para a mesma intenção?

(MATTIUZZI, 2013, p.1 e 2)

Deste modo, a partir do nosso encontro, formamos um binômio de necessidades

criativas, emaranhando fotografia e performance e construindo, dessa forma, um

imaginário social, que, compartilhado no Facebook, gerava curiosidade, estranhamento,

Page 30: Mundos Possíveis: Realidade e Ficção na Linha do Tempo

30

repúdio e censura, sendo que , muitas vezes, fomos bloqueados, tendo como punição

ficar sem “postar” por trinta, ou, as vezes, até noventa dias.

Com isso, muitas das vezes, as fotografias que produzíamos eram consideradas

pornográficas, e na rede social, os mecanismos de censura podiam ser colocados em

prática. Ou seja, muitas das performances realizadas em locais diversos para a câmera

fotográfica tinham como recepção e alcance as distintas redes que compunham nossos

perfis no Facebook, entremeando e dialogando com pessoas diversas e tendo como fim

a circulação e a construção de narrativas descontínuas produzidas a partir do contexto

cotidiano.

Figura 17 - Alex Oliveira, S/Título, Vila Eliseu, Salvador, Dezembro, 2011.

3.2.2. Ricardo Alvarenga

Ricardo Alvarenga é mestre em Dança pela UFBA e graduado em Biologia pela

UFU (MG). Em seu percurso artístico, investiu em formações práticas e teóricas em

distintas linguagens das artes do corpo e das artes visuais e se interessa pelas potências

de afecção do corpo e pela arte enquanto ação estética e política. Seus trabalhos se

configuram em proposições realizadas nas interfaces entre performance, intervenção

urbana, dança contemporânea, fotografia, vídeo e instalação.

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Conheci Alvarenga pessoalmente em agosto de 2012 durante os Salões de Artes

Visuais da Bahia, realizado na cidade de Jequié (BA) – minha cidade natal -, e, desde

então, somos parceiros de vida e criação. Sua obra nos Salões foi uma instalação

intitulada Autopoiese que envolvia performance, fotografia e vídeo e se referia a

autoprodução de si como condição natural do ser vivo, operando em natureza cíclica

durante a ação realizada enquanto havia público na galeria.

A performance consistia na manipulação dos cabelos que ora eram esculpidos

como uma bolsa que acondiciona os tufos, ora como uma máscara que realiza um ser

sem face. A cabeça-tufo se transfigura em tufos-cabeça e ambos se produzem

mutuamente. Os tufos presentes no trabalho são emaranhados de cabelos do performer,

recolhidos durante vários anos após a ritualização cotidiana dos banhos. Seu trabalho

teve grande aceitação do público e recebeu um dos três grandes prêmios cedidos pelo

júri dos Salões.

Figura 18 - Alex Oliveira, S/Título, Vale da Lua, Goiás, Novembro, 2012.

A partir disso, passo a experimentar – novamente - a criação de fotografias

envolvendo ações performáticas desenvolvidas a partir do entrecruzamento de arte e

vida. Deste modo, fiz algumas viagens com Alvarenga por Uberlândia (MG), Brasília

(DF), Alto Paraíso (GO), Vila de São Jorge (GO) e Goiânia (GO), estabelecendo

durante o percurso e deslocamento, um jogo compositivo entre fotografia e

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32

performance, no qual por vezes eu fotografava Alvarenga (Figura 18 e 20), noutros

momentos, ele me fotografava (Figura 21), envolvendo ações que buscavam relações

entre corpo e espaço e investigavam as possibilidades de colagens por diferentes

paisagens, vegetações e contextos.

Nesse período, Alvarenga estava com 33 anos de idade e tinha dado início ao seu

projeto Jesus 3:30pm, um trabalho que envolve fotografia e performance e que se

estendeu ao longo do ano de 2012 a 2013. Nele, o performer se vestia de Jesus

diariamente, às 03h30min da tarde, e produzia fotografias de suas ações. O horário da

ação faz menção ao momento da morte de Jesus e do nascimento de Alvarenga.

Trabalhei de forma colaborativa com o performer, produzindo grande parte das

fotografias das suas ações performáticas empreendidas durante a sua “aventura

messiânica” - como é o caso da imagem feita com Alvarenga e Lucio Agra, performer e

professor da PUC-SP, ambos vestidos de “Jesus” e saindo do banheiro público (Figura

15). Outras fotografias foram registradas por ele através do uso do tripé e/ou por

diversas pessoas, como seus familiares, amigos, artistas e desconhecidos, que iam sendo

convidados a participar no decorrer do processo criativo.

Algumas fotografias foram publicadas no seu Facebook, num álbum criado com

o nome do projeto14

, como também, em alguns momentos, no seu perfil e capa, sendo

que a maior parte das fotografias dos seus 365 dias de performance ainda permanecem

inéditas.

Vale relatar o episódio que aconteceu em fevereiro de 2014, quando

participamos conjuntamente do projeto Obranúncio, idealizado por Núbia Neves,

estudante de Cinema e Audiovisual na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. O

projeto foi contemplado em um edital da Fundação Cultural do Estado da Bahia e

realizado em Vitória da Conquista (BA), espalhando pela cidade fotografias artísticas

em placas de outdoor.

Num dos outdoors do Obranúncio foi colocado um tríptico do projeto Jesus

3:30pm, sendo a imagem central intitulada como Paixão de Cristo (Figura 19), na qual

apareço dando um beijo na boca do performer Alvarenga, numa das suas representações

14 Link do álbum Jesus 3:30 pm - one year performance no Facebook:

https://www.facebook.com/provisoriocorpo/media_set?set=a.443385405682736.96104.10000033840449

0&type=3

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33

de “Jesus”. A imagem gerou muita polêmica na cidade e num dia após a sua veiculação

no outdoor, como forma de protesto e repúdio, foi danificada, ou seja, rasgada e

manchada de tinta branca15

.

Figura 19 - Ricardo Alvarenga, Paixão de Cristo, Salvador, Março, 2013.

O projeto passou por diversas cidades do Brasil e convocou diversas reações e

diálogos, instaurando estranhamento e empatia, sendo que, geralmente, grande parte das

pessoas acreditava estar realmente diante do filho de Deus encarnado. Desta forma, a

meu ver, esses acontecimentos performáticos registrados pelo equipamento fotográfico

se apropriavam do caráter testemunhal e descritivo da fotografia e evidenciavam, com

isso, diversas possibilidades de construção de realidades, de ficcionalização do eu e de

narrativas ficcionais.

