a constituição da pessoa segundo emmanuel mounier
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Emmanuel Mounier, um dos principais representantes do personalismo, filósofo profundamente engajado e aberto ao diálogo, consagrou sua vida ao aprofundamento do mistério da pessoa, procurando recuperar os fundamentos ontológicos capazes de dar sentido e sustentação à pessoa e às relações humanas. O pensamento de Mounier não somente pode ajudar a reencontrar o centro conceptual unificador das múltiplas linhas de explicação do fenômeno humano, como também é capaz de arrancar os seus leitores da passividade e da superficialidade, conduzindo-os a uma coerência de vida, a um comprometimento maior com a realidade e a uma existência legitimamente humana, no pleno sentido da palavra.TRANSCRIPT
Faculdade Católica de Fortaleza
Vicente Tomaz de Souza Junior
A CONSTITUIÇÃO DA PESSOA
SEGUNDO EMMANUEL MOUNIER
Fortaleza
2011
Faculdade Católica de Fortaleza
Vicente Tomaz de Souza Junior
A CONSTITUIÇÃO DA PESSOA
SEGUNDO EMMANUEL MOUNIER
Monografia apresentada ao Departamento de
Filosofia da Faculdade Católica de Fortaleza,
como requisito parcial para obtenção do grau
de Bacharel em Filosofia, sob orientação da
Professora Dra. Ir. Maria Celeste de Sousa.
Fortaleza
2011
Faculdade Católica de Fortaleza
Vicente Tomaz de Souza Junior
A CONSTITUIÇÃO DA PESSOA
SEGUNDO EMMANUEL MOUNIER
Defesa em: ___ / ___ / ___ Nota Obtida: _________
Banca Examinadora:
__________________________________
Profa. Dra. Ir. Maria Celeste de Sousa
Orientadora
____________________________________
Profa. Ms. Janine Barreira
Examinadora
Fortaleza
2011
Ao grande papa João Paulo II, no ano da sua
beatificação, homem apaixonado pela
humanidade.
AGRADECIMENTOS
A Nosso Senhor Jesus Cristo, Redentor da humanidade, por me ter sustentado e feito
encontrar sentido durante todo o curso de Filosofia.
Aos meus familiares, especialmente aos meus pais – Vicente e Elenita – e irmãs – Maria
Paula e Camilla –, meus primeiros formadores, que sempre incentivaram a minha vocação e
os meus estudos.
Ao Magistério da Igreja, pela sua incomparável esperança no ser humano e na construção da
civilização do amor.
Ao Moysés e à Emmir, por sua inspiradora paixão pelo coração do homem.
Aos irmãos de comunidade: Rodrigo, Thiago José, Jonas, Michel e Márcio, pela companhia
durante os três anos do curso de Filosofia.
Aos irmãos do Serviço de Evangelização e Formação Cristã do Colégio Shalom, Lilian
Pieroni e Márcio José, por terem favorecido imensamente a minha pesquisa.
Ao Felipe Alves, colega de faculdade, pelo empréstimo dos livros e pela motivação contínua.
Aos irmãos da minha atual casa comunitária da Comunidade de Vida, Casa Mãe 2, pela
intercessão e pelo apoio neste tempo tão exigente.
Aos Benfeitores da Paz, que me ampararam com a sua generosidade.
À Professora Dra. Ir. Maria Celeste de Sousa, pela orientação cheia de solicitude e atenção.
“Não quero que se passe um dia sem que
progridais em mim e sejais no íntimo do
coração a minha maioridade. Senhor, quero
que estejais de tal modo presente na obra, a
ponto de a destruirdes no seu interior se ela não
é a vossa vontade” (Oração de Emmanuel
Mounier por ocasião da edição do primeiro
número da revista Esprit – Mounier et sa
génération).
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................................ 7
CAPÍTULO 1 A DIMENSÃO CORPÓREA DA PESSOA.............................................. 12
1.1 O significado da corporeidade.......................................................................................... 13
1.2 Encarnação e Cristianismo................................................................................................ 14
CAPÍTULO 2 A DIMENSÃO INTERSUBJETIVA DA PESSOA.................................. 18
2.1 A comunicação como fato primitivo................................................................................. 18
2.2 O amor como força personalizante................................................................................... 21
2.3 Pessoa e comunidade........................................................................................................ 23
CAPÍTULO 3 A DIMENSÃO ESPIRITUAL DA PESSOA............................................. 27
3.1 A transcendência............................................................................................................... 28
3.2 O primado da vida interior................................................................................................ 31
CAPÍTULO 4 A DIMENSÃO ÉTICA DA PESSOA......................................................... 34
4.1 O necessário engajamento................................................................................................. 35
4.2 A construção da história.................................................................................................... 37
4.3 A força do testemunho...................................................................................................... 39
CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................ 41
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................. 44
7
INTRODUÇÃO
O século XX tem sido identificado como o período histórico onde a questão do
humano se impõe como uma grave necessidade. De fato, têm-se apresentado na
contemporaneidade fenômenos nefastos como, por exemplo, a exaltação do individualismo e
a indiferença do povo à situação política; a ditadura do relativismo moral e o reinado do
hedonismo, com suas consequentes ameaças à vida e à família; o enraizamento de uma
racionalidade meramente instrumental e o consumismo frenético; o abandono dos valores
humanos transcendentais, o niilismo, a elevação do índice de patologias psíquicas, além de
diversos outros tipos de opressão, violência e desrespeito à dignidade humana.
Tais fenômenos são, na verdade, resultado de uma crise da pessoa. Em nenhuma
época o homem tem-se feito tão problemático como na nossa. E isto porque nenhuma época
conheceu tão pouco o homem como a nossa. De fato, a máxima socrática “Conhece-te a ti
mesmo!” jamais experimentou tamanha atualidade. Quanto menos o homem conhece a sua
verdadeira natureza, mais ele se afasta da possibilidade de uma realização autêntica. A
história é testemunha dos desastres causados por visões débeis, reduzidas e distorcidas da
pessoa humana.
Emmanuel Mounier, um dos principais representantes do personalismo, filósofo
profundamente engajado e aberto ao diálogo, consagrou sua vida ao aprofundamento do
mistério da pessoa, procurando recuperar os fundamentos ontológicos capazes de dar sentido
e sustentação à pessoa e às relações humanas. O pensamento de Mounier não somente pode
ajudar a reencontrar o centro conceptual unificador das múltiplas linhas de explicação do
fenômeno humano, como também é capaz de arrancar os seus leitores da passividade e da
superficialidade, conduzindo-os a uma coerência de vida, a um comprometimento maior com
a realidade e a uma existência legitimamente humana, no pleno sentido da palavra.
Segundo Lorenzon, um grande estudioso do personalismo, a posição teórico-
prática assumida por Emmanuel Mounier ao longo de toda a sua existência
é um estilo de vida e de pensamento, que foi construindo em contato com os
acontecimentos. Sua presença nos dramas e nas grandes polêmicas do seu momento histórico foi decisiva, desencadeando todo um movimento de
8
reflexão e de atuação em favor de mudanças profundas, tendo como centro
uma visão filosófica e cristã unitária do homem, do mundo e da sociedade1.
Assim afirma o próprio Mounier: “Nosso humanismo é uma vontade de
totalidade. O mundo moderno dividiu o homem. Cada pedaço se estiola isoladamente.
Tentamos recompô-lo, conjugar nele o corpo e o espírito, a meditação e as obras, o
pensamento e a ação”2.
Ao entrar em contato com a vida de Emmanuel Mounier, não é difícil concordar
com Candide Moix – autor de uma das melhores obras sobre o pensamento mounieriano –,
quando afirma que o livro mais belo de Mounier é a sua própria vida – fonte e imagem de sua
obra –, marcada tanto por uma profunda coerência entre pensamento e ação, quanto por um
eloquente testemunho de esperança no ser humano e de sincero desejo de servi-lo. Nessa
perspectiva, não poderia faltar a este trabalho, ainda que à guisa de introdução, a apresentação
de alguns dos dados biográficos do filósofo personalista, bem como os seus fundamentais
traços de personalidade.
Nascido em Grenoble, na França, no dia 1º de abril de 1905, Emmanuel Mounier
pertence a uma família modesta, convivendo até os dezessete anos com seus pais, avós e uma
irmã mais velha. Durante toda a sua vida fará menção à suas origens camponesas, afirmando
ser, ele mesmo, um “homem das montanhas”. Profundamente ligado ao caloroso ambiente
familiar, foi um adolescente precocemente maduro, votado à meditação e à religiosidade.
Atendendo aos desejos dos pais, que queriam que buscasse uma profissão mais
prática, inscreve-se na faculdade de medicina, mas não se identificando, muda de orientação.
É quando inicia a sua amizade com Jean Chevalier, que ensinava filosofia em Grenoble e que
o motivava ao estudo da filosofia em vistas do apostolado religioso, que Mounier chega a
exercer tanto na Associação Católica da Juventude Francesa, quanto na Conferência de São
Vicente de Paulo.
Em 1927, Mounier defende sua dissertação para obtenção do Diploma de Estudos
Superiores de Filosofia, sobre O conflito do antropocentrismo e do teocentrismo na filosofia
de Descartes. Em 1928, parte como estudante para Paris, onde estabelecerá marcantes e
determinantes relacionamentos de amizade com Jacques Maritain, Jean Guitton3, bem como
com o Pe. Pouget4, a quem deve seu aprofundamento religioso e a sua segurança teológica.
1 LORENZON, Alino. Atualidade do Pensamento de Emmanuel Mounier. 2. ed. Ijuí: UNIJUÍ Ed., 1996. p. 100. 2 MOUNIER apud MOIX, O pensamento de Emmanuel Mounier. Trad. de Frei Marcelo L. Simões O. P. Rio de
Janeiro: Paz de Terra, 1968. p. 100. (Série Encontro e Diálogo). 3 Jean Guitton, pensador católico muito amigo do papa Paulo VI, participou do Concílio Ecumênico Vaticano II.
São luminosas as suas palavras dirigidas a Mounier, como uma homenagem póstuma escrita na revista Esprit de
9
No ano de 1931, prepara um trabalho sobre o pensamento de Charles Péguy, cuja
postura diante do mundo sempre encontrara ressonâncias em seu ser. A partir de Péguy, a
visão filosófica de Mounier também receberá influências de Henri Bergson5. Ambos
chamarão a sua atenção para o apelo dos acontecimentos. Neste mesmo ano Mounier inicia
suas publicações junto a um movimento de cultura religiosa denominado Les Davidées.
Após ter lecionado Filosofia por três anos em cursos de ensino médio6,
abandonando seus projetos de tese, Mounier, que, aos 28 anos, já era um líder, torna-se um
homem público, lançando, em 1932, a revista Esprit, diante da necessidade de combater as
desordens do seu tempo e de despertar o mundo que adormece na mediocridade, com a
colaboração de amigos como Georges Izard, Jean Lacroix, Jean-Marie Domenach7, Nicolas
Berdiaeff, Pierre-Aimé Touchard, Jacques Madaule, Pierre Henri Simon, Paul Ricoeur, dentre
outros. A experiência de Esprit é um sinal profético e um testemunho eloquente, uma vez que
nela trabalhavam católicos e não católicos, unidos em favor do homem.
