pesquisas em fenomenologia compreendem o lazer, o ócio e o trabalho

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LIMA, Luiz Augusto Normanha; FERREIRA, Luiz Fabiano Seabra; FRAGOSO, Rafael Santos. Pesquisas em fenomenologia compreendem o lazer, o ócio e o trabalho. Teoria e Prática da Educação, Maringá, v. 8, n. 2, p. 25-41, 2005.

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Lima, Luiz Augusto Normanha – Prof. Dr. Depto. Educação Física da Universidade Estadual Paulista – Unesp – Rio Claro – SP. e-mail:

[email protected] .

Ferreira, Luiz Fabiano Seabra – Prof. Ms. Faculdades Integradas Módulo – Caraguatatuba - SP. e-mail: [email protected]

Fragoso, Rafael Santos – Graduando em Licenciatura em Educação Física pela Universidade Estadual Paulista – Unesp – Rio Claro – SP.

Revista Teoria e prática da educação, Maringá - PR, v. 8, n. 2, 2005. p. 25 a 41.

Pesquisas em fenomenologia compreendem o lazer, o ócio e o trabalho.

Resumo

A partir de duas pesquisas utilizando-se do método da Análise do Fenômeno Situado, a primeira intitulada “O prazer do trabalho, o momento de poíesis: uma forma de lazer, uma nova visão do trabalho pela fenomenologia”, e a segunda “Compreensão de lazer para quem não trabalha”,possibilitam reflexões mais detalhistas, uma compreensão não sintética, uma dialética aberta entre trabalho e lazer evidenciando outras perspectivas. Foram analisados discursos de trabalhadores que revelam seus prazeres no trabalho, e o que são esses prazeres. Os resultados da primeira pesquisa apontam que há um momento em que o trabalho torna-se prazer: é o momento de criação, um momento de “poíesis”, de recriar, inventar, possibilitar a imaginação, com liberdade para atingir o próprio fazer do trabalho. Por outro viés, a segunda pesquisa, o lazer para quem não trabalha (neste caso os aposentados e os desempregados) mostra que o trabalho é uma forma de fazer algo, transcendendo o fazer nada. O trabalho para o aposentado é uma forma de se detrair, um passa tempo e uma possibilidade de obter algum rendimento para completar sua renda. Para o desempregado o trabalho é compreendido como um “bico”, uma possibilidade de sobrevivência diante das necessidades materiais. A partir das pesquisas acima mencionadas e de autores da área do lazer, é possível perceber que o seu significado, na atualidade, distancia-se da compreensão grega sobre ócio. Nesse sentido, este artigo procura evidenciar novas compreensões sobre o lazer, o ócio e o trabalho a partir de uma perspectiva fenomenológica.

PALAVRAS-CHAVES: Lazer – Ócio - Trabalho - Fenomenologia.

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Abstract

Having the goal of establishing a new comprehension of entertainment and work, two researches bewere accomplished with the method of the Analysis of the located Phenomenon. The first entitled: “The pleasure of the work, the moment of poíesis: a entertainment from, a new work vision for the phenomenology”. The second research entitled: “Comprehension of entertainment for who doesn’t work”. This article is an open dialectical, in which entertainment and work configure together, they happen at the same time, in that sense we tried to propose a new no synthetic comprehension on the researched themes, evidencing new reflection perspectives concerning these thematic ones. We don’t have the pretense of establishing truths, but we intend to place in prominence other ways to understand the entertainment and the work. Worker’ speeches were analyzed that reveal its pleasures in the work, and what is this pleasure. The results of the first research aim that there is one moment that the work becomes pleasure, it is the moment of creation, a moment of “poíesis”, of creating again, to invent, to facilitate the imagination, freedom to reach the own to do of the work. On the other hand, the second research, the entertainment of who doesn’t work, for example the retired ones and the unemployed, it shows that entertainment and work aren’t associated with the free time anymore. From these researches on is possible to notice that the entertainment meaning at the present time, it’s far from the greek comprehension of leisure.

