pessoa, existÊncia e fenomenologia - notas sobre as concepções do personalismo de emmanuel...

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Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 22, n. 31, p. 455-468, jul./dez. 2010 ISSN 0104-4443 Licenciado sob uma Licença Creative Commons [T] Pessoa, existência e fenomenologia: notas sobre as concepções do personalismo de Emmanuel Mounier [I] Person, existence and phenomenology: remarks on the conceptions of personalism of Emmanuel Mounier [A] Adão José Peixoto Mestre em Filosoa pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCCAMP), Doutor em Educação (USP), professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás (UFG), Goiânia, GO - Brasil, e-mail: [email protected] [R] Resumo O propósito deste artigo é discutir o personalismo de Emmanuel Mounier, especialmente suas concepções sobre pessoa e existência e sua relação com a fenomenologia. Mounier não escreveu sobre a fenomenologia e nem armou a vinculação de seu pensamento a essa perspectiva losóca. Entretanto, é possível perceber que sua losoa foi fortemente inuenciada pelas ideias fenomenológicas. O personalismo é uma losoa que arma o valor da pessoa enquanto valor absoluto. O absoluto aqui é entendido

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  • Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 22, n. 31, p. 455-468, jul./dez. 2010

    ISSN 0104-4443Licenciado sob uma Licena Creative Commons

    [T]

    Pessoa, existncia e fenomenologia: notas sobre as concepes do

    personalismo de Emmanuel Mounier[I]

    Person, existence and phenomenology: remarks on the conceptions of personalism

    of Emmanuel Mounier[A]

    Ado Jos Peixoto

    Mestre em Filosofi a pela Pontifcia Universidade Catlica de Campinas (PUCCAMP), Doutor em Educao (USP), professor da Faculdade de Educao da Universidade Federal de Gois (UFG), Goinia, GO - Brasil, e-mail: [email protected]

    [R]Resumo

    O propsito deste artigo discutir o personalismo de Emmanuel Mounier, especialmente suas concepes sobre pessoa e existncia e sua relao com a fenomenologia. Mounier no escreveu sobre a fenomenologia e nem afi rmou a vinculao de seu pensamento a essa perspectiva fi losfi ca. Entretanto, possvel perceber que sua fi losofi a foi fortemente infl uenciada pelas ideias fenomenolgicas. O personalismo uma fi losofi a que afi rma o valor da pessoa enquanto valor absoluto. O absoluto aqui entendido

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    enquanto fi m que d sentido a toda organizao poltica e social. A existn-cia humana o ponto de partida e o postulado fundamental do personalis-mo. Isto signifi ca que h, nessa perspectiva, uma prioridade da existncia sobre a natureza humana, entendendo-se esta como um dado ontolgico defi nitivo. Esta postura uma exigncia de reformulao epistemolgica, que signifi ca, no interior do personalismo, a tentativa de elaborao de uma fenomenologia da existncia, situada entre o objetivismo radical da cincia e o subjetivismo da metafsica.[P]Palavras-chave: Personalismo. Pessoa. Existncia. Fenomenologia.

    [B]Abstract

    This article aims to discuss the personalism of Emmanuel Mounier, especially his views on the person and existence, and its relation to phenomenology. Mounier does not refer to the infl uence of phenomenology on his thoughts. However, it is possible to notice that his philosophy was strongly infl u-enced by phenomenological ideas. Personalism is a philosophy that says a persons value as an absolute. The absolute here is understood as a purpose that gives meaning to all the political and social organization. Human exis-tence is the starting point and fundamental postulate of personalism. This means that there is, therefore, a priority of the existence about the human nature, understanding this as an information ontological defi nitive. This position is a requirement of epistemological reformulation, which means, within personalism, the att empt to develop a phenomenology of existence, located between the radical objectivism of the science and subjectivism of metaphysics.[K]Keywords: Personalism. Person. Existence. Phenomenology.

    Introduo

    O pensamento personalista de Emmanuel Mounier um dos pensa-mentos contemporneos mais instigantes. Nas dcadas de 1950 e 1960 exerceu grande infl uncia no pensamento e na ao de grande parte da intelectualidade mundial, e exerce ainda hoje em muitos ciclos acadmicos. O ncleo bsico do pensamento personalista constitudo pelas noes de pessoa e existncia.