Em 1935, Mounier casa-se com Paulette Leclerq, com quem terá três filhas. É
admirável a influência que a família, “modelo da comunidade selada no amor”8, exercerá
sobre o pensamento de Mounier. É realmente muito significativo o fato de que o filósofo da
pessoa seja também um pai de família.
Impressionante ainda é a resposta cristã dos Mounier à experiência de dor causada
pela grave doença que acomente, aos sete meses de vida, sua primeira filha, Françoise:
Não fomos feitos para horas fáceis, eis tudo. Mas é preciso, juntos, tornar
belas todas as que nos forem concedidas. Marcando pelos caminhos, há
pouco, tentei fazer cantar meu coração. Isto não custou muito. Bastava-me pensar que todo sofrimento integrado no Cristo perde seu desespero, sua
própria fealdade9.
dezembro de 1950: “Sois destes seres privilegiados que herdaram a simplicidade... Basta que apareçais, e logo
todos se agrupam em torno de vós”. 4 Sacerdote lazarista quase cego, que exerceu um extraordinário apostolado entre os intelectuais de seu tempo,
aproximando da fé grandes mentes como Albert Camus e Henri Bergson. 5 Severino acrescenta Platão, Pascal e Henri Delacroix às influências ao pensamento de Mounier. As próprias
obras de Mounier revelam ainda forte influência do existencialismo cristão de Gabriel Marcel, Kierkegaard,
dentre outros. 6 Como professor, Mounier procurava não transparecer suas tendências pessoais em detrimento de um ensino
que queria completo. Além disso, mostrava-se bastante respeitoso às pessoas, com uma presença irradiante. 7 Após a morte de Emmanuel Mounier, Domenach dirigirá a revista Esprit por aproximadamente vinte anos. 8 SEVERINO, Antônio Joaquim. A antropologia personalista de Emmanuel Mounier. São Paulo: Saraiva,1974.
p. 6. 9 MOUNIER apud MOIX, 1968, p. 19.
10
A revista Esprit, que pretendia ser instrumento de intercâmbio e auscultação das
principais aspirações e dos problemas cruciais do homem, vai avançando, não obstante
obstáculos internos e externos, sendo contudo interditada, em 1941, pelo regime Vichy –
governo fantoche da influência Nazi, estabelecido após o país se ter rendido à Alemanha
nazista na Segunda Guerra Mundial – reabrindo-se em 1944 e continuando sob a direção
pessoal de Mounier até 1950.
Página dramática da história de Emmanuel Mounier foi, sem dúvida, as suas
experiências de prisão, sob o mesmo regime Vichy, que duraram, ao todo, mais de um ano e
três meses – entre os anos de 1939 a 1942 –, e diante das quais Mounier dá uma resposta
digna de um homem da sua envergadura, demonstrando uma força interior inabalável e um
humor típico de quem é extraordinariamente senhor de si mesmo, guardando incólumes sua fé
e sua serenidade interior.
Como afirma Simon, um de seus colaboradores em Esprit, “nada mais exemplar
em Mounier do que a constância de uma meditação sempre dirigida para a ação e
fortalecendo-se de tudo que a experiência lhe traz, os encontros da amizade, as provações da
luta, a prece e o próprio sofrimento”10. Durante esta dura prova, o próprio Mounier afirmaria:
“Estou profundamente feliz de ter passado por aqui. É uma falta para um homem não ter
conhecido a doença, o infortúnio ou a prisão”11.
A morte prematura de Mounier, causada por complicações cardíacas, em 1950,
não lhe rouba o mérito de uma vida intensa, antes é conseqüência desta. Este homem
incansável morre na luta, atitude que é própria de quem está presente ao mundo e aos outros,
característica de quem ama e tem esperança na humanidade.
O presente trabalho pretende apresentar algumas das principais dimensões
constitutivas da pessoa, presentes sobretudo na obra O Personalismo, de Emmanuel Mounier.
Diga-se algumas dimensões, pois seria pretensioso demais abarcar, em poucas páginas, a
infinitude do universo pessoal, numa expressão cara a Mounier.
Outra observação a ser feita a respeito da divisão dos capítulos, é que ela é
meramente didática, visto que o personalismo não compreende o homem como um ser
fragmentado, senão como um ser unitário no qual uma dimensão só existe em relação com as
outras.
10 SIMON apud MOIX, 1968, p. 184. 11 MOUNIER apud MOIX, 1968, p. 27.
11
A ordem dos capítulos não segue nenhum tipo de orientação sistemática, visto que
o pensamento de Emmanuel Mounier é essencialmente dialético. Notar-se-á facilmente como
os conteúdos dos capítulos farão referência direta uns aos outros.
No primeiro capítulo será abordada a dimensão corpórea da pessoa, inserida na
dialética interioridade-exterioridade – relação necessária para se descobrir o real significado
da corporeidade como manifestação do ser pessoal. As implicações da existência encarnada
da pessoa ganham acentos especiais quando Mounier estabelece a relação entre Encarnação e
Cristianismo.
A dimensão intersubjetiva da pessoa é o assunto apresentado no segundo capítulo,
que argumenta que existe na pessoa um tipo de exigência ontológica de comunicação e de
relação com os outros, uma relação baseada no amor, capaz de construir, simultaneamente, a
pessoa e a comunidade.
O terceiro capítulo descreve os argumentos de Mounier em defesa da dimensão
espiritual da pessoa, que não deve ser entendida como fuga da realidade, mas como fator
determinante da eficácia de qualquer ação que se pretenda humana. Nesse sentido,
compreende-se tanto o imperativo de uma generosa abertura do ser humano à transcendência,
como também a necessidade de um primado da vida interior sobre o seu agir.
A dimensão ética da pessoa é o tema do quarto capítulo, que apresenta a ação
responsável como condição de realização da pessoa. A autenticidade da vida de uma pessoa se
prova, segundo Mounier, tanto pela qualidade do seu engajamento na construção da história
quanto pela força do seu testemunho.
12
CAPÍTULO 1 A DIMENSÃO CORPÓREA DA PESSOA
Segundo Mounier a existência pessoal constitui-se de dois movimentos
fundamentais que se implicam mutuamente. Trata-se da relação dialética entre interiorização
e exteriorização. Somente inserido nesta dinâmica simultaneamente conflituosa e positiva, é
que a pessoa encontra a possibilidade de um desenvolvimento integral. Segundo Marx, “um
ser que não é objetivo não é um ser”12. Ao que Mounier acrescenta: “um ser que só fosse
objetivo nunca atingiria esse acabamento do ser que é a vida pessoal”13. Para o personalista
francês, “as duas experiências não são separáveis: existir subjetivamente, existir
corporalmente são uma única e mesma experiência”14.
Outro nome dado por Mounier ao movimento dialético de interioridade e
exterioridade é a relação indivíduo e pessoa, encontrando aí uma “tensão dinâmica entre dois
movimentos interiores, um de concentração, outro de dispersão”15. Assim afirma Mounier:
“Eu sou e ajo inteiramente como indivíduo e pessoa indissoluvelmente unidos. Indivíduo e
pessoa não são dois seres em mim, mas a indicação de dois pendores de uma mesma crista, ou
de duas forças cruzadas como o motor e o freio: distintos, mas não separados”16. Segundo
Candide Moix, “a verdade é que nos tornamos pessoa na medida em que nos liberamos do
indivíduo e nos tornamos cada vez mais disponíveis”17.
A pessoa não pode ser tratada como objeto, mas precisa, enquanto sujeito,
“objetivar-se”, sob a condição de não realizar uma existência autêntica e plenamente humana.
Para Mounier, “não há interioridade sem exterioridade que lhe sirva de apoio e de
contrapeso”18.
Em O Personalismo, Mounier declara: “Nada há em mim que não seja misturado
de terra e de sangue”19. Com esta frase, o filósofo personalista defende que a pessoa está
mergulhada na natureza, fato que lhe é testemunhado pela sua própria corporeidade. A pessoa
não pode prescindir desta realidade encarnada da sua existência sem que isso lhe traga sérios
12 MARX apud MOUNIER, Emmanuel. O personalismo. 2. ed. Trad. de João Bernard da Costa. São Paulo:
Duas Cidades,1964. p. 51. 13 MOUNIER, 1964, p. 51. 14 Ibidem, p. 52. 15MOUNIER apud MOIX, 1968, p. 157. 16 Ibidem. 17 MOIX, 1968, p. 157. 18 Ibidem, p. 210. 19 MOUNIER, 1964, p. 40.
13
prejuízos. Esta verdade defendida por Mounier adquirirá particular gravidade quando ele se
dirige aos cristãos, devido à centralidade do mistério da Encarnação em suas vidas.
1.1 O significado da corporeidade
O realismo personalista é absolutamente contrário a qualquer tentativa que
pretenda separar o homem e o mundo, o espírito e a matéria. Nem tampouco a transcendência
e a imanência, ou o corpo e a alma do homem são passíveis de divisão. Segundo Mounier, “o
homem é integralmente ‘corpo’ e é integralmente ‘espírito’”20. Não se deve dizer, portanto, do
homem que este tem um corpo, mas sim que ele é também corpo. A encarnação é o próprio
modo de existir do ser humano, fator essencial da sua situação pessoal21.
Todas as experiências vividas por uma pessoa afetam igualmente sua alma e seu
corpo. Na verdade não há nenhum ato humano que não seja expressão da unidade absoluta
dessas duas realidades. A fala, por exemplo, que é expressão de um pensamento, não acontece
sem a participação dos pulmões, que liberam o ar, das cordas vocais, da língua, etc. Por outro
lado, o esforço físico e a dedicação de uma mãe no cuidado de um filho são expressões
concretas da sua ternura e do seu amor. “A relação dialética da matéria à consciência é tão
irredutível como a existência, quer de uma, quer de outra”22.
O personalismo, que confere tanto ao corpo quanto à alma do homem a mesma
dignidade, a dignidade da pessoa humana na sua totalidade, opõe-se, pois, ao idealismo
quando este reduz a matéria (e o corpo) a aparência do espírito humano, e quando dissolve o
sujeito pessoal ou o reduz a um simples posto receptor de resultados objetivos23.
De acordo com a concepção mounieriana, “o meu corpo não é um objeto entre
muitos outros, não é sequer o meu objeto mais próximo: como, sendo assim, se poderia unir à
minha experiência de sujeito?”24. Mounier entendia o corpo, e, neste, particularmente o olhar,
como “mensageiro do interior soberano”25. Para o personalista francês, “o olhar é a palavra
mais aguda da alma, [e] o corpo inteiro é a sua voz confusa”26. Assim sendo, o corpo consiste
em manifestação da vida interior da pessoa, transbordamento dos seus valores, expressão
viva do seu ser mais profundo.
20 MOUNIER, 1964, p. 40. 21 Cf. MOUNIER, 1964, p. 51. 22 Ibidem, p. 50, grifo nosso. 23 Cf. MOUNIER, 1964, p. 50, grifo nosso. 24 Ibidem, p. 51, grifo nosso. 25 MOUNIER apud MOIX, 1968, p. 207. 26 MOUNIER apud SEVERINO, 1974, p. 48.
14
Numa feliz máxima de Karol Wojtyla, que, além de papa, é um grande filósofo
personalista, o corpo é o sacramento da pessoa. “Sacramento entendido como sinal que
transmite, eficazmente, ao mundo visível o mundo invisível [...]: o espiritual e o divino” 27.