KEY WORDS: Leisure – Work – Phenomenology.

Introdução

Este artigo pretende trazer em discussão os resultados atingidos em duas pesquisas: “O prazer do trabalho, o momento de poíesis: uma forma

de lazer, uma nova visão de trabalho pela fenomenologia” e “A compreensão de lazer para quem não trabalha”. O objetivo dessas reflexões foi

desvelar a compreensão sobre temáticas que fazem parte do nosso cotidiano e que muitas vezes são tratadas a partir de um pensamento

dicotomizado e maniqueísta.

A pré-reflexão concentra-se em transcender as visões dicotômicas entre esses dois temas, acrescentando o ócio como um terceiro elemento

imbricado nessa temática. No senso comum o lazer é uma atividade diferente do trabalho, que não podem ocorrer ao mesmo tempo, já o ócio é visto

como “coisa de preguiçoso, vagabundo” ou de quem não tem nada para fazer. Faz-se necessário superar o pensamento fragmentado em relação ao

lazer e o trabalho, isso se estabelece ao refletirmos como estes temas não podem ser separados nas suas essencialidades.

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Pré-reflexão

As discussões sobre lazer e trabalho fazem parte da Educação Física, principalmente no que diz respeito à visão de corpo e ao uso do corpo

que se instauraram na história da humanidade. Os autores que tratam desses assuntos, muitos com formação em Sociologia, têm destacado, no

centro de seus pensamentos, o trabalho como uma relação entre explorados e exploradores e o lazer como terapia para curar ou compensar os

malefícios do trabalho em excesso. Souza et all (2001, p. 124) expõem:

O trabalho é um dos elementos mais expressivos da vida e da maioria das pessoas. O lazer, dessa forma, fica relegado a segundo plano e

assume outras funções, como compensar as frustrações vivenciadas no trabalho e recarregar as forças produtivas.

De acordo com as idéias de Russell (s. d., p. 31), “os homens encaram o trabalho como deve ser encarado, uma forma de ganhar a vida, e é o

lazer que retiram, aí sim, a felicidade que a vida lhes permite desfrutar”.

Os autores acima expõem o trabalho como um campo de frustrações, quando dependendo do momento o trabalho pode ser uma forma de

compensar alguma frustração vivida. O momento, a situação, define o que é lazer e trabalho, assim como, há momentos, há situações em que

trabalho e lazer estão ocorrendo ao mesmo tempo, é nestes momentos, nestas situações, que se pode pensar o quanto de satisfação pode haver em

um trabalho, evidentemente se o mesmo não for alienante, ou se caso o ser não se deixe alienar pelo trabalho numa perspectiva de que é uma fonte

de sobrevivência, algo desgastante e penoso, muitas vezes insatisfatório, assim como pensar no lazer como uma válvula de escape, uma

compensação para as frustrações do trabalho. As questões de valorização são muito complexas e dependerão, sempre, especificamente, de que tipo

de trabalho está em questão. Pode existir um trabalho não alienante, como também pode o lazer ser, ou não, crítico e criativo.

Decter (1964, p. 19) esclareceu que a solidificação da teoria da luta de classes se deu através da história:

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A história de toda a sociedade humana, isto é, toda a história escrita, passada e presente, como declara o Manifesto Comunista, tem sido

a história da luta de classe. A luta de classe é a guerra perpétua, uma guerra às vezes encoberta, e às vezes aberta e reconhecida entre

opressor e oprimido, entre classe exploradora e explorada.

O trabalho nesta perspectiva equivale-se a uma forma dúbia, ou se explora ou se é explorado, neste sentido não se pode sair da idéia de que

trabalho é trabalho e lazer é lazer. Um aliena e o outro liberta, todavia isso não se aplica a todas as situações, em todos os momentos da vida.