Desta maneira, através dessa experiência de vivência compartilhada tanto com

Mattiuzzi, quanto com Alvarenga, a performance se revelou por múltiplas vias e formas,

sendo uma linguagem artística com característica híbrida e de difícil definição de

conceito, utilizada, por vezes, como um fazer político, ou melhor dizendo, como uma

prática artística com consciência política e social, sendo elaborada para a reflexão e o

pensamento.

15 Link da matéria sobre a polêmica imagem de “Jesus” no outdoor:

http://conversadebalcao.com.br/tag/obranuncio/ Acessado em 25 de maio de 2015.

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34

3.2.3. Performance Híbrida

Com o projeto Mundos Possíveis: Realidades e Ficção na linha do tempo, a

performance esteve associada ao fazer fotográfico e foi incorporada ao cotidiano, tendo

como ambiente para as suas ações e diálogos, os espaços públicos e privados, reais e

virtuais. Desta forma, pude entender as diferenças estabelecidas entre um registro de

performance – no qual a fotografia é utilizada como um documento, sendo neste caso

mais importante a ação em tempo real, com um público presente, que pode ou não,

participar e interagir durante a ação – e uma ação performática empreendida para o

equipamento fotográfico ou de vídeo - que acontece sem necessariamente ser

compartilhada ao vivo com o público e tem na fotografia a sua finalidade. Sendo que,

neste último, são evidenciadas as características estéticas da fotografia, que passa a ser

trabalhada em conjunto com a ação performática.

Figura 20 - Alex Oliveira, S/Título, Goiás, Novembro, 2012. Figura 21 - Alex Oliveira, S/Título, Goiás, Novembro, 2012.

É importante frisar isso, pois muitos artistas da performance, a partir dos anos

1970, questionaram se uma ação performática deveria ser fotografada, pois acreditavam

que uma fotografia não poderia dar conta de uma ação ao vivo, de um corpo presente.

Ou ainda, que o importante estava na ação, não no que dela ficasse como registro para a

memória.

Segundo Roselee Gordberg, historiadora e crítica de arte, no livro A arte da

Performance (2006), por muito tempo o termo performance foi associado a uma prática

executada em tempo real, que implicava a presença física do corpo do artista. No caso

da fotografia, ela era considerada como um recorte dado desse presente, um ponto de

vista, uma composição do acontecimento, e foi utilizada como um documento que

Page 35: Mundos Possíveis: Realidade e Ficção na Linha do Tempo

35

media, legitima e comprova que uma ação performática aconteceu num determinado

tempo e espaço.

No livro Performance nas artes visuais (2008), Regina Melim, mestre e doutora

em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, defende a necessidade de se pensar

as múltiplas possibilidades de alargamento referente ao termo

performance, cunhado no início dos anos 1970 e praticado a partir de

diferentes formas e denominações durante todo o século passado, e

que, até os dias de hoje é realizado amplamente em diversos meios e

circunstâncias. (MELIM, 2008, p.7 e 8)

Sendo assim, Melim defende que é importante substituir o estereótipo que foi associado

à performance como sendo uma prática que tem um único formato, passando, desta

maneira, a associá-la a um viés mais distendido e associadas a outros meios e suportes.

Deste modo, Melim destaca o envolvimento da performance nas artes visuais a

partir da experimentação de um grande número de artistas do final da década de 1960 e

início dos anos 1970, que direcionavam as suas ações performáticas para o equipamento

de fotografia e vídeo, sem necessariamente terem a presença do público, acontecendo

muitas das vezes dentro dos seus ateliês e utilizando a fotografia muito mais pela sua

impotência, pelo que faltava na imagem, do que por sua capacidade de dar conta do real.

Noutro registro, Melim apresenta o pensamento de Kristine Stiles, historiadora

de arte, curadora e artista especializada em arte contemporânea, no qual Stiles diz que:

performances podem ser desde simples gestos apresentados por um

único artista ou eventos complexos através de experiências coletivas,

envolvendo desde grandes espaços geográficos, até diferentes

comunidades, podendo ser transmitidas via satélite e vistas por

milhares de pessoas, ou se resumir a pequenos espaços íntimos.

(STILES apud MELIM, 2008, pg.38)

Prosseguindo, outra questão importante abordada no livro de Melim é a

participação e o compartilhamento, que segundo a autora, podem ser considerados como

procedimentos igualmente performativos, sendo frequentemente utilizados durante a

execução da pesquisa e se revelaram de grande importância para o caráter processual,

relacional e comunicacional do projeto.

Page 36: Mundos Possíveis: Realidade e Ficção na Linha do Tempo

36

Para tanto, Melim lança a noção de espaço de performação, traduzido como

aquele que insere o espectador na obra-proposição, possibilitando a criação de uma

estrutura relacional ou comunicacional e ampliando a noção de performance como um

procedimento que se prolonga também no participador. Sendo assim, neste caso, temos

“uma obra como deflagradora de um movimento participativo e que existe não como

obra pronta, fechada em si como materialidade silenciosa, mas sobretudo como

superfície aberta e distributiva” (MELIM, 2008, p.61).

Desta maneira, Melim destaca que durante a passagem da arte moderna para a

arte contemporânea, da reavaliação da presença do objeto na arte, não estaria previsto a

sua desmaterialização, pois, acrescida a participação do espectador, com seu gesto

participativo, o objeto seria atualizado.

Page 37: Mundos Possíveis: Realidade e Ficção na Linha do Tempo

37

4. O PROJETO

4.1 Realidade e Ficção na Linha do Tempo

Figura 22 - Alex Oliveira, Revelador H2O2, Itapetinga, Maio, 2013.

Numa entrevista

16 cedida ao programa Jogo de Ideias (2011), Cao Guimarães

(MG), cineasta e artista visual, aborda os processos de criação dos seus filmes e

documentários, que envolvem desde a percepção apurada do cotidiano, deriva e

alteridade, quanto uma disposição ao acaso e às manifestações geradas pela sua

contingência.

Assim, Guimarães dá início à entrevista, afirmando que não precisa sair de casa

para fazer um filme, pois “se você prestar atenção na expressividade das coisas, dos

objetos, das formas, das luzes, das pessoas, dos mosquitos, das bolhas de sabão, das

formigas, ou seja, qualquer assunto é passível de ser transformado em filme”. Pois,

segundo o cineasta, seus filmes são “muito mais processos do fazer do que uma

elaboração anterior de roteiro e ideia, muitas vezes é o caminhar no mundo, o transitar

pelo mundo que é realmente o processo básico das coisas”.