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    Essa perspectiva fi losfi ca foi desenvolvida no contexto do desenvolvimento de outra perspectiva fi losfi ca que exerceu, e exerce, enorme infl uncia no pen-samento acadmico: a fenomenologia. A questo que propomos analisar aqui : h infl uncia da fenomenologia no personalismo de Emmanuel Mounier? Se h, como se manifesta essa infl uncia? Para isso, iniciaremos pela apresen-tao do personalismo e suas concepes sobre pessoa e existncia. Em seguida, discutiremos a infl uncia da fenomenologia no pensamento personalista.

    O personalismo

    A Europa e vrias outras partes do mundo foram vtimas, a partir de 1929, de uma profunda crise poltica, moral e social provocada, inicial-mente, por outra crise, a econmica, em consequncia da queda da bolsa de Nova Iorque e, posteriormente, pela ascenso do nazismo, do fascismo e pela Segunda Guerra Mundial. Neste contexto, o que predominava era o pessimismo, a banalizao da vida, a negao da pessoa e a falta de perspectivas.

    Segundo Chaigne, o marxismo e o espiritualismo se apresentavam como a salvao dessa crise. Os marxistas afi rmavam que essa crise era uma decorrncia da crise econmica; era uma crise de estrutura, crise de enfra-quecimento do modo de produo capitalista. A sada seria mudar as estruturas econmicas, abolir a propriedade privada e instituir o comunismo. Portanto, operem a economia, o doente se recuperar. Para os espiritualistas, a cri-se uma crise de valores, uma crise no da economia, mas do homem. Mudem os homens, e as sociedades se curam (CHAIGNE, 1969, p. 59).

    Mounier se coloca contra essas duas sadas por entender que elas so parciais, reducionistas, no apreendem a complexidade da crise. Esta no uma consequncia s da crise econmica, como diziam os marxistas, ou s da crise de valores, como diziam os espiritualistas, mas de ambas. Neste sentido, a sada deve ser ao mesmo tempo uma mudana das estruturas econmicas e dos valores sociais e morais. Escreve Mounier (III, 1990, p. 199):

    ns no estvamos satisfeitos com nenhum deles. Nos parecia que espiri-tualistas e marxistas participavam do mesmo erro. Erro que consistia em separar o corpo e a alma, o pensamento e a ao, o homo faber e o homo sapiens. Ns afi rmvamos, por outro lado: a crise era ao mesmo tempo eco-nmica e espiritual, crise de estruturas, crise do homem. No retomvamos somente a palavra de Pguy: a revoluo ser moral ou no ser revoluo.

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    Afi rmvamos: a revoluo moral ser econmica, ou no ser revoluo. A revoluo econmica ser moral ou no ser nada.

    Como forma de superar a dicotomia estabelecida pelo marxismo e o espiritualismo, Mounier lana, em 1932, na Frana, o movimento personalista, tendo como principal veculo de divulgao de suas ideias, a revista Esprit.

    Pessoa

    O personalismo uma fi losofi a que afi rma o valor da pessoa enquanto valor absoluto. O absoluto aqui entendido enquanto fi m que d sentido a toda organizao poltica e social. Quando Mounier se refere pessoa como absoluto, isto quer dizer, segundo o prprio autor:

    1 - que uma pessoa no pode jamais ser considerada como meio por uma coletividade ou por outra pessoa; que no existe esprito impessoal, acon-tecimento impessoal, valor ou destino impessoal; o impessoal a matria; 2 - que, em conseqncia, excludas as circunstncias excepcionais em que o mal no pode ser detido se no fora, condenvel qualquer regime que, de direito ou de fato, considere as pessoas como objetos intercambiveis, as dirija ou as constranja contra a vocao do homem [...]; 3 - que a sociedade, isto , o regime legal, jurdico, social e econmico no tem por misso nem subordinar a si pessoas, nem assumir a realizao de sua vocao [...] 4 - a pessoa que faz seu destino: outra pessoa, nem homem, nem coletivi-dade pode substitu-la (MOUNIER, I, 1992, p. 209-210).