A forma materialista de colocar o problema define uma forma de percebê-lo e, portanto, de compreensão que estipula uma forma dicotômica

de observar a sociedade, ou as pessoas. A intersubjetividade inerente aos significados de lazer e trabalho espelha uma dialética sintética entre

opressores e oprimidos. Entretanto, lazer e trabalho são fenômenos complexos, que se fundem em múltiplas alternativas de compreensão. A visão

imediatista estabelecida entre o trabalho e o lazer como oposições dificulta outras estruturas de compreensão que possam revelar, de forma

diferente, os significados atribuídos aos fenômenos, as experiências vividas entre o trabalhando e o realizando o lazer.

A visão que se instaurou na Educação Física acadêmica de que trabalho e lazer são oposições advém dos estudos que tomam a modernidade

e a Revolução Industrial como ponto de partida, somados a forte tendência dos estudiosos destes assuntos utilizarem-se dos métodos dialético-

materialista e histórico-dialético. O trabalho, sob esta perspectiva, ganha a dimensão de luta de classes, é uma opressão imposta pelo Capital e pelo

patrão, e, como conseqüência, surge a necessidade da conquista da liberdade, que seria entendida como tempo livre ou sem trabalho. O lazer, por

outro lado, torna-se uma das poucas possibilidades de conquista da felicidade e da humanização do homem. Munné (1999, p. 24 - 25) expõe a

concepção marxista dizendo que:

O processo de divisão do trabalho levou o homem a uma situação em que reina a necessidade, impedindo-lhe a auto-expressão e o

desenvolvimento pessoal (...) Nesse contexto, o lazer seria uma das condições para o desenvolvimento das faculdades intelectuais e

universais do homem.

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Apesar de trabalho ser algo oposto a lazer, é possível que ocorram numa mesma situação, num mesmo momento, ou seja, ao mesmo tempo.

Por outro lado é mais complexo se dizer, por exemplo, que em um trabalho possa haver um momento de libertação, o da realização do trabalho, o de

criar, inventar, mesmo nos trabalhos mais mecânicos, as descobertas constantes das formas diferentes de se realizar a mesma função, ou as

descobertas nos progressos de cada trabalho. Sem dúvida, trabalhos que necessitem um alto nível de criatividade podem produzir prazeres, às vezes

até transformando a vida da pessoa passando a fazer do seu trabalho o seu lazer, são pessoas que gostam do que fazem e por isso trabalham demais,

sustentam a situação do trabalho mais que outras que logo se entediam e necessitam mudar a situação, sair do que estão fazendo.

Mascarenhas (2001) expõe a imbricada relação construída pela ciência entre lazer, trabalho e ócio, tratadas pelo autor como relações mal

entendidas. A noção de ócio é confundida com a de lazer em várias abordagens.

Amplia-se na Educação Física acadêmica, a compreensão de tempo livre utilizando principalmente a concepção marxista como referencial

teórico.

De acordo com Munné (1999), Marx concebia o tempo livre como o tempo disponível para gozar os produtos, distrair-se, vivenciar o lazer e

para desenvolver-se livremente. Nesse sentido, tempo livre seria como um fenômeno transformador do trabalho, e do homem, criando a

possibilidade de um trabalhador livre.

Russel (s. d.) ressalta a necessidade de uma redução na jornada de trabalho (quatro horas por dia) visando disponibilizar mais tempo livre

para os trabalhadores. Ele diz que o desenvolvimento tecnológico possibilitará a liberação da mão de obra humana. Porém, na atualidade percebe-se

que o desenvolvimento tecnológico resultou em um agravo nos índices de desemprego e que ao invés das máquinas liberarem o homem para

vivenciar o lazer e o ócio, transformaram-no em escravos das tecnologias.

Bruhns (2002) ao analisar o cientista político Sebastian De Grazia, volta-se para o ideal clássico de ócio apontando os equívocos da

denominação “tempo livre”; realiza uma dialética entre tempo livre e o tempo em que se têm obrigações. Propõe, desta forma, uma questão

filosófica ao perguntar às pessoas o que é lazer, quando poucas se atrevem a defini-lo. Porém, se a palavra lazer significar tempo, todos saberão

responder. “Temos agora duas palavras, em vez de uma, as quais têm produzido a insônia de muitos filósofos: livre e tempo”. (p. 32).