Interpretando a visão mounieriana de corporeidade, assim diz Moix: “É graças ao meu corpo
que eu sou, que eu comunico com o mundo e com o outro, é graças ao corpo que eu posso
agir”28.
Não posso pensar sem ser, nem ser sem o meu corpo: através dele exponho-
me a mim próprio, ao mundo, aos outros, através dele escapo à solidão de um pensamento que mais não seria que pensamento do meu pensamento.
[Ele] lança-me sem cessar para fora de mim na problemática do mundo e nas
lutas do homem. Através das solicitações dos sentidos, lança-me no espaço,
através do seu envelhecimento ensina-me o tempo, através da sua morte lança-me na eternidade. A sua servidão pesa-nos, mas ao mesmo tempo é
base para qualquer consciência e para toda a vida espiritual. É mediador
onipresente da vida do espírito29.
A interioridade do homem poderia ser comparada às raízes de uma árvore, que
ficam ocultas e que retiram da terra os nutrientes para produzir a seiva. Já a exterioridade da
pessoa é comparável aos galhos desta mesma árvore, dos quais devem pender os seus frutos.
Jamais uma árvore produziria frutos saudáveis e saborosos se não tivesse sendo alimentada
pela seiva que lhe vem das raízes. Da qualidade da vida interior de uma pessoa dependerá
também a qualidade dos seus frutos que são as suas obras. Por outro lado, jamais a riqueza
interior de uma pessoa será apresentada e oferecida ao mundo sem o concurso da sua
corporeidade.
1.2 Encarnação e Cristianismo
Sem dúvida alguma o pensamento de Mounier a respeito da “indissolúvel união
da alma e do corpo”30 é uma expressão da sua firme adesão ao cristianismo, que, segundo o
autor, além de não opor ‘espírito’ e ‘matéria’, ainda defende que “o ‘espírito’ funde-se com o
corpo na nossa existência”31, formando assim uma unidade consubistancial. Para Mounier, “o
cristão que fala com desprezo do corpo e da matéria, fá-lo contra a sua mais central
27 JOÃO PAULO II (papa); PETRINI, João Carlos e SILVA, Josafá Menezes da. (Orgs.) Homem e mulher o
criou: catequeses sobre o amor humano. Bauru, SP: EDUSC, 2005. p. 114. 28 MOIX, 1968, p. 137. 29 MOUNIER, 1964, p. 51. 30 Ibidem, p.40. 31 Ibidem.
15
tradição”32, pois “o homem se salva com seu corpo, e não contra ele”33.
Entretanto Mounier reconhece que em alguns momentos históricos o desprezo dos
gregos pela matéria revestiu-se de falsas justificaticas cristãs, o que não produziu senão
espiritualismos estéreis, experiências de fé intimistas e descomprometidas. A fuga do mundo,
segundo Mounier, é algo absolutamente incoerente com o mistério central do cristianismo
que é, precisamente, a encarnação do Filho de Deus. Esta verdade pode ser claramente
reconhecida na Constituição Pastoral Gaudim et spes, um dos mais importantes documentos
do Concílio Vaticano II:
Pois o próprio Verbo encarnado quis participar da vida social dos homens. Tomou parte nas bodas de Caná, entrou na casa de Zaqueu, comeu com os
publicanos e pecadores. Revelou o amor do Pai e a sublime vocação dos
homens, evocando realidades sociais comuns e servindo-se de modos de falar e de imagens da vida de todos os dias. Santificou os laços sociais e
antes de mais os familiares, fonte da vida social; e submeteu-se livremente às
leis do seu país. Quis levar a vida própria dos operários do seu tempo e da sua terra34.
Este mistério tem, na vida do cristão, uma série de implicações práticas, caso este
queira ser verdadeiro imitador de Cristo. Assim escreve Mounier: “O dever da encarnação, se
a ele fôssemos fiéis sem abusar da palavra, nos obrigaria [...] a contar como valor a
interioridade, mas também a nos expandirmos na natureza para conquistar a vida universal
para a interioridade”35. E acrescenta: “É preciso despertar do seu sono dogmático aqueles que
confundiram eternidade e intemporalidade e que, finalmente, por recusarem atualizar o eterno,
eternizaram o provisório”36.
Não é correto, portanto, falar de oposição entre o espiritual e o temporal. Convém
que se tenha uma constante vigilância que possa prevenir tanto a separação quanto a confusão
entre essas duas realidades. Além disso, Mounier entende que “não temos de trazer o
espiritual para o temporal, quando o espiritual já está no temporal. Nossa tarefa é descobrir o
primeiro no segundo e vivê-lo, propriamente comungar com ele”37.
O cristão deve aprender a recolher-se do temporal sem deixar de inserir-se no
temporal. Uma religião do puro espírito não seria uma religião de homens38. Segundo
32 MOUNIER, 1964, p. 41. 33 MOUNIER apud MOIX, 1968, p. 336. 34 CONCÍLIO VATICANO II. Constituição pastoral Gaudium et spes. 9 ed. São Paulo: Paulinas, 1991. p. 42. 35 MOUNIER apud MOIX, 1968, p. 299. 36 Ibidem, p.350. 37 Ibidem, p.306. 38 Cf. MOUNIER apud MOIX, 1968, p. 336.
16
Mounier, “tentação fortíssima para o cristão é sentar-se com enternecimento diante das belas
paisagens teológicas, enquanto a caravana humana prossegue sua marcha com os pés em
brasa”39. Para o fundador de Esprit, “o fogo da religião e do espírito devem irradiar em
atividade política”40.
Mounier dedicou algumas de suas obras à dimensão combativa da fé cristã. Em
uma dessas obras ele afirma que “os cristãos em massa perderam o hábito deste combate, à
força de tanto confundirem a vida interior com o confinamento subjetivista”41. Assim como
Pèguy, Mounier considerava insuportável a segurança mística de certos católicos, uma vez
que é próprio do místico possuir uma inquietude invencível42. O apelo místico não pode
substituir o esforço humano, antes deve impulsioná-lo e orientá-lo.
Emmanuel Mounier, imbuído do realismo, da coragem e da honestidade que lhe
são característicos, mas também inspirado por um grande amor à Igreja, não teme, antes se
sente impelido a fazer duras críticas ao que ele chama de mundo deformado dos cristãos, que
é resultado das incoerências e omissões dos discípulos de Cristo.
Mounier, que era profundamente conhecedor das obras de Nietzsche, diz que o
que este filósofo ateu atacava era exatamente uma caricatura cristã, e não o cristianismo na
sua essência. Mounier ainda “lamenta amargamente que os cristãos não sejam mais atentos a
Nietzsche, porque ele lhes revelaria sua infidelidade ao Evangelho, sua incapacidade de levar
a sério um cristianismo cheio de vida”43.
A máxima instigante de Emmanuel Mounier: “Aos cristãos só se pede que sejam
eles mesmos”44, foi certamente cunhada a partir da firme certeza que tinha de “que o
cristianismo, enquanto mensagem de Cristo, possui um poder revolucionário, um vigor típico
de personalidades fortes e heróicas, não sendo, de forma alguma, a negação da humanidade e
da vida nem o refúgio de desertores da luta”45.
O personalismo mounieriano revela que um autêntico humanismo será sempre
consonante com a religião cristã. Nessa perspectiva, há um relato de uma experiência pessoal
de Mounier que servirá de exemplo: “Só quando acabo de sair da meditação ou da comunhão
a mais purificada é que me sinto mais próximo dos homens, em contato mais rico com eles”46.
39 MOUNIER apud MOIX, 1968, p. 305. 40 Cf. MOUNIER apud MOIX, 1968, p. 307. 41 Ibidem, p. 311. 42 Cf. PÉGUY apud MOIX, 1968, p. 299. 43 LEDURE apud LORENZON, 1996, p. 102. 44 MOUNIER apud LORENZON, 1996, p. 100. 45 LORENZON, 1996, p. 103. 46 MOUNIER apud MOIX, 1968, p. 16.
17
Outra frase deste filósofo torna ainda mais evidente a missão do cristão no mundo: “dele é
exigida a arte de transfigurar as horas mortas, as ações medíocres, a monotonia cotidiana. Seu
dever é resgatar toda a sua participação na ‘náusea do mundo’”47.
Pode-se notar nas palavras de Mounier certo profetismo, visto que, mesmo cerca
de três décadas antes do Concílio Vaticano II, já levantava uma questão que a Igreja tornaria
uma prioridade pastoral: como tornar mais eficaz a sua presença no mundo.
As alegrias e esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje,
sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há
realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu
coração. [...] Porque a sua comunidade é formada por homens, que [...]
receberam a mensagem da salvação para comunicar a todos. Por este motivo, a Igreja sente-se real e intimamente ligada ao gênero humano e à sua
história48.
Destarte, pode-se exigir, naturalmente, que os cristãos sejam as pessoas mais
“encarnadas” do mundo, que estejam presentes aos dramas do seu tempo, que tenham atenção
aos apelos dos acontecimentos e sejam sensíveis a todas as ameaças à dignidade humana.
Outra tarefa que ainda se impõe ao homem a partir da sua existência encarnada é,
sem dúvida, uma profunda e coerente vivência da intersubjetividade. Além de ser alguém no
mundo, o homem é um ser com os outros, como se verá no próximo capítulo.
47 MOUNIER apud MOIX, 1968, p. 19. 48 CONCÍLIO VATICANO II, 1991, p. 6.
18
CAPÍTULO 2 A DIMENSÃO INTERSUBJETIVA DA PESSOA
Se a questão da intersubjetividade é paradigmática na contemporaneidade, pode-
se dizer, com propriedade, que o é ainda mais para o personalismo. Mounier defende que não
existe subjetividade sem intersubjetividade, nem existência que não seja igualmente
coexistência. Em uma palavra, viver é conviver.
O tema do outro, já muito trabalhado nos diversos existencialismos, é também
central no personalismo. Mounier parte do pressuposto de que a experiência fundamental da
pessoa reside na comunicação, como o demonstra Lorenzon: “Não somos seres solitários. A
linguagem, a razão e o próprio corpo testemunham e reclamam um direcionamento à
comunicação”49. Segundo o personalista francês, há no homem uma exigência ontológica de
ter alguém com quem se relacionar.
Na base desta comunicação está o amor, entendido como dom de si feito ao outro.
Mounier propõe uma metafísica da pessoa, segundo a qual o homem só se realiza na medida
em que sai de si para ir ao encontro do outro.
Radicalmente oposto a toda e qualquer forma de individualismo, o personalismo
mounieriano defende a restauração da intersubjetividade, entendendo que “a pessoa é
inseparável da comunidade – e incompreensível sem ela”50.
2.1 A comunicação como fato primitivo
Segundo Emmanuel Mounier, a pessoa é por natureza comunicável, visto que, no
mesmo movimento que a faz ser, ela se expõe: “Pela experiência interior a pessoa surge-nos
como uma presença voltada para o mundo e para as outras pessoas, sem limites, misturada
com elas numa perspectiva de universalidade”51.
Ao contrário de Nietzsche, para quem “toda a comunicação avilta”52, Mounier
defende que a pessoa só se afirma comunicando-se, só se possui quando se doa, só se encontra
quando se “perde” nesse sair de si em direção ao outro. Por mais profunda e bela que seja a
49 LORENZON, 1996, p. 71. 50 SEVERINO, 1974, p. 81, grifo nosso. 51MOUNIER, 1964, p. 63. 52 NIETZSCHE apud MOUNIER, Emmanuel. Introdução aos existencialismos. Trad. de João Bernard da Costa.