16

Link da entrevista no youtube: https://www.youtube.com/watch?v=SD_Q2coyGdg

Page 38: Mundos Possíveis: Realidade e Ficção na Linha do Tempo

38

Esses trechos descritos acima, já seriam suficientes para elucidar e evidenciar

alguns dos elementos norteadores dos meus processos de criação envolvendo

experimentações diversas com o fazer fotográfico. Entretanto, é quando Guimarães fala

da metáfora do lago trazendo em vista algumas formas possíveis de se relacionar com a

realidade, que, para mim, ele toca em pontos elementares do pensamento da obra

enquanto processo proposição e acontecimento.

Eu fico imaginando essa realidade sempre como uma metáfora de um

lago. Da ideia de quê se esse lago fosse a realidade, existiria três

formas de você se relacionar com ele. Ou você fica sentado no

barranco e tudo o que é gerado pelo lago ou pela realidade é

atravessado em você pela contemplação, pelos seus sentidos, ou seja,

você fica no barranco e tem uma atitude de contemplação com relação

a realidade. Ou você pode lançar uma pedra nesse lago, essa pedra

enquanto uma proposição, um conceito que vai gerar uma turbulência

na realidade, vai desorganizar um pouco esse lago, vai reverberar a

água. E uma terceira forma seria você se lançar no lago, você pular

dentro d’água, sendo este o processo de imersão dentro de uma

realidade qualquer. (GUIMARÃES, 2011)

A partir do ano de 2013, pude compartilhar vivenciar e compreender a metáfora

do lago, ou seja, essas três formas de se relacionar com a realidade. No início do ano

“lanço a pedra no lago”, reverberando e causando uma turbulência de diversas formas e

maneiras na realidade. Em outras palavras, dou início ao projeto fotográfico intitulado

Revelador H2O2, que consistiu, basicamente, na proposição de descolorir cabelos e

pêlos do corpo com água oxigenada (H2O2) e compor fotografias em situações e

contextos diferentes.

A ideia do projeto surgiu a partir da convivência diária com Michelle Mattiuzzi,

através dos seus relatos compartilhados acerca dos acontecimentos que sucederam

depois que ela pintou o seu cabelo curto de loiro. Sendo assim, a partir disso, a

performer passa a ser constantemente interpelada na rua por jovens do subúrbio de

Salvador, que se identificavam com a comunicação e a representação convocada pelo

signo proposto pelo seu cabelo oxigenado.

A partir disso, algumas questões e pensamentos passam a ser bem frequentes.

Essa comunicação era estabelecida por causa da performer ser negra? Se eu pintasse o

cabelo e andasse pela cidade também seria interpelado e convocaria uma identificação e

comunicação? Envolto dessas inquietações, numa viagem com Mattiuzzi para São

Paulo, feita em abril de 2013, proponho-lhe um rito, uma ação: descolorirmos nossos

Page 39: Mundos Possíveis: Realidade e Ficção na Linha do Tempo

39

cabelos na casa da sua família, na zona sul de São Paulo, e registrarmos o processo

através da fotografia, demarcando o antes, durante e depois da transformação estética,

ou seja, da ação da água oxigenada em nossos cabelos.

Há um ano e meio Mattiuzzi não retornava a sua cidade natal e neste dia fomos

recebidos com muita alegria e euforia na Vila Santa Clara (SP). Enquanto sua mãe

preparava uma feijoada, demos início à ação que aconteceu na laje e foi compartilhada

com a sua vizinhança, composta em sua grande maioria, por seus familiares, ou seja,

tias, sobrinhas e primos. No tripé, o equipamento fotográfico foi programado para

disparar automaticamente nove vezes através de um toque inicial no botão do

disparador.

Figura 23 - Alex Oliveira, Revelador H2O2, São Paulo, Abril, 2013.

Figura 24 - Alex Oliveira, Revelador H2O2, São Paulo, Abril, 2013.

Page 40: Mundos Possíveis: Realidade e Ficção na Linha do Tempo

40

Assim, a ação aconteceu da seguinte forma: Mattiuzzi descoloriu o meu cabelo,

para em seguida, descolorir o dela (Figuras 23 e 24). Como já estava no fim da tarde,

uma imagem ficou mais clara do que a outra, demarcando nitidamente a passagem do

tempo. Fizemos mais algumas fotografias por outros lugares da casa e retornamos à

noite para o local onde estávamos hospedados, num apartamento de uma amiga no

Copan, centro de São Paulo. Mais algumas fotografias foram feitas nessa noite (Figuras

25, 26, 27 e 28), denotando por conseguinte, um contraste entre as diferentes

arquiteturas e contextos.

Vale ressaltar que neste período já tinha dado início aos processos de

investigação e experimentação da inserção do meu corpo nas composições fotográficas

e nas narrativas descontínuas que iam sendo construídas diariamente na rede. Com isso,

a mudança na aparência passou a ser a pedra lançada na realidade, reverberando e

causando uma turbulência em diversos processos pelos quais envolvia fotografia e

performance.

Figura 25 - Alex Oliveira, Revelador H2O2, São Paulo, 2013. Figura 26 - Alex Oliveira, Revelador H2O2, São Paulo, 2013.

Figura 27 - Alex Oliveira, Revelador H2O2, São Paulo, 2013. Figura 28 - Alex Oliveira, Revelador H2O2, São Paulo, 2013.

Deste modo, o projeto durou noves meses e expandiu suas questões a partir de

cada encontro e interação, surgindo à necessidade de convocar outras pessoas num

interesse por pensar como este código, este signo social que representa o loiro, poderia

Page 41: Mundos Possíveis: Realidade e Ficção na Linha do Tempo

41

ser compartilhado e se instaurar em cada corpo e contexto, convocando reflexões e

questões diversas. Sendo assim, o projeto foi desenvolvido a partir de um complexo

campo de interação criado através dos encontros, das transformações estéticas e seus

desdobramentos fotográficos.

Era um movimento político, era algo puramente estético, era arte? Essas foram

algumas das questões frequentemente trazidas através do compartilhamento e da

interação no Facebook, gerando, com isso, diversas reações, comentários e mensagens.

Todos se questionavam do que se tratava, movidos tanto por curiosidade e

estranhamento, quanto pela busca por enunciados, por vestígios ou pistas que

esclarecessem os motivos das transformações na aparência.