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De Grazia (1966) recorre a Aristóteles expondo que o ócio era uma condição, ou estado de estar livre da necessidade de trabalhar (isenção de

obrigações). O ócio estaria relacionado à contemplação da natureza, do belo e dos valores supremos daquela época, bem como a busca da verdade e

o cultivo da mente, pois só vivenciando o ócio o homem atingiria a felicidade plena. Tanto Aristóteles como Platão concebiam a contemplação

como a melhor maneira para atingir a verdade e se aproximar dos deuses. O ideal grego de ócio chegou a Roma principalmente pelas obras de

Aristóteles, Platão e Epicuro. Um dos primeiros romanos a se dedicar ao estudo do ócio foi Sêneca.

Esse filósofo ressalta que a simplicidade é uma virtude, pois a vida deve ter poucas agitações criando possibilidades para uma vida tranqüila

e contemplativa. A serenidade deve ser cultivada como uma aspiração da alma, uma ausência de inquietação próxima do ser divino. O cultivo da

mente por meio da meditação deve ser um dos objetivos para se viver em harmonia. Ele dizia que os gregos chamavam este equilíbrio da alma de

“euthymia” mas sua interpretação se aproximava do que chamamos “tranqüilidade”, pois segundo ele; “é inútil pedir palavras emprestadas para

nosso vocabulário e imitar a forma de um termo que tenha a significação da palavra grega, sem, no entanto reproduzir a forma”. (SÊNECA, 1961, p.

100).

Alguns filósofos da modernidade também refletiram sobre a necessidade do ócio.

Nietzsche (1988, p. 13) inicia o prefácio de Crepúsculo dos Ídolos ressaltando a serenidade como um meio para se atingir o êxito na vida e

diz que “o ócio é o começo de toda a psicologia”. Em outra obra, Nietzsche (2001, p. 192) declara a necessidade de vivenciar o ócio, pois estaria

relacionado a uma vida contemplativa. O filósofo da martelada faz uma denúncia afirmando que “por falta de tranqüilidade a nossa civilização se

transformou numa nova barbárie”. Além disso, há uma valorização excessiva das atividades em detrimento de momentos contemplativos, “em

nenhum outro tempo os ativos, isto é, os intranqüilos, valeram tanto”. Nesse contexto, muitos eruditos se igualam aos “homens ativos”, pois

valorizam essa espécie de fruição precipitada; “os eruditos se envergonham do otium (ócio)” O autor prossegue fazendo uma ressalva:

Se o ócio é realmente o começo de todos os vícios, então ao menos está bem próximo de todas as virtudes; o ocioso é sempre um

homem melhor do que o ativo – Mas não pensem que, ao falar de ócio e lazer estou me referindo a vocês, preguiçosos.

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A visão nietzscheniana sobre os excessos de uma vida atribulada pode servir como indícios para uma reflexão profunda sobre as condições

humanas na atualidade.

Os homens ativos rolam como pedra, conforme a estupidez da mecânica – Todos os homens se dividem, em todos os tempos e também

hoje, em escravos e livres; pois aquele que não tem dois terços do dia para si é escravo, não importa o que seja: estadista, comerciante,

funcionário ou erudito”. (NIETZSCHE, 2001, p. 191).

Outro filósofo da modernidade que se aproximou do ócio é Bertrand Russell (s.d., p. 23), ele diz que foi educado segundo os “preceitos do

provérbio alemão que diz que o ócio é o pai de todos os vícios. O filósofo revela que passou a vida inteira trabalhando duro por ter acreditado nesse

preceito. Contudo, ele faz um “elogio ao ócio”, pois este é necessário para o equilíbrio humano.

A partir desses ideais pode-se perceber o distanciamento (pelo menos no campo conceptual ou teórico) entre o ócio e os conceitos modernos

sobre lazer.