    Partindo destas consideraes, podemos dizer que o intuito do perso-nalismo a compreenso da pessoa enquanto totalidade e enquanto centro de todas as aes. O nosso dia a dia histrico deve se constituir numa afi rmao radical do carter inalienvel, insubstituvel e, portanto, absoluto da pessoa. Ao afi rmar o valor absoluto da pessoa, Mounier no est propondo a edio de um novo individualismo, pois o que ele mais combateu foi justamente o individualismo da civilizao burguesa.

    Para o personalismo, tomar o ser humano como pessoa apreend-lo como ser que se constri historicamente, como ser situado, ser de comunica-o, de adeso, de transformao. Isso mostra que o personalismo, ao apostar no ser humano, est tambm apostando na comunidade,

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    j que a pessoa comunicao essencial, sair de si, compreender, assu-mir o seu prprio destino e o destino das outras pessoas. A responsabilidade e a fi delidade so os eixos que estruturam a idia da comunidade como persona de personas (MOSQUERA, 1990, p. 33).

    Ao mesmo tempo em que afi rmou o valor absoluto da pessoa, Mounier anunciou tambm a importncia da vida comunitria. O homem, segundo Mounier, s se torna pessoa e se realiza enquanto tal em comunidade. neste sentido que, na perspectiva personalista, o social e o poltico so expresses do pessoal. por isto que Mounier clama em favor de uma revoluo, ao mesmo tempo, personalista e comunitria. Quer, assim, uma revalorizao da vida das pessoas e da vivncia comunitria. Para garantir essa reestruturao, necessria uma profunda transformao poltica e social, de modo que todas as instituies sejam estruturadas em funo da promoo da pessoa.

    O termo personalismo no novo. Ele foi, inicialmente, empregado por Renouvier (MOUNIER, 1964) em 1903, para nomear o seu pensamento. Mas foi com Mounier que ganhou radicalidade e dimenso de uma fi loso-fi a. Para Mounier, este termo responde ao desabrochar da fora totalitria, nasceu dela, contra ela; acentua a defesa da pessoa contra a opresso das estruturas. Entende Mounier (III, 1990, p. 181) que, sob este ngulo, o per-sonalismo corre o risco de reacender velhas manifestaes individualistas. Para evitar isto que ele teve a preocupao de associar a dimenso pessoal dimenso comunitria.

    Ao lanar as diretrizes bsicas da fi losofi a personalista, Mounier co-loca a pessoa como ncleo central de suas preocupaes. A pessoa passa a ser o centro orientador da refl exo e da ao do movimento personalista.

    Com essa orientao, possvel apreender a uma antropologia fi lo-sfi ca que procura compreender o homem enquanto pessoa. Entretanto, essa dimenso antropolgica no visa apenas a uma teorizao do universo pes-soal. A elaborao terica tem a fi nalidade de afi rmar o carter absoluto da pessoa. Por entender que a pessoa no um objeto e que , ao mesmo tempo, autoconhecimento e autorrealizao, Mounier no assume a inteno de defi ni-la de forma rigorosa e fechada. Para ele, s podemos conhecer a pessoa vivendo a experincia pessoal.

    Em Revolucin personalista y comunitria (I, 1992), Mounier apre-senta a seguinte questo: o que a pessoa? Ao responder esta questo, ele comea dizendo o que no a pessoa: no indivduo, pois este egocntrico, avaro e singular; no conscincia que algum tem de si mesmo, j que cada

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    homem cria vrias representaes de si. A pessoa um absoluto. Isto signi-fi ca que a pessoa vale por si mesma. Ela dotada de dignidade intrnseca (a dignidade humana). A pessoa nunca poder ser um meio, ter que ser sempre um fi m. A pessoa, na viso personalista, um ser integral, ser dotado de corpo e alma, desejos, liberdade, responsabilidade, transcendncia. Enquanto tal, capaz de conhecer, de decidir, de responsabilizar-se. Entretanto, estas capa-cidades no so dadas, so construdas nas relaes que o homem mantm consigo, com os outros, com Deus, com o meio natural e social.