Figura 29 - Alex Oliveira, Revelador H2O2, Macaúbas, Maio, 2013.

Sendo assim, Revelador H2O2 passou a ser incorporado ao decorrer dos

acontecimentos diários, tendo como exemplo, as viagens feitas a trabalho em maio de

2013 pelo interior da Bahia, percorrendo cidades como Vitória da Conquista, Porto

Seguro, Paulo Afonso, Jacobina, Macaúbas e Itapetinga. Durante esse percurso

itinerante foram produzidos autorretratos evidenciando as diversas paisagens e

contextos a partir de ações performáticas que buscavam relações entre corpo e espaço

(Figuras 22, 29, 30, 31, 32, 33, 34 e 35).

Page 42: Mundos Possíveis: Realidade e Ficção na Linha do Tempo

42

Figura 30 - Alex Oliveira, Porto Seguro, 2013. Figura 31 - Alex Oliveira, Macaúbas, 2013. Figura 32 - Alex Oliveira, Macaúbas, 2013.

Figura 33 - Alex Oliveira, Paulo Afonso, 2013. Figura 34 - Alex Oliveira, Porto Seguro, 2013.

Figura 35 - Alex Oliveira, Revelador H2O2, Macaúbas, Maio, 2013.

Em outros momentos, as fotografias eram produzidas com as pessoas nas quais

estabelecia contato e interação, podendo destacar aqui, mesmo que rapidamente, o

episódio que aconteceu em julho de 2013 na cidade de Ituaçu (BA), quando, por

diferentes espaços e contextos da cidade, descolori o cabelo de nove pessoas que

participavam e trabalhavam no longa-metragem A Doce Flauta De Liberdade (Figura

36), do diretor George Neri, filme no qual pude desenvolver, pela primeira vez, a

direção de fotografia no cinema.

Page 43: Mundos Possíveis: Realidade e Ficção na Linha do Tempo

43

Figura 36 - Alex Oliveira, Revelador H2O2, Ituaçú, Julho, 2013.

Contudo, foi em agosto de 2013, durante a execução do projeto Narrativas

Errantes – aprovado pelo Edital Portas Abertas para as Artes Visuais da Fundação

Cultural do Estado da Bahia -, que a proposição teve seu maior alcance e comunicação,

descolorindo, com isso, os cabelos, barbas e pêlos do corpo de quarenta e duas pessoas,

entre crianças, mulheres e homens do bairro de Alagados, comunidade do subúrbio de

Salvador. Através do projeto, pude ter um contato direto com a população e o seu modo

de vida, convocando e evidenciando aspectos e práticas comuns aos agenciamentos

possíveis da arte relacional.

Antes de descrever as ações e os acontecimentos que se desenrolaram durante o

projeto, é importante que seja apresentada, mesmo que de forma breve, um pouco da

história do bairro de Alagados, localizado no Subúrbio Ferroviário de Salvador, mais

especificamente no fim de linha do Uruguai, na enseada dos Tainheiros, próximo à

península de Itapagipe. A ocupação de Alagados aconteceu em 1940, quando a crise

habitacional de Salvador começou a tomar grandes proporções. A estruturação do

primeiro trecho da ferrovia, a partir de 1869, influenciou o início da ocupação, pois

atraiu novos moradores, que vinham do interior da Bahia em busca de emprego na

região.

Esse processo foi intensificado e, entre 1948 e 1950, começaram as primeiras

ocupações sobre os manguezais dos Alagados ao longo da enseada dos Tainheiros, onde

milhares de famílias, sem oportunidade de ocupar espaço em terra firme, avançaram

sobre a maré. Sendo assim, o acesso ao emprego e à infraestrutura são elementos

centrais no processo histórico de ocupação dos Alagados. Hoje, a população é

Page 44: Mundos Possíveis: Realidade e Ficção na Linha do Tempo

44

predominantemente de baixa renda e vive, de modo geral, em condições precárias de

saneamento básico e infraestrutura17

.

Assim, Narrativas Errantes teve como proposta central, a execução de

fotografias a partir de ações performáticas e interventivas, que seriam desenvolvidas

através da busca por relações e composições entre corpo e espaço, ao longo das práticas

de deriva realizadas por Alagados. No decorrer do processo, as fotografias foram

publicadas no Facebook18

, para posteriormente serem “printadas” e impressas em

tamanhos diversos, sendo expostas pelas ruas do bairro a partir da utilização do lambe-

lambe, tendo, por fim, um deslocamento da rede social para o espaço urbano,

apropriando-se da interface virtual, materializando-a e entremeando com isso, diferentes

espaços pessoas e temporalidades.

Meu contato inicial com o bairro se estabeleceu através do Espaço Cultural de

Alagados, que se comprometeu em ceder uma grande parede da sua área externa para a

realização de uma exposição no final do projeto, que seria composta por colagens das

fotografias “printadas” do Facebook, compondo, por fim, um grande mural dos diversos

momentos e situações vividas por Alagados. É importante frisar aqui, que logo nos

primeiros dias de visita e andanças, pude perceber que o cabelo era algo que as pessoas

se preocupavam e davam uma atenção em especial, ou seja, tinham um grande cuidado

com a sua aparência.

Assim, foi através desse elemento, ou seja, do cabelo, que pude estabelecer um

contato mais próximo com a população, criando movimentos diversos e colocando em

prática as derivas pelo bairro, deslocando-me, por vezes, do papel do fotógrafo e

associando a minha imagem a outros fazeres. Sendo assim, o processo fotográfico foi

conduzido a partir de uma proposição, de um convite que era feito a cada pessoa,

propondo a descoloração dos seus cabelos com água oxigenada (H2O2) e compondo,

desta maneira, ações performáticas e interventivas executadas em diferentes lugares e

contextos de Alagados, e produzindo, consequentemente, fotografias dos diversos

momentos e situações que envolviam o antes durante e depois da ação química.