Nesse sentido, o lazer (como falta de trabalho ou isenção de obrigações) não pode ser mesmo entendido como oposição ao trabalho, mas

como um momento de realização e prazer. Bruhns (2002, p. 37), apoiando-se nas idéias de Epicuro, diz: “o prazer real e permanente é a serenidade.

Nada produz tanta tranqüilidade como fazer poucas coisas, não se meter em ações desagradáveis e não ir além das próprias forças”.

Na atualidade o lazer aparece como dependente de tempo livre e muitas vezes atrelado às questões de consumo. Nesse contexto, a liberdade,

entendida pela dialética materialista, prevê que os ricos têm mais oportunidades de lazer e tempo livre. Bruhns (2002) realiza uma grande

contribuição ao revelar que o lazer se converteu em tempo, afastando-se da vida de contemplação do belo, do refinamento das idéias e do cultivo da

mente e divorciando-o de todo significado político e religioso. Além disso, o tempo livre se transformou em um tempo político. Ela também

questiona como o tempo pode ser “livre” se ele é cronometrado e regido pelo relógio.

Como é possível perceber, o tema lazer é imbricado aos temas, tempo e trabalho.

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Na Educação Física, lazer e trabalho aparecem, às vezes, na mesma situação; em outras ocasiões, em situações opostas. Por exemplo: o

fazer, ou seja, o trabalho do professor de Educação Física é quase sempre visto como um “trabalhar com as atividades lúdicas”, pensando no

trabalho do professor que aplica as técnicas aos alunos e isso lhe oferece, também, prazer; mas isso ainda pode não ser o lazer desse professor.

O lazer na discussão acadêmica, na atualidade transformou-se em mercadoria. O trabalho sempre foi tomado como escravização humana, e o

lazer, então, seria uma forma de se utilizar o tempo com atividades que se contraponham ao trabalho produtivo. Mas essa idéia logo se desfaz ao se

pensar o lazer como uma possibilidade de trabalho, ou pensar nas pessoas que fazem do lazer um trabalho. O lazer é uma possibilidade de trabalho.

Fica mais clara a idéia de ócio, contemplação do belo, do refinamento das idéias, do cultivo da mente. O trabalho tem este momento, de ócio,

criação e imaginação.

Revers (1966, p. 78) ressalta que pode haver momentos de ócio no trabalho. “O trabalhador dedicado a certas ocupações tem freqüentemente

tempo e ócio”.

Levensten apud (REVERS, 1966, p. 78) oferece uma descrição que um operário têxtil faz de si mesmo ao vivenciar o ócio:

Como eu deveria fazer durante horas e dias as mesmas operações, elas se converteram para mim numa coisa tão usual que eu não sentia

necessidade de lhes dedicar todo interesse, eu até me permitia pensar noutras coisas: assim cheguei a ponto de sentir satisfação no

trabalho uniforme do tear. Quando a lançadeira corria quase invisível de um lado para o outro e realizava o seu percurso costumeiro;

quando o surdo choque do batedor impunha um ritmo ao fragor das máquinas, aí eu freqüentemente como que sentia o rápido

movimento das máquinas a se me comunicar e a me dar uma adaptação íntima.

O autor supra citado denuncia que na atualidade grande parte dos homens modernos que teriam tempo para a ociosidade, não conhecem o

ócio.

Além da escassez de ócio, hoje em dia o trabalho é regido pela idéia de produtividade e qualidade total, buscando maximizar os lucros, pois,

“tempo é dinheiro”.

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A pré-reflexão até aqui desenvolvida apontou o caminho na decisão de se buscar realizar duas pesquisas de campo, para compreender as

difíceis relações que se constroem entre ter momentos de trabalho e de ócio, ou de lazer. As pesquisas a seguir apresentadas são: a compreensão da

poiésis do trabalho, e a complexa é a situação do desempregado, ou do aposentado, que, figurativamente, não possui um trabalho. Atualmente, é

mais razoável pensar nos que não trabalham como sendo os oprimidos pelo sistema. Não produzir é uma situação diferente daquela dos que

produzem algo: de início, a subjetividade do tempo modifica-se, o tempo livre passa a ser o maior tempo, ou o tempo todo.