    Existncia

    A existncia humana o ponto de partida e o postulado fundamental do personalismo. Isto signifi ca que h nessa perspectiva uma prioridade da existncia sobre a natureza humana, entendendo-se esta como um dado onto-lgico defi nitivo. Assim, o existir mais denso do que desenvolver uma determinada essencialidade; submeter-se contingncia, facticidade, in-terao com o outro e com o mundo, num esforo contnuo de personalizao (SEVERINO, 1983, p. XIV).

    Neste sentido, existncia pessoal uma existncia dialtica, no se reduz a um esquema rgido e fi xo de ser, no um desenvolvimento mecnico de potencialidades predeterminadas, mas uma relao contnua de confl itos entre a exteriorizao e a interiorizao.

    Quando o personalismo parte da existncia pessoal, no est levan-tando uma oposio essncia, a uma possvel essncia humana, pessoal. A essencialidade da pessoa, na perspectiva personalista, desenvolve-se por meio do projetar-se fora de si em face do real num retorno para si. Assim, podemos dizer que o homem um ser natural e transcendente: s ele capaz de conhecer, de transformar, de amar, de ser livre, de usar do determinismo natural como instrumento de superao. S ele capaz de ao construtiva (SEVERINO, 1983, p. XIV).

    Para que a vida ganhe plenitude, tambm preciso agir, pois na ao que se constri a trama da existncia. O agir tem sempre uma intencio-nalidade e esta deve orientar-se para a transformao da realidade interior (autoconstruir) e da realidade exterior (construir), para a afi rmao de novos valores que fundamentem a construo de uma comunidade de pessoas.

    O personalismo no fi ca preso a uma concepo meramente existen-cial nem a uma concepo essencialista. A existncia e a essncia fazem parte

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    de uma mesma totalidade: o homem. Este um ser imanente e transcendente. A nossa existncia uma expresso destas duas dimenses.

    Personalismo e fenomenologia Mounier elaborou um pensamento original. Rompeu com a fi losofi a

    tradicional ao apontar para a necessidade de se olhar para a pessoa com um novo olhar, v-la, no como uma coisa que pode ser dissecada ou explorada, mas como uma existncia humana, complexa, no objetvel, portadora de dignidade, que precisa ser respeitada. Sobre esta questo, afi rma Severino (1983, p. 30):

    Desde o primeiro contato com este pensamento, uma nica verdade sobres-sai e se impe: ele est todo centralizado na existncia do homem, sendo essencialmente uma antropologia. Mas no s por este fato, j de per si muito signifi cante e de grande relevncia, que faz o personalismo original e difi cilmente sistematizvel. antes a perspectiva sob a qual o homem encarado e tematizado que levanta uma dvida a respeito da possibilidade mesma de uma anlise estruturalizante deste modo de sentir e pensar.

    O homem no uma realidade objetal, com defi nies precisas que podem ser facilmente apreendidas, sobretudo sendo o homem um ser que tambm aquilo que ele prprio se faz, uma noo fi xista e esttica da na-tureza humana negligencia os mais ricos elementos construtivos da pessoa (SEVERINO, 1983, p. 32). Por isso, Mounier (III, 1990, p. 216) prefere falar de condio humana em vez de natureza humana, pois considera que esta conceituao se transformou numa defi nio rgida. Severino, expressando essa avaliao de Mounier, afi rma que a noo de natureza humana reduz o conhecimento do prprio homem: Esta noo tornou-se uma defi nio. bem verdade que, como resultado de um conhecimento, ela explica o homem, mas o faz custa de uma desintegrao e esmiuamento que o diminui em seu ser (SEVERINO, 1983, p. 32).

    A crtica de Mounier no , segundo Severino, contra o fundamento ontolgico da natureza humana, pois ele acredita neste fundamento. O que ele critica o sentido rigoroso que a noo de natureza humana assumiu a par-tir das abordagens racionalistas e positivistas. Por causa disto, ele considera que a noo de condio humana seja mais apropriada para designar a pessoa, esta permanncia aberta (Mounier).