São Paulo: Duas Cidades, 1963. p. 138.
19
vida interior de uma pessoa, se esta não for partilhada, minguará, semelhante à água de um
poço que apodrece quando não é tirada constantemente. Os próprios bens da pessoa – sejam
eles materiais, espirituais, culturais ou intelectuais – perdem a sua razão de ser se não são
colocados a serviço dos outros.
Desta forma, pode-se afirmar que “o outro não é um limite do eu, mas uma fonte
do eu, a descoberta do nós é estritamente contemporânea da experiência pessoal. O tu é aquele
em quem nós nos descobrimos e pelo qual nós nos elevamos”53. Uma pessoa para quem os
outros se tornam estranhos, cedo tornar-se-á estranha a si mesma. É tão constitutiva da pessoa
esta relação de comunicação que, quando o alter se torna alienus para alguém, esse mesmo
alguém também se aliena.
Mounier acredita que a pessoa só se conhece através do outro, que “o melhor
espelho para o olhar do homem é o olhar do outro homem. [...] Entra um ser novo no espaço
imediato da minha vida, e tudo é posto em questão por esta simples presença”54. É por este
motivo que Mounier via no outro “uma fonte benfazeja e, sem dúvida, necessária de
renovação e de criação”55. A presença do outro é indispensável para que eu me torne eu
mesmo, pois ele me interroga, me convoca a crescer.
Não há para a pessoa, possibilidade de conhecer-se e realizar-se fora da dinâmica
da comunhão interpessoal, pois “o homem não é uma solidão irredutível, nem uma
consciência unicamente voltada para si mesma, mas sim, um movimento em direção ao outro
e do outro em direção a mim numa comunicação de existências”56. É nessa perspectiva que se
pode afirmar que a primeira preocupação do personalismo é descentrar a pessoa e colocá-la
em uma perspectiva de abertura, disponibilidade e generosidade.
Para Mounier o grande erro do Ocidente foi ter-se distanciado perigosamente da
verdade primeira de que o homem pessoal não é um homem isolado, mas um homem rodeado,
atraído, chamado. Esta verdade constitui o próprio alicerce do personalismo. Simplesmente
não há eu sem o tu e sem o nós.
A comunicação, segundo Mounier, “só começa com o sentido do outro, que é o
respeito do outro. Ter o sentido do outro é aceitar outrem diferente de mim mesmo, que pela
atenção e o respeito que lhe consagro, torna-se meu semelhante, outro eu mesmo”57. O
filósofo francês defende que a compreensão do outro é o que origina a consciência pessoal, e
53 MOUNIER, 1963, p. 162. 54 MOUNIER apud MOIX, 1968, p. 145. 55 Ibidem, p. 208. 56 LORENZON, 1996, p.25. 57 MOUNIER apud MOIX, 1968, p. 145.
20
“a relação intersubjetiva [é o que] constitui a experiência primordial de nossa existência”58.
Emmanuel Mounier não era alheio à realidade de que os fatos muitas vezes
parecem desmentir ou tornar paradoxal a afirmação de que a atitude essencial da pessoa seja
comunicar para verdadeiramente comungar. Alguns filósofos, como, por exemplo, Sartre e
Heidegger, baseados em experiências de comunhão frustradas, chegaram a considerar
impossível uma comunicação verdadeira, e viam no pretenso amor ao próximo nada mais do
que uma forma de amar a si mesmo.
A visão mounieriana sobre as relações humanas é bastante realista, mas não
pessimista. Diante dos revezes da fraternidade, Mounier defende que a solidão – que muitos
escritos pretendem apresentar como um dado da condição humana – é frequentemente obra
nossa, ou seja, nós é que nos tornamos solitários.
Desta forma, pode-se concluir que os tristes sinais de divisão entre os seres
humanos não são o resultado natural de uma imperfeição ontológica, mas, bem ao contrário,
são fruto da recusa voluntária à vocação para a comunhão inscrita no mais profundo do seu
ser; são ainda a negação de uma grande potencialidade e de uma tendência inata para a
relação interpessoal.
O fracasso da comunicação deve ser buscado no próprio ser humano, na negação duma existência autenticamente pessoal, no mundo do anonimato e
da impessoalidade, características da grande cidade, onde cada um desfila
indiferente ao outro. [...] Tomar consciência dessa vida anônima e indiferente seria o primeiro passo duma comunicação menos
descaracterizada. Conseqüentemente, uma generosa hospitalidade à verdade
e ao Outro contribuiria para a recuperação de certos obstáculos, que se interpõem no campo das relações intersubjetivas”59.
Mounier admite que o mundo dos outros não é um jardim de delícias, pois incita
para a luta, para a adaptação, para a superação; introduz o risco e o sofrimento no ponto exato
em que beirávamos a paz. Por isso, muitas vezes, o instinto de auto-defesa reage recusando-
o60. Entretanto, o outro é, ao mesmo tempo, um impulso motriz indispensável ao
desenvolvimento do sujeito. Fugir dessa tensão salutar seria sacrificar uma experiência
irrenunciável na constituição do ser pessoal.
A respeito da lucidez e da verdade que devem estar presentes nos relacionamentos
humanos, são significativas as palavras de Mounier em uma carta dirigida a sua mãe: “Há
58 LORENZON, 1996, p. 25. 59 Ibidem, p. 30. 60 Cf. MOUNIER apud MOIX, 1968, p.143-144.
21
feridas vãs, mas também há feridas necessárias. É por isso que muitas vezes os temores de
constranger, de fazer sofrer, de explicar, são contrários às verdadeiras relações humanas”61.
Sartre, segundo Emmanuel Mounier, “só quis ver no olhar dos outros um olhar
que sustém e detém, só quis ver na sua presença uma usurpação que me despoja e me
escraviza. A parte de verdade de tudo isto está em que [o outro] me perturba, introduz a
desordem em minhas convicções, meus hábitos, meu sono egocentrista”62. Mas, por outro
lado, Mounier via que, mesmo quando hostil, o outro é o mais seguro revelador de mim
mesmo, o que lhe permitia afirmar que a relação interpessoal positiva é uma provocação
recíproca e uma mútua fecundação.
2.2 O amor como força personalizante
Na base de toda experiência legítima de comunicação está o amor. Para Mounier
“o ato de amor é a mais forte certeza do homem, o ‘cogito’ existencial irrefutável: amo, logo o
ser é, e a vida vale (a pena ser vivida)”63. O amor é, assim, a fonte e o ápice da existência
pessoal.
Há ainda outra frase de Mounier que evidencia esse seu novo ‘cogito’: “Quase se
poderia dizer que só existo na medida em que existo para os outros, ou numa frase-limite: ser
é amar”64. Para ele, o fundamento de toda revolução personalista e comunitária é a verdade
suprema de que o homem não pode viver sem amor. Se não se desenvolve dentro da dinâmica
do amor, a vida humana permanece incompreensível e destituída de sentido.
O amor, segundo Mounier, é uma força que projeta a pessoa para fora de si, para o
mundo, para o outro, para o absoluto. É nesse sentido que o amor pode ser entendido como
força personalizante: a pessoa torna-se presente a si quando se dá. “Só nos encontramos
perdendo-nos. Só possuímos aquilo que amamos. Caminhemos mais além, até o fim da
verdade que nos salvará: só possuímos aquilo que damos”65. Mounier mostrava, já no
primeiro editorial de Esprit, que acreditava na possibilidade de fazer desta verdade uma
metafísica da pessoa.
Mounier argumenta ainda que “a vida pessoal é sucessiva afirmação e negação de
61 MOUNIER apud MOIX, 1968, p. 33. 62 MOUNIER, 1964, p. 68-69. 63 Ibidem, p. 68, grifo nosso. 64 Ibidem, p. 64, grifo nosso. 65 MOUNIER, apud MOIX, 1968, p. 146.
22
nós próprios”66. Entendendo-se esta negação não como um tipo de anulação ou depreciação
do sujeito, mas como um despojamento e uma ascese voluntários, pelos quais se renuncia a
algo de próprio em vista do bem de outrem. “A pessoa só se encontra quando se perde. A sua
fortuna é o que lhe fica na hora da morte”67. Mounier acredita que “a pessoa humana é uma
existência capaz de se libertar de si própria, de se desapossar, de se descentrar para se tornar
disponível aos outros”68. Quanto mais disponível aos outros, mais a pessoa estará presente a si
mesma.
Destarte, “uma vez que decifra incessantemente a sua vocação, a pessoa é a
própria gratuidade”69, pois passa a provar que o amor é a recompensa de si mesmo. Para
Mounier, o ímpeto pessoal reside na generosidade, no ato gratuito e na dádiva desinteressada
de retribuição70.
Outra característica do amor salientada por Mounier em várias de suas obras é a
compreensão, que consiste em situar-se no ponto de vista do outro, captando a sua
singularidade numa atitude de acolhimento, o que levará, necessariamente, a assumir o seu
destino, seus desgostos, alegrias e tarefas. O amor vence a indiferença, que é, em última
análise, uma lastimável forma de desprezo e desrespeito.
Além disso, amar o outro implica, dentre outras coisas, ter sobre ele um olhar
esperançoso. Quem ama enxerga as potencialidades do outro, trata-o “como um sujeito, como
um ser presente, [...] inesgotável, pleno de esperanças de que só ele dispõe; é fazer-lhe
crédito. Desesperar de alguém é desesperá-lo”71. O amor permite uma crença infinitamente
fecunda no outro.
Merece destaque também a relação que Mounier faz entre amor e fidelidade.
Segundo ele, “as dedicações pessoais, amor, amizade, só podem ser perfeitas na
continuidade”72 de uma fidelidade criadora que se renova e se constrói a cada dia. “Uma
pessoa só atinge a plena maturidade no momento em que opta por fidelidades que valem mais
do que a vida”73.
Diante do que ficou dito até aqui sobre a força personalizante do amor, fica
evidente porque Mounier considerava o individualismo – sistema que, segundo ele, organiza o
66 MOUNIER, 1964, p. 88. 67 Ibidem, 1964, p. 92. 68 Ibidem, p. 65. 69 Ibidem, p. 93, grifo nosso. 70 Cf. MOUNIER, 1964, p. 67. 71 MOUNIER apud MOIX, 1968, p. 146. 72 MOUNIER, 1964, p. 67. 73 Ibidem, p. 103.
23
indivíduo a partir de atitudes de isolamento, de recusa e de defesa – a própria antítese do
personalismo e seu maior inimigo.
O individualismo está nas fontes do mal. É o mais temível adversário do personalismo. Seu fundamento é o humanismo reivindicador, disfarce
“civilizado” do instinto de poder. Seu produto é o homem sem laços, sem
amor, indiferente ao outro porque cioso só de si mesmo, surdo ao grito das presenças espirituais. Quando diz prudência, entenda-se avareza, quando diz
independência, egoísmo dissimulativo. É a própria negação da comunhão
humana74.
Segundo Mounier, o individualismo desfigura o homem, asfixiando o seu impulso
à comunicação sob um modelo de homem privado que é o de uma “individualidade retirada
em suas propriedades, em seus esconderijos, na sua inviolabilidade impura, vida privada feita
não de amor, mas de recusa”75. Aquele senso divino do segredo dos corações foi, por assim
dizer, profanado pelo individualismo, que o transformou em um “segredo de cofres fortes [...],
num aviso geral: ‘Favor não tocar’, que não passa de uma demonstração contra o amor”76.