Situando o Fenômeno

De acordo com os escritos de Merleau Ponty (1971, p. 373):

O mundo está aí antes que dele eu possa fazer qualquer análise e seria artificial fazer uma derivação. Os aspectos perspectivos do

objeto, quando uns e outros são justamente produtos da análise, não devem ser forjados antes dela. A análise reflexiva segue, num

sentido inverso, o caminho de uma constituição pré-falada; a reflexão localiza-se numa subjetividade invulnerável e além do ser e do

tempo.

Nesta citação o filósofo mostra que há um tempo anterior a toda reflexão, o tempo do mundo vivido, as experiências do trabalhando, e do

estando sem trabalho, os desempregados e aposentados, que possuem uma outra vivência no lazer e no trabalho.

Para Martins e Bicudo (1989, p. 75):

Ao optar por realizar pesquisa qualitativa segundo a modalidade estrutura do fenômeno situado, alguns cuidados precisam ser tomados.

Não é possível falar em pesquisar aprendizagem, ansiedade, solidão, etc., considerados genericamente, como ocorre na pesquisa

empírica positivista. Na modalidade aqui considerada não se pode, de modo algum, considerar os acontecimentos “em si”, como se

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fossem realidades objetivas. A ciência contemporânea entende que as realidades fogem a toda determinação objetiva no espaço e no

tempo de modo que, em última instância, o pesquisador só pode tomar como objeto de análise a experiência que tem dos

acontecimentos que deseja estudar. As divisões vulgares do universo em sujeito-objeto, mundo exterior-mundo interior, corpo-alma

servem apenas para suscitarem equívocos. Dessa maneira, hoje, na análise científica, o objeto de investigação não é o acontecimento

em si, mas a natureza subordinada à maneira humana de pôr o problema. O homem se encontra só frente a si próprio. A pesquisa

qualitativa, segundo esta abordagem, precisa, de início, situar o fenômeno. Isso quer dizer que só há fenômeno psicológico enquanto

houver um sujeito no qual ele se situa.

O Fenômeno Situado, aqui, é a compreensão dos que estão vivenciando e experienciando o trabalho, assim como a experiência de lazer para

quem não trabalha, no caso, aposentados e desempregados.

Interrogações

Na primeira pesquisa, foi proposta, aos trabalhadores, a seguinte interrogação: “O que é o prazer do seu trabalho?”. Esta forma de abordar o

sujeito remete-o a um discurso de trabalho como aquisição de contentamento e satisfação, a motivação. O momento de criação em um trabalho a

poiésis, o criar é um momento de contemplação, imaginação e cultivo da mente, o ócio. Na segunda, foram interrogados aposentados e

desempregados: “O que é lazer para você?”. Numa perspectiva de entender o tempo livre por aqueles que estão o tempo todo criando o que fazer e

as vezes isso se torna um trabalho.

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Metodologia

Os estudos ora apresentados têm, como método, a análise do Fenômeno Situado, ou seja, uma análise do trabalho não como fato ou causa,

mas os fenômenos do “trabalhando” e do “vivenciando o lazer” como possuidores de qualidades essenciais que podem ser reveladas.

Os dados são os significados expressos nas experiências vividas de pessoas que têm obtido muito sucesso profissional e gostam do que

fazem e por outro viés as que fazem do seu tempo uma forma para sobreviver, um tempo de produzir. Os discursos, gravados e transcritos, serviram

para delinear o caminho da compreensão do trabalho como prazer, ou o lazer como trabalho, além do lazer para quem não trabalha, no caso dos

aposentados e desempregados.

Foram realizadas as análises Ideográficas e Nomotéticas nas duas pesquisas. Para a pesquisa intitulada “Compreensão de lazer para quem

não trabalha”, os entrevistados se caracterizaram por ter universos definidos como os que não possuem emprego ou emprego formalizado. Para a

outra pesquisa, “O prazer do trabalho, o momento de poíesis: uma forma de lazer, uma nova visão de trabalho pela fenomenologia”, os sujeitos se

caracterizaram por gostarem do que fazem ao trabalhar.