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    Mounier avalia que sendo a pessoa a prpria presena do homem, sua ltima caracterstica, no susceptvel de defi nio cientifi cista. A pessoa apreendida por meio de uma experincia global, pois ela no se revela a partir de uma experincia imediata e puramente material, mas a partir de uma experincia progressiva de vida pessoal, complexa e misteriosa.

    Com a noo de condio humana, Mounier acredita que possvel apreender a pessoa na sua totalidade, enquanto mobilidade e permanncia, uni-dade virtual no tempo e no espao, determinao e fi nalidade: O absoluto hu-mano a totalidade da histria do homem (III, 1990, p. 217). Essa viso am-pliada da condio humana rompe com as concepes que veem a imagem do homem como uma imagem eterna, absolutizando-a. Para Severino (1983, p. 34), crises e desastres surgiram por causa desta confuso, por no ter visto que o relativo ainda impregna toda imagem humana, por mais perfeita que seja.

    Quando Mounier recusa a noo de natureza humana, que tem sido utilizada pela fi losofi a de inspirao iluminista, no est recusando toda essn-cia e toda estrutura ao homem, como muitas vezes procedeu o existencialismo. Para Mounier (III, 1990, p. 482), se cada homem s o que ele prprio se faz, no h nem humanidade nem histria.

    Mounier est preocupado em mostrar que uma viso apenas inte-lectual no consegue apreender a complexidade da existncia pessoal. Esta s apreendida na sua totalidade a partir da prpria vivncia. Eis por que a primeira iniciativa da fi losofi a no , segundo Mounier (III, 1990, p. 95), bem conhecimento, mas antes um apelo.

    O personalismo, segundo Severino (1983, p. 36), entende que uma simples defi nio teortica no consegue apreender a complexidade das riquezas inerentes presena ontolgica da pessoa. A apreenso dessa condio, ao mesmo tempo ontolgica e histrica, no pode ser feita apenas por intermdio de uma abordagem intelectual. Entra em jogo a experincia existencial do homem todo. O homem se conhece vivendo.

    Conhecer, na perspectiva personalista, no apenas a busca da siste-matizao de uma verdade impessoal e indiferente pessoa, mas uma verdade comprometida que responda a suas aspiraes, preencha suas expectativas, resolva seus problemas, (MOUNIER, III, 1990, p. 95).

    Nesta perspectiva, a pessoa no pode ser vista como uma cera sobre a qual imprimimos ideias e convices. A pessoa um movimento dia-ltico de aceitao e de recusa, de silncio e de manifestao.

    A tarefa do fi losofar mostrar a necessidade da experincia global para que a existncia humana possa ser apreendida na sua totalidade. medida

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    que percebemos o homem enquanto permanncia aberta, isto , enquanto pessoa, passaremos a olh-lo no como coisa, mas como ser humano. isso que Mounier deseja: que o conhecimento no seja apenas resultado de uma racionalidade objetivante, mas que seja fundamentalmente uma expresso do humano, do vivido, das emoes, enfi m, da vida.

    Com isto, Mounier conseguiu empreender uma viragem do esprito fi losfi co, transformando-o igualmente numa experincia existencial. Desta forma, a funo da fi losofi a passa a ser tambm a de evidenciar a condio existencial do homem, condio at certo ponto misteriosa, que suscita antes um esforo de compreenso do que de explicao (SEVERINO, 1983, p. XIII).

    O personalismo uma fi losofi a que afi rma o carter singular da exis-tncia, uma reao contra as fi losofi as das ideias e das coisas que desco-nhecem o homem e, por isso, o tratam como um simples objeto que pode ser decomposto. Ao se referir a esta questo, Severino (1983, p. XIII) afi rma que a fi losofi a da existncia no visa a centralizar-se na existncia como tal: mas tem uma sensibilidade prpria para um existente, o existente humano.

    Em face dessa afi rmao da existncia como postulado fundamental, o personalismo combate a atitude racionalista da fi losofi a que desconsidera o mundo vivido. Entretanto, isto no signifi ca uma prioridade da existncia sobre a conscincia, mas o reconhecimento de que ambas so constituintes do existir humano. A fi losofi a personalista transformou a razo num instrumento de revelao de toda realidade, inclusive da existncia pessoal: isto que contestam Existencialismo e Personalismo. o conhecimento, na sua signifi -cao clssica, que no mais aceito. Porque o homem precisa existir antes de e para conhecer (SEVERINO, 1983, p. 94).