17

Para mais informações sobre contexto histórico que se desenvolveu a comunidade de Alagados:

http://www.citiesalliance.org/sites/citiesalliance.org/files/CA_Docs/resources/upgrading/alagados/capitul

o-1.pdf Acessado em 22 de maio de 2015. 18

As fotos do projeto Narrativas Errantes publicadas na linha do tempo do Facebook:

https://www.facebook.com/photo.php?fbid=672718782741154&set=a.153836151296089.33064.0000009

1166636&type=1

Page 45: Mundos Possíveis: Realidade e Ficção na Linha do Tempo

45

Deste modo, qual identidade seria construída ou representada a partir da

aceitação da mudança na aparência? Quais signos e códigos estariam implícitos nesse

jogo? Qual seria a resposta social que as pessoas convocariam com o seu “novo”

cabelo? Diante dessas questões, dei início às ações de descoloração, que começaram

primeiramente com os funcionários do Espaço Cultural de Alagados: Marcos

(iluminador), Carlos (técnico de som e imagem) e Edileuza (funcionária da limpeza). A

ação foi desenvolvida no fundo da igreja conhecida como Paróquia Nossa Senhora dos

Alagados, criada em 1980 pelo papa João Paulo II, por ocasião de sua primeira visita ao

Brasil.

Dispus três baldes no chão, virados com o fundo pra cima, servindo como

bancos para que eles pudessem ficar sentados. Enquanto pintava seus cabelos naquele

local, pude ter uma grande vista panorâmica do subúrbio de Salvador, sendo possível

perceber, a partir daquela perspectiva, as diversas arquiteturas produzidas através da

bricolagem de elementos diversos.

Após a descoloração dos três cabelos, fizemos o percurso de retorno ao Espaço

Cultural, num trajeto que convocou a curiosidade dos diversos moradores de Alagados,

sejam dos que passavam pela rua ou dos que saiam das suas casas para ver o que estava

acontecendo. A lavagem dos cabelos foi executada no Espaço Cultural, compartilhando

a ação com os outros funcionários do local e dando início, com isso, a proposição de

descolorir os cabelos com água oxigenada (Figura 37).

Figura 37 - Prints de três fotografias do Revelador H2O2 publicadas no Facebook, Alagados, 2013.

Deste modo, prossegui fazendo a mediação dos acontecimentos, tendo como

pressuposto, que as ações de descoloração deveriam ser compartilhadas com grande

parte da população, com o intuito de que a minha imagem e ação fossem vistas por

diferentes contextos do bairro, podendo, deste modo, criar diversas alianças ruídos e

deslocamentos. Desta forma, as pessoas que aceitavam descolorir os cabelos, eram

Page 46: Mundos Possíveis: Realidade e Ficção na Linha do Tempo

46

convidadas a compartilhar o processo da revelação com os demais moradores, através

da execução da ação nos espaços públicos de Alagados, sendo escolhido geralmente um

local diferente a partir de cada dia de visita e/ou a partir de cada pessoa ou situação,

provocando e prolongando o convite para as pessoas que presenciavam a ação em

tempo real.

O equipamento fotográfico era colocado num tripé, sendo programado para

disparar automaticamente nove fotografias com intervalos de tempo entre cada disparo.

A partir desse procedimento, pude desprender a câmera fotográfica do meu corpo,

documentando os acontecimentos em seu constante devir e dando mais atenção, com

isso, a ação que estava sendo executada. Com isso, muitas das fotografias do projeto

foram produzidas com o auxílio de crianças, jovens e adultos, que me acompanharam

durante a ação, passando a compartilhar conjuntamente do cuidado tanto com o

equipamento fotográfico, quanto com a produção das fotografias.

A partir das minhas ações naquele contexto, muitas vezes a minha imagem

poderia ser facilmente associada a um cabelereiro, ou seja, a um profissional de beleza.

Pois foi com essa imagem que trabalhei em diversos momentos do projeto, dando a

entender que poderia executar as diversas ações de pintura e guiando a proposição a

partir de um caráter experimental, que ia se adequando a cada nova necessidade e/ou

ideia que surgisse.

Vera, uma das moradoras do conjunto habitacional construído em substituição as

palafitas (como eram conhecidas às casas de madeiras sobre as águas da maré) foi uma

grande parceira e companheira durante o projeto, tanto cedendo sua casa inúmeras vezes

para algumas das ações, como também disponibilizando objetos diversos e/ou, muitas

das vezes, até água para lavar o cabelo.

Pintei o cabelo de Vera num dia de sábado, na varanda da sua casa (Figura 38),

enquanto ela e a filha preparavam uma feijoada. No decorrer das conversas, Vera me

conta que na verdade seu cabelo é curto e que havia colocado um aplique para ter um

cabelão. Deste modo, a seu pedido, faço algumas “luzes” no seu “cabelo”, ou seja,

algumas mechas de loiro. Além disso, nesse mesmo dia, pinto o cabelo grande e natural

da sua filha, na beira da maré de Alagados (Figura 39). Desta forma, a ação acabou

contando, por fim, com a participação de diversas pessoas, que por ser um fim de

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47

semana e estarem presentes no bairro, foram se aproximando e decidindo pintar o

cabelo, colaborando assim com a ideia e a proposição lançada.

Figura 38 - Alex Oliveira, Revelador H2O2, Alagados, 2013. Figura 39 - Alex Oliveira, Revelador H2O2, Alagados, 2013.

Figura 40 - Print da tela cheia do Facebook, Revelador H2O2, Alagados, Agosto, 2013.

Com isso, diversas crianças adolescentes e adultos estabeleceram contato e

interação, e muitas das vezes, perdia o controle da situação e quando via o pincel com a

água oxigenada já estava na mão de algum jovem ou criança, que, ou tratava de passa-lo

nos pêlos do seu braço, barriga e perna, ou pintavam partes do seu cabelo. As meninas

geralmente pintavam o “pega rapaz”, como é popularmente conhecido um penteado

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48

feminino, e os homens o moicano ou o “rabinho” (Figura 48), ou seja, partes do cabelo

que são deixados crescer na nuca, sendo estes penteados masculinos bem comuns de

serem utilizados por grande parte dos jovens e crianças de Alagados.

Figura 41 - Prints de três fotografias exibidas em tela cheia no Facebook, Revelador H2O2, Alagados, 2013.

Figura 42 - Prints de três fotografias exibidas em tela cheia no Facebook, Revelador H2O2, Alagados, 2013.

Desta maneira, neste dia, dez pessoas participaram da ação de descoloração:

Vera, sua filha, cinco homens e três meninas (Figuras 40, 41, 42). Esse foi o dia em que

a ação de descoloração teve seu maior alcance de pessoas que aceitaram pintar os

cabelos, sendo executada de diversas formas e maneiras e com variados tempos de

duração da água oxigenada nos cabelos. Com isso, a proposição lançada na maré de

Alagados reverberou e causou uma turbulência que provocou diversas interações e

trocas, gerando uma teia de afetos que ia se construindo ao longo do processo.