A própria constituição da sociedade, que, para Mounier, se dá,
necessariamente, pelo dom recíproco de seus membros, no reino do individualismo, não passa
de “justaposição de seres isolados, independentes, soberanamente livres, irresponsáveis,
proprietários ciumentos dos seus direitos, sem deveres, sem tradições”77.
À máxima individualista do “cada um por si” – feita de desconfiança do outro, de
competição e de egoísmo – Mounier responde com um pensamento que poderia ser traduzido
pelo “um por todos e todos por um” – que se constitui dentro de uma relação de lealdade, de
interdependência e de comunhão.
2.3 Pessoa e comunidade
Mounier considera um pleonasmo falar de civilização personalista e comunitária,
isto porque, para ele, pessoa e comunidade se supõem. A finalidade desta distinção é,
exatamente, a afirmação do justo valor dessas duas realidades e a sua unificação. “O elo da
pessoa com a comunidade é tão orgânico, a ponto de podermos dizer das verdadeiras
comunidades que são realmente e não figurativamente, pessoas coletivas, pessoas de
74 MOIX, 1968, p. 144. 75 MOUNIER apud MOIX, 1968, p.78. 76 Ibidem, p.77. 77 MOIX, 1968, p. 144.
24
pessoas”78.
Todo o esforço doutrinal do personalismo, segundo Mounier, visava “libertar o
senso da pessoa dos erros individualistas e das cadeias dos erros coletivistas” 79, gerando,
assim, o senso da verdadeira comunhão. Para o filósofo personalista, a ordem da pessoa
constitui-se de um movimento realmente dialético que se dirige tanto para a afirmação de um
absoluto pessoal quanto para a edificação de uma unidade universal. Essa unidade, entenda-se
bem, não é unidade de identidade nem uma pluralidade absoluta.
O pensamento mounieriano pretende oferecer uma síntese coerente entre os
extremos do subjetivismo e do coletivismo. Mounier, cuja existência sempre foi marcada por
uma admirável capacidade de diálogo, acreditava que um grande desafio imposto à
contemporaneidade é, precisamente, a reconciliação entre Kierkegaard e Marx.
A aprendizagem do nós, com efeito, não pode prescindir da aprendizagem
do eu. Acompanha-a e segue-lhe as vicissitudes: o anonimato das massas é
feito da dissolução dos indivíduos, a crispação das sociedades em nós corresponde a esse estádio em que a personalidade se afinca na afirmação
de si e se fecha80.
O que constitui a comunidade não são pessoas apagadas, mas plenamente
promovidas. O nós comunitário só se realiza a partir do dia em que “cada um dos membros
descobriu cada um dos outros como uma Pessoa, e começa a tratá-la como tal”81. Mounier
defende que é impossível fundar a comunidade esquivando-se da pessoa e que só há
civilização se esta for animada e inteiramente informada da preocupação primordial pela
pessoa humana. Não se totaliza um mundo de pessoas82.
Por outro lado, Mounier argumenta que o sujeito não se nutre autonomamente e é
incapaz de salvar-se sozinho, seja social seja espiritualmente. Diante da contemporânea
decadência do espírito comunitário, em que o homem, deslocado, torna-se incapaz de
encontros, o personalismo mounieriano dispõe-se a reencontrar a universalidade perdida e a
restaurar a “pessoa no serviço e no dom que deve ao mundo”83.
78 MOUNIER apud MOIX, 1968, p. 148. 79 Ibidem, p. 122. 80 MOUNIER, Emmanuel. Manifesto a serviço do personalismo. Trad. de António Ramos Rosa. Lisboa: Morais,
1967. p. 114. 81 MOUNIER apud MOIX, 1968, p. 152. 82 Cf. MOUNIER, 1964, p. 80. 83 MOUNIER apud MOIX, 1968, p. 122.
25
O personalismo recusa-se pois a afetar com um coeficiente pejorativo a
existência social ou as estruturas coletivas. Apenas distinguirá uma
hierarquia de coletividades, segundo o seu maior ou menor potencial comunitário, ou seja, a sua mais ou menos forte personalização84.
Nessa perspectiva, entende-se porque nem toda sociedade merece ser chamada de
comunidade. Aliás, segundo Mounier, jamais houve tantas sociedades e tão poucas
comunidades. Há, sem dúvida, um grande número de homens que passam sua vida sem
experimentarem uma única comunhão verdadeira. Muitas experiências supostamente
comunitárias, até mesmo familiares, não passam de conglomerados impessoais, meros
agrupamentos motivados mais pelas circunstâncias que pela liberdade.
Caberia aqui a percepção que Mounier tem da família e do seu papel inalienável
na edificação da pessoa e da comunidade. Segundo o filósofo personalista,
a sociedade familiar é uma das mais espirituais [...], comunica densidade e
íntima luz. Célula social, a primeira das sociedades, lugar onde se aprendem
as relações humanas. Seus desequilíbrios internos comunicam-se às
sociedades em que vivem. Ponto de articulação do público e do privado. Socializa o homem particular e interioriza os costumes. Centro capital do
universo pessoal, pelo seu papel de mediação. A família é (tem) um frágil
milagre, tecido pelo amor, educador do amor85.
A concepção que Mounier apresenta de pessoa e de comunidade baseia-se, em
última instância, no ensinamento cristão acerca da Santíssima Trindade. Este mistério de Deus
em si mesmo deve ser espelho e fonte de inspiração para toda e qualquer comunidade
temporal, visto que “a Sociedade Trinitária é um Ser Supremo no qual intimamente dialogam
pessoas diferentes, um Ser que é já, por Si próprio, negação da solidão”86.
Mounier acredita que o movimento da História dirige-se para “a universalização
progressiva dos grupos humanos nas comunidades cada vez mais vastas que prepararam ao
final a comunidade total dos homens”87. Entretanto, considera oportuno lembrar que “a
humanidade não é mais do que uma abstração impensável e o meu amor da Humanidade um
pendatismo se eu não testemunhar em torno de mim esse gosto ativo e cordial das pessoas
singulares, uma porta aberta a todo o estranho”88. Assim afirma Moix: “cada vez que me
esforço por criar próximos em torno de mim, mais facilmente serei disponível a todo homem
84 MOUNIER, 1964, p. 73. 85 Ibidem, p. 185. 86 Ibidem, p. 26. 87 MOUNIER apud MOIX, 1968, p. 138. 88 MOUNIER, 1967, p. 115.
26
que encontrar”89. Urge, portanto, que cada pessoa humana se reconheça artífice indispensável
da comunhão universal, a começar pelos mais próximos dentre os próximos.
Vale lembrar que o chamado à construção da sociedade pelos indivíduos não os
dispensa de um trabalho de auto-formação. É preciso enriquecer-se interiormente para, em
seguida, enriquecer os outros. Ninguém pode dar o que não tem. Antes de fazer-se dom, é
necessário descobrir o próprio valor por meio da vida interior. O próximo capítulo aborda o
homem em sua dimensão espiritual.
89 MOIX, 1968, p. 153.
27
CAPÍTULO 3 A DIMENSÃO ESPIRITUAL DA PESSOA
O mesmo ímpeto evidenciado na maneira como Mounier apresenta as exigências
da vida encarnada do homem também pode ser reconhecido no seu pensamento acerca da
dimensão espiritual da pessoa. O personalismo mounieriano pretende fazer o homem
encarnado na história voltar-se para os valores que transcendem a história: “O homem é uma
planta fixada na terra. Mas sua destinação atravessa-lhe o destino como um fluxo de seiva e,
sem arrancá-lo de seu solo, eleva-o cada dia mais alto”90.
Numa expressão metafórica, pode-se dizer que Mounier combate ardorosamente
tanto a cidade das almas sem corpo, quanto à cidade dos corpos sem alma. Como foi falado
no primeiro capítulo, só há possibilidade de realização para o ser humano se a sua vida se
move entre uma dupla polaridade constituída de exterioridade e interioridade.
O fundador de Esprit é radicalmente desfavorável aos perniciosos dualismos que
contrapõem ação e contemplação, engajamento social e cultivo da vida interior. Para ele,
“sem a vida exterior, a vida interior tornar-se-ia incoerente, tal como, sem vida interior,
aquela mais não seria que delírio”91.
Para Mounier, um ser não age senão em proporção com o que é, e não é senão na
medida em que se faz. Assim, ele endossa que o ser humano deve ser contemplativo na ação,
tendo sempre presente à sua prática a sua dimensão interior.
A experiência de interioridade, se genuína, não pode ser obstáculo ao
compromisso; antes, é condição da qualidade e do vigor deste, verdade que Mounier sublinha
em várias de suas obras:
O amor é luta; a vida é luta contra a morte; a vida espiritual é luta contra a
inércia material e o sono vital. A pessoa toma consciência de si própria, não no êxtase, mas numa luta de força. A força é uma dos seus principais
atributos; não a força bruta do poder ou da agressividade em que o homem
renuncia a si próprio para imitar o choque material, mas a força humana,
simultaneamente interior e eficaz, espiritual e manifesta92.
O realismo integral personalista defende que “a pessoa demasiadamente
objetivada, torna-se prisioneira das solicitações externas, empobrecendo a ‘vida oblativa’,
90 MOUNIER apud MOIX, 1968, p. 90. 91 MOUNIER, 1964, p. 96. 92 Ibidem, p. 103, grifo nosso.
28
enquanto que a pessoa, fechada sobre si mesma, recusa-se a uma aceitação do outro e da
realidade”93. Uma ação, para ser sã e viável, não pode desprezar nem uma preocupação de
eficácia nem tampouco o contributo duma vida espiritual.
Diante das ameaças tanto do materialismo quanto dos espiritualismos, a
concepção mounieriana, que pretende ver o homem na sua unidade e complexidade, afirma
que “o espiritual [...] é o homem integral, reencontrando sua ordem, e, segundo esta ordem,
até as últimas consequências de suas responsabilidades, pensando, querendo, ultrapassando-
se, consagrando-se”94.
A riqueza da vida espiritual de uma pessoa pode, em certa medida, ser verificada
por meio da sua capacidade de transcender rumo aos valores e, desta forma, também em
direção a sua própria essência. Além disso, contra o ativismo estéril da modernidade,
Emmanuel Mounier relembra a todos a necessidade de se viver um primado da vida interior.
3.1 A transcendência
O homem, para o personalismo, sendo um ser natural, é mais que um ser natural,
pois ele transcende a natureza. Esta realidade da transcendência humana pode ser constatada
na possibilidade que o homem tem de conhecer e transformar a natureza, mas sobretudo na
sua capacidade de amar.
Em O personalismo, Mounier afirma que “mil fotografias sobrepostas não nos dão
um homem que anda, que pensa e que quer [...] A pessoa não é o mais maravilhoso objeto do
mundo, objeto que conhecêssemos de fora, como todos os outros. É a única realidade que
conhecemos e que, simultaneamente, construímos de dentro. Sempre presente, nunca se nos
oferece” 95, pois nos transcende. Viver como uma coisa, sem dimensão interior, é para o
homem como uma demissão ou expulsão de si próprio.