    Para Mounier (III, 1990, p. 93), a fi losofi a racionalista esqueceu que o esprito que conhece um esprito existente, no uma realidade impessoal, abstrata, mas uma pessoa, um inesgotvel concreto, como afi rma Gabriel Marcel (SEVERINO, 1983, p. 94).

    Ao recusar a perspectiva metodolgica racionalista, positivista e impes-soal da fi losofi a iluminista, apontando para uma postura mais aberta, mais aco-lhedora, no vemos no personalismo, como afi rma Herv Chaigne (1969, p. 62),

    uma fi losofi a como as outras, isto , um simples saber racional ou ainda, um esforo para a sntese intelectual total do mundo e dos homens, mas essencialmente uma prtica da pessoa no mundo da natureza e dos homens, se bem que a melhor defi nio para esta fi losofi a seja a do personalismo realizado, praticado, no seio de uma civilizao.

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    Para o personalismo, a pessoa no apreensvel por um instrumento puramente racional como acontece com os demais objetos do conhecimento cientfi co ou fi losfi co. Segundo Mounier, a sistematizao lgico-conceitual elaborada pela Cincia ou pela Filosofi a esvazia a presena real da pessoa. O sistema aparece ento como um terceiro elemento abstrato que se interpe entre o fi lsofo existente e os demais existentes. O esprito conhecedor um esprito existente e tal, no em virtude de alguma lgica imanente, mas em virtude de uma deciso pessoal e criadora. Eis por que a primeira iniciativa da Filosofi a no bem um conhecimento, mas antes um apelo. A condio exis-tencial especfi ca da pessoa exige do fi lsofo um modo de contato que seja ade-quado a ela. Uma simples defi nio teortica no pode exprimir a complexidade das riquezas inerentes presena ontolgica da pessoa. A aproximao desta condio nica de aspectos duplos, ontolgicos e histricos, no pode ser feita apenas a partir de uma abordagem lgico-racional. Entra em jogo a experincia existencial do homem todo. O homem se conhece vivendo. Para se conhecer como ser pessoal, o homem no dispe de critrios de referncia imparciais ou como que descompro missados com sua prpria existncia. Esta postura uma exigncia de reformulao da epistemologia, que signifi ca, no interior do personalismo, a tentativa de elaborao de uma fenomenologia da existncia, situada entre o objetivismo radical da cincia e o subjetivismo da metafsica.

    Do ponto de vista epistemolgico, esse projeto personalista de uma nova e mais rica compreenso do ser da pessoa, que no seja aquela estru-turao objetivante da Psicologia e das demais cincias humanas ou aquela elucidao puramente lgica da metafsica essencialista, signifi ca a delimita-o de uma fenomenologia existencial. A fenomenologia, em geral, signifi ca uma nova metodologia do conhecimento, no sentido de superar os impasses epistemolgicos oriundos de uma concepo dualista que ope ser e conhecer.

    A busca da reformulao epistemolgica por parte do persona-lismo uma tentativa de elaborao de uma fenomenologia da existncia, situada entre o objetivismo radical da cincia e o subjetivismo da metaf-sica (SEVERINO, 1983, p. 131). Para Mounier, o personalismo no pode fundar-se numa psicologia cientifi cista, centrada numa orientao analtica e objetivista. A primeira orientao transforma o esprito num instrumento ma-nipulvel, que se compe e decompe. A segunda impede o afl oramento da subjetividade naquilo que ela tem de especfi co (SEVERINO, 1983, p. 131). Tambm no pode comprometer-se com a metafsica encerrada num subjeti-vismo fascinado pelos encantos das ideias puras. Afastando-se da histria e da experincia concreta da vida pessoal, a metafsica estratifi cou-se nos seus

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    prprios instrumentos lgicos, esquecendo-se da opacidade do ser, sobretudo do ser do homem (SEVERINO, 1983, p. 131). A abordagem do ser pessoal exige mais do que o estabelecimento de relaes objetivas e/ou lgicas. Do ponto de vista epistemolgico,

    este projeto personalista de uma nova e mais rica compreenso do ser da pessoa, que no seja aquela estruturao objetivante da psicologia e das de-mais cincias humanas, ou aquela elucidao puramente lgica da metafsica essencialista, signifi ca a delimitao de uma fenomenologia existencial. (SEVERINO, 1983, p. 131).