Deste modo, a fotografia, ou melhor, o dispositivo fotográfico passou a convocar

e experimentar outros modos e procedimentos de criação, atuando, segundo Gonçalves

(2013, p.60), como “um dispositivo afetivo e relacional, um instrumento disparador de

encontros, capaz de nos abrir ao Outro, ao imponderável de toda alteridade”. Ou ainda

(2013, p.65) como “um elo, um comutador: aquilo que dispara uma relação, que garante

a instauração de trocas, passagens, cruzamentos. Um aparelho, enfim, que produz

acontecimentos nas imagens e no mundo”.

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49

Figura 43 - Alex Oliveira, Revelador H2O2, Alagados, 2013. Figura 44 - Alex Oliveira, Revelador H2O2, Alagados, 2013.

Assim, a partir desses acontecimentos, passo a compartilhar das intimidades e

espaços privados de Alagados, através da ação de descoloração, que posteriormente foi

intitulada como Revelador H2O2. O título surgiu da tentativa em fazer analogia, ou

seja, em associar e comparar o uso feito do revelador químico pela fotografia -

procedimento utilizado para revelar os sais de prata, que posteriormente se tornarão a

imagem impressa -, com o uso que faço da água oxigenada (H2O2) para evidenciar e

intervir no espaço urbano, produzindo relações e encontros diversos e interligando

pessoas através do compartilhamento de um signo estético. Com isso, convoco uma

ideia de pertencimento e ligação ao encontro, revelando, desta maneira, questões

diversas referentes à identidade e representação, cultura e poder.

Assim, segundo Ayrson Heráclito19

:

o projeto promoveu um exercício de alteridade. O ato aparentemente

banal de descolorir o cabelo cria uma dinâmica fluidez ao conceito de

pertencimento. Essas imagens de negros e mestiços brasileiros com

cabelos artificialmente loiros nos remetem a um entre lugar, entre a

arte e os fenômenos sociais, desconstruindo a ideia de raça e ativando

tensões associadas a uma estética de grupos marginais favelados e

periféricos. (HERÁCLITO, 2014)

Assim sendo, vale serem elucidados outros acontecimentos que ocorreram no

decorrer do projeto, como o episódio em que um homem, no momento da ação, decide

se descolorir por completo, pedindo que lhe pinte o cabelo, bigode, barba e todos os

pêlos do corpo, passando desta maneira, a ficar todo branco de água oxigenada e pó

descolorante (Figura 45). Depois disso, ainda com a tinta pelo corpo, sem dizer muitas

19

Ayrson Heráclito é mestre em Artes Visuais pela Universidade Federal da Bahia, professor do quadro

permanente no Centro de Artes, Humanidades e Letras da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia,

curador do projeto de exposição das fotografias de Revelador H2O2, proposto à Caixa Cultural, em 2014.

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50

palavras, ele se desloca, vai até a sua casa e volta trazendo uma grande cana que é

cortada e dividida por todos que estavam no local da ação (Figura 46).

Figura 45 - Alex Oliveira, Revelador H2O2, Alagados, 2013. Figura 46 - Alex Oliveira, Revelador H2O2, Alagados, 2013.

A química, por fim, foi retirada do seu corpo utilizando a água da torneira

disponível próximo à maré e a sede dos pescadores, compartilhando, com isso, os

diferentes processos da ação e da mudança na aparência com os demais moradores de

Alagados.

Nesse mesmo dia, uma senhora costureira do bairro, que oferece serviços

diversos de conserto de roupa e tem uma venda de produtos e doces, chega até mim e

pergunta se poderia também descolorir seus cabelos. Surpreso com a sua interação,

respondo-lhe que sim e no outro dia apareço no seu local de trabalho para pintar o seu

cabelo que tinha o comprimento até os ombros e em grande parte já estavam brancos.

Enquanto desenvolvia a ação escutava as suas histórias e memórias diversas que

envolviam a sua vida e as mudanças que ocorreram em Alagados. Mais uma vez, por

fim, usei a torneira disponível próximo à maré e a sede dos pescadores para a lavagem

do seu cabelo (Figura 43). É importante também evidenciar a sede dos pescadores, outro

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51

local que pude escutar muitas histórias e estabelecer conversas diversas, conhecendo

dois parceiros que me acompanharam e ajudaram durante o projeto: o “Pequeno”,

pescador local, e o “Neném”, barbeiro e um “faz-de-tudo”.

Pequeno, no primeiro dia que lhe conheci, preparou uma moqueca de peixe na

sede e ofereceu a todos que estavam participando da ação do Revelador H2O2. Neste

dia descolori seu bigode e a sua barba (Figura 47). Já Neném me pediu que descolorisse

o seu cabelo que estava cortado à máquina. A partir daquele dia, eles me acompanharam

em muitas das ações, tanto das pinturas nos cabelos, quando das colagens das

fotografias pelas ruas do bairro.

Figura 47 - Alex Oliveira, Revelador H2O2, Alagados, 2013.

O contato olho a olho, o contato físico do gesto da descoloração, o contato no

momento da lavagem dos cabelos (Figuras 43 e 44), tudo isso emaranhou o encontro

com o outro, a execução da ideia e da proposição de estar ali presente, executando e

compartilhando um fazer, ou em muitas das vezes, vários fazeres ao mesmo tempo.

Enfim, uma teia de afetos, trocas, memórias e experiências compartilhadas, envolveram

e conduziram a esfera das interações e a rede de conexões estabelecidas em Alagados

durante o período de um mês de projeto.

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52

Figura 48 - Print da exibição em tela cheia no Facebook, Revelador H2O2, Alagados, 2013.

Com uma semana de execução do projeto, Mattiuzzi esteve presente em

Alagados, e neste dia, em frente à casa de Vera, descolori seu cabelo que estava preto na

raiz e quase branco nas pontas. Neném também estava presente, era um domingo e

todos dançavam, bebiam e escutavam som bem alto. Era mais um dia de

confraternização em Alagados. Antes de escurecer, fomos para a casa de Neném e lá

pedi pra Michelle descolorir meu cabelo novamente. Durante o processo, resolvo

descolorir o bigode, a barba e os pêlos do peito, barriga e braços, deixando a química

agir com tempos diferenciados em cada lugar, pois além de queimar, o cheiro da água

oxigenada é muito forte, então, por exemplo, o bigode, que é perto do nariz, se torna um

local bem difícil de descolorir os pêlos numa única ação.