Para Mounier, tal transcendência não é um estado fora do alcance da pessoa, mas
um movimento interior que a eleva. “No cerne mesmo da vida cotidiana, a pessoa é
convocada a se completar pela solicitação dos valores situados no infinito”96.
Convém, portanto, que cada homem não cesse jamais de transcender-se, ou seja,
de partir em busca do centro de si mesmo, daquela região interior que irradia a sua eminente
93 LORENZON, 1996, p. 26. 94 MOUNIER apud MOIX, 1968, p. 232. 95 MOUNIER, 1964, p. 19. 96 LORENZON, 1996, p. 53.
29
dignidade, à procura do seu segredo e da sua essência. Para Mounier, essência e existência
são duas dimensões indissociáveis na experiência humana. A medida da autenticidade da
existência de uma pessoa é também a medida da consciência que tem da sua essência.
O filósofo personalista rejeita a tirania das definições formais que procuram
classificar as pessoas, mas também é contrário à posição de alguns existencialistas que negam
ao homem toda essência e toda estrutura. A História é testemunha de que quando a
organização e a ideologia desprezam o absoluto pessoal, elas levam, tal como as paixões, à
crueldade e à guerra97.
Negar a permanência do homem sob a diversidade de sua fisionomia é abrir
caminho à desumanidade, é consentir em todos os crimes, mesmo quando não cometidos do próprio punho. [...] É tarefa urgente lembrar a este mundo
tumultuado a presença do homem eterno por trás da fisionomia mutável da
História. Da afirmação que não há natureza humana, há muitos que
concluem que tudo é permitido ao homem, e abandonam todo freio98.
Há portanto, para Mounier, uma relação intrínseca entre transcendência e valores.
De fato, ele reconhece no homem um movimento para ir sempre mais longe, e compreende o
ser pessoal como generosidade, feito para se ultrapassar. A vida espiritual do homem
apresenta-se como “uma realidade à qual damos uma adesão total que nos ultrapassa, nos
impregna, nos engaja integralmente, soerguendo-nos para além de nós mesmos”99. No termo
deste movimento de transcendência encontram-se, justamente, os valores que, para Mounier
“são fonte inesgotável e viva de determinações, exuberância, apelo irradiante”100.
Além disso, o filósofo personalista entende que a pessoa e os valores só se
reconhecem e se realizam um no outro. Ao mesmo tempo em que defende que as pessoas não
existiriam plenamente sem os valores, Mounier também entende que os valores só existem
incorporados em sujeitos concretos, pois o seu lugar é o coração vivo das pessoas. Somente o
fiat101 pronunciado pelas pessoas é que permite aos valores acederem à existência.
O homem só se mantém de pé com um mínimo de força ascensional. Quando
perde altura se rebaixa muito abaixo do animal. “Não existimos definitivamente senão no
momento em que constituímos um círculo interior de valores e de dedicações, acerca dos
97 Cf. MOUNIER, 1964, p. 75. 98 MOIX, 1968, p. 142-143. 99 MOUNIER apud MOIX, 1968, p. 99. 100 MOUNIER, 1964, p. 130. 101 Fiat, expressão latina, cara aos cristãos, que se pode traduzir por “faça-se”, e que, dentre outros significados,
pode indicar uma adesão incondicional a algo.
30
quais sabemos que mesmo a morte nada conseguiria contra eles”102. A certeza do valor dos
valores surge na plenitude da vida pessoal e na alegria que é inseparável da vida valorizada.
É nessa perspectiva de reconhecimento e valorização da transcendência humana
que se encontram também as críticas de Emmanuel Mounier ao materialismo marxista que,
para ele, consiste numa violenta reação provocada pela traição do espírito. “Nós designamos
por materialismo uma filosofia que insistindo exatamente sobre um humanismo do trabalho e
da função produtora, considera como ilusões outras dimensões não menos essenciais do
homem, notadamente a interioridade e a transcendência”103.
Segundo Mounier, o primado do material é uma desordem grave, pois as soluções
biológicas dos problemas humanos, por mais perto que estejam das necessidades mais
elementares e imediatas das pessoas, são incompletas e frágeis, se não forem tomadas em
conta as mais profundas dimensões do homem. Além disso, “a mais racional estrutura
econômica, se estabelecida com desprezo das exigências fundamentais da pessoa, trás dentro
de si a própria ruína”104. O progresso material é “a base e a condição necessária, mas de
nenhum modo suficiente, de uma vida mais humana, mas nunca seu coroamento e seu
sustento”105.
O marxismo, que tinha a ambição de dar uma explicação total do homem – uma
vez que deixara de se apresentar somente como método de análise para se apresentar como
pretensa antropologia –, esqueceu-se de reservar um lugar “na sua visão ou na sua
organização do mundo a esta forma última da existência espiritual que é a pessoa, e a seus
valores próprios: a liberdade e o amor”106. Contra o marxismo, Mounier afirma que “não há
civilização e cultura humana senão metafisicamente orientadas”107.
A história contemporânea testemunha que, quando desaparecem no seu aspecto
cristão, as formas religiosas de transcendência reaparecem sob outros quaisquer dados:
divinização do corpo, da coletividade, dum chefe, dum partido, etc. Separado da
transcendência, o homem chama de felicidade a adaptação biológica e social, o que não passa
de um nocivo reducionismo que não raro conduz ao vazio existencial e à degradação da
própria dignidade humana. “Só é humano o mundo que der suas possibilidades às exigências
102 MOUNIER, 1964, p. 134. 103 MOUNIER apud MOIX, 1968, p. 243. 104 MOUNIER, 1964, p. 49. 105 MOUNIER apud MOIX, 1968, p. 93-94. 106 Ibidem, p. 242. 107 Ibidem, p. 251.
31
essenciais do homem”108.
Mounier, que desde a sua juventude demonstrou grande sensibilidade e
compaixão pelos pobres, chegando, por assim dizer, a tocar com o dedo a miséria humana
enquanto era membro da Conferência de São Vicente de Paulo, não considera pobres somente
aqueles materialmente desprovidos, mas também aqueles que ignoram ou recusam a luz, cuja
porta de acesso não é senão a abertura aos valores transcendentais.
3.2 O primado da vida interior
Segundo Emmanuel Mounier, “a pessoa, que é originalmente movimento para os
outros, 'ser para', também se caracteriza por uma vida secreta onde destila a sua riqueza. A
fase recôndita da vida pessoal não é oposta ao movimento de comunicação, mas pulsação
complementar”109. Mounier entendia o espiritual não como uma máscara ou escapatória, mas
como um meio de encontrar-se antes de exteriorizar-se, restaurando em si mesmo os valores
para, posteriormente, expressá-los nas mais diversas ações e relações.
Ao defender a primazia da vida interior, Mounier não pretende afirmar que ela
seja mais importante que o engajamento, mas deseja lembrar que toda ação deve ser
continuamente alimentada pela meditação. A vida interior é para a atividade humana aquilo
que a alma é para o corpo. Destarte, “a grande onda de barbárie está nos nossos corações
vazios, nas nossas cabeças, perdidas, nas nossas obras, incoerentes, nos nossos atos, estúpidos
por força de visão estreita”110.
A mais grave das ameaças para o homem, segundo Mounier, é o risco de perder-
se nas suas fabricações em vez de se perder na sua consciência111. “A ação não tem como
principal fim a construção duma obra exterior, mas a formação daquele que a executa, a sua
capacidade, as suas virtudes, a sua unidade pessoal. Esta zona de ação ética tem seu fim e sua
dimensão na autenticidade”112.
Falando especificamente sobre a ação política, o fundador de Esprit afirma que
esta é um órgão da ação espiritual dos sujeitos, e não o inverso. Para ele, que se considerava
um revolucionário em nome do espírito, não pode haver revolução material sem que esta
esteja enraizada e orientada espiritualmente. Não pode haver ação válida sem uma autocrítica
108 Ibidem, p. 90. 109 MOUNIER, 1964, p. 81. 110 MOUNIER apud MOIX, 1968, p. 369. 111 Cf. MOUNIER apud MOIX, 1968, p. 276. 112 MOUNIER, 1964, p. 157.
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constante. “Sem o diálogo interior toda revolução se encaminha para o fracasso”113.
Para Mounier, a vida espiritual é a base de toda ação sólida, “uma dimensão
interior inalterável, nossa razão de ser e nossa razão de agir”114. Entendendo que o fazer deve
seguir-se ao ser, Mounier propõe uma revolução espiritual que consiste na restauração dos
valores espirituais traídos, e que deve ser empreendida por cada um contra si mesmo. A
verdadeira revolução é antes de tudo interior: “Não é nas urnas ou na rua que jogamos com a
sorte da pessoa, é antes de tudo em cada um de nós”115.
Toda transformação social passa, necessariamente, pelos indivíduos singulares.
Para o personalista francês, as instituições não são capazes de fazer um homem novo
prescindindo de “um trabalho pessoal do homem sobre si mesmo, no qual ninguém pode
substituir ninguém”116. Segundo Mounier, é no segredo do coração que se decide, por opção
pessoal, a transmutação do universo117. Em um número de Esprit de 1934, ele afirmava: “Só
merecemos nossa revolução se começarmos por passarmos nós mesmos por completa
transformação”118.
Na obra O Personalismo, mais precisamente no capítulo que trata sobre a
necessidade do homem de empreender continuamente uma conversão íntima, Mounier
defende que não há crescimento pessoal sem recolhimento. As distrações da nossa civilização
dispersam as vozes interiores e podem fazer o homem se confundir com o tumulto exterior,
encerrando-se fora de si próprio. Para Mounier, a unificação interior da pessoa começa com a
capacidade de romper contatos com o meio. O recolhimento liberta-a da prisão das coisas e de
uma vida sobrecarregada de solicitações exteriores.
Segundo o personalismo mounieriano, o recolhimento não é um movimento de
fuga, mas uma concentração de forças para um melhor engajamento. Fazer retiro é algo bem
diferente de bater em retirada. “A pessoa recua para depois saltar melhor”119. Nesse sentido,
a pessoa não “busca o silêncio pelo silêncio, nem a solidão pela solidão, mas o silêncio
porque nele preparamos a vida, a solidão porque nela reencontramos o homem”120.
O movimento de meditação é simplificador, capaz de atingir diretamente o centro
113 MOUNIER apud MOIX, 1968, p. 273. 114 MOUNIER apud MOIX, 1968, p. 99. 115 Ibidem, p. 236. 116 Ibidem, p. 112. 117 Cf. MOUNIER, 1964, p. 25. 118 MOUNIER apud MOIX, 1968, p. 110. 119 MOUNIER, 1964, p. 82. 120 MOUNIER apud MOIX, 1968, p. 210.
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da pessoa e conduzi-la à harmonia interior. Além disso, “a reflexão não é somente um olhar
interior; é também intenção, projeto de nós próprios. [...] A consciência íntima não serve de
bastidores onde a pessoa entorpeça, é como a luz, presença secreta e no entanto irradiando
para o mundo inteiro”121.
Falando de recolhimento, Mounier também é levado a falar de segredo. Para ele,
tudo o que tem valor no mundo é cheio de silêncio122. Pelo fato de a pessoa ser inefável e
ultrapassar, em sua profundidade, todo tipo de conceituação, deduz-se que a sua vida esteja
naturalmente vinculada a um tipo de segredo.