    A fenomenologia surgiu como uma tentativa de superao da dico-tomia entre sujeito e objeto, entre o homem e o mundo, entre o subjetivo e o objetivo, introduzida pelo racionalismo, pelo empirismo e pelo positivismo.

    O racionalismo afi rma que o conhecimento verdadeiro aquele que advm do sujeito. O empirismo advoga que o conhecimento vlido o que surge do objeto. J o positivismo afi rma que o conhecimento verdadeiro o que objetivo, neutro e empiricamente comprovado. Para a fenomenologia, essa dicotomizao equivocada. A experincia intencional nos mostra que esses dois polos so indissociveis, formam uma unidade, j que para a fe-nomenologia toda conscincia conscincia de algo. Isto afi rma o carter de intencionalidade da relao homem-mundo. O mundo aqui no entendido como o somatrio das coisas existentes nem dos objetos produzidos pelo homem. O mundo, na perspectiva da fenomenologia,

    apresenta um sentido que transparece na interseo das experincias tanto individuais como coletivas, e na inter-relao que se estabelece entre os diversos lugares desta mesma experincia. Isto, no entanto, no quer dizer que o mundo seja simplesmente o seu sentido. este sentido encarnado na existncia (REZENDE, 1990, p. 40).

    O mundo de que fala a fenomenologia o mundo humano, o mundo da cultura, produto das relaes homem-homem, homem-natureza. No h uma razo meta-histrica que defi ne a existncia do mundo. Essa existncia determinada pela trama existencial dos homens. Existe uma relao eminen-temente dialtica entre o homem e o contexto natural e cultural. Para Rezende (1990, p. 35-36), na concepo fenomenolgica,

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    o homem no o mundo, o mundo no o homem, mas um no se concebe sem o outro. neste sentido fundamental que a dialtica se faz presente no seio mesmo da estrutura fenomenal [...]; o que faz a funo existencial das duas a intencionalidade, isto , a experincia fundamental de um ser aberto-ao-mundo.

    Com isto, a fenomenologia provocou uma profunda reviso, tanto da concepo do sujeito (conscincia) quanto do objeto (mundo). Conscincia e subjetividade no so percebidas apenas como inteligncia, esprito, liber-dade, nem s corporeidade, determinismo, inconsciente, mas tudo numa cons-tante relao dialtico-existencial. Por sua vez, o mundo no visto s como matria, produto, instituio, condicionamento, mas mundo humano, marcado pela presena do homem ao mundo e no-mundo (REZENDE, 1990, p. 36).

    Outra concepo que a fenomenologia tenta superar a que reduz as explicaes do homem, da sociedade, da educao, etc. apenas aos fatores econmicos. Merleau-Ponty, pensando em Marx (1971, p. 14), afi rma que

    verdade, como disse Marx, que a histria no caminha sobre a cabea, mas verdade igualmente que ela no pensa com os ps. Melhor dizendo, no temos que nos ocupar nem com sua cabea nem com seus ps, mas com seu corpo.

    Consideraes fi nais

    O personalismo procurou, ao mesmo tempo, superar o pensamento espiritualista e o pensamento materialista. Contrariamente aos espiritualistas que acreditam que a insero do homem na histria signifi ca uma degradao do esprito, Mounier afi rma que a histria, a imerso do homem na natureza, condio fundamental para que este se realize enquanto pessoa. Essa insero no , segundo Mounier (1964, p. 41), o mal do homem: a encarnao no uma queda. Para Candide Moix (1968, p. 134-135), a pessoa s pode se elevar fi rmando-se sobre a matria. No questo de evadir-se dela, mas de transform-la, pois quem quiser se fazer de anjo termina tornando-se animal.

    afi rmao dos materialistas de que a realidade espiritual no existe, Mounier (1964, p. 50) apresenta a concepo de um homem que no s matria, mas unidade indissolvel entre corpo e esprito: A relao dialtica da matria conscincia to irredutvel como a existncia, quer de uma, quer de outra.