Construção dos Resultados

A partir das análises dos discursos de sujeitos que não trabalham e de sujeitos que trabalham e gostam do que fazem, foi estipulada uma

comparação entre essas experiências vividas e autores que fundamentam os estudos sobre lazer e trabalho. Assim foi possível construir os

resultados. O prazer no trabalho é visível mesmo em profissões mais sacrificantes, nelas, ao ter que manter a atividade de trabalho o momento de

descontração se dá ao resolver algo imprescindível. Portanto, o prazer está em conseguir realizar tarefas altamente confiáveis ao sujeito, não apenas

como forma de servir ao sistema, mas como resultado de uma missão cumprida, uma confiança que se estabelece por ser um bom profissional e

saber fazer algo, poder resolver um problema e tornar-se importante, “sair do fazer nada”. O nada é o não-ente, para a Fenomenologia, de modo que

o ser se configura na angústia. Quem gosta do que faz, trabalha e realiza com prazer, revigora-se com o fruto do trabalho, se tornando lazer,

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descontração, quando o pensamento nele está voltado para fazer com cuidado, pensando em adquirir mais saber, ou mesmo fugir das rotinas do

cotidiano. Na beleza do que se faz, na sua finalidade, o trabalho tem possibilidade de ser lazer, pelo prazer que possibilita. Os usos da criatividade e

da imaginação configuram um sentido de liberdade no trabalho, uma forma de produção, criação, um prazer.

No trabalho, é possível haver momentos livres, de descontração. Isso está ligado ao prazer de se conviver com os outros, construindo um

ambiente de intercâmbio. Agora mais difícil é associar se há algum momento de criação e de contemplação ou de prazer em um trabalho alienante.

Toda a dificuldade está associada à questão do tempo e a liberdade de obrigações. Será necessário, primeiro, recorrer a filosofia, para

entender o que é liberdade.

Em seus escritos Merleau Ponty (1971, p. 439) diz que:

Se, com efeito, a liberdade é igual em todas as nossas ações e até em nossas paixões, se está sem medida comum com a nossa conduta,

se o escravo testemunha tanta liberdade ao viver no medo do que ao quebrar seu ferro, não se pode dizer que haja nenhuma ação livre; a

liberdade está além de todas as ações, em nenhum caso se poderá declarar: “Aqui aparece a liberdade”, pois a ação livre, para ser

revelada, deveria destacar-se num fundamento de vida que não o foi ou que o foi menos. Ela está em toda parte se quiser, mas também

em lugar nenhum.

A liberdade é algo que está sempre por vir. Na mesma medida, “a liberdade é correr risco”, mas, o que isso tem a ver com o trabalho e o

lazer? Liberdade, atualmente, no trabalho e no lazer, é o que se configura na busca de prazer ao extremo, tal como, por exemplo, em algumas

experiências de lazer em que pode haver o risco de perder a vida (atividades de aventura ou esportes radicais). Estas são, na verdade, uma forma de

atividade não totalmente livre, pois, os que se arriscam detém um conhecimento de que praticam a atividade com segurança; portanto, o resultado da

atividade executada com sucesso é a potencialização do prazer.

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O trabalho pode gerar prazer quando se busca a conquista pela liberdade por meio de uma resistência contínua às forças que limitam e

condicionam os sujeitos. Para se transcender os limites na busca pela liberdade, porém, essas pessoas devem compartilhar idéias e ações com seus

pares, não na privacidade, mas nos espaços públicos. Veja-se o que é essa liberdade para o filósofo Merleau Ponty (1971, p. 458):

Arriscarei minha vida por tão pouco? Darei minha liberdade para salvar a liberdade? Não há respostas teóricas para essas perguntas.