Além disso, o projeto contou também com a participação de artistas e amigos

que foram convidados a colaborar e participar das ações em Alagados. Assim, de forma

breve, citarei seus nomes e os acontecimentos que sucederam no desenrolar das visitas.

Foram eles: Hirosuke Kitamura (fotógrafo nascido em Osaka, Japão, que vive desde

1993 em Salvador; Acompanhou-me em muitas das visitas em Alagados e aceitou

descolorir uma mecha do seu cabelo); Rodrigo Sombra (fotógrafo e jornalista de

Page 53: Mundos Possíveis: Realidade e Ficção na Linha do Tempo

53

Salvador, que esteve presente num dia de deriva e fez algumas fotografias com uma

câmera analógica); Jerônimo Sodré (dj e performer que mora em Salvador, topou

descolorir partes de seu cabelo e os pêlos das suas costas na sede dos pescadores,

intervindo e consequentemente convocando os demais presentes a participar); Zé Mario

(performer de Salvador que descoloriu a longa barba do seu personagem fictício Mano

Zé, ação desenvolvida dentro de um barco conduzido por Pequeno e Neném por grande

parte da maré de Alagados, percorrendo a lateral da Ilha do Rato);

Júlio Costa (grafiteiro de Salvador que descoloriu os cabelos fez algumas

fotografias analógicas e grafitou o desenho de alguns meninos loiros pela paisagem e

uma grande sereia loira na lateral de um barco); Denise Firmo (jornalista de Salvador

que teve seus cabelos curtos e cacheados pintados de loiro, me acompanhando durante

algumas visitas e me ajudando com as colagens dos lambes); Inajara Diz (produtora de

Salvador, também me acompanhou durante algumas visitas, descoloriu seu cabelo

grande e cacheado e me ajudou com a colagem do mural); Dalton Paula (artista visual

de Goiânia que descoloriu seu cabelo comigo e me acompanhou num dia de visita a

Alagados), por fim, Gabriel Nast (artista visual de Belo Horizonte (MG) que me ajudou

com as colagens das fotografias que compôs o mural final na área descoberta do Espaço

Cultural de Alagados).

Como havia dito anteriormente, no decorrer do processo de produção e

publicação das fotografias no Facebook, algumas imagens foram sendo selecionadas e

impressas em tamanhos diversos, para posteriormente, serem coladas pelas ruas de

Alagados, em locais como caixas de luz e telefone, ponto de ônibus e alguns tapumes.

As imagens foram sendo selecionadas a partir das vivências e dos elos formados entre

as pessoas do bairro. Algumas imagens selecionadas formavam dípticos, demarcando os

processos de descoloração, como é o caso das duas imagens coladas dentro da casa de

Neném, onde na primeira imagem, ele está dentro da sede dos pescadores com a água

oxigenada nos cabelos, e na segunda, já aparece loiro (Figura 49).

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Figura 49 - Alex Oliveira, Revelador H2O2, Alagados, 2013.

Deste modo, a partir das colagens nas ruas de Alagados, a população passou a se

reconhecer nas imagens, percebendo os símbolos do Facebook e observando atentas

quantas pessoas tinham curtido as fotografias e/ou quantas comentaram e

compartilharam.

O mural da exposição final foi composto por vinte imagens impressas em

tamanhos diversos, coladas na área descoberta, ou seja, na lateral do Espaço Cultural de

Alagados. As imagens “printadas” em tela cheia traziam elementos da plataforma do

Facebook, que se transformavam, por fim, numa moldura em torno da imagem. Quando

várias imagens foram se agrupando durante a colagem, o conjunto que elas formavam

lembrava um rolo de filme ou até a própria linha do tempo da rede social, dando a

impressão das imagens estarem “subindo” ao longo da extensão do prédio (Figura 50).

Com isso, o mural revelou os distintos momentos e situações que envolveram o

antes, o durante e o depois das ações do Revelador H2O2 em Alagados. Assim, a

comunidade pôde perceber a recepção do trabalho, participando mais uma vez do

processo criativo, só que desta vez como espectadores de si mesmos. Dessa forma, o

projeto convocou reflexões sobre a fotografia e a sua circulação, exposição e alcance,

entremeando ambientes virtuais e reais, públicos e privados.

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Figura 50 - Alex Oliveira, Revelador H2O2, Alagados, 2013.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mundos Possíveis: Realidade e Ficção na Linha do Tempo foi um projeto que

acompanhou muitos dos meus processos pessoais e das diversas possibilidades de

experimentação em torno da construção e/ou ficcionalização da identidade. Foram 3.185

fotos (até o presente momento) e cinco anos de entrega e dedicação diária.

A partir do convívio com artistas da performance, pude experimentar diversos

processos de criação em torno dessa linguagem e da sua junção com a fotografia. Essas

experiências diárias de entrecruzamento das linguagens artísticas ocasionaram numa

frequente inserção do meu corpo nas composições fotográficas, possibilitando

estabelecer relações diversas com os espaços, cenários e paisagens, experimentando,

conjuntamente, outras formas e relações com o que estava sendo visto e percebido, ou

melhor, outras formas e relações de ver e estar no mundo.

Questionei a minha identidade, construí ruídos e representações diversas,

resignifiquei objetos, vivi uma narrativa descontínua. Investigar a fotografia como

movimento, lançar propostas, contaminar, questionar a ideia associada à realidade, criar

ligações simbólicas, intermediar pessoas, propor encontros. O projeto me levou a

caminhos totalmente desconhecidos. Pude assim vivenciar e colocar em prática algumas

das possibilidades de invenção de mundos possíveis.

A noção de presença – de estar de corpo presente no encontro com o Outro – foi

afetada pelo uso da rede e pela disposição e dissolução das minhas experiências em

tempos, muitas das vezes, paradoxais. Entretanto, é importante salientar que, a partir

desses usos específicos das tecnologias e dos dispositivos, pude exercitar a

reconfiguração da percepção pela mobilização do corpo.

Infelizmente, muitos dos processos vividos durante a execução do projeto, não

puderam ser relatados nesta memória. Percebo, em consonância, o caráter múltiplo,

complexo e híbrido, tanto da fotografia, quanto da performance, características essas

que evidenciam uma expansão das linguagens artísticas contemporâneas, trazendo,

dessa forma, uma multiplicidade de reflexões e pensamentos, nos quais pretendo dar

continuidade às investigações a partir da inserção futura em algum programa de

mestrado.