As pessoas completamente viradas para fora, para a exibição, não têm segredos, não têm densidade, nem nada por detrás delas. Lêem-se como um
livro aberto, e depressa se esgotam. Não têm experiência desta profunda
distância, ignoram o ‘respeito pelo segredo’, pelo seu ou pelo dos outros. [...] A reserva na expressão, a discrição, são manifestações de respeito da pessoa
pelo seu infinito interior que não se comunica de forma direta123.
É ainda por meio da vida interior que a pessoa toma consciência da sua
singularidade e da sua vocação primária, que é, antes de tudo, ser integralmente ela mesma,
desenvolvendo as riquezas da sua individualidade e afastando-se das ameaças do ecletismo e
da uniformidade. Para Mounier, a originalidade é subproduto da vida pessoal: “Toda pessoa
tem uma significação tal, que o lugar que ocupa no universo das pessoas não pode ser
preenchido por outra qualquer. Esta é a magistral grandeza da pessoa, que lhe confere a
dignidade dum universo”124.
Ao final deste capítulo, convém salientar que o cultivo da vida interior não pode
ser entendido como centralização ou fechamento, pois, dentro da dialética interioridade-
exterioridade desenvolvida por Mounier, a vida espiritual é como a mola propulsora e
também condição necessária de toda ação legitimamente humana. Para o homem, a qualidade
do ser resultará, necessariamente, na qualidade do agir. O próximo capítulo pretende
apresentar o pensamento mounieriano acerca dessa dimensão ética da pessoa.
121 MOUNIER, 1964, p. 87. 122 Cf. MOUNIER apud MOIX, 1968, p. 367. 123 MOUNIER, 1964, p. 84. 124 Ibidem, p. 92-93.
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CAPÍTULO 4 A DIMENSÃO ÉTICA DA PESSOA
Segundo Antônio Joaquim Severino, um grande especialista brasileiro em
Emmanuel Mounier, entendendo por ética, “em sentido bem geral, a ação que deve levar o
homem a constituir seu destino na perspectiva de sua situação e dos valores, pode-se dizer que
o Personalismo é essencialmente uma ética, fundada nas dimensões ontológicas de sua
metafísica da pessoa”125.
Mounier, cujo pensamento oferece uma síntese entre vida do espírito e ação
responsável, compreende a ação como “a superabundância da alma a serviço dos homens”126.
Desta forma, o agir de um sujeito consiste na irradiação de sua pessoa em benefício dos
outros. Quanto mais alguém é, mais ativo e comprometido será com a realidade que o cerca.
De acordo com Moix, “a interioridade pura é uma evasão. A existência pessoal só se realiza
assumindo a condição humana”127.
A doce intimidade onde encontramos as fontes interiores e nos refrescamos pode
ser “amolecida pelo gosto duma vida vegetativa, fechada e bem rodeada, como a do feto no
seio da mãe”128; pode ser a retirada dum combate pessoal, embora revestida de valores ligados
ao recolhimento. É preciso, pois, salvaguardar os valores da intimidade deste tipo de
profanação.
A pessoa, segundo Mounier, se prova pelos engajamentos, pois ela “é um ser de
resposta. [...] É ato ou não é pessoa”129. Ser alguém em estado de se engajar livre e
responsavelmente é uma característica central da vocação da pessoa: “As meditações, as
retificações intelectuais, as generosidades, as construções técnicas de nada valem se os
homens não se engajam com atos e compromissos”130.
Ao afirmar que “o agir é a própria via da personalização”131, Mounier também
defende que a atividade humana deve ter como finalidade a construção da história comum e,
como meio indispensável, a força do testemunho pessoal.
125 SEVERINO, 1974, p. 142. 126 MOUNIER apud LORENZON, 1996, p. 113. 127 Ibidem, p. 211. 128 MOUNIER, 1964, p. 86. 129 MOUNIER apud MOIX, 1968, p. 176. 130 Ibidem, p. 105. 131 SEVERINO, 1974, p. 140, grifo nosso.
35
4.1 O necessário engajamento
Uma categoria que aparece muito nas obras de Mounier é a de presença. O
homem precisa estar presente ao mundo e aos dramas do seu tempo: “O personalismo está
longe de ser um espiritualismo. Pertence-lhe, em toda a latitude da humanidade concreta,
qualquer problema humano, desde a mais humilde condição material, às mais elevadas
possibilidades espirituais132”.
A própria corporeidade da pessoa é, para ela, um testemunho permanente de que
ela é um ser no mundo. O simples reconhecimento do seu corpo deveria ser para o homem
como um apelo constante ao engajamento junto à realidade que o cerca, uma perene
advertência contra a alienação.
Para Mounier a condição do homem é a de um ser em situação. A esse respeito há
uma afirmação lapidar na obra Qu’est-ce que le personalisme?: “eu sou um eu-aqui-agora;
talvez fosse preciso tornar ainda mais denso e dizer em eu-aqui-agora-desse jeito-por entre
esses homens-com este passado”133. Pode-se notar aqui a grande influência do existencialismo
sobre Mounier. “O personalismo de Mounier é por excelência o personalismo existencial de
que fala Berdiaeff: a pessoa realizando-se nas coordenadas do fato, no pensamento que se
compromete, na existência que radica e personaliza a própria pessoa”134.
Desta forma, o simples fato de existir conclama a pessoa a tomar o seu lugar, a
posicionar-se, a interagir com o meio, a afrontar, a agir: “A ação será sempre um
compromisso entre as exigências da transcendência humana e as imposições da imanência.
Assim, a pessoa situada, interpelada pelos valores, é responsável pela constituição do seu ser
pessoal e comunitário”135.
Comentando a dialética interioridade-objetividade, Mounier afirma que o mal do
século é um mal de pessoas desenraizadas ou ociosas. E defende que “é preciso lembrar à
pessoa que ela só se encontra e se fortifica por intermédio do objeto: é preciso sair da
interioridade para alimentar a interioridade”136. Assim como só existe sujeito em relação a
um objeto, da mesma forma só existe pessoa em relação com o mundo que a cerca e com as
outras pessoas.
132 MOUNIER, 1964, p. 47-48. 133 MOUNIER apud LORENZON, 1996, p. 58. 134 COSTA, João Bérnard da. in MOUNIER, 1964, p. 9, grifo nosso. 135 SEVERINO, 1974, p. 142. 136 MOUNIER, 1964, p. 95.
36
Mounier levantou-se com igual força contra o idealismo burguês, que é a
traição do espírito. Denunciou espíritos desencarnados, capazes de
compreenderem tudo sem jamais se darem a coisa alguma, nem a ninguém. [...] Estes homens que vivem na ilusão de amar o que dizem amar, e de crer
no que dizem crer, de fazer o que dizem fazer, não sabem garantir a
passagem da idéia à ação137.
Segundo Mounier, a própria “palavra existir indica pelo seu prefixo que ser é
expandir-se, exprimir-se. Esta muito primitiva tendência é que, sob sua forma ativa, nos leva
a [...] pôr a marca da nossa ação nas obras visíveis, a interferir nos problemas do mundo e dos
outros”138. Por este motivo é que o personalismo recusa vigorosamente qualquer tipo de
passividade. O homem que se enterra no conformismo para não assumir as responsabilidades
próprias, assemelha-se, segundo Mounier, ao inseto que se confunde com um ramo, para se
fazer esquecer na imobilidade vegetal139.
Emmanuel Mounier também denunciou incansavelmente uma espécie de moléstia
do espírito que ele chamou de “boa consciência”, e que consiste, em última análise, numa
forma velada de indiferença, meio para encobrir a injustiça e disfarce da mediocridade.
Assemelha-se aos mecanismos de defesa apresentados pela psicologia, uma espécie de
negação da realidade na tentativa de esquivar-se de possíveis incômodos e
comprometimentos. “O supremo desespero, escreveu Kierkegaard, é não estar
desesperado”140. Ou seja, mais preocupante que a própria desordem estabelecida é a
neutralidade das consciências diante dela. Conforme a sabedoria popular, o pior cego é aquele
que não quer ver.
Falando sobre a ação política, Mounier dizia que a abstenção é ilusória, pois
“quem ‘não faz política’ faz passivamente a política do poder estabelecido”141. Até mesmo
quando não quer posicionar-se o homem está escolhendo algo. Mounier defendia como que
uma espécie de laicização do conceito cristão de pecado de omissão, que, em alguns casos,
pode constituir-se numa falta muito mais grave que as ações mais deploráveis.
Mounier, cujo personalismo é considerado uma ética da responsabilidade142,
considerava essa postura de rejeição ao engajamento uma demissão da existência, e entendia a
recusa ao compromisso como uma forma de deserção espiritual: “O reino da mediocridade
137 MOIX, 1968, p. 79-80. 138 MOUNIER, 1964, p. 95-96, grifo nosso. 139 Cf. MOUNIER, 1964, p. 20-21. 140 Ibidem, p. 173. 141 Ibidem, p. 164-165. 142 SEVERINO, 1974, p. 142.
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satisfeita é sem dúvida a forma moderna do vazio e talvez, como dizia Bernanos, do
demoníaco”143. A evasão pode constitui-se em uma porta para o niilismo. Os valores que não
vão às ruas, marchando e cantando ao lar livre do mundo que se constrói144, tendem a
desintegrar-se sob o peso do individualismo e do relativismo.
4.2 A construção da história
A situação encarnada da pessoa deve conduzi-la a fazer “corpo, total e
ontologicamente, com a espacialidade e com a temporalidade de que a rodeiam”145,
responsabilizando-se pelo bem comum e pelo futuro da humanidade. Segundo Mounier, “a
vida apresenta-se-nos como futuro criador: a memória é saber escoado a serviço do futuro; o
presente, o ponto de élan e de ação para o futuro”146.
A visão de Emmanuel Mounier acerca da história consiste num otimismo trágico,
o que difere tanto do absurdismo pessimista quanto do romantismo ilusório. Como afirma
Moix, para Mounier, “há, no mundo, bastante esperança e alegria para não cedermos ao
catastrofismo [...]; bastante de trágico para recusarmos as facilidades otimistas”147. Mounier
acredita que o “caminho próprio do homem é esse otimismo trágico em que ele encontra sua
justa medida num clima de grandeza e de luta”148, de esperança e de trabalho, de confiança e
de responsabilidade.
Todos são responsáveis por todos e pelo mundo inteiro, porque há, segundo
Mounier, uma humanidade, como também uma História desta mesma humanidade149. A
mesma relação que existe entre pessoa e comunidade há também entre a história pessoal dos
homens e a história da comunidade humana. Simplesmente uma não existe sem a outra.
Não há história sem pessoa, nem pessoa sem história, visto que, cada pessoa é, a
um só tempo, construída pela história e construtora da história; é filha do seu tempo – no que
diz respeito a toda herança cultural adquirida e a todo tipo de influência recebida do meio – e,
enquanto ser livre, criativo e responsável, é também artífice do seu tempo.
Desta forma, Mounier considera o destino comum da humanidade um dos seus
143 MOUNIER, 1964, p. 173, grifo nosso. 144 Cf. MOIX, 1968, p. 172. 145 SEVERINO, 1974, p. 50. 146 MOUNIER apud SEVERINO, 1974, p. 52. 147 MOIX, 1968, p. 368. 148 Ibidem, p. 369. 149 Cf. MOUNIER, 1964, p. 145.