Mas há essas coisas que se apresentam, irrecusáveis, há esta pessoa amada diante de você, há esses homens que existem escravos em

torno de você e sua liberdade pode existir sem sair de sua singularidade e sem querer a liberdade. Que se trate de coisas ou situações

históricas, a única função da filosofia é de nos reaprender a vê-las bem, e é verdade dizer que ela se realiza destruindo-se como filosofia

separada. Mas é aqui que é necessário calar-se, porque só o herói vive até o fim sua relação com os homens e o mundo, e não convém

que um outro fale em seu nome.

Vivenciar a liberdade seria a meta final de estar trabalhando ou realizando o lazer.

Considerações finais

Percebe-se, pelos resultados das pesquisas, que as pessoas desempregadas apresentam, como lazer, o procurar trabalho.

Tarefas cotidianas como cuidar da casa podem ser expressões de prazer. Para o desempregado, o tempo livre é percebido diferentemente das

pessoas que possuem vínculos empregatícios. Nesse sentido, as tarefas do cotidiano tornam-se mais agradáveis e prazerosas de serem realizadas,

pois representam uma possibilidade de sair do “fazer nada”.

Já os aposentados mostraram que o momento de lazer é diversão, descontração, um momento de contato com a natureza (contemplação) e

uma possibilidade de aproximação entre as pessoas. Isso permite perceber que o lazer é um momento de humanização e de aproximação com a sua

existência. O aposentado compreende o lazer e o trabalho diferentemente dos que ainda estão vinculados aos meios de produção (empregados). Para

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alguns o trabalho se torna uma possibilidade de obter um ganho extra como complemento da aposentadoria, “uma forma de ocupar o tempo com

coisas úteis”. O lazer, em todos os sentidos, possui relações com o trabalho. O lazer pode estar no trabalho e este pode produzir lazer.

O lazer para quem não trabalha passa a não estar mais vinculado ao tempo livre, mas a uma forma de sair do “fazer nada”. O lazer, neste

caso, passa a ser o “bico”, o trabalho provisório para se obter ganho.

Na atualidade, os significados de lazer e ócio misturam-se. Por um lado, o lazer está voltado para o consumo de mercadorias; por outro, o

não fazer nada (isenção de obrigações), atualmente, pode tornar-se facilmente angustiante, o que gera a vontade de se ocupar com algo. No caso dos

desempregados, a busca por um trabalho passa a ser o essencial e a realização de conseguir o emprego é o prazer.

Em todos os casos é melhor sair de questões que envolvam o que é lazer e o que é trabalho para discussões do que é liberdade e o que é o

tempo.

Viu-se, em Merleau Ponty, o significado de liberdade, e, quanto ao tempo, sabe-se que existem duas categorias. De acordo com Martins e

Espósito (1992, p. 70), o tempo pode ser compreendido a partir de duas possibilidades: o Cronos e o Kairós.

Tempo: que não é apenas Cronos, mas também Kairós. Cronos significa um tempo delimitado por mensurações que são provenientes

das pesquisas científicas essencialmente ônticas, que se esquecem do Ser e de suas possibilidades. Somos Kairós, isto é, um tempo

vivido numa determinação consciente e efetiva de nossa existência. Uma consciência que é tempo e indica direções.

O lazer e o trabalho são tempos cronológicos e, além disso, há o tempo de cada ser no lazer e no trabalho, o que configura uma infinidade de

possibilidades em que lazer pode ser trabalho e trabalho pode ser lazer. O trabalho pode ser gratificante e, nele, pode estar o lazer. O lazer, por outro

lado, não pode ser só ocupação do tempo com o que não é trabalho, pois tal ocupação pode tornar-se um novo trabalho, ou possuir as mesmas

características de um trabalho. Lazer e trabalho são sempre encontros sociais, e aí está envolvido o tempo cronológico que as pessoas possuem. Da

mesma forma se revelam os Kairós, que determinam o que é trabalho, o que é lazer e como se mostra à liberdade no trabalhar e no desfrutar um

lazer. Assim, o que vale para lazer e trabalho depende de qual experiência vivida está em questão.

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