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6. BIBLIOGRAFIA

ARCHER, Michael. Arte Contemporânea: Uma história concisa. Tradução de

Alexandre Krug, Valter Lellis Siqueira. São Paulo: Martins Fontes, 2001 – (Coleção a).

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In:

BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e

história da cultura. Obras Escolhidas, v.1, 1ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1955.

BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. tradução Denise Bottmann. São Paulo:

Martins, 2009 – (Coleção Todas as Artes).

COTTON, Charlotte. A fotografia como arte contemporânea. Tradução de Maria

Silvia Mourão Netto. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010 – (Coleção

arte&fotografia).

DOBAL, Susana M. Ficção e encenação na fotografia contemporânea. In: Susana

Dobal; Osmar Gonçalves. (Org.). Fotografia Contemporânea: fronteiras e

transgressões. 1ed. Brasília: Casa das Musas, 2013, (pp 75-93).

ENTLER, Ronaldo. Um lugar chamado fotografia, uma postura chamada

contemporânea. In: CHIODETTO, Eder; MONTEROSSO, Jean-Luc. (Org.). A

invenção de um mundo (Catálogo de Evento e Exposição). São Paulo: Itaú Cultural,

2009.

GOLDBERG, RoseLee. A arte da performance. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

KIRKPATRICK, David. O Efeito Facebook. Tradução de Maria Lúcia de Oliveira. Rio

de Janeiro: Intrínseca, 2011.

MACHADO, Arlindo. Arte e Mídia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.

MACHADO, Arlindo. O Filme-Ensaio. In: Concinnitas (UERJ), Rio de Janeiro, v. 4,

n.5, 2003, (p. 63-75).

MELIM, Regina. Performance nas Artes Visuais. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

MÜLLER-POHLE, Andreas. Estratégias da Informação. In: Boletim, Revista do

Grupo de Estudos Arte&Fotografia, ECA-USP, n. 3, São Paulo, 2009.

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REIS FILHO, O. Desvirtuar a câmera, virtualizar a Imagem: o lúdico na fotografia

contemporânea. In: Osmar Gonçalves dos Reis Filho; Susana Dobal. (Org.). Fotografia

Contemporânea: Fronteiras e Transgressões. 1ed. Brasília: Casa das Musas, 2013,

(p. 57-74).

ROUILLÉ, André. A fotografia e arte contemporânea. In: Fotografia e Novas Mídias.

Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria / FotoRio, 2008 – (Coleção Arte e Tecnologia).

ROUILLÉ, André. A fotografia entre documento e arte contemporânea. São Paulo:

Editora Senac São Paulo, 2009.

ROUILLÉ, André. A fotografia na tormenta das imagens. In: Dobal, Susana Dobal e

Gonçalves, Osmar (org.). Fotografia contemporânea: fronteiras e transgressões.

Brasília, 2013.

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7. ANEXO

7.1. Crítica escrita em setembro de 2013

Os Ritos de Passagem de Alex Oliveira

Laura Guy20

Eu e Alex Oliveira nunca nos encontramos pessoalmente, mas somos “amigos” no

Facebook. As imagens que ele posta dos Alagados, uma área de favela em Salvador,

Brasil, mesclam-se a outras no meu feed de notícias – vasto inventário de relatos da vida

alheia, gente com a qual encontro todos os dias, apenas superficialmente. Os registros

de Alex são às vezes bem-humorados, às vezes sexy, mas sempre comoventes. Eles

indexam um complexo campo de interações, enquanto ele alterna entre o micro e o

macro, o privado e o público. Vistas online, eles dizem algo sobre a sensação de

conexão, ainda que fugidia, que faz com que eu sempre volte a entrar no facebook;

essas imagens são mais um sentimento do que um registro preciso de alguma

comunidade em particular.

As imagens de Alex são sustentadas por um impulso documental, mas se afastam

de entendimentos mais tradicionais sobre o gênero e do papel instrumental que lhe foi

atribuído historicamente para a formação de identidades. As pessoas, e pode-se

encontrar muitas delas nas suas fotografias, são geralmente singularizadas ainda que

sejam registradas em meio a um complexo campo de objetos, fundos e trocas. Seus

retratos, produzidos como resultado dos encontros dentro deste campo, constituem

assim uma performance fluída e móvel do ser. Essa falta de fixação é o mérito do seu

trabalho. As fotografias de Alex olham com reservas para a periferia das cidades ou das

sociedades. Elas expõem as comunidades não baseadas em qualquer tipo de senso

comum, mas antes inseridas em um registro de cenas afetivas.

Espalhados por suas imagens estão vários signos compartilhados. Motivos de

cabelos loiros descoloridos; tatuagens ou peles pintadas manifestam-se como atos

ritualizados que trabalham para unir os corpos. A relação que a fotografia tem com a

20

Laura Guy é curadora e escritora. Atualmente trabalha entre Londres e Manchester, Reino

Unido; Tradução: Marcel Bane.

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exposição tem ajudado fotógrafos e acadêmicos a descrever o papel que o meio

desempenha no reconhecimento individual como parte de formações sociais ou

culturais. Os sujeitos nas imagens de Alex são geralmente posicionados no centro do

quadro. Eles parecem estar olhando fixamente através da lente. Neste confronto, o

mecanismo da câmera se torna explícito no interior da troca. Assim, as fotografias

devolvem seus sujeitos ao meio, de maneira intrincada.

Este diálogo reflexivo entre o meio e o sujeito também ocorre nas estratégias de

exibição que Alex emprega. Às vezes ampliando e colando suas fotografias nas paredes

externas de prédios em Salvador, ele gentilmente convoca táticas da publicidade de

guerrilha para ressaltar uma camada estética da experiência. Coladas aos prédios, as

intervenções criam uma pele efêmera para a cidade. Disseminadas simultaneamente

através de redes difusas de comunicação, elas produzem uma reflexão líquida da vida

em fluxo. Assim como suas imagens atravessam redes concretas e virtuais, mas sempre

sociais, da mesma maneira seus significados mudam incessantemente. Ao invés de

tratar essas qualidades voluptuosas da fotografia com cuidado, Alex se regozija nelas.

Como resultado, quer cheguemos às suas imagens online, na cidade ou em uma galeria,

é possível apanhar delas um senso fugidio do quão perfeitamente, ainda que de maneira

tênue, estamos inseridos no mundo.

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8. APÊNDICE

8.1. Prints das publicações no Facebook

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