  • Pessoa, existncia e fenomenologia

    Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 22, n. 31, p. 455-468, jul./dez. 2010

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    O homem, enquanto ser encarnado, uma sntese dialtica das posi-es espiritualistas e materialistas:

    o homem no um esprito cado no mundo, no est aqui preso ou exi-lado, como um tmulo provisrio, tal como a ressonncia platnica da conscincia humana que ecoa atravs dos tempos [...]. Apesar de ser oca-sio permanente de alienao e de ser o lugar do impessoal e do objetal [...], a matria, o natural, no qual o homem se acha encarnado ou situado, constitui a base e a condio sine qua non de toda e qualquer elevao do homem: o homem apia-se na natureza para elevar-se. (SEVERINO, 1983, p. 46-7).

    Ao superar o idealismo espiritualista e a imanncia materialista, o personalismo se apresenta como um realismo integral porque capta todo o problema humano numa totalidade. Com isso, Mounier no procura o cami-nho mais fcil, pelo contrrio, opta pela realidade humana em toda a sua com-plexidade e dramaticidade. O homem, ao se relacionar com o mundo natural, procura transform-lo segundo seus projetos, imprimindo-lhe sua marca e impondo-lhe a soberania do universo pessoal. Essa transformao da natu-reza pelo trabalho humano deve ter como objetivo a humanizao: por isso que devemos negar a natureza como dado, para afi rmar como obra, como obra pessoal, suporte de toda a personalizao (MOUNIER, 1964, p. 52).

    Mounier desenvolveu uma rica refl exo sobre o sentido da existn-cia pessoal. Sua preocupao foi a de afi rmar o carter absoluto da pessoa, en-tendendo este como referncia de todas as aes humanas. Procurou apontar a humanizao como tarefa primordial do homem. Para isto, foi fortemente infl uenciado pelo pensamento fenomenolgico. Mesmo no tendo feito refe-rncias fenomenologia, possvel perceber que Mounier encontrou nesta perspectiva fi losfi ca as bases para desenvolver o pensamento personalista. Ele no se ocupou em discutir essa vinculao. Essa uma tarefa que est posta como desafi o para os pesquisadores do pensamento personalista de Emmanuel Mounier.

    Referncias

    CHAIGNE, H. Que o personalismo. In: DOMENACH, J-M. et al. (Org.). Presena de Mounier. Traduo de Maria Lcia Moreira. So Paulo: Duas Cidades, 1969.

  • PEIXOTO, A. J.

    Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 22, n. 31, p. 455-468, jul./dez. 2010

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    MOIX, C. O pensamento de Emmanuel Mounier. Traduo de Frei Marcelo L. Simes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968.

    MOSQUERA, J. J. M. Atualidade pedaggica e relevncia humana na obra de Emmanuel Mounier. Revista Filosfi ca Brasileira, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, p. 31-39, 1990.

    MOUNIER, E. O personalismo. Traduo de Joo Brnard da Costa. So Paulo: Duas Cidades, 1964.

    MOUNIER, E. Obras completas. Traduccin de Carlos Daz et al. Salamanca, Espaa: Sgueme, 1990. tomo III.

    MOUNIER, E. Obras completas. Traduccin de Juan Carlos Vila et al. Salamanca, Espaa: Sgueme, 1992. tomo I.

    MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepo. So Paulo: Freitas Bastos, 1971.

    SEVERINO, A. J. Pessoa e existncia: iniciao ao personalismo de Emmanuel Mounier. So Paulo: Cortez; Autores Associados, 1983.

    REZENDE, A. M. de. Concepo fenomenolgica de educao. So Paulo: Cortez; Autores Associados, 1990.

    Recebido: 20/07/2010Received: 07/20/2010

    Aprovado: 12/09/2010Approved: 09/12/2010