38
mais altos valores150; valor este que urge ser resgatado diante de um individualismo reinante
que impede que as pessoas pensem nas consequências sociais e históricas das suas próprias
ações.
Um dos grandes méritos de Marx, segundo Mounier, foi o de “relembrar, em
plena época individualista, a realidade do genus humanum, solidário num mesmo corpo,
acima da diversidade dos destinos individuais”151.
Mounier constata que “o universo pessoal não existe ainda senão em ilhas
individuais e coletivas, como promessa a realizar. A sua progressiva conquista é a história do
homem”152. Convém, portanto, derrubar o mito preguiçoso da marcha irresistível da
história153, pois, “se o destino está de antemão fixo não pode haver liberdade”154. A história
não pode ser coberta com uma estrutura já feita, tem que ser escolhida e amada, uma vez que
esta consiste numa co-criação de homens livres155.
A ideia de liberdade, segundo Mounier, é indissociável da noção de
responsabilidade pelo bem comum. Certamente Mounier concordaria com Moix, quando este
comenta que “os determinismos fazem a História, na medida em que os homens
consentem”156. Os dramas históricos a que assistimos são, em última instância, consequência
do mal uso da liberdade humana, seja por parte de quem faz o mal seja por parte daqueles que
se omitem na prática do bem. “Uma concepção fatalista do ‘sentido da história’ ou do
progresso justificaria hoje todos os conformismos. [...] Frente a tanta demissão é urgente
restituir o sentido da pessoa responsável, e do imenso poder que esta detém, quando confia em
si própria”157.
Nem mesmo a grande confiança que Mounier, como cristão, alimentava na ação
da providência divina sobre a história era capaz de fazê-lo pensar que esta última poderia
prescindir das liberdades individuais. A história é uma obra divina tanto quanto humana. “O
tempo é simultaneamente paciência de Deus e uma homenagem à liberdade do homem”158.
Cada dia que se inicia é uma nova chance de acertar oferecida ao homem, um
renovado convite a um generoso engajamento na construção da história comum da
150 Ibidem. 151 MOUNIER apud MOIX, 1968, p. 247. 152 MOUNIER, 1964, p. 47. 153 Cf. MOUNIER, 1964, p. 131-132. 154 Ibidem, p. 145. 155 Cf. MOUNIER, 1964, p. 145. 156 MOIX, 1968, p. 361. 157 MOUNIER, 1964, p. 152. 158 MOIX apud SEVERINO, 1974, p. 115.
39
humanidade. “O presente vivo é um desdobramento espesso de lembrança viva e de promessa
de futuro”159.
4.3 A força do testemunho
Mounier afirmava que ninguém pode ser constrangido a uma experiência de vida
pessoal. A coerção seria uma negação da liberdade que é uma prerrogativa eminente da
dignidade humana. No entanto, o filósofo acreditava que aquelas pessoas que mais
integralmente realizam uma experiência de vida pessoal “vão atraindo outros à sua roda,
despertam os que dormem, e assim, de apelo em apelo, a humanidade vai-se libertando do
pesado sono em que vegetava e que ainda a amortece”160.
A própria concepção mounieriana de educação defende que “uma pessoa suscita-
se por apelos, não se fabrica domesticando”161. Educar consiste em “despertar pessoas
capazes de viver e de se engajar como pessoas”162. Para Mounier “o primeiro ato duma vida
pessoal é a tomada de consciência dessa vida anônima e a revolta contra a degradação que
representa”163. A missão dos educadores nesse trabalho de conscientização é inalienável.
Quando já não tivermos possibilidades de sucesso, resta-nos testemunhar. Não se perde a vida daqueles que souberam dar largo testemunho.
Conhecemos a fragilidade de nossas forças e do sucesso, mas conhecemos
também a grandeza do nosso testemunho. Eis porque conduzimos sem hesitação a nossa tarefa na certeza da nossa juventude164.
Nota-se, também aqui, como o realismo mounieriano não se opõe à esperança no
ser humano e na possibilidade da sua conversão e desenvolvimento. Para Mounier, “pode-se
viver publicamente uma experiência de vida pessoal, esperando conquistar grande número dos
que vivem como árvores, como animais ou como máquinas”165.
Possivelmente imbuído da certeza cristã de que o bem difunde-se por si mesmo,
da mesma forma como a verdade age pela simples presença, Mounier acredita que “a
liberdade da pessoa cria à sua volta liberdade, por uma como que leveza contagiosa – tal
159 MOUNIER apud SEVERINO, 1974, p. 52. 160 MOUNIER, 1964, p. 20. 161 Ibidem, p. 200. 162 LORENZON, 1996, p. 62. 163 MOUNIER, 1964, p. 74, grifo nosso. 164 Ibidem, p. 13. 165 Ibidem, p. 21.
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como inversamente a alienação engendra a alienação”166. O testemunho é, portanto, uma força
silenciosa indispensável para a luta contra os dramáticos sinais de despersonalização, de sono
vital e de irresponsabilidade presentes na contemporaneidade.
166 Ibidem, p. 115.
41
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Emmanuel Mounier pode constituir-se num guia seguro para o homem
contemporâneo que se perdeu de si mesmo e que quer partir em busca da sua verdade, a fim
de tornar-se aquilo que é chamado a ser.
Num contexto social em que a dignidade humana se vê ameaçada de muitas
formas, o personalismo de Mounier pode ajudar a reconhecer, mesmo por detrás da
complexidade da história e da diversidade das culturas, a essência do ser humano como o
conjunto das notas da escala musical, que devem ser respeitadas em qualquer tipo de
composição que se queira realizar, sob a pena de se produzir aberrações. De fato, o
afastamento da verdade da natureza humana pode conduzir a terríveis desumanidades, como
a própria história demonstra.
Na era do fitness, onde se constata não raramente uma preocupação exagerada das
pessoas pela saúde física e pela estética corporal, em detrimento de outras dimensões
humanas essenciais como a intelectualidade e a espiritualidade, não é difícil encontrar pessoas
que seguem à risca os padrões de “beleza” e os ditames da moda, mas que se acham vazias
por dentro, destituídas de uma base sólida de valores, carentes de um fundamento último e de
uma meta de vida elevada.
Nesse contexto cultural, que também é marcado por relacionamentos em que a
corporeidade tem sido enxergada sob lentes utilitaristas e hedonistas, o pensamento de
Mounier, que, no lastro de Maritain, defende um humanismo integral, reafirma o homem
como uma unidade consubstancial de corpo e alma, lembrando que o corpo participa de todo
o mistério da pessoa e, particularmente, do seu chamado a fazer-se dom aos outros,
recebendo, portanto, uma altíssima dignidade a ser respeitada.
Aos cristãos, Mounier não cessa de lembrar que, assim como Cristo, precisam
fazer corpo com a espacialidade e a temporalidade que a rodeiam, tendo olhos para ver os
sofrimentos e as necessidades daqueles que são seus próximos, bem como para contemplar a
face do Pai, fonte de todo amor e de toda compaixão. Esse “duplo olhar” é o que lhes
garantirá a coerência necessária entre fé e obras.
O pensamento mounieriano oferece valiosa contribuição para a vivência da
harmonia entre a vida ativa e a vida contemplativa, mostrando, ao mesmo tempo, que a vida
42
interior é “a alma de todo apostolado”167 e que a experiência da fé gera, necessariamente,
compromissos duradouros e radicais com a edificação de um mundo novo.
Mounier – que chega a afirmar, no Traité du caractère, que a tese central do
personalismo é o eu no meio dos outros – defende que não é somente vergonhoso ser feliz
sozinho, como dizia Camus, mas também absolutamente impossível ser feliz fora da esfera da
intersubjetividade. A abertura ao outro é o que escancara para o homem as portas da sua
realização, enquanto que o individualismo caracteriza-se, para ele, em última instância, como
uma negação de si mesmo.
Um dos grandes méritos do trabalho de Mounier foi ter conseguido traduzir a
mensagem cristã em categorias filosóficas. Se o seu “novo cogito” – ser é amar – for bem
entendido, generosamente acolhido e coerentemente vivido, poderá constituir-se numa força
capaz de revolucionar positivamente os relacionamentos interpessoais nos seus diversos
níveis, desde os familiares até os internacionais. Sociedades pautadas em relações de interesse
ou apenas na justiça, não se sustentam, pois carecem, para progredirem no seu processo de
personalização, das posturas que são próprias do amor, a saber: a generosidade, o
despojamento, a gratuidade, a compaixão, o sacrifício, o perdão, a misericórdia, etc.
Em um momento histórico designado como a era do “time is money”, que tem
gerado pessoas cada vez mais cheias de coisas e vazias de sentido, indivíduos apressados
numa corrida frenética em busca de necessidades criadas e irreais, o homem parece ter
perdido a capacidade de contemplar. Não há tempo para ser porque é preciso trabalhar para
ter. Vive-se para trabalhar, e não se trabalha para viver. Nota-se ainda que a era da
“informação em tempo real” tornou-se também a era da futilidade e da superficialidade.
Diante desse ativismo reinante e dessa deplorável frivolidade, características da
modernidade líquida, o pensamento de Mounier convida o homem moderno a, por meio da
meditação e do recolhimento, religar-se ao tronco da sua “videira interior”, a fim de voltar a
alimentar-se da sua própria essência, reencontrando, assim, os fundamentos éticos,
ontológicos e teleológicos capazes de dar sustentação, sentido e esperança à sua ação.
Pode-se dizer de Mounier, com muita propriedade, que é literalmente um filósofo
contemporâneo, visto que não está ausente a nenhum dos dramas humanos do seu tempo. Esta
disponibilidade, expressão cara a este mesmo autor, leva-o a combater, com a filosofia,
167 Título do célebre livro de Dom Jean Baptiste Chautard – abade cisterciense de Sept-Fons – que foi honrado,
na segunda década do século passado, com um autógrafo de Bento XV e que foi recomendado por Pio X e por
numerosos cardeais e bispos. Esta obra evidencia, de maneira admirável, a necessidade da vida interior nos
homens de obras para a verdadeira fecundidade do seu ministério.
43
desafios políticos, sociais, culturais e até mesmo eclesiais. Seu testemunho é luminoso, de
maneira especial para aqueles intelectuais que se contentam com elucubrações abstratas e
desencarnadas.
Para Mounier, que, segundo Moix, foi o primeiro na França a falar em
engajamento, não há existência verdadeiramente humana que não seja uma existência
engajada. Não vale a pena viver se a vida que se vive não se expressar como dom e como
serviço, a fim de tornar melhor a vida dos outros. Como diz Severino, “para existir
plenamente é preciso agir, pois é na espessura da ação que se trama a existência. Agir para
transformar a realidade exterior, para se autoconstruir, para aproximar as pessoas entre si e
para aumentar o universo dos valores”168.
Em suma, o pensamento de Emmanuel Mounier, surge, em um tempo
transbordante de desumanidade, como um instrumento eficaz para o serviço à dignidade da
pessoa humana. Além disso, percebe-se que não há como aproximar-se da vida e da obra
desse filósofo e permanecer indiferente diante da altíssima tarefa dirigida a cada indivíduo de
personalizar-se para personalizar o mundo. Diante de tudo o que foi dito, constata-se que o
personalismo mounieriano necessita ser mais bem difundido e aprofundado, e essa foi uma
das motivações do presente trabalho.
168 SEVERINO, 1968, p. XIV.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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